Clínica do Esquecimento: Construção de Uma ... - Psicologia - UFF
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Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong><br />
Título: <strong>Clínica</strong> <strong>do</strong> <strong>Esquecimento</strong>: <strong>Construção</strong> <strong>de</strong> <strong>Uma</strong> Superfície<br />
Autora: Cristina Mair Barros Rauter<br />
Orienta<strong>do</strong>ra: Suelly Rolnik<br />
Programa <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Pós Gradua<strong>do</strong>s em <strong>Psicologia</strong> <strong>Clínica</strong><br />
Pontifícia Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo -1998<br />
Introdução<br />
O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é pensar as relações entre história, memória e clínica. Nossa<br />
reflexão partiu <strong>do</strong> confronto entre Nietzsche e Freud provoca<strong>do</strong> pela leitura da Segunda<br />
Consi<strong>de</strong>ração Intempestiva. Se tomarmos o próprio título <strong>de</strong>sta obra - Da Utilida<strong>de</strong> e<br />
Inconvenientes da História para a Vida, po<strong>de</strong>remos nos aproximar <strong>de</strong> nossas principais questões:<br />
que utilida<strong>de</strong> tem a história na clínica? <strong>Uma</strong> clínica da recuperação <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong> infância - que<br />
efeitos produz? Quais seus inconvenientes? Reconstrução ou construção da história individual -<br />
este po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um objetivo da clínica?<br />
Um cliente que chamarei <strong>de</strong> M. teve um papel fundamental na <strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s rumos <strong>de</strong><br />
minhas indagações. Ele po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>scrito como um "<strong>do</strong>ente <strong>de</strong> história" cuja "cura" se <strong>de</strong>u a<br />
partir <strong>de</strong> uma reformulação em meu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> atuar - ao invés <strong>de</strong> valorizar a história, construí uma<br />
estratégia em que apenas "tinha ouvi<strong>do</strong>s" para seu presente, para os fatos banais <strong>de</strong> seu<br />
quotidiano.[1]<br />
A principal mudança portanto ocorreu "no terapeuta". O terapeuta pô<strong>de</strong> modificar seu ouvi<strong>do</strong><br />
seletivo[2], acostuma<strong>do</strong> a valorizar o sexual-infantil e passou a ocupar-se <strong>do</strong> quotidiano. Mas aqui,<br />
não se trata <strong>de</strong> uma fórmula, mas <strong>de</strong> uma estratégia clínica, peculiar a este caso. Tal estratégia<br />
produziu efeitos que permitiram, ao invés <strong>de</strong> construir uma história, <strong>de</strong>sestoricizar.<br />
Como se constrói o <strong>do</strong>ente <strong>de</strong> história no campo das intervenções Psi? Penso que não tanto<br />
a partir das vicissitu<strong>de</strong>s da infância, mas o próprio dispositivo Psi, ou o ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s terapeutas,<br />
privilegia este ponto <strong>de</strong> vista que na clínica com frequência acaba por produzir interiorização,<br />
hiper-consciência <strong>de</strong> si (como veremos com Otto Rank, no capítulo 2.6).<br />
Minha prática como psicóloga em instituições fechadas (hospital psiquiátrico e prisão)<br />
produziu diante <strong>de</strong> mim evidências <strong>de</strong> que esta "hiper-consciência histórica" era ativamente<br />
produzida pelo dispositivo psi. Nas práticas Psi que ocorrem na área criminal o passa<strong>do</strong> é<br />
claramente utiliza<strong>do</strong> para con<strong>de</strong>nar - não po<strong>de</strong> portanto ser esqueci<strong>do</strong>. Pesquisan<strong>do</strong> lau<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
EVCP[3] (Exame para Verificação <strong>de</strong> Cessação <strong>de</strong> Periculosida<strong>de</strong>) constatei que a história<br />
individual era efetivamente utilizada não para produzir o novo, mas para buscar na infância os<br />
indícios <strong>de</strong> uma tendência para o crime. E esta busca era sempre coroada <strong>de</strong> "êxito": encontravase<br />
sempre, por trás <strong>de</strong> um criminoso, a história <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong> criminosa. Tal prática é<br />
peculiar, na medida em que se constitui um híbri<strong>do</strong> - algo entre o dispositivo jurídico-policial e o<br />
dispositivo Psi. No dispositivo jurídico-policial uma história pregressa é buscada para configurar<br />
motivos e indícios criminosos. A psicologia e a psicanálise exercidas neste campo são uma peça a<br />
mais nesta engrenagem, elas não escapam a esta lógica.
Por certo há gran<strong>de</strong>s diferenças entre a psicanálise praticada nestas instituições e outras<br />
psicanálises. A principal <strong>de</strong>las diz respeito à verda<strong>de</strong> e à mentira: enquanto no dispositivo jurídicopolical,<br />
a verda<strong>de</strong> é buscada na história que é reconstituída ten<strong>do</strong> como referência os autos ou a<br />
ficha <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes criminais, não importa ao psicanalista fora <strong>de</strong>ste contexto se o cliente diz a<br />
verda<strong>de</strong> ou não. Mas tratar-se-ia apenas <strong>de</strong> má psicologia, má psicanálise? A boa psicanálise<br />
nada teria a ver com estes <strong>de</strong>scaminhos <strong>de</strong> sua prática - que <strong>de</strong>vem ser compreendi<strong>do</strong>s como<br />
efeitos das instituições ditas totais? Apenas atrás <strong>do</strong>s muros da prisão ou <strong>do</strong> hospital psiquiátrico<br />
os saberes psi se aliam com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> controlar corpos e mentes?<br />
Apren<strong>de</strong>ra com Foucault que as práticas no interior das gran<strong>de</strong>s instituições disciplinares<br />
são produtoras <strong>de</strong> saber no campo das ciências humanas - são matrizes das ciências humanas. A<br />
prisão é apenas um quartel um pouco mais severo, uma escola sem indulgência, um hospital<br />
psiquiátrico sem médicos ou remédios. Assim, uma prisão ou um hospital psiquiátrico não são<br />
ilhas on<strong>de</strong> ocorrem <strong>de</strong>svios, maus usos da psicanálise, práticas selvagens. A prisão, o hospício,<br />
são é <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> humanos, e se ali a psicologia e a psicanálise funcionam para produzir<br />
estigmatização e até penas perpétuas[4], isto diz respeito a algo que funciona no interior <strong>de</strong>stes<br />
campos <strong>do</strong> saber. Toda a questão <strong>do</strong>s maus usos da psicanálise e da psicologia está mal<br />
colocada se não leva em conta as implicações internas <strong>de</strong>stes saberes e práticas com o po<strong>de</strong>r.<br />
Desenvolvemos anteriormente, a partir <strong>de</strong>stas consi<strong>de</strong>rações, a noção <strong>de</strong> "subjetivida<strong>de</strong><br />
psi"- o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação produzi<strong>do</strong> pelo dispositivo psi, como um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong>s<br />
dispositivos disciplinares <strong>de</strong> controle social. - as características <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação eram<br />
a interiorização, o culto da história pessoal, das memórias <strong>de</strong> infância, a introspecção. Seu maior<br />
problema era a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir. Delineava-se em nosso percurso teórico e clínico uma<br />
relação entre uma clínica da memória e a produção <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação interioriza<strong>do</strong>[5],<br />
cristaliza<strong>do</strong> num eu impotente. Estes fenômenos apareciam tanto intra quanto extra-muros.<br />
Como <strong>de</strong>sconstruir este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação? É certo que não apenas a intervenção Psi o<br />
produz - <strong>de</strong> fato, este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> funcionar chega aos ambulatórios e consultórios antes mesmo que<br />
a intervenção se produza. Na clínica preocupava-me basicamente, como dissemos, com sua<br />
<strong>de</strong>sconstrução.<br />
<strong>Uma</strong> clínica da anti-memória, da anti-interiorização - ou da superfície, começava a se<br />
<strong>de</strong>linear como imediatamente política. Nas estratégias <strong>de</strong> que se utiliza, ela não privilegia<br />
exclusivamente as ferramentas fornecidas pelas teorias tradicionais <strong>de</strong>ste campo. Aban<strong>do</strong>na o<br />
ponto <strong>de</strong> vista unicamente cientificista e <strong>de</strong>riva para a arte, para a filosofia ... <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> o<br />
avental branco, como dizia Guattari. Torna-se transdisciplinar. Um longo percurso teórico tivemos<br />
que percorrer para a construção <strong>de</strong>sta perspectiva clínica.<br />
A noção <strong>de</strong> estratégia clínica, também implicada nesta perspectiva, diz respeito a uma<br />
reformulação da atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> terapeuta em relação ao saber. <strong>Uma</strong> postura ético-política, que<br />
correspon<strong>de</strong> também a uma busca muito mais pragmática <strong>do</strong> que <strong>de</strong> exegese teórica - saber<br />
como isto funciona, o que isto produz, interessa muito mais <strong>do</strong> que saber "como se articula"<br />
teoricamente. Esta postura coloca certamente a clínica no campo da invenção, da criação mesma,<br />
no campo da arte, como veremos na parte final <strong>do</strong> trabalho, estabelecen<strong>do</strong> outras relações com o<br />
campo da ciência. Estaria este último campo <strong>de</strong>finitivamente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>? Não pensamos assim.<br />
Não acreditamos estar começan<strong>do</strong> <strong>do</strong> zero na construção <strong>do</strong> que <strong>de</strong>nominamos um<br />
provisóriamente "clínica <strong>do</strong> esquecimento". Esta <strong>de</strong>nominação não é <strong>de</strong>fenitiva, assim como<br />
nenhuma das outras que figuram neste trabalho: os nomes que esta clínica toma são transitórios e<br />
instáveis: <strong>Clínica</strong> Transdisciplinar, <strong>Clínica</strong> da Superfície, <strong>Clínica</strong> Construtivista[6], Prática <strong>de</strong> Si,<br />
<strong>Construção</strong> <strong>de</strong> um Corpo sem Orgãos - os nomes vão aparecen<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong>s por outros<br />
- nomes que querem se confundir com o <strong>de</strong>vir, como veremos no capítulo 1.7.1, quan<strong>do</strong> nos<br />
referiremos ao diálogo platônico O Crátilo. Assim também as <strong>de</strong>nominações analista,<br />
psicoterapeuta, psicólogo, terapeuta, psicanalista serão usadas <strong>de</strong> forma não sistemática, pelas<br />
mesmas razões: as razões <strong>de</strong> uma prática experimental e <strong>de</strong> um clínico-estrategista.<br />
Numa perspectiva transdisciplinar, a clínica será tomada como uma prática "orientada" por<br />
um campo <strong>de</strong> dispersão <strong>do</strong> saber, por oposição a um saber que se pretenda universal e or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>.<br />
Nos utilizaremos <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> teorias, faremos empréstimos e estabeleceremos parentescos
"não autoriza<strong>do</strong>s" entre diferentes campos <strong>do</strong> saber. <strong>Uma</strong> certa racionalida<strong>de</strong> científica da qual<br />
nos afastamos po<strong>de</strong>ria estabelecer um méto<strong>do</strong> para que estes empréstimos se <strong>de</strong>ssem. Ao<br />
contrário, preocupa-nos não o estabelecimento <strong>de</strong> um méto<strong>do</strong> ou o grau <strong>de</strong> coerência interna <strong>do</strong><br />
discurso, mas os efeitos que estes produzirão no campo das práticas. Quan<strong>do</strong> as próprias ciências<br />
ditas exatas já aban<strong>do</strong>naram a pretensão <strong>de</strong> um saber que pu<strong>de</strong>sse abarcar to<strong>do</strong>s os fenômenos<br />
ou legislar sobre a natureza, a busca <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los científicos tem paralisa<strong>do</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, a<br />
experimentação no campo da clínica. Não pensamos a prática clínica como técnica sustentada por<br />
um corpo teórico <strong>do</strong> qual esta seria "aplicação". Assim, não se trata <strong>de</strong> propor uma nova teoria ou<br />
uma nova técnica terapêutica que viesse resolver os problemas das <strong>de</strong>mais. Trata-se, ao<br />
problematizar o campo clínico entendi<strong>do</strong> como campo teórico/prático, <strong>de</strong> propor estratégias<br />
teórico-clínicas particulares, singulares, que digam respeito aos problemas também singulares que<br />
a clínica nos propõe.<br />
<strong>Uma</strong> perspectiva transdisciplinar não é, portanto, a construção <strong>de</strong> um campo teórico<br />
enriqueci<strong>do</strong> pela contribuição <strong>de</strong> vários campos <strong>do</strong> saber, no senti<strong>do</strong> da construção <strong>de</strong> uma teoria<br />
mais e mais abrangente, que possa enfim dar conta <strong>de</strong> mais e mais fenômenos. Embora possa<br />
adquirir em muitos momentos um pragmatismo <strong>de</strong> consequências palpáveis, este pragmatismo<br />
não representa uma fórmula estável, enfim segura. Trata-se <strong>de</strong> um campo teórico não estável, que<br />
se transforma, se alarga e se encolhe - e <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> quer se conectar com o caos como<br />
positivida<strong>de</strong>. Caos enquanto germe <strong>de</strong> novas or<strong>de</strong>ns, caos enquanto plano <strong>de</strong> emergência das<br />
produções <strong>do</strong> inconsciente. Muito diferente <strong>de</strong>sta concepção é aquela que o vê no caos a<br />
ausência <strong>de</strong> qualquer or<strong>de</strong>m, o plano <strong>do</strong> negativo por excelência.<br />
Na verda<strong>de</strong>, para nós a clínica não <strong>de</strong>ve se constituir num corpo estável <strong>de</strong> conhecimentos -<br />
ela é antes uma bricolage[7]. A vantagem que vemos nesta instabilida<strong>de</strong> é que possibilita a<br />
experimentação constante e impe<strong>de</strong> a generalização <strong>de</strong> procedimentos singulares.<br />
Nossa bricolage não aban<strong>do</strong>na o saber clínico acumula<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Freud - encontra em Freud<br />
vários freuds e se alia com alguns, especialmente com o que mantém a temporalida<strong>de</strong> e o<br />
traumático em sua teoria. Encontra pontos <strong>de</strong> contacto com alguns malditos da psicanálise, como<br />
Otto Rank e Wilhelm Reich. E "brinca seriamente" com os <strong>de</strong>vires criança <strong>de</strong> Winnicott, no capítulo<br />
3.3, com o bebê autônomo e singular <strong>de</strong> Stern ( capítulo 1.7.2). Nossos mestres serão também<br />
procura<strong>do</strong>s longinquamente num chefe samoano <strong>de</strong> nome Tuiavi, com seu olhar estrangeiro para<br />
nosso mun<strong>do</strong> branco oci<strong>de</strong>ntal que lhe permite ver o que já não vemos mais. No Grupo UNOVIS<br />
funda<strong>do</strong> por Malevitch, com sua recusa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, sua urgência em criar o novo e seu triste fim,<br />
que é também um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> narrar o fim da experiência comunista neste século. Também em<br />
Henry Miller, para quem o sexo é antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> uma força cria<strong>do</strong>ra, apesar <strong>de</strong> funcionar "no<br />
váquo" no mun<strong>do</strong> atual, falsamente sexualiza<strong>do</strong>. Com Proust faremos experimentações com o<br />
tempo num mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sromantiza<strong>do</strong>. O quotidiano começa a emergir como superfície na qual<br />
aparecem "figuras <strong>de</strong> luz" - on<strong>de</strong> um pequeno pedaço <strong>de</strong> muro amarelo po<strong>de</strong> mudar a obra <strong>de</strong><br />
uma vida inteira - isto se pu<strong>de</strong>rmos escapar daquilo que chamamos falsamente <strong>de</strong> vida: uma vida<br />
meramente utilitária, adaptativa, pragmática. <strong>Uma</strong> vida on<strong>de</strong> não se quer "per<strong>de</strong>r tempo", quan<strong>do</strong><br />
é justamente <strong>do</strong> que se trata, para Proust. Um certo Lacan será também chama<strong>do</strong>, no capítulo 1.6<br />
"mestre das superfícies", <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> "outros lacans" <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo pensa<strong>do</strong> como falta, liga<strong>do</strong> à<br />
castração, à lei.<br />
Não queremos tomar as teorias como blocos unitários, mas como "ferramentas" sempre<br />
provisórias, inseparáveis <strong>de</strong> práticas às quais se articulam. Igualmente, não tomaremos a<br />
perspectiva <strong>do</strong> autor, buscan<strong>do</strong> restabelecer qualquer fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> perdida a um discurso original. A<br />
problemática <strong>do</strong> autor é falsa quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>seja abordar as perspectivas teóricas em sua relação<br />
com o que elas produzem.<br />
<strong>Uma</strong> perspectiva transdisciplinar na clínica implica principalmente em <strong>de</strong>sfazer o aparente<br />
to<strong>do</strong> harmônico constituí<strong>do</strong> pela região <strong>do</strong> saber <strong>de</strong>nominada psicanálise, incorporan<strong>do</strong> elementos<br />
<strong>de</strong> várias origens que não se encaixarão muito bem - o to<strong>do</strong> será meio "torto" mas esperamos que<br />
seja capaz <strong>de</strong> se por <strong>de</strong> pé[8], que adquira consistência. Não está mais nas profundida<strong>de</strong>s o<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> nossa vida. É o que a arte mo<strong>de</strong>rna já nos anunciava com seu movimento <strong>de</strong> ruptura<br />
com a representação, com o passa<strong>do</strong>, com as estruturas transcen<strong>de</strong>ntes e que a arte<br />
contemporânea radicaliza. Um plano a seguir, numa linha <strong>de</strong> experimentação.
Marx está presente neste trabalho - pois <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, sen<strong>do</strong> a clínica<br />
imediatamente política, ela diz respeito às questões que atravessam o capitalismo enquanto mo<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> riquezas. Esta clínica se ocupará <strong>de</strong> questões que dizem<br />
respeito ao trabalho aliena<strong>do</strong>, à possibilida<strong>de</strong>, em nosso mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> reaproximarmos criação e<br />
produção da vida material - questões já colocadas por Marx sem que ele pu<strong>de</strong>sse vislumbrar o<br />
que viveríamos neste fim <strong>de</strong> milênio globaliza<strong>do</strong>, em que avançamos em direção ao passa<strong>do</strong>[9],<br />
no que diz respeito às conquistas sociais <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res. Se o tom <strong>de</strong> alguns trabalhos <strong>de</strong><br />
Guattari parecia apocalíptico, ao falar <strong>do</strong>s problemas subjetivo-ecológicos que viveríamos,<br />
infelizmente o futuro não nos permitiu aban<strong>do</strong>nar este tom.<br />
Refletiremos sobre o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização que caracteriza nosso fim <strong>de</strong> século e<br />
que perpassa to<strong>do</strong> este campo das chamadas relações humanas, familiares, pessoais, ou da<br />
saú<strong>de</strong> mental. Gabriel <strong>de</strong> Tar<strong>de</strong> já se referia no fim <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> a um processo histórico<br />
através <strong>do</strong> qual a Europa se tornava cada vez "mais igual", em que os regionalismos se<br />
esvasiavam, as crenças <strong>de</strong> grupos menores se enfraqueciam em proveito <strong>de</strong> crenças imitadas[10].<br />
Esta serialização que afeta o campo da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea faz com que toda clínica<br />
<strong>de</strong>va ser pensada como facilita<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> singularização. A <strong>de</strong>sterritorialização é<br />
justamente a linha <strong>do</strong> tempo que permite a produção <strong>do</strong> novo (como veremos no capítulo 3.1), que<br />
se conecta com o intempestivo. Mas como veremos, especialmente no capítulo 2.4, o capitalismo<br />
é uma formidável máquina <strong>de</strong> produção <strong>do</strong> negativo - isto porque ela "se especializa" em produzir<br />
linhas <strong>de</strong> abolição e não linhas <strong>de</strong> fuga.<br />
Que permite neste trabalho que aproximemos construtivismo russo, Nietzsche, Bergson,<br />
Guattari e Otto Rank? <strong>Uma</strong> postura ético-estético-política. Construímos aqui nosso rizoma -<br />
tecemos nosso tapete, construímos nosso território teórico, sem pretensões <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong>.<br />
Esperamos que isto funcione, que possa fortalecer algumas lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, que permita à vida<br />
atravessar o campo da teoria, estabelecen<strong>do</strong> com ele novas danças e volteios. Que relações<br />
po<strong>de</strong>m existir entre Freud e o construtivismo? As relações não existem <strong>de</strong> antemão - elas são<br />
estabelecidas <strong>de</strong> forma ativa, são construídas - entretanto as partes postas em relação não<br />
comporão um novo to<strong>do</strong> coerente e acaba<strong>do</strong>. Elas serão muitas vezes bêbadas e tortas -<br />
fragmentos teóricos serão toma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma até certo ponto "sem cerimônia". Mas per<strong>de</strong>r a<br />
cerimônia com a teoria implica, na clínica, em livrar-se <strong>de</strong> parâmetros cientificistas paralizantes.<br />
A tese está dividida em três partes. Na parte I - Para que serve a História na Clinica? -<br />
partiremos <strong>de</strong> uma problematização <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> histórico que nos conduzirá a pensar que certos<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer história e certos regimes <strong>de</strong> signos po<strong>de</strong>m impedir a produção <strong>do</strong> novo. Na parte II<br />
- O Campo da Produção Desejante - buscaremos explicitar com que concepção <strong>de</strong> inconsciente<br />
trabalhamos. A clínica <strong>do</strong> esquecimento estará apoiada num inconsciente que é o próprio campo<br />
<strong>do</strong> intempestivo, mas também <strong>do</strong> sexual. Buscan<strong>do</strong> uma teoria da repetição compatível com a<br />
filosofia da diferença, faremos um uso clínico <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> eterno retorno. E chegaremos, ao<br />
final <strong>de</strong> nosso percurso na parte III, com A <strong>Construção</strong> <strong>de</strong> <strong>Uma</strong> Superfície <strong>Clínica</strong>, a uma<br />
concepção em que o passa<strong>do</strong>, ao invés <strong>de</strong> ser aquilo a que retornamos pela memória<br />
representacional, pré existe em nós por inteiro, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se na criação <strong>do</strong> presente. Em tal<br />
concepção o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um entrave ao novo e torna-se motor <strong>de</strong> toda criação. Emerge<br />
uma superfície clínica no tempo, que trabalha com os múltiplos componentes <strong>do</strong> agenciamento e<br />
não se restringe à linguagem. <strong>Uma</strong> mesmo movimento conjuga arte e clínica na invenção <strong>de</strong> uma<br />
clínica da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea.
Parte I<br />
Para que Serve a História na <strong>Clínica</strong> ?<br />
Nosso objetivo neste capítulo é o <strong>de</strong> problematizar as concepções relativas ao lugar <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> e da rememoração no campo da psicanálise, traçan<strong>do</strong> um panorama das principais<br />
perspectivas contemporâneas na abordagem <strong>de</strong>ssas questões. Se nos referimos a perspectivas<br />
no plural, é para sublinhar seu caracter provisório e experimental. Não se trata <strong>de</strong> fazer um<br />
inventário crítico <strong>de</strong>ste campo teórico para propor uma "saída", necessariamente fora <strong>do</strong> campo<br />
psicanalítico, estabelecen<strong>do</strong> a perspectiva verda<strong>de</strong>ira. O pensamento <strong>de</strong> Freud é o ponto <strong>de</strong><br />
partida para esta abordagem <strong>do</strong> campo psicanalítico, mas faremos algumas incursões à teoria<br />
lacaniana, bem como a outras perspectivas da psicanálise francesa contemporânea.<br />
Não teremos o propósito <strong>de</strong> fazer uma exegese <strong>do</strong> texto freudiano, <strong>de</strong> perceber, no seu<br />
<strong>de</strong>talhamento, a intuição <strong>de</strong> perspectivas atuais <strong>do</strong> campo da psicanálise ou <strong>de</strong> outros campos <strong>do</strong><br />
saber, que por vezes colocam Freud no lugar <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro oráculo, capaz <strong>de</strong> predizer<br />
<strong>de</strong>senvolvimentos futuros <strong>de</strong> problemáticas teóricas inexistentes em seu tempo.<br />
Embora não estejamos <strong>de</strong>scartan<strong>do</strong> algumas perspectivas abertas por Freud, não se trata<br />
aqui <strong>de</strong> propor mais uma releitura <strong>de</strong> Freud. A tarefa <strong>de</strong> ler Freud hoje se reveste <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que, passa<strong>do</strong>s cem anos, nosso olhar sobre sua obra ten<strong>de</strong> a incluir as<br />
reformulações e leituras posteriores feitas por uma multidão <strong>de</strong> leitores. É verda<strong>de</strong> que não temos<br />
a expectativa <strong>de</strong> encontrar um Freud original, virgem <strong>de</strong> influências posteriores. Mas acreditamos<br />
que, por outro la<strong>do</strong>, tais releituras e esforços interpretativos feitos sobre sua obra, que revelam à<br />
vezes uma feição religiosa, se referem à manutenção da instituição psicanalítica como uma<br />
espécie <strong>de</strong> catedral imune às transformações históricas. A história da psicanálise não po<strong>de</strong> ser<br />
vista como a <strong>de</strong> um reino feliz, atravessa<strong>do</strong> por um rio que vai calmamente incorporan<strong>do</strong> afluentes<br />
e alargan<strong>do</strong> seu estuário. A obra <strong>de</strong> Roudinesco[11] nos fala <strong>de</strong> "Reinos Estilhaça<strong>do</strong>s", que<br />
contam a história <strong>de</strong> enfrentamentos e dissidências, silenciamentos e rupturas dramáticas. Na<br />
parte II faremos referência a Wilhelm Reich e a Otto Rank. Especialmente no que se refere a<br />
Rank, teremos ocasião <strong>de</strong> trazer à luz um silenciamento que revela a natureza política <strong>de</strong>stas<br />
rupturas. Assim, não é possível falar da "Psicanálise" como um discurso unitário. A a<strong>do</strong>ção, a<br />
partir da obra <strong>de</strong> Deleuze e Guattari, <strong>de</strong> uma perspectiva ético-estético-política na clínica implica<br />
não em ser contra Freud, mas em per<strong>de</strong>r a cerimônia, retoman<strong>do</strong> a perspectiva experimental<br />
presente nesta obra, que lhe confere em muitos momentos um caráter para<strong>do</strong>xal.
Nesta direção, problematizaremos a teoria freudiana no que diz respeito à função da<br />
rememoração, inicialmente afirmada por Freud como técnica terapêutica que visava a ab-reação<br />
<strong>de</strong> afetos reprimi<strong>do</strong>s, mas cuja finalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser relacionada a um lembrar para esquecer(estas<br />
questões serão aprofundadas no capítulo II, quan<strong>do</strong> trataremos <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> esquecimento).<br />
Veremos como a psicanálise freudiana, se por um la<strong>do</strong> veio a se afastar da rememoração da<br />
infância por outro afirmou a existências <strong>de</strong> categorias universais que mo<strong>de</strong>lariam o inconsciente.<br />
Assinalaremos o que consi<strong>de</strong>ramos ser para<strong>do</strong>xos da obra <strong>de</strong> Freud: sua crença na importância<br />
<strong>do</strong>s anos infantis, mesmo após sua formulação da noção <strong>de</strong> a-posteriori, que consi<strong>de</strong>ramos como<br />
um ponto <strong>de</strong> bifurcação a partir <strong>do</strong> qual emergem duas direções para o uso da história na clínica.<br />
A seguir, pela via <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> transferência, chegaremos à repetição, que quan<strong>do</strong> vinculada à<br />
inércia e à idéia <strong>de</strong> retorno a um estágio anterior <strong>de</strong> satisfação, torna-se incompatível com uma<br />
ontologia da diferença. Veremos como, seguin<strong>do</strong> um certo Freud, Piera Aulagnier, respon<strong>de</strong><br />
afirmativamente à questão <strong>de</strong> se o analista é um historia<strong>do</strong>r, sublinhan<strong>do</strong> porém que se trata <strong>de</strong><br />
um historia<strong>do</strong>r que constrói um teci<strong>do</strong> histórico mais <strong>do</strong> que se volta para o passa<strong>do</strong>. Finalmente,<br />
traçaremos os caminhos pelos quais Lacan construiu um plano <strong>de</strong> superfície que fez com que o<br />
analista "não precisasse mais das memórias <strong>de</strong> infância". Por outro la<strong>do</strong>, a construção <strong>de</strong>ste plano<br />
teve como consequência a exclusão <strong>do</strong> tempo como transformação e um aprisionamento à<br />
linguagem ou à forma.<br />
A seguir, buscaremos pensar a linguagem e suas relações com a subjetivida<strong>de</strong>, afirman<strong>do</strong> a<br />
relação da linguagem com a política, com afetos e intensida<strong>de</strong>s e com o tempo enquanto<br />
transformação e buscan<strong>do</strong> simultaneamente retirá-la da posição central em que foi colocada na<br />
tradição psicanalítica, especialmente na versão estrutural, relativamente à produção <strong>de</strong><br />
subjetivida<strong>de</strong>.<br />
1.1) Um Freud Arqueólogo<br />
Um <strong>do</strong>s para<strong>do</strong>xos da obra <strong>de</strong> Freud é a manutenção, ao longo <strong>do</strong>s cerca <strong>de</strong> 50 anos <strong>de</strong><br />
sua extensa produção, <strong>de</strong> comparações entre o analista e o arqueólogo, ou entre o méto<strong>do</strong> clínico<br />
da psicanálise e aquele das escavações e reconstituições <strong>de</strong> ruínas e relíquias <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,<br />
encobertas por camadas que datam <strong>de</strong> perío<strong>do</strong>s diferentes, caben<strong>do</strong> ao analista, à semelhança <strong>do</strong><br />
arqueólogo, perceber e datar estas camadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com indícios presentes no material<br />
recolhi<strong>do</strong>. As metáforas arqueológicas em Freud po<strong>de</strong>m ser encontradas tanto em trabalhos <strong>do</strong><br />
início <strong>de</strong> sua obra quanto nos mais tardios, como é o caso <strong>de</strong> Construções em Análise, <strong>de</strong> 1937.<br />
(O trabalho <strong>do</strong> analista) <strong>de</strong> construção ou ... <strong>de</strong> reconstrução, se assemelha em<br />
gran<strong>de</strong> extensão a uma escavação arqueológica numa edificação que tenha si<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>struída e enterrada ... Os <strong>do</strong>is processos são na verda<strong>de</strong> idênticos, exceto pelo<br />
fato <strong>do</strong> analista trabalhar em melhores condições, ten<strong>do</strong> mais material à sua<br />
disposição ... pois estamos lidan<strong>do</strong> não com algo <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>, mas com algo que<br />
ainda está vivo ... assim com o arqueólogo reconstrói pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um edifício a<br />
partir <strong>de</strong> fundações que permaneceram em pé, <strong>de</strong>termina o número e posição <strong>de</strong><br />
colunas a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressões no chão e constrói <strong>de</strong>corações murais e pinturas a<br />
partir <strong>do</strong> que ficou nos débris, assim também proce<strong>de</strong> o analista quan<strong>do</strong> faz<br />
inferências a partir <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> memória, pelas associações e pelo<br />
comportamento <strong>do</strong> paciente <strong>de</strong> análise ... O analista trabalha sob condições mais<br />
favoráveis que o arqueólogo, pois ele tem à sua disposição um material que não<br />
tem contrapartida em escavações, como repetições <strong>de</strong> reações datadas da<br />
infância e tu<strong>do</strong> o que é indica<strong>do</strong> pela transferência em conexão com essas<br />
repetições ... nossa comparação entre as duas formas não po<strong>de</strong> ir adiante, já que<br />
a principal diferença entre elas repousa no fato <strong>de</strong> que para o arqueólogo a<br />
reconstrução é o objetivo e finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu esforço, enquanto na análise as<br />
construções são apenas um trabalho preliminar[12] ...
O que po<strong>de</strong> ser dito a partir da insistência e beleza literária <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>scrições, é que está<br />
longe <strong>do</strong> projeto freudiano a exclusão <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> aparelho psíquico - isto apesar da conhecida<br />
afirmação da a-temporalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> inconsciente. O tempo <strong>de</strong>ixa marcas, vestígios, ruínas, superpõe<br />
camadas diferenciadas. Há um fascínio <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na obra <strong>de</strong> Freud, e uma pergunta em sua<br />
clínica: Até que ponto é possível apagar ou alterar suas marcas? Ou que fazer com elas? Nisto a<br />
psicanálise diferiria <strong>de</strong> uma arqueologia, on<strong>de</strong> o que se quer é tão somente trazer à luz o que está<br />
enterra<strong>do</strong>, enquanto para o analista, seu trabalho apenas está começan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> atinge este<br />
"fun<strong>do</strong>".<br />
Há, por outro la<strong>do</strong>, uma profundida<strong>de</strong> que se constrói com as metáforas arqueológicas <strong>de</strong><br />
Freud da qual a psicanálise levará talvez 80 anos para se livrar. Por certo o Freud arqueólogo não<br />
é um Freud valoriza<strong>do</strong> na contemporaneida<strong>de</strong> psicanalítica. Muitos psicanalistas "<strong>de</strong> hoje" dirão<br />
que estas questões estão há muito tempo enterradas. Mas, <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, há nelas<br />
algumas verda<strong>de</strong>s escondidas no que se refere a uma arqueologia <strong>do</strong> saber psicanalítico que vale<br />
a pena <strong>de</strong>senterrar.<br />
Porque dizemos que a noção <strong>de</strong> interiorida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> é um obstáculo para a<br />
clínica? Por um la<strong>do</strong>, sabemos que a produção <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> psicológica se confun<strong>de</strong> com<br />
o próprio surgimento <strong>do</strong>s saberes PSI. A produção <strong>de</strong>sta interiorida<strong>de</strong> se liga a dispositivos <strong>de</strong><br />
saber-po<strong>de</strong>r que produzem um divórcio entre o individual e o coletivo - estas estratégias políticas<br />
foram analisadas por Foucault em Vigiar e Punir, quan<strong>do</strong> ele traça um percurso histórico em que o<br />
capitalismo, confronta<strong>do</strong> inicialmente com as ilegalida<strong>de</strong>s populares, com as massas que ele<br />
próprio fazia concentrar nas cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>senvolve dispositivos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> eficácia no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> produzir individualização ali on<strong>de</strong> o coletivo ameaçava se expandir. A produção <strong>de</strong>stes<br />
mecanismos <strong>de</strong> individualização se dá lentamente, em perío<strong>do</strong>s anteriores à própria revolução<br />
industrial - a partir por exemplo das técnicas confissionais <strong>do</strong> catolicismo. Este olhar para si<br />
próprio que a confissão inaugura, este colocar em palavras os meandros <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo posto em<br />
relação com a proibição, com o peca<strong>do</strong> e a culpa, é também a matriz sobre a qual se edificarão os<br />
saberes psi, enquanto liga<strong>do</strong>s a produção e reprodução da própria subjetivida<strong>de</strong> contemporânea.<br />
Acreditamos que os saberes psi, a partir das famosas análises <strong>de</strong> Foucault, às quais retornaremos<br />
noutros momentos <strong>de</strong> nosso trabalho, estão fada<strong>do</strong>s a serem confronta<strong>do</strong>s com uma<br />
problematização que po<strong>de</strong> ser resumida com a questão: Até que ponto ou em que grau são<br />
produtores <strong>de</strong> interiorização? Até que ponto aprofundam a cisão entre o individual e o coletivo?<br />
Até que ponto ou em que grau serão her<strong>de</strong>iros <strong>do</strong> confissionário?<br />
O Freud arqueólogo, ou esta perspectiva <strong>do</strong> discurso freudiano, possibilita uma clínica da<br />
profundida<strong>de</strong>, da introspecção como técnica terapêutica que não goza <strong>de</strong> prestígio na psicanálise<br />
contemporânea. Outras vertentes psicanalíticas terão pretendi<strong>do</strong> livrar-se <strong>do</strong> Freud arqueólogo e<br />
<strong>de</strong>ste inconsciente-sarcófago, mas terão permaneci<strong>do</strong> prisioneiras da profundida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outro<br />
mo<strong>do</strong>. Toda uma clínica <strong>de</strong> revelação <strong>de</strong> algo escondi<strong>do</strong> pô<strong>de</strong> ser construída, por exemplo, a partir<br />
da noção kleiniana <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> interno e <strong>de</strong> sua teoria da fantasia. Em Winnicott como veremos na<br />
parte III, a fantasia tem um outro lugar.<br />
1.2) O Passa<strong>do</strong> Histórico e o Traumático no Caso <strong>do</strong> Homem <strong>do</strong>s Lobos<br />
Nos primórdios da psicanálise Freud buscava acontecimentos traumáticos que ficavam<br />
reti<strong>do</strong>s na memória, mas incomunicáveis com a consciência e por isso mesmo, capazes <strong>de</strong><br />
produzir sintomas. Curar significava recordar e reviver, restaurar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reagir, <strong>de</strong> certo<br />
mo<strong>do</strong> "esquecer" após ser capaz <strong>de</strong> recordar. Que tipo <strong>de</strong> acontecimento podia provocar esta<br />
retenção <strong>de</strong> memória?<br />
Há um breve perío<strong>do</strong> pré psicanalítico em que se consi<strong>de</strong>ra que qualquer acontecimento<br />
po<strong>de</strong> ter um efeito excessivo no que diz respeito à elevação da tensão psíquica - como por<br />
exemplo, o fato <strong>de</strong> ter um patrão <strong>de</strong>srespeita<strong>do</strong> e humilha<strong>do</strong> um emprega<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> levar o<br />
emprega<strong>do</strong> a pa<strong>de</strong>cer <strong>de</strong> sintomas histéricos, por não ter manifesta<strong>do</strong> seus sentimentos frente ao<br />
ocorri<strong>do</strong>. Ou as vivências reprimidas <strong>de</strong> uma jovem que cuida <strong>de</strong> seu pai <strong>do</strong>ente po<strong>de</strong>m levá-la a
a<strong>do</strong>ecer. Já vimos como neste momento Freud valoriza qualquer acontecimento como sen<strong>do</strong><br />
capaz <strong>de</strong> produzir um trauma. O que está em questão é a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estimulação que este<br />
evento faz incidir sobre o aparelho psíquico. É certo porém que os estímulos sexuais já pareciam a<br />
Freud como pre<strong>do</strong>minantes entre os <strong>de</strong>mais, atribuin<strong>do</strong>-se a Breuer o relativo silêncio sobre esta<br />
questão nos Estu<strong>do</strong>s Preliminares que introduzem os Estu<strong>do</strong>s sobre a Histeria (1893-1895). Esta<br />
idéia <strong>de</strong> que qualquer estímulo po<strong>de</strong> levar à neurose é bastante diversa <strong>de</strong> outras concepções<br />
psicanalíticas posteriores que verão no complexo <strong>de</strong> édipo uma espécie <strong>de</strong> cena comum com a<br />
qual to<strong>do</strong> homem tem que se <strong>de</strong>frontar. Deste ponto <strong>de</strong> vista, este momento da teoria po<strong>de</strong> ser<br />
valoriza<strong>do</strong> como aquele em que o vivi<strong>do</strong> é o ponto <strong>de</strong> partida da compreensão da patologia<br />
psíquica. No entanto, sabemos das limitações teóricas. que aprisionam este vivi<strong>do</strong> numa teoria<br />
segun<strong>do</strong> a qual é um quantum <strong>de</strong> estimulação que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>scarrega<strong>do</strong> para restaurar um<br />
mínimo <strong>de</strong> tensão psíquica (a teoria da homeostase). Voltaremos na parte II a esta questão.<br />
O perío<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> como o aban<strong>do</strong>no da teoria da sedução é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, na obra <strong>de</strong><br />
Freud, como o ponto <strong>de</strong> fundação propriamente dito da teoria psicanalítica. É aquele em que se<br />
admite que o trauma po<strong>de</strong> não ter si<strong>do</strong> efetivamente vivi<strong>do</strong>, mas fantasia<strong>do</strong>. A partir <strong>do</strong> momento<br />
em que Freud "não acredita mais em sua neurótica" como escreve a Fliess em 1897, abre espaço<br />
para que a fantasia seja tão valorizada quanto a verda<strong>de</strong> na fala <strong>do</strong> cliente. A neurose será<br />
consi<strong>de</strong>rada como mito individual, e a história que se quer construir, mítica[13] .<br />
No entanto, temos elementos para afirmar que Freud nunca aban<strong>do</strong>na <strong>de</strong> fato a teoria da<br />
sedução, ou não aban<strong>do</strong>na a dimensão <strong>do</strong> trauma. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um confronto com a<br />
questão da produção <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> psicológica, o aban<strong>do</strong>no completo <strong>do</strong> traumático em<br />
proveito <strong>de</strong> uma "realida<strong>de</strong> psíquica", como querem algumas leituras, significaria o aban<strong>do</strong>no <strong>de</strong><br />
uma perspectiva, como a <strong>de</strong>nominaremos, das lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. A manutenção <strong>do</strong> traumático, la<strong>do</strong><br />
a la<strong>do</strong> com uma outra perspectiva que aponta para um <strong>de</strong>scolamento <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> na direção <strong>de</strong> um<br />
plano autônomo da linguagem, será por nós valorizada, como veremos mais adiante.<br />
As neuroses atuais, colocadas por Freud como aquelas relacionadas diretamente a<br />
frustrações sexuais, ou como Reich dirá, à estase libidinal <strong>de</strong>rivada da abstinência sexual ou da<br />
incapacida<strong>de</strong> orgástica[14], também permitem uma valorização da realida<strong>de</strong> atual em <strong>de</strong>trimento<br />
<strong>do</strong>s fatores históricos. Para Freud, estes neuróticos não se beneficiariam <strong>do</strong> tratamento analítico.<br />
O que nos interessa nesta discussão é esta possiblida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relacionar a patologia psíquica com o<br />
que está acontecen<strong>do</strong> hoje na vida <strong>do</strong> cliente. E este hoje não é importante porque se po<strong>de</strong><br />
explicá-lo com auxílio <strong>de</strong> alguma estrutura ou lei geral, ou por ser a reedição <strong>de</strong> algum<br />
acontecimento passa<strong>do</strong>. Mas é importante nele mesmo, já que nos interessam os agenciamentos<br />
que estão se dan<strong>do</strong> num plano <strong>de</strong> superfície, atual por <strong>de</strong>finição. Retornaremos a este ponto na<br />
parte II.<br />
O caso <strong>do</strong> homem <strong>do</strong>s lobos não é propriamente um caso clínico. É uma arma empregada<br />
por Freud na construção <strong>do</strong> território psicanalítico. Nele está contida toda a teoria freudiana, como<br />
afirma Oscar Masotta[15]. Neste senti<strong>do</strong>, Sergei Petrov merece o salário que lhe pagaram os<br />
psicanalistas, por inestimáveis serviços presta<strong>do</strong>s[16]. Na polêmica com Jung, Freud via<br />
enfraquecerem-se um <strong>do</strong>s pilares <strong>de</strong> sua teoria: a importância <strong>do</strong> sexual-infantil. Não eram apenas<br />
as dificulda<strong>de</strong>s atuais, como queria Jung, que faziam o neurótico regredir e só então voltar-se para<br />
as lembranças <strong>de</strong> infância. Freud quer afirmar a importância <strong>do</strong> sexual-infantil nele mesmo, e para<br />
isto encontra um paciente que se lembra <strong>de</strong> haver presencia<strong>do</strong> a cena primária numa ida<strong>de</strong> muito<br />
precoce e que além disso <strong>de</strong>senvolve uma neurose infantil como consequência <strong>de</strong> tal visão. Ela (a<br />
visão da cena) atua a-posteriori, investin<strong>do</strong> a cena <strong>de</strong> sedução anterior vivida pelo paciente. Por<br />
um la<strong>do</strong>, a intenção <strong>de</strong> Freud é afirmar a importância <strong>do</strong> sexual - infantil <strong>de</strong>rrotan<strong>do</strong> Jung, mas<br />
este caso encerra além disso um para<strong>do</strong>xo : o <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r ao mesmo tempo afirmar a veracida<strong>de</strong><br />
da recordação <strong>do</strong> homem <strong>do</strong>s lobos quanto à observação <strong>do</strong> coito <strong>do</strong>s pais e <strong>de</strong>sfazer a<br />
importância <strong>de</strong>ste mesmo fato. A cena não precisaria ser lembrada, já que em sua experiência<br />
estas cenas são construídas pelo analista. Freud afirmará que tais cenas pertencem a um acervo<br />
filogenético da humanida<strong>de</strong>, e estarão presentes mesmo sem terem ocorri<strong>do</strong>. Mas porque Freud<br />
ainda per<strong>de</strong> tempo com a busca das circunstâncias reais, da vivência concreta da cena, quan<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>ria contentar-se com a afirmação das cenas como princípios universais <strong>de</strong> sua teoria?<br />
Nossa explicação, neste senti<strong>do</strong> corroborada por Allouch e Porge[17], é <strong>de</strong> que Freud não<br />
se afasta <strong>do</strong> traumático, ou pelo menos não tanto quanto querem aqueles que preten<strong>de</strong>m construir
uma perspectiva estrutural psicanalítica. A neurose tem uma <strong>de</strong>terminação real, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>terminação no plano da linguagem, que é este da reversibilida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> a-posteriori. Não haveria<br />
propriamente o aban<strong>do</strong>no da teoria da sedução, já que os <strong>do</strong>is vetores são manti<strong>do</strong>s: tanto o da<br />
ressignificação da lembrança <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> pela lembrança <strong>do</strong> presente (a-posteriori) quanto o <strong>do</strong><br />
caráter primeiro <strong>do</strong> sexual infantil na neurose enquanto inscrição (traço) <strong>de</strong> um acontecimento real.<br />
Freud mantém sempre <strong>do</strong>is vetores:<br />
1) Um vetor regressivo que faz com que um acontecimento posterior ressignifique um<br />
anterior, agin<strong>do</strong> <strong>do</strong> presente ao passa<strong>do</strong>.<br />
2) Um vetor progressivo, que age a partir da lembrança da infância, <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ao<br />
presente.<br />
A questão da lembrança infantil em Freud merece uma discussão mais aprofundada. Por<br />
um la<strong>do</strong>, para Freud, a neurose é sempre uma questão <strong>de</strong> lembrança - não é o acontecimento,<br />
nele mesmo, que a produz. Em Recordações Encobri<strong>do</strong>ras aparece uma distinção entre essas<br />
lembranças - uma, que é justamente aquela que diz respeito ao sexual-infantil, <strong>de</strong>ixa um traço <strong>de</strong><br />
memória. Outro tipo <strong>de</strong> lembranças diz respeito às camadas e camadas que recobrirão a<br />
lembrança <strong>do</strong> primeiro tipo. É sobre estas lembranças que o recalque incidirá, enquanto que as<br />
primeiras terão um carater funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> psiquismo, traçan<strong>do</strong> caminhos para a libi<strong>do</strong> a serem outra<br />
vez percorri<strong>do</strong>s, como o leito <strong>de</strong> um rio, todas vez que um acontecimento posterior se ligar<br />
associativamente a este acontecimento inaugural. Já num texto tão antigo quanto este, <strong>de</strong> 1899,<br />
encotramos a presença, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, <strong>do</strong> aposteriori e <strong>do</strong> traumático.<br />
Se é sempre <strong>de</strong> uma lembrança que se trata, esta lembrança não será <strong>de</strong> qualquer<br />
acontecimento (exceto naquele breve perío<strong>do</strong> da teoria a que já nos referimos). Freud diz que os<br />
pacientes parecem ter combina<strong>do</strong> entre si, pois suas histórias traumáticas se repetem. São<br />
histórias, dirá ele, que sempre contêm um elemento sexual, e uma imposição da sexualida<strong>de</strong><br />
adulta sobre a criança. É traumático, diz Freud, porque excessivo no senti<strong>do</strong> da intensida<strong>de</strong><br />
afetiva.<br />
Em alguns casos certas experiências são traumas severos - uma tentativa<br />
<strong>de</strong> estupro que revela súbitamente a uma garota imatura da brutalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />
sexual ... ou a involuntária visão <strong>do</strong> ato sexual <strong>do</strong>s pais ... a fundação da neurose<br />
estaria sempre dada na infância pelos adultos.[18]<br />
A via que, em Freud, levará a um distanciamento cada vez maior <strong>do</strong> traumático, será aquela<br />
através da qual haverá uma <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração pela intensida<strong>de</strong> afetiva da cena, em proveito <strong>de</strong><br />
uma formalização da cena. Esta via já se anunciava mesmo neste início, quan<strong>do</strong> Freud consi<strong>de</strong>ra,<br />
como vimos acima, que os pacientes a repetem como se tivessem combina<strong>do</strong> - ou seja, há uma<br />
forma que se repete. Como é sabi<strong>do</strong>, Freud afirmará o carater filogenético <strong>de</strong>sta cena, uma<br />
especie <strong>de</strong> acervo geral da humanida<strong>de</strong>, transmiti<strong>do</strong> hereditáriamente. Freud terá construí<strong>do</strong>, com<br />
as teorias <strong>de</strong> sua época, uma idéia geral, formalizan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> aquilo que lhe pareceu em<br />
princípio uma acontecimento singular, particularmente intenso.<br />
Cenas <strong>de</strong> observação <strong>do</strong> ato sexual <strong>do</strong>s pais numa ida<strong>de</strong> precoce (sejam<br />
elas memórias reais ou fantasias) não são rarida<strong>de</strong>s na análise <strong>de</strong> neuróticos.<br />
Possivelmente não são menos frequentes entre aqueles que não são neuróticos.<br />
Possivelmente são parte <strong>do</strong> reservatório regular <strong>do</strong> tesouro inconsciente ou<br />
consciente <strong>de</strong> suas memórias.[19]
O texto Construções em Análise é também o palco on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senrola o enfrentamento <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is vetores freudianos. Freud compara a construção <strong>do</strong> analista com a alucinação - são ambas<br />
invenções, mas que não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter um carater genuino, ou seja, <strong>de</strong> se apoiarem numa<br />
realida<strong>de</strong> histórica, em algo efetivamente vivi<strong>do</strong>. Toda esta luta, no pensamento <strong>de</strong> Freud para<br />
afirmar uma realida<strong>de</strong> histórica enquanto realida<strong>de</strong> traumática é por nós valorizada, na medida<br />
que se aproxima <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>, das lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo ou <strong>de</strong> uma superfície clínica. Explicitaremos<br />
posteriormente estas nossas afirmações.<br />
No entanto, retorna sempre o Freud arqueólogo - aquele que busca encontrar uma cena<br />
traumática original - e nesta busca, chega a afirmá-la enquanto universal, enquanto algo que nem<br />
mesmo precisaria ter ocorri<strong>do</strong>. Assim o tesouro busca<strong>do</strong> por Freud em suas escavações, é <strong>de</strong><br />
início um acontecimento vivi<strong>do</strong> num passa<strong>do</strong> remoto, tornan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>pois uma categoria geral. Não<br />
é nosso propósito resolver a questão <strong>de</strong> se, no conjunto da obra freudiana, há ou não um<br />
afastamento <strong>do</strong> traumático. Preferimos <strong>de</strong>ixá-la em aberto como um aspecto para<strong>do</strong>xal da obra <strong>de</strong><br />
Freud, para<strong>do</strong>xal enquanto algo produtivo.<br />
Em nossa bricolage, nos aproximaremos <strong>de</strong>ste Freud que busca um acontecimento quan<strong>do</strong><br />
quer compreen<strong>de</strong>r a neurose ou a alucinação. Vemos aí uma direção que permite à clínica<br />
<strong>de</strong>scolar-se das profundida<strong>de</strong>s e dirigir-se para a superfície. Concordaremos que este<br />
acontecimento seja principalmente <strong>de</strong> natureza sexual - no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que é sempre <strong>de</strong> um corpo<br />
que se trata na clínica, um corpo e seus afetos, um corpo e suas marcas, um corpo, suas ações e<br />
paixões, seus agenciamentos. Um corpo e um plano <strong>de</strong> superfície on<strong>de</strong> este corpo faz<br />
<strong>de</strong>slocamentos intensivos.<br />
Não negamos, por outro la<strong>do</strong>, que os temas trazi<strong>do</strong>s à análise pelos neuróticos se repitam.<br />
E aqui teremos que refletir sobre a questão <strong>do</strong>s universais <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>talha<strong>do</strong>. O surgimento<br />
da noção <strong>de</strong> complexo <strong>de</strong> édipo configura a direção que irá afirmar os universais em <strong>de</strong>trimento<br />
das lutas concretas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Não negamos a existência <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação edipianos. A<br />
questão que levantamos é eminentemente clínica: Se erigimos édipo ao status <strong>de</strong> uma categoria<br />
geral, marca fundamental <strong>do</strong> psiquismo, não po<strong>de</strong>mos, na clínica, sair <strong>de</strong> édipo. Se as histórias<br />
<strong>do</strong>s clientes se repetem é porque édipo, enquanto mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação, é <strong>do</strong>minante. Os clientes<br />
estão falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s aprisionamentos a que está submetida a produção <strong>de</strong>sejante - limitada à família,<br />
culpabilizada, separada <strong>do</strong> que ela po<strong>de</strong>. Édipo, sem sombra <strong>de</strong> dúvida existe como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
subjetivação, é ponto <strong>de</strong> partida da clínica enquanto problema, mas não po<strong>de</strong> ser ponto <strong>de</strong><br />
chegada ou solução <strong>de</strong> um problema. Se torna<strong>do</strong> categoria geral, não po<strong>de</strong>remos construir<br />
dispositivos clínicos que permitam <strong>de</strong>sedipianizar.<br />
Nossa crítica a édipo e às protofantasias se liga também à crítica que esboçamos à<br />
interiorização. Édipo é mais uma das formas <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong>sta interiorização. A realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
édipo é histórica - ela diz respeito, como mostrou Foucault, a transformações na família que<br />
produziram e intensificaram uma sexualida<strong>de</strong> intra-familiar, contemporânea também da produção<br />
<strong>de</strong> uma família conjugal, e <strong>do</strong> enfraquecimento das formas extensas <strong>de</strong> família. A sexualização<br />
das relações intra-familiares é a um tempo incitada e proibida. O sexo se tornou, pelo dispositivo<br />
edipiano, prisioneiro da família, retiran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> campo social. Édipo, como já foi exaustivamente<br />
<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> por Deleuze e Guattari em "O Anti-Édipo", é um dispositivo <strong>de</strong> anti-produção <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo. Seu uso clínico enquanto categoria geral mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>ra das produções <strong>do</strong> inconsciente é um<br />
obstáculo à produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Façamos um breve resumo <strong>do</strong> percurso que traçamos em torno da obra <strong>de</strong> Freud. Há um<br />
Freud que se <strong>de</strong>scola progressivamente <strong>do</strong> acontecimento vivi<strong>do</strong> e <strong>de</strong> uma reconstituição da<br />
história infantil enquanto dimensão <strong>do</strong> traumático, ao mesmo tempo em que afirma a existência<br />
<strong>de</strong> estruturas universais que irão mo<strong>de</strong>lar a reconstrução <strong>de</strong> uma história mítica. O Freud<br />
arqueólogo é <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong>, a to<strong>do</strong> momento, por ele próprio, neste vetor <strong>de</strong> seu pensamento<br />
que já não necessita <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ou das recordações da infância para construir sua teoria e sua<br />
clínica. A noção freudiana <strong>de</strong> "protofantasia" que faz da cena originária, da castração e da<br />
sedução fantasias universais é um ponto culminante <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>scolamento.<br />
Restam, <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista alguns para<strong>do</strong>xos - se tormarmos o caso <strong>do</strong> homem <strong>do</strong>s<br />
lobos como um <strong>de</strong>sses momentos para<strong>do</strong>xais, po<strong>de</strong>ríamos dizer que o homem <strong>do</strong>s lobos presta<br />
ainda este serviço a Freud: assegura a presença em sua teoria <strong>do</strong> traumático e da irreversibilida<strong>de</strong>
<strong>do</strong> tempo, na medida em que a cena primária é colocada não apenas como um mito universal<br />
estabeleci<strong>do</strong> filogeneticamente, mas como algo efetivamente vivi<strong>do</strong>, e recorda<strong>do</strong>, e enquanto tal,<br />
produtor <strong>de</strong> efeitos.<br />
1.3) <strong>Clínica</strong> e História<br />
Descobrimos há algum tempo atrás que o neurótico está ancora<strong>do</strong> em algum lugar<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>[20].<br />
Tratar-se-ia, na clínica, <strong>de</strong> fazer história? Será possível <strong>de</strong>finir a função <strong>do</strong> psicanalista<br />
como a <strong>de</strong> um historia<strong>do</strong>r? Para analisarmos esta questão, será necessário <strong>de</strong>finir o que seja este<br />
fazer história, sua finalida<strong>de</strong> e seu senti<strong>do</strong> terapêutico.<br />
Há, como dissemos, um Freud arqueólogo e uma clínica da memória - o analista reconstrói<br />
um passa<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong>, preenchen<strong>do</strong> lacunas <strong>de</strong> memória e assim tornan<strong>do</strong> consciente o que é<br />
inconsciente. O inconsciente, nesta clínica da rememoração, é uma espécie <strong>de</strong> arquivo <strong>de</strong><br />
memórias <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Com a introdução da noção <strong>de</strong> transferência, e da teoria da repetição, o psicanalista passa<br />
a ser visto como um historia<strong>do</strong>r <strong>de</strong> algo que está vivo e não morto e enterra<strong>do</strong> num passa<strong>do</strong><br />
arqueológico. (Recor<strong>de</strong>mos que nisto diferem, para Freud, as tarefas <strong>do</strong> arqueólogo e <strong>do</strong> analista.)<br />
Não se trataria <strong>de</strong> passa<strong>do</strong>, mas na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um presente transferencial, algo atual e que se<br />
repete na relação terapeuta-cliente. Também aqui não se trata <strong>de</strong> arqueologia, mas <strong>do</strong> que está<br />
sen<strong>do</strong> atualiza<strong>do</strong> no aqui e agora da situação analítica através da fala <strong>do</strong> cliente. Apesar disso,<br />
tratar-se-ia, principalmente <strong>de</strong> substituir esta repetição por recordação, como po<strong>de</strong>mos ler em<br />
Recordar, Repetir e Elaborar.<br />
Esta clínica da recuperação da memória histórica é também alterada com a noção <strong>de</strong><br />
construção. Não se trataria <strong>de</strong> reconstrução histórica, mas <strong>de</strong> construção. Retornemos à<br />
discussão <strong>do</strong> caso <strong>do</strong> homem <strong>do</strong>s lobos: Para Vi<strong>de</strong>rman, por exemplo, Freud se engana ao<br />
enfatizar tanto a realida<strong>de</strong> da cena primária, numa perspectiva que chama <strong>de</strong> egiptológica e<br />
naturalista[21] - para este autor, o que vai ser reconstruí<strong>do</strong> na análise não é a história<br />
efetivamente vivida, mas uma história mítica. O recalque torna inacessivel, tanto para o paciente<br />
quanto para o analista o que um dia foi vivi<strong>do</strong> - resta a ambos a construção <strong>de</strong> uma história - o que<br />
importaria <strong>de</strong> fato ao analista é, pois, a realida<strong>de</strong> psíquica. Ora, Freud não <strong>de</strong>sconhecia esta<br />
possibilida<strong>de</strong>, já que é ele próprio quem, em Construções em Análise, compara as construções <strong>do</strong><br />
analista à alucinação - sem no entanto aban<strong>do</strong>nar, como já assinalamos, a abusca <strong>de</strong> uma<br />
verda<strong>de</strong> histórica tanto da alucinação quanto da construção. O que fazem alguns <strong>do</strong>s críticos <strong>de</strong><br />
Freud é aban<strong>do</strong>nar radicalmente o vetor progressivo, e com ele a dimensão <strong>do</strong> traumático e da<br />
temporalida<strong>de</strong> em proveito <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> psíquica enquanto dimensão atemporal e autônoma<br />
com relação à realida<strong>de</strong>.<br />
Nenhum enchimento <strong>do</strong> vazio da amnésia, nenhum restabelecimento da<br />
continuida<strong>de</strong> das lembranças po<strong>de</strong>rá fundamentar-se sobre a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />
história re<strong>de</strong>scoberta. Reconstruir uma história significa construí-la[22] .<br />
Po<strong>de</strong>mos daí concluir que há uma total liberda<strong>de</strong> criativa nesta construção, já que não se<br />
trata <strong>do</strong> fato histórico? A resposta que se dá é dizer que se trata da construção <strong>de</strong> mitos. Mas <strong>de</strong><br />
que mitos se trata? Ora, sabemos que há uma mitologia psicanalítica que <strong>de</strong>limita esta<br />
construção. A noção <strong>de</strong> fantasia é uma espécie <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> interseção entre esta mitologia<br />
psicanalítica geral e uma mitologia particular, individual. Nas teorias sexuais infantis, na análise
que faz das fantasia em <strong>Uma</strong> Criança é Espancada (1919), nos romances familiares <strong>do</strong> neurótico,<br />
Freud parte da fantasia individual para reencontrar nela, por assim dizer, um mito geral, o<br />
complexo <strong>de</strong> Édipo ou a cena primária.<br />
Se na análise trata-se <strong>de</strong> reconstruir a história <strong>do</strong> cliente, haverá leis gerais que mo<strong>de</strong>lam<br />
esta construção. A história que se constrói não é pois uma criação livre.<br />
Se a<strong>do</strong>tamos a teoria das protofantasias, temos que falar <strong>de</strong> categorias ou leis gerais que<br />
pré-<strong>de</strong>finem o curso da história na clínica. Haveria, assim, algo por trás <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> histórico, algo<br />
que mo<strong>de</strong>la a história e <strong>de</strong>fine seu curso, para além das experiências individuais. É claro que a<br />
história <strong>do</strong> cliente, com suas vissicitu<strong>de</strong>s e particularida<strong>de</strong>s, interessará sempre ao analista, mas<br />
não está ele envolvi<strong>do</strong> com algo além da história pessoal? Se as protofantasias são princípios<br />
universais, enten<strong>de</strong>mos o <strong>de</strong>sinteresse da questão <strong>de</strong> se O Homem <strong>do</strong>s Lobos tinha ou não visto<br />
a cena primária, pois não é <strong>de</strong>stas recordações que trata a análise, ou não só.<br />
1.3.1) O Analista Historia<strong>do</strong>r em Piera Aulagnier<br />
É interessante analisar neste momento algumas contribuições <strong>de</strong> Piera Aulagnier, já que<br />
esta autora tem para nós uma posição peculiar, quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra que o analista é, <strong>de</strong> fato, um<br />
historia<strong>do</strong>r. Trata-se porém <strong>de</strong> um historia<strong>do</strong>r que reconstitui a história <strong>do</strong> cliente numa operação<br />
que se assemelha à <strong>de</strong> cerzir um teci<strong>do</strong> esburaca<strong>do</strong> por lacunas <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>[23]. Estas lacunas<br />
ocorreriam quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s acontecimentos que geram intenso sofrimento afetivo, são<br />
silencia<strong>do</strong>s ou não fala<strong>do</strong>s. Conclui-se que duas coisas a<strong>do</strong>ecem - o sofrimento corporal e afetivo<br />
e, talvez mais <strong>do</strong> que isso, o fato <strong>de</strong> não falar sobre ele, pois quan<strong>do</strong> o colocamos em palavras,<br />
ele se torna menos nocivo <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da produção <strong>de</strong> patologia psíquica.<br />
Quem faz história? O eu, que é o construtor <strong>de</strong> uma história libidinal da qual extrai causas<br />
sensatas e aceitáveis das duas realida<strong>de</strong>s que tem que aceitar, a realida<strong>de</strong> externa e a realida<strong>de</strong><br />
pulsional. A psicose correspon<strong>de</strong> justamente a uma proibição <strong>de</strong> memorizar, em especial o<br />
primeiro capítulo <strong>de</strong>sta história, ou seja, o nascimento, a concepção, a pré-história <strong>do</strong> eu, que só<br />
po<strong>de</strong> estar no discurso <strong>do</strong> outro. O analista, além <strong>do</strong> próprio eu, é também um historia<strong>do</strong>r, já que<br />
<strong>de</strong>ve fornecer ao cliente uma versão universal <strong>de</strong> uma história infantil numa troca <strong>de</strong><br />
conhecimentos que se dá no registro <strong>do</strong> afeto.<br />
Esta versão universal que o analista fornece com sua escuta a seu cliente é, ressalva<br />
Aulagnier, uma história cheia <strong>de</strong> questões, sem a qual não po<strong>de</strong> ser modificada a relação <strong>do</strong> eu<br />
com essa coisa <strong>de</strong>sconhecida, o isso.<br />
Assim, é o fazer história que permite modificar a relação entre o eu e o "isso", pois o "isso",<br />
ele mesmo, correspon<strong>de</strong> a uma história sem palavras que nenhum discurso po<strong>de</strong>rá modificar[24].<br />
Trata-se, no fazer clínico, <strong>de</strong> <strong>do</strong>tar (na psicose) ou <strong>de</strong> melhorar (na neurose) a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu<br />
<strong>de</strong> fazer história, com o auxílio <strong>de</strong>sta teoria histórica universal que é a psicanálise, ou o eu po<strong>de</strong>ria<br />
ficar mergulha<strong>do</strong> no terror <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. Na versão <strong>de</strong> Aulagnier, uma coerência é buscada<br />
através da ativida<strong>de</strong> historia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> eu e <strong>do</strong> analista - assim, fazer história é algo relaciona<strong>do</strong><br />
também a apaziguar, evitar o terror, o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>.<br />
A posição <strong>do</strong> analista historia<strong>do</strong>r é aqui afirmada <strong>de</strong> forma clara. Atentemos porém para o<br />
fato <strong>de</strong> que a função <strong>do</strong> analista já não é a <strong>de</strong> se remeter a uma passa<strong>do</strong> histórico, mas <strong>de</strong><br />
produzir um teci<strong>do</strong> histórico. E para produzir este teci<strong>do</strong>, ele dispõe <strong>de</strong> uma teoria histórica<br />
universal. E uma vez mais, não se trata então <strong>de</strong> recordar a infância perdida, mas <strong>de</strong> construí-la<br />
ou <strong>de</strong> inventá-la na situação analítica. Inventá-la com o auxílio da transferência e da teoria<br />
psicanalíticas.<br />
Se o Freud arqueólogo é questiona<strong>do</strong> pela maioria das correntes contemporâneas que<br />
<strong>de</strong>finem a tarefa <strong>do</strong> analista como a <strong>de</strong> um historia<strong>do</strong>r, isto ocorre porque, nestas perspectivas,<br />
não importa a história vivida, mas aquilo que está por trás <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> (ou por trás <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> histórico)
e que constitui o inconsciente. Um inconsciente formal, estrutura<strong>do</strong>, organiza<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> matrizes<br />
que irão mo<strong>de</strong>lar este <strong>de</strong>senrolar da história. Um inconsciente simbólico para alguns, ou escrituralpoético,<br />
para outros, que a psicanálise contemporânea, diferentemente <strong>do</strong> que fazia Freud , não<br />
se preocupa mais em localizar no passa<strong>do</strong>.<br />
A questão <strong>de</strong> se há leis gerais na história vem sen<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> ampla discussão,<br />
especialmente dirigida à concepção marxista clássica <strong>de</strong> história. Esta discussão po<strong>de</strong> ser<br />
estendida ao campo da clínica. Como diz Paul Veyne, quan<strong>do</strong> pensamos <strong>de</strong>scobrir, ao fazer<br />
história, uma lei geral, nos afastamos da trama concreta <strong>do</strong>s acontecimentos históricos. Deixamos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, a partir <strong>de</strong> uma regularida<strong>de</strong>, causas que po<strong>de</strong>riam explicá-la. Mas quan<strong>do</strong> Paul<br />
Veyne fala em causa, não se trata <strong>de</strong> causas fora da trama <strong>do</strong>s acontecimentos mesmos - a parte<br />
oculta <strong>do</strong> iceberg não é diferente <strong>do</strong> próprio iceberg, diz ele, não é ali que se encontram as causas<br />
primeiras que tu<strong>do</strong> permitiriam compreen<strong>de</strong>r. Po<strong>de</strong>mos nos utilizar sim <strong>de</strong> generalizações, <strong>de</strong><br />
conceitos explicativos - mas a relação <strong>de</strong>stes conceitos com a trama mesma é <strong>de</strong> total<br />
provisorieda<strong>de</strong>, eles são apenas resumos <strong>de</strong> pontos da trama[25]. Quan<strong>do</strong> abordamos esta trama,<br />
por certo nos perguntamos que causas são mais eficazes, que acontecimentos são capazes <strong>de</strong><br />
gerar efeitos mais ou menos dura<strong>do</strong>uros - constataremos ritmos diversos, velocida<strong>de</strong>s e lentidões.<br />
Mas não disporemos <strong>de</strong> chaves prévias <strong>de</strong> entendimento. É na concretu<strong>de</strong> da trama que<br />
encontraremos os enca<strong>de</strong>amentos que permitirão explicitar o senti<strong>do</strong> sempre provisório da<br />
história.<br />
O projeto <strong>de</strong> Freud, parece oposto ao <strong>de</strong> Veyne, principalmente se cosi<strong>de</strong>rarmos a<br />
argumentação em torno existência <strong>do</strong> inconsciente que aparece na Metapsicologia. Lá o<br />
inconsciente é afirma<strong>do</strong> pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restaurar a coerência da consciência, perdida no<br />
sintoma, no sonho e no ato falho.<br />
Se pu<strong>de</strong>rmos pensar o campo <strong>do</strong> inconsciente, não como matriz a mo<strong>de</strong>lar ou <strong>de</strong>terminar,<br />
mesmo que em útima instância, o curso <strong>do</strong>s acontecimentos históricos, mas como campo <strong>de</strong><br />
virtualida<strong>de</strong> a partir <strong>do</strong> qual não se po<strong>de</strong> saber préviamente o que está em vias <strong>de</strong> se atualizar,<br />
po<strong>de</strong>remos talvez respon<strong>de</strong>r afirmativamente à nossa questão <strong>de</strong> se o analista é um historia<strong>do</strong>r.<br />
Um historia<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>sfaz nós da trama, que encontra acaso on<strong>de</strong> parecia haver regularida<strong>de</strong>,<br />
que explicita o que estava encoberto, ten<strong>do</strong> para isso como referência apenas o plano <strong>de</strong><br />
superfície da própria trama da história.<br />
1.4) História e Repetição<br />
A noção <strong>de</strong> transferência altera, como dissemos, esta clínica da reconstrução <strong>de</strong> memórias.<br />
A transferência remete necessariamente à repetição. Se transferência é repetição, toda diferença<br />
será feita quanto ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> encarar o trabalho clínico com esta neurose viva colocada em ato.<br />
Em Recordar, Repetir, Elaborar trata-se <strong>de</strong> substituir a repetição pela recordação. A recordação,<br />
portanto resolveria ou extinguiria a repetição. Esta é uma perspectiva na obra <strong>de</strong> Freud, que<br />
embora veja na transferência um importante catalisa<strong>do</strong>r ou motor da cura, recoloca toda a eficácia<br />
clínica no campo da rememoração. O analista po<strong>de</strong>ria ser um historia<strong>do</strong>r que se utiliza da história<br />
para substituir repetição por recordação. A repetição tem aqui um carater negativo enquanto<br />
resistência à cura: a recordação continua sen<strong>do</strong> o principal objetivo terapêutico.<br />
Atentemos que esta repetição é a repetição <strong>de</strong> algo - <strong>de</strong> uma cena, ou <strong>de</strong> uma forma, já<br />
que, como vimos, há categorias gerais que pré-mo<strong>de</strong>lam as produções <strong>do</strong> inconsciente. Isto<br />
aponta para uma certa concepção <strong>de</strong> inconsciente: um inconsciente <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> formas prévias, ou<br />
constituí<strong>do</strong> por elas. Alguns teóricos, ao se <strong>de</strong>bruçarem sobre a obra <strong>de</strong> Freud, preten<strong>de</strong>m ver,<br />
principalmente a partir da teoria pulsional, um inconsciente aformal ou puramente energético.<br />
Acreditamos que tal leitura só é possível se forem omitidas as inúmeras referências, mesmo<br />
posteriores à teoria pulsional, em que Freud não parece ter aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> jamais sua teoria das<br />
protofantasias - ou a idéia <strong>de</strong> que o inconsciente é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s prévios herda<strong>do</strong>s<br />
filogeneticamente.
Como se daria a relação entre um inconsciente sem forma e o plano das formas? To<strong>do</strong><br />
aformal ten<strong>de</strong>ria necessariamente a se articular com as formas? Se consi<strong>de</strong>rarmos a linguagem<br />
como forma, to<strong>do</strong> inconsciente po<strong>de</strong>ria se traduzir em palavras ou haveria sempre um resto<br />
inarticulável? Na primeira perspectiva, o teci<strong>do</strong> histórico seria capaz <strong>de</strong> traduzir este outro plano.<br />
Na segunda, sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representá-lo seria limitada, ou até mesmo muito <strong>de</strong>ficiente,<br />
manten<strong>do</strong>-se o que há por trás da história como algo inatingível. Este inatingível aparece muitas<br />
vezes com uma coloração negativa - é o <strong>de</strong>moníaco, é o terror. Ou é uma espécie <strong>de</strong> resto ou um<br />
nada. Há uma terceira possibilida<strong>de</strong>: a <strong>de</strong> pensarmos o inconsciente como um plano pré-individual<br />
e aformal, um plano virtual <strong>de</strong> produção das formas - elas são sempre secundárias em relação ao<br />
plano <strong>do</strong> inconsciente. Este plano não contém nenhuma figura <strong>do</strong> negativo. Não é um nada, pois<br />
não existe fora das formas que engendra[26]. Nem é apenas um resto, já que é pura positivida<strong>de</strong> e<br />
criação. Esta última é a perspectiva que seguimos.<br />
No momento em que Freud teoriza sobre a pulsão <strong>de</strong> morte, o que ele constrói é um plano<br />
para além <strong>do</strong> psicológico-individual - e este aspecto me parece o mais relevante <strong>de</strong>sta teoria, <strong>do</strong><br />
ponto <strong>de</strong> vista da construção <strong>de</strong> uma concepção <strong>de</strong> inconsciente como campo ontológico.<br />
Entretanto, esta plano pre-individual é pura negativida<strong>de</strong>. Esta tendência primordial para a morte é<br />
anterior ao próprio aparelho psíquico e fundante em relação ao mesmo.<br />
Toda a teoria da repetição freudiana, mo<strong>de</strong>lada a partir da teoria da pulsão <strong>de</strong> morte,<br />
vinculará a repetição ao negativo. Não participamos <strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> releitura a que se <strong>de</strong>dicam<br />
muitos autores buscan<strong>do</strong> em Freud uma formulação cria<strong>do</strong>ra da pulsão <strong>de</strong> morte, já que ele reitera<br />
ao longo <strong>de</strong> sua obra a tendência da pulsão <strong>de</strong> sempre retornar a um estágio anterior <strong>de</strong><br />
satisfação. Concordamos com Monzani[27] que a vinculação que Freud faz entre <strong>de</strong>sejo, prazer e<br />
morte é uma tendência presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Projeto Para uma <strong>Psicologia</strong> Científica (1887-1902).<br />
Deste ponto <strong>de</strong> vista, não houve, no pensamento <strong>de</strong> Freud uma ruptura radical com essa primeira<br />
idéia. No Projeto aparece uma clara vinculação entre prazer e inércia, evitação <strong>de</strong> estímulos e<br />
prazer. O aparelho psíquico, neste momento, é muito mais regi<strong>do</strong> por uma tendência a evitar<br />
estímulos que perturbem este esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> tensão mínimo.<br />
No capítulo VII da Interpretação <strong>do</strong>s Sonhos ((1900) aparece o que Freud <strong>de</strong>nomina<br />
tendência regressiva da pulsão. O caminho mais curto para a realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo foi um dia e<br />
sempre será, não a busca <strong>de</strong> satisfação na vida, mas na alucinação enquanto o restabelecimento<br />
<strong>de</strong> uma experiência original <strong>de</strong> satisfação. O traço mnêmico <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> por essa primeira experiência<br />
possibilitará que o <strong>de</strong>sejo siga sempre este caminho regressivo. Este caminho "mais curto" vai ser<br />
temporáriamente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> na vida adulta <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às exigências da libi<strong>do</strong> enquanto energia <strong>de</strong><br />
ligação[28], mas no sonho, estan<strong>do</strong> o acesso à motricida<strong>de</strong> inibi<strong>do</strong> para que possa buscar<br />
satisfação na realida<strong>de</strong>, o aparelho psíquico recorre ao seu caminho alucinatório anterior.<br />
Nos importa aqui marcar que o aparelho psíquico proposto por Freud é uma máquina que<br />
funciona para restabelecer uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> - i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com uma primeira experência <strong>de</strong><br />
satisfação. Se por um la<strong>do</strong>, na Interpretação <strong>do</strong>s Sonhos, Freud nos fala da riqueza e da<br />
complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> elaboração onírica, da irredutibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> psiquismo humano à<br />
consciência, abrin<strong>do</strong>-nos caminho ao campo <strong>do</strong> inconsciente como campo da complexida<strong>de</strong>, esta<br />
complexida<strong>de</strong>, por outro la<strong>do</strong>, se reduz à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a uma tendência "para trás" <strong>de</strong><br />
funcionamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
A noção <strong>de</strong> pulsão <strong>de</strong> morte representa portanto o coroamento <strong>de</strong>sta vinculação entre<br />
<strong>de</strong>sejo, prazer e morte. Prazer se liga a um mínimo <strong>de</strong> tensão, que se liga, por sua vez, a um<br />
esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> abolição total <strong>de</strong> tensões que é a morte. A repetição que aparece no fenômeno<br />
transferencial e que coloca a neurose em ato liga-se também a esta tendência - a uma tendência<br />
irresistível e <strong>de</strong>moníaca[29] a retornar a um esta<strong>do</strong> anterior. Já que o prazer está liga<strong>do</strong> a um<br />
rebaixamento <strong>de</strong> tensões, ele correspon<strong>de</strong> no seu estágio máximo, à morte.<br />
A repetição transferencial, que é o que permite que o analista se <strong>de</strong>fronte não com o<br />
passa<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> mas com o presente vivo é, como dissemos, a repetição <strong>de</strong> algo, ou <strong>de</strong> uma<br />
cena:
Estas reproduções, que emergem com esta exatidão tão in<strong>de</strong>sejada, sempre têm como<br />
tema uma parte esquecida da vida sexual infantil - <strong>do</strong> Complexo <strong>de</strong> Édipo ... e seus <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s ...<br />
invariavelmente agi<strong>do</strong>s na esfera da transferência, na relação <strong>do</strong> paciente com o médico[30].<br />
Além <strong>de</strong> ser a repetição <strong>de</strong> algo, é uma repetição que em última análise se liga à morte. Ela<br />
adquire uma conotação negativa. Freud parte, ao teorizar sobre a pulsão <strong>de</strong> morte na clínica, <strong>do</strong>s<br />
sonhos que não po<strong>de</strong>m facilmente se encaixar na teoria <strong>do</strong> sonho como realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo - são<br />
os sonhos traumáticos <strong>do</strong>s neuróticos <strong>de</strong> guerra. A clínica trará muitas outras evidências <strong>de</strong>sta<br />
impossiblida<strong>de</strong> teórica <strong>de</strong> tomar o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo - ou como diremos nós mais tar<strong>de</strong> - o<br />
ponto <strong>de</strong> vista da produção <strong>de</strong>sejante. O pessimismo que começa a tomar conta da obra <strong>de</strong> Freud,<br />
ou que esteve presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, (nos inclinamos mais por esta segunda acertiva) toma<br />
contornos clínicos com as noções como a <strong>de</strong> "reação terapêutica negativa", como os vários<br />
motivos para pensar numa análise interminável (o roche<strong>do</strong> da castração, o masoquismo primário).<br />
O negativo está inequívocamente presente na base <strong>do</strong> psiquismo, já que o Id é composto por<br />
forças tanto <strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> eros quanto <strong>de</strong> tanatos.<br />
A segunda tópica representa a incorporação da morte como princípio pre<strong>do</strong>minantemente<br />
negativo no aparelho psíquico e na clínica freudiana[31]. A noção <strong>de</strong> Id incorpora o dualismo<br />
pulsional Eros e Tanatos - a segunda tópica não inaugura uma concepção que atenda a um<br />
pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> eros como sublinham autores como Laplanche e Strachey[32]. Freud consi<strong>de</strong>rava<br />
sua teoria da pulsão <strong>de</strong> morte como sua mitologia, advertin<strong>do</strong> inicialmente que esta não tinha<br />
consequências clínicas, e que na clínica o princípio <strong>do</strong> prazer continuava váli<strong>do</strong> e pre<strong>do</strong>minante.<br />
De fato, este é o posicionamento implícito em Além <strong>do</strong> Princípio <strong>do</strong> Prazer (1920) quan<strong>do</strong> as<br />
pulsões <strong>de</strong> vida enquanto pulsões <strong>de</strong> ligação com o mun<strong>do</strong> são o que possibilitam o trabalho<br />
clínico - a clínica se insere numa espécie <strong>de</strong> luta contra esta tendência para a inércia. No entanto,<br />
em textos posteriores como O Ego e o Id (1923) assistimos a um avanço da concepção que coloca<br />
o negativo na base, <strong>de</strong> par com a formulação <strong>do</strong> Id como palco <strong>do</strong>s enfrentamentos <strong>de</strong> Eros e<br />
Tanatos.<br />
A teoria <strong>do</strong> sinal <strong>de</strong> angústia, que aparece em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), marca<br />
uma concepção <strong>de</strong> aparelho psíquico totalmente penetrada por este princípio negativo. O sinal <strong>de</strong><br />
angústia é uma função <strong>do</strong> ego, que assim reage diante <strong>do</strong>s perigos internos que dizem respeito às<br />
exigências da libi<strong>do</strong>. Assim, são as próprias exigências da libi<strong>do</strong> que se constituem em perigo,<br />
antes mesmo que elas se transformem em atos. Isto ocorre porque o campo da sexualida<strong>de</strong> se<br />
acha povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> precipita<strong>do</strong>s históricos[33], <strong>de</strong> restos mnêmicos <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> heranças<br />
filogenéticas relaciona<strong>do</strong>s à origem da angústia. A angústia não é <strong>de</strong>rivada <strong>do</strong> campo das lutas <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo, das oposições <strong>de</strong>rivadas da educação repressiva à sexualida<strong>de</strong>, mas sim <strong>de</strong>ssas<br />
categorias gerais, como a castração, que povoam, por assim dizer, o campo da sexualida<strong>de</strong><br />
humana antes mesmo <strong>de</strong> qualquer acontecimento. Mas esta idéia não é uma novida<strong>de</strong>, pois ela já<br />
se faz presente quase 40 anos antes, no Projeto para <strong>Uma</strong> <strong>Psicologia</strong> Científica (1887-1902) - a<br />
idéia <strong>de</strong> um aparelho que evita o <strong>de</strong>sprazer mais <strong>do</strong> que persegue o prazer. Este é o ponto central<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se iniciam as divergências entre Reich e Freud que abordaremos na parte II <strong>de</strong>ste<br />
trabalho. Reich via que Freud se afastava cada vez mais da etiologia sexual da neurose.<br />
Laplanche, em seu livro Vida e Morte em Psicanálise consi<strong>de</strong>ra que a pusão <strong>de</strong> morte é<br />
introduzida para servir <strong>de</strong> contraponto a um pre<strong>do</strong>mínio excessivo <strong>de</strong> eros na clínica. A introdução<br />
da pulsão <strong>de</strong> morte teria pois um senti<strong>do</strong> fundamentalmente ético. Tal pre<strong>do</strong>mínio, segun<strong>do</strong> sua<br />
visão, levaria a psicanálise a uma postura adaptativa, a um pre<strong>do</strong>mínio excessivo <strong>do</strong> sexual e <strong>de</strong><br />
eros enquanto energia <strong>de</strong> ligação. Freud, diz ele, <strong>de</strong>sconfia <strong>de</strong> to<strong>do</strong> entusiasmo, seja ele <strong>do</strong> amor<br />
fati ou <strong>de</strong> uma luci<strong>de</strong>z excessiva que não dissimula a imbricação irredutível <strong>de</strong> minha morte com a<br />
morte <strong>do</strong> outro[34].<br />
Concordamos inteiramente com o fato <strong>de</strong> que Freud <strong>de</strong>sconfie <strong>de</strong> to<strong>do</strong> entusiasmo, e que<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum seja o he<strong>do</strong>nista com que foi injustamente confundi<strong>do</strong>. Nossa discordância - esta<br />
com Laplanche - diz respeito à idéia <strong>de</strong> que um pre<strong>do</strong>mínio da vida na teoria coincida<br />
necessáriamente com um ponto <strong>de</strong> vista adapativo. A construção <strong>de</strong> um inconsciente como campo<br />
da vida ou da produção <strong>de</strong>sejante não implica na a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> um otimismo ingênuo - o negativo<br />
terá que ser pensa<strong>do</strong> no plano <strong>de</strong> imanência, o que não torna a vida um empreendimento apenas
alegre, ou mais fácil, mas que por certo não lhe retira o entusiasmo. A vida se torna uma questão<br />
<strong>de</strong> estratégia - evitar e ludibriar a morte que, como acaso, nos espreita a to<strong>do</strong> momento, embora<br />
não a <strong>de</strong>sejemos nem nos orientemos instintivamente para ela. Inocente em seu <strong>de</strong>senrolar, a<br />
existência nos reserva estes "maus encontros", estes pontos <strong>de</strong> parada, que são da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong><br />
acaso. Nesta concepção, a trágicida<strong>de</strong> da vida não está ligada à inclusão <strong>de</strong> qualquer princípio<br />
negativo transcen<strong>de</strong>nte no campo da produção <strong>de</strong>sejente.<br />
Não pensamos que Freud tenha introduzi<strong>do</strong> a hipótese da pulsão <strong>de</strong> morte para se<br />
contrapor a um pre<strong>do</strong>mínio excessivo <strong>de</strong> eros em sua teoria. Ten<strong>de</strong>riamos a afirmar que tal<br />
pre<strong>do</strong>mínio nunca esteve presente em sua teorização. O negativo sempre esteve associa<strong>do</strong> à<br />
concepção freudiana <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo - a teoria da pulsão <strong>de</strong> morte é certamente complexa e<br />
surpreen<strong>de</strong>nte principalmente por introduzir uma dimensão pré-individual, abrin<strong>do</strong> caminho para<br />
uma concepção não psicológica <strong>do</strong> inconsciente. Mas o aspecto fraco <strong>de</strong> tal teoria resi<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
nosso ponto <strong>de</strong> vista, em que com sua concepção <strong>de</strong> instinto <strong>de</strong> morte[35], Freud trabalhe com o<br />
negativo como transcendência, enquanto buscamos pensar o negativo num plano <strong>de</strong><br />
imanência[36]. Na parte II retornaremos às importantes questões aqui abertas - a <strong>do</strong> negativo e a<br />
<strong>do</strong> trágico.<br />
1.5) A noção <strong>de</strong> "A Posteriori" como ponto <strong>de</strong> bifurcação<br />
Para respon<strong>de</strong>r à questão da utilida<strong>de</strong> da história para a clínica, é imprescindível discutir a<br />
noção <strong>de</strong> a-posteriori. Correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao vetor freudiano que vai <strong>do</strong> presente ao passa<strong>do</strong>, ela<br />
possibilita <strong>de</strong>finir <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> a relação entre a clínica e o passa<strong>do</strong> histórico. Ela permite, como<br />
consequência, afirmar o analista historia<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> em segun<strong>do</strong> plano o<br />
analista arqueólogo. Esta noção é na verda<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> bifurcação, a partir <strong>do</strong> qual muitas<br />
perspectivas são abertas. Através <strong>de</strong>la, o analista passa a trabalhar com uma história que <strong>de</strong>sliza,<br />
on<strong>de</strong> os significa<strong>do</strong>s não são fixos, on<strong>de</strong> o passa<strong>do</strong> não é uma certeza, pois está sempre em<br />
mutação. Esta po<strong>de</strong> ser tomada como uma perspectiva que se abre para um passa<strong>do</strong> sempre<br />
móvel, <strong>de</strong>sessencializa<strong>do</strong>; po<strong>de</strong> ser a abertura para uma história que se confun<strong>de</strong> com o próprio<br />
<strong>de</strong>vir[37].<br />
Enquanto ponto <strong>de</strong> bifurcação, a noção a-posteriori contribuiu sobremaneira para construir,<br />
por outro la<strong>do</strong>, no campo psicanalítico, uma perspectiva que se afasta <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> afeto,<br />
privilegian<strong>do</strong> a linguagem, ou uma certa concepção logicizante da linguagem[38]. Além disso, ao<br />
permitir o afastamento <strong>de</strong> uma arqueologia <strong>do</strong> inconsciente, abriu as portas, por um la<strong>do</strong>, para<br />
uma perspectiva a-temporal, na qual tu<strong>do</strong> se reduz a uma dimensão lógica e simbólica, e por<br />
outro, para uma temporalida<strong>de</strong> reversível. Vale lembrar que Freud nunca se afastou inteiramente<br />
<strong>de</strong> sua primeira posição, manten<strong>do</strong> e reafirman<strong>do</strong> em sua obra a importância <strong>do</strong> infantil. Este é, <strong>de</strong><br />
nossa perspectiva, um <strong>do</strong>s mais frutíferos para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> pensamento freudiano, na medida em<br />
que, através da manutenção <strong>de</strong>sta vertente, o tempo não é excluí<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua teoria <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico.<br />
Na perspectiva da noção <strong>de</strong> a-posteriori, o passa<strong>do</strong> é sempre ressignifica<strong>do</strong> pelo presente,<br />
e nesta medida, ele não existe em sua especificida<strong>de</strong>. A teoria freudiana, através da noção <strong>de</strong> aposteriori,<br />
cria condições para que se formule um inconsciente símbólico. Po<strong>de</strong>mos pensar a<br />
perspectiva <strong>de</strong> um tal inconsciente como resultante da dicotomia entre representação e afeto,<br />
visão difundida na psicanálise contemporânea pelo Vocabulário da Psicanálise <strong>de</strong> Laplanche e<br />
Pontalis. O recalque é <strong>de</strong>scrito como um processo pelo qual a representação e o afeto são<br />
separa<strong>do</strong>s, cada qual seguin<strong>do</strong> seu próprio caminho. Tal hipótese é o que possibilita falar <strong>de</strong> um<br />
plano da representação autônomo, <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> <strong>do</strong> afeto, e <strong>de</strong> um inconsciente estrutura<strong>do</strong> como<br />
uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> representações. Esta concepção possibilitará o surgimento <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser<br />
chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma perspectiva estrutural no campo da clínica. Muito embora o lacanismo seja o que<br />
possibilitou que esta perspectiva estrutural se expandisse na psicanálise contemporânea, não<br />
imputaremos à obra <strong>de</strong> Lacan a autoria da perspectiva que <strong>de</strong>nominamos estrutural. A perspectiva<br />
<strong>do</strong> autor é menos interessante, neste caso, <strong>do</strong> que a localização <strong>de</strong> novas perspectivas teóricas<br />
que se explicitam com a obra <strong>de</strong> Lacan - ou como po<strong>de</strong>riamos nos refirir - com o acontecimento<br />
Lacan no campo psicanalítico.
1.6) A Emergência da Superfície<br />
O advento <strong>do</strong> estruturalismo trouxe gran<strong>de</strong>s inovações ao campo da psicanálise. Não é<br />
possível falar <strong>de</strong> um único estruturalismo que tenha se particulariza<strong>do</strong> nos vários campos<br />
específicos já que existem diferenças entre as concepções teóricas <strong>do</strong>s diferentes autores. Mas o<br />
movimento tinha uma ciência piloto, a linguística, que se imaginava, forneceria um méto<strong>do</strong><br />
científico para o campo das ciências humanas. É assim que um méto<strong>do</strong> estrutural começa se<br />
configurar, apoia<strong>do</strong> na linguística <strong>de</strong> Saussure. Sublinharemos, o que é pertinente para nossos<br />
propósitos, uma característica <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> estrutural - a <strong>de</strong> retirar a ênfase <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> das<br />
transformações, da variação no tempo, em proveito da construção <strong>de</strong> um código estável, que diga<br />
respeito ao presente. O estruturalismo <strong>de</strong>sloca a história <strong>de</strong> seu lugar central no contexto das<br />
ciências humanas[39], e se lança à construção <strong>de</strong> ciências particulares apoiadas no mo<strong>de</strong>lo<br />
linguístico.<br />
No campo da psicanálise a linguística é inicialmente saudada como sen<strong>do</strong> capaz <strong>de</strong><br />
fornecer as bases científicas para uma formulação <strong>do</strong> inconsciente. Se os estu<strong>do</strong>s da linguagem<br />
<strong>de</strong>tinham-se primordialmente nas transformações e na evolução histórica das línguas, a partir <strong>de</strong><br />
Saussure estes aspectos serão consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s fenômenos marginais frente ao caráter onipresente<br />
da estrutura. As noções <strong>de</strong> sincronia e diacronia permitem pensar a variação, mas <strong>de</strong> uma nova<br />
maneira. O corte sincrônico exclui o tempo, já que Saussure quer, justamente, se <strong>de</strong>svencilhar da<br />
filologia e da linguística comparada, que não fizeram outra coisa se não explicar a origem <strong>de</strong> uma<br />
língua mapean<strong>do</strong> suas transformações no tempo, sem conseguir, no entanto, da perspectiva <strong>de</strong><br />
Saussure, dar conta <strong>do</strong> fenômeno da linguagem. Assim, se nos localizamos no plano sincrônico,<br />
po<strong>de</strong>mos excluir as transformações temporais, em proveito <strong>de</strong> uma análise das relações entre<br />
significante e significa<strong>do</strong> ou <strong>de</strong> uma análise das relações <strong>de</strong> signo a signo[40]. Se nos localizamos<br />
no plano diacrônico, as transformações históricas reaparecem - mas com que noção <strong>de</strong><br />
transformação histórica ou temporal trabalhamos aqui? Esta possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, através <strong>de</strong> um<br />
recorte sincrônico, excluir a transformação (e também outros fatores como aqueles <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s<br />
fatores prosódicos da linguagem[41], ou seja, a entonação, a variação afetiva, o ritmo, etc, é o que<br />
configura o méto<strong>do</strong> da linguística. Se na diacronia a variação <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> é novamente incluída,<br />
ela o é apenas enquanto referida à estrutura da língua atual. Ou dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: a variação<br />
temporal é reintroduzida, permanecen<strong>do</strong> porém a primazia da forma sobre a variação.<br />
São bastante <strong>de</strong>batidas as modificações que Lacan introduz na teoria saussuriana da<br />
linguagem, a mais importante <strong>de</strong>las, dizen<strong>do</strong> respeito ao significa<strong>do</strong>, que ao invés <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir por<br />
oposição ao significante, passa a ser efeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>slocamento da ca<strong>de</strong>ia significante, resultante da<br />
oposição termo a termo <strong>do</strong>s elos da ca<strong>de</strong>ia enquanto unida<strong>de</strong>s distintivas.<br />
É este referencial, que dá à linguagem uma grau <strong>de</strong> formalização sem prece<strong>de</strong>ntes,<br />
possibilitan<strong>do</strong> a formulação <strong>de</strong> um inconsciente estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, e enquanto tal,<br />
um inconsciente referi<strong>do</strong> a um código. O código lacaniano é porém, diferentemente <strong>do</strong> código<br />
linguístico saussuriano, um código aberto, <strong>de</strong>sestabiliza<strong>do</strong>. Esta <strong>de</strong>sestabilização diz respeito a<br />
uma <strong>do</strong>minância <strong>do</strong> significante - ou da relação signo a signo, em <strong>de</strong>trimento da relação<br />
significante/significa<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, a noção <strong>de</strong> real, que vai ganhan<strong>do</strong> cada vez mais espaço<br />
em sua teorização, também <strong>de</strong>sestabilizará este código.<br />
A revolução lacaniana é o que permitirá trazer o inconsciente para a superfície, tornan<strong>do</strong><br />
caducas as discussões como a da profundida<strong>de</strong> versus superficialida<strong>de</strong> na clínica. Superfície<br />
<strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> estar relaciona<strong>do</strong> a superficial no contexto clínico, pois que passará a ser o plano por<br />
excelência da clínica.<br />
A construção <strong>de</strong>ste plano <strong>de</strong> superfície está associada, por um la<strong>do</strong>, ao inconsciente<br />
estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, linguagem essa que se realiza no presente. Assim é que Lacan,<br />
em Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, refere-se à ingenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns<br />
analistas que praticariam uma análise causalista, que visaria transformar o sujeito em seu<br />
presente por explicações sábias <strong>de</strong> seu passa<strong>do</strong>[42]. Parodian<strong>do</strong> os behavioristas, Lacan
consi<strong>de</strong>ra que não importa se o sujeito se lembra ou não <strong>de</strong> algo, mas que ele o passe ao verbo.<br />
Não haveria qualquer verda<strong>de</strong> num passa<strong>do</strong> rememora<strong>do</strong>, já que a verda<strong>de</strong> está na própria fala<br />
presente.<br />
O inconsciente está assim na fala atual <strong>do</strong> cliente - não está escondi<strong>do</strong> num passa<strong>do</strong>. E<br />
este próprio inconsciente é linguagem - ou como sublinha Lacan - é estrutura<strong>do</strong> como uma<br />
linguagem. A famosa frase possui múltiplas acepções ao longo <strong>do</strong> percurso lacaniano.<br />
A partir <strong>do</strong> advento <strong>do</strong> lacanismo e <strong>de</strong> sua influência na psicanálise como um to<strong>do</strong>,<br />
configura-se uma tendência para o aban<strong>do</strong>no <strong>de</strong>finitivo da recordação como técnica terapêutica,<br />
aban<strong>do</strong>no esse que já era em parte proposto por Freud com a noção <strong>de</strong> a-posteriori. Lacan<br />
<strong>de</strong>nomina função <strong>de</strong> rememoração o funcionamento a-posteriori <strong>do</strong> significante, que é da<strong>do</strong> pela<br />
própria lógica <strong>do</strong> significante. Assim, o que se obtém como rememoração é algo que, por<br />
<strong>de</strong>finição, está sempre em mutação.<br />
É o significante, como já mencionamos, que adquire toda a primazia no mo<strong>de</strong>lo lacaniano<br />
<strong>de</strong> linguagem - o significa<strong>do</strong> e o sujeito adquirem o estatuto <strong>de</strong> "efeitos" da ca<strong>de</strong>ia significante. O<br />
próprio signo adquirirá este estatuto <strong>de</strong> efeito <strong>do</strong> significante.<br />
A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo terá como uma <strong>de</strong> suas consequências a crítica a uma concepção<br />
que tendia a se difundir na psicanálise, especialmente trazida pela psicanálise americana, ligada à<br />
adaptação enquanto fortalecimento <strong>do</strong> ego frente a um Id a ser controla<strong>do</strong>. A clínica, nesta<br />
perspectiva, visaria capacitar o ego a suportar conflitos, enfrentan<strong>do</strong> e <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> coibin<strong>do</strong> as<br />
exigências <strong>do</strong> id. Um ego <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> substância - contra todas estas idéias a<br />
clínica lacaniana se insurgirá. Associada a esta crítica <strong>do</strong> ego construir-se-á uma vertente da<br />
crítica aos usos da história na clínica.<br />
<strong>Uma</strong> certa concepção <strong>de</strong> um percurso humano evolutivo, que ten<strong>de</strong> necessariamente para o<br />
progresso, para a integração, muito presente no campo da clínica, nada teria <strong>de</strong> lacaniana, já que<br />
as i<strong>de</strong>ntificações que comporão o ego não são harmônicas e equilibradas, mas estilhaçadas,<br />
acentradas:<br />
O eu é como a superporsição <strong>do</strong>s diferentes mantos toma<strong>do</strong>s empresta<strong>do</strong> àquilo que<br />
chamarei <strong>de</strong> bricabraque <strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> acessórios[43].<br />
.<br />
Este acentramento <strong>do</strong> eu, ou <strong>do</strong> ego, diz respeito a algo que nele fala e que lhe escapa<br />
permanentemente. O sujeito falante não coinci<strong>de</strong> com o ego. O núcleo <strong>do</strong> ser não coinci<strong>de</strong> com o<br />
ego, já que ele é um mero efeito, algo que preenche uma função imaginária. Se por um la<strong>do</strong> a<br />
função imaginária é on<strong>de</strong> se dá nossa experiência quotidiana, ela não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como<br />
centro da intervenção terapêutica, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> a experiência clínica apontar sempre para fora <strong>de</strong>sta<br />
experiência.<br />
A função <strong>do</strong> analista não é tão pouco a <strong>de</strong> se perguntar "o que isto significa". O senti<strong>do</strong> (que<br />
é o que importa ao analista) é sempre um nonsense que irrompe emergin<strong>do</strong> <strong>do</strong> não senti<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>sarticulan<strong>do</strong> o discurso <strong>do</strong> ego, o discurso imaginário. Os significa<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s nunca levam a<br />
encontrar o que se buscava[44]. Eis o que po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r da célebre análise que Lacan faz<br />
<strong>do</strong> conto da carta Roubada <strong>de</strong> Edgar Allan Poe. Os policiais acreditam que por sua importância e<br />
pela importância <strong>do</strong>s personagens envolvi<strong>do</strong>s, a carta só po<strong>de</strong>ria estar muito bem escondida - eis<br />
os que leva a revistar milimétricamente toda a casa, perfurar o assoalho, etc. No entanto, ela<br />
estava bem ali, on<strong>de</strong> ninguém a esperava, à vista <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, sem que os policiais a vissem.<br />
O eu nunca po<strong>de</strong> a rigor sustentar a coerência, a estabilida<strong>de</strong>, a sabe<strong>do</strong>ria com que se<br />
apresenta. A rememoração <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na análise pa<strong>de</strong>ce das limitações <strong>de</strong> ser uma função <strong>do</strong><br />
ego e <strong>de</strong> estar aprisionada nas fascinações da intersubjetivida<strong>de</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> o seu<br />
caracter sempre acentra<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> não estar no ego a essência <strong>do</strong> ser, esta história estará sempre<br />
sen<strong>do</strong> ressignificada, reescrita, pois a função simbólica está sempre interferin<strong>do</strong> nesta função
imaginária, que é apenas efeito seu. Se inicialmente Lacan se referia à história na clínica<br />
explicitamente, o fazia sempre em relação a um discurso não dito. Assim, se o analista faz história<br />
é sempre para <strong>de</strong>scontruir uma versão egóica da mesma trazen<strong>do</strong> esta outra versão recalcada,<br />
que atesta um <strong>de</strong>scentramento <strong>do</strong> sujeito.<br />
Mas Lacan chegará a dizer, em Mais Ainda, que <strong>de</strong>testa a história[45], pois antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> se<br />
trata <strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r não às significações contidas na percurso histórico particular, mas ao senti<strong>do</strong>,<br />
referi<strong>do</strong> ao simbólico. A ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> analista para Lacan po<strong>de</strong> ser valorizada<br />
apenas na medida em que o cliente <strong>de</strong>ve adquirir convicção no processo pela via <strong>do</strong> imaginário,<br />
reconstituin<strong>do</strong> seus percursos particulares, mas pa<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma insuficiência, já que o<br />
importante é a referência a uma dimensão <strong>do</strong> simbólico que faz esta história tropeçar em sua<br />
aparente coerência.<br />
A análise se passa nesta fronteira entre o imaginário e o simbólico, naquilo que justamente<br />
ultrapassa as vissicitu<strong>de</strong>s da história pessoal, embora se apóie nela. Somos governa<strong>do</strong>s,<br />
queiramos ou não, pelo símbolo e seus mecanismos[46]. E na medida em que compreendamos<br />
seus jogos, agimos.<br />
O jogo <strong>de</strong> xadrez, entre outros jogos, aparecem na obra <strong>de</strong> Lacan em comparações coma a<br />
situação clínica. Vale lembrar que Saussure também utilizara, no Curso <strong>de</strong> Linguística Geral[47], a<br />
comparação com o xadrez para expor sua teoria da linguagem, ao privilegiar a dimensão da língua<br />
sobre a da fala. Esta utilização revelou, como vimos, uma nova fórmula para lidar com a<br />
temporalida<strong>de</strong>, na qual esta fica referida as variações que não ultrapassam <strong>de</strong>terminadas regras<br />
previamente estabelecidas. Por outro la<strong>do</strong>, o ato humano é algo comparável a uma jogada, com<br />
todas as limitações que isso comporta.<br />
No célebre sofisma <strong>do</strong>s prisioneiros[48], Lacan explícita sua teoria <strong>do</strong> tempo, ou como<br />
prefere Erik Porge, sua teoria <strong>do</strong> ato referida a um tempo totalmente objetiva<strong>do</strong>. Três momentos<br />
são assinala<strong>do</strong>s. O momento <strong>de</strong> ver, em que os prisioneiros tentam <strong>de</strong>duzir <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong><br />
outro, o disco que têm nas costas. Mas se permanecerem aprisiona<strong>do</strong>s nesta fascinação pelo<br />
comportamento <strong>do</strong> outro, não resolverão o problema que permitirá que sejam liberta<strong>do</strong>s. Nos<br />
jogos que Lacan <strong>de</strong>screve, para que se mate a charada não basta olhar o que o outro está<br />
fazen<strong>do</strong>. É necessário ultrapassar este momento para construir a própria jogada, que está dada na<br />
regra <strong>do</strong> jogo. É com relação ao outro que o ego se constitui - numa relação <strong>de</strong> espelhamento, em<br />
que oriento minhas ações em função da percepção que tenho da ação <strong>do</strong> outro. Mas é necessário<br />
ultrapassar esta dimensão, já que o acesso à regra <strong>do</strong> jogo é o acesso ao simbólico e é o que<br />
realmente importa para matar a charada, que se configurará num ato <strong>do</strong> joga<strong>do</strong>r. Deste ato<br />
resultará nada menos que a liberda<strong>de</strong>.<br />
Lacan se utiliza <strong>do</strong> sofisma <strong>do</strong>s prisioneiros também para esclarecer a distinção entre<br />
simbólico e imaginário . Há uma lógica <strong>do</strong> imaginário referida ao tempo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, na qual<br />
cada sujeito tenta se dizer o que os outros <strong>do</strong>is estão ven<strong>do</strong>. E há uma lógica <strong>do</strong> simbólico,<br />
suposta no momento <strong>de</strong> concluir, que engendra uma certeza, um ato[49]. Não se trata <strong>de</strong><br />
compreensão à maneira <strong>do</strong> insight, pois Lacan quer se referir a uma temporalida<strong>de</strong> totalmente<br />
objetivada, <strong>de</strong>spsicologizada, <strong>de</strong>ssubstancializada ou <strong>de</strong> superfície. Assim os três momentos, o<br />
momento <strong>de</strong> ver, o momento <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e momento <strong>de</strong> concluir são momentos lógicos.<br />
Po<strong>de</strong>mos dizer que cada vez mais, na teoria Lacaniana, a linguagem dirá respeito a uma<br />
combinatória, a uma lógica - e menos a qualquer linguística. Lacan se afasta <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo linguístico<br />
para se aproximar da lógica - a língua é apenas um caso particular <strong>de</strong>sta dimensão lógicomatemática<br />
que se constitui num campo <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> pré-subjetivo.<br />
Se para Freud havia uma correspondência nas relações entre recordação e repetição - pela<br />
recordação se extinguia a repetição - Lacan distinguirá os <strong>do</strong>is processos. Se a recordação possui<br />
todas as limitações a que já nos referimos por estar ligada a uma função imaginária, a repetição,<br />
por outro la<strong>do</strong>, diz respeito ao plano <strong>do</strong> inconsciente enquanto este plano pré-subjetivo.<br />
Impossível referirmo-nos à repetição em Lacan sem nos aproximarmos <strong>de</strong> sua noção <strong>de</strong><br />
real. A noção <strong>de</strong> real <strong>de</strong>sestabilizará a estrutura na teoria lacaniana, incluin<strong>do</strong> uma dimensão fora<br />
da linguagem, que ganha cada vez mais espaço em sua teoria. A dimensão <strong>do</strong> simbólico, diz
Lacan, não coinci<strong>de</strong> com o ser, ou seja, nem tu<strong>do</strong> é linguagem. Conhecemos o inconsciente<br />
unicamente através <strong>do</strong> que o paciente nos diz, mas há uma relação dialética entre a linguagem e a<br />
não linguagem, entre a linguagem e o fora da linguagem. Há algo que não para <strong>de</strong> se inscrever /<br />
não para <strong>de</strong> não se inscrever[50], que é a dimensão <strong>do</strong> real.<br />
O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tu<strong>do</strong> isso só funciona até um certo<br />
limite, que se chama o real ... o real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar... Toda a história<br />
da <strong>de</strong>scoberta por Freud da repetição como função só se <strong>de</strong>fine com mostrar assim a relação <strong>do</strong><br />
pensamento com o real[51].<br />
A concepção Lacaniana <strong>de</strong> repetição está ligada a este encontro sempre faltoso com o real<br />
- a partir <strong>de</strong> um encontro primevo com "a coisa" que nunca mais se repetirá. É esta busca mesma<br />
a riqueza <strong>do</strong> percurso humano. Pela via da recordação, no máximo o que se obtém é tocar este<br />
outro plano, o plano da repetição, anterior e <strong>de</strong>terminante em relação ao da recordação.<br />
A reminiscência não po<strong>de</strong> trazer para o homem um caminho - ele nunca mais encontrará o<br />
objeto da primeira satisfação, mas reiterará para sempre esta procura, encontran<strong>do</strong> outros objetos.<br />
Assim, pela via da repetição não se chegará à homeostase, ao equilíbrio, (fenômenos que dizem<br />
respeito ao ego), mas é na repetição que está a vida no que ela contém <strong>de</strong> imprevisível e cria<strong>do</strong>r.<br />
Tu<strong>do</strong> o que diz respeito ao que <strong>de</strong>nominamos realida<strong>de</strong> psíquica é um espécie <strong>de</strong> véu, ou o que<br />
envelopa o real, este sim o plano realmente importante na produção da vida humana[52].<br />
Deixamos até aqui <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a questão da presença ou não <strong>de</strong> transcendências ou <strong>de</strong><br />
categorias gerais mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>res no inconsciente lancaniano. Neste particular, a teoria lacaniana<br />
po<strong>de</strong> ser tão ou mais problemática que a freudiana, porque o que parece ter se opera<strong>do</strong> foi uma<br />
formalização <strong>de</strong>stes universais. Falar não mais <strong>de</strong> pai ou <strong>de</strong> mãe, mas <strong>de</strong> função materna ou<br />
paterna não resolve a questão[53], <strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista - apenas aprofunda o caráter universal<br />
e transcen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>stas categorias, assim como falar <strong>de</strong> castração ou <strong>de</strong> encontro faltoso com o<br />
real. Em ambos os casos, continua a se pensar um inconsciente que tem o negativo na base e<br />
que é mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> universais.<br />
A ca<strong>de</strong>ia significante estaria como que pendurada a significantes-mestres - significantes que<br />
adquirem uma pre<strong>do</strong>minância sobre os <strong>de</strong>mais. É o que Lacan se refere como inércia simbólica,<br />
característica <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente[54]. A ca<strong>de</strong>ia significante <strong>de</strong>sliza a partir <strong>de</strong> significantes<br />
funda<strong>do</strong>res. Os significantes mestres po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s, porém, como constituí<strong>do</strong>s aposteriori,<br />
em cada percurso particular e a análise po<strong>de</strong> ser pensada como ten<strong>do</strong> o objetivo <strong>de</strong><br />
produzir um <strong>de</strong>scolamento <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong>sses significantes mestres aos quais se apega[55]. Nesta<br />
direção, po<strong>de</strong>mos ver uma perspectiva na qual os significantes-mestres são produzi<strong>do</strong>s e não têm<br />
um caráter universal - ainda assim, restaria <strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, a questão da primazia <strong>do</strong><br />
regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante, nesta concepção <strong>de</strong> inconsciente. Além disso, produzir um<br />
<strong>de</strong>scolamento <strong>do</strong>s significantes aos quais o sujeito se apega não seria suficiente <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />
<strong>de</strong> pensar um inconsciente que produz, como veremos na parte II.<br />
De que mo<strong>do</strong> aparecem na teoria lacaniana estas questões para nós fundamentais relativas<br />
à história, à memória e ao tempo na clínica? Se a situação analítica po<strong>de</strong> ser comparada com um<br />
jogo <strong>de</strong> xadrez, isto configura, como sublinhamos, a emergência <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> superfície on<strong>de</strong> o<br />
tempo é <strong>de</strong>ssubstancializa<strong>do</strong> e <strong>de</strong>spsicologiza<strong>do</strong>, só importan<strong>do</strong> na medida em que gera atos.<br />
Mas não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> assinalar que estes atos estão da<strong>do</strong>s numa estrutura lógica<br />
previamente dada e que se mantém a mesma. É claro que o jogo <strong>de</strong> xadrez comporta uma<br />
possiblida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> jogadas, mas isto se forem mantidas as regras <strong>do</strong> xadrez.<br />
Compartilhamos <strong>do</strong> <strong>de</strong>scontentamento <strong>de</strong> Lacan com relação à história na clínica pois o que<br />
se quer marcar é a inutilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certos discursos sobre si mesmo que permanecem conti<strong>do</strong>s no<br />
interior <strong>de</strong> um ego <strong>do</strong>uto, literalmente cheio <strong>de</strong> si - a história enquanto obra <strong>de</strong> um ego. A<br />
concepção <strong>de</strong> Lacan se afasta portanto daquela <strong>de</strong>nfendida por Piera Aulagnier, pois <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />
algum po<strong>de</strong>ríamos dizer que para Lacan o analista se <strong>de</strong>fina como um historia<strong>do</strong>r.
A construção <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> superfície para a clínica, toda a crítica da profundida<strong>de</strong> e <strong>do</strong><br />
psicologismo a ela associada é para nós <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> riqueza. O inconsciente-linguagem ou o<br />
incosnciente-lógico-matemático não é mais um arquivo, ou uma profundida<strong>de</strong> a ser trazida a tona.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, se esta concepção nos livra <strong>do</strong> analista arqueólogo e <strong>do</strong> ego abissal, por outro nos<br />
aprisiona à forma num grau em que o tempo não po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, ser pensa<strong>do</strong><br />
como criação. Um inconsciente submeti<strong>do</strong> à forma e não compreendi<strong>do</strong> enquanto engendra<strong>do</strong>r<br />
das formas mesmas - eis on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> para nós a limitação presente na perspectiva lacaniana <strong>de</strong><br />
construção <strong>de</strong>sta superfície clínica.<br />
Embora o real, em sua relação dialética com o plano <strong>do</strong> simbólico tenha uma positivida<strong>de</strong><br />
cria<strong>do</strong>ra, não ficaria esta ainda referida à linguagem? Queremos, como veremos, falar <strong>de</strong> um fora,<br />
mas este fora não está referi<strong>do</strong> ao campo <strong>do</strong> discurso, mesmo que como um resto[56]. Para Lacan<br />
o inconsciente é cria<strong>do</strong>r, mas sua capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra está referida ao simbólico, o que para nós,<br />
se constitui numa limitação. O simbólico apenas po<strong>de</strong> ser um campo <strong>de</strong> possíveis e não um plano<br />
virtual, um plano <strong>de</strong> engendramento <strong>do</strong> novo[57]. Sobre este ponto nos esten<strong>de</strong>remos mais tar<strong>de</strong>.<br />
Neste caso, a perspectiva <strong>do</strong> tempo como criação <strong>de</strong> novas formas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização das<br />
formas atuais estaria ausente.<br />
1.7) Talking Cure ?... Um outro lugar para a palavra na <strong>Clínica</strong><br />
Retornan<strong>do</strong> à questão que abrimos quan<strong>do</strong> tomamos a noção <strong>de</strong> a-posteriori como ponto <strong>de</strong><br />
bifurcação, vimos que tal noção possibilitou a emergência <strong>de</strong> um plano da representação<br />
<strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> afeto, o que abre espaço para uma clínica que privilegia o plano da<br />
linguagem. Não vemos nem Freud nem Lacan como responsáveis únicos por tal tendência, mas<br />
ela está certamente presente no psicanalismo - um fenômeno institucional e político, que se dá<br />
numa relação entre discursos e práticas e não entre discursos e autores.<br />
Denominemos essa técnica, como o fez Ana O. um dia, "Talking Cure". E teremos que nos<br />
<strong>de</strong>frontar com algumas problematizações. A cura se daria necessariamente pela colocação em<br />
palavras? Ou dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>: até que ponto palavras curam? E além disso, o que se quer ou<br />
se obtém quan<strong>do</strong> se coloca o passa<strong>do</strong> em palavras? Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>stas questões, chegaremos a um<br />
questionamento sobre a natureza da linguagem e <strong>de</strong> suas relações com a subjetivida<strong>de</strong> e com a<br />
clínica.<br />
<strong>Uma</strong> outra questão se nos apresenta: po<strong>de</strong>ríamos falar da linguagem na clínica como<br />
fenômeno unitário? Não <strong>de</strong>veríamos antes dizer "as linguagens"? A partir daí, duas direções toma<br />
a questão da linguagem <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da clínica - numa <strong>de</strong>las, existente em Freud, e<br />
produzida por ele através <strong>do</strong> dispositivo <strong>do</strong> divan-associação livre, toma-se a linguagem como via<br />
privilegiada para o inconsciente. No dispostivo <strong>do</strong> divan, o corpo está inativo e os olhos não vêm o<br />
interlocutor - o cliente fala, o analista ouve.<br />
Num mo<strong>de</strong>lo freudiano <strong>de</strong> inconsciente constituí<strong>do</strong> por representações recalcadas, que<br />
ocorre com o afeto? Este não po<strong>de</strong> ser recalca<strong>do</strong> - e assim se liga a outras representações<br />
conscientes (representações substitutivas) ou é <strong>de</strong>scarrega<strong>do</strong>, como ocorre na conversão<br />
histérica. A distinção recalque/repressão que caracteriza uma leitura estrutural da psicanálise se<br />
liga justamente à ênfase no inconsciente representacional. Mesmo no texto freudiano da<br />
Metapsicologia (1915)[58] que geralmente serve <strong>de</strong> base para esta leitura, a economia das<br />
pulsões é constantemente referida a questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m quantitativa e qualitativa, ligadas à<br />
economia <strong>do</strong> prazer/<strong>de</strong>sprazer. É retomada a idéia <strong>de</strong> que apenas reproduzin<strong>do</strong>-se afetivamente o<br />
vivi<strong>do</strong> po<strong>de</strong> a interpretação psicanalítica ganhar eficácia clínica, pois não basta uma compreensão<br />
intelectual da interpretação, já que ouvir algo e viver algo são coisas distintas. Todas as<br />
complexas aproximações feitas por Freud para explicar o <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> afeto a partir <strong>do</strong> recalque, na<br />
Metapsicologia, são como que "enxugadas" pela leitura estrutural, mo<strong>de</strong>lo que permite que o<br />
mecanismo <strong>do</strong> recalque seja pensa<strong>do</strong> <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte "<strong>do</strong> que ocorre", tornan<strong>do</strong>-se<br />
um mecanismo formal, a-temporal, que age sobre uma realida<strong>de</strong> falada. Um outro aspecto <strong>de</strong>sta
leitura é o <strong>de</strong> que o recalque se refere à chamada "realida<strong>de</strong> psíquica" e não ao afeto, ao tempo,<br />
aos aspectos energético-intensivos da pulsão.<br />
Monique Schnei<strong>de</strong>r[59] nos convida a <strong>de</strong>sconstruir esta separação entre afeto e<br />
representação, apontan<strong>do</strong> para a linguagem outras origens. Ao invés da lógica que emerge no<br />
discurso, propõe consi<strong>de</strong>rar o grito como a primeira linguagem utilizada pelo bebê humano,<br />
lembran<strong>do</strong> também que Freud sempre sublinhou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> liberação afetiva concomitante<br />
à expressão verbal <strong>do</strong> que estava fora da consciência - ou nada se passaria <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />
terapêutico. A expressão verbal só ganha sua eficácia clínica quan<strong>do</strong> ligada ao afeto.<br />
Ela sublinha que os <strong>do</strong>is caminhos estão portanto presentes em Freud: o da representação<br />
e o <strong>do</strong> afeto. Porém, se a economia <strong>do</strong> afeto estiver relacionada à idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga implicará<br />
ainda numa <strong>de</strong>svalorização <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> afeto frente ao da representação.<br />
<strong>Uma</strong> outra concepção <strong>de</strong> recalque presente em Freud po<strong>de</strong> abrir outros caminhos para a<br />
questão da separação formal entre afeto/representação: Na carta 52 ele menciona vários<br />
recalques sucessivos, que vão se constituin<strong>do</strong> e se modifican<strong>do</strong> à medida em que novas camadas<br />
vão sen<strong>do</strong> adicionadas.<br />
Estou trabalhan<strong>do</strong> sob a presunção <strong>de</strong> que nosso aparelho psíquico se originou por um<br />
processo <strong>de</strong> estratificação: o material existente e a forma <strong>do</strong>s rastros mnemônicos experimentaria<br />
<strong>de</strong> tempos em tempos um reor<strong>de</strong>namento <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com novas relações, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> uma<br />
transcrição. Assim, o que é essencialmente novo em minha teoria é a afirmação <strong>de</strong> que a memória<br />
não se encontra em uma versão única, mas em várias ... transcrita em distintos tipos <strong>de</strong> signos ...<br />
as sucessivas transcrições representam a obra psíquica <strong>de</strong> sucessivas épocas da vida[60].<br />
Assim, a memória se organizaria em camadas relacionadas aos acontecimentos da vida,<br />
que se dão no tempo. Se por um la<strong>do</strong> este é um momento <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong> uma clínica da<br />
memória, ele é também mais uma evidência <strong>de</strong> que, como já assinalamos, Freud não exclui o<br />
tempo <strong>de</strong> sua teoria, ainda que se trate <strong>de</strong> um tempo arqueológico. Além disso, vários tipos <strong>de</strong><br />
signo compõem esta escritura - o que impe<strong>de</strong> uma leitura que se apóie em apenas um regime <strong>de</strong><br />
signos. Também no texto "O Bloco Mágico", o recalque aparece pensa<strong>do</strong> como algo que se dá em<br />
vários tempos, e se parece menos com um mecanismo lógico-formal. É esta a perspectiva que<br />
seguem aqueles[61] para quem o inconsciente é uma escritura - não mais ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
representações ou significante, mas escritura múltipla, que inclui escritas pictográficas,<br />
intensida<strong>de</strong>s, ritmos. O inconsciente seria como um livro[62]: um livro poético, escrito à<br />
semelhança <strong>de</strong> caracteres chineses, on<strong>de</strong> a imagem também é utilizada - a escritura não é o<br />
simbólico, já que não é regida pelas leis da lógica. Também não é a-temporal, já que o tempo ali<br />
está presente, numa outra estratificação, que é dada pela diferença ou espaçamento da ca<strong>de</strong>ia<br />
fônica. O Bloco Mágico[63] é toma<strong>do</strong> como um aparelho on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>m ver o aparecimento e o<br />
<strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong>s traços <strong>de</strong> memória, inscrições que se inscrevem e se apagam, através <strong>de</strong><br />
múltiplos gestos e movimentos. É aí, na economia mesma da escrita que está o tempo.<br />
Derrida[64] retoma em Freud, a perspectiva <strong>de</strong> que o sonho po<strong>de</strong>ria ser melhor compara<strong>do</strong> com<br />
um sistema <strong>de</strong> escrita <strong>do</strong> que com uma língua - o sonha<strong>do</strong>r inventaria sua gramática, na qual<br />
inexiste qualquer código exaustivo e absolutamente infalível. Tratar-se-ia <strong>de</strong> uma combinação<br />
picto-hieroglífica, semelhante às histórias em quadrinhos ou <strong>de</strong> uma escrita que possui<br />
enca<strong>de</strong>amentos não lógicos.<br />
Aponta-se, nesta perspectiva, para um inconsciente-inscrição - um inconsciente ainda<br />
discursivo embora não mais lógico, a-temporal. E ainda haveria aí, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nossa perspectiva,<br />
muitos problemas a serem coloca<strong>do</strong>s. Na perspectiva que seguimos, nem mesmo uma escritura<br />
poética e mutante po<strong>de</strong>ria compor o inconsciente, pois ele é pensa<strong>do</strong> como plano <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
emergem toda escritura e toda a poesia - ou toda a lógica - mas nenhuma forma <strong>de</strong> linguagem,<br />
lógica ou não, o constitui ou está contida nele. O plano <strong>do</strong> inconsciente é justamente o que faz a<br />
linguagem se abrir, da língua oficial em direção às línguas menores, da linearida<strong>de</strong> significante
aos garranchos <strong>do</strong> grito, da gagueira. O plano da linguagem não se confun<strong>de</strong> com o plano <strong>do</strong><br />
inconsciente.<br />
1.7.1) Outras linguagens : A linguagem como reino <strong>do</strong> <strong>de</strong>vir<br />
A técnica da associação livre correspon<strong>de</strong>, como dissemos, a uma ênfase no aspecto<br />
representacional da linguagem. Abre também a via para a idéia <strong>de</strong> um campo verbal que se<br />
<strong>de</strong>sloca incessantemente, ten<strong>do</strong> como pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>, ou como condição <strong>de</strong> possiblida<strong>de</strong>,<br />
estruturas lógicas que o mo<strong>de</strong>lam. Já nos referimos a estas questões quan<strong>do</strong> tomamos o conceito<br />
<strong>de</strong> a-posteriori como ponto <strong>de</strong> bifurcação a partir <strong>do</strong> qual a psicanálise <strong>de</strong>sloca-se <strong>de</strong> uma volta ao<br />
passa<strong>do</strong>, mas isto à custa da negação <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> afeto. A noção <strong>de</strong> a-posteriori permite<br />
<strong>de</strong>slocar <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> os fatores causais da neurose, referin<strong>do</strong>-os a um plano sincrônico da<br />
linguagem, on<strong>de</strong> a temporalida<strong>de</strong> está ausente. <strong>Uma</strong> outra possiblida<strong>de</strong> é pensar, a partir da<br />
noção <strong>de</strong> a-posteriori, o plano da linguagem como plano <strong>de</strong> mutação e imprevisiblida<strong>de</strong><br />
constantes.<br />
A linguagem é o reino da superfície. Mas <strong>de</strong> que superfície se trata aqui? Ao invés <strong>de</strong> um<br />
pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> significante, apontamos para a existência <strong>de</strong> vários regimes <strong>de</strong> signos[65] ou várias<br />
linguagens, sem pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> nenhum <strong>de</strong>les sobre os <strong>de</strong>mais. Po<strong>de</strong>ríamos falar <strong>de</strong> uma<br />
linguagem endurecida, não porosa ao plano <strong>do</strong> inconsciente - a linguagem presa à lógica<br />
significante. De fato, neste regime <strong>de</strong> signos o afeto não aparece, ou aparece como <strong>de</strong>scarga.<br />
Mas o que queremos neste momento é assinalar que este não é o único regime <strong>de</strong> signos -<br />
restringir-se ao regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante é algo enfraquece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da clínica<br />
pensada enquanto catalisa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> transformação e mudança.<br />
Se consi<strong>de</strong>rarmos que a linguagem é reino <strong>do</strong> que muda, <strong>do</strong> imprevisível, nos distanciamos,<br />
como se torna evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> qualquer perspectiva que se apóie na lógica <strong>do</strong> significante. A idéia <strong>de</strong><br />
uma linguagem representacional, ou da concepção <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ia significante, que vê na<br />
interpretação um meio privilegia<strong>do</strong> para a cura, está ligada, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>, à busca <strong>de</strong> uma<br />
verda<strong>de</strong> nas palavras. A questão <strong>de</strong> saber se através da linguagem po<strong>de</strong>mos conhecer algo, ou se<br />
a linguagem é o reino <strong>do</strong> engano, da mobilida<strong>de</strong>, confundin<strong>do</strong>-se com o próprio <strong>de</strong>vir[66], aparece<br />
no diálogo platônico O Crátilo[67].<br />
Façamos uma breve incursão ao diálogo platônico[68]. Duas questões o iniciam: <strong>de</strong><br />
convencionalida<strong>de</strong> seria a relação entre palavras e coisas? Ou existiria uma a<strong>de</strong>quação<br />
necessária entre ambas? É necessário contextualizar estas questões. O que se discute é por um<br />
la<strong>do</strong> o grau <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> engano existente nas palavras. É Sócrates quem põe em questão a<br />
opinião - apenas após um questionamento da <strong>do</strong>xa po<strong>de</strong>-se filosofar. As opiniões, fundadas nas<br />
sensações e nos apetites, quan<strong>do</strong> confrontadas, caem no vazio. É necessário ultrapassá-las,<br />
<strong>de</strong>sviar-se <strong>de</strong>las, e só então, pelo méto<strong>do</strong> dialético, buscar a verda<strong>de</strong>. Filosofar é praticar este<br />
<strong>de</strong>svio, é <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se das paixões e <strong>do</strong>s apetites, para atingir o mun<strong>do</strong> das idéias. O filósofo<br />
seria o amante da verda<strong>de</strong> e da beleza. Porém o campo <strong>do</strong> discurso é, em si mesmo, um campo<br />
<strong>de</strong> opiniões divergentes, <strong>de</strong> paixões, crenças e consequentemente povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> falsas palavras.<br />
Há a possibilida<strong>de</strong> das palavras serem verda<strong>de</strong>iras? As palavras, nos diz Sócrates no<br />
Crátilo, seriam como um instrumento que usamos para diferenciar e distinguir a realida<strong>de</strong>. Este<br />
instrumento po<strong>de</strong>rá ser bom ou ruim - o legisla<strong>do</strong>r seria capaz <strong>de</strong> construir o bom instrumento, sob<br />
a direção <strong>do</strong> dialético, aquele que <strong>do</strong>mina a arte <strong>de</strong> perguntar e respon<strong>de</strong>r. Assim, o legisla<strong>do</strong>r ou<br />
artesão <strong>do</strong>s nomes é aquele que "viu" (no plano das essências) o nome natural <strong>de</strong> cada palavra. A<br />
a<strong>de</strong>quação entre palavras e coisas não está garantida - ela existe, mas se constitui numa aptidão<br />
ou qualida<strong>de</strong> especial. É possível, no entanto, falar falsamente. A linguagem imita as coisas. Mas<br />
não se constitui num duplo das coisas - já que o que ela imita é a essência das coisas. Esta<br />
imitação po<strong>de</strong> ser justa ou injusta. Eis o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> campo da linguagem - o artífice das palavras<br />
po<strong>de</strong> ou não ser bem sucedi<strong>do</strong> em sua ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir belos nomes.
Embora existam nomes a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s às coisas, como distingui-los? Neste ponto Platão<br />
introduz o simulacro: os falsos nomes que povoam, sem que lhes possa opor limite ou coibir sua<br />
utilização, o campo da palavra. Diferentemente da tese da convencionalida<strong>de</strong> entre palavras e<br />
coisas, a tese platônica afirma <strong>de</strong> uma la<strong>do</strong>, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma a<strong>de</strong>quação entre palavras e<br />
coisas e <strong>de</strong> outro, a possibilida<strong>de</strong> sempre presente <strong>de</strong> que isto não ocorra, ou da subversão <strong>de</strong>sta<br />
a<strong>de</strong>quação.<br />
O campo da linguagem po<strong>de</strong> ser o campo da falsida<strong>de</strong> por excelência, já que não se po<strong>de</strong>,<br />
a rigor, distinguir entre cópias e simulacros. E o diálogo termina com a conclusão <strong>de</strong> que nesta<br />
guerra civil em que se encontra o campo das palavras, em que cada qual reivindica para si o<br />
privilégio <strong>do</strong> acesso à verda<strong>de</strong>, é necessário buscar fora das mesmas outras luzes, que nos<br />
indiquem on<strong>de</strong> está a verda<strong>de</strong>. O campo das palavras é o campo <strong>do</strong> movimento, ou das trevas, <strong>do</strong><br />
engano.<br />
A partir da operação <strong>de</strong>leuziana <strong>de</strong>nominada reversão <strong>do</strong> platonismo, o que vamos afirmar<br />
é justamente este campo das palavras como campo <strong>do</strong> movimento, da emergência <strong>do</strong> falso como<br />
positivida<strong>de</strong> - e também <strong>do</strong> afeto, das intensida<strong>de</strong>s.<br />
Na tradição racionalista, a fala é tomada como o que há <strong>de</strong> mais eleva<strong>do</strong> no ser humano - a<br />
aquisição da linguagem coinci<strong>de</strong> com o tornar-se homem, elevar-se por sobre os animais, não<br />
haven<strong>do</strong> propriamente uma subjetivida<strong>de</strong> humana prévia à aquisição da linguagem.<br />
Nietzsche não pára <strong>de</strong> apontar que o culto da linguagem coinci<strong>de</strong> com o culto da razão.<br />
Po<strong>de</strong>mos encontrar no campo da clínica este culto, que toma a linguagem como instrumento<br />
clínico por excelência e como via para a humanização.<br />
Em algumas perspectivas psicanalíticas a falta, a separação da mãe, a superação <strong>do</strong><br />
estágio <strong>do</strong> espelho estão na base da aquisição da linguagem. A entrada no simbólico implica na<br />
superação <strong>do</strong> imaginário. O plano <strong>do</strong> afeto seria um plano a ser <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, supera<strong>do</strong>. No entanto<br />
po<strong>de</strong>ríamos pensar o grito, como já mencionamos, como a base da linguagem, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a<br />
ficção <strong>de</strong> uma linguagem lógica.<br />
<strong>Uma</strong> perspectiva que se apóie no pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> significante permanece, é o que o<br />
pensamento <strong>de</strong> Deleuze e Guatarri nos mostrará, ligada ao culto da razão - pois se o inconsciente<br />
for pensa<strong>do</strong> como estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, na perspectiva <strong>do</strong> inconsciente <strong>de</strong>leuziano<br />
este incosnciente "será ainda eu". Ou seja, ainda se está no registro <strong>do</strong> eu quan<strong>do</strong> se preten<strong>de</strong><br />
pensar um inconsciente-linguagem.<br />
Pensar o processo <strong>de</strong> aquisição da linguagem no <strong>de</strong>senvolvimento da criança como o que<br />
possibilita a individuação, a separação da mãe, é algo dissemina<strong>do</strong> no pensamento psicanalítico,<br />
mesmo em suas vertentes não estruturais. Assim, o lugar privilegia<strong>do</strong> da linguagem na teoria daria<br />
sustentação à "talking cure", à cura pela palavra como principal méto<strong>do</strong> clínico. A idéia <strong>de</strong> uma<br />
indiferenciação primária que só seria rompida com a aquisição da linguagem se articula com a<br />
proposição <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong> subjetivação propriamente humano só po<strong>de</strong>ria se dar via<br />
linguagem.<br />
De nossa perspectiva, por outro la<strong>do</strong>, não se trata <strong>de</strong> dizer que não exista uma "talking<br />
cure", o que nos privaria na clínica <strong>do</strong> uso <strong>de</strong>ste instrumento (algumas terapias corporais se<br />
apoiam nesta idéia) - mas se trata <strong>de</strong> buscar em que circunstâncias palavras po<strong>de</strong>m curar .<br />
Po<strong>de</strong>ria ter a linguagem um funcionamento apenas lógico, <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
e <strong>do</strong> campo afetivo? Sim, e este é um fenômeno histórico e não um fato natural. Em O Gesto e a<br />
Palavra, Leroy Ghouran[69] nos fala <strong>do</strong> processo através <strong>do</strong> qual a escrita se lineariza. As<br />
palavras escritas <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se constituir em ícones, mas se tornam signos que visam reproduzir<br />
os sons das palavras. Começa a haver uma preocupação em reproduzir o dito tal como foi dito - a<br />
escrita correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> à instauração <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> memória que se disseminará no mun<strong>do</strong><br />
mo<strong>de</strong>rno. Nos tempos em que a escrita pertencia aos sacer<strong>do</strong>tes, a linguagem talvez revelasse <strong>de</strong><br />
forma mais clara suas relações com o po<strong>de</strong>r. As figuras <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que organizam o campo <strong>do</strong><br />
signo estão <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> ocultas na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, apresentan<strong>do</strong>-se anonimamente. Eis por que<br />
a linguagem po<strong>de</strong> ocultar-se enquanto sempre atravessada por relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, apresentan<strong>do</strong>-
se como ten<strong>do</strong> um funcionamento autônomo e ascético. Apenas a língua morta po<strong>de</strong> ser lógica,<br />
nos diz Michail Bakhtin em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem. A linguagem falada, viva,<br />
não po<strong>de</strong> ser pensada com categorias lógicas, a não ser que se queira excluir ou ocultar as<br />
relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> campo da língua.<br />
O pragmatismo <strong>de</strong> Austin[70] traz para o campo da linguagem algumas preocupações<br />
ausentes no esquema saussuriano. Dizer algo é fazer algo - a não ser quan<strong>do</strong> condições<br />
<strong>de</strong>safortunadas o impe<strong>de</strong>m. Tais condições fazem com que dizer não seja fazer. Um falso po<strong>de</strong>r,<br />
uma cerimônia sem valida<strong>de</strong> tornam sem efeito a frase "eu vos <strong>de</strong>claro mari<strong>do</strong> e mulher". Estão aí<br />
presentes consi<strong>de</strong>rações relativas a :<br />
1) quem profere o enuncia<strong>do</strong><br />
2) em que contexto o profere<br />
3) não é verda<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong> das palavras o que está em jogo, mas sua eficácia.<br />
A conclusão é <strong>de</strong> que o plano da linguagem não po<strong>de</strong> ser dissocia<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto<br />
institucional, das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r - <strong>de</strong> quem fala, on<strong>de</strong> fala, para que fala. Na perspectiva <strong>de</strong><br />
Deleuze e Guattari a linguagem é sempre palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m - sempre atravessada pelo afeto,<br />
pelas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, ainda que o regime <strong>do</strong> significante busque ocultar este fato. As línguas<br />
maiores, enquanto línguas hegemônicas, línguas standard, buscarão sempre este tipo <strong>de</strong><br />
ocultamento. As línguas menores são vias <strong>de</strong> reconexão com os afetos, intensida<strong>de</strong>s, tonalida<strong>de</strong>s.<br />
Porém não há privilégio <strong>do</strong> plano da linguagem sobre outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> expressão. O plano das<br />
palavras e o plano das coisas permanecem numa relação disjuntiva. Nem mesmo a linguagem, diz<br />
Deleuze, quer dizer nada[71] .<br />
1.7.2) Outras relações entre linguagem e subjetivida<strong>de</strong> na obra <strong>de</strong> Daniel Stern.<br />
Existe algum tipo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> self[72] antes da aquisição da linguagem ? Esta é a questão<br />
que abre o livro <strong>de</strong> Daniel Stern, O Mun<strong>do</strong> Interpessoal <strong>do</strong> Bebê[73]. Critican<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong> um<br />
perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> indiferenciação mãe - filho que o advento da linguagem viria romper, Stern nos fala <strong>de</strong><br />
quatro senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> self: O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> self emergente (nascimento até 2 meses), senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> self<br />
nuclear (2 a 6 meses), senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> self subjetivo, (7 e os 15 meses), e o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> self verbal, que<br />
emerge a partir daí. <strong>Uma</strong> vez constituí<strong>do</strong>, cada senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> self segue ativo e em pleno<br />
funcionamento durante a vida, to<strong>do</strong>s crescen<strong>do</strong> e coexistin<strong>do</strong>.<br />
Nestes selves pré-verbais, há modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> contacto com o mun<strong>do</strong> que passam<br />
sobretu<strong>do</strong> pelo afeto - tanto <strong>do</strong> bebê com relação ao mun<strong>do</strong>, quanto no relacionamento mãe-bebê.<br />
O conceito <strong>de</strong> percepção amodal se refere à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se comunicarem entre si diversos<br />
planos da percepção (táctil, visual, auditiva, temporal).<br />
O conceito <strong>de</strong> entonação afetiva se refere à comunicação mãe bebê, que se dá a partir <strong>de</strong><br />
uma capacida<strong>de</strong> da mãe <strong>de</strong> se colocar <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> no lugar <strong>do</strong> bebê a partir <strong>do</strong> que lhe informa<br />
a via <strong>do</strong> afeto. Para Stern, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar fusiona<strong>do</strong>, <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> outro é uma<br />
aquisição e não um fracasso, sen<strong>do</strong> primária a emergência simultânea <strong>do</strong> si mesmo e <strong>do</strong> outro,<br />
como <strong>do</strong>is focos sempre presentes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento.<br />
<strong>Uma</strong> das riquezas da contribuição <strong>de</strong> Stern é a <strong>de</strong> pensar a emergência da subjetivida<strong>de</strong> e<br />
da autonomia sem a linguagem, apontan<strong>do</strong> que muitos <strong>do</strong>s conflitos atribuí<strong>do</strong>s pela tradição<br />
psicanalítica à primeira infância são <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discurso, são projeções <strong>do</strong><br />
adulto falante sobre a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> bebê.<br />
Estes selves pré-verbais, no entanto, são unida<strong>de</strong>s subjetivas diferentes das <strong>do</strong> adulto, que<br />
não as compreen<strong>de</strong> porque sempre codifica sua experiência verbalmente. Stern fala também <strong>de</strong><br />
sistemas mnêmicos não basea<strong>do</strong>s na linguagem que operam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> - a memória
motriz por exemplo, que permite ao bebê construir uma história afetiva, motora, perceptiva -<br />
campos estes que se agenciam entre si <strong>de</strong> forma amodal.<br />
A experiência amodal, que caracteriza o início da infância, é múltipla, pluridimensional, no<br />
senti<strong>do</strong> da conjugação <strong>de</strong> diferentes modalida<strong>de</strong>s peceptivas que se comunicam entre si,<br />
configuran<strong>do</strong> um tipo <strong>de</strong> contacto com o mun<strong>do</strong> que é mais tar<strong>de</strong> lineariza<strong>do</strong>, unidimencionaliza<strong>do</strong>,<br />
reduzi<strong>do</strong>, com o advento da linguagem. <strong>Uma</strong> parte <strong>de</strong>sta experiência estará perdida[74].<br />
To<strong>do</strong> o esforço <strong>de</strong> Stern é o <strong>de</strong> tratar, com conceitos como entonação, experiência amodal,<br />
a conduta como expressão e não como signo ou símbolo"[75].<br />
Se por um la<strong>do</strong> a aquisição da linguagem é um progresso no senti<strong>do</strong> da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estar com o outro, facilitan<strong>do</strong> a socialização, por outro implica em perdas. Determinadas<br />
experiências serão selecionas para serem comunicadas, outras não. Este processo, <strong>de</strong> seleção <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminadas experiências <strong>de</strong> si comunicáveis ao outro, já começara no âmbito <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> si<br />
mesmo pré-verbais - <strong>de</strong>terminadas experiências são entonadas afetivamente pela mãe num<br />
processo seletivo. Com a verbalização este processo se acelera - há um si mesmo não verbal que<br />
permanece ativo, intraduzível. Porém todas as linguagens produzem este tipo <strong>de</strong> perda, ou<br />
haveríamos mais uma vez que falar <strong>de</strong> diferentes línguas ou regimes <strong>de</strong> signos ?<br />
Esforços não usuais como da psicanálise ou da poesia e literatura po<strong>de</strong>m reclamar para a<br />
linguagem parte <strong>de</strong>ste território (<strong>do</strong> fluxo amodal) porém não no senti<strong>do</strong> linguístico habitual ... mas<br />
a própria natureza da palavra como especifica<strong>do</strong>ra da modalida<strong>de</strong> sensorial ... em contraste com<br />
a não especificação amodal, e também como especifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> episódio generaliza<strong>do</strong> ao invés <strong>do</strong><br />
exemplo específico, garante que haverá pontos <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrapagem ... as palavras (em alguns casos)<br />
isolam a experiência <strong>do</strong> fluxo amodal no qual foi originalmente experimentada .. a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong><br />
da experiência introduzida através da palavra isola a experiência <strong>de</strong> seu fluxo amodal original ...<br />
.[76]<br />
Se trata fundamentalmente, é o que <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>mos <strong>do</strong> texto acima, da linguagem<br />
representacional. Este regime <strong>de</strong> signos introduz um fosso entre o campo afetivo e multsensorial<br />
da experiência e o plano da linguagem, que atua por generalização da experiência vivida, toman<strong>do</strong><br />
alguns eventos específicos como mo<strong>de</strong>lo para estas generalizações.<br />
Através <strong>de</strong>stas idéias <strong>de</strong> Stern abre-se, por outro la<strong>do</strong>, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> redimencionar o<br />
lugar da linguagem no processo <strong>de</strong> produção da subjetivida<strong>de</strong>. A linguagem (self verbal) só se<br />
organizará bem mais tardiamente, sobre as bases estabelecidas pelo self pré-verbal, o que faz <strong>do</strong><br />
campo verbal um campo cujos efeitos sobre a subjetivida<strong>de</strong> encontram certos limites<br />
O fato <strong>de</strong> que a linguagem é po<strong>de</strong>rosa na <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> self ... e <strong>de</strong> que os pais têm um<br />
amplo papel nesta <strong>de</strong>finição não quer dizer que a criança possa ser remo<strong>de</strong>lada à vonta<strong>de</strong> por<br />
estas forças e tornar-se totalmente a criação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos e planos <strong>do</strong>s outros. O processo <strong>de</strong><br />
socialização, para o bem ou para o mal, tem limites impostos pela biologia da criança[77].<br />
A criança não po<strong>de</strong> ser efeito <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> outro. Os limites para isso estão da<strong>do</strong>s pelo<br />
processo anterior à linguagem <strong>de</strong> produção <strong>do</strong> self, ou <strong>de</strong> autonomização. Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r<br />
estes "limites biológicos" no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste processo vital <strong>de</strong> subjetivação anterior à aquisição da<br />
linguagem e que a possibilita.<br />
Para Stern, numa concepção próxima a <strong>de</strong> Bergson, a linguagem como produção social se<br />
liga à produção <strong>do</strong> negativo. (Pensamos que estas colocações se aplicam principalmente, à<br />
linguagem representacional e ao regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante.) Através da linguagem, diz<br />
Stern, adquire-se muitos canais em que a experiência po<strong>de</strong> ser negada; ou seja, ligações po<strong>de</strong>m<br />
ser estabelecidas entre palavras sem correspondência no mun<strong>do</strong> da experiência - a neurose é
uma patologia <strong>do</strong> self verbal - e a psicanálise uma teoria que se aplica principalmente a este plano<br />
da experiência, mas que não enten<strong>de</strong> o <strong>do</strong>mínio da experiência não verbal ou não<br />
representacional.<br />
Pois entre a experiência vivida e representada há um fosso que não po<strong>de</strong> ser preenchi<strong>do</strong>.<br />
Assim, o relato <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> através <strong>de</strong> palavras, ou a expressão verbal <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral não diz<br />
<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> - o plano da linguagem, ten<strong>do</strong> um funcionamento autônomo, produz associações<br />
simbólicas, ou seja, toma rumos próprios que não correspon<strong>de</strong>m ou são capazes <strong>de</strong> se conectar a<br />
contento com a experiência vivida.<br />
Com a linguagem a criança se <strong>de</strong>scola <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> imediato, particular - o que tem as<br />
vantagens da ampliação da vida social - no senti<strong>do</strong> da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar com o outro, <strong>de</strong><br />
compartilhar, e <strong>de</strong>svantagens, no senti<strong>do</strong> da redução <strong>do</strong> campo afetivo da experiência.<br />
Não se trata <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar a via da linguagem na clínica, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>stroná-la <strong>de</strong> seu lugar<br />
central na produção da subjetivida<strong>de</strong>. Reconhecen<strong>do</strong> os inconvenientes <strong>do</strong> regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong><br />
significante como via <strong>de</strong> expressão <strong>do</strong>s afetos, sublinhamos a partir da contribuição <strong>de</strong> Stern, que<br />
a prática clínica não po<strong>de</strong> se reduzir a uma cura pela palavra, nem a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> analista como<br />
uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta. Quan<strong>do</strong> Stern se refere a um fluxo da experiência amodal, que é<br />
pluridimensional, ele aponta para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falarmos em semióticas assignificantes, como<br />
fazem Deleuze e Guattari, para que possamos contactar este outro plano da experiência que é<br />
uma multiplicida<strong>de</strong> enquanto conjuga vários mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> apreensão sensorial. Um bebê <strong>de</strong>ve ser<br />
compreendi<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s afetos <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> que estabelece com o mun<strong>do</strong>. A subjetivida<strong>de</strong><br />
emergente não é frágil e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, nem um caos a ser organiza<strong>do</strong> pela linguagem. É potente<br />
por ser vida em esta<strong>do</strong> nascente, <strong>do</strong>tada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já <strong>de</strong> seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> organização, <strong>de</strong> conjugação<br />
<strong>de</strong> afetos, <strong>de</strong> meios para estabelecer contactos afetivos e portanto <strong>de</strong> conhecer a realida<strong>de</strong>. Não é<br />
o contacto com o outro, por isso mesmo, que estabelecerá a diferenciação subjetiva, mas, sen<strong>do</strong> a<br />
emergência da subjetivida<strong>de</strong> primeira, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> "estar com" é simultânea, como <strong>do</strong>is focos<br />
paralelos, à emergência mesma da subjetivida<strong>de</strong>.<br />
Até aqui fizemos referência à concepção <strong>de</strong> inconsciente com a qual trabalhamos, sem a<br />
explicitarmos. É o que faremos na parte II. Nela retomaremos outras questões importantes, tais<br />
como a <strong>do</strong> negativo pensa<strong>do</strong> no plano <strong>de</strong> imanência, que permitirá esclarecer nossa concepção <strong>do</strong><br />
trágico. Voltaremos às nossas questões sobre a linguagem colocan<strong>do</strong>-a como um <strong>do</strong>s<br />
componentes <strong>do</strong> agenciamento e não como o componente principal. A noção <strong>de</strong> agenciamento se<br />
constitui no próprio mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo como produção - este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar nada tem a<br />
ver com uma reconstituição <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, nem com a construção <strong>de</strong> um teci<strong>do</strong> histórico. A clínica<br />
que aqui construímos não é uma talking cure no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que não crê excessivamente na<br />
linguagem como meio para contactar o plano da produção <strong>de</strong>sejante, mas procura forçar ou<br />
construir um abertura da linguagem para o fora. A parte II <strong>de</strong>ste trabalho po<strong>de</strong> ser anunciada como<br />
explicitação da noção <strong>de</strong> inconsciente com a qual trabalhamos. Aparecerão vários nomes para<br />
<strong>de</strong>signar este inconsciente - mas não consi<strong>de</strong>ramos, como já mencionamos, esta multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
nomes incoerente. Os nomes pertencem a um reino em constante mudança. O uso <strong>de</strong>sta profusão<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>signações para o inconsciente - virtual, campo da produção <strong>de</strong>sejante, intempestivo, campo<br />
<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, campo <strong>do</strong> afeto, fora, sexo, ou como aparecerá na parte III - memória imemorial,<br />
plano <strong>de</strong> imanência, coletivo, correspon<strong>de</strong> ao lugar que a palavra ocupa em nossa clínica. Reino<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>vir e não reino da verda<strong>de</strong>.<br />
<strong>Uma</strong> última menção aos <strong>do</strong>is vetores freudianos - o que vai <strong>do</strong> presente ao passa<strong>do</strong> (apostieriori)<br />
e <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ao presente: se o primeiro <strong>de</strong>les nos parece criticável por ter leva<strong>do</strong> à<br />
construção da perspectiva estrutural na clínica - que exclui o tempo e o campo das intensida<strong>de</strong>s -<br />
mantemos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se trabalhar com "outras linguagens" que possam se conectar<br />
melhor com o tempo como transformação ou com o <strong>de</strong>vir, o que também significa manter <strong>de</strong><br />
alguma forma a pertinência <strong>de</strong>ste primeiro vetor. Neste caso, teríamos que prescindir também das<br />
categorias gerais pré-mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> inconsciente. Quanto ao segun<strong>do</strong> vetor, pensamos que o<br />
Freud arqueólogo teve o mérito <strong>de</strong> manter o tempo em sua teoria <strong>do</strong> aparelho psíquico e a<br />
sobrevivência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> no presente, muito embora, para ele, o acesso ao passa<strong>do</strong> se dê pela<br />
via da representação, que <strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista impossibilita pensar o tempo como criação.
Parte II<br />
O Campo da Produção Desejante<br />
2.1) O Intempestivo Como Campo da Produção Desejante<br />
Fizemos menção na parte I a uma concepção <strong>de</strong> inconsciente na qual ele se constitui como<br />
campo sempre primeiro em relação às formas - campo a partir <strong>do</strong> qual são engendradas as formas<br />
mesmas. Eis porque este inconsciente não se constitui a partir <strong>de</strong> categorias universais nem se<br />
estrutura como linguagem ou escritura, mas é pura produção. A partir <strong>de</strong> tal concepção, a tarefa<br />
clínica passa, por certo, por se colocar em sintonia ou em relação <strong>de</strong> imanência com este plano.<br />
Ou, como po<strong>de</strong>ríamos dizê-lo, por tomar a produção <strong>de</strong>sejante como prima<strong>do</strong>. A clínica se torna<br />
também pura produção.<br />
Retomemos nossa discussão sobre a utilida<strong>de</strong> da história na clínica, <strong>de</strong>sta vez a partir da<br />
noção <strong>de</strong> esquecimento em Nietzsche. A partir <strong>de</strong>sta discussão, veremos o plano <strong>do</strong> intempestivo<br />
ou a-histórico como o próprio plano da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Existiria em Freud a noção <strong>de</strong> esquecimento? Consi<strong>de</strong>ramos que não há na teoria freudiana<br />
uma faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> esquecimento propriamente dita, tal como Nietzsche a propõe. No entanto, este<br />
é um tema que atravessa, por outras vias, a teoria e a clínica freudianas.
Retomemos o Projeto para uma <strong>Psicologia</strong> Científica (1895) para uma discussão sobre a<br />
memória: um sistema mnêmico registra as impressões recebidas, ou as idéias relacionadas ao<br />
evento traumático, e estas memórias, constituin<strong>do</strong> um sistema fora da consciência, fazem com<br />
que o histérico se coloque diante <strong>de</strong> novas impressões com afetos antigos, ou com que sofra <strong>de</strong><br />
reminiscências. Um outro grupo <strong>de</strong> neurônios, apenas <strong>de</strong>ixa passar a estimulação sem registrar<br />
nada que provém da percepção. Esta separação entre neurônios especializa<strong>do</strong>s em registrar e<br />
neurônios especializa<strong>do</strong>s em "<strong>de</strong>ixar passar" evi<strong>de</strong>ncia uma preocupação em possibilitar que as<br />
novas impressões possam penetrar neste sistema sem estarem contaminadas por velhas<br />
impressões.<br />
No Bloco Mágico (1924) a questão da separação entre um sistema <strong>de</strong> percepção e um<br />
sistema <strong>de</strong> registro também está colocada. A importância <strong>de</strong>sta separação entre os <strong>do</strong>is sistemas<br />
aponta <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> para a preocupação em manter no aparelho psíquico uma superfície aberta<br />
para o novo, não contaminada por reminiscências. Nesta perspectiva, o passa<strong>do</strong> é algo <strong>de</strong> que se<br />
sofre. E a cura coinci<strong>de</strong> com restaurar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esquecer. A neurose po<strong>de</strong>ria ser<br />
consi<strong>de</strong>rada como uma avaria <strong>de</strong>ste aparelho, já que os histéricos sofrem <strong>de</strong> reminiscências,<br />
reagin<strong>do</strong> diante <strong>de</strong> novas impressões com afetos antigos[78].<br />
O trabalho clínico se dá através <strong>de</strong> um "lembrar para esquecer". A clínica freudiana da<br />
histeria po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma cura pela memória, ou pela reconstituição da memória<br />
histórica. Vimos na parte I que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Freud, este fazer história na clínica tomou outros<br />
contornos, sublinhan<strong>do</strong>-se o aspecto construtivo mais <strong>do</strong> que o reconstitutivo. Na perspectiva<br />
estrutural, o "colocar em palavras" é o objetivo da clínica, não importan<strong>do</strong> mais quan<strong>do</strong> tenha<br />
ocorri<strong>do</strong> o que o cliente relata.<br />
Analisemos a concepção nietzschiana <strong>de</strong> esquecimento com o objetivo <strong>de</strong> continuar nossa<br />
problematização quanto à utilida<strong>de</strong> da história na clínica. Também a partir <strong>do</strong> esquecimento<br />
retornaremos ao que nos referimos como o prima<strong>do</strong> da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Em Da Utilida<strong>de</strong> e Inconvenientes da História Para a Vida, Nietzsche diz que o<br />
esquecimento provém das forças da vida, quan<strong>do</strong> em seus momentos <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> criação e<br />
<strong>de</strong> paixão, esquece o passa<strong>do</strong> e a história. Cabe colocar a questão <strong>de</strong> se a noção <strong>de</strong><br />
esquecimento implica numa total <strong>de</strong>svalorização da história. É certo que em vários momentos no<br />
texto Nietzsche parece criticar radicalmente o culto alemão e europeu pela razão e pela história -<br />
mas é sempre um excesso <strong>de</strong> história o que é critica<strong>do</strong>, ou um certo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> fazer história - a<br />
história enquanto obra da razão, a história enquanto uma tentativa <strong>de</strong> se apropriar <strong>do</strong> instante<br />
cria<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> escrever leis para seu surgimento e <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, matá-lo em seu nasce<strong>do</strong>uro.<br />
Há, no entanto, uma história que po<strong>de</strong> ser útil: aquela que surge <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong><br />
imanência com a vida, aquela praticada pelo que gera a vida e não apenas a conserva. Em que<br />
consiste a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r? Tal ativida<strong>de</strong> consiste em impor uma organização ao <strong>de</strong>vir -<br />
que po<strong>de</strong> ser boa se é a vida quem a governa. No entanto, se este ponto <strong>de</strong> vista organiza<strong>do</strong>r,<br />
pragmático e calculista ocupa o primeiro lugar, ou se substitui a vida em grau <strong>de</strong> importância,<br />
passa a impedir a mudança. De que maneira?<br />
Esta ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cálculo, <strong>de</strong> organização diante da vida, nos leva a buscar o passa<strong>do</strong> para<br />
encontrar respostas para o presente. No entanto, apenas o construtor <strong>do</strong> presente po<strong>de</strong> voltar-se<br />
para o passa<strong>do</strong> - e quan<strong>do</strong> o faz, tem to<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> julgá-lo, já que é assim que se criam novos<br />
valores, ou se faz história no "bom senti<strong>do</strong>", no senti<strong>do</strong> da criação <strong>do</strong> novo. O passa<strong>do</strong> toma<strong>do</strong><br />
numa perspectiva poética, oracular - a história como obra <strong>de</strong> arte - apenas <strong>de</strong>sta perspectiva<br />
po<strong>de</strong>m os ensinamentos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ser toma<strong>do</strong>s em consi<strong>de</strong>ração.<br />
Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer história <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> plano <strong>de</strong> imanência ou da vida recorrem à história<br />
como que para se assegurar <strong>de</strong> que se produza apenas história e não acontecimentos. Estes que<br />
recorrem à história com esta finalida<strong>de</strong>, tornam-se passivos e retrospectivos - ao buscar<br />
ensinamentos no que já foi para viverem o que está sen<strong>do</strong>, querem, em última análise, assegurarse<br />
<strong>de</strong> que continuarão a viver como sempre viveram, ser como sempre foram. O tédio é a uva<br />
mais preciosa, diz Nietzsche, que po<strong>de</strong> ser colhida pelo <strong>do</strong>ente <strong>de</strong> história.
Como escapar <strong>de</strong> tal <strong>do</strong>ença? Ha uma digestão a ser feita - há que ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o grau<br />
em que a força da vida conserva sua plasticida<strong>de</strong>, o grau em que po<strong>de</strong> incorporar o passa<strong>do</strong> (o<br />
conheci<strong>do</strong>) e o estranho ou o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, cicatrizar feridas, substituir o perdi<strong>do</strong>, dar nova forma<br />
a formas <strong>de</strong>struídas. Em última análise, a <strong>do</strong>ença histórica, que provém <strong>de</strong>sta não digestão <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong>, expressa o inconformismo com o <strong>de</strong>vir[79], com o fato <strong>de</strong> nunca se repetirem na vida os<br />
mesmos acontecimentos.<br />
O conhecimento, a ciência, é uma das ferramentas na produção <strong>de</strong>stas maneiras <strong>de</strong><br />
paralisar o <strong>de</strong>vir[80]- por exemplo, quan<strong>do</strong> antes que ocorra uma batalha, esta já está no papel,<br />
calculada pelo estrategista militar, prevista, e portanto morta no que po<strong>de</strong> conter <strong>de</strong> imprevisível.<br />
O instante cria<strong>do</strong>r, ou o intempestivo, é da<strong>do</strong> pelo acesso a um outro plano. Se na Segunda<br />
Consi<strong>de</strong>ração Intempestiva po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>nominar genericamente este plano como plano da vida,<br />
posteriormente, na obra <strong>de</strong> Nietzsche, vida passa a ser vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência. Po<strong>de</strong>ríamos também<br />
nos referir a este outro plano como plano da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Assim, quan<strong>do</strong> a história produz o futuro ela serve <strong>de</strong> ferramenta para a ação, como nos<br />
momentos em que os povos tomam um herói <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para construir o futuro. Por exemplo, o<br />
herói da in<strong>de</strong>pendência cubana José Martí[81], cuja memória é resgatada no momento da<br />
revolução socialista cubana <strong>de</strong> 1959. José Marti lutava pela in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> Cuba e<br />
Porto Rico da Espanha, e também contra a anexação da ilha aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, questão que já<br />
se colocava no final <strong>do</strong> século XIX, quan<strong>do</strong> foi funda<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong> Revolucionário Cubano, em<br />
1892. <strong>Uma</strong> outra frente <strong>de</strong> suas lutas era o racismo, ou a tendência existente em Cuba <strong>de</strong> separar<br />
os interesses políticos <strong>de</strong> negros e brancos. Muitas das ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> Marti são retomadas no<br />
momento da revolução li<strong>de</strong>rada por Fi<strong>de</strong>l Castro, Raul Castro e Camilo Cienfuegos e após seu<br />
triunfo, referências à figura <strong>de</strong> José Martí são presença constante na paisagem cubana pósrevolucionária.<br />
Mas o essencial não foi repetir os feitos <strong>do</strong> herói <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas contactar-se<br />
com o que havia <strong>de</strong> intempestivo em José Marti. A história não está propriamente se repetin<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> os heróis <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> são chama<strong>do</strong>s - o que é realmente importante é que o intempestivo,<br />
ou o plano da vida tenha si<strong>do</strong> contacta<strong>do</strong> por esta via.<br />
O <strong>do</strong>ente freudiano <strong>do</strong>s primeiros escritos <strong>de</strong> Freud pa<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> afetos represa<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
natureza sexual e necessitava ab-reagir para <strong>de</strong>sfazer este núcleo <strong>de</strong> memória inacessível à<br />
consciência e produtor <strong>de</strong> sintomas. A reconstituição histórica pontual <strong>do</strong> que levou a este<br />
represamento afetivo o leva a <strong>de</strong>sfazer este núcleo <strong>de</strong> memória, mediante a ab-reação. A história<br />
é aqui utilizada para contactar o plano <strong>do</strong>s afetos e produzir ab-reação.<br />
Porque <strong>de</strong>vem os afetos ser ab-reagi<strong>do</strong>s? Ou porque quan<strong>do</strong> represa<strong>do</strong>s eles fazem<br />
a<strong>do</strong>ecer? A resposta a esta questão está na especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aparelho psíquico<br />
construí<strong>do</strong> por Freud. Um aparelho que busca o equilíbrio <strong>de</strong>svencilhan<strong>do</strong>-se das cargas afetivas<br />
para que permaneça num nível <strong>de</strong> tensão o mais baixo possível. Des<strong>de</strong> o Projeto para uma<br />
<strong>Psicologia</strong> Científica[82] Freud já postulava esta idéia <strong>de</strong> que o prazer correspon<strong>de</strong> a um alívio ou<br />
rebaixamento <strong>de</strong> tensões e o <strong>de</strong>sprazer ao seu aumento.<br />
Até que ponto são os afetos valoriza<strong>do</strong>s e como o são nestes primeiros tempos da obra<br />
freudiana, em que Freud trabalha com o mo<strong>de</strong>lo da ab-reação? Embora alguns autores, como<br />
Monique Schnei<strong>de</strong>r, vejam nestes primeiros escritos freudianos um Freud <strong>do</strong> afeto mais <strong>do</strong> que da<br />
representação ou da associação livre, o mo<strong>de</strong>lo da homeostase limita esta valorização, pois se<br />
atrela à idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>scarregar afetos ou livrarmo-nos <strong>de</strong>le. Esta concepção não po<strong>de</strong><br />
assim correspon<strong>de</strong>r verda<strong>de</strong>iramente a uma valorização <strong>do</strong> afeto, que é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> muito mais<br />
como um estorvo <strong>do</strong> que como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>[83].<br />
No momento <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong> Projeto Freud trabalha com um aparelho regi<strong>do</strong> por um<br />
princípio <strong>de</strong> evitação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sprazer, mais <strong>do</strong> que <strong>do</strong> prazer. Por outro la<strong>do</strong>, os estímulos que<br />
po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sequilibrar este aparelho vêm pre<strong>do</strong>minantemente <strong>do</strong> exterior, já que os estímulos<br />
endógenos são débeis neste momento <strong>de</strong> sua teorização[84]. É certamente diferente a força <strong>do</strong>s<br />
estímulos internos em As Pulsões e Seus Destinos (1915), pois Freud encontrará neles uma fonte<br />
da qual não se po<strong>de</strong> fugir, o que é possível no caso <strong>do</strong>s estímulos externos. Esta outra valorização<br />
<strong>do</strong> pulsional que aparece no texto da Metapsicologia, é consi<strong>de</strong>rada por Strachey como um<br />
processo que encontra seu ponto culminante na chamada segunda tópica freudiana, com a noção
<strong>de</strong> Id. Entretanto, a produção <strong>de</strong>sejante na segunda tópica está penetrada, como vimos, por uma<br />
tendência para o negativo - a pulsão <strong>de</strong> morte.<br />
Haverá em Freud um "plano <strong>do</strong> intempestivo" próximo ao <strong>de</strong> Nietzsche? Não, porque se a<br />
cura da neurose se dá mediante a recordação <strong>do</strong> acontecimento traumático e abreação <strong>de</strong> afetos<br />
reprimi<strong>do</strong>s (nos primórdios da psicanálise) o que se quer é acalmar estes afetos, reduzir ao<br />
mínimo sua tensão. Quan<strong>do</strong> Nietzsche se refere ao intempestivo, se refere a um plano <strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong>, a forças que não po<strong>de</strong>m ser acalmadas ou freadas. Vida é intensida<strong>de</strong> e luta,<br />
enquanto para Freud, vida é equilíbrio.<br />
A segunda tópica é também o momento da transformação, na teoria freudiana, da teoria <strong>do</strong><br />
masoquismo. Para Reich, é quan<strong>do</strong> Freud se afasta da sua própria <strong>de</strong>scoberta: a etiologia sexual<br />
da neurose. O masoquismo era visto até então como uma transformação <strong>do</strong> sadismo. A<br />
agressivida<strong>de</strong> dirigida ao exterior e a energia sexual é que eram primários. A idéia <strong>de</strong> um<br />
masoquismo primário correspon<strong>de</strong> a um <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento clínico <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> pulsão <strong>de</strong> morte -<br />
ela coloca na base <strong>do</strong> psiquismo uma tendência para o sofrimento, associada à culpa. Ora, a<br />
teorização anterior, especialmente nos Três Ensaios fazia da culpa um efeito da repressão sexual,<br />
ou seja, um efeito <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota no que diz respeito às lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. A angústia<br />
como causa <strong>do</strong> recalque - eis aí o ponto <strong>de</strong> apoio <strong>de</strong> idéias sobre uma angústia básica no homem,<br />
que aparecem na teoria <strong>do</strong> sinal <strong>de</strong> angústia apresentada em Inibição, Sintoma e Angústia (1926).<br />
<strong>Uma</strong> clínica que coloca o negativo na base, como princípio constitutivo <strong>do</strong> homem, é certamente<br />
diversa daquela que vê o negativo como consequência <strong>do</strong> recalque ou repressão (a distinção não<br />
é aqui importante) <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>de</strong> fatores políticos, sociais. E no que diz respeito à valorização <strong>do</strong><br />
plano da produção <strong>de</strong>sejante, uma clínica que vê o negativo como constitutivo <strong>do</strong> homem implica<br />
numa concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo diversa daquela que vê o <strong>de</strong>sejo como pura positivida<strong>de</strong>.<br />
2.2) O Sexual Como Campo da Produção Desejante<br />
Freud nos fala <strong>de</strong> uma libi<strong>do</strong> ou uma energia sexual que é diversa <strong>do</strong> instinto por sua<br />
plasticida<strong>de</strong> - o objeto sexual não está da<strong>do</strong>, nem o mo<strong>do</strong> pelo qual o prazer sexual será obti<strong>do</strong>,<br />
mas é a educação que o mo<strong>de</strong>lará, construin<strong>do</strong> diques (pu<strong>do</strong>r, repugnância, moral) que dirigirão o<br />
curso <strong>de</strong>sta corrente libidinal. Porém esta mo<strong>de</strong>lagem sempre fracassa em certa medida, como<br />
uma corrente que escapa por caminhos laterais. Assim, para Freud, a homossexualida<strong>de</strong> seria tão<br />
problemática quanto a heterossexualida<strong>de</strong>, no senti<strong>do</strong> que ambas são construções da família e <strong>de</strong><br />
outras instituições sociais, na mo<strong>de</strong>lagem <strong>de</strong>ste corpo libidinal. Outras organizações sexuais são<br />
possíveis a partir <strong>de</strong>sta polimorfia inicial. Esta é uma perspectiva presente nos Três Ensaios para<br />
<strong>Uma</strong> Teoria da Sexualida<strong>de</strong>. A idéia <strong>de</strong> corrente libidinal é diversa da economia sexual que Freud<br />
traça nos primeiros escritos. O mo<strong>de</strong>lo da ab-reação que rege toda a economia <strong>do</strong>s afetos no<br />
Freud <strong>do</strong>s primeiros escritos limita-se à idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>scarregar afetos, ou livrarmo-nos<br />
<strong>de</strong>les.
O mo<strong>de</strong>lo da <strong>de</strong>scarga, não é certamente o único com que Freud trabalha ao longo <strong>de</strong> sua<br />
obra. O mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong> dique e da corrente é diferente <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo da <strong>de</strong>scarga, porque a corrente <strong>do</strong><br />
rio não cessa, ou seja, a vitória <strong>do</strong> dique sobre o rio é sempre parcial. Neste mo<strong>de</strong>lo, as questões<br />
da libi<strong>do</strong> estão mais próximas das lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, da relação <strong>do</strong> sexual com a educação<br />
repressiva. No mo<strong>de</strong>lo da <strong>de</strong>scarga o afeto é algo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos nos livrar. É um incômo<strong>do</strong>, e<br />
uma vez <strong>de</strong>scarrega<strong>do</strong>, a luta, por assim dizer, está terminada. No mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong> rio, talvez haja<br />
transbordamentos ou enchentes que permitem alterar ou até <strong>de</strong>struir os diques.<br />
Na a<strong>do</strong>lescência, a polimorfia sexual da criança ce<strong>de</strong>rá lugar (não sempre, como apontam<br />
os diversos <strong>de</strong>svios quanto ao fim e quanto ao alvo da libi<strong>do</strong>) a uma pre<strong>do</strong>minância da região<br />
genital sobre as outras regiões <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> prazer sexual, que passarão à<br />
categoria <strong>de</strong> "prazeres preliminares". O prima<strong>do</strong> da zona genital sobre as <strong>de</strong>mais zonas erógenas<br />
é um ponto polêmico da teoria sexual <strong>de</strong> Freud. Reich é, no entanto, mais genitalizante e<br />
totalizante que Freud, com sua insistência no prazer sexual genital como norma e na sexualida<strong>de</strong><br />
pré-genital como ligada à patologia psíquica.<br />
Po<strong>de</strong>mos ver o pre<strong>do</strong>mínio genital não como uma regra geral, mas como um <strong>do</strong>s percursos<br />
singulares da libi<strong>do</strong>. A sexualida<strong>de</strong> humana seria algo plástico, móvel, não uma estrutura imutável.<br />
Na sexualida<strong>de</strong> feminina, para Freud, o que muitas vezes ocorre, é que este "prima<strong>do</strong>" não se<br />
estabelece - muitas mulheres têm mais prazer nas chamadas preliminares que na própria relação<br />
sexual. Por outro la<strong>do</strong>, muitos homens genitalizam <strong>de</strong> forma exagerada sua sexualida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>serotizan<strong>do</strong> o corpo como um to<strong>do</strong> e a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo da <strong>de</strong>scarga como único mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
prazer sexual. Tratar-se-ia, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma sexualida<strong>de</strong> masculina mais plena, <strong>de</strong><br />
reerotizar outras regiões <strong>do</strong> corpo, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgenitalizar, em certa medida.<br />
A idéia <strong>de</strong> que a criança é um "perverso polimorfo" aponta para a postulação <strong>de</strong> uma<br />
multissexualida<strong>de</strong> inicial na teoria freudiana da sexualida<strong>de</strong>. Tal idéia é rica, pois po<strong>de</strong>mos ver as<br />
organizações sexuais como multiplicida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong>, se hierarquizações aparecem, elas não são<br />
estáveis nem po<strong>de</strong>m se configurar como estruturas. A hierarquização das zonas sexuais<br />
apareceriam em <strong>de</strong>corrência da educação repressiva, o que as coloca no campo das lutas <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo.<br />
A idéia <strong>de</strong> uma bissexualida<strong>de</strong> constitucional, por outro la<strong>do</strong>, também presente em Freud,<br />
se liga, por outro la<strong>do</strong>, à concepção <strong>de</strong> par antitético, à uma dialética binária e a uma teoria <strong>do</strong><br />
conflito. Dizer que existe uma porção homem em cada mulher, ou vice versa, aponta para uma<br />
hierarquização - a parte mulher nos homens estaria recalcada, encoberta ... Aqui, novamente, um<br />
pensamento da hierarquia, arborecente e não risomático[85].<br />
A perspectiva dialética <strong>do</strong> conflito se revela estéril na clínica, uma vez que ao se trabalhar<br />
com oposições acaba-se por paralizar os investimentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Ou isto ou aquilo, ou homo ou<br />
hetero, homem/mulher ... A noção <strong>de</strong> livre arbítrio se liga à noção <strong>de</strong> conflito - a sexualida<strong>de</strong> seria<br />
uma questão <strong>de</strong> "escolha". Ora, no campo da produção <strong>de</strong>sejante não somos livres no que diz<br />
respeito a <strong>de</strong>cidir que caminho tomar.<br />
A escolha enquanto ligada à inteligência, à razão, é ineficaz uma vez que o plano da<br />
produção <strong>de</strong>sejante se impõe a nós, é primeiro em relação ao plano da consciência. A<br />
consciência, como diz Deleuze, precisa ser reduzida à modéstia necessária[86] - <strong>de</strong> se<strong>de</strong> <strong>do</strong> eu,<br />
ele <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r a ser apenas leme, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ixar atravessar pela produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Esta é um tipo <strong>de</strong> "uso" da consciência, uma experimentação ou plano para a clínica. O <strong>de</strong>sejo ou<br />
a sexualida<strong>de</strong> (mais tar<strong>de</strong> veremos os inconvenientes <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>nominação) nos coloca sempre<br />
questões <strong>de</strong> construção, <strong>de</strong> planos e não <strong>de</strong> interpretações e <strong>de</strong> escolhas.<br />
A noção <strong>de</strong> ambivalência é, assim, uma noção estéril na clínica, já que ela expressa muito<br />
mais o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma consciência utilitária, legisla<strong>do</strong>ra com relação à produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Seria necessário produzir <strong>de</strong> outra forma as relações entre a consciência e o plano da produção<br />
<strong>de</strong>sejante - uma relação não <strong>de</strong> oposição ou <strong>de</strong> constrangimento, mas <strong>de</strong> coextensivida<strong>de</strong>. A<br />
noção <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> mais a<strong>de</strong>quada à perspectiva que tomamos é aquela ligada à expressão.
O que <strong>de</strong>fine a liberda<strong>de</strong> é um interior e um si mesmo da necessida<strong>de</strong>. Nunca somos livres<br />
em virtu<strong>de</strong> da nossa vonta<strong>de</strong> e daquilo por que ela se regula, mas em virtu<strong>de</strong> da nossa essência e<br />
daquilo que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>corre[87].<br />
Liberda<strong>de</strong> como fruto <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminação rigorosa a partir <strong>do</strong> plano da produção<br />
<strong>de</strong>sejante, <strong>de</strong> cujos imperativos não po<strong>de</strong>mos fugir. Liberda<strong>de</strong> portanto para expressar esta<br />
<strong>de</strong>terminação, para agir <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ela.<br />
Deleuze mostra que ao opormos sadismo e masoquismo estamos per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a<br />
especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> organização sexual[88]. Trata-se <strong>de</strong> uma concepção dialética (a<br />
<strong>do</strong>s pares antitéticos), a qual <strong>de</strong>vemos substituir por uma concepção que permita pensar estas<br />
figuras da sexualida<strong>de</strong> em sua multiplicida<strong>de</strong>. De fato, a concepção Freudiana <strong>de</strong> prima<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
genitais, <strong>de</strong> resolução das pulsões parciais nesta totalização, é o que se constitui no principal<br />
entrave, <strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, à teoria freudiana da sexualida<strong>de</strong>. Já mencionamos que é<br />
possível ver tal pre<strong>do</strong>mínio como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s a<strong>de</strong>stramentos a que o corpo é submeti<strong>do</strong> - mas<br />
sob este corpo mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>, sob o organismo, há o corpo sem órgãos[89] que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> forçar<br />
outras configurações para a produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Os pares antitéticos amor/ódio, ativo/passivo, vida/morte implicam numa certa noção <strong>de</strong><br />
conflito como oposição binária largamente utilizada na clínica. Esta concepção impe<strong>de</strong> que a<br />
positivida<strong>de</strong> da produção <strong>de</strong>sejante ou seu caráter produtivo, seja utilizada em sua plenitu<strong>de</strong>. A<br />
idéia <strong>de</strong> bissexualida<strong>de</strong> está, como vimos, limitada por esta noção <strong>de</strong> conflito.<br />
Freud estava atento a esta questão, quan<strong>do</strong> combate a idéia <strong>de</strong> um hermafroditismo<br />
psíquico - a idéia <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s temos uma porção homem e uma porção mulher. Freud quer<br />
sublinhar que masculino/feminino são pólos conflituais. Mas porque trabalhar com <strong>do</strong>is polos que<br />
se opõem se se po<strong>de</strong> lançar mão da idéia <strong>de</strong> uma polimorfia? Preferimos a idéia <strong>de</strong> uma polimorfia<br />
inicial à <strong>de</strong> uma bissexualida<strong>de</strong> porque nela o campo da sexualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> aparecer como um<br />
campo <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong>, ou on<strong>de</strong> é possível falar <strong>de</strong> formações sexuais instáveis, múltiplas e<br />
acentradas.<br />
A perversão é para Freud <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> um percurso sexual particular e não radicalmente<br />
diversa da sexualida<strong>de</strong> normal - a incurabilida<strong>de</strong> da perversão, já que a satisfação é encontrada<br />
<strong>de</strong> forma plena neste caminho sexual, po<strong>de</strong> ser vista como afirmação, por Freud, da diversida<strong>de</strong><br />
das organizações sexuais, on<strong>de</strong> a genitalização e a heterossexualida<strong>de</strong> são percursos tão<br />
complexos quanto os <strong>de</strong>mais.<br />
A noção <strong>de</strong> zona erógena por certo se refere a um corpo, porém sua limitação é ainda a<br />
referência a um organismo, a uma hierarquização entre zonas erógenas, implicada numa certa<br />
noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. <strong>Uma</strong> sexualida<strong>de</strong> que evolui - <strong>do</strong> oral para o anal, para o fálico, para o<br />
genital. Em que pulsões parciais se unificam ou se totalizam. <strong>Uma</strong> sexualida<strong>de</strong> que se fixa, que<br />
regri<strong>de</strong> ... A concepção <strong>de</strong> fixação, a idéia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento em direção à sexualida<strong>de</strong><br />
adulta, todas essas idéias (também existentes em Freud[90]) vão erigin<strong>do</strong> uma normalida<strong>de</strong><br />
sexual e uma subordinação da sexualida<strong>de</strong> à procriação, às exigências civilizadas, etc.<br />
Um mo<strong>de</strong>lo referi<strong>do</strong> a uma história infantil, em etapas vencidas e aban<strong>do</strong>nadas, ten<strong>do</strong> como<br />
ponto <strong>de</strong> chegada o homem adulto. Um tal mo<strong>de</strong>lo implica também num mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> clínica liga<strong>do</strong> à<br />
recordação <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> infantil. No entanto, como dissemos, as questões da produção<br />
<strong>de</strong>sejante não se ligam à história, mas antes a uma geografia. Retornaremos a este ponto.<br />
Falar <strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> inicial é portanto produzir um campo <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> as<br />
figuras da sexualida<strong>de</strong> aparecem como atualizações. Há que se colocar a questão, no que diz<br />
respeito às formas <strong>de</strong> organização sexual, da relação que estas estabelecem com o plano da<br />
produção <strong>de</strong>sejante - se se trata <strong>de</strong> produção ou anti-produção ou dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, se se trata<br />
<strong>de</strong> expansão ou obstaculização da vida. Pensamos que nem todas as formas <strong>de</strong> organização<br />
sexual servem à vida. Ou como dizem Deleuze e Guattari em Mil Platôs: há que se ter pru<strong>de</strong>ncia<br />
na construção <strong>do</strong> corpo sem órgãos uma vez que po<strong>de</strong>mos encontrar a <strong>de</strong>struição, os buracos<br />
negros[91].
2.2.1) Políticas Sexuais<br />
Passaremos à problematização da sexualida<strong>de</strong> nas teorias freudiana e reichiana, ten<strong>do</strong><br />
como objetivo discutir o grau em que, em cada uma <strong>de</strong>las, a produção <strong>de</strong>sejante é ou não<br />
colocada como prima<strong>do</strong>.<br />
A noção <strong>de</strong> couraça caracterial em Reich se liga à idéia <strong>de</strong> que a sexualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se<br />
tornar compulsiva e vazia por efeito da repressão sexual. Também a couraça caracterial faz com<br />
que se dissociem sexo, trabalho e conhecimento - esferas da vida que po<strong>de</strong>m se articular <strong>de</strong><br />
forma mais harmônica. A sexualida<strong>de</strong> compulsiva e vazia, o trabalho não criativo, compulsivo, o<br />
conhecimento racional e pretensamente apolítico e neutro, são para Reich, também efeitos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminadas políticas sexuais praticadas na vida social.<br />
Retomemos nossa breve comparação entre as teorias <strong>de</strong> Freud e Reich no que diz respeito<br />
à angústia - o homem seria basicamente angustia<strong>do</strong> (Freud) <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à repressão sexual que toda<br />
civilização opera, ou existiriam caminhos diversos para a sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com diferentes<br />
sistemas sociais (Reich). Assim, o homem não teria uma angústia básica, mas ela seria efeito da<br />
repressão sexual e variável <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com diferentes políticas sexuais. A concepção <strong>de</strong> Reich<br />
abre espaço para se pensar o campo da sexualida<strong>de</strong> como um campo político. A idéia <strong>de</strong> Freud<br />
<strong>de</strong> que a civilização é sempre produtora <strong>de</strong> mal estar, além <strong>de</strong> pessimista como frequentemente<br />
se aponta, trabalha com a idéia <strong>de</strong> civilização como idéia geral. Porém seria necessário, para uma<br />
inserção <strong>do</strong> sexo no campo da luta, que particularizássemos a idéia <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> - <strong>de</strong> que<br />
socieda<strong>de</strong> se trata quan<strong>do</strong> falamos da relação entre sexo e socieda<strong>de</strong>?<br />
O momento da elaboração da teoria <strong>do</strong> masoquismo primário se liga, como já vimos, ao<br />
surgimento da hipótese da pulsão <strong>de</strong> morte. As consequências da a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong>sta hipótese para a<br />
clínica psicanalítica são comentadas por Reich em A Função <strong>do</strong> Orgasmo. Na visão <strong>de</strong> Reich, este<br />
foi também, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da clínica, um momento em que se passou a atribuir o fracasso<br />
terapêutico a esta tendência para a morte presente no paciente, em certos casos mais fortemente<br />
que em outros. É a idéia <strong>de</strong> reação terapêutica negativa. O analista estava libera<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua<br />
responsabilida<strong>de</strong> terapêutica, diz Reich, uma vez que se o paciente não se cura é porque há em<br />
sua constituição uma tendência para a evitação <strong>do</strong> prazer, mais <strong>do</strong> que para a busca <strong>do</strong> prazer.<br />
Mas a dificulda<strong>de</strong> a servir <strong>de</strong> pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> para esta discussão era justamente o manejo <strong>do</strong><br />
sexual na clínica[92]. E Reich aponta que muitos analistas, embora a<strong>do</strong>tassem a etiologia sexual<br />
da neurose como princípio teórico da clínica psicanalítica, seguiam evitan<strong>do</strong>-a na prática clínica,<br />
assim como evitavam-na em suas próprias vidas, pautadas por idéias e práticas moralistas com<br />
relação à sexualida<strong>de</strong>[93].<br />
Entretanto, o que nos interessaria afirmar, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da filosofia da diferença, seria<br />
uma luta contrária, uma luta pela afirmação da vida - e o sexo seria uma das vias para esta luta -<br />
levan<strong>do</strong> às últimas consequências um verda<strong>de</strong>iro prima<strong>do</strong> da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Isto passa por retomar as críticas <strong>de</strong> Reich a Freud, sem a<strong>do</strong>tar os méto<strong>do</strong>s clínicos <strong>de</strong><br />
Reich, já que sua teoria permanece ainda presa ao mo<strong>de</strong>lo da homeostase e aos universais tais<br />
como complexo <strong>de</strong> Édipo e a uma certo projeto clínico-ortopédico no campo da sexualida<strong>de</strong>, a<br />
erigir a genitalida<strong>de</strong> como norma e a tomar o sexual num senti<strong>do</strong> excessivamente literal e restrito<br />
ao prazer-satisfação.<br />
No mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong>s diques, é possível ver um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o normal e o<br />
anormal se confun<strong>de</strong>m, ou <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é possível extrair que o prima<strong>do</strong> da zona genital sobre as<br />
<strong>de</strong>mais zonas erógenas, antes <strong>de</strong> ser um mo<strong>de</strong>lo, é uma política sexual, pre<strong>do</strong>minante numa<br />
socieda<strong>de</strong> em que procriação e sexo estão fortemente associa<strong>do</strong>s[94].<br />
Por outro la<strong>do</strong>, para Reich, o homem alegre, que auto regula suas pulsões é mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> mental. É possível, para ele, que a sexualida<strong>de</strong> se auto-regule e que não seja apenas
governada repressivamente, por leis que lhe são exteriores e opostas. Ou seja, várias<br />
modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relação po<strong>de</strong>m ser estabelecidas entre vida sexual e socieda<strong>de</strong>. É a educação, a<br />
repressão levada a efeito pela socieda<strong>de</strong>, através da família, que produz a couraça caracterial. É o<br />
corpo a<strong>de</strong>stra<strong>do</strong>, disciplinariza<strong>do</strong>, subjuga<strong>do</strong> - corpo político, corpo marca<strong>do</strong> pelas relações <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r. Eis a matéria prima <strong>do</strong> psicanalista - o corpo. Mas Reich ainda permanece, como vimos,<br />
preso a um corpo biológico, hierarquiza<strong>do</strong>, a um organismo.<br />
Seria necessário pensar o corpo como intensida<strong>de</strong> - seguin<strong>do</strong> Espinosa no espanto com o<br />
que o corpo po<strong>de</strong>[95]. Assim, há sob o organismo, suas hierarquizações e estratificações, um<br />
corpo intensivo que é pura potencialida<strong>de</strong>. Este plano correspon<strong>de</strong> a uma geografia e não a uma<br />
profundida<strong>de</strong> ou a reconstituições históricas. Tal corpo po<strong>de</strong> ser um outro nome para o<br />
inconsciente pensa<strong>do</strong> como superfície on<strong>de</strong> se dão <strong>de</strong>slocamentos intensivos. Traçar um plano -<br />
produzir um mapa - tais são as questões colocadas para esta clínica das superfícies intensivas.<br />
A noção reichiana <strong>de</strong> estase libidinal merece uma reflexão. Ela torna clara a idéia <strong>de</strong> que a<br />
ausência <strong>de</strong> um exercício concreto da sexualida<strong>de</strong> faz a<strong>do</strong>ecer. Ou seja, na vida atual <strong>do</strong> paciente,<br />
quan<strong>do</strong> este exercício não se dá, a libi<strong>do</strong> é represada e este é um fator atual <strong>de</strong> agravamento <strong>do</strong>s<br />
sintomas, para além <strong>de</strong> outros fatores da or<strong>de</strong>m da história <strong>do</strong> sujeito ou <strong>do</strong> infantil. É evi<strong>de</strong>nte que<br />
tal noção trabalha com a noção <strong>de</strong> prazer enquanto <strong>de</strong>scarga que queremos combater. Mas a<br />
<strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> que fala Reich é o próprio exercício da sexualida<strong>de</strong>. Assim, o sexo cura. Muito<br />
embora Freud também ache que a frustração libidinal leve à neurose, sua idéia <strong>de</strong> cura não se<br />
relaciona tão concretamente ao exercício da sexualida<strong>de</strong>. Em Psicanálise Selvagem (1910) critica<br />
o jovem médico interessa<strong>do</strong> em Psicanálise por recomendar à paciente, como meio para curar sua<br />
angústia, que retome a vida sexual, reconcilian<strong>do</strong>-se com o mari<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> um amante ou<br />
masturban<strong>do</strong>-se[96].<br />
<strong>Uma</strong> estorieta <strong>de</strong> origem alemã ilustra bem a opinião <strong>de</strong> Freud, bem diversa da <strong>de</strong> Reich,<br />
sobre o lugar <strong>do</strong> sexo na vida.<br />
Os habitantes <strong>de</strong> um vilarejo <strong>de</strong> nome Schilda possuíam um cavalo com cuja força e<br />
trabalho estavam satisfeitíssimos. <strong>Uma</strong> só coisa lamentavam: consumia aveia <strong>de</strong>mais e esta era<br />
cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco <strong>de</strong>sse mau costume, diminuin<strong>do</strong> a ração <strong>de</strong> alguns grãos<br />
diariamente, até acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tu<strong>do</strong> correu<br />
magnificamente; o cavalo já estava comen<strong>do</strong> apenas um grãozinho e no dia seguinte <strong>de</strong>via<br />
finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu morto o pérfi<strong>do</strong> animal e os<br />
cidadãos <strong>de</strong> Schilda não sabiam explicar por quê[97].<br />
Longe está Freud <strong>de</strong> ser o a<strong>de</strong>pto <strong>do</strong> pan-sexualismo <strong>de</strong> que era acusa<strong>do</strong> em seu tempo. A<br />
sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser exercida <strong>de</strong> maneira avara, quase como um mal necessário, no que po<strong>de</strong><br />
ser caracteriza<strong>do</strong> como uma política sexual econômica e pru<strong>de</strong>nte. Talvez possamos afirmar que o<br />
homem capaz <strong>de</strong> sublimar sua sexualida<strong>de</strong> é muito mais o mo<strong>de</strong>lo freudiano <strong>de</strong> uma sexualida<strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>al, embora, sem sexo, Freud reconheça que possamos morrer como o pobre cavalo <strong>de</strong> Schilda.<br />
2.2.2) Corpo e Memória<br />
Estamos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a idéia freudiana <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>lagem <strong>do</strong> corpo libidinal por efeito<br />
da educação. Po<strong>de</strong>ríamos complementar este pensamento, a partir <strong>de</strong> Foucault e Nietzsche,<br />
dizen<strong>do</strong> que esta mo<strong>de</strong>lagem, marcação ou disciplinarização <strong>do</strong> corpo implica na construção <strong>de</strong><br />
uma memória. Não se trata porém, <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong> uma evolução <strong>de</strong> fases libidinais<br />
visan<strong>do</strong> uma unificação final, mas antes, da construção <strong>de</strong> uma organização sexual ou <strong>de</strong> um<br />
corpo singular através <strong>de</strong> marcas. E não é a marca como inscrição da or<strong>de</strong>m da linguagem que<br />
nos interessa - tais marcas po<strong>de</strong>rão ganhar ou não uma expressão na linguagem.
Trata-se <strong>de</strong> marca no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s aguilhões a que se refere Cannetti em Massa e<br />
Po<strong>de</strong>r[98]. Marcas esculpidas num corpo atravessa<strong>do</strong> por or<strong>de</strong>ns, corpo assujeita<strong>do</strong>. Criva<strong>do</strong> por<br />
aguilhões das quais ele não se livrará a não ser dan<strong>do</strong> outras or<strong>de</strong>ns, produzin<strong>do</strong> outros aguilhões<br />
numa ca<strong>de</strong>ia generacional.<br />
Dissemos que a produção <strong>de</strong>ste corpo implica na produção <strong>de</strong> uma memória, como ensina<br />
Nietzsche em Genealogia da Moral. De que memória falamos aqui? <strong>Uma</strong> memória corporal, que<br />
po<strong>de</strong>mos chamar com Reich <strong>de</strong> couraça caracterial - memória <strong>do</strong> corpo nas quais se registram as<br />
lutas e <strong>de</strong>rrotas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Po<strong>de</strong>mos aproximar esta memória da produção <strong>do</strong> ressentimento tal<br />
com Nietzsche a <strong>de</strong>screve. <strong>Uma</strong> memória que impe<strong>de</strong> a percepção <strong>do</strong> novo, referin<strong>do</strong>-o sempre<br />
ao passa<strong>do</strong>. O ressentimento é também uma memória corporal - como um estômago que não<br />
termina <strong>de</strong> digerir, <strong>de</strong> livrar-se <strong>do</strong>s seus venenos. Voltaremos mais tar<strong>de</strong> a esta questão.<br />
<strong>Uma</strong> reflexão sobre o infantil <strong>de</strong>ve ser retomada aqui, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da mo<strong>de</strong>lagem <strong>do</strong><br />
corpo - é o corpo infantil que será marca<strong>do</strong> pela educação. Neste senti<strong>do</strong> é possível seguir<br />
manten<strong>do</strong>, como o faz Freud, a importância <strong>do</strong>s anos infantis ou o vetor que vai <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ao<br />
presente, apontan<strong>do</strong> para uma irreversibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo.<br />
Concordamos com Freud quanto à importância funda<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s anos infantis. O infantil po<strong>de</strong><br />
ser visto como solo primeiro on<strong>de</strong> serão aferra<strong>do</strong>s os aguilhões e <strong>de</strong>terminante enquanto produtor<br />
<strong>do</strong>s caminhos e <strong>de</strong>scaminhos sexuais posteriores da subjetivida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos dizer que os anos<br />
infantis são importantes porque são primeiros, porque são a condição empírica da sucessão no<br />
tempo[99], e é uma questão clínica a <strong>de</strong> se saber se as marcas inflingidas a este corpo po<strong>de</strong>m ou<br />
não ser apagadas, atenuadas. Po<strong>de</strong>mos falar em irreversibilida<strong>de</strong> se nos colocamos no plano <strong>do</strong><br />
organismo e <strong>de</strong> suas marcas.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos pensar numa superfície intensiva que continua presente não<br />
obstante a presença <strong>de</strong>stas marcas, ou num plano <strong>de</strong> imanência a ser aciona<strong>do</strong>. Nesta superfície<br />
intensiva ou neste plano <strong>de</strong> imanência, que é o inconsciente, no entanto, convivem a criança que<br />
fui com o adulto que sou - e por isso, não é o que eu fui como criança que <strong>de</strong>termina o adulto que<br />
sou hoje, mas a criança que fui é contemporânea <strong>do</strong> adulto que sou.<br />
Po<strong>de</strong>mos pensar não em apagar ou <strong>de</strong>struir estas marcas, mas em produzir novas<br />
configurações no plano <strong>do</strong> estrato. A vitória <strong>do</strong> aguilhão sobre o corpo não é <strong>de</strong>finitiva, uma vez<br />
que um corpo intensivo continua a funcionar sob o estrato - um corpo sem órgãos sob o<br />
organismo, uma multiplicida<strong>de</strong> ou uma polimorfia sexual sob uma hierarquia pulsional duramente<br />
estabelecida.<br />
É por isso também que as "organizações sexuais" não po<strong>de</strong>m ser pensadas como pontos<br />
<strong>de</strong> chegada <strong>de</strong>finitivos da sexualida<strong>de</strong>, pois o corpo sem orgãos não se reduz à organização.<br />
Po<strong>de</strong>ríamos pensá-las, as figuras da sexualida<strong>de</strong>, como pertencentes ao plano <strong>do</strong> estrato[100].<br />
O infantil em nós é, por um la<strong>do</strong>, uma espécie <strong>de</strong> borda com relação a este plano <strong>de</strong><br />
imanência <strong>do</strong> sexo, e por isso contactar o infantil é contactar esta dimensão intensiva sempre<br />
presente no corpo. Assim, não se trata <strong>do</strong> retorno a uma infância perdida - mas <strong>de</strong> contactar o<br />
infantil em nós em qualquer ida<strong>de</strong>. Produzir, como dizem Deleuze e Guattari, um <strong>de</strong>vir<br />
criança[101]. Por outro la<strong>do</strong>, o infantil é também uma sucessão <strong>de</strong> marcas impostas ao corpo.<br />
Po<strong>de</strong> ser visto nestas duas perspectivas - como história <strong>do</strong>s a<strong>de</strong>stramentos e marcas corporais e<br />
como aquilo que rompe, como plano <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, estes mesmos a<strong>de</strong>stramentos.<br />
Mesmo em Reich o sexo permanece liga<strong>do</strong> a um corpo biológico e a uma visão médicohigiênica<br />
sobre o sexo. O que buscamos, para pensar o sexo na clínica, é, como vimos, um corpo<br />
intensivo e não um organismo. Sexo e não sexualida<strong>de</strong>, já que não se trata <strong>de</strong> uma visão médicohigiênica<br />
ou científica sobre o mesmo. Um sexo que não encontre referência no prazer enquanto<br />
<strong>de</strong>scarga ou satisfação, num prazer que se extingue e se acalma e que permanece restrito à<br />
satisfação <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong>. Mas um sexo pensa<strong>do</strong> enquanto potência, que se ligue a políticas<br />
sexuais que o coloquem no campo da luta, e não no campo das intimida<strong>de</strong>s e <strong>do</strong> psicologismo.
2.2.3) O Sexual e O Não-Sexual<br />
A idéia <strong>de</strong> sublimação através da <strong>de</strong>ssexualização da libi<strong>do</strong> separa a esfera da sexualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> outras esferas da vida. Porém não é necessário, <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, que a libi<strong>do</strong> se<br />
<strong>de</strong>ssexualize para investir o campo da criação artística, da <strong>de</strong>scoberta científica, da política, <strong>do</strong><br />
trabalho. O sexo como campo da produção <strong>de</strong>sejante investe o campo social indistintamente,<br />
tanto em seus aspectos mais individualiza<strong>do</strong>s quanto mais sociais.<br />
Na sublimação a libi<strong>do</strong> transforma-se-ia como <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> para o gasoso. Ao ser<br />
<strong>de</strong>ssexualizada, po<strong>de</strong> investir objetos não sexuais, como a criação artística, a investigação<br />
científica, a política etc. A sublimação é um mecanismo civilizatório - Freud não pára, ao longo <strong>de</strong><br />
sua obra, <strong>de</strong> dizer que a "civilização" se faz contra o instinto sexual, e que para construir os<br />
valores mais caros <strong>de</strong>sta civilização é necessário que o sexual seja reprimi<strong>do</strong> ou transforma<strong>do</strong><br />
pela operação sublimatória em não sexual. A noção <strong>de</strong> sublimação mantém portanto a separação<br />
entre estes mun<strong>do</strong>s - o individual e o coletivo, o sexo e os outros aspectos da vida - a criação, a<br />
política, as instituições ...<br />
A noção <strong>de</strong> sublimação ganha outros contornos a partir da teoria <strong>do</strong> narcisismo. O<br />
mecanismo que permite a sublimação é o investimento libidinal <strong>do</strong> ego que se dá em <strong>de</strong>trimento<br />
<strong>do</strong> investimento no objeto. Freud não fala <strong>do</strong> que não existe: ao dizer que o investimento libidinal<br />
narcísico se dá em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong> investimento libidinal objetal ele aponta para a cisão da<br />
subjetivida<strong>de</strong> contemporânea entre o individual e o coletivo, entre o público e o priva<strong>do</strong>, entre o<br />
sexual e o não sexual.<br />
Entretanto, (eis o que queremos problematizar), ao <strong>de</strong>screver o funcionamento <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> subjetivação, a subjetivida<strong>de</strong> individuada[102], ele o erige como parâmetro para o<br />
funcionamento geral <strong>do</strong> aparelho psíquico, e ao fazê-lo, impe<strong>de</strong> que a intervenção clínica possa<br />
implicar-se na produção <strong>de</strong> outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação.<br />
Para a<strong>do</strong>tarmos uma postura com relação ao sexual compatível com uma concepção que<br />
leve às últimas consequências o prima<strong>do</strong> da produção <strong>de</strong>sejante <strong>de</strong>veremos necessariamente<br />
afirmar a indissociabilida<strong>de</strong> entre sexo e criação, sexo e produção da vida. O Orgon reichiano, em<br />
que pese o cientificismo quase <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> que se reveste tal noção, é uma energia vital não<br />
restrita ao campo sexual, o que é compatível com esta perspectiva[103].<br />
A própria idéia <strong>de</strong> uma energia sexual não favoreceria esta separação entre sexo e vida?<br />
Eis, como mostrou Guattari[104], os limites da concepção <strong>de</strong> pulsão, que embora mais plástica e<br />
menos colada ao corpo biológico, ainda pensa o sexo como liga<strong>do</strong> a uma energia específica, que<br />
se <strong>de</strong>sloca, se <strong>de</strong>scarrega, se fixa, etc. Tal concepção está diretamente implicada com exercícios<br />
<strong>de</strong> saber-po<strong>de</strong>r surgi<strong>do</strong>s no confessionário, liga<strong>do</strong>s à lógica <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>. <strong>Uma</strong> subjetivida<strong>de</strong> que se<br />
auto-examina, para fazer uma administração da sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, o da confissão e<br />
da culpa. Um exercício solitário da sexualida<strong>de</strong>: tal seria a matriz da própria idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo para<br />
Foucault.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, o surgimento da família mo<strong>de</strong>rna, restrita e reduzida ao casal e sua prole,<br />
trouxe consigo a intensificação <strong>de</strong> uma sexualida<strong>de</strong> intra-familiar e ao mesmo tempo a elaboração<br />
<strong>de</strong> interdições culposas à esta intensificação. A duplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste dispositivo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que tanto<br />
incita ao erotismo intra-familiar quanto o interdita é uma das vias <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> uma sexualida<strong>de</strong><br />
edipiana. Daí se pensar numa separação entre sexo e vida no senti<strong>do</strong> mais amplo, uma vez que o<br />
sexo foi sen<strong>do</strong> confina<strong>do</strong> aos limites da família. Nossa hipótese é a <strong>de</strong> que, no mun<strong>do</strong><br />
contemporâneo estamos diante <strong>de</strong>ste duplo exercício: por um la<strong>do</strong> uma sexualida<strong>de</strong> intimizada,<br />
her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> familiarização da sexualida<strong>de</strong>, erigida como norma vazia (vazia porque<br />
a família mo<strong>de</strong>rna é cada vez mais uma abstração, uma pobre coisa penetrada pela mídia e outras<br />
palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s) e por outro, uma sexualida<strong>de</strong> compreendida no dispositivo<br />
da sexualida<strong>de</strong>, campo <strong>de</strong> saber sobre o sexo, campo discursivo, campo <strong>de</strong> incitação à<br />
sexualida<strong>de</strong>, mas não campo <strong>de</strong> erotismo. A função <strong>do</strong> sexo em todas as socieda<strong>de</strong>s que<br />
prece<strong>de</strong>ram a atual sempre foi a <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> laços sociais, <strong>de</strong> territórios. Ao funcionar <strong>de</strong> forma
<strong>de</strong>sterritorializada, o sexo funciona no vácuo, como dirá Henry Miller, como veremos, ou separa<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que ele po<strong>de</strong>.<br />
Eis o que temos a objetar quanto ao uso da palavra sexualida<strong>de</strong> - ela está ligada a uma<br />
certa política social ligada à ciência sexual, a uma lógica <strong>do</strong> normal oposto ao anormal que implica<br />
numa auto-observação e um tipo <strong>de</strong> culpabilização ligada a uma concepção médico-higiênica da<br />
sexualida<strong>de</strong>.<br />
A vivência contemporânea da ameaça da Aids se insere também neste duplo<br />
direcionamento: proliferam os discursos científicos dirigi<strong>do</strong>s à sexualida<strong>de</strong>, erigem-se padrões<br />
rígi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong>, justifican<strong>do</strong> discursos <strong>de</strong> restauração <strong>do</strong> casamento, da abstinência sexual.<br />
A realida<strong>de</strong> da expansão <strong>do</strong> vírus e da incurabilida<strong>de</strong> atual da <strong>do</strong>ença, no entanto, colocam o<br />
exercício da sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma sem prece<strong>de</strong>ntes num campo <strong>de</strong> experimentação on<strong>de</strong> uma<br />
ética da auto-regulação é a única que po<strong>de</strong> apontar caminhos reais . Ou seja, para usar camisinha<br />
ou praticar sexo seguro é necessário apropriar-se <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> experimentação para além <strong>de</strong><br />
regulações heteronômicas.<br />
A <strong>de</strong>fesa da abstinência sexual, o retorno ao casamento são fenômenos que começam a<br />
ser observa<strong>do</strong>s nos dias atuais. O ressurgimento <strong>de</strong>stes discursos e práticas moralistas <strong>de</strong>ve ser<br />
visto como arcaísmo[105]. Não acreditamos na possiblida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retorno a territórios perdi<strong>do</strong>s como<br />
solução para o funcionamento <strong>do</strong> sexo nos dias atuais. A <strong>de</strong>sterritorialização[106] como processo<br />
típico <strong>do</strong> capitalismo produz também este contínua criação <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>-territórios inconsistentes,<br />
correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao movimento <strong>de</strong> reterritorialização. Eles não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong> fato se inscrever sobre o<br />
corpo social. O que se processa ali é uma axiomática (<strong>de</strong>senvolveremos melhor este conceito<br />
mais tar<strong>de</strong>) que se liga ao processo <strong>de</strong> reterritorialização. O que <strong>de</strong>nominamos arcaismo é<br />
justamente a criação <strong>de</strong> um pseu<strong>do</strong>-território, incapaz <strong>de</strong> inscrever os fluxos a não ser <strong>de</strong> um<br />
mo<strong>do</strong> provisório, incapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização maciço que caracteriza a<br />
economia da produção <strong>de</strong>sejante no capitalismo. Eis porque o retorno ao arcaísmo não é solução<br />
para o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> crenças e valores que em escala mundial o capitalismo<br />
processa.<br />
Para uma política sexual verda<strong>de</strong>iramente contemporânea, pensamos ser necessário<br />
pensar em caminhos positivos para um a clínica on<strong>de</strong> o sexo seja posto em relação com a vida,<br />
com os processos vitais da criação. Numa palavra, que o sexo possa funcionar <strong>de</strong> forma<br />
afirmativa, como força <strong>de</strong> engendramento <strong>de</strong> novos territórios e ao mesmo tempo, capaz <strong>de</strong><br />
superar a falsa barreira[107] entre o sexual e o não sexual. Ora, as teorias que pautam a ação <strong>do</strong>s<br />
chama<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res sociais, psi e outros, costumam reificar esta separação entre uma<br />
sexualida<strong>de</strong>-prazer, que apenas quer se satisfazer, distensionar-se, e os outros aspectos da vida.<br />
As idéias <strong>de</strong> Henry Miller expostas em seu livro O Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sexo problematizam a<br />
separação entre vida e sexo. De um la<strong>do</strong> é problematiza<strong>do</strong> o lugar da sexualida<strong>de</strong> no mun<strong>do</strong><br />
contemporâneo, on<strong>de</strong> para Miller, o sexo funciona no vácuo. Funcionar no vácuo é funcionar<br />
isoladamente - a lógica da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prazer e <strong>do</strong>s meios para obtê-lo, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
parafernália das sex-shops até os cuida<strong>do</strong>s com o corpo para que ele se torne erótico. E como<br />
consequência, o surgimento <strong>de</strong> parâmetros para uma auto-avaliação constante da própria<br />
performance e da beleza física neste senti<strong>do</strong>. É possível, diz Miller, que o sexo <strong>de</strong>sempenhe um<br />
papel muito pequeno na vida <strong>de</strong> muitas pessoas, mas a questão é colocada em termos <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida :<br />
"Algumas das gran<strong>de</strong>s conquistas humanas que conhecemos foram alcançadas por<br />
pessoas cuja vida sexual era reduzida ou nula. Por outro la<strong>do</strong>, conhecemos certos artistas - to<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> primeira linha - cujos trabalhos principais não teriam si<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>s se na ocasião, eles não<br />
estivessem mergulha<strong>do</strong>s numa mar <strong>de</strong> sexo"[108].<br />
Para Miller, o sexo é uma força relacionada à intensificação da capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra e<br />
também uma via através da qual po<strong>de</strong>mos nos livrar das tiranias <strong>do</strong> ego. A partir <strong>de</strong> Miller
po<strong>de</strong>mos dizer que o sexo é o próprio campo da produção <strong>de</strong>sejante enquanto campo <strong>de</strong><br />
virtualida<strong>de</strong>. O exercício sexual própriamente dito, por ouro la<strong>do</strong>, é um <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> acesso a este<br />
campo. O exercício não culposo da sexualida<strong>de</strong> ou da arte erótica se liga à intensificação <strong>de</strong><br />
processos <strong>de</strong> singularização. As ditas garotas "que não prestam" na a<strong>do</strong>lescência, porque têm<br />
uma vida sexual mais livre, serão mais tar<strong>de</strong>, para Miller, seres humanos mais completos,<br />
enquanto que as santas, as que pareciam não ter sexo, naufragarão mais facilmente na<br />
<strong>de</strong>pressão, na <strong>do</strong>ença, na neurose. O exercício da sexualida<strong>de</strong>, portanto, ao invés <strong>de</strong> ser visto<br />
apenas como satisfação <strong>de</strong> uma "energia", apaziguamento <strong>de</strong> uma tensão, comunica-se<br />
imediatamente com outros aspectos da vida, por exemplo, para Miller, com a atitu<strong>de</strong> em relação<br />
ao trabalho e ao dinheiro, pois,<br />
Se existe qualquer coisa <strong>de</strong> erra<strong>do</strong> na nossa atitu<strong>de</strong> em relação ao sexo, então é porque<br />
alguma coisa está errada na nossa atitu<strong>de</strong> em relação ao dinheiro ... ao trabalho. Como gozar <strong>de</strong><br />
uma boa vida sexual se nossa atitu<strong>de</strong> em relação aos outros aspectos da vida é <strong>de</strong>storcida e<br />
anormal[109]?<br />
O mesmo ponto <strong>de</strong> vista é <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> por Reich, para quem a auto-regulação da<br />
sexualida<strong>de</strong>, ou seja, uma ética não regida por leis gerais, transcen<strong>de</strong>ntes mas por práticas <strong>de</strong> si,<br />
além <strong>de</strong> ser possível, é a única que permite a transformação da atitu<strong>de</strong> em relação a outros<br />
aspectos da vida, tais como o trabalho, o consumo, etc. <strong>Uma</strong> gestão <strong>do</strong> sexo que se apóie em<br />
aspectos éticos, ou numa ética imanente - tal nos parece ser uma gestão da sexualida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong><br />
fornecer alternativas à subjetivida<strong>de</strong> contemporânea. A constatação <strong>de</strong> que o sexo funciona como<br />
sexualida<strong>de</strong>, ou "no vácuo", não <strong>de</strong>ve dar lugar a um retorno a padrões transcen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
moralida<strong>de</strong>, que se constituem, como vimos, em territorializações artificiais.<br />
(O amor) leva o homem a livrar-se da tirania <strong>do</strong> seu ego. O sexo é impessoal - po<strong>de</strong> ser ou<br />
não i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o amor...Tenho a impressão <strong>de</strong> que o sexo foi melhor compreendi<strong>do</strong> e mais<br />
bem explica<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> pagão, no mun<strong>do</strong> primitivo e no mun<strong>do</strong> religioso. No primeiro caso, foi<br />
exalta<strong>do</strong> no plano estético, no segun<strong>do</strong>, no plano mágico, no terceiro, no plano espiritual. No<br />
nosso mun<strong>do</strong> ... o sexo funciona no vácuo[110].<br />
2.3) Do <strong>Esquecimento</strong> ao Eterno Retorno<br />
Fazer história na clínica também po<strong>de</strong> ter sua importância caso, por esta via, possa se<br />
produzir um esta<strong>do</strong> a-histórico <strong>de</strong> transformação. A questão é que uma prática clínica introspectiva<br />
ou racionalista só po<strong>de</strong>rá levar a maus usos da história. Como tornar a história obra <strong>de</strong> arte? Tal<br />
po<strong>de</strong> ser nossa questão ao pensar sobre os usos da história na clínica. Retomamos aqui a<br />
questão <strong>do</strong> histórico e <strong>do</strong> a-histórico, ou como po<strong>de</strong>mos dizê-lo, <strong>do</strong> histórico e <strong>de</strong> suas relações<br />
com o plano da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
A produção <strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> si mesmo enquanto uma outra biografia construída na<br />
análise, sobreposta ou contraposta àquela com a qual o cliente busca tratamento po<strong>de</strong> ser um<br />
resulta<strong>do</strong> da intervenção clínica, resulta<strong>do</strong> este que po<strong>de</strong> não levar à ação, ou a novos equilíbrios<br />
em que as forças ativas pre<strong>do</strong>minem, mas a correlações <strong>de</strong> forças em que as forças reativas são<br />
fortalecidas. (Fizemos neste ponto uma rápida referência à concepção <strong>de</strong> ativo e reativo em<br />
Nietzsche, a que retornaremos a seguir.)<br />
A memória involuntária[111] proustiana é uma via para pensarmos, na clínica, um fazer<br />
história como obra <strong>de</strong> arte. Memórias que surgem <strong>de</strong> forma inesperada, a partir <strong>de</strong> um tropeço, da<br />
ruptura com um certo equilíbrio corporal. <strong>Uma</strong> ruptura em nosso organismo, e memórias <strong>de</strong> um<br />
outro tipo vêm até nós. Algo nos vem <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas que não coinci<strong>de</strong> exatamente com o que<br />
foi vivi<strong>do</strong>. É antes uma recriação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Ou o passa<strong>do</strong> serve <strong>de</strong> ponte para as essências - na<br />
linguagem proustiana. <strong>Uma</strong> ativida<strong>de</strong> ativa <strong>de</strong> memorização - a memória voluntária <strong>de</strong> nada
serviria, pois é obra da razão e se liga a usos da história que tornam o passa<strong>do</strong> coveiro <strong>do</strong><br />
presente. A colocação em palavras num regime <strong>de</strong> língua standard também dificilmente po<strong>de</strong>ria<br />
contactar este outro plano, como já vimos.<br />
Trata-se portanto, pela via da história, contactar o a-histórico. Mas a via da história não será<br />
a via privilegiada na clínica. A via <strong>do</strong>s afetos intensivos - o sexo entendi<strong>do</strong> como via <strong>de</strong> contacto<br />
com o plano da produção <strong>de</strong>sejante é outra possível. Ou como veremos na parte III <strong>de</strong>ste trabalho,<br />
a via da arte. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um para<strong>do</strong>xo, este <strong>de</strong> perseguir o objetivo <strong>de</strong> contactar o plano <strong>do</strong><br />
intempestivo. Po<strong>de</strong>mos no máximo a<strong>do</strong>tar estratégias nesta direção, sem garantia prévia <strong>de</strong><br />
sucesso. Mas a clínica não é por certo o reino das garantias prévias.<br />
Se acima vimos que a história po<strong>de</strong> ser boa, que po<strong>de</strong> servir à vida e à sua efetuação,<br />
Nietzsche aponta para um excesso <strong>de</strong> história que limitaria ou até impediria a ação. Esta função<br />
historia<strong>do</strong>ra apontaria para um eu que se encerra em si, para a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir que é a<br />
incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esquecer. Assim, a função <strong>do</strong> esquecimento é primordial à ação, à ativida<strong>de</strong>, à<br />
criação. Mas diferentemente <strong>do</strong> animal, o homem carrega o far<strong>do</strong> da história. Ele não po<strong>de</strong> viver<br />
no esquecimento.<br />
Sim, ele po<strong>de</strong>rá se utilizar da história para a construção da vida instrumentan<strong>do</strong>-se para a<br />
ação, como na história crítica. Ou po<strong>de</strong> se utilizar da história para <strong>de</strong>svalorizar a vida, como no<br />
ponto <strong>de</strong> vista supra histórico, no qual não vê mais diferenças entre passa<strong>do</strong> e presente, pois<br />
estes seriam apenas diferentes expressões das mesmas características humanas, ou das<br />
mesmas idéias gerais sobre o homem. Neste uso da história esta é vista como ten<strong>do</strong> leis que a<br />
mo<strong>de</strong>lam prévimente, como já discutimos na parte I.<br />
No entanto, como nada se repete tal como já aconteceu, <strong>de</strong> nada servem os <strong>do</strong>utos<br />
conselhos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, a não ser que toma<strong>do</strong>s secundáriamente no que diz respeito à força com<br />
que somos capazes <strong>de</strong> construir o presente.<br />
Como abordar o tema da repetição, no contexto <strong>de</strong> uma teoria <strong>do</strong> esquecimento? O eterno<br />
retorno Nietzschiano surge da afirmação da vida em sua potência mais alta. Também o<br />
esquecimento é a expressão <strong>de</strong> uma vida vigorosa, esquecediça[112] por natureza, e que<br />
manifesta nos momentos <strong>de</strong> criação <strong>do</strong> novo este seu caráter a-histórico.<br />
A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong> eterno retorno para pensar a repetição, a<strong>do</strong>tamos também um<br />
direcionamento ético[113] - não se trata mais <strong>de</strong> formular uma teoria geral que dê conta da<br />
repetição na natureza, numa perspectiva científica e cosmológica. Mas acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, importa-nos<br />
retomar o tema da repetição, <strong>de</strong>sta vez já liberta <strong>do</strong> negativo, compatível com uma ontologia da<br />
diferença.<br />
Tomamos o eterno retorno como um conceito alegre[114], liga<strong>do</strong> à afirmação da vida como<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência. Que significa esta concepção ética da repetição? Significaria ela a aceitação<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, numa espécie <strong>de</strong> resignação - vivemos sempre as mesmas coisas em diferentes<br />
momentos <strong>de</strong> nossas vidas, porque algo se repete em nós: uma cena, o passa<strong>do</strong> infantil, etc? Ou<br />
o contrário - <strong>de</strong>veríamos ser capazes <strong>de</strong> viver sempre o novo, o diferente, o presente a cada<br />
instante?<br />
Embora possamos vivenciar a repetição <strong>do</strong> mesmo em diversos momentos, esta postura<br />
ética implica em ver na repetição aparente <strong>do</strong> mesmo, o plano da diferença. O mesmo toma<strong>do</strong><br />
como máscara, o igual como secundário ao diferente. O igual como produzi<strong>do</strong> pela diferença. Isto<br />
implica na crítica da submissão da repetição ao mo<strong>de</strong>lo da representação, ao negativo e à<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
Mas não haveria possibilida<strong>de</strong>, para os humanos, <strong>de</strong> viver apenas o novo, o diferente -<br />
assim como seria impossível <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer história. Há to<strong>do</strong> um aparelho psíquico construí<strong>do</strong><br />
para funcionar reativamente, para produzir a estabilida<strong>de</strong> no instável, para enxergar o já visto no<br />
novo. É o que Bergson <strong>de</strong>nomina esquema sensório motor, como veremos mais tar<strong>de</strong>.<br />
A repetição <strong>de</strong> certas cenas na análise e na vida, como o caso <strong>de</strong> sempre viver os mesmos<br />
conflitos nas relações amorosas é, referida por Freud como um aspecto <strong>de</strong>moníaco da repetição.
Se nos ativermos a este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> análise, que vê apenas o igual na repetição, faremos uma<br />
abordagem incompleta da questão - <strong>de</strong>ixaremos <strong>de</strong> la<strong>do</strong> o ponto <strong>de</strong> vista da produção <strong>de</strong>sejante,<br />
que po<strong>de</strong> bem tomar, no contexto <strong>de</strong> nossa análise <strong>do</strong> esquecimento, a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> ahistórico<br />
ou intempestivo. Deixaremos <strong>de</strong> captar este caracter secundário <strong>do</strong> mesmo, que é o<br />
plano da representação, com relação ao prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> plano da diferença ou da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
De fato repetimos certos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> amar ao longo da vida[115]. Se tomarmos a perspectiva<br />
<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo inicial, como a relação funda<strong>do</strong>ra com a mãe, primeiro objeto amoroso, partimos <strong>de</strong><br />
uma série - a <strong>do</strong> amor à mãe que <strong>de</strong>terminará os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> amar posteriores. O plano da forma,<br />
ou da representação se repetirá, ao longo da vida, nas <strong>de</strong>mais escolhas <strong>de</strong> objeto. Po<strong>de</strong>remos aí<br />
colocar outras formas, pai, édipo mas isto não alterará a questão que queremos abordar.<br />
Repetimos algo em nossos sucessivos amores, mas o que repetimos? Po<strong>de</strong>mos pensar as<br />
séries amorosas como repetições - "escolhemos" sempre <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s objetos, com tais<br />
características. Mas não é nas características <strong>do</strong> objeto que está o essencial da repetição. Assim,<br />
Albertine é diferente <strong>de</strong> Gilberte[116], entretanto um "fun<strong>do</strong> escuro" que há na repetição é que as<br />
aproxima. Por outro la<strong>do</strong>, percebemos que é também um jeito <strong>de</strong> amar, liga<strong>do</strong> à minha história,<br />
liga<strong>do</strong> às minhas i<strong>de</strong>ntificações familiares o que está presente nestas repetições. Mas este não é o<br />
elemento essencial da repetição.<br />
Não está nem no objeto, nem no sujeito este elemento essencial, pois é um fun<strong>do</strong> escuro ou<br />
esta potência <strong>de</strong> repetição que engendra estas analogias, estas semelhanças, por exemplo, as<br />
semelhanças quanto aos tipos <strong>de</strong> escolha objetal.<br />
O amor não é da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> sujeito em Proust[117], na medida em que implica justamente<br />
com a ruptura com este plano, e com o acesso a um plano pré-subjetivo. Não é individual, já que<br />
ocorre primeiro um investimento coletivo que vai se recortan<strong>do</strong>, até chegar ao objeto amoroso.<br />
É o percurso que seguimos em À Sombra das Moças em Flor. Inicialmente, o narra<strong>do</strong>r está<br />
<strong>de</strong>slumbra<strong>do</strong> com o burburinho alegre das jovens no hotel em Balbec. Interessa-se por todas e por<br />
nenhuma, até se apaixonar por uma. Mas Albertine contém também o mar <strong>de</strong> Balbec, a pintura <strong>de</strong><br />
Elstir, e o conjunto alegre <strong>de</strong> moças a que pertence. Albertine é um agenciamento[118], e<br />
enquanto tal é uma multiplicida<strong>de</strong>. É um recorte secundário o que permitirá esta focalização no<br />
objeto ama<strong>do</strong>, Albertine.<br />
Acompanhemos em À Sombra das Moças em Flor este recorte progressivo, da tribo <strong>de</strong><br />
moças, estranha e <strong>de</strong>sconhecida a princípio, em direção à amada:<br />
Estan<strong>do</strong> sozinho, simplesmente fiquei diante <strong>do</strong> Gran<strong>de</strong> Hotel, esperan<strong>do</strong> o momento <strong>de</strong> ir<br />
encontrar-me com minha avó, quan<strong>do</strong> ... vi que se aproximavam cinco ou seis mocinhas ... Tão<br />
diversas ... que po<strong>de</strong>riam ser, <strong>de</strong>sembarcadas não se sabe <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> gaivotas a<br />
executarem vagarosamente na praia ... um passeio cujo intuito parece tão obscuro aos banhistas,<br />
a quem elas não <strong>de</strong>monstravam ver, quanto claramente dita<strong>do</strong> pelo seu espírito <strong>de</strong> pássaros[119].<br />
Deste to<strong>do</strong> participam também o mar e as gaivotas - as moças, como os ban<strong>do</strong>s <strong>de</strong> peixes<br />
<strong>do</strong> Vivonne, pertencem a uma totalida<strong>de</strong> a princípio indiferenciada, mas amar é também<br />
individualizar ...<br />
Amar auxilia a discernir, a diferenciar. Num bosque, o ama<strong>do</strong>r <strong>de</strong> pássaros distingue logo<br />
esse chilrear privativo <strong>de</strong> cada ave que o vulgo confun<strong>de</strong>. ... o indivíduo banha-se em algo mais<br />
geral que ele próprio[120].
Não amava nenhuma <strong>de</strong>las, aman<strong>do</strong>-as todas ... Era o mar que eu esperava encontrar, se<br />
fosse a uma cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> elas estivessem. O amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o<br />
amor <strong>de</strong> outra coisa[121].<br />
E esta tribo estranha aos poucos vai se aproximan<strong>do</strong> - mun<strong>do</strong>s inacessíveis estão<br />
subitamente ao alcance da mão - o pintor Elstir, que já fascinava o narra<strong>do</strong>r com suas marinhas,<br />
com os recortes que fazia no caos a que tu<strong>do</strong> pertence[122], é amigo <strong>de</strong> Albertine. Um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
coincidências, um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> certezas, <strong>de</strong> pontes mágicas construídas entre o que <strong>de</strong> início<br />
parecia abismo intransponível entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e a tribo <strong>de</strong> moças na praia <strong>de</strong> Balbec.<br />
Eu a vi.. lançar a Elstir um cumprimento <strong>de</strong> amiga ... um arco-íris que uniu, para mim o<br />
nosso mun<strong>do</strong> terreno a regiões que eu julgava inacessíveis ... Pintan<strong>do</strong>, Elstir me falava <strong>de</strong><br />
botânica, mas eu quase não o escutava; ele já não se bastava a si mesmo, não passava <strong>do</strong><br />
intermediário preciso entre aquelas moças e mim[123].<br />
O amor é este plano que une o diferente, este plano que abole o acaso - forjan<strong>do</strong> incríveis<br />
coincidências, toman<strong>do</strong> aspectos mágicos, oraculares. Em Proust o amor é o próprio plano <strong>do</strong><br />
intempestivo, um plano das essencias que é primeiro, a engendrar to<strong>do</strong>s os fenômenos amorosos<br />
comumente atribuí<strong>do</strong>s ao sujeito ou às qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> objeto ...<br />
Não sabia qual daquelas jovens era a Srta. Simonet, se alguma <strong>de</strong>las assim se chamava,<br />
mas sabia que era ama<strong>do</strong> pela Srta. Simonet[124] ...<br />
Desconsi<strong>de</strong>rar este recorte que o amor, ou como po<strong>de</strong>ríamos dizê-lo, o <strong>de</strong>sejo opera - da<br />
tribo, da massa ou <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo enquanto plano virtual à individuação como processo - é o que nos<br />
leva a consi<strong>de</strong>rar erroneamente que o amor é apenas um fenômeno individual, no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sujeito ou da subjetivida<strong>de</strong> individuada.<br />
A potência <strong>de</strong> amar é, como vimos, potência <strong>de</strong> diferir. Estes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> amar que repito ao<br />
longo da vida dão conta também <strong>de</strong> um certo estilo ou uma singularida<strong>de</strong>.. Neste senti<strong>do</strong> também<br />
o amor está liga<strong>do</strong> à individuação como processo que se engendra a partir <strong>de</strong> um plano virtual,<br />
como produção <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> amar. Mas um estilo <strong>de</strong> amar, nesta medida, não é algo a ser<br />
entendi<strong>do</strong> como soma <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificações produzidas na história pessoal, mas como algo muito mais<br />
liga<strong>do</strong> ao esquecimento que à memória. O esquecimento, na medida que provém da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
potência, libera esta potência <strong>de</strong> diferir, elemento essencial <strong>do</strong> fenômeno repetitivo, pura potência<br />
<strong>do</strong> falso, a engendrar to<strong>do</strong>s os fenômenos da or<strong>de</strong>m da escolha objetal, quanto da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> plano<br />
psicológico ou subjetivo, plano no qual reconhecemos semelhanças.<br />
Para que surjam novos amores é necessário que os antigos sejam esqueci<strong>do</strong>s, ainda que<br />
entre os antigos e os novos haja um elemento comum que provém <strong>do</strong> plano <strong>de</strong>sejo ou <strong>do</strong> plano da<br />
diferença pura - nos referimos aos estilos <strong>de</strong> amar como processos <strong>de</strong> singularização.<br />
Qual a relação entre a produção <strong>de</strong> um estilo ou <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação e o<br />
esquecimento? E por outro la<strong>do</strong>, qual a relação entre esquecimento e repetição?<br />
Ser o que se é, sofrer e fruir o que se é: um ponto <strong>de</strong> vista aristocrático, um ponto <strong>de</strong> vista<br />
da manifestação e efetuação da vida em sua potência mais alta. Se quisermos enten<strong>de</strong>r este<br />
processo como processo <strong>de</strong> singularização teremos que assinalar que este não se dá pela via da<br />
representação.
Em O Nascimento da Tragédia Nietzsche distingue <strong>do</strong>is processos <strong>de</strong> individuação com<br />
relação ao plano da vida: um apolíneo e outro dionisíaco. O processo individuação dionisíaco é<br />
primeiro em relação ao apolíneo. A individuação produzida a partir <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> si ou da<br />
ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar é apenas uma máscara. É possível, a partir daí, falar <strong>de</strong> um processo<br />
primeiro <strong>de</strong> individuação que tem a ver com uma experiência <strong>de</strong> efetuação <strong>do</strong> ser <strong>de</strong> si mesmo<br />
apoia<strong>do</strong> não na representação, mas nas forças da vida. O indivíduo dionisíaco é capaz <strong>de</strong><br />
esquecer, <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar tomar pelas forças da criação e durante este processo ...<br />
... se <strong>de</strong>svanecem todas as lembranças pessoais <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Entre o mun<strong>do</strong> da realida<strong>de</strong><br />
dionisíaca e o mun<strong>do</strong> da realida<strong>de</strong> quotidiana cava-se este abismo <strong>do</strong> esquecimento que os<br />
separa um <strong>do</strong> outro[125].<br />
A individuação dionisíaca é capaz <strong>de</strong> superar a própria individuação e restabelecer uma<br />
relação <strong>de</strong> imanência com o fun<strong>do</strong> das coisas, com a vida. Apenas pela arte o homem po<strong>de</strong>ria<br />
superar a individuação, e entre as artes, a música tem para Nietzsche, tem um papel<br />
privilegia<strong>do</strong>.As forças que levam ao esquecimento <strong>de</strong> si e à superação da individuação provêm da<br />
vida - a vida é esta força escura a <strong>de</strong>sejar-se a si mesma, que opera sem <strong>de</strong>scanso.<br />
2.3.1) Ressentimento e Memória<br />
Quan<strong>do</strong> colocamos a questão <strong>do</strong> excesso <strong>de</strong> história que po<strong>de</strong> paralisar a ação é<br />
necessário que tomemos a noção nietzschiana <strong>de</strong> ressentimento. O homem <strong>do</strong> ressentimento<br />
possui uma prodigiosa memória - ele atribui aos outros a causa <strong>de</strong> seus sofrimentos. Sua memória<br />
está a serviço <strong>de</strong>sta atribuição <strong>de</strong> culpas, <strong>do</strong> ódio à vida. Esta memória é fruto <strong>de</strong> um rigoroso e<br />
cruel a<strong>de</strong>stramento corporal. Um gran<strong>de</strong> estômago que nunca consegue digerir o que tem <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> si, ultrapassar, esquecer os sofrimentos <strong>de</strong> que foi vítima, <strong>de</strong>sistir <strong>do</strong> que lhe falta, reconstruir o<br />
que foi <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>.<br />
Mas esta culpa que ele atribui aos outros breve se transformará em culpa <strong>de</strong> si próprio - a<br />
culpa é interiorizada e generalizada. Neste segun<strong>do</strong> estágio da produção <strong>do</strong> ressentimento, a má<br />
consciência, é ele próprio o culpa<strong>do</strong> pelos seus sofrimentos e pelos <strong>do</strong>s outros. Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> ele<br />
não po<strong>de</strong> viver o novo sem transformá-lo em velho. Ele contamina o novo com o velho: estan<strong>do</strong><br />
preveni<strong>do</strong> contra os sofrimentos futuros, mata o momento presente em seu nasce<strong>do</strong>uro[126].<br />
Já teremos nota<strong>do</strong> a semelhança entre o esquema Freudiano e o esquema nietzscheano. O<br />
neurótico <strong>de</strong> Freud é em gran<strong>de</strong> parte o homem <strong>do</strong> ressentimento que carrega o far<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu<br />
passa<strong>do</strong>. É necessário que nos perguntemos se é possível sair <strong>do</strong> ressentimento através da<br />
clínica e da teoria freudianas. Freud parece ter construí<strong>do</strong> um aparelho psíquico que é um<br />
aparelho <strong>do</strong> ressentimento e um inconsciente-memória.<br />
Se nos ativermos à noção <strong>de</strong> homeostase, à idéia <strong>de</strong> satisfação como alívio <strong>de</strong> tensões, à<br />
teoria da repetição ligada a uma tendência <strong>de</strong> retorno ou à concepção <strong>de</strong> um inconsciente<br />
memória diremos que se trata <strong>de</strong> um teoria sobre o homem, e portanto <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> humana.<br />
Mesmo a formulação <strong>de</strong> um inconsciente linguagem, que é possibilitada, como vimos, pela noção<br />
<strong>de</strong> a-posteriori, seria incapaz <strong>de</strong> resolver está questão. Um inconsciente linguagem ainda seria<br />
<strong>de</strong>masia<strong>do</strong> humano.<br />
2.3.2) A Superação <strong>do</strong> Homem e a <strong>Clínica</strong>
Longe <strong>de</strong> nossas intenções dizer que Freud fala <strong>do</strong> que não existe no homem. Mas sim <strong>de</strong><br />
dizer, com Nietzsche, que o homem <strong>de</strong>ve ser supera<strong>do</strong>. O esquecimento nietzschiano aponta para<br />
esta superação da história enquanto ligada ao ressentimento, enquanto aquilo que po<strong>de</strong><br />
obstaculizar a recepção <strong>do</strong> novo e a ação que possa produzir o novo. Por outro la<strong>do</strong>, o homem<br />
ativo tem uma memória, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que cria valores que duram, que constroem o futuro e a<br />
cultura.<br />
Na busca <strong>de</strong> uma teoria da repetição compatível com uma filosofia da diferença teremos<br />
que nos confrontar com a idéia <strong>de</strong> que o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa marcas com as quais sofremos na<br />
neurose. O neurótico e o homem <strong>do</strong> ressentimento se assemelham, mas é necessário nos<br />
perguntarmos se as teorias <strong>de</strong> que dispomos na clínica não permanecem referidas ao homem,<br />
enquanto que, para afirmar o <strong>de</strong>sejo em sua plenitu<strong>de</strong>, para a<strong>do</strong>tar a produção <strong>de</strong>sejante como<br />
prima<strong>do</strong>, o que necessitamos é superar o homem.<br />
Que relação po<strong>de</strong>mos ter com o passa<strong>do</strong>, diferente <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> revolta, <strong>de</strong><br />
ressentimento? O ódio contra a passagem <strong>do</strong> tempo, o ressentimento por não po<strong>de</strong>r querer para<br />
trás, por ser o presente sempre diferente, por nada se repetir tal e qual po<strong>de</strong> ser supera<strong>do</strong>?<br />
Basean<strong>do</strong>-nos em Assim Falava Zaratustra respon<strong>de</strong>remos que sob o prima<strong>do</strong> da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
potência este ressentimento po<strong>de</strong> ser supera<strong>do</strong>. O eterno retorno aparece aqui em seu senti<strong>do</strong><br />
ético, resulta<strong>do</strong> da afirmação da vida em seu mais alto grau. Fazer <strong>do</strong> eterno retorno uma<br />
categoria <strong>do</strong> futuro: tal é o projeto da filosofia da diferença. O que se repete não diz respeito ao<br />
passa<strong>do</strong>, mas ao futuro. Numa operação em que o riso está presente, numa espécie <strong>de</strong><br />
brinca<strong>de</strong>ira com o passa<strong>do</strong>, Nietzsche introduz no passa<strong>do</strong> a vonta<strong>de</strong>:<br />
To<strong>do</strong> o foi é fragmento, enigma e espantoso azar, até que a vonta<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra acrescente:<br />
Mas eu assim o quero! Assim o hei <strong>de</strong> querer![127]<br />
A concepção nietzschiana <strong>de</strong> eterno retorno consiste em pensar não o retorno <strong>do</strong> que já foi<br />
mas em afirmar a criação e o futuro. Com a superação <strong>do</strong> ressentimento contra o tempo, não<br />
posso, é claro, alterar o curso <strong>do</strong>s acontecimentos, mas posso afirmá-los enquanto resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
acaso. Acolher o acaso, habitar o acaso, eis a perspectiva aberta por Nietzsche com o eterno<br />
retorno. Ou como po<strong>de</strong>riamos dizer, numa referência à teoria <strong>do</strong> acontecimento elaborada por<br />
Deleuze a partir da filosofia estóica, merecer o acontecimento, contraefetuar o acontecimento.<br />
(Retornaremos ao acontecimento na parte III.)<br />
Assim, o passa<strong>do</strong> não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> nem altera<strong>do</strong> nele mesmo. E esta operação<br />
através da qual se supera o ressentimento contra o tempo não implica em alterar o passa<strong>do</strong> ou em<br />
recuperar as lacunas <strong>de</strong> sua memória, ou mesmo em alterar a forma <strong>de</strong> narrá-lo, mas em habitá-lo<br />
<strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>. Este mo<strong>do</strong>, que emana da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência, é uma transformação existencial<br />
que torna o passa<strong>do</strong> motor da criação. Esta transformação, operada pelo poeta e pela loucura é<br />
uma aproximação cria<strong>do</strong>ra daquilo que foi, para construir o que será.<br />
Como poeta, como adivinho <strong>de</strong> enigmas, como re<strong>de</strong>ntor <strong>do</strong> azar, ensine-os a serem<br />
cria<strong>do</strong>res <strong>do</strong> futuro e a salvar crian<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que foi. Salvar o passa<strong>do</strong> no homem e transformar<br />
tu<strong>do</strong> o que foi até a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer: Mas eu queria que fosse assim ! Assim o hei <strong>de</strong> querer!<br />
E assim se acumulou no espírito uma nuvem após outra, até que a loucura proclamou: Tu<strong>do</strong><br />
passa, por conseguinte, tu<strong>do</strong> merece passar![128]<br />
É interessante notar que a superação <strong>do</strong> ressentimento contra o tempo se dê por estas vias:<br />
da loucura e da arte. A loucura tomada como linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização positiva, assim como a
arte, apontam um caminho fora da história enquanto obra da razão. De qualquer mo<strong>do</strong>, na<br />
segunda consi<strong>de</strong>ração intempestiva, Nietzsche já apontara que uma apropriação produtiva <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> teria que se dar pela tranformação da história em obra <strong>de</strong> arte.<br />
A vonta<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> querer para trás: não po<strong>de</strong> aniquilar o tempo e o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> tempo é a<br />
sua mais solitária aflição [129] ...<br />
Tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> novo, tu<strong>do</strong> eternamente, tu<strong>do</strong> enca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>, força<strong>do</strong>: assim amastes o mun<strong>do</strong>, vós<br />
outros, os ternos, amai-o eternamente e sempre e dizeis também à <strong>do</strong>r: passa mas torna! Porque<br />
toda a alegria quer eternida<strong>de</strong>. ... Apren<strong>de</strong>i-o, homens superiores: a alegria quer a eternida<strong>de</strong>. A<br />
alegria quer a eternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as coisas. Quer profunda eternida<strong>de</strong>[130].<br />
Nenhum fato po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> ... eis o que há <strong>de</strong> eterno no castigo da existência: a<br />
existência <strong>de</strong>ve ser uma vez e outra, eternamente, ação e dívida. A não ser que a vonta<strong>de</strong> acabe<br />
por se libertar a si mesma ... Acaso a vonta<strong>de</strong> se livrou da própria loucura? Porventura se tornou<br />
a vonta<strong>de</strong> para si mesma re<strong>de</strong>ntora e mensageira da alegria? Acaso esqueceu o espírito <strong>de</strong><br />
vingança e to<strong>do</strong> o ranger <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes? Então quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e<br />
qualquer coisa mais alta que a reconciliação? ... quem a ensinará também a retroce<strong>de</strong>r[131]?<br />
Ninguém sabe ainda o que é o bem e mal ... a não ser o cria<strong>do</strong>r. Só o que cria o fim <strong>do</strong>s<br />
homens e o que dá o senti<strong>do</strong> e futuro à terra, só esse cria o bem e o mal <strong>de</strong> todas as coisas. O<br />
homem é uma coisa que <strong>de</strong>ve ser superada: o homem há que ser uma ponte, e não um fim:<br />
satisfeito <strong>do</strong> seu meio-dia e da sua tar<strong>de</strong>[132].<br />
Não há um otimismo ingênuo nesta idéia <strong>de</strong> superação <strong>do</strong> homem. De on<strong>de</strong> viria o negativo,<br />
no contexto <strong>do</strong> eterno retorno? O eterno retorno seria pura criação? Tomar o ponto <strong>de</strong> vista da<br />
vida e <strong>de</strong> sua expansão não implica no aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> aspecto trágico da existência. A perspectiva<br />
trágica a que nos referimos não correspon<strong>de</strong>ria porém à inclusão <strong>de</strong> qualquer figura <strong>do</strong> negativo<br />
no plano da diferença. Retoman<strong>do</strong> uma questão <strong>de</strong>ixada em aberto na parte I, o ponto <strong>de</strong> vista da<br />
vida enquanto engendramento da diferença não leva a uma postura adaptativa, como pensa<br />
Laplanche, em sua discussão sobre os motivos que teriam leva<strong>do</strong> Freud a propor a hipótese da<br />
pulsão <strong>de</strong> morte. (ela teria si<strong>do</strong> introduzida, para este autor, para combater um excessivo<br />
pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> eros que levaria a psicanálise a posturas adaptativas).<br />
Como aparece porém o negativo no contexto <strong>do</strong> eterno retorno?<br />
... era este o meu tédio pelo homem! E o eterno regresso, é ainda <strong>do</strong> mais pequeno! Isso<br />
então era o tédio da minha existência inteira.[133]<br />
Embora seja o eterno retorno um conceito alegre, o que retorna não é apenas a alegria, o<br />
super-homem ... mas retorna também o homem pequeno com seu ressentimento, sua má<br />
consciência, toda a pequenez e mesquinharia retornam, não haven<strong>do</strong> superação <strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong><br />
homem. Embora o que retorne seja a diferença, ela se apresenta também em suas máscaras - a<br />
pequenez e mesquinharia humanas. Este é o ponto <strong>de</strong> vista trágico, no qual o negativo não<br />
aparece como um princípio transcen<strong>de</strong>nte mas numa relação <strong>de</strong> enfrentamento, <strong>de</strong> luta, no próprio<br />
plano <strong>de</strong> engendramento da vida.<br />
Tu<strong>do</strong> vai, tu<strong>do</strong> torna, a roda da existência gira eternamente. tu<strong>do</strong> morre; tu<strong>do</strong> torna<br />
florescer[134].<br />
2.4) A Produção Social <strong>do</strong> Negativo - <strong>Clínica</strong> e Capitalismo
Se partirmos <strong>do</strong> "tornar consciente o inconsciente" inicial e <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> da associação livre,<br />
po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar a segunda tópica como correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a uma mudança consi<strong>de</strong>rável no que<br />
diz respeito ao méto<strong>do</strong> clínico freudiano. Ao se constatar que não basta tornar consciente o<br />
inconsciente, ou que : "não basta uma prática sobre as representações partin<strong>do</strong> da associação<br />
livre", a prática clínica toma outras configurações. O psiquismo se assemelha neste momento a<br />
uma guerra constante, travada entre exigências <strong>de</strong> várias instâncias, embora a palavra guerra<br />
possa ser excessiva, já que Freud faz uso <strong>de</strong> metáforas parlamentares para falar também <strong>de</strong> um<br />
jogo <strong>de</strong>mocrático, aristocrata - à semelhança das <strong>de</strong>mocracias europeias <strong>de</strong> seu tempo. Seja esta<br />
guerra travada num campo <strong>de</strong> batalha ou num parlamento, o inimigo (a resistência) se disfarça a<br />
to<strong>do</strong> momento já que o ego é em gran<strong>de</strong> parte inconsciente e não po<strong>de</strong> ser toma<strong>do</strong> como alia<strong>do</strong>.<br />
Por um la<strong>do</strong> a clínica freudiana da segunda tópica se assemelha a uma batalha cheia <strong>de</strong><br />
escaramuças em direções diferentes, na qual o analista <strong>de</strong>ve se tornar um estrategista. Por outro,<br />
aspectos da teoria liga<strong>do</strong>s a concepções negativas com relação à produção <strong>de</strong>sejante (o<br />
masoquismo primário, a reação terapêutica negativa, a pulsão <strong>de</strong> morte, o roche<strong>do</strong> da castração)<br />
circunscrevem e limitam previamente estas estratégias clínicas, como se a batalha estivesse<br />
perdida <strong>de</strong> antemão. Não que a clínica, <strong>de</strong>va se imbuir <strong>de</strong> um otimismo ingênuo, da certeza da<br />
vitória da produção <strong>de</strong>sejante sobre as resistências e sobre o negativo. Nossa questão diz respeito<br />
à localização e à caracterização <strong>de</strong>ste inimigo. O inimigo, na clínica freudiana, é uma tendência<br />
interna ao sujeito, interna no senti<strong>do</strong> psicológico - tendências constitucionais para o <strong>de</strong>sprazer,<br />
exacerbações da pulsão <strong>de</strong> morte, angústia básica. Constituin<strong>do</strong>-se em categorias aplicáveis ao<br />
ser humano em geral, permanecem presas, tais tendências, ao sujeito e à interiorida<strong>de</strong>.<br />
Do nosso ponto <strong>de</strong> vista, o inimigo é simultâneamente interno e externo, já que pensamos a<br />
subjetivida<strong>de</strong> como <strong>do</strong>bra <strong>de</strong> um fora. Pensamos que o capitalismo, enquanto sistema social, é<br />
uma formidável máquina <strong>de</strong> anti-produção <strong>de</strong>sejante. Se por um la<strong>do</strong> ele também é uma das<br />
figuras engendradas pela própria produção <strong>de</strong>sejante[135], ele se constitui num <strong>de</strong>scaminho seu,<br />
algo que po<strong>de</strong>ria não ter ocorri<strong>do</strong>. Queremos dizer que o capitalismo não se <strong>de</strong>duz <strong>do</strong><br />
"<strong>de</strong>senvolvimento das forças produtivas" como uma necessida<strong>de</strong> técnica, nem <strong>de</strong> uma violência<br />
inerente ao homem, que o levaria necessariamente a <strong>do</strong>minar os outros homens. O capitalismo é<br />
um acaso - assim como o surgimento <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> é um acaso, como diz Clastres.<br />
Por que alguns <strong>de</strong>sejaram proclamar um dia: isso é meu, e como os outros <strong>de</strong>ixaram que se<br />
estabelecesse assim o germe daquilo que a socieda<strong>de</strong> primitiva ignora, a autorida<strong>de</strong>, a opressão,<br />
o Esta<strong>do</strong>? O que hoje se sabe das socieda<strong>de</strong>s primitivas não permite mais procurar no nível<br />
econômico a origem <strong>do</strong> político. ... que formidável acontecimento, que revolução permitiu o<br />
aparecimento da figura <strong>do</strong> déspota, daquele que comanda os que obe<strong>de</strong>cem? De on<strong>de</strong> provém o<br />
po<strong>de</strong>r político[136]?<br />
A interiorização estudada por Nietzsche como um processo <strong>de</strong> separação entre o <strong>de</strong>sejo e o<br />
que ele po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> uma memória, <strong>de</strong> produção <strong>do</strong> ressentimento e da má consciência,<br />
são para nós elementos para se pensar o percurso histórico e político através <strong>do</strong> qual o <strong>de</strong>sejo se<br />
interioriza e se obstaculiza - <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> as produção <strong>de</strong>sejante é coartada. Além disso, <strong>de</strong> que<br />
mo<strong>do</strong> são produzidas as figuras <strong>do</strong> negativo que põem a funcionar um sujeito interioriza<strong>do</strong> e<br />
habita<strong>do</strong> por forças que o <strong>de</strong>spotencializam <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista erótico e político. Este processo <strong>de</strong><br />
produção <strong>do</strong> ressentimento e dá má consiciência passou, como Nietzsche apontou pelo<br />
surgimento <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> enquanto acaso inominável.<br />
Nietzsche traçou os caminhos <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>sta "interiorização"[137]. Tu<strong>do</strong> se passa numa<br />
relação entre as forças. As forças ativas po<strong>de</strong>m ser <strong>do</strong>minadas pelas forças reativas. De que<br />
forma? <strong>Uma</strong> economia <strong>de</strong> forças se estabelece, na qual as forças reativas são artificialmente<br />
vitoriosas e as forças ativas sucumbem a elas. A consciência, órgão reativo por excelência, po<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>minar a vida - mas esta será uma vida enfraquecida, que toma o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> escravo,
sen<strong>do</strong> vivida a partir <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, <strong>do</strong> niilismo, da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser ama<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong> amar. <strong>Uma</strong><br />
vida que teme a luta e o amor. As forças ativas estão assim, "separadas <strong>do</strong> que elas po<strong>de</strong>m".<br />
A faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> esquecimento, que emana das forças ativas, torna-se entravada. O homem<br />
torna-se aprisiona<strong>do</strong> às marcas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, distribui culpas, lamenta-se. E como último estágio<br />
<strong>de</strong>ste processo há uma mudança na direção <strong>do</strong> ressentimento. É <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si próprio que<br />
encontrará o culpa<strong>do</strong>. O senti<strong>do</strong> da <strong>do</strong>r passa a ser interno.<br />
Se por um la<strong>do</strong> as forças reativas são necessárias à própria efetuação das forças ativas<br />
como forças <strong>de</strong> conservação, o pre<strong>do</strong>mínio das forças reativas sobre as ativas é o que gera a<br />
<strong>do</strong>ença <strong>do</strong> ressentimento. Mas há no capitalismo "algo mais" no que diz respeito à produção<br />
maciça <strong>de</strong> ressentimento, interiorização, niilismo e culpabilida<strong>de</strong>.<br />
O que faz <strong>do</strong> capitalismo um sistema especial no que diz respeito aos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> funcionar<br />
da produção <strong>de</strong>sejante que ele instaura?<br />
Porque não dizer apenas que o capitalismo substitui um código por outro, que ele efetua um<br />
novo tipo <strong>de</strong> codificação? Por duas razões... uma impossibilida<strong>de</strong> moral e uma impossibilida<strong>de</strong><br />
lógica ... seu cinismo essencial. Com o capitalismo o corpo pleno se torna realmente nú ...(a)<br />
axiomática não tem mais a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se inscrever em plena carne, <strong>de</strong> marcar os corpos e os<br />
órgãos nem <strong>de</strong> fabricar uma memória para os homens. No capitalismo a reprodução social vai se<br />
tornan<strong>do</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da reprodução humana. O socius como corpo pleno se tornou diretamente<br />
econômico enquanto capital-dinheiro, não tolera nenhum outro pressuposto[138].<br />
Em O Anti-Édipo Deleuze e Guattari empregam a palavra axiomática para se referirem ao<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> incrição <strong>do</strong>s fluxos ou da produção <strong>de</strong>sejante no campo social na formação social<br />
capitalista. Trata-se <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> inscrição artificializa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sterritorializa<strong>do</strong> - que tem a<br />
esquizofrenia enquanto processo como horizonte, mas é ao mesmo tempo rigorosa, impie<strong>do</strong>sa na<br />
inibição <strong>de</strong>sta tendência. O que o capitalismo <strong>de</strong>sterritorializa ou <strong>de</strong>codifica com uma das mãos<br />
ele codifica com outra. Porém, como o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização é primeiro nesta formação<br />
social específica, não po<strong>de</strong>mos dizer que territórios reais sejam produzi<strong>do</strong>s, ou que haja<br />
verda<strong>de</strong>iramente codificação. O único território remanescente é o <strong>do</strong> capital, a única verda<strong>de</strong>ira<br />
crença, o dinheiro.<br />
No precioso livro O Papalagui[139] po<strong>de</strong>mos ler o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> um chefe samoano <strong>de</strong><br />
nome Tuiavi sobre a Europa <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século que ele tem ocasião <strong>de</strong> visitar. No capítulo<br />
<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> "Do metal re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> e <strong>do</strong> papel pesa<strong>do</strong>" Tuiavi nos fala, em seu espanto, diante <strong>de</strong>sta<br />
"originalida<strong>de</strong>" <strong>do</strong> capitalismo, que faz com que o homem oci<strong>de</strong>ntal dito civiliza<strong>do</strong> tenha <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
crer em outra coisa que não o dinheiro, e que essa crença o tenha feito estabelecer práticas <strong>de</strong><br />
vida até então inusitadas. Tuiavi está impressiona<strong>do</strong> com o fato <strong>de</strong> o europeu produzir tantos<br />
objetos inúteis e tanta pobreza e <strong>de</strong> não ter nenhuma solidarieda<strong>de</strong>.<br />
Como nos mostra Pierre Clastres em seu Socieda<strong>de</strong> contra o Esta<strong>do</strong>, fluxos capitalistas<br />
nunca <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> passar na socieda<strong>de</strong> primitiva, sen<strong>do</strong> repeli<strong>do</strong>s por estas. As práticas <strong>de</strong><br />
cruelda<strong>de</strong> existentes nestas socieda<strong>de</strong>s, buscavam muitas vezes conjurar justamente os fluxos<br />
que se opunham à vida grupal e coletiva através da marcação <strong>do</strong> corpo como ritual <strong>de</strong> passagem<br />
para a vida adulta. O coletivo era <strong>de</strong>sta forma imposto, conjuran<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fluxos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> outro tipo. Clastres menciona o estilo <strong>de</strong> chefia existente entre algumas tribos indígenas<br />
brasileiras, em que o chefe não tinha um verda<strong>de</strong>iro po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> chefia, com nós o conhecemos, e<br />
em que outros tipos <strong>de</strong> chefes, mais autoritários, não eram aceitos pelo grupo. Por exemplo, um<br />
chefe guerreiro podia ser bom para uma <strong>de</strong>terminada guerra, mas não permanecia no po<strong>de</strong>r<br />
quan<strong>do</strong> ela findava. O chefe prestava serviços ao grupo, e não o contrário, o que levava os<br />
portugueses a diagnosticar nos índios uma "falta <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>" como justificativa <strong>de</strong> seu atraso:<br />
gente sem fé, sem lei, sem rei, como diziam os portugueses sobre os tupinambás[140].<br />
Retomemos a questão da produção <strong>do</strong> negativo e da interiorização. Não se trata <strong>de</strong> dizer<br />
que Freud, ao trabalhar com certas figuras <strong>do</strong> negativo (complexo <strong>de</strong> castração, reação<br />
terapêutica negativa, sentimento <strong>de</strong> culpa em geral) esteja se referin<strong>do</strong> ao que não existe. Do
nosso ponto <strong>de</strong> vista, teria que ser traçada a genealogia <strong>de</strong>stes fenômenos clínicos, buscan<strong>do</strong>-os<br />
no campo da produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, produção essa que se dá no coletivo toma<strong>do</strong> enquanto<br />
dimensão <strong>do</strong> fora, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a subjetivida<strong>de</strong> mesma como <strong>do</strong>bra <strong>de</strong>ste fora[141]. A<br />
importância <strong>de</strong> tal genealogia diz respeito às consequências clínicas que daí se geram. O coletivo<br />
po<strong>de</strong> ser também visto como um plano virtual com relação aos processos <strong>de</strong> subjetivação, que<br />
seriam atualizações[142].<br />
Quan<strong>do</strong> Freud <strong>de</strong>screve o narcisismo, o mecanismo sublimatório que se dá pelo<br />
investimento da libi<strong>do</strong> no ego em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong>s investimentos objetais, está <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> o que<br />
para nós é um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> - a subjetivida<strong>de</strong> individuada. Este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
subjetivação é especialmente afeito também ao "instrumental psi"[143]. Queremos nos referir ao<br />
instrumental psi como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> intervenção sobre o campo social que não <strong>de</strong>corre apenas da<br />
psicanálise e nem mesmo <strong>do</strong> que Castel <strong>de</strong>nominou Psicanalismo. O instrumental psi compõe,<br />
com outros instrumentos, a gestão da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea. Com certeza não apenas a<br />
Freud <strong>de</strong>ve ser imputada a invenção <strong>do</strong> dispositivo psi. Sua genealogia po<strong>de</strong> ser traçada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />
práticas confissionais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os processos <strong>de</strong> higienização das populações, da escolarização, a<br />
partir <strong>do</strong> construção da socieda<strong>de</strong> disciplinar, em percursos históricos que autores como Foucault<br />
e Donzelot já analisaram exaustivamente. O dispositivo Psi surge tardiamente com respeito aos<br />
que os antece<strong>de</strong>ram e possibilitaram - e como diz Donzelot - foram necessários séculos para que<br />
dispositivos policiais, jurídicos, religiosos, filantrópicos, permitissem ao psicanalista se calar[144].<br />
A intervenção clínica está <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo marcada pelo para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> ser her<strong>de</strong>ira, portanto, <strong>de</strong><br />
séculos <strong>de</strong> discursos e práticas produtoras <strong>de</strong> "uma <strong>do</strong>ença" que é chamada a curar, mas da qual<br />
também pa<strong>de</strong>ce. Po<strong>de</strong>ríamos também usar a <strong>de</strong>nominação "subjetivida<strong>de</strong> psi" - aquela que<br />
<strong>de</strong>manda a intervenção psi, mas da qual, para<strong>do</strong>xalmente, a intervenção psi não po<strong>de</strong> dar conta,<br />
se não pu<strong>de</strong>r pensar outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação, se não pu<strong>de</strong>r escapar, ela própria, da<br />
produção e reprodução <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação.<br />
O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação psi é também o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação no qual estão presentes os<br />
requisitos para a existência <strong>de</strong> um projeto psicoterápico ou <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> análise, temas<br />
bastante discuti<strong>do</strong>s no campo psicanalítico. A quem finalmente se aplica a psicanálise? Muitos<br />
psicanalistas respon<strong>de</strong>m assim à questão: reconhecem que a Psicanálise não se aplica a to<strong>do</strong> e<br />
qualquer ser humano, e propõem que aqueles aos quais ela não se aplica não sejam analisa<strong>do</strong>s.<br />
Esta "triagem" seria feita nas primeiras entrevistas. É em Freud que buscam inspiração, já que em<br />
seus escritos técnicos ele propõe que se submeta to<strong>do</strong> cliente a sessões probatórias com<br />
finalida<strong>de</strong> diagnostica. Para ele, a analisabilida<strong>de</strong> se refere entre outras coisas ao grau <strong>de</strong><br />
instrução <strong>do</strong> cliente.<br />
Segun<strong>do</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista, não se trata <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r simplesmente à <strong>de</strong>manda <strong>de</strong><br />
análise, excluin<strong>do</strong> da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser analisa<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação que não se encaixa<br />
a<strong>de</strong>quadamente ao instrumental Psi. Trata-se <strong>de</strong> produzir rupturas no processo <strong>de</strong> produção e<br />
reprodução <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação, rupturas essas referidas tanto a uma clínica produtora <strong>de</strong><br />
interiorização quanto aos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação <strong>do</strong> cliente e <strong>do</strong> terapeuta. Assim, a a<strong>de</strong>quação<br />
<strong>do</strong> cliente à intervenção Psi se constitui num problema, pois se trata <strong>de</strong> produzir uma ruptura nesta<br />
a<strong>de</strong>quação mesma, tanto no que se refere ao cliente quanto no que se refere ao terapeuta.<br />
2.5 )Em Direção a <strong>Uma</strong> "Outra" Superfície <strong>Clínica</strong><br />
A <strong>de</strong>sconstrução da interiorização é uma das vias privilegiadas, portanto, para uma clínica<br />
que possa escapar ou produzir linhas <strong>de</strong> fuga frente à subjetivida<strong>de</strong> individuada. Vimos no capítulo<br />
- A emergência da Superfície - o mo<strong>do</strong> como Lacan construiu, no campo clínico, uma superfície<br />
clínica ao problematizar uma concepção <strong>de</strong> inconsciente ligada à memória e à intimização. Tal<br />
superfície permitiu que a psicanálise se distanciasse <strong>de</strong> uma clínica intimista, <strong>de</strong> certas<br />
concepções quanto à profundida<strong>de</strong> e superficialida<strong>de</strong> da análise. Po<strong>de</strong>mos acompanhar esta<br />
discussão no que diz respeito à revolução operada por Lacan na formação <strong>do</strong> psicanalista. A<br />
análise didática era <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> referida como "mais profunda" que a terapêutica. Nas<br />
instituições públicas, "nos locais menos sérios", a psicoterapia <strong>de</strong> base analítica se opunha à
análise, sen<strong>do</strong> esta última, "mais profunda". Muitas páginas foram escritas sobre esta discussão,<br />
até que Lacan <strong>de</strong>monstrasse que a pretensa profundida<strong>de</strong> da análise didática era uma questão<br />
política: se reduzia a mecanismos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se <strong>de</strong>sejava manter ocultos e que operavam na<br />
formação analítica - uma gerontocracia on<strong>de</strong> o analista didata era o <strong>de</strong>tentor único <strong>do</strong> acesso à<br />
cúpula <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r institucional.<br />
Ao se afirmar, como Lacan o faz, o plano da linguagem como o plano <strong>do</strong> inconsciente, a<br />
análise é algo que se passa numa superfície, não é mais uma prática que se liga à memória e à<br />
história. Entretanto, uma das limitações <strong>de</strong> tal plano <strong>de</strong> superfície é estar ainda referi<strong>do</strong> à<br />
linguagem e enquanto tal, operar ainda no plano <strong>do</strong> estrato, e não no plano <strong>de</strong> imanência. O plano<br />
da intervenção clínica é um plano <strong>de</strong> superfície. Mas não se trata <strong>de</strong> uma superfície-linguagem ou<br />
superfície-inscrição e sim <strong>de</strong> uma superfície on<strong>de</strong> se dão <strong>de</strong>slocamentos intensivos. Estes<br />
<strong>de</strong>slocamentos intensivos po<strong>de</strong>ríamos chamá-los <strong>de</strong> agenciamentos. Um agenciamento por certo<br />
comporta a linguagem ...<br />
Num agenciamento, há como duas faces, duas cabeças ... esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> coisas, esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
corpos: os corpos se penetram, se misturam se transmitem afetos, mas também enuncia<strong>do</strong>s,<br />
regimes <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s, signos se organizam <strong>de</strong> nova forma, novas formulações aparecem[145] ...<br />
Mas não há qualquer privilégio <strong>de</strong>ste componente - o enuncia<strong>do</strong> - frente aos <strong>de</strong>mais<br />
componentes nesta multiplicida<strong>de</strong> que é o agenciamento[146]. Po<strong>de</strong>mos abordar esta questão a<br />
partir da filosofia estóica, na qual o plano <strong>do</strong>s incorporais - o plano da linguagem - é secundário<br />
em relação ao plano <strong>do</strong>s encontros <strong>de</strong> corpos. Apenas po<strong>de</strong> atuar como quase causa[147] em<br />
relação aos acontecimentos. O plano da linguagem é um conexão, uma peça no agenciamento - e<br />
to<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> já é fruto <strong>de</strong> um agenciamento coletivo.<br />
Diferencian<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> noções <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> e intimida<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> pensar efeitos <strong>de</strong><br />
superfície, construir mapas ou cartografias. Na construção <strong>de</strong>stes mapas não há outro princípio<br />
que a produção da vida, seus movimentos <strong>de</strong> expansão e retração, efeito <strong>do</strong> encontro <strong>de</strong> corpos.<br />
Po<strong>de</strong>riamos falar <strong>de</strong>sta superfície clínica a partir <strong>de</strong> Espinosa, propon<strong>do</strong> uma geometria <strong>do</strong><br />
inconsciente.<br />
Na vida, como na política, trata-se <strong>de</strong> administrar agenciamentos, ou encontros. A vonta<strong>de</strong><br />
não é livre, a existência é totalmente <strong>de</strong>terminada. Para não se ficar ao sabor <strong>do</strong> acaso <strong>do</strong>s<br />
encontros, trata-se <strong>de</strong> administrá-los.<br />
Isto, bem entendi<strong>do</strong>, não significa dizer que é possível prever, controlar os encontros <strong>de</strong><br />
corpos ou seus efeitos. Trata-se <strong>de</strong> estabelecer pequenas guerrilhas, lutas particulares <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />
na direção da expansão. Introduzir na vida novos campos <strong>de</strong> forças, novas <strong>do</strong>bras da<br />
subjetivida<strong>de</strong>. Lutas travadas por uma consciência reduzida em suas funções, funcionan<strong>do</strong> como<br />
uma espécie <strong>de</strong> leme, na tentativa <strong>de</strong> conduzir o barco num oceano cujos movimentos são apenas<br />
imperfeitamente previsíveis.<br />
A constituição <strong>de</strong>ste inconsciente <strong>de</strong> superfície, plano <strong>de</strong> imanência é a constituição <strong>de</strong> um<br />
inconsciente pensa<strong>do</strong> como campo ontológico. Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação são múltiplos,<br />
correspon<strong>de</strong>m a atualizações <strong>de</strong>sta substancia primeira, para usar uma terminologia espinozista.<br />
Por isso as figuras <strong>do</strong> negativo não po<strong>de</strong>m constituir este inconsciente. No entanto, a produção<br />
<strong>de</strong>sejante, ou esta substância primeira po<strong>de</strong> tomar caminhos - ou <strong>de</strong>scaminhos, como nos<br />
referimos há pouco. Os homens po<strong>de</strong>m combater por sua servidão como se combatessem por sua<br />
liberda<strong>de</strong>. É o que Reich também nos mostra quan<strong>do</strong> diz que as massas <strong>de</strong>sejaram o fascismo.<br />
A diferença entre esta concepção <strong>do</strong> negativo, como já mencionamos na parte I <strong>de</strong>ste<br />
trabalho, e aquela que o coloca como um princípio constitutivo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo ou como transcendência<br />
é que quan<strong>do</strong> a produção <strong>de</strong>sejante toma estes caminhos da anti-produção, isto tem que ser<br />
explica<strong>do</strong> caso a caso (assim como Clastres se pergunta porque surgiu o esta<strong>do</strong>, sem tomar sua<br />
existência como um fato universal). Teremos que traçar o mapa, o percurso particular no qual o
<strong>de</strong>sejo se separou <strong>do</strong> que ele po<strong>de</strong>. To<strong>do</strong> este processo se dá num plano <strong>de</strong> imanência, num<br />
campo <strong>de</strong> forças. Não há nenhuma transcendência que o pré-<strong>de</strong>fina.<br />
Esta superfície clínica caracteriza-se também por um campo no qual as questões <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />
serão pensadas fora <strong>de</strong> toda referência ao sujeito e ao objeto, mas no agenciamento ou no campo<br />
<strong>do</strong>s encontros <strong>de</strong> corpos. Mas não se trata <strong>de</strong> escolher - a difícil noção <strong>de</strong> administração <strong>do</strong>s<br />
encontros não implica num otimismo ingênuo, numa crença na vonta<strong>de</strong> consciente. Este campo<br />
<strong>do</strong>s encontros é em parte inacessível à consciência, que só forma a partir <strong>do</strong>s mesmos idéias<br />
ina<strong>de</strong>quadas, toman<strong>do</strong> efeitos como causas.<br />
O otimismo ingênuo também não po<strong>de</strong> vir <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Espinoza, que é com certeza<br />
um pensamento alegre. Mas tal alegria está permeada <strong>de</strong> tragicida<strong>de</strong>, uma vez que dizer que as<br />
figuras <strong>do</strong> negativo são engendradas num campo <strong>de</strong> forças não as torna mais amenas <strong>do</strong> ponto<br />
<strong>de</strong> vista clínico.<br />
Retomemos neste ponto o problema da morte. Como pensá-la não como uma tendência,<br />
uma lei transcen<strong>de</strong>nte, mas como um acontecimento? Não há em nós uma tendência para a<br />
morte, mas a morte nos espreita a to<strong>do</strong> momento. Este plano <strong>de</strong> superfície contém buracos<br />
negros. Há que se ter prudência, mas não é possível evitar o acaso. Se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, a morte é da<br />
or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> acaso, <strong>do</strong>s encontros <strong>de</strong> corpos, uma vez lança<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s da sorte, suas<br />
consequências se instauram como necessida<strong>de</strong>.<br />
<strong>Uma</strong> clínica que se dá num plano <strong>de</strong> superfície po<strong>de</strong> ser aproximada das Práticas <strong>de</strong><br />
Si[148], tal como as <strong>de</strong>screve Foucault. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento <strong>de</strong>sta noção,<br />
especialmente se confrontada com as ferramentas teóricas tradicionais da clínica Psi está em que<br />
se confun<strong>de</strong> Prática <strong>de</strong> Si com um controle racional ou com um alargamento <strong>do</strong> ego ou da<br />
consciência sobre o inconsciente. Nada mais estranho a tal noção, já que ela implica numa<br />
experimentação com a própria consciência <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a fazê-la involuir - no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> se tornar<br />
mínima (reduzi-la à modéstia necessária) e <strong>de</strong> se por em relação <strong>de</strong> sintonia ou se <strong>de</strong>ixar<br />
atravessar por afetos intensivos ou pelo <strong>de</strong>vir. A noção <strong>de</strong> prática <strong>de</strong> si implica em <strong>de</strong>sestabilizar<br />
códigos morais homogêneos e intimistas - em forçar uma relação da consciência com algo que a<br />
ultrapassa, em <strong>do</strong>mar o in<strong>do</strong>mável.<br />
Nesta direção, não se trata <strong>de</strong> uma clínica voltada para uma análise das representações, <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong>, nem tão pouco para o fortalecimento <strong>do</strong> ego, mas para um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> relação <strong>de</strong> si para<br />
consigo.<br />
Tal estratégia clínica se dá num plano <strong>de</strong> superfície, e enquanto tal, é avessa ao intimismo,<br />
à interiorização. Se trabalhamos com a idéia <strong>de</strong> que a subjetivida<strong>de</strong> é produzida, ela não se<br />
constitui numa interiorida<strong>de</strong> mas é compreendida a partir <strong>de</strong> um fora que se <strong>do</strong>bra.<br />
Eis como queremos <strong>de</strong>finir a prática clínica: como um <strong>do</strong>s planos <strong>de</strong> ação possível <strong>de</strong> uma<br />
prática que é antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> política, na mesma medida em que a produção da subjetivida<strong>de</strong> é<br />
política.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, trata-se <strong>de</strong> uma clínica em que se trabalha não com regras exteriores, com<br />
transcendências, mas com enfrentamentos, guerrilhas contra aquilo que obstaculiza a produção<br />
<strong>de</strong>sejante (os <strong>de</strong>scaminhos <strong>do</strong> facismo em nós, encontros que po<strong>de</strong>m levar à <strong>de</strong>struição,<br />
processos <strong>de</strong> anti-produção em que somos captura<strong>do</strong>s por exemplo, nas relações <strong>de</strong> trabalho[149]<br />
no lidar direto com o que constrange esta produção, ten<strong>do</strong> como fim o seu fortalecimento<br />
enquanto fortalecimento da vida.<br />
Foucault analisou como os gregos problematizavam os prazeres sexuais através <strong>de</strong><br />
codificações localizadas, que não abrangiam a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> campo social. Por isso mesmo, a<br />
relação da subjetivida<strong>de</strong> com as codificações admitia uma certo grau <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, em que o<br />
sujeito operava ativamente esta regulação. Ela não lhe vinha como algo unitário, em bloco, e<br />
principalmente, como algo que agia a partir <strong>de</strong> um interior, mas havia vários regimes em que esta<br />
regulação <strong>do</strong>s prazeres podia se dar. A moral <strong>de</strong> códigos abrangentes e universaliza<strong>do</strong>s que<br />
caracterizam nosso momento histórico não admite estes procedimentos.
Eis porque po<strong>de</strong>mos ver a culpa, não como correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a uma natureza humana geral<br />
como muitas vezes se consi<strong>de</strong>ra, mas justamente a esta internalização-interiorização <strong>de</strong> códigos<br />
morais que caracteriza as socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, que fizeram com que <strong>de</strong> fato a emergência <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo já seja vivida <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> culposo, mesmo antes <strong>de</strong> se constituir numa prática.<br />
As práticas <strong>de</strong> si surgem como políticas sexuais ou experimentações que possam constituir<br />
linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização construtivas, no senti<strong>do</strong> da <strong>de</strong>sestabilização <strong>de</strong>stes códigos unitários<br />
e interioriza<strong>do</strong>s. O que tanto o mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong> dique no campo da sexualida<strong>de</strong> quanto o <strong>do</strong> julgamento<br />
<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação (a que nos referimos anteriormente) no campo da clínica possibilitam pensar são<br />
estratégias clínicas que se dão numa superfície intensiva ou no campo das lutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />
2.6) Otto Rank : Dan<strong>do</strong> Voz a Um Maldito<br />
Otto Rank, o jovem e brilhante guarda-livros <strong>do</strong> círculo das quartas feiras (assim ele é<br />
referi<strong>do</strong> na biografia <strong>de</strong> Ernest Jones) discípulo dileto <strong>de</strong> Freud, torna-se mais tar<strong>de</strong> um dissi<strong>de</strong>nte<br />
que toma um caminho singular[150]. Um <strong>do</strong>s malditos da psicanálise[151], leitor <strong>de</strong> Nietzsche, ele<br />
aponta que esta lhe parece um méto<strong>do</strong> "racionalista", que apenas aprofunda a consciência <strong>de</strong> si,<br />
quan<strong>do</strong> este era justamente o maior problema <strong>do</strong> homem mo<strong>de</strong>rno. Ela agravaria o mal que<br />
preten<strong>de</strong> curar. Incluímos neste momento este apanha<strong>do</strong> da obra <strong>de</strong> Otto Rank toman<strong>do</strong>-o como<br />
alia<strong>do</strong> na construção <strong>de</strong>sta clínica que <strong>de</strong>nominamos "Do <strong>Esquecimento</strong>". A construção <strong>de</strong>sta<br />
perspectiva clínica diz respeito, tal como as construções <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo em outros campos, a alia<strong>do</strong>s, a<br />
contágios, a simbioses - numa palavra, a agenciamentos. Otto Rank é um <strong>de</strong>stes agenciamentos.<br />
Po<strong>de</strong>mos ver nesta crítica <strong>de</strong> Rank uma direção próxima daquela que nos dias atuais<br />
problematiza a interpretação ou o trabalho clínico no campo da representação. Sua clínica se<br />
pauta muito mais pela construção <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> fortalecimento <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> autoexpressão<br />
diferencia<strong>do</strong>ra ou <strong>do</strong> que ele <strong>de</strong>nomina vonta<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, <strong>do</strong> que pela interpretação,<br />
pelo tornar consciente o inconsciente, pelo <strong>de</strong>srecalcar o que está recalca<strong>do</strong>. Assim po<strong>de</strong>mos ver<br />
sua ênfase no trauma <strong>do</strong> nascimento - nascimento enquanto diferenciação, enquanto processo <strong>de</strong><br />
singularização relativamente a um campo pré-individual. E não se trata apenas <strong>de</strong> reconhecer o<br />
papel da mãe frente ao <strong>do</strong> pai, já que Rank é um crítico <strong>do</strong> conjunto da noção <strong>de</strong> complexo <strong>de</strong><br />
Édipo.<br />
No mito <strong>de</strong> Édipo Rank vê como principal problema o caráter efêmero da existência e a<br />
submissão <strong>do</strong> homem à cultura, rejeitan<strong>do</strong> a interpretação freudiana.<br />
O que motivou o banimento <strong>de</strong> Rank <strong>do</strong> movimento psicanalítico, em cuja condução Ernest<br />
Jones tem um papel importante? A partir <strong>do</strong> momento em que <strong>de</strong>ixa a Internacional <strong>de</strong> Psicanálise<br />
em mea<strong>do</strong>s da década <strong>de</strong> 20, seu boletim oficial (dirigi<strong>do</strong> por Ernest Jones) só volta a mencionar<br />
seu nome após sua morte, na seção <strong>de</strong>nominada necrológico, não sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> insinuar que<br />
"dificulda<strong>de</strong>s pessoais" haviam afasta<strong>do</strong> o antigo discípulo dileto <strong>do</strong> bom caminho. As dificulda<strong>de</strong>s<br />
pessoais alegadas ligavam-se, entre outras, a um excessivo apreço pelo dinheiro, o que o teria<br />
leva<strong>do</strong> a abreviar a duração das análises. As acusações eram portanto pesadas. Como veremos,<br />
as críticas <strong>de</strong> Rank à Psicanálise também o eram, críticas políticas e filosóficas, que no entanto<br />
foram silenciadas da "história oficial". Nos compêndios <strong>de</strong> história da psicanálise, Otto Rank<br />
costuma ser menciona<strong>do</strong> apenas como o cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma até certo ponto banal teoria <strong>do</strong> trauma<br />
<strong>do</strong> nascimento na qual a angústia seria <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong>ste traumatismo inicial. Omite-se que após sua<br />
saída da Internacional Psicanalítica, Rank escreveu vários livros e se tornou um psicanalista <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> nome nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e na Inglaterra.[152] Mas a omissão que nos parece mais<br />
interessante diz respeito às críticas filosófico-políticas por ele feitas ao freudismo, que fazem eco<br />
com muitas hoje feitas a partir <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Deleuze e Guattari. Rank <strong>de</strong>nomina seu méto<strong>do</strong><br />
clínico "<strong>Psicologia</strong> da Diferença[153]".<br />
O caminho <strong>de</strong> Rank, ainda na década <strong>de</strong> 20, assemelha-se ao que contemporâneamente foi<br />
segui<strong>do</strong> por teóricos (entre eles Guattari, Richard Sennet, Castel) que aproximaram a produção<br />
das subjetivida<strong>de</strong> contemporânea da própria emergência da psicanálise, numa espécie <strong>de</strong><br />
constatação <strong>de</strong> que apenas a época contemporânea po<strong>de</strong>ria produzir um saber e uma clínica com
tais características. A psicanálise teria reproduzi<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação interioriza<strong>do</strong>s,<br />
introspectivos, e qualquer cura só po<strong>de</strong>ria se dar se pudéssemos romper com a reprodução <strong>de</strong>ste<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação. Tal é a perspectiva <strong>de</strong> Rank, inspira<strong>do</strong> pela leitura <strong>de</strong> Nietzsche, ven<strong>do</strong> na<br />
interiorização e na produção <strong>do</strong> ressentimento gran<strong>de</strong>s características da subjetivida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna,<br />
que traçam por outro la<strong>do</strong>, o solo epistemológico <strong>do</strong> qual emergiu a própria psicanálise.<br />
A concepção freudiana <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, parecia a Rank muito débil, se comparada a vonta<strong>de</strong>,<br />
conceito que ele <strong>de</strong>senvolve, apoia<strong>do</strong> na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência nietzschiana.<br />
Por vonta<strong>de</strong> eu <strong>de</strong>signo uma força autônoma organiza<strong>do</strong>ra ... que se constitui na expressão<br />
criativa da personalida<strong>de</strong> total e que distingue um indivíduo <strong>do</strong> outro[154].<br />
A visão freudiana sobre o homem parece-lhe em contrapartida a <strong>de</strong> uma criatura in<strong>de</strong>fesa,<br />
castrada. Um inconsciente pensa<strong>do</strong> como se<strong>de</strong> <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> lhe parece insuficiente. Tal<br />
concepção seria reducionista para com as forças inconscientes, que <strong>de</strong>nomina cósmicas, naturais,<br />
supra-individuais, irracionais, ou ainda, as próprias forças da vida estan<strong>do</strong> por isso além <strong>de</strong> toda a<br />
psicologia. Por outro, ele vê nas forças inibitórias ou que freiam o que ele chama <strong>de</strong> aspecto<br />
irracional no homem uma característica <strong>do</strong> humano nas mais diversas culturas. A questão <strong>de</strong> sua<br />
clínica não estaria, nesta medida, na luta contra a repressão ou contra estas forças inibitórias no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> "<strong>de</strong>srecalcar o que está recalca<strong>do</strong>", mas na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a vonta<strong>de</strong> possa se<br />
efetuar construtivamente e criativamente, não obstante a existência <strong>de</strong>stas forças contrárias (ou<br />
reativas), que nada mais são <strong>do</strong> que a vonta<strong>de</strong> tornada negativa. Sua psicopatologia vai ser<br />
pensada a partir <strong>do</strong>s caminhos e <strong>de</strong>scaminhos da vonta<strong>de</strong> - e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como a consciência a<br />
percebe e se relaciona com ela no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> transformá-la em ação ou em obstaculizá-la.<br />
A neurose é, <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista, um problema da consciência. Esta consciência po<strong>de</strong> ser<br />
uma ferramenta da vonta<strong>de</strong>, ou po<strong>de</strong> tornar-se sua inimiga. Prazer e <strong>de</strong>sprazer são aspectos <strong>do</strong><br />
fenômeno da consciência. A exacerbação contemporânea da esfera <strong>do</strong> conhecimento faz com que<br />
a consciência se separe da experiência. Esta separação produz uma consciência que não<br />
consegue esquecer.<br />
A neurose não seria propriamente uma <strong>do</strong>ença psíquica, mas um fenômeno psico-social<br />
mais amplo, consequência <strong>do</strong> individualismo exacerba<strong>do</strong> na cultura contemporânea. Há no<br />
neurótico uma consciência <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> sem religiosida<strong>de</strong>, uma auto-consciência verda<strong>de</strong>iramente<br />
tormentosa. A neurose não é apenas vonta<strong>de</strong> negativa. - mas consciência <strong>de</strong>sta vonta<strong>de</strong>. Aquilo<br />
que é um problema básico da vonta<strong>de</strong> - sua relação com o que vai contra ela - é transforma<strong>do</strong><br />
num problema <strong>de</strong> consciência e assim torna<strong>do</strong> insolúvel.<br />
Eis porque para Rank tu<strong>do</strong> o que leve o homem à introspecção apenas aprofunda o<br />
processo pelo qual o neurótico torna sua vonta<strong>de</strong> negativa . O jogo conflitual que gera a neurose<br />
ou o tipo cria<strong>do</strong>r, não neurótico, se passa numa superfície, po<strong>de</strong>ríamos dizê-lo, composta pela<br />
vonta<strong>de</strong> e pela maneira como essa consciência a expressa ou a manifesta. A emoção é uma<br />
forma passiva <strong>de</strong> manifestação da vonta<strong>de</strong>, enquanto o afeto é sua forma ativa.<br />
A leitura <strong>de</strong> Freud <strong>do</strong> mito <strong>de</strong> édipo <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ver o que para Rank é o essencial - a luta <strong>do</strong><br />
homem por sua autonomia frente aos <strong>de</strong>sígnios da cultura. Não se trata, assim, <strong>de</strong> uma questão<br />
psicológica familiar, especialmente <strong>de</strong> uma questão familiar burguesa. Muitos são os momentos<br />
em que Rank, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> cultura no campo da antropologia e da história, assinala o<br />
caracter restrito das teorizações freudianas - restritos ao homem mo<strong>de</strong>rno, burguês, oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Em Além da <strong>Psicologia</strong>, Rank insiste em que a psicanálise é uma teoria que sofre <strong>do</strong>s<br />
mesmos males da contemporaneida<strong>de</strong>, ao aprofundar a cisão entre o que <strong>de</strong>nomina os aspectos<br />
irracionais no homem e seus aspectos racionais ou entre afeto e pensamento.<br />
O mecanismo <strong>de</strong> negação é uma mecanismo mais importante <strong>do</strong> que a repressão para<br />
pensar o indivíduo mo<strong>de</strong>rno. O que ele chama <strong>de</strong> negação é algo próximo da noção nietzscheana
<strong>de</strong> força reativa. Na neurose enquanto fenômeno contemporâneo, soma-se a este mecanismo<br />
necessário - o da transformação das forças ativas em reativas - a ação <strong>de</strong> uma autoconsciência<br />
exacerbada, instrospectiva. Esta consciência, excessivamente racional, está preocupada em saber<br />
as causas <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong> ativo em reativo, em explicá-lo, e neste senti<strong>do</strong><br />
afasta-se cada vez mais da ação e portanto da vonta<strong>de</strong> afirmativa e construtiva.<br />
A <strong>do</strong>ença contemporânea provém, por outro la<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s excessos <strong>do</strong> conhecimento. Eis<br />
porque ele não vê na psicanálise condições para superar a neurose, mas apenas para aprofundála<br />
pela via da introspecção, já que ela se apresenta como um conhecimento racional sobre o<br />
homem. Nem to<strong>do</strong> conhecimento é negativo - há o conhecimento cria<strong>do</strong>r, que expressa o<br />
pre<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> afirmativa. Entretanto este conhecimento só é realmente possível se<br />
apoia<strong>do</strong> na emoção e não no pensamento. Se <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> da emoção ele também ten<strong>de</strong>rá para a<br />
formulação <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s gerais, e para o afastamento da diferença. Apenas o conhecimento<br />
gera<strong>do</strong> pela emoção po<strong>de</strong> perceber mudanças. Apenas este tipo <strong>de</strong> conhecimento po<strong>de</strong><br />
possibilitar novas interpretações sobre si mesmo na clínica, que permitem que nos libertemos <strong>do</strong><br />
velho, <strong>do</strong> ultrapassa<strong>do</strong> e principalmente <strong>do</strong> nosso próprio passa<strong>do</strong>.<br />
Rank não vê na psicanálise condições para funcionar <strong>de</strong> forma cria<strong>do</strong>ra na clínica já que<br />
está presa a esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento negativo. Sua teoria está atravessada por<br />
categorias negativas tornadas gerais, por explicações racionais que não po<strong>de</strong>m pensar a<br />
diferença.<br />
Terapia da Vonta<strong>de</strong> - eis como <strong>de</strong>nomina seu méto<strong>do</strong>, que toma a vonta<strong>de</strong> como centro<br />
sobre o qual o analista <strong>de</strong>ve atuar construtivamente. Pela vonta<strong>de</strong> nasce a individualida<strong>de</strong>, que<br />
tem o senti<strong>do</strong>, em Rank, <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> diferenciação frente a um plano indiferencia<strong>do</strong>. O<br />
indivíduo frente à massa, a criança frente à mãe no trauma <strong>do</strong> nascimento.<br />
A terapia está baseada na vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo como uma força autônoma... as explicações<br />
causais po<strong>de</strong>m agir apenas para trás, po<strong>de</strong>mos explicar como algo aconteceu, mas não po<strong>de</strong>mos<br />
construir vida, ou seja, efetuar terapia nestas bases[155].<br />
A explicação causal freudiana da situação analítica como repetição (principalmente como<br />
recordação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>) - ao invés da ênfase da mesma como uma nova experiência no presente<br />
leva a uma negação da autonomia pessoal em favor <strong>do</strong> mais estrito <strong>de</strong>terminismo, ou seja, ... à<br />
negação da vida nela mesma ... tal atitu<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser justificada no campo da ciência pura ... mas é<br />
certamente contrária aos propósitos terapêuticos que <strong>de</strong>vem direcionar-se à vida nela mesma[156]<br />
...<br />
A questão da clínica para Rank passa por positivar estas forças presentes no homem. O<br />
homem não apenas sofre a cultura, mas cria a cultura. O cria<strong>do</strong>r é justamente aquele que vive a<br />
relação com a civilização <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> ativo. A questão está na maneira como o homem resolve<br />
sua tendência a parecer-se com (likeness) versus uma outra tendência, a <strong>de</strong> expressar-se<br />
verda<strong>de</strong>iramente (true expression)[157].<br />
Rank vê nas propostas teórico-clínicas <strong>de</strong> Freud um caráter adaptativo, consi<strong>de</strong>ra mesmo<br />
que este não acredita em sua clínica. Vê um indício <strong>de</strong>ste afastamento da clínica o fato <strong>de</strong> os<br />
textos finais <strong>de</strong> Freud serem mais gerais e filosóficos, além <strong>de</strong> pessimistas. Freud está num<br />
impasse, e para Rank isto se <strong>de</strong>ve justamente ao fato <strong>de</strong> sua teoria ser o último bastião na <strong>de</strong>fesa<br />
<strong>do</strong> patriarca<strong>do</strong>[158], não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> fornecer alternativas positivas para a subjetivida<strong>de</strong><br />
contemporânea.<br />
A clínica <strong>de</strong> Rank aponta para a criação como saída para a problemática da subjetivida<strong>de</strong><br />
contemporânea - a neurose é vista, como dissemos, como um fenômeno histórico. Criação no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> encarnar outra forma <strong>de</strong> relação entre o <strong>de</strong>sejo e seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> regulação - como<br />
po<strong>de</strong>ríamos dizê-lo retoman<strong>do</strong> nossa discussão sobre as práticas <strong>de</strong> si. Criação como<br />
manifestação no homem <strong>de</strong> forças que ultrapassam o indivíduo, já que na arte não se trata <strong>de</strong> ver
a expressão da psicologia <strong>do</strong> artista, mas a expressão <strong>de</strong> forças que ultrapassam toda a<br />
psicologia.<br />
Parte III<br />
A <strong>Construção</strong> <strong>de</strong> <strong>Uma</strong> Superfície <strong>Clínica</strong><br />
O inconsciente não é uma profundida<strong>de</strong>. As questões que o <strong>de</strong>sejo nos coloca são questões<br />
<strong>de</strong> plano e não <strong>de</strong> introspecção, recordação ou interpretação. Um plano no tempo, que toma<br />
sempre novas configurações. Os agenciamentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo é que constroem esta superfície cujos<br />
limites-territorios estão sempre se fazen<strong>do</strong>. Por isso, tanto para pensar o inconsciente e o <strong>de</strong>sejo,<br />
quanto para pensar a própria clinica, trata-se <strong>de</strong> construir um plano <strong>de</strong> superfície.<br />
Na parte 1 nos referimos à emergência, no campo clínico, <strong>de</strong> uma superfície-linguagem,<br />
referida ao componente discursivo, que por certo está conti<strong>do</strong> no plano, mas que não é seu único<br />
componente. Nos referimos também ao privilégio em algumas direções da clínica contemporânea,<br />
<strong>do</strong> regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante, o que <strong>de</strong> nosso ponto <strong>de</strong> vista reduz as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
estabelecer relações <strong>de</strong> imanência ou <strong>de</strong> coextensivida<strong>de</strong> com o plano da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Valorizamos a crítica que Lacan faz da história na clínica enquanto uma crítica às profundida<strong>de</strong>s<br />
da psicanálise que o antece<strong>de</strong>u, por outro recusamos a exclusão <strong>do</strong> tempo que nesta perspectiva<br />
é operada. Sua superfície-linguagem é uma superfície imóvel no tempo. Se há uma<br />
temporalida<strong>de</strong> presente neste plano ela está referida ao tempo <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> uma operação lógica<br />
ou tempo <strong>de</strong> duração <strong>do</strong> jogo, um tempo espacializa<strong>do</strong>, como já vimos no capítulo 1.6, o que torna
impossível pensá-lo como transformação ou como criação. Na superfície que queremos construir,<br />
há outros componentes além <strong>do</strong> significante - outros regimes <strong>de</strong> signos mais porosos ou<br />
permeáveis ao campo da produção <strong>de</strong>sejante. Além disso, este plano está imerso no tempo.<br />
Na parte 2 esboçamos a construção <strong>de</strong> uma superfície clínica, a partir da noção <strong>de</strong> prática<br />
<strong>de</strong> si em Foucault. Também a partir <strong>de</strong> Espinosa buscamos pensar uma superfície intensiva on<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slocamentos se dão em função <strong>do</strong>s encontros <strong>de</strong> corpos que po<strong>de</strong>m levar à expansão da vida<br />
ou à sua obstaculização. Nesta parte três daremos continuida<strong>de</strong> à construção <strong>de</strong>sta superfície<br />
clínica - se empregamos a palavra construção é porque queremos nos referir à clínica como um<br />
construtivismo, e a um inconsciente que é imediatamente construtor. Lançaremos mão, neste<br />
ponto, <strong>de</strong> referências estéticas, dan<strong>do</strong> continuida<strong>de</strong>, à perspectiva transdisciplinar que nos orienta.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos que a arte contemporânea também "construiu superfícies" ao livrar-se <strong>do</strong>s<br />
princípios estéticos transcen<strong>de</strong>ntes nos quais se apoiava. No futurismo e no construtivismo,<br />
também encontraremos a problemática <strong>de</strong> uma ruptura com o passa<strong>do</strong>, que era para estes<br />
movimentos um obstáculo "quase freudiano", como veremos mais adiante. Ao afastar-se da<br />
função <strong>de</strong> representação da realida<strong>de</strong>, das estruturas harmônicas clássicas (no caso da música) e<br />
das profundida<strong>de</strong>s psicológicas (no caso <strong>do</strong> romance clássico), a arte contemporânea conseguiu<br />
criar "mun<strong>do</strong>s novos". Estas ressonâncias entre arte e clínica po<strong>de</strong>m nos levar a pensar que a<br />
<strong>de</strong>sestabilização da subjetivida<strong>de</strong> que caracteriza nossa contemporaneida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> dar lugar à<br />
construção <strong>de</strong> novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida - num processo análogo ao que se <strong>de</strong>u no campo da arte.<br />
Chegamos assim a uma outra <strong>de</strong>nominação para o inconsciente - plano <strong>de</strong> imanência. A<br />
<strong>de</strong>nominação que utilizamos tão largamente na parte 2 - campo da produção <strong>de</strong>sejante - serviu ao<br />
nosso propósito naquele momento - o <strong>de</strong> afirmar o inconsciente como campo <strong>do</strong> afeto, <strong>do</strong> sexo, <strong>do</strong><br />
intempestivo como um campo <strong>de</strong> forças, um campo <strong>de</strong> luta - combaten<strong>do</strong> por esta via uma certa<br />
perspectiva teórico-clínica que trabalha com um inconsciente estrutural, linguístico, ou com um<br />
inconsciente que possui formas prévias.<br />
Neste momento interessa-nos explicitar que este campo <strong>de</strong> forças não constitui uma<br />
profundida<strong>de</strong>, mas uma superfície. Não se trata, pois, <strong>de</strong> uma clínica da interiorida<strong>de</strong>, da<br />
profundida<strong>de</strong> psicológica ou da memória.<br />
3.1) Pensan<strong>do</strong> a Superfície <strong>Clínica</strong> no Tempo<br />
Po<strong>de</strong>ríamos começar retoman<strong>do</strong> a comparação que Bergson faz entre a inteligência e o<br />
cinema. A inteligência, diz Bergson, opera como um cinematógrafo interior[159], produzin<strong>do</strong> cortes<br />
no movimento contínuo <strong>de</strong> transformação que é a duração. O cinema trabalha <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />
semelhante à inteligência, recortan<strong>do</strong> a duração em instantes. O que vemos na tela é uma<br />
reconstrução a partir <strong>de</strong>stes recortes.<br />
A inteligência faz recortes no tempo porque tem um compromisso com a utilida<strong>de</strong>, com o<br />
pragmatismo, com a atenção à vida. Estes recortes que introduzem regiões <strong>de</strong> parada no <strong>de</strong>vir<br />
correspon<strong>de</strong>m a contrações mais ou menos fluidas. As recordações, ou imagens-lembrança[160]<br />
estarão tanto mais <strong>de</strong>finidas quanto mais próximas da utilida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> esquema sensório motor, tanto<br />
mais fluidas quanto mais próximas <strong>do</strong> plano virtual, ou da memória imemorial.<br />
Em que consiste a memória imemorial ou virtual? Digamos inicialmente que ela não se<br />
constitui a partir <strong>de</strong> um presente que passou, envelheceu e se inscreveu em qualquer região <strong>do</strong><br />
cérebro. Não é o nosso psiquismo que cria ou contem o tempo, mas a subjetivida<strong>de</strong> é que está<br />
imersa no tempo ou que está contida numa memória que é maior que ela. On<strong>de</strong> há vida, aí o<br />
tempo está inscrito - esta presença <strong>do</strong> tempo no vivo correspon<strong>de</strong> ao conceito <strong>de</strong> duração: um<br />
mo<strong>do</strong> temporal em que o passa<strong>do</strong> subsiste no presente contínuamente engendran<strong>do</strong> o novo.
O organismo vivo é algo que dura. Seu passa<strong>do</strong> se prolonga to<strong>do</strong> inteiro em seu presente ,<br />
tornan<strong>do</strong>-se atual e ativo.[161]<br />
Por outro la<strong>do</strong>, o ponto <strong>de</strong> vista da inteligência, da utilida<strong>de</strong>, da construção da cultura<br />
humana leva a um "voltar as costas para o tempo". É da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> próprio mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> funcionar da<br />
subjetivida<strong>de</strong> em sua vertente utilitária preencher o novo com o velho, com o já conheci<strong>do</strong>.<br />
Interromper a duração.<br />
Se a prática clínica se restringir a esta prática utilitária, se ela tomar apenas o ponto <strong>de</strong> vista<br />
da inteligência, ela estará impossibilitada <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> produzir o novo, a mudança, o <strong>de</strong>vir.<br />
Ela buscará preencher o novo com o já conheci<strong>do</strong>, numa espécie <strong>de</strong> tentativa <strong>de</strong> prever situações<br />
futuras baseadas na experiência passada, por exemplo. Ou se reduzirá a uma prática <strong>de</strong><br />
reconstrução da história pessoal, fixan<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, pontos <strong>de</strong> parada, sem que possa<br />
apreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar contínuo da vida na duração.<br />
Retornemos à teoria das duas memórias[162]: <strong>Uma</strong> <strong>de</strong>las, a memória psicológica, está<br />
voltada para a atenção à vida, para a utilida<strong>de</strong>. Indispensável à sobrevivência, ela não se constitui<br />
porém, na totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa memória. Ela é como a ponta <strong>de</strong> um iceberg - sua condição <strong>de</strong><br />
possibilida<strong>de</strong> é esta outra memória, a memória imemorial, que é o inconsciente bergsoniano.<br />
Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> que nos referimos como memória na clínica se refere à memória psicológica ou<br />
memória utilitária. Entretanto, esta ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> memorização é incapaz <strong>de</strong> tocar o plano das<br />
memórias imemoriais e portanto, <strong>de</strong> tocar o inconsciente[163].<br />
O passa<strong>do</strong> não está arquiva<strong>do</strong>, mas existe e se conserva por inteiro agin<strong>do</strong> como tendência.<br />
Só uma pequena parte <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser representada. Assim, a linguagem representacional é<br />
um instrumento limita<strong>do</strong> para a clínica - Bergson a consi<strong>de</strong>ra como inteligência exteriorizada[164].<br />
Mas a subjetivida<strong>de</strong> não tem apenas uma vertente utilitária e ligada à inteligência. Há um outro<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> conhecer liga<strong>do</strong> ao afeto - que não conhece por cortes no <strong>de</strong>vir, mas que conhece por<br />
colocar-se no lugar <strong>de</strong>, ou como po<strong>de</strong>ríamos dizer recordan<strong>do</strong> Daniel Stern no (capítulo 1.7.2) que<br />
conhece por entonamento afetivo. Este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> conhecer é a intuição[165]. Ela é, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>,<br />
muda - é num outro registro que não o da representação que ela funciona. Pensamos que o fazer<br />
clínico se liga à intuição bergsoniana. Teríamos que esclarecer esta última afirmação. Que<br />
enten<strong>de</strong>mos por intuição e como ela se liga à prática clínica?<br />
Em A Evolução Cria<strong>do</strong>ra Bergson se refere às limitações da inteligência para pensar a vida,<br />
mas também àquelas da intuição, que apenas po<strong>de</strong> se exteriorizar em atos. A consciência<br />
humana contem as duas vertentes, da inteligência e da intuição, que são duas tendências da vida.<br />
Apenas uma combinação das duas po<strong>de</strong>rá produzir um conhecimento sobre a vida, já que se por<br />
um la<strong>do</strong> a intuição é capaz <strong>de</strong> se colocar <strong>de</strong> pronto no seio <strong>do</strong> <strong>de</strong>vir vital, é, por outro, incapaz <strong>de</strong><br />
se generalizar ou <strong>de</strong> se exteriorizar <strong>de</strong> outra forma que não a da ação. A inteligência, por sua vez,<br />
apenas po<strong>de</strong> localizar causas, paralisar o <strong>de</strong>vir, negligencian<strong>do</strong> a parte <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> e criação<br />
inerentes ao ato livre.<br />
Muito <strong>do</strong> que a psicanálise teorizou e praticou na clínica se refere ao que po<strong>de</strong>ríamos<br />
chamar <strong>de</strong> prática da inteligência (isto se acentua principalmente se pensarmos um inconsciente<br />
constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante). E não po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, já que<br />
ambas as tendências estão presentes no espírito humano e portanto na consciência <strong>do</strong> analista.<br />
Entretanto, é preciso ultrapassar a visada da inteligência se se quer habitar o <strong>de</strong>vir. Isto só será<br />
possível através da intuição. Não uma intuição entendida como força avessa e contrária à<br />
inteligência, uma espécie <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong> sombrio da mesma, que implica em romper totalmente<br />
com ela. Mas uma intuição entendida enquanto prática complementar, sem a qual o analista não<br />
po<strong>de</strong>rá apreen<strong>de</strong>r o novo, a não ser enquanto repetição <strong>do</strong> mesmo.<br />
É este ponto <strong>de</strong> vista da inteligência que leva à produção das figuras <strong>do</strong> negativo - o nada, a<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o vazio. Elas são ilusões <strong>do</strong> entendimento produzidas por uma memória utilitária que<br />
se <strong>de</strong>cepciona com o que encontra, baseada no que esperava encontrar. É a memória <strong>de</strong> algo que<br />
já não está presente que nos leva a formular a idéia <strong>de</strong> nada ou <strong>de</strong> vazio, quan<strong>do</strong> estamos<br />
imersos num mun<strong>do</strong> em constante mutação, on<strong>de</strong> o novo se engendra sem cessar. Apenas um<br />
ser <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> memória (utilitária) é capaz <strong>de</strong> formular, diante <strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m, esta idéia <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, que nos faz sempre enxergar novas or<strong>de</strong>ns como negativas. É também esta memória
que nos faz expressar, através da idéia <strong>de</strong> nada, ou <strong>de</strong> vazio, nossa <strong>de</strong>cepção com a distância<br />
entre o virtual e o atual.<br />
Tempo é transformação e mudança. É engendramento contínuo <strong>do</strong> novo, pela<br />
sobrevivência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> no presente - mas nós não vemos a multiplicida<strong>de</strong> colorida <strong>de</strong> <strong>de</strong>vires<br />
que passam por nossos olhos[166] quan<strong>do</strong> acionamos nosso cinematógrafo interior que é a<br />
inteligência.<br />
As consequências <strong>de</strong> tal concepção sobre a temporalida<strong>de</strong>, continuan<strong>do</strong> as discussões que<br />
abrimos até aqui, <strong>de</strong>vem ser analisadas. De um la<strong>do</strong>, a concepção <strong>de</strong> traço <strong>de</strong> memória - <strong>de</strong> um<br />
inconsciente forma<strong>do</strong> <strong>de</strong> memórias infantis, torna-se restrita ao campo da vida utilitária, <strong>do</strong> que<br />
Bergson chama esquema sensório motor. Assim, não seria inconsciente este campo constituí<strong>do</strong><br />
pelas memórias infantis - entendidas enquanto inscrições <strong>de</strong> um presente que passou. O<br />
inconsciente seria este campo <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> constituí<strong>do</strong> por este passa<strong>do</strong> que sobrevive inteiro,<br />
automáticamente e que permanece <strong>de</strong>bruça<strong>do</strong> sobre o nosso presente.[167]. Essencialmente<br />
inativo, mas presença prévia, plano <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> - ele insiste e pressiona, sem <strong>de</strong>terminar o<br />
presente no senti<strong>do</strong> estrito, já que o que se atualiza é sempre imprevisível.<br />
A subjetivida<strong>de</strong> navega no tempo, ou numa gran<strong>de</strong> memória que faz coexistir, retiran<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
uma or<strong>de</strong>m cronológica, aquilo que comumente se acredita constituir sucessão na vida. A infância,<br />
a a<strong>do</strong>lescência, a vida adulta, a velhice. Todas coexistem neste plano da memória imemorial, sob<br />
a forma <strong>de</strong> lençóis <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>[168]. Quan<strong>do</strong> a memória utilitária tropeça, surgem, diz Deleuze em<br />
A Imagem - Tempo[169], estes fenômenos da memória virtual - o déjà vu, as premonições<br />
inexplicáveis, que apontam uma temporalida<strong>de</strong> na qual o acontecimento sempre se dê tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mais. Este tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais aponta para o caráter prévio da experiência temporal no campo da<br />
subjetivida<strong>de</strong>.<br />
Se a dimensão temporal é pensada no plano, ela o é, em geral, como função <strong>do</strong> espaço -<br />
espaço percorri<strong>do</strong>. Pensan<strong>do</strong> o tempo como função <strong>do</strong> espaço, no entanto, conseguimos apenas<br />
pensar o tempo cronológico. Ora, o que Deleuze vai propor, a partir <strong>de</strong> Bergson, é um plano on<strong>de</strong><br />
o espaço seja função <strong>do</strong> tempo ou on<strong>de</strong> o tempo seja primeiro. O plano é um corte, ele próprio<br />
imóvel, se consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> isoladamente, mas coloca<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta vez num campo on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> está em<br />
contínua mudança. Neste corte, o movimento expressa as transformações <strong>do</strong>s corpos - cada<br />
conjunto <strong>de</strong> movimentos correspon<strong>de</strong> a um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apresentação <strong>do</strong> plano. Os movimentos <strong>do</strong>s<br />
corpos no plano dizem respeito também, ao to<strong>do</strong> no qual este corte ou plano está inseri<strong>do</strong>, que é o<br />
<strong>de</strong>vir universal em constante transformação[170].<br />
Para pensar a memória neste plano po<strong>de</strong>mos nos utilizar <strong>de</strong> uma tela on<strong>de</strong> estão coloca<strong>do</strong>s<br />
simultaneamente passa<strong>do</strong> e futuro. Nesta tela ou plano se atualizam constantemente diversas<br />
figuras <strong>do</strong> tempo: imagens lembranças correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a contrações <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> puro, lençóis <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> virtual que correspon<strong>de</strong>m a um distanciamento da vida prática e a uma aproximação <strong>do</strong><br />
ser em si <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. As imagens-lembrança não são o passa<strong>do</strong>, mas atualizações <strong>de</strong> passa<strong>do</strong><br />
puro - elas não nos trazem o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> volta, mas correspon<strong>de</strong>m a colocar-se neste plano em si<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, que é primeiro em relação a to<strong>do</strong>s os passa<strong>do</strong>s que nossa lembrança po<strong>de</strong>ria nos<br />
trazer, e que as constitui. Os lençóis <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> não são memórias arquivadas. Cada momento<br />
<strong>de</strong> nossa vida oferece estes <strong>do</strong>is aspectos: ao mesmo tempo atual e virtual, por um la<strong>do</strong><br />
percepção por outro lembrança. Já nos referimos, neste plano virtual, à coexistência <strong>do</strong>s lençóis<br />
<strong>de</strong> passa<strong>do</strong> (ou <strong>de</strong> séries, como <strong>de</strong>nominamos na parte 2). Nenhum <strong>de</strong>stes planos é <strong>de</strong>terminante<br />
em relação ao outro. Ao sair <strong>do</strong> tempo espacializa<strong>do</strong> e cronológico, somos força<strong>do</strong>s a pensar<br />
estas estranhas figuras <strong>do</strong> tempo, ou esta diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cronossignos.<br />
O ritornello po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> como uma <strong>de</strong>stas figuras <strong>do</strong> tempo[171] - uma região, um<br />
recorte no <strong>de</strong>vir. Um ritornello é um território em esta<strong>do</strong> nascente, uma atualização <strong>do</strong>s ritmos<br />
vitais enquanto repetições, a engendrarem contínuamente territorializações e <strong>de</strong>sterritorializações.<br />
A vida é territorializante - suas repetições engendram germes <strong>de</strong> território. É também<br />
<strong>de</strong>sterritorializante pois um território produz sempre linhas <strong>de</strong> fuga - assim, as codificações ou<br />
estratos <strong>do</strong> plano têm que ser pensadas no tempo, estan<strong>do</strong> sempre em transformação. Ritornello<br />
é repetição como criação, criação <strong>de</strong> regiões <strong>de</strong> espaço-tempo que constituem os territórios. É,<br />
neste senti<strong>do</strong>, passa<strong>do</strong> e futuro no presente.
O etólogo estoniano Uexküll propõe que pensemos a natureza como música[172] - cada ser<br />
vivo como partitura - um gran<strong>de</strong> plano <strong>de</strong> univocida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser (a memória virtual) a partir <strong>do</strong> qual<br />
cada espécie correspon<strong>de</strong> a um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> individuação ou <strong>de</strong> atualização. A finalida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />
explicar a relação existente entre a aranha e a mosca - porque ela faria uma teia tão a<strong>de</strong>quada a<br />
esta aparente finalida<strong>de</strong>? Respon<strong>de</strong> Uexküll - porque há um pouco <strong>de</strong> mosca na aranha e vice<br />
versa - já que ambas provêm <strong>de</strong>ste plano único. E porque a aranha conhece - com a intuição - o<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser da mosca, diria Bergson. Estas mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> individuação que são cada ser vivo operam<br />
por diferenciação e repetição (<strong>de</strong>sterritorialização <strong>do</strong> inato, fixação <strong>do</strong> aprendi<strong>do</strong>). O ritornello<br />
correspon<strong>de</strong> a este processo <strong>de</strong> individuação em esta<strong>do</strong> emergente - <strong>de</strong> construção <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s<br />
próprios <strong>de</strong> cada espécie como <strong>de</strong>nomina Uexküll .<br />
A clínica po<strong>de</strong> ser pensada como uma arte <strong>de</strong> reconhecer estes ritornellos, captar sua<br />
emergência - ali on<strong>de</strong> parece haver apenas repetição <strong>do</strong> mesmo (no sintoma neurótico), po<strong>de</strong>r<br />
enxergar o novo em germe. Isto, como vimos acima, como uma prática on<strong>de</strong> o afeto ou<br />
entonamento afetivo - o colocar-se no lugar <strong>de</strong> - tem o papel principal.<br />
A repetição na transferência po<strong>de</strong> também ser pensada a partir da noção <strong>de</strong> ritornello. A<br />
transferência não é um fenômeno a ser interpreta<strong>do</strong>, por várias razões. Primeiro porque nada<br />
ganhamos em termos clínicos com sua redução <strong>do</strong> fenômeno ao plano da linguagem e menos<br />
ainda com referi-la ao passa<strong>do</strong> ou mesmo à pessoa <strong>do</strong> analista. Po<strong>de</strong>r tomá-la como vetor <strong>de</strong><br />
existencialização, como território em germe, ou ao contrário, como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sterritorializar territórios endureci<strong>do</strong>s eis o que se torna mais útil clinicamente. O que a<br />
transferência tem <strong>de</strong> mais interessante é seu caráter <strong>de</strong> agenciamento - neste senti<strong>do</strong> ela é<br />
terapêutica por si mesma. Seu caráter terapêutico está liga<strong>do</strong> ao que Guattari <strong>de</strong>nominou função<br />
<strong>de</strong> ritornello ou função existencializante[173] ou a uma recuperação da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar,<br />
como po<strong>de</strong>mos dizê-lo a partir <strong>de</strong> Winnicott, como veremos. Assim, trata-se <strong>de</strong> trabalhar na<br />
transferência, ou <strong>de</strong> "pegar carona nela". A transferência é um amor como os outros - território em<br />
esta<strong>do</strong> nascente.<br />
Os movimentos <strong>do</strong> plano - as repetições, as territorializações e <strong>de</strong>sterritorializações<br />
correspon<strong>de</strong>m também à presença <strong>do</strong> tempo no plano, já que o movimento, se visto <strong>de</strong> uma forma<br />
ampliada, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista não <strong>do</strong> recorte, mas <strong>do</strong> to<strong>do</strong> que o contem é expressão <strong>do</strong> tempo<br />
como criação contínua <strong>do</strong> novo.<br />
Vimos que a dimensão <strong>do</strong> tempo no plano <strong>de</strong> superfície não está referida à memória <strong>de</strong> um<br />
presente que passou - assim, uma clínica da superfície é uma clínica da anti-memória psicológica,<br />
ou uma clínica <strong>do</strong> esquecimento.<br />
3.2) O Trauma, O Acontecimento e o Tempo<br />
Na parte 1 assinalamos que Freud não aban<strong>do</strong>nara a dimensão <strong>do</strong> traumático ao buscar<br />
sempre no vivi<strong>do</strong> a "causa", por assim dizer, <strong>do</strong>s transtornos <strong>de</strong> seus pacientes - a realida<strong>de</strong> da<br />
cena primária, a sedução, etc. Por outro la<strong>do</strong>, embora façamos a crítica <strong>do</strong> Freud arqueólogo,<br />
valorizamos a "sobrevivência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>" em sua teoria. Po<strong>de</strong>ríamos neste momento aproximar<br />
esta sobrevivência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> em Freud da memória imemorial bergsoniana. É claro que tal<br />
aproximação serve apenas aos propósitos <strong>de</strong> nossa "bricolage" - não se trata <strong>de</strong> dizer que<br />
Bergson e Freud dizem a mesma coisa. <strong>Uma</strong> distinção <strong>de</strong>ve ser feita <strong>de</strong> antemão: como vimos, a<br />
memória imemorial bergsoniana não está constituída por representações e nem po<strong>de</strong> ser<br />
alcançada por esta via.<br />
<strong>Uma</strong> clínica da superfície não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> refletir sobre o trauma. É no que acontece<br />
que <strong>de</strong>vemos buscar a causa <strong>do</strong> sofrimento psíquico. Nisto se aproximam um Freud (o <strong>do</strong><br />
traumático) e a concepção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> com a qual trabalhamos. A subjetivida<strong>de</strong> em Deleuze<br />
é pensada a partir <strong>de</strong> um fora - um fora que constitui um <strong>de</strong>ntro, num duplo movimento - um <strong>de</strong>ntro<br />
que é sempre também fora. O traumático em Freud po<strong>de</strong> ser relaciona<strong>do</strong> a este fora. Freud<br />
relaciona o traumático ao sexual, com o que estamos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que consi<strong>de</strong>remos o
sexual como um campo intensivo, como o próprio campo da produção <strong>de</strong>sejante ou o <strong>do</strong><br />
intempestivo, como nos referimos na parte II.<br />
O que nos parece problemático na concepção <strong>de</strong> trauma é que este seja relaciona<strong>do</strong> a uma<br />
cena - a sedução <strong>de</strong> um adulto dirigida a uma criança, cena primária, cena <strong>de</strong> castração. Ou seja,<br />
que o traumático possa ter uma forma, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> prévia à sua ocorrência. Saberíamos <strong>de</strong><br />
antemão o que po<strong>de</strong>ria vir a ser traumático.<br />
Quan<strong>do</strong> preten<strong>de</strong>mos pensar uma "clínica <strong>do</strong> esquecimento", indissociavelmente ligada a<br />
uma "clínica da superfície", a noção <strong>de</strong> acontecimento surge como central em nossa construção.<br />
Chegamos, para pensar o trauma, à teoria <strong>do</strong> acontecimento elaborada por Deleuze a partir da<br />
filosofia estóica.<br />
Que faz com que uma batalha - (para retornar à referência que fizemos a partir das<br />
Consi<strong>de</strong>rações Intempestivas, no capítulo 2.1) saia <strong>do</strong> papel e se torne um acontecimento?<br />
Quan<strong>do</strong> os generais tentam calcular no papel o que será a batalha, matam o presente em seu<br />
nasce<strong>do</strong>uro - o presente naquilo que ele contem <strong>de</strong> intempestivo. Em A Lógica <strong>do</strong> Senti<strong>do</strong><br />
Deleuze se refere a <strong>do</strong>is aspectos da batalha - num <strong>de</strong>les ela é impassível, neutra em relação aos<br />
vence<strong>do</strong>res e venci<strong>do</strong>s, neutra com relação a todas as suas efetuações temporais. Noutro, ela<br />
nunca é presente, é sempre ainda por vir e já passada. O tempo <strong>do</strong> acontecimento <strong>de</strong>staca-se <strong>de</strong><br />
uma cronologia on<strong>de</strong> os instantes se suce<strong>de</strong>m, ele se dá numa temporalida<strong>de</strong> em que um<br />
presente mínimo se bifurca - fainda não aconteceu e ao mesmo tempo sempre acontece tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mais.<br />
Retornan<strong>do</strong> ao amor por Albertine, aque nos referimos no capítulo 2.3: o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Em<br />
Busca <strong>do</strong> Tempo Perdi<strong>do</strong> "não sabia ainda quem era Albertine, e no entanto, já sabia que era<br />
ama<strong>do</strong> por ela". No acontecimento-paixão o encontro <strong>do</strong>s amantes tem uma dimensão intensiva<br />
prévia que lhe dá uma configuração mágica. O encontro com o ser ama<strong>do</strong> é sempre<br />
surpren<strong>de</strong>ntemente novo, e no entanto, anuncia<strong>do</strong> há uma eternida<strong>de</strong>, por signos e sinais que<br />
apenas não sabíamos <strong>de</strong>cifrar, a não ser agora, que estamos aman<strong>do</strong>. Vários senti<strong>do</strong>s sobrevoam<br />
este encontro, assim como vários senti<strong>do</strong>s sobrevoam a batalha a que nos referíamos acima, sem<br />
nunca tocar este campo neutro on<strong>de</strong> os corpos se enfretam. É neste entre que se dá o<br />
acontecimento, enquanto campo on<strong>de</strong> opera o intempestivo - entre um plano <strong>do</strong>s encontros e<br />
misturas <strong>de</strong> corpos, heterogêneo em relação ao outro, o plano <strong>do</strong>s incorporais - embora lhe seja<br />
primeiro <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> que o causa. O plano <strong>do</strong>s incorporais, por sua vez, é quase causa<br />
em relação ao plano <strong>do</strong>s corpos.<br />
Quan<strong>do</strong> um acontecimento se efetua, po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> efetuação - num<br />
<strong>de</strong>les, ele se insere numa sucessão temporal, numa história, num eu, num esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas.<br />
Noutro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> efetuação, ele rompe com to<strong>do</strong>s estes elementos - ele reduz o presente a um<br />
mínimo instante, já presente e passa<strong>do</strong>. Neste mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> efetuação - a contraefetuação - está o<br />
elemento <strong>de</strong> ruptura com o passa<strong>do</strong> psicológico, com a história, está o intempestivo, ou o<br />
acontecimento propriamente dito. O fato <strong>de</strong> que o plano <strong>do</strong>s incorporais - o plano da linguagem -<br />
seja apenas quase causa, lhe tira parte da eficácia. E neste ponto retornamos a uma questão<br />
fundamental - a da retirada da linguagem <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminante principal na produção da<br />
subjetivida<strong>de</strong>. Entretanto, enquanto quase causa, por estar sobrevoan<strong>do</strong> o campo das coisas e<br />
não cola<strong>do</strong> ao mesmo, outros senti<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m ser cria<strong>do</strong>s - várias mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> efetução ou contra<br />
efetuação <strong>do</strong> acontecimento tornam-se possíveis.<br />
Os acontecimentos se dão num entre: entre o plano <strong>do</strong>s encontros <strong>de</strong> corpos, e o plano <strong>do</strong>s<br />
incorporais. Por isso po<strong>de</strong>mos dizer que a linguagem é coextensiva ao acontecimento - o<br />
acontecimento é senti<strong>do</strong> e é corpo. Temos que pensar num plano <strong>do</strong>s corpos, que com suas<br />
misturas geram os acontecimentos, e em sua efetuação: já que a efetuação <strong>de</strong> um acontecimento<br />
sempre se dá no plano <strong>do</strong>s incorporais. Retornemos à discussão <strong>do</strong> traumático em Freud: não<br />
estamos aqui recusan<strong>do</strong> que o sexual tenha eficácia traumática (ou produza acontecimento). O<br />
que estamos dizen<strong>do</strong> é que a eficácia traumática ou o senti<strong>do</strong> que terá <strong>de</strong>termina<strong>do</strong><br />
acontecimento não po<strong>de</strong>rá estar da<strong>do</strong> por sua forma[174]. Assim, não é o fato ou o aci<strong>de</strong>nte em si,<br />
mas o mo<strong>do</strong> como ele se expressa no campo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> (campo espiritual, campo <strong>do</strong>s incorporais)<br />
que <strong>de</strong>finirá o alcance <strong>de</strong>ste acontecimento - se será <strong>de</strong> curta ou longa duração por exemplo. O<br />
trauma enquanto fato ocorri<strong>do</strong>, por ser <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>do</strong> caos on<strong>de</strong> se dão as misturas <strong>de</strong> corpos, não
po<strong>de</strong> ter qualquer forma estável. Não sabemos o que é traumático <strong>de</strong> antemão, pois tal como em<br />
nosso exemplo da batalha, vários senti<strong>do</strong>s sobrevoam até mesmo uma cena <strong>de</strong> violência sexual,<br />
<strong>de</strong> sedução <strong>de</strong> uma criança por um adulto. Por isso, a clínica só po<strong>de</strong> ser uma aposta na contraefetuação<br />
<strong>do</strong> acontecimento. Quanto ao trauma, teríamos que retornar àquele breve perío<strong>do</strong> em<br />
que Freud consi<strong>de</strong>rava que qualquer acontecimento podia ser traumático para repensá-lo (capítulo<br />
1.2). Talvez se abra por esta via uma concepção na qual o trauma será <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> sua<br />
efetuação e não a partir <strong>de</strong> sua forma.<br />
3. 3) Arte, <strong>Clínica</strong> e Criação<br />
Dissemos que a arte contemporânea po<strong>de</strong> ensinar a clínica a pensar a subjetivida<strong>de</strong><br />
contemporânea, buscan<strong>do</strong> alternativas para seus impasses. Se a clínica aspira produzir mutações<br />
no campo da subjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve aproximar-se da arte, talvez <strong>de</strong>va mesmo tornar-se arte ... no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte é uma "Psicanálise bem sucedida"[175]. Po<strong>de</strong>ríamos também fazer<br />
o caminho inverso: uma psicoterapia bem sucedida po<strong>de</strong>ria ter uma eficácia semelhante à <strong>do</strong><br />
processo <strong>de</strong> criação artística, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> produzir mutações no campo da subjetivida<strong>de</strong>.<br />
É necessário diferenciar nossa aproximação da arte, <strong>de</strong> outras existentes no campo clínico -<br />
o estabelecimento <strong>de</strong> relações entre a arte e a psicologia <strong>do</strong> artista - tão frequente também no<br />
cinema quan<strong>do</strong> este preten<strong>de</strong> contar a vida <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma obra, numa tentativa <strong>de</strong> explicá-la.<br />
Ou até mesmo quan<strong>do</strong> se reduz o percurso <strong>do</strong> artista à sua história <strong>de</strong> vida, fazen<strong>do</strong> correspon<strong>de</strong>r<br />
cada momento <strong>de</strong> sua obra a certos acontecimentos marcantes <strong>de</strong> sua biografia. A arte aparece aí<br />
dissociada da vida em geral, <strong>do</strong> coletivo, permanecen<strong>do</strong> reduzida ao plano psicológico. Em<br />
algumas abordagens a <strong>de</strong>signação artista ten<strong>de</strong> a ser equiparada a um diagnóstico, tal como<br />
neurose, perversão, psicose. Nas Conferências Introdutórias, Freud vê a criação artística como<br />
instrumento compensatório para ganhar a atenção e a admiração parentais não conseguidas <strong>de</strong><br />
outro mo<strong>do</strong>. Otto Rank[176] foi pioneiro em chamar atenção para o fato <strong>de</strong> que a criação artística<br />
não po<strong>de</strong>ria ter a ver apenas com a história individual, com o infantil, com o familiar, mas<br />
consistiria justamente em algo que rompe com a trajetória individual. Forças sociais estavam para<br />
ele em jogo na produção artística e também o contacto com um outro plano, o <strong>do</strong> cosmos".<br />
As teorias psicanalíticas sobre a criação artística pareciam a Rank reducionistas em suas<br />
explicações da criação baseadas nos mesmos complexos que explicavam a neurose. De mo<strong>do</strong><br />
mais evi<strong>de</strong>nte no caso da criação artística, o inconsciente não po<strong>de</strong>ria ser fruto <strong>do</strong> recalque<br />
apenas, mas necessariamente teria a ver com a vonta<strong>de</strong> no senti<strong>do</strong> nietzscheano, como já vimos<br />
no capítulo 2.6.<br />
A criação não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, por outro la<strong>do</strong>, como algo "<strong>de</strong>ssexualiza<strong>do</strong>", à maneira<br />
<strong>de</strong> algumas teorias psicanalíticas sobre a sublimação, já que o sexual é em nós o que justamente<br />
aponta para a criação da própria vida. D. H. Lawrence, ao criticar Freud, pon<strong>de</strong>ra que dizer que<br />
tu<strong>do</strong> é sexual esvazia o sexo[177]. Nem tu<strong>do</strong> é sexual, embora o sexual tenha a ver com a política,<br />
com a criação. Nem a sexualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ser explicada pelo familiar-infantil (pela resolução <strong>do</strong><br />
complexo <strong>de</strong> Édipo, pela castração), nem a criação artística. O sexo, ele próprio, em seu plano<br />
específico, remete a este "outro plano" pré-individual.<br />
O que Deleuze e Guattari têm a objetar em relação à noção <strong>de</strong> sublimação é a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> que a libi<strong>do</strong> tenha que se transmutar em outro tipo <strong>de</strong> energia para investir o social e a criação<br />
artística[178]. Para eles a libi<strong>do</strong> atravessa to<strong>do</strong>s os campos. Por que falar em <strong>de</strong>ssexualização, se<br />
não para manter a sexualida<strong>de</strong> no plano familiar ? A curiosida<strong>de</strong> exploratória <strong>do</strong> pequeno Hans em<br />
relação ao ambiente exterior à sua casa, ou ao" faz-pipi <strong>do</strong> cavalo", não po<strong>de</strong>ria ser<br />
constantemente referida ao pai, como se este fosse um <strong>de</strong>terminante especial ou privilegia<strong>do</strong><br />
para os investimentos <strong>do</strong> inconsciente. Curiosida<strong>de</strong> científica, exploratória e criação artística<br />
po<strong>de</strong>m ter a ver com curiosida<strong>de</strong> sexual. Mas a curiosida<strong>de</strong> sexual ligada ao familiar, não é<br />
primeira em relação a outros investimentos da libi<strong>do</strong>, ou maquinações <strong>do</strong> inconsciente.<br />
A relação entre clínica e criação que aqui preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>senvolver aparece como<br />
intrínseca à própria concepção <strong>de</strong> inconsciente como campo ontológico. O inconsciente é
imediatamente produtor - eis porque a clínica se relaciona imediatamente com a produção ou<br />
criação <strong>de</strong> algo. O inconsciente pensa<strong>do</strong> por Freud não é cria<strong>do</strong>r, ao menos no senti<strong>do</strong> que aqui<br />
damos a este termo, uma vez que ele não é capaz produzir nada novo. Sua função diz respeito a<br />
uma transformação on<strong>de</strong> são manti<strong>do</strong>s os mesmos termos. Como vemos em a A interpretação<br />
<strong>do</strong>s Sonhos, o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> sonho não cria nada que já não estivesse conti<strong>do</strong> nos restos diurnos e<br />
nas idéias latentes <strong>do</strong> sonho. Enfatizan<strong>do</strong> tal aspecto, Freud quer romper com uma tradição <strong>do</strong><br />
romantismo alemão, que via no sonho aspectos liga<strong>do</strong>s à premonição, afirman<strong>do</strong> sua própria<br />
teoria como baseada num <strong>de</strong>terminismo científico rigoroso. Referin<strong>do</strong>-se à possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sonho<br />
prever o futuro, o Freud arqueólogo surge com força no capítulo VII da Interpretação <strong>do</strong>s Sonhos,<br />
reafirman<strong>do</strong> que o sonho se refere ao passa<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong>[179]. Assim, o sonho está to<strong>do</strong> conti<strong>do</strong><br />
nos restos diurnos e nas idéais latentes, que são o passa<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> que retorna. São assim os<br />
mesmos termos que se rearranjam no sonho. Por isso, não haveria criação no senti<strong>do</strong><br />
bergsoniano, como diferenciação.<br />
A discussão que Winnicott faz a propósito <strong>do</strong> brincar é enriquece<strong>do</strong>ra nesta<br />
problematização sobre as relações entre inconsciente e criação. A fantasia tem para ele uma<br />
conotação <strong>de</strong> afastamento da vida - enquanto o sonhar e o brincar se ligam à construção da vida.<br />
Winnicott, como terapeuta <strong>de</strong> crianças, se opõe à redução <strong>do</strong> brincar ao sexual que aparece, por<br />
exemplo, nas interpretações kleinianas. O brincar não é importante por relacionar-se à<br />
masturbação, ou por remeter a significações que permitiriam compreen<strong>de</strong>r a psicologia da criança,<br />
mas por si mesmo, enquanto uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> experimentação que fica a meio caminho entre o<br />
sonho e a realida<strong>de</strong>.<br />
Já o fantasiar absorve energia sem contribuir para o viver. O conceito <strong>de</strong> ilusão é o que<br />
correspon<strong>de</strong>ria a uma função positiva da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fantasiar, que implica numa aproximação<br />
cria<strong>do</strong>ra da realida<strong>de</strong>. Winnicott vê o fantasiar como sen<strong>do</strong> um afastamento da vida - o<br />
inconsciente para ele, como para Deleuze e Guattari, produz mais <strong>do</strong> que fantasmas.<br />
Este meio caminho entre o sonho e a realida<strong>de</strong>, entre o externo e o interno, on<strong>de</strong> se dá o<br />
brincar, Winnicott o <strong>de</strong>nominou espaço transicional. O brincar não po<strong>de</strong> dizer respeito apenas ao<br />
que se passa na psicologia individual, pois diz respeito a estar vivo, à saú<strong>de</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
fortalecimento da vida. Na <strong>do</strong>ença, crianças e adultos per<strong>de</strong>m a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar. Na<br />
verda<strong>de</strong>, este elemento mágico presente também no sonho, na arte, na religião é frágil - po<strong>de</strong> ser<br />
perdi<strong>do</strong>, <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>[180].<br />
Da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar como expressão <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> no viver, o bebê é o maior<br />
exemplo. O espaço transicional é progressivamente conquistan<strong>do</strong> como <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma<br />
autonomização maior <strong>do</strong> bebê frente à mãe. Os objetos transicionais emprega<strong>do</strong>s pela criança são<br />
uma substituição da mãe ao mesmo tempo que já não são mais a mãe. É este aspecto<br />
fundamentalmente inventivo <strong>do</strong> objeto transicional que liga a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar (enquanto<br />
construção <strong>de</strong>ste espaço transicional) à aproximação <strong>do</strong>s grupos e à criação cultural. Diríamos<br />
nós, à produção <strong>de</strong> territórios. Não esqueçamos que brincar é algo liga<strong>do</strong> à repetição e à diferença<br />
- a brinca<strong>de</strong>ira infantil, po<strong>de</strong>mos dizê-lo, tem uma função <strong>de</strong> ritornello ou função existencializante.<br />
Este brincar winnicottiano não se refere à criança, mas ao infantil em nós, lençol <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> em<br />
nosso presente.<br />
É capaz <strong>de</strong> brincar quem é "capaz <strong>de</strong> estar só". Esta capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar só[181] po<strong>de</strong>mos<br />
vê-la não como ligada à solidão, mas como processo <strong>de</strong> singularização. É o que possibilita,<br />
igualmente, estar com os outros[182]. Há indivíduos que vivem criativamente e sentem que a vida<br />
merece ser vivida, enquanto há outros que não po<strong>de</strong>m viver criativamente e têm dúvidas sobre o<br />
real valor <strong>de</strong> viver [183]. Estes são os indivíduos que brincam e que como resulta<strong>do</strong> da ativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> brincar são capazes <strong>de</strong> construir uma vida coletiva e <strong>de</strong> dar senti<strong>do</strong>s para esta vida. já que o<br />
brincar enquanto invenção conduz aos relacionamentos grupais. Na <strong>do</strong>ença psíquica a vida já não<br />
faz senti<strong>do</strong>. <strong>Uma</strong> vida meramente adaptativa (<strong>do</strong>ente) está implicada no isolamento, na perda <strong>de</strong><br />
senti<strong>do</strong>, na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar. Po<strong>de</strong> haver, por outro la<strong>do</strong>, um brincar não criativo, dirigi<strong>do</strong> pela<br />
televisão, on<strong>de</strong> figuras femininas sexualizadas/infantilizadas dão or<strong>de</strong>ns, "ensinam a criança a se<br />
divertir", introduzem o brinque<strong>do</strong> como algo que falta - e que se <strong>de</strong>ve ter muito dinheiro para<br />
comprar. Isto não seria brincar no senti<strong>do</strong> Winnicottiano Talvez nos dias atuais até as crianças<br />
tenham dificulda<strong>de</strong>s em mobilizar as forças vitais po<strong>de</strong>rosas que operam no brincar criativo. Até às<br />
crianças po<strong>de</strong>m faltar os <strong>de</strong>vires criança.
O espaço transicional po<strong>de</strong> ser visto como um plano <strong>de</strong> emergência da forma ou <strong>do</strong> território<br />
- plano on<strong>de</strong> as formas ou os territórios são mínimos[184]. Nem interno, nem externo, nem<br />
realida<strong>de</strong> nem fantasia - borda ou ponto <strong>de</strong> emergência da produção <strong>de</strong>sejante. Um outro nome<br />
para ritornello.<br />
Se o analista quer restaurar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver criativamente, <strong>de</strong> pouco lhe valerão<br />
interpretações. Estas questões, trazidas por Winnicott com relação à interpretação, nos interessam<br />
na medida em que po<strong>de</strong>mos aproximá-las das questões relacionadas à representação. O analista,<br />
diz ele, precisa saber suportar o caos, e não preten<strong>de</strong>r, através <strong>de</strong> <strong>do</strong>utas interpretações, dar<br />
senti<strong>do</strong> ao que não tem senti<strong>do</strong>. A vivência <strong>do</strong> caos é produtiva, na medida é que a partir <strong>de</strong> tais<br />
vivências é que se engendram formas criativas <strong>de</strong> viver, ou na medida em que, <strong>do</strong> não senti<strong>do</strong>,<br />
novos senti<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rão emergir.<br />
O absur<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong>, o caos organiza<strong>do</strong> são organizações <strong>de</strong>fensivas - o terapeuta<br />
empenha-se numa tentativa vã <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir alguma organização no absur<strong>do</strong>, em consequência ...<br />
o paciente aban<strong>do</strong>na a área <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> ... (por uma necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> terapeuta ... <strong>de</strong> encontrar<br />
senti<strong>do</strong> on<strong>de</strong> não existe... o terapeuta <strong>de</strong>sviou-se <strong>de</strong> seu papel ... ao ser um analista arguto e<br />
encontrar or<strong>de</strong>m no caos [185].<br />
O analista trabalha neste limiar entre o caos e a organização. A interpretação, se é que se<br />
po<strong>de</strong> ainda utilizar este termo, é aqui algo que <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r. O mergulho no<br />
caos po<strong>de</strong> levar o paciente a encontrar senti<strong>do</strong> na vida, mas <strong>de</strong> nada lhe valerão interpretações<br />
prematuras ou senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>a<strong>do</strong>s por outrem, já que a <strong>do</strong>ença é também habitar um mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> os<br />
senti<strong>do</strong>s já estão da<strong>do</strong>s, ao invés <strong>de</strong> serem construí<strong>do</strong>s. A ativida<strong>de</strong> terapêutica também é um<br />
brincar na medida que <strong>de</strong>ve ser criativa - um brincar a <strong>do</strong>is - a atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> paciente não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong><br />
aquiescência ou subserviência, pois o exercício da criativida<strong>de</strong> que é por si só ativo e soberano. A<br />
relação terapêutica po<strong>de</strong> se converter em algo extremamente sério, on<strong>de</strong> alguém com ar<br />
professoral profere palavras que têm a pretensão <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar o inconsciente, enquanto <strong>do</strong> outro<br />
la<strong>do</strong> um paciente as recebe como verda<strong>de</strong>s.<br />
Otto Rank já apontara que o essencial da experiência terapêutica estava na criação:<br />
retoman<strong>do</strong> a questão das relações entre subjetivida<strong>de</strong> e civilização, ou entre subjetivida<strong>de</strong> e<br />
regras sociais, Rank consi<strong>de</strong>ra que no tipo cria<strong>do</strong>r, diferentemente <strong>do</strong> neurótico, uma relação ativa<br />
se estabelece entre subjetivida<strong>de</strong> e civilização - enquanto que Freud neste particular teria<br />
estendi<strong>do</strong> a toda humanida<strong>de</strong> o tipo neurótico, submisso às regras sociais.<br />
Quan<strong>do</strong> se referem à criação ou ao brincar Rank e Winnicott falam <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> relação<br />
ativa com a vida - não importan<strong>do</strong> se tal relação levou à produção artística ou não. É este tipo <strong>de</strong><br />
relação, ou este aspecto fundamentalmente cria<strong>do</strong>r o que caracteriza as produções <strong>do</strong><br />
inconsciente - tal inconsciente não diz respeito ao recalca<strong>do</strong>, mas a forças Além da <strong>Psicologia</strong>.<br />
A teoria <strong>do</strong> sinal <strong>de</strong> angústia elaborada por Freud po<strong>de</strong> ter aqui uma leitura política. A<br />
emergência da culpa antes mesmo da ação correspon<strong>de</strong> a um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> funcionar adaptativo (ligase<br />
a uma ética normativa) - já a personalida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra (pautada por uma ética positiva) não tem<br />
este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> funcionar, ou seja, as ações positivas da vonta<strong>de</strong> não geram apenas culpa, mas<br />
atos cria<strong>do</strong>res. Muito já foi dito sobre o pessimismo freudiano - mas é necessário analisar como o<br />
faz Rank, as consequências políticas <strong>de</strong> tal pessimismo, que esten<strong>de</strong> o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida adaptativo a<br />
toda humanida<strong>de</strong>, tornan<strong>do</strong> incompreensíveis outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> funcionar, como o <strong>do</strong> filósofo, o <strong>do</strong><br />
artista, o <strong>do</strong> revolucionário - mo<strong>do</strong>s não adaptativos basea<strong>do</strong>s, como po<strong>de</strong>ríamos dizer com Otto<br />
Rank, na afirmação da vonta<strong>de</strong>.<br />
(no tipo cria<strong>do</strong>r) a vonta<strong>de</strong> orgulhosa se agita e luta para vencer a batalha sem a ajuda da<br />
moral autoritária ... o que é importante para a criação é libertar-se <strong>do</strong> código moral tradicional e
construir seus próprios i<strong>de</strong>ais éticos ... buscan<strong>do</strong> criativamente qualquer forma ou possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>[186].<br />
3.4) A Arte Contemporânea como Paradigma para <strong>Uma</strong> <strong>Clínica</strong> da Subjetivida<strong>de</strong><br />
Contemporânea<br />
As trajetórias contemporâneas no campo das artes plásticas envolvem principalmente a<br />
recusa ou a problematização da representação. O estu<strong>do</strong> da arte contemporânea é elucidativo<br />
para o estu<strong>do</strong> da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea, já que coloca questões que atravessam os <strong>do</strong>is<br />
campos problemáticos. Assim, algumas experimentações no campo da arte po<strong>de</strong>m ser<br />
transmitidas à clínica, entendida enquanto prática também experimental.<br />
A construção <strong>de</strong> uma clínica que inclua outras formas <strong>de</strong> expressão para além da<br />
representação ou que possa retirar <strong>do</strong> lugar central o regime <strong>de</strong> signos <strong>do</strong> significante se<br />
beneficiará <strong>do</strong>s ensinamentos trazi<strong>do</strong>s pelas trajetórias percorridas pela arte contemporânea.<br />
Certas analogias com o campo da arte po<strong>de</strong>riam nos levar a compreen<strong>de</strong>r que a <strong>de</strong>rrocada <strong>de</strong><br />
certas estruturas estabelecidas, certas transformações das formas <strong>de</strong> organização familiar, <strong>do</strong><br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida urbano, da tecnologia, não necessariamente nos conduzirão à <strong>de</strong>struição, mas que<br />
se trata <strong>de</strong> construir outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida, on<strong>de</strong> o senti<strong>do</strong> ético e estético adquiram um lugar<br />
prepon<strong>de</strong>rante. A arte contemporânea foi bem sucedida quanto à criação <strong>de</strong> novos mun<strong>do</strong>s diante<br />
da <strong>de</strong>rrocada <strong>do</strong>s parâmetros <strong>do</strong> classicismo. O cinema é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por Guattari[187] como<br />
muito mais capaz que a Psicanálise, nos dias atuais, <strong>de</strong> produzir mutações subjetivas, ou <strong>de</strong> forjar<br />
vetores <strong>de</strong> existencialização num mun<strong>do</strong> caracteriza<strong>do</strong> pela <strong>de</strong>sterritorialização, pela<br />
<strong>de</strong>sertificação tanto <strong>do</strong>s solos quanto das relações <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. A partir da ruptura com a<br />
representação no campo da arte talvez possamos construir novos caminhos para a clínica.<br />
Tracemos inicialmente um panorama da emergência da arte contemporânea na Europa. Na<br />
obra Viena Fin-<strong>de</strong>-Siècle <strong>de</strong> Karl Schorske[188], é traça<strong>do</strong> um percurso das artes plásticas e da<br />
música na passagem <strong>do</strong> século.<br />
Na pintura <strong>de</strong> Klimt, o ego liberal está em crise, aparecem as temáticas freudianas <strong>do</strong><br />
instinto e da sexualida<strong>de</strong>. As figuras femininas são mitológicas, simbólicas, expressam fluxos que<br />
rompem com as coor<strong>de</strong>nadas estáveis da subjetivida<strong>de</strong> clássica. Até certo perío<strong>do</strong>, a pintura <strong>de</strong><br />
Klimt é também introspectiva, na medida em que é nela representada a temática <strong>do</strong> conflito<br />
instintivo, tendência que se modifica na última fase da sua obra, a <strong>do</strong>s retratos. Nesta fase, as<br />
figuras femininas se misturam ao ambiente, o corpo perdi<strong>do</strong> em meio ao vesti<strong>do</strong>. Formas<br />
geométricas <strong>de</strong> aparente frieza inva<strong>de</strong>m a figura humana separan<strong>do</strong>-a da natureza. Os retratos <strong>de</strong><br />
Klimt <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s "associais" são os que mais correspon<strong>de</strong>m a experimentações fora da<br />
psicologia <strong>do</strong>s instintos, que sua obra inicial buscava representar simbolicamente.<br />
Entretanto, neste percurso traça<strong>do</strong> por Schorske, são os retratos <strong>de</strong> Kokoschka que<br />
rompem mais radicalmente com a representação da realida<strong>de</strong> humana ou instintiva. O corpo<br />
torna-se em si mesmo o veículo primário da expressão. O ambiente <strong>de</strong>saparece; é <strong>do</strong> corpo que<br />
emanam diretamente as energias e intensida<strong>de</strong>s. Os retratos são como criaturas vivas.<br />
A música <strong>de</strong> Schöenberg estabelece, no mesmo perío<strong>do</strong>, uma <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> sons, em<br />
contraste com as regularida<strong>de</strong>s e as estruturas estáveis <strong>do</strong> classicismo. Mesmo com Wagner, a<br />
tonalida<strong>de</strong> e as estruturas harmônicas ainda estavam ativas. É Schöenberg quem cria novas<br />
combinações, já liberadas <strong>do</strong> sistema <strong>do</strong><strong>de</strong>cafônico. Estavam ampliadas todas as possibilida<strong>de</strong>s<br />
expressivas, o compositor podia "agir como Deus" em seu ilimita<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r construtivo, uma vez<br />
rompidas a tonalida<strong>de</strong> e as estruturas harmônicas tradicionais. Tratava-se <strong>de</strong> novas combinações,<br />
novas or<strong>de</strong>ns sonoras, capazes <strong>de</strong> se por <strong>de</strong> pé[189], inaudíveis porém para os ouvi<strong>do</strong>s afeitos às<br />
regularida<strong>de</strong>s da valsa na Viena <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século. <strong>Uma</strong> música como a <strong>de</strong> Schöenberg soava<br />
<strong>de</strong>sagradavelmente - entretanto não eram só os gritos <strong>de</strong> Pierrot Lunaire que eram <strong>de</strong>sagradáveis,<br />
assusta<strong>do</strong>res - o mun<strong>do</strong> se tornava cada vez mais assusta<strong>do</strong>r nesta região da Europa.
3.4.1) O Romance Contemporâneo<br />
Frequentemente estamos insatisfeitos com a arte contemporânea - ela nos parece difícil<br />
<strong>de</strong>mais, fria <strong>de</strong>mais. A música não tranquiliza, os filmes não têm pé nem cabeça, assim como os<br />
livros. Os personagens <strong>do</strong> romance não têm mais nome e sobrenome, não têm história nem<br />
memória - não lutam por i<strong>de</strong>ais. Se agíssemos como era possível com certos romances <strong>do</strong> século<br />
XIX, pulan<strong>do</strong> páginas <strong>de</strong>scritivas para chegar ao que interessa, a estória que está sen<strong>do</strong> contada,<br />
corremos o risco <strong>de</strong> chegar à última página <strong>do</strong> livro procuran<strong>do</strong> esta estória.<br />
Se o romance clássico queria dar ares <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ao que contava - e era avalia<strong>do</strong> em sua<br />
qualida<strong>de</strong> por esta condição <strong>de</strong> produzir um outro mun<strong>do</strong> que parecesse real, o romance mo<strong>de</strong>rno<br />
tem uma outra concepção sobre este real. As <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser a moldura ou o cenário da<br />
trama. A figura <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r, que tu<strong>do</strong> vê e tu<strong>do</strong> explica, facilitan<strong>do</strong>-nos a tarefa <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r o que se passa, <strong>de</strong>sapareceu, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o leitor inapelávelmente sozinho. Os livros,<br />
os filmes, a música e a pintura não nos distraem mais. Se há um narra<strong>do</strong>r na Busca <strong>do</strong> Tempo<br />
Perdi<strong>do</strong> nem por isso o leitor está tranquilo pois, quem é afinal o narra<strong>do</strong>r? É o próprio Proust? É<br />
Swann? O narra<strong>do</strong>r não está fora <strong>do</strong> tempo - nele também se produzem transformações. Ele não<br />
permanece sempre o mesmo, auxilian<strong>do</strong> o leitor em sua compreensão. A solidão <strong>do</strong> leitor se<br />
evi<strong>de</strong>ncia particularmente no momento em que Swann começa a morrer, sem aviso, no final <strong>de</strong> O<br />
Caminho <strong>de</strong> Guermantes. Se o leitor quer conhecer o <strong>de</strong>senrolar da morte <strong>de</strong>ste personagem, terá<br />
que pular muitas páginas e ficará insatisfeito ao tomar contacto com as muitas versões <strong>de</strong> uma<br />
morte sem que nenhuma seja <strong>de</strong>finitiva. Muitos olhos vêm esta morte, <strong>de</strong> muitos lugares, um<br />
<strong>de</strong>stes olhos meio <strong>de</strong>sfoca<strong>do</strong>s é o <strong>do</strong> leitor.<br />
A morte <strong>de</strong> Swann, na Busca <strong>do</strong> Tempo Perdi<strong>do</strong> acontece em total ruptura com a maneira<br />
como morrem, nos romances clássicos, os heróis principais. Sem nenhuma consi<strong>de</strong>ração pelo<br />
leitor que segue a estória, sem nenhuma "preparação psicológica" para tal, o leitor assiste<br />
estarreci<strong>do</strong> à <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Swann <strong>de</strong> um lugar <strong>de</strong>scentra<strong>do</strong>, como se num teatro tivesse escolhi<strong>do</strong><br />
um pécimo lugar. Swann começa a morrer no meio <strong>de</strong> outros acontecimentos banais. O<br />
espirituoso e elegante Swann está subitamente exposto ao ridículo quan<strong>do</strong> já não po<strong>de</strong> ser aquele<br />
culto e diverti<strong>do</strong> personagem <strong>do</strong>s salões. <strong>Uma</strong> <strong>do</strong>ença hereditária o acomete - ele sabe que vai<br />
morrer - e avisa a Oriane, a Duquesa <strong>de</strong> Guermantes, com quem convivera nos salões por toda a<br />
vida. Mas a Duquesa está ocupada ...<br />
Colocada pela primeira vez na vida entre <strong>do</strong>is <strong>de</strong>veres tão diversos como subir para o carro<br />
a fim <strong>de</strong> ir jantar fora, e manifestar pieda<strong>de</strong> por um homem que vai morrer ela não via nada no<br />
código das conveniências que indicasse a jurisprudência a seguir... e pensou que a melhor<br />
maneira <strong>de</strong> resolver o conflito era negá-lo. Está gracejan<strong>do</strong>? Perguntou a Swann[190].<br />
Que dizer da amiza<strong>de</strong> da duquesa pelo amigo que a introduzira à admiração da pintura <strong>de</strong><br />
Elstir? O tempo transformara todas estas relações - o leitor acompanha esta ruptura que é a morte<br />
<strong>de</strong> Swann, não como uma morte heróica, como ten<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> qualquer ... ninguém pranteará<br />
Swann, nem mesmo sua filha Gilberte, que está ocupada em galgar melhores posições sociais<br />
através <strong>do</strong> casamento. Ela nem mesmo usa o sobrenome <strong>do</strong> pai. Sen<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> personagem<br />
<strong>de</strong>sta obra o tempo, a morte <strong>de</strong> Swann é efeito <strong>do</strong> tempo, que tu<strong>do</strong> transforma inexoravelmente.<br />
Não há senti<strong>do</strong>s ocultos a serem revela<strong>do</strong>s: a morte ocorre como um acontecimento qualquer - o<br />
que parecia ser o personagem principal é <strong>de</strong>sconstruí<strong>do</strong>, ele nem mesmo é vítima da<br />
incompreensão <strong>do</strong>s amigos - não há personagem principal, ninguém é principal - o que há é o fim<br />
banal <strong>de</strong> uma vida, que ocorre ali mesmo, no plano on<strong>de</strong> ocorrem to<strong>do</strong>s os outros acontecimentos.<br />
Swann não po<strong>de</strong>rá ir à Itália, como avisa à duquesa, porque já estará morto há vários meses. Seu<br />
mari<strong>do</strong>, o Duque <strong>de</strong> Guermantes enfada<strong>do</strong> com a presença daquele incômo<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, tem pressa<br />
<strong>de</strong> chegar a uma reunião on<strong>de</strong> estará sua nova amante. Mas ainda encontra tempo para, nos<br />
minutos finais antes da partida, diante <strong>do</strong> agonizante, exigir que a mulher troque os sapatos pretos<br />
por sapatos vermelhos e para fazer queixas sobre pequenos males digestivos. À saída, o duque<br />
também a<strong>do</strong>ta a estratégia <strong>de</strong> negar a evidência da morte próxima <strong>de</strong> Swann, exclaman<strong>do</strong> que
este ainda iria enterrar a to<strong>do</strong>s: Swann exagera, diz ele. É uma morte fora <strong>de</strong> hora, incômoda,<br />
como são as mortes neste mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sromantiza<strong>do</strong>.<br />
Não é diferente a forma como surge a narrativa da morte <strong>do</strong> escritor Bergotte - ela é narrada<br />
como um acontecimento completamente banal e interessa na trama apenas na medida em que,<br />
fazen<strong>do</strong> alguns cálculos, a narra<strong>do</strong>r apaixona<strong>do</strong> por Albertine po<strong>de</strong> saber se ela mente quan<strong>do</strong> diz<br />
que se encontrou com ele (não po<strong>de</strong>ria ter se encontra<strong>do</strong> com um morto). Bergotte morre <strong>de</strong> <strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> barriga, por ter comi<strong>do</strong> batatas - um motivo ridículo para morrer, mas ao mesmo tempo acabara<br />
<strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir toda sua obra literária, sem tempo para modificá-la, ao ver a pintura <strong>de</strong> Vermeer. Ou<br />
melhor, ao ver um pedacinho bem pequeno <strong>de</strong> muro amarelo[191]. A preciosa matéria <strong>de</strong>ste muro<br />
o fizera achar que toda sua obra era artificial. Há um mun<strong>do</strong>, escreve Proust, além <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong><br />
das obrigações mundanas ou das obras <strong>de</strong> arte artificiais, povoa<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta matéria cintilante <strong>de</strong> que<br />
é feito o muro amarelo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> nós to<strong>do</strong>s viemos, para o qual talvez retornemos.[192] Mas é<br />
interessante notar que a revelação <strong>de</strong>ste outro mun<strong>do</strong> não está escondida em algum lugar, ela<br />
está num pedaço <strong>de</strong> muro, na superfície, ali ao alcance <strong>de</strong> quem pu<strong>de</strong>r vê-la. Po<strong>de</strong>mos não ter<br />
tempo para modificar nossa vida a partir <strong>do</strong> momento em que contactamos este mun<strong>do</strong>, como foi o<br />
caso <strong>de</strong> Bergotte diante da pintura <strong>de</strong> Vermeer. A morte ocorre assim no meio, no plano <strong>de</strong><br />
superfície on<strong>de</strong> se dão os acontecimentos - ela não é final, ela não permite concluir nada. A morte<br />
<strong>do</strong>s outros, diz Proust, nos vem como uma viagem que fazemos e <strong>de</strong> repente nos lembramos que<br />
esquecemos a bolsa, um par <strong>de</strong> sapatos, os óculos. Frases interrompidas, perguntas que ficaram<br />
por fazer e que não po<strong>de</strong>rão mais ser feitas, coisas para contar, mas <strong>de</strong> repente, já que é<br />
impossível retornar, nós já não buscamos estas coisas esquecidas, e nos permitimos olhar a<br />
paisagem[193]. Os signos mundanos - ou as falsas profundida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s sobrenomes que<br />
freqüentam os salões, suas regras que parecem eternas, serão inexoravelmente <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>s pelo<br />
tempo - em O Tempo Re<strong>de</strong>scoberto, último livro da série, o título Duquesa <strong>de</strong> Guermantes já é<br />
ostenta<strong>do</strong> por ninguém menos que a Sra. Verdurin, cuja trajetória o leitor acompanhara ao longo<br />
da Busca. A personagem, em cujos salões Swann conhecera O<strong>de</strong>te, fora premiada em sua luta<br />
por ascen<strong>de</strong>r socialmente, ostentan<strong>do</strong> este prestigioso nome, mesmo que para isso tivesse que<br />
estar casada com um <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte duque, alquebra<strong>do</strong> em sua outrora majestosa figura. Oriane, a<br />
duquesa, já morrera nesta época, morte essa que não merece na obra uma narrativa especial. Os<br />
nomes, os títulos, já não valem, o tempo os <strong>de</strong>strói igualmente - ninguém mais se lembra <strong>de</strong> quem<br />
tenha si<strong>do</strong> tal ou qual personagem mundano.<br />
Vivemos neste mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sromantiza<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> instante qualquer, <strong>do</strong> qualquer um.<br />
Desromantiza<strong>do</strong> quer dizer também <strong>de</strong>sestoriciza<strong>do</strong>. Se no romance mo<strong>de</strong>rno fragmentos <strong>de</strong><br />
memória histórica aparecem, eles não correspon<strong>de</strong>m a lembranças <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas à presença<br />
<strong>de</strong>sta dimensão prévia <strong>do</strong> tempo que a tu<strong>do</strong> dá um caráter <strong>de</strong> retar<strong>do</strong>. A lembrança é apenas um<br />
alibi, um <strong>do</strong>s materiais da escritura - mas os personagens <strong>do</strong> novo romance são principalmente<br />
personagens sem história[194].<br />
Qual o senti<strong>do</strong> da lembrança em Proust? No célebre episódio da "ma<strong>de</strong>leine" - o bolinho<br />
comi<strong>do</strong> hoje se conecta com o bolinho comi<strong>do</strong> num outro tempo, mas o importante não é nem o<br />
sabor <strong>do</strong> bolinho, nem o passa<strong>do</strong> que retornou, ou que foi lembra<strong>do</strong>, mas o que comunica estes<br />
<strong>do</strong>is momentos: é este outro plano, o das essências - ou <strong>do</strong> intempestivo, como po<strong>de</strong>ríamos<br />
também dizê-lo.<br />
O arte contemporânea trabalha assim com o quotidiano enquanto um presente-superfície,<br />
que é ao mesmo tempo futuro e passa<strong>do</strong> - Aion e não Cronos - superfície no tempo, e não tempo<br />
espacializa<strong>do</strong>. Ruptura com a memória e com a preocupação <strong>de</strong> verossimilhança. Não se trata <strong>de</strong><br />
produzir um outro real que pretenda representar o real em que vivemos - mas antes um real que<br />
seja capaz <strong>de</strong> problematizá-lo, <strong>de</strong> alterá-lo. O real que aparece na literatura contemporânea e,<br />
como veremos, também nas artes plásticas, é antes reinvenção e ruptura <strong>de</strong>ste quotidiano <strong>do</strong><br />
tempo presente achata<strong>do</strong> e eterno, sem transformação.<br />
No romance contemporâneo também assistimos a emergência <strong>de</strong> uma superfície on<strong>de</strong> a<br />
forma não serve mais apenas como meio para contar uma estória, mas é no superficial que está o<br />
importante. Formas que se criam, sem obe<strong>de</strong>cer a parâmetros transcen<strong>de</strong>ntes - Robe-Grillet<br />
mostra como o uso da metáfora no romance clássico cumpria a função <strong>de</strong> encontrar uma<br />
correspondência entre o homem e o mun<strong>do</strong> - a montanha é um berço, o sol acaricia a praia, a<br />
casinha está escondida na mata - um mun<strong>do</strong> humaniza<strong>do</strong>. Entre a existência e as coisas po<strong>de</strong>
estar rompida esta correspondência, como numa certa literatura trágica, on<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong>sta<br />
ruptura entre o mun<strong>do</strong> humano e o mun<strong>do</strong> das coisas vai se fazer a apologia e ao mesmo tempo a<br />
lamentação <strong>de</strong>ste divórcio - reencontran<strong>do</strong> assim, novamente, nesta lamentação, uma essência a<br />
nortear o romance.<br />
Ora, no romance contemporâneo não há qualquer transcendência a servir <strong>de</strong> norte para a<br />
criação. É na invenção <strong>de</strong> novas formas, na experimentação com elas, que se criam estilos os<br />
mais inusita<strong>do</strong>s, que encontram neles mesmos seu equilíbrio. O leitor é chama<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> a<br />
fazer ele próprio, com sua vida, este tipo <strong>de</strong> experimentação. A dificulda<strong>de</strong> e aparente frieza que<br />
muitos lamentam na arte contemporânea, correspon<strong>de</strong> à própria dificulda<strong>de</strong> presente na vida<br />
contemporânea. A tranquilida<strong>de</strong> perdida <strong>de</strong> um romance com começo, meio e fim, "com estória" e<br />
"história" está também perdida em nosso quotidiano em nossas vidas que ocorrem num presente<br />
<strong>de</strong>nso. Entretanto, outras formas <strong>de</strong> expressão (artística?) ainda trabalham com a ocultação <strong>de</strong>ste<br />
fato - ainda pensam a função da arte como apenas <strong>de</strong> nos distrair <strong>do</strong> quotidiano e suas agruras.<br />
Como mostrou Felipe Ariès em sua História da Morte no Oci<strong>de</strong>nte, a morte no mun<strong>do</strong><br />
contemporâneo se dá num vazio que apenas a medicalização "atenua" transforman<strong>do</strong> a morte em<br />
<strong>do</strong>ença e o moribun<strong>do</strong> em <strong>do</strong>ente terminal[195] - pobre coisa atravessada por tubos e fios. A<br />
morte em nosso mun<strong>do</strong> é <strong>de</strong>sromantizada. A obra proustiana é um pequeno mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> o leitor é<br />
posto em contacto com questões que atravessam a subjetivida<strong>de</strong> contemporânea: não há uma<br />
história que ali é contada, nem um personagem cuja biografia acompanhamos - uma<br />
experimentação com o tempo que tu<strong>do</strong> transforma, eis o que po<strong>de</strong>mos vivenciar ao ler esta obra.<br />
A propósito da morte <strong>de</strong> Bergotte uma outra questão é colocada: a da superiorida<strong>de</strong> existencial<br />
<strong>do</strong>s signos da arte sobre to<strong>do</strong>s os outros, inclusive os <strong>do</strong> amor. A criação é posta em primeiro<br />
plano em relação a outros aspectos da vida. Mas não é qualquer forma <strong>de</strong> arte que po<strong>de</strong> tocar<br />
este mun<strong>do</strong> das intensida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong> pedacinho <strong>de</strong> muro <strong>de</strong> Vermeer. Há aquelas formas <strong>de</strong> arte,<br />
como a literatura <strong>do</strong> próprio Bergotte - que ficam num plano inferior. O gosto artístico presente nos<br />
salões Verdurin não é capaz <strong>de</strong> conduzir "seus fiéis" aos signos da arte - muitas passagens<br />
cômicas mostram que Madame Verdurin se emociona com as obras, mas sua apreciação da arte<br />
é sentimentaloi<strong>de</strong> e piegas. No amarelo intenso <strong>de</strong> Vermeer se trata, não <strong>de</strong> sentimentos, mas <strong>de</strong><br />
afetos, que não são <strong>de</strong> natureza psicológica.<br />
3.4.2) Música Contemporânea, Ritornellos Musicais<br />
A presença da música na obra <strong>de</strong> Proust vai nos possibilitar pensar as relações entre a<br />
subjetivida<strong>de</strong> e o plano pré-individual e ao mesmo tempo a relação <strong>de</strong>ste plano pré-individual com<br />
processos <strong>de</strong> singularização. Enquanto processo <strong>de</strong> singularização em esta<strong>do</strong> nascente, a noção<br />
<strong>de</strong> ritornello po<strong>de</strong> ser abordada a partir da música. Por outro la<strong>do</strong>, tal como os ritornellos, as<br />
composições, as frases musicais, são figuras <strong>do</strong> tempo, ten<strong>do</strong> por isso mesmo vocação para<br />
funcionar como vetores <strong>de</strong> existencialização.<br />
A música contemporânea é também uma anti-memória. Nela uma linha selvagem segue um<br />
curso imprevisível - nenhum parâmetro exterior a governa. O que ocorre é a ruptura com o tempo<br />
pulsa<strong>do</strong>, em direção a um tempo amorfo, intensivo, governa<strong>do</strong> exclusivamente pela própria linha<br />
melódica em seu <strong>de</strong>senrolar .<br />
Na música romântica po<strong>de</strong>mos perceber frequentemente uma nostalgia <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> - um<br />
bom exemplo para este tipo <strong>de</strong> composição é a Sinfonia "Meu País" <strong>do</strong> compositor checo <strong>do</strong><br />
século XIX Bedrich Smetana. Os vários movimentos se referem ao rio Moldau, ao campos e<br />
florestas da Bohemia, à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tábor... Ao ouvir a sinfonia po<strong>de</strong>mos "sentir sauda<strong>de</strong>s" <strong>de</strong>sta<br />
região, que hoje correspon<strong>de</strong> à República Checa. Seus rios e florestas, no entanto, não têm hoje<br />
mais nenhuma exuberância, o solo tornou-se ári<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à exploração <strong>do</strong> carvão ... A música <strong>do</strong><br />
compositor contemporâneo francês Messiaen, por outro la<strong>do</strong>, possibilita uma experimentação no<br />
presente, através <strong>de</strong> suas figuras sonoras e seus ritmos fora <strong>do</strong>s eixos ou das pulsações<br />
tradicionais. Em seu Catalogue D'Oiseaux há quem ouça pássaros - pássaros metálicos, ou são<br />
ruí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s? - campainhas, eleva<strong>do</strong>res que sobem, bate estacas um tanto mais <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>s,
sons que nos são estranhamente "familiares" <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong>, por dizerem respeito ao mun<strong>do</strong><br />
em que hoje vivemos.<br />
A sonata <strong>de</strong> Vinteuil na obra <strong>de</strong> Proust é consi<strong>de</strong>rada como um ritornello existencial[196] É<br />
um <strong>do</strong>s componentes <strong>do</strong> agenciamento amoroso Swann-O<strong>de</strong>te. Sen<strong>do</strong> a mesma e outra a to<strong>do</strong><br />
momento, como se torna especialmente claro nas sonatas <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral através <strong>do</strong>s temas<br />
repeti<strong>do</strong>s em alturas e tons diferentes, ela evi<strong>de</strong>ncia a natureza essencialmente diferencial da<br />
repetição. A superiorida<strong>de</strong> da música, já referida por Nietzsche, é retomada por Proust em suas<br />
contínuas referências à frase <strong>de</strong> Vinteuil. Esta dança que as frases da sonata estabelecem entre si<br />
faz lembrar a dança da vida com Zaratustra em "O Baile", cita<strong>do</strong> no capítulo 2.3 <strong>de</strong>ste trabalho. A<br />
música como linguagem especialmente a<strong>de</strong>quada para se colocar em relação <strong>de</strong> imanência com o<br />
plano da vida. Vida que se repete, não como um far<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong>, mas com a leveza das dançarinas.<br />
O septeto, que havia recomeça<strong>do</strong>, caminhava para o fim; em diversas retomadas uma ou<br />
outra frase <strong>de</strong> sonata regressava, mas mudada a cada vez, num ritmo e num acompanhamento<br />
diferentes, sen<strong>do</strong> a mesma e no entanto outra, como regressam as coisas na vida[197] ...<br />
... eu me indagava se a música não seria o exemplo único <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> - caso<br />
não tivesse havi<strong>do</strong> a invenção da linguagem, a formação <strong>de</strong> palavras, a análise das idéias - a<br />
comunicação das almas. É como uma possibilida<strong>de</strong> que não teve seguimento, a humanida<strong>de</strong><br />
envere<strong>do</strong>u por outros caminhos, o da linguagem falada e escrita[198].<br />
Há um plano pré-individual, o plano <strong>do</strong> caos, que a música toca. A linguagem musical seria<br />
especialmente porosa a este plano. A música permite um trânsito entre diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
subjetivação - ela po<strong>de</strong> atravessar diferentes territórios. Mas os artistas, cidadãos <strong>de</strong>sta pátria,<br />
revelam sua procedência comum, e ao mesmo tempo, revelam em seu estilo que permanecem<br />
idênticos a si próprios. Cada obra <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> autor contém a marca <strong>de</strong> seu estilo, um<br />
certo canto singular, expresso por repetição, por monotonia, mas também por diferença, na<br />
medida em que reconhecemos através das diferentes composições uma marca que as diferencia<br />
das <strong>de</strong> outros.<br />
"To<strong>do</strong> artista parece o cidadão <strong>de</strong> uma pátria ignorada, esquecida <strong>de</strong>le próprio, diversa<br />
daquela <strong>de</strong> on<strong>de</strong> virá outro gran<strong>de</strong> artista em direção à terra. ... essa pátria perdida não é<br />
recordada por nenhum músico, mas to<strong>do</strong>s eles permanecem inconscientemente afina<strong>do</strong>s num<br />
certo uníssono com ela ... cada um <strong>de</strong>lira train<strong>do</strong>-a por vezes por amor à glória ... e quan<strong>do</strong> o<br />
músico, seja qual for o assunto <strong>de</strong> que trata, entoa esse canto singular cuja monotonia - pois<br />
qualquer que seja o assunto trata<strong>do</strong>, o artista permanece idêntico a si mesmo - prova nele a<br />
fixi<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s elementos constitutivos <strong>de</strong> sua alma[199].<br />
Ha uma função <strong>de</strong>sterritorializante da música, que lhe permite tranversalizar, e atravessar<br />
diversos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> subjetivação, ou diferentes "mun<strong>do</strong>s próprios" - esta é uma das funções da arte<br />
como um to<strong>do</strong>. Mas esta qualida<strong>de</strong>, a música a tem em maior grau.<br />
O Rock é hoje um importante dispositivo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>. Ao mesmo tempo<br />
que serve aos interesses <strong>do</strong> capital, como <strong>de</strong> resto tu<strong>do</strong> no capitalismo, ele po<strong>de</strong> ser visto com o<br />
dispositivo <strong>de</strong> coletivização, como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superação das subjetivida<strong>de</strong>s individuadas, ou<br />
dizen<strong>do</strong> <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, da solidão e <strong>do</strong> isolamento que este mesmo sistema social produz. O<br />
fenômeno <strong>do</strong> Funk nos morros e subúrbios cariocas[200] po<strong>de</strong> ser visto neste contexto - para além<br />
<strong>de</strong> um criticismo nacionalista estéril, que veria aí unicamente a <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> samba, o funk po<strong>de</strong><br />
estar servin<strong>do</strong> à reconstituição <strong>de</strong> territórios existenciais.
Recor<strong>de</strong>mos que, a partir da própria <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> agenciamento, ele <strong>de</strong>ve<br />
sempre ser pensa<strong>do</strong> como multiplicida<strong>de</strong>. Neste senti<strong>do</strong> po<strong>de</strong>ríamos dizer que o funk é vetor <strong>de</strong><br />
existencialização e é possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir outros corpos nos morros e subúrbios, mas é<br />
também uma série <strong>de</strong> outras coisas - pensan<strong>do</strong> rizomáticamente, teremos que seguir todas as<br />
linhas abertas pelo funk, sem hierarquizar qualquer <strong>de</strong>stes aspectos.<br />
As artes em geral, e não apenas a música, diz Proust, têm este po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nos fazer sair <strong>de</strong><br />
nós mesmos ...<br />
Saber o que enxerga outra pessoa <strong>de</strong>sse universo que não é igual ao nosso e cujas<br />
paisagens permaneceriam tão ignoradas <strong>de</strong> nós como as por acaso existentes na lua ... ... ter<br />
outros olhos, ver o universo com os olhos <strong>de</strong> outra pessoa, <strong>de</strong> cem outras, ver os cem universos<br />
que cada um <strong>de</strong>las vê ... com seus pares <strong>de</strong> asas verda<strong>de</strong>iramente voamos <strong>de</strong> estrela em<br />
estrela[201].<br />
Mas <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong> ainda a arte nos faz sair <strong>de</strong> nós mesmos - ela nos leva a tocar o<br />
plano pré-individual, plano das intensida<strong>de</strong>s. Ela o procura sob a matéria, sob a experiência os<br />
materiais <strong>de</strong> que são feitos o muro <strong>de</strong> Vermeer, sob o sabor <strong>do</strong> bolinho ... . Ao proce<strong>de</strong>r assim a<br />
arte inverte os procedimentos <strong>do</strong> eu quan<strong>do</strong> pelo amor próprio, pela paixão, pela inteligência e<br />
pelo hábito, este superpõe sobre nossas "verda<strong>de</strong>iras impressões"[202] objetivos práticos e<br />
inteligentes. Chamamos isso falsamente <strong>de</strong> vida. Proust propõe uma prática experimental com o<br />
eu que o faça involuir: <strong>de</strong>sfazer-se <strong>de</strong>sta capa, reencontran<strong>do</strong> uma vida verda<strong>de</strong>ira através <strong>do</strong>s<br />
signos da arte.<br />
Este outro mun<strong>do</strong> que a arte revela - os materiais da obra literária, não são estranhos ao<br />
escritor, mas provêm <strong>de</strong> toda sua vida passada. E aqui, não se trata <strong>de</strong> experiências marcantes <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> que tenham fica<strong>do</strong> guardadas - Proust se refere a toda a vida passada, à sobrevivência<br />
em si <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ou memória imemorial:<br />
É o esquecimento que possibilita o acesso à memória imemorial e à superação da<br />
individuação. É o esquecimento que possibilita também que conservemos o passa<strong>do</strong> enquanto um<br />
plano <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, um plano <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surgirão os materiais da obra <strong>de</strong> arte - que não coinci<strong>de</strong>m<br />
mais com figuras específicas <strong>de</strong> nosso passa<strong>do</strong>, mas que se referem ao que nelas correspon<strong>de</strong> a<br />
esta superfície intensiva. Assim, ao final da busca, Proust vai finalmente escrever - e não serão os<br />
personagens <strong>de</strong> sua vida que estarão representa<strong>do</strong>s no romance, mas fragmentos intensivos<br />
construí<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong>stes personagens. <strong>Uma</strong> palavra, um olhar. Das criaturas individuais - sua<br />
avó, Gilberte, Albertine, ele já se esquecera. "A Busca" não é, ao contrário <strong>do</strong> que parece, uma<br />
pesquisa <strong>de</strong> memória. Fragmentos <strong>de</strong> passa<strong>do</strong> puro[203] , eis o que é encontra<strong>do</strong> sem que se<br />
procure, quan<strong>do</strong> emerge pela memória involuntária. Ou o que a criação artística, e apenas ela,<br />
possibilita encontrar[204].<br />
... uma nova luz se fez em mim. E compreendi que to<strong>do</strong>s os materiais da obra literária eram<br />
a minha vida passada; compreendi que tinham vin<strong>do</strong> a mim, nos prazeres frívolos, na preguiça, na<br />
ternura, na <strong>do</strong>r, armazena<strong>do</strong>s por mim sem que eu adivinhasse sua <strong>de</strong>stinação, sua própria<br />
sobrevivência, como a semente acumula to<strong>do</strong>s os alimentos que hão <strong>de</strong> nutrir a planta. Como a<br />
semente eu po<strong>de</strong>ria morrer quan<strong>do</strong> a planta se <strong>de</strong>senvolvesse[205].<br />
3.4.3) O Construtivismo e o Suprematismo : Arte e Revolução<br />
<strong>Uma</strong> "<strong>Clínica</strong> Construtivista"[206] seria, para Guattari , aquela capaz <strong>de</strong> romper com i<strong>de</strong>ais<br />
<strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong> ultrapassa<strong>do</strong>s, toman<strong>do</strong> paradigmas ético-estético-políticos. A que se liga esta
<strong>de</strong>nominação "construtivismo" que Deleuze e Guattari empregam para se referir tanto à filosofia<br />
quanto à clínica[207]? Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta questão, pareceu-nos importante mapear os caminhos <strong>do</strong><br />
construtivismo e outras tendências da arte não objetiva russa para se pensar os impasses da<br />
subjetivida<strong>de</strong> contemporânea, num campo on<strong>de</strong> estão fortemente implicadas arte e política.<br />
Escolhemos, entre outros movimentos também importantes <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século no campo das<br />
artes plásticas, estas tendências da arte russa, não tanto por sua importância em geral no campo<br />
da arte, mas por esta articulação arte-revolução que apenas este movimento pô<strong>de</strong> fazer. Damos<br />
por esta via continuida<strong>de</strong> às nossas consi<strong>de</strong>rações sobre o intempestivo, sobre os usos da história<br />
que fortalecem a vida. Recor<strong>de</strong>mos que no capítulo 2.3.2 vimos que o passa<strong>do</strong> só po<strong>de</strong> ser<br />
retoma<strong>do</strong> produtivamente como obra <strong>de</strong> arte. Buscamos neste ponto, numa intenção <strong>de</strong> certa<br />
forma poética, retomar a história <strong>de</strong>stes movimentos no que eles nos ensinam sobre nossa<br />
contemporaneida<strong>de</strong>, num século que se iniciou com a promessa da construção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong><br />
novo que assistimos ruir <strong>de</strong> forma imprevisível.<br />
Os Construtivistas preten<strong>de</strong>ram talvez ingenuamente trazer a revolução para o campo das<br />
artes ou participar <strong>de</strong>la <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aí. To<strong>do</strong>s conhecemos as vissicitu<strong>de</strong>s da criação na União<br />
Soviética, com seus exílios e expurgos e o triste capítulo <strong>do</strong> realismo socialista no estalinismo, no<br />
qual a pintura retorna à função representativa, encarregada retratar e enaltecer os feitos da<br />
revolução e <strong>de</strong> seus lí<strong>de</strong>res.<br />
No entanto, o construtivismo, com Tatlin, Rodchenko, El Lyssinsky e outros, e o<br />
Suprematismo, com Malevitch, contemporâneos da revolução <strong>de</strong> outubro, propunham-se a uma<br />
total reformulação da linguagem plástico-pictórica, rompen<strong>do</strong> com a relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência para<br />
com as formas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real exterior, para criar "objetos autônomos"[208]. A <strong>de</strong>signação <strong>de</strong>stes<br />
movimentos como "arte não objetiva" refere-se a esta característica principal <strong>de</strong> ruptura com a<br />
representação. A <strong>de</strong>signação "construtivismo" refere-se também a um tipo <strong>de</strong> arte que revela seu<br />
próprio processo <strong>de</strong> fabricação - uma tela que mostra seu relevo, sua textura. <strong>Uma</strong> arte que não<br />
induziria o observa<strong>do</strong>r a uma atitu<strong>de</strong> contemplativa, mas à experimentação. Não porque tenha<br />
esta finalida<strong>de</strong>, já que os objetos que cria existem em si mesmos e não têm necessariamente<br />
finalida<strong>de</strong>s, mas porque são como novos mun<strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s que com sua existência, <strong>de</strong>monstram<br />
que é possível reinventar a vida.<br />
Não objetivo se refere também a uma ruptura com a dicotomia sujeito - objeto. Estes objetos<br />
cria<strong>do</strong>s não existem para um sujeito, mas neles mesmos. Imagina-se um mun<strong>do</strong> que exista<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um observa<strong>do</strong>r. Os materiais adquirem sua própria concretu<strong>de</strong> já que não estão<br />
ali para causar uma impressão <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, mas revelam intensida<strong>de</strong>s perceptuais que lhe são<br />
próprias. A moldura não po<strong>de</strong> mais limitar o quadro - a produção artística atinge o espaço, neste<br />
processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> objetos autônomos.<br />
As esculturas moveis <strong>de</strong> Rodtchenko, o monumento à Terceira Internacional <strong>de</strong> Tatlin são<br />
experimentações sobre o ritmo espaço-temporal. Muitas criações <strong>do</strong> construtivismo serão obras<br />
arquitetônicas, projetos para prédios públicos <strong>do</strong> novo governo e cartazes <strong>de</strong> propaganda. Foi<br />
pinta<strong>do</strong> o último quadro, como diz Tarabukin, como evidência maior <strong>de</strong>sta ruptura com a<br />
representação.<br />
Apenas o construtivismo e o suprematismo russos, em sua ruptura com a arte tradicional,<br />
pu<strong>de</strong>ram basear a planejada fusão arte e vida numa revolução política "<strong>de</strong> fato"[209]. Havia no<br />
perío<strong>do</strong> revolucionário um afã <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> novo que pu<strong>de</strong>sse operar uma ruptura<br />
radical com o passa<strong>do</strong>. A construção <strong>do</strong> socialismo era o motor principal <strong>de</strong>ste postura <strong>de</strong> ruptura.<br />
Queremos valorizar aqui não o sistema social que foi efetivamente construí<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong>sta<br />
revolução, mas o momento revolucionário mesmo enquanto acontecimento. O <strong>de</strong>vir<br />
revolucionário[210].<br />
Estabelecer entre arte e revolução política, ou entre produção <strong>de</strong>sejante e produção da vida<br />
material outras conexões, relações <strong>de</strong> imanência - tal é a questão básica para a arte, para a<br />
política, para a vida. Frequentemente se preten<strong>de</strong> que a técnica esteja separada <strong>de</strong> aspectos que<br />
po<strong>de</strong>ríamos chamar éticos. No entanto, os problemas técnicos estão completamente inseri<strong>do</strong>s<br />
numa ética imanente.
A tecnologia tornada autônoma é uma das figuras mais aterrorizantes da<br />
contemporaneida<strong>de</strong>. A economia <strong>do</strong>s tecnocratas - esfera misteriosa que rege nossas vidas<br />
quan<strong>do</strong> assistimos passivamente na televisão alguns jovens orientais que empunhan<strong>do</strong> telefones<br />
celulares gesticulam nervosamente. Esta imagem é usada como explicação suficiente para a<br />
miséria que nos aflige, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Leituras economicistas <strong>de</strong> Marx também<br />
ganharam força no antigo mun<strong>do</strong> comunista, fazen<strong>do</strong> da infraestrutura econômica uma<br />
profundida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estavam todas as causas. Nesta concepção <strong>de</strong> uma infraestrutura econômica<br />
tornada autônoma, confundia-se frequentemente relações técnicas <strong>de</strong> produção e relações <strong>de</strong><br />
produção, fazen<strong>do</strong> com que a produção passasse a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r e resultar <strong>do</strong> progresso tecnológico<br />
é só secundariamente das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Ora, não nos parece ser esse o pensamento <strong>de</strong><br />
Marx[211], para quem relações <strong>de</strong> produção são relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que os homens estabelecem<br />
na produção da vida material. A tecnologia tornada autônoma e <strong>de</strong>terminante em nosso mun<strong>do</strong> é,<br />
enquanto uma das figuras <strong>do</strong> capitalismo, uma das vias <strong>de</strong> produção da subjetivida<strong>de</strong><br />
contemporânea e uma via <strong>de</strong> anti-produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Ora, o que construtivismo e o suprematismo têm a nos ensinar é esta experiência <strong>de</strong> fazer<br />
coincidir aspectos ético-estético-políticos ou <strong>de</strong> fazer coincidir produção <strong>de</strong>sejante e produção da<br />
vida material. Eis um <strong>do</strong>s motivos para se afirmar que a clínica é um construtivismo.<br />
O suprematismo <strong>de</strong> Kasemir Malevitch dá um senti<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iramente contemporâneo a<br />
este "prima<strong>do</strong> da criação" estabeleci<strong>do</strong> pela arte não objetiva russa. Preocupa<strong>do</strong> com a<br />
reinvenção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> compatível com a nova or<strong>de</strong>m econômica que se inaugurava em 1917 e<br />
<strong>de</strong> cujos i<strong>de</strong>ais compartilhava, Malevitch encarava o passa<strong>do</strong> como um obstáculo. As artes<br />
plásticas e a arquitetura <strong>de</strong>viam se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r das formas "belas", no senti<strong>do</strong> platônico, e serem<br />
capazes <strong>de</strong> criar um mun<strong>do</strong> totalmente novo. Os museus <strong>de</strong>veriam transformar-se em laboratórios<br />
<strong>de</strong> criação e não <strong>de</strong> culto <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> estabelecer classificações ou categorizações<br />
falsamente cultas.<br />
Para ele, criar era por-se em contacto com o plano também responsável pela criação <strong>do</strong>s<br />
objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da tecnologia e da ciência, o plano da "energia intuitiva". Este plano, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
provêm todas as formas, recebe na obra <strong>de</strong> Malevitch outras <strong>de</strong>nominações: vazio cria<strong>do</strong>r,<br />
potência criativa <strong>do</strong> nada[212]. Ou Deus, entendi<strong>do</strong> não com transcendência, mas como um plano<br />
<strong>de</strong> criação para além <strong>do</strong> humano. Não há mais essências a servir <strong>de</strong> fundamento para a arte, ou<br />
para a vida, nem questões filosóficas ou literárias que a arte <strong>de</strong>va simbolizar ou representar. Na<br />
perspectiva suprematista, todas as transcendências per<strong>de</strong>ram a razão <strong>de</strong> ser, mas ao contrário <strong>do</strong><br />
que <strong>de</strong>nunciavam seus críticos, não se trata <strong>de</strong> pessimismo ou negativismo. O que se abre para a<br />
as artes e para a existência, segun<strong>do</strong> Malevitch, é a perspectiva da criação e da liberda<strong>de</strong>.<br />
A crítica <strong>do</strong> museu é um ponto central <strong>do</strong> movimento UNOVIS (Pela Afirmação <strong>de</strong> Novas<br />
Formas <strong>de</strong> Arte) funda<strong>do</strong> por Malevitch - ele recusava a história da arte contada nos museus por<br />
estabelecer uma continuida<strong>de</strong> e uma hierarquização <strong>do</strong>s estilos e por ainda trabalhar com noções<br />
clássicas sobre o belo. Para Malevitch os quadros não representacionais são uma janela através<br />
da qual <strong>de</strong>scobrimos a vida. Suas figuras geométricas estão a <strong>de</strong>riva, como se tivessem si<strong>do</strong><br />
captadas pelo artista no momento mesmo <strong>de</strong> sua emergência a partir <strong>do</strong> nada. Se Malevitch<br />
parecia em alguns momentos dar uma feição zen-budista a este nada cria<strong>do</strong>r, po<strong>de</strong>mos ver no<br />
que ele chamava <strong>de</strong> superfície plana pictural o próprio plano <strong>de</strong> imanência. A obra <strong>de</strong> arte não<br />
copia qualquer forma <strong>do</strong> mu<strong>do</strong>, ela mostra este plano a partir <strong>do</strong> qual as coisas são criadas.<br />
Haveria que se produzir uma arte verda<strong>de</strong>iramente contemporânea e para isto, o passa<strong>do</strong><br />
nada tinha a ensinar. Aparece uma nova concepção <strong>do</strong> museu, que visa o presente e a criação <strong>de</strong><br />
novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazer e conceber a arte. Rodchenko, o nome mais conheci<strong>do</strong> no movimento<br />
construtivista russo, havia termina<strong>do</strong> com a pintura em 1922 para <strong>de</strong>dicar-se "à construção da<br />
vida". A vida é o que se quer produzir através da arte - a arte não a imita, mas interfere e cria<br />
condições para sua construção. Esta arte construtora da vida, para Rodchenko, <strong>de</strong>via <strong>de</strong>senhar os<br />
mo<strong>de</strong>los para a edificação i<strong>de</strong>al e material da vida quotidiana, na próxima socieda<strong>de</strong> socialista e<br />
comunista. Referin<strong>do</strong>-se à sua própria obra até 1920, Rodtchenko a consi<strong>de</strong>rava como uma<br />
pintura tão inútil como construir igrejas:
Abaixo a arte que só é um meio para fugir da vida, que não é digna da vida! Já é tempo que<br />
a arte organizada flua em direção à vida ... a vida construtiva é a arte <strong>do</strong> futuro ... To<strong>do</strong> aquele<br />
que que ama a arte vital enten<strong>de</strong> que a coisa real e não a idéia é o objetivo <strong>de</strong> qualquer criação<br />
artística.[213].<br />
Ao construtivismo importava a coisa real. A discussão sobre a cor é esclarece<strong>do</strong>ra quanto<br />
ao que seja este ponto <strong>de</strong> vista. A cor não para expressar sentimentos ou percepções subjetivas,<br />
mas, para expressar as proprieda<strong>de</strong>s da matéria. Punin <strong>de</strong>fine este trabalho como um trabalho <strong>de</strong><br />
superfície com a cor. A intensida<strong>de</strong> passa a ser sua proprieda<strong>de</strong> mais importante.<br />
A cor como o que ela é, objetivada, livre <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo subjetivo <strong>do</strong> pintor e da impressão que<br />
causem no observa<strong>do</strong>r. A pintura só via, agora sente[214].<br />
Os construtivistas querem liberar as cores <strong>de</strong> seu significa<strong>do</strong> como coisas, mas também <strong>de</strong><br />
seu valor psíquico <strong>de</strong> expressão para por em evidência suas proprieda<strong>de</strong>s, livres <strong>de</strong> toda outra<br />
função utilitária. No construtivismo há uma retomada da tradição da pintura <strong>do</strong>s ícones, com uma<br />
feição inteiramente nova - o que interessa é o manejo da cor e da superfície: os a<strong>de</strong>reços<br />
<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s, os planos colori<strong>do</strong>s, mostram proprieda<strong>de</strong>s da matéria. Nos ícones tais a<strong>de</strong>reços tinham<br />
a função <strong>de</strong> dar um caráter divino, celestial aos santos representa<strong>do</strong>s. Agora, trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer à<br />
terra e divinizar não os <strong>de</strong>uses, mas a força construtiva humana - o coletivo.<br />
A valorização da pintura medieval pelo construtivismo <strong>de</strong> Rodchenko, portanto, se liga ao<br />
seu caráter <strong>de</strong>corativo ou seu caráter construtivo. Mas o que eles <strong>de</strong>sejavam era fazer com que os<br />
<strong>de</strong>uses que esta pintura glorificava "baixassem à terra", que estas transcendências pu<strong>de</strong>ssem se<br />
tornar imanentes. Tal como na pintura <strong>do</strong>s ícones, porém, tratava-se <strong>de</strong> trabalhar com um plano<br />
para além <strong>do</strong> indivíduo, que no caso da pintura medieval dizia respeito ao divino.<br />
No construtivismo há uma libertação <strong>do</strong> claro-escuro <strong>de</strong> sua função <strong>de</strong> representação, já<br />
que o que se quer é <strong>de</strong>ixar nu o procedimento. Os quadros monocromáticos não representam<br />
nada. São superfícies cujos limites não estão claramente da<strong>do</strong>s. Desfaz-se a unida<strong>de</strong> tradicional<br />
entre cor e forma. Também rompe-se com a relação figura/fun<strong>do</strong> em proveito <strong>de</strong> uma superfície.<br />
O trabalho <strong>de</strong> Tatlin é a produção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los que sugerem novas experiências para o<br />
trabalho <strong>de</strong> "construção <strong>de</strong> um novo mun<strong>do</strong>", chaman<strong>do</strong> a atenção <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os produtores para as<br />
formas que nos ro<strong>de</strong>iam no cotidiano. A esta valorização <strong>do</strong> quotidiano correspon<strong>de</strong> também uma<br />
valorização da fotografia. A ruptura com o velho é, para este artista, também a ruptura com o<br />
capitalismo, com a exploração, com o egoísmo. É a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> baseada na<br />
vonta<strong>de</strong> coletiva, na repartição <strong>do</strong>s bens, no trabalho solidário. Na arte, isto é coloca<strong>do</strong> como o fim<br />
<strong>do</strong> individualismo e <strong>do</strong> personalismo. Esta arte-coisa, que cria a partir da matéria, questiona a<br />
forma <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> objetivo. Ela não é merca<strong>do</strong>ria, não existe nem por seu valor <strong>de</strong> uso,<br />
nem por seu valor <strong>de</strong> troca, mas em si mesma.<br />
Dissemos que a pintura soviética retroce<strong>de</strong> à representação no chama<strong>do</strong> realismo<br />
socialista. Como imaginar tal retrocesso a partir <strong>do</strong> que vimos até aqui? Como se dá o "expurgo"<br />
da arte não objetiva?<br />
Durante um breve perío<strong>do</strong> pós revolucionário, as autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> novo governo pensam que<br />
a arte <strong>de</strong>ve participar <strong>do</strong> incremento da produção e <strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> conscientização <strong>do</strong> povo em prol<br />
da causa socialista. Mas isto durou muito pouco. Em 1918, Malevitch a<strong>do</strong>ta com entusiasmo os<br />
objetivos da Revolução <strong>de</strong> Outubro, on<strong>de</strong> vê a "liberação global da força criativa <strong>do</strong> homem"[215].<br />
Participa <strong>do</strong>s trabalhos <strong>do</strong> comissaria<strong>do</strong> para a educação e ensina nos Ateliês Livres <strong>de</strong> Moscou.<br />
Em 1919 na exposição estatal entitulada "Criação não Objetiva e Suprematismo", há uma gran<strong>de</strong><br />
oposição no próprio grupo <strong>de</strong> pintores não objetivos ao grupo <strong>de</strong> Malevitch. O construtivismo<br />
segue cada vez mais uma tendência que valoriza a arte-procedimento. Tal tendência chegará, no
movimento <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> produtivismo, a tomar um caminho completamente utilitário. Pelo grupo<br />
produtivista, o suprematismo será <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> com <strong>de</strong>sprezo como "arte pela arte". Em 1919<br />
Malevitch é convida<strong>do</strong> por Chagall (com quem logo romperá) a ensinar nos ateliês livres <strong>de</strong><br />
Vitebsk, on<strong>de</strong> cria o Grupo Unovis. Sua ativida<strong>de</strong> é intensa nesta época também como escritor <strong>de</strong><br />
teoria da arte. Nos anos que se seguem, cresce seu isolamento. Em 1929, quan<strong>do</strong> faz sua última<br />
exposição, um crítico diz que sua arte parece estrangeira a seus contemporâneos. A partir <strong>de</strong><br />
1930, sua situação pessoal e profissional piora. É chama<strong>do</strong> aos serviços <strong>de</strong> segurança para<br />
interrogatório, lá permanecen<strong>do</strong> por duas semanas. Seus artigos não são mais publica<strong>do</strong>s pela<br />
imprensa russa e uma gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seus arquivos é <strong>de</strong>struída. Continua a pintar, num estilo<br />
representativo simbólico - sua obra <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> "retorna" ao estilo que exibia nos anos 1910 a<br />
1914 - torna-se figurativa. Em 1935 morre <strong>de</strong> câncer e seus alunos preparam uma cerimônia<br />
fúnebre - o caixão em estilo suprematista se apoia sobre um gran<strong>de</strong> quadra<strong>do</strong> negro[216], que<br />
atravessa Leningra<strong>do</strong>.<br />
Esta sequência biográfica fala por si - só com a morte <strong>do</strong> artista o quadra<strong>do</strong> negro po<strong>de</strong><br />
atravessar, livre, as ruas da cida<strong>de</strong>. A revolução se institucionalizara rompen<strong>do</strong> radicalmente suas<br />
relações com a arte, que lhe parecerá perigosa. Muito mais tar<strong>de</strong>, assistiremos ao fim <strong>de</strong>ste<br />
sistema social - aparentemente, muito pouco terá resta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste momento revolucionário inicial. As<br />
revoluções são frágeis - elas não duram para sempre uma vez instituídas. O tempo as atravessa.<br />
Mas senão tivermos uma postura <strong>de</strong> ressentimento frente ao tempo, po<strong>de</strong>remos concluir que por<br />
serem frágeis e breves, as revoluções <strong>de</strong>vem ser quotidianamente buscadas, ao invés <strong>de</strong> nos<br />
pren<strong>de</strong>rmos ao "fracasso <strong>do</strong> comunismo ou <strong>do</strong> socialismo real".<br />
O que estava em jogo, tanto no próprio campo da arte não objetiva, nos ataques feitos ao<br />
suprematismo, quanto no "expurgo" <strong>de</strong> Malevitch realiza<strong>do</strong> pelas autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> governo era a<br />
questão da utilida<strong>de</strong> da arte. Esta questão, como vemos, é política e explosiva e não diz respeito<br />
apenas a conhece<strong>do</strong>res <strong>de</strong> arte.<br />
O construtivismo não aceitava o que eles consi<strong>de</strong>ravam ser um la<strong>do</strong> místico da obra <strong>de</strong><br />
Malevitch - este colocar-se num plano ontológico <strong>de</strong> emergência da forma, enquanto no<br />
construtivismo não havia outro plano que não o das formas mesmas[217]. A radicalização <strong>de</strong>ste<br />
posicionamento só po<strong>de</strong>ria levar a uma postura francamente utilitária, que se expressa na corrente<br />
<strong>de</strong>nominada produtivismo.<br />
No que diz respeito à revolução comunista, o lugar conferi<strong>do</strong> à produção artística vai sen<strong>do</strong><br />
progressivamente esvazia<strong>do</strong>, e o artista visto como improdutivo, um inimigo. Sob este ponto <strong>de</strong><br />
vista, é elucidativo o discurso proferi<strong>do</strong> por um lí<strong>de</strong>r durante um congresso parti<strong>do</strong> comunista : "O<br />
sapateiro fabrica sapatos. Que faz o artista? Cria. Isto não é claro e é suspeito[218]. Assim, não<br />
obstante existirem tendências no seio da arte não objetiva russa que visavam justamente um<br />
engajamento na produção e uma compatibilização entre arte e produção industrial, o movimento<br />
como um to<strong>do</strong> vai sen<strong>do</strong> expurga<strong>do</strong>, pois é justamente a arte representativa que vai ser eleita<br />
como a arte "oficial", no realismo socialista.<br />
No seio <strong>do</strong> movimento construtivista sempre existira uma preocupação com a "maestria" ou<br />
a qualida<strong>de</strong> formal <strong>do</strong>s objetos <strong>de</strong> arte, e com um engajamento pragmático e utilitário no esforço<br />
produtivo leninista. Posteriormente, o movimento da Bauhaus, na Alemanha <strong>do</strong>s anos 30,<br />
procurará <strong>de</strong> forma semelhante associar técnica e arte, produção industrial e criação, <strong>de</strong>sta vez<br />
"no leste". Acreditará nas possibilida<strong>de</strong>s inova<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>sta associação e sonhará com uma arte<br />
tornada útil: "Arrancar o artista cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> seu distanciamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e restabelecer sua relação<br />
com o mun<strong>do</strong> real <strong>do</strong> trabalho"[219].<br />
Quer no leste, quer no oeste, o contacto com o mun<strong>do</strong> caósmico e fervilhante da criação<br />
<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia uma onda repressiva que, ainda nos anos vinte, tenta reduzir a inventivida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra<br />
que se <strong>de</strong>scortinava aos limites da utilida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> tecnicismo. Entretanto, quan<strong>do</strong> a arte<br />
contemporânea <strong>de</strong>scobre este campo da invenção, da criação <strong>de</strong> objetos autônomos, não é <strong>de</strong><br />
objetos úteis que ela nos fala apenas, ou <strong>de</strong> objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da produção industrial<br />
propriamente. O prima<strong>do</strong> da criação, que <strong>de</strong>veria prevalecer sobre to<strong>do</strong>s os outros aspectos,<br />
segun<strong>do</strong> os pressupostos <strong>do</strong> construtivismo e <strong>do</strong> suprematismo, acabava por produzir formas<br />
estranhas, tortas, inúteis.
3.4.4) Outras consi<strong>de</strong>rações sobre arte contemporânea e clínica<br />
A relação com o plano da criação - ou o mo<strong>do</strong> como este plano virtual se atualiza - é uma<br />
questão colocada a to<strong>do</strong> momento no campo clínico e analogamente no campo das artes plásticas<br />
<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> especial. Para Deleuze a arte abstrata, ao negar a forma, frequentemente cai numa<br />
espécie <strong>de</strong> niilismo ou negativismo, que não está presente na arte por ele <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> figural.<br />
Ali, a figura está presente, não para representar a realida<strong>de</strong> mas para se <strong>de</strong>ixar atravessar por um<br />
campo <strong>de</strong> forças, um campo <strong>de</strong> sensações que remetem justamente a este plano caósmico. A<br />
forma, no caso da pintura <strong>de</strong>nominada figural, não limita ou aprisiona, mas tem uma função<br />
positiva, a <strong>de</strong> possibilitar que o virtual se atualize. Não se trata <strong>do</strong> caos como negativo mas <strong>do</strong><br />
caos como germe da criação[220].<br />
Esta sutileza ao tratar das complexas relações entre o plano <strong>de</strong> imanência e a forma, po<strong>de</strong><br />
ser transposta para o campo da clínica. A relação <strong>do</strong> plano da criação ou <strong>do</strong> inconsciente com<br />
plano das "coisas criadas" não é <strong>de</strong> expressão direta, ou <strong>de</strong> liberação no senti<strong>do</strong> catártico,<br />
negan<strong>do</strong> toda forma. Não se trata <strong>de</strong> simplesmente liberar energias ou fluxos, como se acredita<br />
fazer em muitas tendências da psicoterapia. Nem, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> submeter este plano<br />
caósmico a estruturas exteriores que o organizariam, pois neste caso ainda estaríamos presos à<br />
concepção <strong>de</strong> caos como negativo a ser organiza<strong>do</strong> por alguma instância interior ou exterior ao<br />
plano. Trata-se <strong>de</strong> um ir e vir entre o caos e a complexida<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong> experimentar o caos e<br />
sair <strong>de</strong>le, como ocorre por exemplo na pintura <strong>de</strong> Francis Bacon[221]. É no contacto com o caos<br />
enquanto germe que Deleuze vê a vocação clínica da arte, "para além <strong>de</strong> toda psiquiatria e <strong>de</strong><br />
toda psicanálise"[222]. Na pintura <strong>de</strong> Francis Bacon, que Deleuze consi<strong>de</strong>ra como figural,<br />
entramos em contacto com um plano da forma minimal e flexível, que <strong>de</strong>ixa passar os fluxos ao<br />
invés <strong>de</strong> aprisioná-los[223].<br />
Objetos que conjugam o <strong>de</strong>ntro e o fora - algumas obras <strong>de</strong> arte contemporânea como os<br />
bichos <strong>de</strong> Lygia Clark, constroem figuras que possibilitam pensar a subjetivida<strong>de</strong> contemporânea<br />
como este meio caminho ou este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> relação entre um plano flui<strong>do</strong> e aformal e o plano da<br />
forma. Pois se por um la<strong>do</strong> a subjetivida<strong>de</strong> tem como condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> este plano préindividual<br />
e pré-subjetivo, este plano flui<strong>do</strong> e aformal, os objetos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a própria<br />
subjetivida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>m ser concebi<strong>do</strong>s senão enquanto formas. Formas transitórias, formas<br />
vazadas, formas permeáveis algumas vezes. Formas rígidas, endurecidas, erigidas enquanto<br />
essências eternas e imutáveis noutras.<br />
Dizer que arte opera no plano das sensações é algo frequentemente confundi<strong>do</strong> com o<br />
plano <strong>do</strong> sentimento psicológico. Entretanto, o plano da sensação a que se refere Deleuze nada<br />
tem a ver com as ambivalências <strong>do</strong> sentimento ou com percursos históricos ou narrativos <strong>do</strong><br />
artista nem com a construção <strong>de</strong> uma história. Trata-se <strong>de</strong> um plano pré-pessoal e pré-subjetivo.<br />
Ao invés <strong>de</strong> um inconsciente arqueológico, ou <strong>do</strong> psicanalista arqueólogo, o que se busca, a<br />
partir <strong>de</strong>stas problematizações em torno da arte contemporânea, é um inconsciente-superfície e<br />
um analista que produza <strong>de</strong>slocamentos intensivos. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, um inconsciente-memória<br />
se ligaria àquele pensa<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> estruturas universais, mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> formas prévias, ou<br />
<strong>de</strong> formas duras que organizariam o plano <strong>do</strong> caos. Se pensarmos um inconsciente que se auto<br />
produz, que é este plano a partir <strong>do</strong> qual todas as formas são criadas, então serão os<br />
<strong>de</strong>slocamentos ou os agenciamentos que importarão. Serão as viagens numa superfície intensiva,<br />
tal como o passeio <strong>de</strong> bicicleta <strong>de</strong> Hans pela vizinhança <strong>de</strong> sua casa, que o conduziu a um <strong>de</strong>vir<br />
animal e não ao reencontro com um cavalo que representava o pai[224].<br />
Esta superfície estética e temporalizada que queremos construir abre espaço para uma<br />
prática que não vai implicar numa negação da temporalida<strong>de</strong>, que não vai pregar a abolição <strong>de</strong><br />
toda forma, como po<strong>de</strong>r-se-ia supor, ao se empreen<strong>de</strong>r a partir da arte contemporânea a crítica<br />
radical da representação. Mas que vai substituir a postura <strong>do</strong> arqueólogo pela <strong>do</strong> viajanteconstrutor<br />
<strong>de</strong> novos mun<strong>do</strong>s para a subjetivida<strong>de</strong> contemporânea.
3.5) Arte, <strong>Clínica</strong> e Doença Mental - Outras relações entre produção <strong>de</strong>sejante e<br />
produção da vida material<br />
Abordaremos neste momento as relações entre arte e subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro ponto <strong>de</strong><br />
vista: referidas à clínica da <strong>do</strong>ença mental. No contexto <strong>do</strong> que se convencionou chamar <strong>de</strong><br />
reforma psiquiátrica, aparecem ao longo da história da psiquiatria projetos <strong>de</strong> reformulação que<br />
enfatizam um tratamento liga<strong>do</strong> ao trabalho e à criação artística. No contexto da reforma brasileira<br />
atual[225] surge a terminologia "reabilitação psicossocial", que se refere a formas <strong>de</strong> tratamento<br />
on<strong>de</strong> "oficinas terapêuticas" <strong>de</strong>sempenham um papel fundamental.<br />
A "reabilitação psicossocial" a que se refere a reforma psiquiátrica po<strong>de</strong> soar como um eco<br />
<strong>de</strong> antigas práticas, já que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascimento, segun<strong>do</strong> nos mostrou Foucault, a psiquiatria<br />
passa por "reformas" que nada mais são <strong>do</strong> que uma reatualização constante <strong>de</strong> suas estratégias<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r[226]. A adaptação pura e simples <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente mental "à socieda<strong>de</strong>" é o horizonte <strong>de</strong><br />
muitos <strong>de</strong>stes movimentos. O termo reabilitação possui um cunho pragmático, visto como seu<br />
maior mérito por alguns, que a <strong>de</strong>finem como uma prática que se <strong>de</strong>senvolveu mais <strong>de</strong>pressa que<br />
a teoria, ou até mesmo como uma prática sem teoria, como se refere Saraceno[227]. É necessário<br />
problematizar algumas <strong>de</strong>stas colocações. Problematizar, não para proclamar a solução <strong>de</strong>finitiva,<br />
mas no senti<strong>do</strong> bergsoniano, on<strong>de</strong> o exercício <strong>de</strong> pensar coinci<strong>de</strong> com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber<br />
colocar problemas, e não <strong>de</strong> apontar soluções <strong>de</strong>finitivas. Pois que sabemos nós, não há soluções<br />
<strong>de</strong>finitivas num terreno imediatamente político como o da psiquiatria. Que falar <strong>de</strong> psiquiatria seja<br />
falar imediatamente <strong>de</strong> política acreditamos já ter si<strong>do</strong> suficientemente <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> por Franco<br />
Basaglia, Foucault, entre outros.<br />
No que po<strong>de</strong> se constituir uma prática sem teoria? <strong>Uma</strong> prática levada a efeito por atores<br />
sociais <strong>de</strong> cabeça vazia, que não pensam, apenas agem? Consi<strong>de</strong>ro inicialmente impossível a<br />
existência <strong>de</strong> uma prática sem teoria - pois se trata sempre <strong>de</strong> saberes, mais ou menos<br />
complexos, mais ou menos elabora<strong>do</strong>s, mas sempre <strong>de</strong> saberes, indissociavelmente articula<strong>do</strong>s a<br />
práticas sociais.<br />
Alguns dirão que as questões teóricas não são importantes e que se trata principalmente <strong>de</strong><br />
agir, <strong>de</strong> inserir socialmente indivíduos encarcera<strong>do</strong>s, segrega<strong>do</strong>s, ociosos - recuperá-los enquanto<br />
cidadãos. Como fazê-lo? Através <strong>de</strong> ações que passam fundamentalmente pela inserção <strong>do</strong><br />
paciente psiquiátrico no trabalho e/ou em ativida<strong>de</strong>s artísticas, artesanais, ou em dar-lhe acesso<br />
aos meios <strong>de</strong> comunicação - como a criação <strong>de</strong> dispositivos como a TV Tantan <strong>de</strong> Santos (durante<br />
o governo <strong>do</strong> PT), a TV Pinel <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, etc.<br />
Não apenas para os pacientes psiquiátricos o trabalho e a arte têm esta função <strong>de</strong> inserção<br />
no mun<strong>do</strong> da coletivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> rompimento <strong>do</strong> isolamento que caracteriza a vivência subjetiva<br />
contemporânea. O trabalho (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> que trabalho, como veremos a seguir) po<strong>de</strong> nos<br />
tornar (a nós e a nossos pacientes) agentes ativos no mun<strong>do</strong> em que vivemos e não apenas<br />
especta<strong>do</strong>res passivos ou submissos ao que ocorre fora <strong>de</strong> nós. Sim, o trabalho e arte po<strong>de</strong>m ser<br />
gran<strong>de</strong>s vetores <strong>de</strong> existencialização - como diz Guattari. Porém, em que condições isto po<strong>de</strong><br />
ocorrer? Em que mun<strong>do</strong> queremos nos inserir e inserir nossos pacientes ou usuários psiquiátricos,<br />
como são <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s atualmente. Respon<strong>de</strong>r a esta questão é muito importante: será que<br />
queremos nos inserir ou nos adaptar pura e simplesmente ao mun<strong>do</strong> em que vivemos hoje ? Do<br />
ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> fortalecimento e da expansão da vida, que obteremos com este tipo <strong>de</strong><br />
adaptação? Será que no mun<strong>do</strong> capitalista o trabalho segue ten<strong>do</strong> todas estas características (<strong>de</strong><br />
funcionar como vetor <strong>de</strong> existencialização) ou até que ponto? Ou se trata <strong>de</strong> transformar as<br />
relações <strong>de</strong> trabalho para que elas possam funcionar <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>?<br />
No que se refere à arte, teremos também que pensar sobre o lugar da criação no mun<strong>do</strong><br />
contemporâneo. Teríamos portanto que nos colocar todas estas questões quan<strong>do</strong> fazemos<br />
oficinas on<strong>de</strong> trabalho e criação artística estão em jogo.<br />
Retomemos Marx[228] para pensar as condições <strong>do</strong> trabalho no capitalismo. Lembremo-nos<br />
da noção <strong>de</strong> trabalho aliena<strong>do</strong>: no trabalho aliena<strong>do</strong>, as condições pelas quais o trabalho po<strong>de</strong> se
constituir como vetor <strong>de</strong> existencialização estão bastante reduzidas ou inexistentes: (o homem se<br />
torna escravo das máquinas e não o contrário). No capitalismo, a mecanização da produção<br />
trouxe consigo o aumento da exploração (e não uma facilitação <strong>do</strong> trabalho humano), dizia Marx,<br />
mesmo sem chegar a ver os <strong>de</strong>senvolvimentos atuais da informatização da produção, um <strong>do</strong>s<br />
fatores responsáveis pelo aumento <strong>do</strong> <strong>de</strong>semprego em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Neste tipo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, o<br />
homem se torna absolutamente escraviza<strong>do</strong> pelo senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter, escravo das coisas, como diz<br />
Marx.<br />
Po<strong>de</strong>mos nos utilizar <strong>do</strong> construtivismo para pensar o <strong>de</strong>sejo: Trata-se <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />
algo e não <strong>de</strong> espontaneismo. No que diz respeito ao <strong>de</strong>sejo, como temos visto ao longo <strong>de</strong>ste<br />
trabalho, não basta refletir, esperar, elaborar, fantasiar, escutar ou ser escuta<strong>do</strong>. É necessário<br />
construir um plano. De fato, quan<strong>do</strong> nos perguntamos pelo senti<strong>do</strong> das oficinas terapêuticas, este<br />
questionamento diz respeito ao <strong>de</strong>sejo e suas condições <strong>de</strong> efetuação na vida, no trabalho, na<br />
criação.<br />
Embora uma diferença <strong>de</strong> grau e não <strong>de</strong> natureza nos separe <strong>do</strong>s animais, não haven<strong>do</strong><br />
oposição entre natureza e cultura, enquanto eles têm um mun<strong>do</strong>, para os homens "o mun<strong>do</strong>" se<br />
apresenta como uma construção permanente. Nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir mun<strong>do</strong>s on<strong>de</strong><br />
possamos habitar, nós animais humanos, parece estar comprometida atualmente. É o que enfatiza<br />
Guattari em As Três Ecologias e também Konrad Lorenz, <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista um tanto diferente.<br />
Lorenz, em seu livro A Agressão[229] consi<strong>de</strong>ra que a espécie humana está ameaçada por<br />
sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inibir e dirigir construtivamente o que ele chama <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> intraespecífica<br />
- dirigida contra a própria espécie. To<strong>do</strong>s os animais têm que <strong>de</strong>senvolver meios para<br />
inibir tal agressivida<strong>de</strong> para que possam sobreviver enquanto espécie - no homem estes inibi<strong>do</strong>res<br />
são construí<strong>do</strong>s pela própria cultura, enquanto no mun<strong>do</strong> animal, são fixa<strong>do</strong>s hereditáriamente.<br />
Da<strong>do</strong> que no homem o código genético é mais aberto que no animal, o esgarçamento <strong>do</strong> teci<strong>do</strong><br />
social contemporâneo se torna uma ameaça a esta espécie. Para Lorenz, no entanto, a agressão<br />
é o instinto básico da natureza. Já para Deleuze e Guattari, a inibição construtiva da agressivida<strong>de</strong><br />
é consequência da criação <strong>de</strong> territórios, e não o contrário. A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> qualquer princípio<br />
negativo como tendência primeira é incompatível com o pensamento da diferença, como já vimos.<br />
A história <strong>do</strong> Construtivismo soviético mostrou com clareza um movimento artístico inseri<strong>do</strong><br />
num momento político privilegia<strong>do</strong>, que tornou claras as relações entre criação e política.<br />
Acompanhamos também a <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> movimento, o progressivo <strong>de</strong>scrédito em que caiu, num<br />
mun<strong>do</strong> em que a arte vai ten<strong>do</strong> que se tornar cada vez mais utilitária, até que seja completamente<br />
posta sob suspeição. Tanto no leste, quanto no oeste, como vimos todas as vezes em que<br />
produção da vida material e a produção <strong>de</strong>sejante estabelecem relações <strong>de</strong> coextensivida<strong>de</strong>, isto<br />
se torna "perigoso", pois se trata da criação <strong>de</strong> novos mun<strong>do</strong>s e da <strong>de</strong>struição <strong>do</strong>s antigos. Todas<br />
as vezes em que a vida aban<strong>do</strong>na o ponto <strong>de</strong> vista exclusivamente utilitário, isto se torna<br />
insuportável nas socieda<strong>de</strong>s capitalistas.<br />
A tentação pragmática e utilitária é também um <strong>de</strong>scaminho frequente no campo da<br />
chamada saú<strong>de</strong> pública. Vejamos a questão <strong>do</strong> trabalho no tratamento <strong>do</strong>s psicóticos: há sempre<br />
duas vertentes - uma que aponta para a tarefa inglória mas sempre tentada <strong>de</strong> tornar os loucos<br />
adapta<strong>do</strong>s e produtivos e outra que quer intensificar neles sua capacida<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, qualquer que<br />
seja o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta produção, útil ou não. As produções <strong>do</strong> inconsciente nem sempre coinci<strong>de</strong>m<br />
com os objetivos da produção em geral. É uma questão colocada para as socieda<strong>de</strong>s<br />
contemporâneas a <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r ou não fazer coincidir os objetivos da tecnologia com os da<br />
produção <strong>de</strong>sejante, se não quisermos nos tornar, como a ficção científica anuncia há algum<br />
tempo, escravos das máquinas.<br />
Quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>seja, através da arte ou <strong>do</strong> trabalho produzir territórios existenciais inserir ou<br />
reinserir socialmente os "usuários", torná-los cidadãos ... creio que está se falan<strong>do</strong> não <strong>de</strong><br />
adaptação à or<strong>de</strong>m estabelecida, mas <strong>de</strong> fazer com que o trabalho e a arte se reconectem com o<br />
prima<strong>do</strong> da criação, ou com o <strong>de</strong>sejo, tal como na arte não objetiva russa. Pois que o plano da<br />
produção <strong>de</strong>sejante é também o plano <strong>de</strong> engendramento <strong>do</strong> "mun<strong>do</strong>" humano <strong>de</strong> que falávamos<br />
ainda há pouco.
No trabalho com os usuários <strong>de</strong> psiquiatria, trata-se <strong>de</strong> reinventar a vida em seus aspectos<br />
mais quotidianos, pois é <strong>do</strong> quotidiano, principalmente, que se encontram priva<strong>do</strong>s os chama<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>entes mentais[230]. Entretanto, vimos como o estabelecimento <strong>de</strong>ste prima<strong>do</strong>, seja no campo<br />
da psiquiatria, seja no campo da criação artística, se apresenta pleno <strong>de</strong> obstáculos no mun<strong>do</strong> em<br />
que vivemos, e isto não apenas para os chama<strong>do</strong>s usuários <strong>de</strong> psiquiatria. Do mesmo mo<strong>do</strong>, uma<br />
subjetivida<strong>de</strong> voltada unicamente para a utilida<strong>de</strong>, para a adaptação é, na maioria das vezes a<br />
<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> instituições, <strong>de</strong> famílias, <strong>de</strong> clientes. Entretanto, trata-se, também neste contexto, <strong>de</strong><br />
estabelecer o prima<strong>do</strong> da criação sobre to<strong>do</strong>s os outros aspectos da vida, compatibilizan<strong>do</strong> ou<br />
subordinan<strong>do</strong> os aspectos pragmáticos e utilitários a este princípio fundamental. Isto se se <strong>de</strong>seja<br />
que, nas oficinas, trabalho e arte possam funcionar como catalisa<strong>do</strong>res da construção <strong>de</strong><br />
territórios existenciais, ou <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s nos quais os psiquiatriza<strong>do</strong>s possam reconquistar seu<br />
quotidiano.<br />
Que tipo <strong>de</strong> relação po<strong>de</strong>ria haver entre loucura e arte ? Sabemos que nem to<strong>do</strong> louco é<br />
artista, mas sabemos há entre loucura e arte um parentesco - tantas vezes expresso por figuras<br />
como Bispo <strong>do</strong> Rosário[231]. Po<strong>de</strong>mos dizer que há vida na loucura, assim como há vida na arte.<br />
E a vida é criação contínua <strong>de</strong> novas formas, <strong>de</strong> novos territórios. É a vida que há na loucura,<br />
enquanto força disruptiva, que cria constantemente este parentesco entre loucura e arte. Muitos<br />
loucos, no entanto, têm como <strong>de</strong>stino a psiquiatrização, ou caminhos sem saída, linhas <strong>de</strong><br />
abolição e não linhas <strong>de</strong> fuga. Assim, enquanto a arte é sempre criação <strong>de</strong> novos territórios, não<br />
po<strong>de</strong>ríamos afirmar o mesmo acerca da loucura.<br />
Que dizer <strong>do</strong> trabalho? Também, em relação ao trabalho, trata-se <strong>de</strong> estabelecer outras<br />
relações (diferentes daquelas <strong>do</strong> trabalho aliena<strong>do</strong>) entre produção <strong>de</strong>sejante e produção da vida<br />
material. O objetivo das oficinas me parece ser o <strong>de</strong> produzir outras conexões entre estes <strong>do</strong>is<br />
aspectos. Mas não pensemos que se trata <strong>de</strong> uma tarefa simples. Muitas questões se colocam<br />
toda vez que nos <strong>de</strong>frontamos com o trabalho <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s usuários. Ven<strong>de</strong>r ou não ven<strong>de</strong>r o<br />
produto? É certo que os pacientes necessitariam <strong>de</strong> recursos para po<strong>de</strong>rem viver seu quotidiano.<br />
Mas é certo também que muitos loucos não trabalham: como então seriam remunera<strong>do</strong>s? Apenas<br />
repetir o mo<strong>do</strong> capitalista <strong>de</strong> lidar com estas questões <strong>de</strong> nada serviria (em algumas oficinas<br />
terapêuticas <strong>de</strong> que temos notícia a solução é "quem não trabalha não ganha"). O trabalho<br />
aliena<strong>do</strong>, individualiza<strong>do</strong>, impessoal não tem função <strong>de</strong> ritornello, não po<strong>de</strong> funcionar como<br />
catalisa<strong>do</strong>r para que o paciente reconstrua seu mun<strong>do</strong>.<br />
Voltemos às observações <strong>de</strong> Tuiavi[232], o chefe samoano a que já nos referimos, sobre o<br />
trabalho <strong>do</strong>s europeus. Chamou-lhe à atenção o fato <strong>de</strong> que cada Papalagui tinha uma profissão<br />
da qual tinha orgulho, mas que para Tuiavi resultava numa gran<strong>de</strong> limitação: a <strong>de</strong> fazer uma só<br />
coisa por toda a vida. Em sua al<strong>de</strong>ia, se iam construir uma choupana, to<strong>do</strong>s eram capazes <strong>de</strong><br />
fazer todas as tarefas requeridas. A choupana era construída coletivamente, e ao final to<strong>do</strong>s<br />
festejavam celebran<strong>do</strong> a tarefa cumprida. Este singelo relato nos leva a pensar que estamos<br />
diante <strong>de</strong> uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relação com o trabalho que comporta uma relação <strong>de</strong> imanência<br />
com o <strong>de</strong>sejo, e com o coletivo. Trabalho para um samoano é também prazer e festa. O trabalho<br />
mo<strong>de</strong>rno geralmente exclui estes aspectos, pois mesmo sen<strong>do</strong> altamente coletiviza<strong>do</strong>, tal<br />
coletivização tem como correlato uma forte individualização[233], a competição e a ausência <strong>de</strong><br />
prazer na tarefa. Aliás, o que talvez melhor caracterize as relações <strong>do</strong> Papalagui com o trabalho<br />
seja a idéia <strong>de</strong> que prazer e trabalho estão em campos opostos. O prazer é i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o<br />
<strong>de</strong>scanso, com estar para<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sfrutan<strong>do</strong> passivamente <strong>de</strong> algo - o chama<strong>do</strong> laser. Espera-se<br />
com impaciência o fim <strong>de</strong> semana, que muitas vezes chega sem satisfazer essa <strong>de</strong>manda <strong>de</strong><br />
prazer tão longamente adia<strong>do</strong> por inúmeras obrigações enfa<strong>do</strong>nhas. Não pensamos que a solução<br />
é ir para samoa (mesmo porque nem em samoa as coisas se passam mais assim atualmente).<br />
Mas pensamos ser fundamental estabelecer conexões entre estes aspectos que a chamada vida<br />
mo<strong>de</strong>rna tornou estanques. Temos que incorporar como utopia ativa[234] estes "planos" para<br />
nosso quotidiano, já que todas estas cisões têm leva<strong>do</strong> a subjetivida<strong>de</strong> a impasses <strong>do</strong>lorosos que<br />
uma clínica da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea <strong>de</strong>ve enfrentar.<br />
As questões colocadas a propósito <strong>do</strong> trabalho nas oficinas terapêuticas, portanto, não<br />
dizem respeito apenas à terapêutica da <strong>do</strong>ença mental, mas a questões políticas cruciais para<br />
toda a socieda<strong>de</strong>. A questões que dizem respeito ao <strong>de</strong>sejo enquanto produtor <strong>de</strong> real, produtor<br />
<strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s concretos, diversos <strong>do</strong> panorama <strong>de</strong>sértico que nos cerca. No capitalismo, a produção<br />
<strong>de</strong>sejante está geralmente reduzida à fantasiar. Mas o <strong>de</strong>sejo é por si mesmo revolucionário por
ser produtor não apenas <strong>de</strong> fantasias[235] mas <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s e é por isso que a questão das oficinas<br />
se reveste <strong>de</strong> um caracter imediatamente político. Eis o que traçou o <strong>de</strong>stino da arte não objetiva<br />
na Rússia revolucionária. Progressivamente, com a estalinização[236], talvez não houvesse mais<br />
lugar para a criação <strong>de</strong> novas formas, <strong>de</strong> novos mun<strong>do</strong>s, mas apenas para a adaptação à or<strong>de</strong>m<br />
vigente. E isto talvez tenha acaba<strong>do</strong> por selar o próprio <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> socialismo que se buscava<br />
construir.<br />
Acreditamos que a sobrevivência <strong>de</strong> nosso mun<strong>do</strong> humano passa justamente pelo<br />
estabelecimento <strong>de</strong> outras e melhores relações entre produção <strong>de</strong>sejante e produção social, no<br />
senti<strong>do</strong> da expansão da vida. Eis a principal razão pela qual esta discussão sobre arte, clínica e<br />
<strong>do</strong>ença mental nos pareceu tão importante.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />
Restaria situarmos o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar <strong>de</strong>sta clínica <strong>do</strong> esquecimento ou clínica da superfície.<br />
Vimos que uma ação a partir <strong>do</strong> plano <strong>do</strong>s incorporais ou da superfície guarda com relação ao<br />
plano <strong>do</strong>s corpos uma relação <strong>de</strong> operação e invenção e não <strong>de</strong> interpretação. O analista já foi<br />
compara<strong>do</strong> por Deleuze e Guattari com um engenheiro, alguém que monta conexões para que o<br />
<strong>de</strong>sejo possa operar.<br />
O clínico da superfície é alguém que crê no que seu cliente lhe diz, já que não há nada "por<br />
trás" que a interpretação viesse revelar. Por outro la<strong>do</strong> ele sabe que o reino das palavras é um<br />
reino em constante mudança - e neste senti<strong>do</strong> ele não as toma <strong>de</strong> forma excessivamente séria.<br />
Ele introduz o riso, ele brinca com as palavras. As palavras são apenas um <strong>do</strong>s componentes <strong>do</strong><br />
agenciamento - o analista da superfície está atento aos outros. Ele toma em constante<br />
consi<strong>de</strong>ração o ambiente, o corpo, a vida atual <strong>de</strong> seu paciente em to<strong>do</strong>s os seus aspectos, tais<br />
como seu trabalho, seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se colocar no mun<strong>do</strong>, se é capaz <strong>de</strong> brincar mesmo sen<strong>do</strong> um<br />
adulto, se <strong>de</strong>vires criança operam ou não em sua subjetivida<strong>de</strong>, se sua vida amorosa se <strong>de</strong>ixa<br />
atravessar por <strong>de</strong>vires-mulher - isto tanto para homens quanto para mulheres, já que não há <strong>de</strong>virhomem[237].<br />
Para o clínico da superfície também é importante avaliar o mo<strong>do</strong> como seu cliente se coloca<br />
na vida coletiva - a solidão é um <strong>do</strong>s temas clínicos da maior importância - ela é tomada<br />
preferencialmente não como consequência da <strong>de</strong>pressão, mas como causa. E diante da solidão o<br />
terapeuta não apenas escuta, mas "empresta seu corpo" como ponto <strong>de</strong> partida para que o cliente<br />
faça novos agenciamentos. O terapeuta sabe que se move na transferência. Sabe que nas<br />
entonações afetivas (ver capítulo 1.7.2) que estabelece com seu cliente estão emergin<strong>do</strong><br />
movimentos importantes para a recriação <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s.<br />
O trabalho terapêutico com grupos aponta na direção <strong>do</strong> coletivo - esta dimensão que, como<br />
virtualida<strong>de</strong>, é um <strong>do</strong>s dispositivos previlegia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrução da subjetivida<strong>de</strong> individuada<br />
contemporânea. Os grupos se constituem também em importante campo <strong>de</strong> experimentação no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> refazer territórios existenciais <strong>de</strong>sfeitos.<br />
Há uma superfície clínica a ser trabalhada. Nesta "obra" nos importa o procedimento que<br />
queremos <strong>de</strong>ixar evi<strong>de</strong>nte, à maneira <strong>do</strong>s construtivistas. O mo<strong>do</strong> como nosso cliente opera em<br />
seu quotidiano nos importa muito mais que as memórias <strong>de</strong> seu passa<strong>do</strong> psicológico. Mas como<br />
vimos, não se trata <strong>de</strong> evitar as memórias, quan<strong>do</strong> elas vêm. Não nos é possível, nem é <strong>de</strong>sejável,<br />
evitar que a subjetivida<strong>de</strong> preencha a to<strong>do</strong> momento o novo com o velho. Além disso há usos da<br />
história que po<strong>de</strong>m levar à revolução, como vimos no capítulo 2. 1.
A vida não é unicamente o ponto <strong>de</strong> vista utilitário - estaríamos mais preocupa<strong>do</strong>s com<br />
contactar este plano da lembrança pura, o plano <strong>do</strong> intempestivo, ou o plano das intensida<strong>de</strong>s, isto<br />
se esta intenção não fosse nela mesma um para<strong>do</strong>xo. Nos colocamos muitas vezes na clínica<br />
como um pesca<strong>do</strong>r - jogamos a re<strong>de</strong> aguardamos que o tempo faça o resto.<br />
O analista da superfície preocupa-se com a espessura <strong>do</strong> plano, com seu relevo.<br />
Pru<strong>de</strong>ntemente, tenta traçar uma linha que evite os buracos negros. Sua busca pela alegria e pelo<br />
entusiasmo não se confun<strong>de</strong>, por exemplo, com o mapa traça<strong>do</strong> pelo droga<strong>do</strong>. A droga diz<br />
respeito a uma intensificação das sensações, mas é sobretu<strong>do</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar com o<br />
organismo. O droga<strong>do</strong> - tanto faz se usa drogas lícitas ou ilícitas - cria o hábito <strong>de</strong> apenas po<strong>de</strong>r<br />
intensificar ou suportar sua vida fazen<strong>do</strong> uso <strong>de</strong> uma substância estranha ao seu corpo. Este seu<br />
apego a um único hábito é o que constitui seu maior aprisionamento.<br />
Estas consi<strong>de</strong>rações sobre a vida quotidiana <strong>de</strong> nossos clientes nos levam também, como<br />
dissemos, a problematizar o trabalho. O tempo da burocracia é um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> aprisionamento<br />
- mais difícil ainda <strong>de</strong> escapar, porque <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>se diária <strong>de</strong> burocracia para viver e<br />
isto não só pelo salário. O presente eterno da burocracia não apenas aprisiona, mas produz o<br />
<strong>de</strong>sejo - tal como o Sr. K em O Processo <strong>de</strong> Kafka, passamos <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> inicial em que<br />
<strong>de</strong>sejamos fugir <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s estes "compromissos", a um outro on<strong>de</strong> nada mais queremos <strong>do</strong> que<br />
<strong>de</strong>dicar-lhes mais tempo, e mais tempo.<br />
Neste trabalho com a superfície muitas vezes se trata <strong>de</strong> construir planos, projetos <strong>de</strong> vida.<br />
Para a construção <strong>de</strong>stes projetos nos utilizamos da consciência. Queremos por um la<strong>do</strong> reduzir a<br />
consciência a um mo<strong>de</strong>sto lugar - isto no que ela se apresenta como se<strong>de</strong> da razão. Mas<br />
queremos também intervir sobre a consciência para torna-la permeável, coextensiva ao plano da<br />
produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Não tocamos nunca o plano <strong>do</strong> inconsciente diretamente, já que ele é um plano virtual.<br />
Tocamos, sim, suas atualizações. Trabalhamos principalmente mobilizan<strong>do</strong> os aspectos intensivos<br />
e expressivos da consciência. Nos utilizamos largamente <strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong> cliente - ou como<br />
po<strong>de</strong>ríamos dizer, com Stern, <strong>de</strong> seus afetos <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong>. Aí está inserida a construção <strong>de</strong> planos<br />
a que nos <strong>de</strong>dicamos.<br />
Talvez o pensamento e não o sonho seja nossa estrada real para o inconsciente. O que<br />
<strong>de</strong>nominamos aqui pensamento por certo não se refere apenas a consciência, nem à razão - inclui<br />
também a intuição, ou os "entonações afetivas" <strong>de</strong> Stern, enquanto mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> conhecer o mun<strong>do</strong>.<br />
A consciência que produzimos a partir da intervenção clínica <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>slocar-se <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong><br />
ce<strong>de</strong> da razão e <strong>do</strong> pragmatismo inteligente, sem aban<strong>do</strong>nar nenhum <strong>de</strong>stes seus aspectos. Deve<br />
antes submete-los ao prima<strong>do</strong> da produção <strong>de</strong>sejante.<br />
Controlar o incontrolável - recortar a nosso mo<strong>do</strong> a mudança contínua on<strong>de</strong> a vida se<br />
insere. Contra-efetuar o acontecimento.<br />
Seria <strong>de</strong> to<strong>do</strong> possível uma clínica que operasse sobre o esquecimento? É necessário que<br />
se entenda que não se trata <strong>de</strong> amnésia: "esquecer tu<strong>do</strong>", como num carnaval sem quarta feira <strong>de</strong><br />
cinzas. Este seria um projeto impossível. Acionar a faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> esquecimento é, por outro la<strong>do</strong>, o<br />
que nos possibilitaria superar o ressentimento contra o tempo em seu contínuo <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar. Não se<br />
trata, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> permanecer sempre jovem. Mas em cada ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> contactar o que há <strong>de</strong><br />
jovem em nós - o plano intensivo da vida. De resgatar o passa<strong>do</strong> em sua dimensão <strong>de</strong> caos<br />
produtivo - ou como po<strong>de</strong>ríamos dizer a partir <strong>de</strong> Guattari - no que ele tem <strong>de</strong> caósmico.<br />
To<strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong> está em nós e é a matéria prima da criação. Se há uma clínica <strong>do</strong><br />
esquecimento, ela só po<strong>de</strong> ser compreendida como um tornar-se digno <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que aconteceu<br />
em nossas vidas.<br />
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[1] M., 42 anos, tinha ti<strong>do</strong> uma infância "daquelas que psicanalista gosta", segun<strong>do</strong> sua expressão.<br />
Já tinha si<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong> por mais <strong>de</strong> 10 anos. Voltava a buscar tratamento pois se sentia muito<br />
angustia<strong>do</strong> e com idéias suicidas, como já ocorrera anteriormente. Chamavam minha atenção<br />
alguns aspectos <strong>de</strong> sua história <strong>de</strong> vida: a violência concreta exercida pelos pais a<strong>do</strong>tivos, através<br />
<strong>de</strong> surras e castigos severos na infância, seguida da distância que se estabeleceu quan<strong>do</strong> M. se<br />
tornou adulto. Quan<strong>do</strong> seus pais morreram, ele reagiu com indiferença.<br />
Para M,. fazer análise era remexer neste passa<strong>do</strong>, buscar <strong>de</strong>talhes ou lembranças, preencher<br />
lacunas <strong>de</strong> memória. Mas isto lhe <strong>de</strong>sgostava profundamente (embora achasse que ia me<br />
agradar), pois o fazia sentir-se diminuí<strong>do</strong>, humilha<strong>do</strong>, como se repetisse as experiências a cada<br />
relato. Ao me dar conta da esterelida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas "escavações arqueológicas", <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> fazer<br />
qualquer menção a este material trazi<strong>do</strong> pelo cliente. Ele passava, por assim dizer, "em brancas<br />
núvens". Se por outro la<strong>do</strong>, M. me falava <strong>de</strong> algo que estivesse fazen<strong>do</strong> - arrumação da biblioteca,<br />
cortar o cabelo, o trânsito que enfrentara para vir até a sessão, "era toda ouvi<strong>do</strong>s". Esta estratégia<br />
foi muito frutífera, pois além <strong>de</strong> facilitar outras produções em sua vida concreta (sucesso num<br />
concurso, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser pai) fez com que um outro "fazer história" se estabelecesse. M. retornou<br />
mais tar<strong>de</strong> a suas lembranças <strong>de</strong> infância, trazen<strong>do</strong> aspectos <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s para mim e não<br />
valoriza<strong>do</strong>s por ele. A turma da rua, a militância política iniciada ainda no colégio, etc, entre outros<br />
aspectos, foram evoca<strong>do</strong>s. O "fazer história" a que se <strong>de</strong>dicava M. anteriormente era uma<br />
ativida<strong>de</strong> consciente <strong>de</strong> memorização. Antes, ia em busca <strong>de</strong> memórias.[1] Agora elas vinham até<br />
ele, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> irresistível. RAUTER, C. <strong>Clínica</strong> Transdisciplinar, p.5.
[2] A expressão "ouvi<strong>do</strong> seletivo <strong>do</strong> terapeuta" aparece num trabalho anterior: RAUTER, C. e<br />
JOSEPHSON, S. Mulher e <strong>Psicologia</strong>: Reflexões Psicopolíticas, p. 12.<br />
[3] RAUTER, C. Diagnóstico Psicológico <strong>do</strong> Criminoso: Tecnologia <strong>do</strong> Preconceito. In: Revista <strong>do</strong><br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />
[4] Na legislação penal brasileira existe um tipo <strong>de</strong> "pena <strong>de</strong> tratamento" <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> "medida <strong>de</strong><br />
segurança". Seu término é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> um exame médico-psicológico. Além da <strong>de</strong>mora por<br />
motivos burocráticos e <strong>de</strong> carência <strong>de</strong> pessoal (um con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ficar muitos meses e até anos<br />
aguardan<strong>do</strong> a realização <strong>do</strong> exame) lau<strong>do</strong>s contrários po<strong>de</strong>m alongar in<strong>de</strong>finidamente o tempo <strong>de</strong><br />
reclusão <strong>do</strong> <strong>de</strong>tento, até mesmo por toda a vida. Desenvolvo esta questão em Criminologia e<br />
Po<strong>de</strong>r Político no Brasil. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>. PUC-RJ, 1982.<br />
[5] Interiorização no senti<strong>do</strong> nietzscheano, que se liga à produção <strong>do</strong> ressentimento.<br />
[6] Esta <strong>de</strong>nominação diz respeito exclusivamente ao movimento construtivista russo nas artes<br />
plásticas, não se confundin<strong>do</strong> com outras tendências atuais da psicologia.<br />
[7] A bricolage a que se referem Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo: O bricoleur está apto a<br />
executar um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> tarefas diversificadas porém, ao contrário <strong>do</strong> engenheiro, não<br />
subordina nenhum <strong>de</strong>las à obtenção <strong>de</strong> matérias-primas e <strong>de</strong> utensílios concebi<strong>do</strong>s e procura<strong>do</strong>s<br />
na medida <strong>de</strong> seu projeto: seu universo instrumental é fecha<strong>do</strong>, e a regra <strong>de</strong> seu jogo é sempre<br />
arranjar-se com os "meios-limites", isto é, um conjunto sempre finito <strong>de</strong> utensílios e <strong>de</strong> materiais<br />
bastante heteróclitos, porque a composição <strong>do</strong> conjunto não está em relação com o projeto <strong>do</strong><br />
momento nem com nenhum projeto particular mas é o resulta<strong>do</strong> contingente <strong>de</strong> todas as<br />
oportunida<strong>de</strong>s que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os<br />
resíduos <strong>de</strong> construções e <strong>de</strong>struições anteriores... os elementos são recolhi<strong>do</strong>s ou conserva<strong>do</strong>s<br />
em função <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> que "isso sempre po<strong>de</strong> servir". LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento<br />
Selvagem, p. 35.<br />
[8] DELEUZE, G. O que é a filosofia?, p. 114.<br />
[9] LAURELL, C. Avanzar al Pasa<strong>do</strong>: Politica Social en el Neoliberalismo. Anais <strong>do</strong> VII Congreso<br />
<strong>de</strong> la Asociacion Latinoamericana <strong>de</strong> Medicina Social. Buenos Aires, 1997.<br />
[10] TARDE, G. <strong>de</strong>. As Leis da Imitação, p. 15.<br />
[11] ROUDINESCO, E. História da Psicanálise na França, Vol 2, p. 593.<br />
[12] Quan<strong>do</strong> utilizar obras em inglês e francês, farei a tradução para o português, colocan<strong>do</strong> no<br />
rodapé o original. No caso <strong>de</strong> obras em espanhol colocarei apenas a tradução para o português.<br />
His work (the analyst's) of construcion, or ... of reconstrucion, resembles to a great extent an<br />
archaeologist's excavation of some dwelling-place that has been <strong>de</strong>stroyed and buried or of some<br />
ancient edifice. The two processes are in fact i<strong>de</strong>ntical, except that the analyst works un<strong>de</strong>r better<br />
conditions and has more material at his command to assist him, since what he is <strong>de</strong>aling with is not<br />
something <strong>de</strong>stroyed but something that is still alive. .. just as the archeologist builds up the walls<br />
of the building from the foundations that have remained standing, <strong>de</strong>termines the number and<br />
position of the columns from <strong>de</strong>rpressions in the floor and reconstructs the mural <strong>de</strong>corations and<br />
paintings from the remains found in the débris, so <strong>do</strong>es the analyst proceed when he draws his<br />
inferences from the fragments of memories, from the associations and from the behaviour of the<br />
subject of the analysis. ... The analyst ... works un<strong>de</strong>r more favourable conditons than the<br />
archeologist since he has at his dispposal material which can have no counterpart in excavations,<br />
such as the repetitions of reactions dating from infancy and all that is indicated by the transference<br />
in connection with these repetitions ... our comparison between the two forms can go no further ...<br />
for the main difference between them lies in the fact that for the archaelogist the reconstruction is
the aim and end of his en<strong>de</strong>avours while for analysis the construction is only a preliminary labour ...<br />
Constructions in Analysis, pp. 259-60.<br />
[13] LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. Fantasia Originária, Fantasia das Origens e Origens da<br />
Fantasia, p.21.<br />
[14] REICH, W. La Funcion <strong>de</strong>l Orgasmo, pp. 95-6.<br />
[15] Masotta, O. Presentes Duplos, Pais Duplos, p. 2.<br />
[16] BRUNSWICK, R. M. Suplemento a la "Historia <strong>de</strong> una neurosis infantil" <strong>de</strong> Freud (1928),<br />
p.217. Sergei Petrov, o homem <strong>do</strong>s lobos, recebeu da comunida<strong>de</strong> psicanalítica uma "mesada"que<br />
assegurou por certo tempo sua sobrevivência. Ele pertencia a uma família nobre da Rússia,<br />
arruinada a partir da revolução <strong>de</strong> 1917.<br />
[17] Mesmo confirman<strong>do</strong> a realida<strong>de</strong> sexual <strong>do</strong>s acontecimentos da infância, Freud é leva<strong>do</strong> a<br />
requestionar esta mesma realida<strong>de</strong>. Algumas pessoas disso concluíram que ele havia<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a teoria traumática. Nada mais falso. É verda<strong>de</strong> que a introdução <strong>do</strong> mito <strong>de</strong> Édipo ...<br />
e <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> complexo com o mesmo nome (1910) representa uma ruptura na obra <strong>de</strong> Freud. Mas<br />
isso não significa que ele tenha renuncia<strong>do</strong> à teoria <strong>do</strong> trauma. Na verda<strong>de</strong>, o verda<strong>de</strong>iro problema<br />
é o da ligação <strong>do</strong> fantasma com o trauma, juntos e não um no lugar <strong>do</strong> outro. ... O homem <strong>do</strong>s<br />
lobos é uma etapa <strong>de</strong>cisiva na elaboração <strong>de</strong>sses conceitos. ALLOUCH, J. e PORGE, E. Le<br />
Terme <strong>de</strong> "L'Homme aux loups". Ornicar? Revue du Champ Freudian, no. 22.<br />
[18] In some cases ... we are concerned with experiences which must be regar<strong>de</strong>d as severe<br />
traumas - an atempted rape which reveals to the immature girl at a blow all the brutality of sexual<br />
<strong>de</strong>sire or the involuntary witnessing of sexuall act between parents ... the foundation of neurosis<br />
would ... always be laid in childhood by adults.FREUD, S. The Aetiology of Histeria, pp. 200-212.<br />
[19] Scenes of observing sexual intercourse between parents at a very early age (whether they be<br />
real memories or phantasies) are as a matter of fact by no means rarities in the analysis of neurotic<br />
mortals. Possibly they are no less frequent among those who are not neurotics. Possibly they are<br />
part of the regular store in the - conscious or unconscious - treasury of their memories. FREUD, S.<br />
From the History of an Infantile Neurosis, p. 59.<br />
[20] We discoverd some time ago that neurotics are achored somewhere in the past. Introductory<br />
Lectures on Pscychoanalysis, p. 359.<br />
[21] A ciência egiptológica e naturalista <strong>de</strong> que Freud quis fazer uso ... pelo menos serviu para<br />
Freud construir a fantasia <strong>de</strong> Leonar<strong>do</strong>. Pouco importa o que Leonar<strong>do</strong>. tenha visto, o que importa<br />
é que o analista, sem respeito pela realida<strong>de</strong>, ajusta e reúne esses materiais para construir um<br />
to<strong>do</strong> coerente que reproduz uma fantasia preexistente no inconsciente <strong>do</strong> sujeito. VIDERMAN, S.<br />
A construção <strong>do</strong> Espaço Analítico, p.152.<br />
[22] I<strong>de</strong>m, p. 59.<br />
[23] AULAGNIER, P. O Aprendiz <strong>de</strong> Historia<strong>do</strong>r e o Mestre-Feiticeiro, p.<br />
[24] I<strong>de</strong>m, p. 15.<br />
[25] VEYNE, P. Como se Escreve a História, p.63.<br />
[26] O virtual não é um segun<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ele não existe foram <strong>do</strong>s corpos se bem que não se<br />
parece com sua atualização. Ele não é um conjunto <strong>de</strong> possíveis, mas aquilo em que os corpos<br />
implicam, aquilo <strong>de</strong> que os corpos são atualização. (Le virtuel n'est pas un <strong>de</strong>uxième mon<strong>de</strong>, il<br />
n'existe pas hors <strong>de</strong>s corps bien qu'il ne resemble pas a leur actualité. Il n'est pas l'ensemble <strong>de</strong>s
possible, mais ce que les corps impliquent, ce <strong>do</strong>nt les corps sont l'actualisation.) Zourabichzili, F.<br />
Deleuze, Une Philosophie <strong>de</strong> L'évenément, p. 89.<br />
[27] MONZANI, L. R. Freud: O Movimento <strong>de</strong> um Pensamento, p. 13.<br />
[28] As exigências <strong>de</strong> Eros, a ligação com a vida, são o único entrave a esta tendência <strong>de</strong> retorno,<br />
ligada à pulsão <strong>de</strong> morte, ou a Tanatos. E a clínica se apoiaria em Eros, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> um<br />
empreen<strong>de</strong>mento cujo sucesso <strong>de</strong>ve ser visto com muita cautela, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao carater mais<br />
fundamental das exigências da Pulsão <strong>de</strong> Morte.<br />
[29] A tendência <strong>do</strong>minante da vida mental, e talvez da vida nervosa em geral é o esforço para<br />
reduzir, tornar constante ou remover a tensão interna <strong>de</strong>vida ao estímulo (o princípio <strong>de</strong> nirvana).<br />
<strong>Uma</strong> tendência que encontra expressão no princípio <strong>do</strong> prazer e o reconhecimento <strong>de</strong>ste fato é<br />
uma das nossas mais fortes razões para acreditar na existência <strong>de</strong> instintos <strong>de</strong> morte. (The<br />
<strong>do</strong>minating ten<strong>de</strong>ncy of mental life, and perhaps os nervous life in general is the effort to reduce, to<br />
keeep constant or to remove internal tension due to stimuli (the nirvana principle) a ten<strong>de</strong>ncy which<br />
finds expression in the pleasure principle and our recognition of that fact is one of our strongest<br />
reasons for believing in the existence of <strong>de</strong>ath instincts). FREUD, S. Beyond the Pleasure<br />
Principle, p.49.<br />
[30] These reproductions, which emerge with such unwished-for exactitu<strong>de</strong>, always have as their<br />
subject some portion of infantile sexual life.- of the Oedipus complex ... and its <strong>de</strong>rivatives and they<br />
are invariably acted out in the sphere of the transference, of the patient's relation to the physician.<br />
I<strong>de</strong>m,, p. 12.<br />
[31] MONZANI, L.A. Op. Cit, pp. 269-299.<br />
[32]STRACHEY, A. Editor's note - Project for a Scientific Psychology. Standard Edition, vol. I<br />
[33] FREUD, S. Inbitions, Syntomps and Anxiety, p. 177.<br />
[34] LAPLANCHE, J. Vida e Morte em Psicanálise, p. 14.<br />
[35] ORLANDI, L. Pulsão e Campo <strong>do</strong> Problemático. In: MOURA, A. H.(org.) As Pulsões. p. 190.<br />
Orlandi mostra que Deleuze insiste na <strong>de</strong>nominação instinto <strong>de</strong> morte (e não pulsão <strong>de</strong> morte)<br />
para marcar que a pulsão <strong>de</strong> morte diz respeito a um plano pré-individual. p. 190.<br />
[36] I<strong>de</strong>m pp. 190-1.<br />
[37] Esta perspectiva po<strong>de</strong>ria ser a <strong>de</strong> um trabalho com a linguagem ou com um regime <strong>de</strong> signos<br />
que não implicasse num afastamento <strong>do</strong> plano <strong>de</strong>vir, <strong>do</strong> tempo pensa<strong>do</strong> como transformação. No<br />
entanto, com mais frequência, o a-posteriori levou a um afastamento <strong>de</strong>stes aspectos, como<br />
vemos na perspectiva estrutural.<br />
[38] KATZ, C Freud e as Psicoses, p. 166. Este ponto <strong>de</strong> vista é <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> livro,<br />
afirman<strong>do</strong>-se que a psicose não po<strong>de</strong> ser explicada através <strong>de</strong> um aparelho psíquico equilibra<strong>do</strong> e<br />
representacional, regi<strong>do</strong> pelo a-posteriori.<br />
[39] DOSSE, F. História <strong>do</strong> estruturalismo. v. 1, p.69.<br />
[40] O referente, ou o plano das coisas, será também excluí<strong>do</strong> em proveito <strong>do</strong> plano das palavras<br />
em seu funcionamento autônomo.<br />
[41] MARTINET, A. A Linguística Sincrônica, p. 33.<br />
[42] LACAN, J. Função e Campo da fala e da Linguagem em Psicanálise,. p.116.<br />
[43] LACAN, J. O Seminário: Livro 2, p. 213.
[44] LACAN, J. O Seminário: Livro 20, p. 234.<br />
[45] Coisa que é absolutamente evi<strong>de</strong>nte no menor encaminhamento disso que eu <strong>de</strong>testo pelas<br />
melhores razões, isto é, a História. A História é precisamente feita para nos dar a idéia <strong>de</strong> que ela<br />
tem um senti<strong>do</strong> qualquer. Ao contrário, a primeira coisa que temos que fazer é partir <strong>do</strong> seguinte:<br />
que ali estamos diante <strong>de</strong> um dizer que é o dizer <strong>de</strong> um outro que nos conta suas besteiras, seus<br />
embaraços, seus impedimentos, suas emoções, e que é nisto que se trata <strong>de</strong> ler o que? Nada,<br />
senão os efeitos <strong>de</strong>sses dizeres. Esses efeitos, bem vemos no que é que isto agita, comove,<br />
atormenta os seres falantes. Certo que, para que isto chegue a alguma coisa ... tem mesmo que<br />
servir ... para que eles se acomo<strong>de</strong>m ... para que mancos mancan<strong>do</strong> ... eles cheguem ... a dar<br />
uma sombra <strong>de</strong> vidinha a esse sentimento dito <strong>de</strong> amor. I<strong>de</strong>m, p.62-63. (o grifo é meu)<br />
[46] Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que o simbólico é para Lacan um plano pré individual, porém po<strong>de</strong>mos<br />
consi<strong>de</strong>ra-lo como um campo <strong>de</strong> possíveis e não como um plano virtual no senti<strong>do</strong> bergsoniano,<br />
enquanto plano <strong>de</strong> engendramento da diferença: A função simbólica constitui um universo no<br />
interior <strong>do</strong> qual tu<strong>do</strong> o que é humano tem que or<strong>de</strong>nar-se. ... ela tem lineamentos em outos lugares<br />
que não na or<strong>de</strong>m humana mas trata-se apenas <strong>de</strong> lineamentos. ... A or<strong>de</strong>m humana se<br />
caracteriza pelo seguinte - a função simbólica intervém em to<strong>do</strong>s os momentos e em to<strong>do</strong>s os<br />
nívieis <strong>de</strong> sua existência ... a função simbólica constitui um universos no iterior <strong>do</strong> qual tu<strong>do</strong> o que<br />
é humano tem <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar-se. Lacan, J. O Seminário: Livro 2, p. 44.<br />
[47] Numa partida <strong>de</strong> xadrez, qualquer posição dada tem como característica singular estar<br />
libertada <strong>de</strong> seus antece<strong>de</strong>ntes ... é perfeitamente inútil recordar o que ocorreu <strong>de</strong>z segun<strong>do</strong>s<br />
antes ... Em Linguística, como no jogo <strong>de</strong> xadrez, existem regras que sobrevivem a to<strong>do</strong>s os<br />
acontecimentos. Trata-se, porém, <strong>de</strong> princípios gerais que existem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong>s fatos<br />
concretos ... assim como o jogo <strong>de</strong> xadrez está to<strong>do</strong> inteiro na combinação das diferentes peças,<br />
assim também a língua tem o caráter <strong>de</strong> um sistema basea<strong>do</strong> completamente na oposição <strong>de</strong><br />
suas unida<strong>de</strong>s concretas. SAUSSURE, F. Curso <strong>de</strong> Linguística Geral, pp. 105-125.<br />
[48] O diretor <strong>de</strong> uma prisão reúne três prisioneiros e promete liberda<strong>de</strong> àquele que <strong>de</strong>scobrir a cor<br />
<strong>do</strong> disco que lhe pregou às costas, disco escolhi<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntre três brancos e <strong>do</strong>is pretos. Os<br />
prisioneiros não têm meios <strong>de</strong> comunicar uns aos outros os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> suas inspeções, nem <strong>de</strong><br />
alcançar com a vista o círculo prega<strong>do</strong> às próprias costas. Depois <strong>de</strong> se terem observa<strong>do</strong> por um<br />
certo tempo, os três prisioneiros se dirigem juntos para a saída e cada um, separadamente,<br />
conclui que é branco, o que é realmente o caso, dizen<strong>do</strong> a mesma coisa: "Da<strong>do</strong> que meus<br />
companheiros eram brancos, pensei que, se eu fosse preto, cada um <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>ria inferir disso o<br />
seguinte: "Se eu também fosse preto, o outro, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> reconhecer imediatamente ser branco,<br />
teria saí<strong>do</strong> imediatamente, portanto não sou preto". E ambos teriam saí<strong>do</strong> juntos, convenci<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
serem brancos. Senão faziam nada, é porque eu era um branco como eles. Diante disso,<br />
encaminhei-me para a porta, para dar a conhecer minha conclusão. PORGE, E.. Psicanálise e<br />
Tempo: O tempo lógico <strong>de</strong> Lacan,.p.27.<br />
[49] I<strong>de</strong>m, p. 86.<br />
[50] I<strong>de</strong>m, p. 127. O grifo é meu.<br />
[51] LACAN, op. cit. p.50. Os grifos são meus.<br />
[52] O real é para além <strong>do</strong> sonho que temos que procurá-lo - no que o sonho revestiu, envelopou<br />
... escon<strong>de</strong>u, por trás da falta da representacão. Lá está o real que comanda, mais <strong>do</strong> que<br />
qualquer outra coisa, nossas ativida<strong>de</strong>s. I<strong>de</strong>m p.61.
[53] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo, p.110.<br />
[54] LACAN, J. O Seminário: Livro 20, p. 239.<br />
[55] RIBEIRO, F. J. F. A Comunicação Extra-Código, p.163.<br />
[56] Diz Deleuze: O limite não esté fora da linguagem, mas ele é o fora.(La limite n'est pas en<br />
<strong>de</strong>hors du langage, elle en est le <strong>de</strong>hors...) DELEUZE, G. Critique et Clinique, p.9. Este fora não<br />
está portanto referi<strong>do</strong> ao campo <strong>do</strong> discurso - Em Foucault Deleuze fala <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> não<br />
correspondência entre as palavras e coisas - o fora ... é necessáriamente outra coisa que não um<br />
enuncia<strong>do</strong>. DELEUZE, G. Foucault, p. 31.<br />
[57] O virtual quan<strong>do</strong> se atualiza, em quanto está se atualizan<strong>do</strong>, é inseparável <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong><br />
sua atualização, porque a atualização só se leva a cabo por diferenciação ... Porque Bergson<br />
recusa a noção <strong>de</strong> possível em benefício da <strong>de</strong> atual? ... (porque com a noção <strong>de</strong> possível se<br />
supõe (um) ... um real já da<strong>do</strong>, pré-forma<strong>do</strong> ... que passará à existência seguin<strong>do</strong> uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
limitações sucessivas ... a partir daí não se compreen<strong>de</strong> nada nem <strong>do</strong> mecanismo da diferença,<br />
nem <strong>do</strong> mecanismo da criação. DELUZE, G. El Bergsonismo, pp. 41-103.<br />
[58] FREUD, S. The Unconscious. In:Papers on Metapsychology. p. 178.<br />
[59] SCHNEIDER, M. Afeto e Linguagem nos Primeiros Escritos <strong>de</strong> Freud.<br />
[60] Estou trabalhan<strong>do</strong> sobre a presunção <strong>de</strong> que nosso aparelho psíquico se originou por um<br />
processo <strong>de</strong> estratificação: ... o material existente e a forma <strong>do</strong>s restos mnêmicos experimentaria<br />
<strong>de</strong> tanto em tanto tempo um reor<strong>de</strong>namento <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> como novas relações, <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> uma<br />
transcrição. Assim, o que é essencialmente novo em minha teoria é a afirmação <strong>de</strong> que a memória<br />
não se encontra em uma versão única, mas em várias ... transcritas em distintos tipos <strong>de</strong> signos ...<br />
sucessivas transcrições que representam a obra psíquica <strong>de</strong> sucessivas épocas da vida. FREUD,<br />
S. Carta 52, <strong>de</strong> 6/12/96, p. 740.<br />
[61] Ver DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença. e KATZ, op.cit.<br />
[62] DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio, Graal, 1988, cap. II. colocar a página<br />
[63] Brinque<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> por Freud para exemplificar sua teoria da memória, que distinguia uma<br />
superfície <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> estímulos e uma superfície <strong>de</strong> registro. A distinção é importante por<br />
possibilitar pensar um aparelho psíquico que possa receber novos estímulos sem se contaminar<br />
com os antigos. FREUD, El block Maravilloso.<br />
[64] DERRIDA, J. Freud e a Cena da Escritura. In: A Escritura e a Diferença.<br />
[65] DELEUZE G e GUATTARI, F. Mil Mesetas, p. 118.<br />
[66] Devir tem aqui o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mudança, transformação.<br />
[67] PLATÃO. Crátilo, Parte II.<br />
[68] Nesta discussão sobre o Crátilo baseamo-nos em anotações das aulas <strong>do</strong> filósofo Claudio<br />
Ulpiano, em curso <strong>de</strong> filosofia no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1992.<br />
[69] LEROI-GOURHAN, A. O Gesto e a Palavra. 1-Técnica e Linguagem,Capítulo VI.
[70] AUSTIN, J. L. Palabras y Acciones - Como Hacer Cosas con Palabras.<br />
[71] DELEUZE, G. Pourparlers, p.35.<br />
[72] Optamos pela palavra utilizada pelo autor - self - à solução proposta pela tradução castellana,<br />
"si mismo". De qualquer mo<strong>do</strong>, preten<strong>de</strong>mos estar aqui falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong> nosso<br />
ponto <strong>de</strong> vista implica na idéia <strong>de</strong> processo - a subjetivida<strong>de</strong> não é uma forma ou estrutura estável,<br />
fechada nela mesma mas está sempre se fazen<strong>do</strong> no tempo e nos agenciamentos que<br />
estabelece.<br />
[73] STERN, D. N. The interpersonal world of the infant.<br />
[74] Esta idéia <strong>de</strong> que algo se per<strong>de</strong> com a aquisição da linguagem no plano <strong>do</strong>s afetos está<br />
presente também na noção <strong>de</strong> Winnicott <strong>de</strong> falso self.<br />
[75] STERN, op. cit. pp. 174-6.<br />
[76] Unusual efforts such as psychoanalysis of poetry or fiction can sometimes claim some of this<br />
territory for language, but not in the usual linguistic sense..The very nature of language as a<br />
specifier of sensory modality ... in contrast to amodal nonspecification and as a specifier of the<br />
generalized episo<strong>de</strong> instead of the specific instance, assures that there will be points of slippage ...<br />
words (in same cases) isolate the experience from the amodal flux in which it was originally<br />
experienced. I<strong>de</strong>m, pp.176-178.<br />
[77] The fact that language is powerful in <strong>de</strong>fining self to the self and that parents play a large role<br />
in this <strong>de</strong>finiton <strong>do</strong>es not mean that an infant can readily be "bent out of shape" by those forces and<br />
become totally the creation of others' wishes and plans . The socialization process, for good or ill,<br />
has limits imposed by the biology of the infant. I<strong>de</strong>m, p. 229.<br />
[78] FREUD, S. Construcciones en Psicoanalisis, p. 578.<br />
[79] O <strong>de</strong>vir á própria vida em sua imprevisibilida<strong>de</strong> e inocência. Devir é acaso e anti-memória.<br />
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Devenir-intenso, <strong>de</strong>venir-animal, <strong>de</strong>venir-imperceptible. In: Mil<br />
Mesetas, p. 293.<br />
[80] O <strong>de</strong>vir é o próprio intempestivo ou a-histórico. Só fazemos história ao nos colocarmos contra<br />
ela.<br />
[81] Direcion Politica <strong>de</strong> Las Far, Historia <strong>de</strong> Cuba. pp. 335-348<br />
[82] Para Strachey o Projeto contem o núcleo das teorias posteriores <strong>de</strong> Freud, sen<strong>do</strong> seu<br />
interesse não apenas histórico. STRACHEY, J. Editor's Note on the Project for a Scientific<br />
Psychology, In: Standard Edition vol 1, p. 290.<br />
[83] ASSOUN, P.L. Freud & Nietzsche: Semelhanças e Dessemelhanças, pp 94-116.<br />
[84] O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aparelho psíquico <strong>do</strong> Projeto, regi<strong>do</strong> principalmente pela "realida<strong>de</strong>", longe <strong>de</strong><br />
estar envelheci<strong>do</strong>, apresenta-se revigora<strong>do</strong> no contexto atual da psicanálise, a partir da concepção
<strong>de</strong> real elaborada por Lacan. Certos <strong>de</strong>senvolvimentos atuais da psicanálise que valorizam uma<br />
reinterpretação <strong>do</strong> traumático seguem a mesma direção.<br />
[85] Fazemos aqui referência às noções <strong>de</strong> árvore e rizoma que aparecem em Mil Platôs. <strong>Uma</strong><br />
organização arborecente implica em hierarquia, em funções e subfunções, em finalida<strong>de</strong> e<br />
progresso. O rizoma configura uma multiplicida<strong>de</strong> enquanto organização não hierarquizada, não<br />
estável, em processo <strong>de</strong> criação.<br />
[86] DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia, p. 32. e DELEUZE, G. Espinoza e os Signos, p. 25.<br />
[87] DELEUZE, G. Espinoza e os Signos, p. 95.<br />
[88] DELEUZE, G. Apresentação <strong>de</strong> Sacher-Masoch, p. 40.<br />
[89] O corpo sem órgãos é o campo <strong>de</strong> imanência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, o plano <strong>de</strong> consistência próprio <strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>sejo (justo on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sejo se <strong>de</strong>fine como parocesso <strong>de</strong> produção, sem referência a nenhuma<br />
instância externa ...) Mil Mesetas, p.159. A noção <strong>de</strong> corpo sem órgãos permite pensar o corpo<br />
como plano <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>. Mesmo a noção <strong>de</strong> zona erógena implica numa hierarquia, numa<br />
organização - assim como o corpo biológico, o corpo <strong>do</strong>s dispositivos higiênicos e disciplinares. O<br />
corpo sem orgãos é o plano que, sob o organismo, produz rupturas em relação a ele, mostran<strong>do</strong><br />
seu caráter instável.<br />
[90] Referências que corroboram esta afirmação são abundantes nas Conferências Introdutórias,<br />
como por exemplo, na conferência XXII: É importante para a compreensão das neuroses não<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a relação entre fixação e regressão ... regressões <strong>de</strong> <strong>do</strong>is tipos: um retorno aos<br />
primeiros objetos investi<strong>do</strong>s pela libi<strong>do</strong> .. e o retorno à organização sexual <strong>do</strong>s primeiros estágios.<br />
It is important for your un<strong>de</strong>rstanding of the neuroses that you should not leave this relation<br />
between fixation and regression out of sight ... there are regressions of two sorts: a return to the<br />
objects first cathected by the libi<strong>do</strong>, which , as we know, are of an incestuous nature, and a return<br />
of the sexual organization as a whole to earlier stages. FREUD, S. Introductory Lectures, XXII, p.<br />
34.<br />
[91]O CsO oscila constantemente entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera ...<br />
ao liberá-lo, se <strong>de</strong>struirmos os estratos sem prudência os teremos aniquila<strong>do</strong>, levan<strong>do</strong>-os a um<br />
buraco negro ... como fazer um CsO que não seja o <strong>do</strong> canceroso, <strong>do</strong> fascista em nós, ou o CsO<br />
vazio <strong>de</strong> um vicia<strong>do</strong> em drogas, <strong>de</strong> um paranóico ou <strong>de</strong> um hipocondríaco? Como Hacerse Un<br />
Cuerpo Sin Órganos? In: Mil Platôs, p.168.<br />
[92] REICH, W. La Funcion <strong>de</strong>l Orgasmo. pp.103-10.<br />
[93] Dois conceitos equivoca<strong>do</strong>s <strong>do</strong>minavam a psicanálise daquele tempo. Dizia-se que um<br />
homem era potente quan<strong>do</strong> podia realizar o ato sexual e muito potente quan<strong>do</strong> era capaz <strong>de</strong><br />
realiza-lo várias vezes por noite ... Roheim, um psicanalista, chegou a <strong>de</strong>clarar que exageran<strong>do</strong><br />
um pouco caberia dizer que a mulher obtém real gratificação unicamente se <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> ato sexual<br />
sofre uma inflamação (<strong>do</strong> genital). I<strong>de</strong>m p. 85.<br />
[94] Esta associação, na socieda<strong>de</strong> contemporânea, já não é tão forte a partir da difusão <strong>do</strong>s<br />
méto<strong>do</strong>s anti-concepcionais, isto sem contar os méto<strong>do</strong>s atuais <strong>de</strong> fecundação in vitro que não<br />
passam pelo ato sexual.<br />
[95] DELEUZE, G. Espinoza e Os Signos p. 27<br />
[96] FREUD, S. El Psicoanalisis Silvestre, p. 407.<br />
[97] FREUD, S. Cinco Lições <strong>de</strong> Psicanálise, p. 50.<br />
[98] CANETTI, E. Massa e Po<strong>de</strong>r, p. 337.
[99] Não é o caso <strong>de</strong> se perguntar como o acontecimento infantil só age com retar<strong>do</strong> ... ele é este<br />
retar<strong>do</strong> ... (no qual) é a forma pura <strong>do</strong> tempo que faz com que coexistam o antes e o <strong>de</strong>pois ... a<br />
cena infantil ... (é) antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, ... a condição empírica da sucessão no tempo ... dá lugar, no<br />
fantasma , à coexistência <strong>de</strong> duas séries: a <strong>do</strong> adulto que seremos com os adultos que fomos ...<br />
se todas as séries coexistem (no inconsciente) não é mais possível consi<strong>de</strong>rar uma como<br />
originária e a outra como <strong>de</strong>rivada , uma como mo<strong>de</strong>lo e a outra como cópia ... DELEUZE, G.<br />
Diferença e Repetição, cap. II.<br />
[100] O plano <strong>do</strong> estrato é um plano diferencia<strong>do</strong> em relação ao campo da produção <strong>de</strong>sejante ...<br />
É o plano da organização, da significação, <strong>do</strong> sujeito, das hierarquizações. Não basta opor<br />
abstratamente os estratos e o CsO ... o CsO oscila constantemente entre as superfícies que o<br />
estratificam e o plano que o libera. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Como hacerse un cuerpo sin<br />
óganos? In: Mil Mesetas, pp. 165-7.<br />
[101] Denevir-Animal, Devenir-Imperceptible. In: Mil Mesetas, pp. 239-316.<br />
[102] Utilizamos esta <strong>de</strong>nominação para nos referirmos ao sujeito enquanto mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação<br />
produzi<strong>do</strong> a a partir <strong>do</strong>s dispositivos disciplinares. A relação entre os saberes psicológicos e<br />
psicanalíticos e este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação foi <strong>de</strong>scrita por Foucault em Vigiar e Punir.<br />
[103] Se consi<strong>de</strong>rarmos em <strong>de</strong>talhe a teoria final <strong>de</strong> Reich, confessamos que seu caráter ao<br />
mesmo tempo esquizofrênico e paranóico não apresente nenhum inconveniente para nós; ao<br />
contrário. Toda aproximação da sexualida<strong>de</strong> com fenômenos cósmicos <strong>do</strong> tipo "tempesta<strong>de</strong><br />
elétrica", "bruma azulada e céu azul", " azul <strong>do</strong> orgono" "fogo <strong>de</strong> santelmo","manchas solares",<br />
"flui<strong>do</strong>s e fluxos", "matérias e partículas", nos parece, afinal, mais a<strong>de</strong>quada que a redução da<br />
sexualida<strong>de</strong> ao lamentável pequeno segre<strong>do</strong> familialista. DELEUZE G. E GUATTARI, F.O Anti-<br />
Édipo, p.370.<br />
[104] Ví<strong>de</strong>o Entrevista com Guattari. In: Moura, A.H. (org.) As Pulsões. p. 99.<br />
[105] Ver GUATTARI, F. As Três Ecologias. p. 9.<br />
[106] Deleuze e Guattari criaram os conceitos <strong>de</strong> territorialização, <strong>de</strong>sterritorialização e<br />
reterritorialização para falar <strong>do</strong> percurso <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo em diferentes formações sociais. A<br />
característica das socieda<strong>de</strong>s capitalísticas é operar a <strong>de</strong>sterritorialização - processo pelo qual o<br />
<strong>de</strong>sejo se retira das codificações às quais está a<strong>de</strong>ri<strong>do</strong>; ao mesmo tempo, outros dispositivos<br />
sociais buscam "reterritorializar" a produção <strong>de</strong>sejante em codificações serializadas. A noção <strong>de</strong><br />
território correspon<strong>de</strong> a uma potência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo pensa<strong>do</strong> como produção - ele é imediatamente<br />
produtor <strong>de</strong> territórios. Mas em to<strong>do</strong> território operam constantemente processos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sterritorialização que po<strong>de</strong>rão resultar na <strong>de</strong>sestabilização <strong>do</strong> atual território e na criação <strong>de</strong><br />
outros. O capitalismo como sistema social favorece principalmente movimentos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sterritorialização negativos, que não geram a producão <strong>de</strong> novos territórios.<br />
[107]Em O Papalagui o chefe samoano Tuiavi comenta sobre esta questão: Ele diz que o homem<br />
branco cobre to<strong>do</strong> o corpo, principalmente as partes sexuais e por causa disso só pensa em sexo:<br />
Noite e dia, pensam nisso, falam constantemente nas formas <strong>do</strong> corpo das mulheres e moças,<br />
como se fosse gran<strong>de</strong> peca<strong>do</strong> aquilo que é natural e bonito, só <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ocorrer na maior<br />
escuridão. Se eles <strong>de</strong>ixassem ver a carne à vonta<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>riam pensar em outras coisas; e os<br />
olhos não revirariam nem a boca diria palavras impudicas quan<strong>do</strong> encontrassem uma moça.<br />
SAUER, E. Org. O Papalagui, p.19.<br />
[108] MILLER, H. O Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sexo, p. 25.<br />
[109] I<strong>de</strong>m, p. 75.<br />
[110] I<strong>de</strong>m, p. 25.<br />
[111] DELEUZE, G. Proust e os Signos, p.59.
[112] Henry, M. A Morte <strong>do</strong>s Deuses. Vida e Afetivida<strong>de</strong> em Nietzsche, pp. 22-23.<br />
[113] Ver MACHADO, R. Zaratustra, Tragédia Nietzschiana, p. 133.<br />
[114] Deleuze se refere ao eterno retorno como um conceito cômico. Ver Diferença e Repetição, p.<br />
164.<br />
[115] Ver DELEUZE, G. Proust e os Signos, cap. VI.<br />
[116] Personagens <strong>de</strong> Em Busca <strong>do</strong> Tempo Perdi<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Proust.<br />
[117] DELEUZE, G. Proust e os Signos, p. 75.<br />
[118] O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> efetuação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo como produção é o agenciamento. O <strong>de</strong>sejo é o próprio<br />
agenciamento - rompe-se com esta noção com a separação entre o <strong>de</strong>sejo e seu objeto e também<br />
com a noção <strong>de</strong> falta como constitutiva <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Ao <strong>de</strong>sejo não falta nada pois ele não se separa<br />
<strong>do</strong>s agenciamentos nos quais se efetua.<br />
[119] PROUST, M. À Sombra das Moças em Flor, p. 321.<br />
[120] I<strong>de</strong>m, p. 425.<br />
[121] Ibid., p. 359..<br />
[122] Ibid , p. 425<br />
[123] Ibid., p. 369.<br />
[124] I<strong>de</strong>m. 342<br />
[125] Henry, M. op. cit., p. 52.<br />
I[126] DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Capítulo IV.<br />
[127] NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra, p. 167.<br />
[128] I<strong>de</strong>m, p. 157.<br />
[129] Loc. Cit.<br />
[130] O Canto da Embriaguez, I<strong>de</strong>m, p.370.<br />
[131]I Da Circunspecção Humana, Ibid., p. 172.<br />
[132] Das Antigas e Novas Tábuas, I<strong>de</strong>m, p. 235.<br />
[133] O Convalescente, Ibid. p. 259.<br />
[134] Loc. Cit.<br />
[135] Não po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, já que o campo da produção <strong>de</strong>sejante é campo <strong>de</strong><br />
univocida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser.<br />
[136] CLASTRES, P. Socieda<strong>de</strong> contra o Esta<strong>do</strong>, p. 143.<br />
[137] DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia, cap. 4.<br />
[138] DELEUZE G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo,pp. 314-334.
[139] Estenda (a um Europeu) ... um pedaço re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, brilhante <strong>de</strong> metal, ou um papel gran<strong>de</strong>,<br />
pesa<strong>do</strong>: ... seus olhos brilham ... o dinheiro é o objeto <strong>do</strong> seu amor, sua divinda<strong>de</strong> ... se estás sem<br />
dinheiro... nem servirá <strong>de</strong> nada a humilda<strong>de</strong> <strong>do</strong> teu sorriso, a simpatia <strong>do</strong> teu olhar... ele abrirá a<br />
goela e berrará: Miserável! Vagabun<strong>do</strong>! Ladrão! ... meta<strong>de</strong> ... tem <strong>de</strong> trabalhar muito e se sujan<strong>do</strong><br />
enquanto a outra meta<strong>de</strong> pouco ou coisa alguma faz. Aquela meta<strong>de</strong> não tem tempo para <strong>de</strong>itarse<br />
ao sol; a outra tem <strong>de</strong>mais. Diz o Papalagui: To<strong>do</strong>s os homens não po<strong>de</strong>m ter a mesma<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dinheiro, nem to<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>itar-se ao sol ao mesmo tempo! Com esta <strong>do</strong>utrina<br />
ele assume o direito <strong>de</strong> ser cruel, por amor ao dinheiro ... É comum um Papalagui matar outro por<br />
causa <strong>do</strong> dinheiro. Olhos (como os <strong>do</strong>s samoanos - que irradiam luz, saú<strong>de</strong>, vida) só vi nas<br />
crianças <strong>do</strong> Papalagui, quan<strong>do</strong> ainda não sabem falar, porque até então nada sabem <strong>do</strong> dinheiro<br />
... não sejamos como o Papalagui, que po<strong>de</strong> sentir-se feliz e contente mesmo se o irmão junto<br />
<strong>de</strong>le está triste e infeliz. O Papalagui, pp. 31-37.<br />
[140] CLASTRES, P. Socieda<strong>de</strong> Contra o Esta<strong>do</strong>, p.12.<br />
[141] DELEUZE, G. Foucault.<br />
[142] Este é o ponto <strong>de</strong> vista que aparece em autores que atualmente trabalham os grupos<br />
terapêuticos numa perspectiva que se apoia no pensamento <strong>de</strong> Deleuze e Guattari. Antonio<br />
Lancetti, numa discussão sobre o que é a grupalida<strong>de</strong>, remete a "grupalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s grupos", (para<br />
além das representações sobre grupos), à noção <strong>de</strong> massa <strong>de</strong> Elias Cannetti: o que <strong>de</strong>nominamos<br />
elemento massa é algo aquém da formação i<strong>de</strong>ntificatória, prediscursivo e anterior à signficação e<br />
se efetua, nos grupos, mediante imitações e invenções. Trabalhan<strong>do</strong> com a noção <strong>de</strong> imitação <strong>de</strong><br />
Gabriel <strong>de</strong> Tar<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ra que nos grupos ... as imitações que operam como atratores<br />
mutacionais são os componentes fundamentais da grupalida<strong>de</strong> entendida como produção <strong>de</strong><br />
subjetivida<strong>de</strong>. Ver LANCETTI, A. <strong>Clínica</strong> Grupal com Psicóticos:A Grupalida<strong>de</strong> que os<br />
especialistas não enten<strong>de</strong>m In: Saú<strong>de</strong> Loucura 4, p. 155. Já Regina Benevi<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>ra que o<br />
grupo terapêutico é um dispostivo capaz <strong>de</strong> produzir <strong>de</strong>slocamentos <strong>do</strong> lugar intimista e privatista<br />
em que fomos coloca<strong>do</strong>s como indivíduos. O contacto com a multiplicida<strong>de</strong> (<strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s coletivos<br />
<strong>de</strong> semiotização) po<strong>de</strong> então fazer emergir um território existencial não mais da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong><br />
individual (seja aqui <strong>de</strong> um indivíduo, ou <strong>de</strong> um grupo), mas da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> coletivo. Ver BARROS,<br />
R.D.B. In: Saú<strong>de</strong> e Loucura 4, p. 152.<br />
[143] Emprego aqui o conceito <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação elabora<strong>do</strong> por Foucault, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o<br />
sujeito como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> subjetivação <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>: a subjetivida<strong>de</strong> individuada. Tal mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
subjetivação é produzi<strong>do</strong> pelas tecnologias psi, entre outras máquinas sociais, daí utilizarmos<br />
também como sinônimo o termo "subjetivida<strong>de</strong> psi" tal como aparece neste trabalho anterior:<br />
RAUTER. C. E JOSEPHSON, S. Mulher e <strong>Psicologia</strong> : Reflexões Psicopolíticas.<br />
[144] DONZELOT, J. A Polícia das Famílias, p. 152.<br />
[145] DELEUZE, G. e PARNET, C. Dialogues, p. 92.<br />
[146] Num agenciamento, há como duas faces, duas cabeças ... esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> coisas, esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
corpos: os corpos se penetram, se misturam se transmitem afetos, mas também enuncia<strong>do</strong>s,<br />
regimes <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s, signos se organizam <strong>de</strong> nova forma, novas formulações aparecem ... os<br />
enuncia<strong>do</strong>s não são i<strong>de</strong>ologias, são peças no agenciamento, não menos que os esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
coisas. De maneira indissolúvel um agenciamento é ao mesmo tempo agenciamento <strong>de</strong> efetuação<br />
e agenciamento coletivo <strong>de</strong> enunciação. Na enunciação não há sujeito mas sempre<br />
agenciamentos coletivos e on<strong>de</strong> o enuncia<strong>do</strong> fala ele não encontrará objetos, mas esta<strong>do</strong>s<br />
maquínicos... po<strong>de</strong>mos dividir os agenciamentos - a partir <strong>do</strong>s movimentos que os animam e que<br />
os fixam, que fixam e implicam o <strong>de</strong>sejo com seus esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> coisa e seus enuncia<strong>do</strong>s... não há<br />
agenciamento sem linha <strong>de</strong> fuga, que leva a novas criações ou à morte ... os <strong>do</strong>is movimentos<br />
coexistem num agenciamento (territorialização e <strong>de</strong>sterritorialização), mas não se compensam,<br />
não são simétricos ... I<strong>de</strong>m p. 91.
[147] DELEUZE, GILLES. Lógica <strong>do</strong> Senti<strong>do</strong>, p.7.<br />
[148] FOUCAULT, M. História da Sexualida<strong>de</strong>, vol I, p. 26.<br />
[149] A consi<strong>de</strong>ração pelas relações <strong>de</strong> trabalho que o cliente estabelece é uma direção muito<br />
importante <strong>de</strong>sta clínica. As instituições on<strong>de</strong> trabalhamos constituem frequentemente<br />
agenciamentos <strong>de</strong> anti-produção <strong>de</strong>sejante - ali, quotidianamente o <strong>de</strong>sejo é separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ele<br />
po<strong>de</strong> por dispositivos eficazes que têm esta finalida<strong>de</strong>.<br />
[150] GAY, P. Freud, <strong>Uma</strong> Vida Pra o Nosso Tempo, p. 175.<br />
[151] ROUDINESCO, E. História da Psicanálise na França, pp. 25-26. Roudinesco se refere aos<br />
gran<strong>de</strong>s loucos <strong>do</strong> freudismo, aqueles que, como Reich, Ferenczi ou Rank, não conseguem se<br />
submeter com êxito à etiqueta <strong>do</strong>s notáveis. Eles são trata<strong>do</strong>s como "<strong>de</strong>fensores <strong>do</strong> ocultismo",<br />
frente à insituição oficial, que se vê como promotora da psicanálise científica e verda<strong>de</strong>ira.<br />
[152] A terapia <strong>do</strong> Grito Primal, a que John Lennon se submeteu nos anos 70 é her<strong>de</strong>ira da<br />
influência <strong>de</strong> Rank nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
[153] Beyond Psychology, p. 38.<br />
[154] By will ... I mean rather an autonomous organizing force in the individual... which constitues<br />
creative expression of the total personality and distinguishes one individual from another. RANK,<br />
O. op. cit. p.52.<br />
[155] Therapy is based on the individual's will ... causal explanation only acts backwards, we can<br />
explain how something has hapenned but we cannot build up life, that is, effect therapy on this<br />
basis. loc. cit.<br />
[156] Freud's causal interpretation of the analytic situation as repetition (chefly recollection of the<br />
past) - instead of an emphasis on it as a new experience in the present - amounts to a <strong>de</strong>nial of all<br />
personal autonomy in favor of the strictest possible <strong>de</strong>terminism , that is ... to a negation of life<br />
itself. ... Such (an) attitu<strong>de</strong> may be justified in the realm of pure science ... but is certainly conntrary<br />
to all thereapeutic en<strong>de</strong>avors, which ought to aim towards life itself. I<strong>de</strong>m p. 148.<br />
[157] RANK, Otto. Truth and Reality, p. 50.<br />
[158] Último bastião contra a <strong>de</strong>cadência da estrutura familiar burguesa, a psicologia freudiana<br />
nasce <strong>de</strong> um espírito inibi<strong>do</strong> e da negação inibi<strong>do</strong>ra da vida e enquanto tal não conduz à vida.(Last<br />
bulwark against the <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nce of the bourgeois family structure ... freud's pscychology is born of<br />
the spirit of inhibited and inhibiting negation of life and as such <strong>do</strong>es not lead to life) RANK, O.<br />
Beyond Psychology, pp. 127-278.<br />
[159] Bergson, H. L'Évolution Créatrice, capítulo IV, p. 272.<br />
[160] DELEUZE, G. A Imagem-Tempo, p. 63.<br />
[161] BERGSON, H. Op. Cit. p. 507.<br />
[162] BERGSON, H. Matéria e Memória, capítulo III, pp. 109-146.<br />
[163] Para Bergson o inconsciente é essencialmente inativo. No entanto, ele age como tendência<br />
em nosso presente.<br />
[164] Aqui nos referimos a linguagem representacional, à língua standard ou ao regime <strong>de</strong> signos<br />
<strong>do</strong> significante.
[165] Falar em entuição nada tem a ver com o misticismo e o esoterismo que rondam a clínica<br />
atualmente.<br />
[166] BERGSON, H. L'Évolution Créatrice, p. 303.<br />
[167] Freud também postula a conservação das estruturas psíquicas, embora gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> freudiano permaneça no nível da memória psicológica.<br />
[168] Esta "figura <strong>do</strong> tempo" correspon<strong>de</strong> às contrações mais ou menos frouxas <strong>de</strong>ste passa<strong>do</strong><br />
virtual. DELEUZE, G. Op. Cit. p.151.<br />
[169]DELEUZE, G. A Imagem - Tempo. p.118.<br />
[170] DELEUZE, G. A Imagem - Movimento, p. 80.<br />
[171] DELEUZE, G. A Imagem - Tempo, p. 115.<br />
[172] UEXKÜLL, J.V. Dos animais e <strong>do</strong>s homens. disgressões pelos seus próprios mun<strong>do</strong>s, p.<br />
139.<br />
[173] GUATTARI, F. Caosmose, p.79.<br />
[174] Queremos nos referir a algumas "formas" ou cenas privilegiadas tais como: sedução,<br />
castração, édipo.<br />
[175] DELEUZE G. E GUATTARI, F. O Anti-Édipo. p. 173.<br />
[176] RANK, O. Art and Artist. p. xvii.<br />
[177] LAWRENCE, D. H. Fantasia of the Unconscious, p. 17.<br />
[178] DELEUZE e GUATTARI, op. cit. pp. 368-369.<br />
[179] E o valor <strong>do</strong>s sonhos para nos fornecer conhecimentos sobre o futuro? ... Seria mais<br />
verda<strong>de</strong>iro dizer que eles nos dão conhecimento sobre o passa<strong>do</strong>. Pois os sonhos <strong>de</strong>rivam <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong>, em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. Apesar disso a crença antiga <strong>de</strong> que os sonhos predizem o futuro<br />
não está totalmente <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Apresentan<strong>do</strong>-nos nossos <strong>de</strong>sejos como satisfeitos,<br />
os sonhos nos conduzem para o futuro. Mas este futuro, que o sonha<strong>do</strong>r apresenta como<br />
presente, está molda<strong>do</strong> por um in<strong>de</strong>strutível <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> perfeita semelhança com o passa<strong>do</strong>.<br />
And the value of dreams for giving us knowledge of the future? ... It would be truer to say instead<br />
that they give us knowledge of the past. For dreams are <strong>de</strong>rived form the past in every sense.<br />
Nevertheless the ancient belief that dreams fortell the future is not wholly <strong>de</strong>void of truth. By<br />
picturing our wishes as fulfilled, dreams are after all leading us to the future. But this future, which<br />
the dreamer pictures as the present, has been moul<strong>de</strong>d by his in<strong>de</strong>structible wish into a perfect<br />
likeness of the past. The Interpretation of Dreams, p. 621.<br />
[180] Winnicott, D. W. O Brincar & a Realida<strong>de</strong>, p.72<br />
[181] Conceito <strong>de</strong> Winnicott que diz respeito à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenciar-se <strong>do</strong> outro - próximo à<br />
concepção <strong>de</strong> Stern, que vê no estar com o outro uma aquisição frente a uma tendência primária à<br />
individuação diferencia<strong>do</strong>ra.<br />
[182] Interessante notar que não se trata Do Outro, pequeno ou gran<strong>de</strong>. Winniccott fala aqui<br />
explicitamente <strong>de</strong> grupo. I<strong>de</strong>m, p. 63
[183] Ibid., p. 101.<br />
[184] GUATTARI, F. Op. Cit, p. 114.<br />
[185] WINNICOTT. Op. Cit. p. 99.<br />
[186] Soon the proud will stirs again and strives to win the battle alone without the help of<br />
authoritative morality. What is important for anything creative is to free himself from the traditional<br />
moral co<strong>de</strong> and build his own ethical i<strong>de</strong>als from himself ... assuring criative actitivity of any kind<br />
and possibility of happiness. RANK, O. Truth and Reality, p. 55.<br />
[187] GUATTARI, F. O Divã <strong>do</strong> Pobre. In: Psicanálise e Cinema, pp. 112-113.<br />
[188] SCHORSKE, C. Viena Fin-<strong>de</strong>-Siècle - Política e Cultura, pp. 201-335.<br />
[189] O artista cria blocos <strong>de</strong> perceptos e afetos mas a única lei da criação é <strong>de</strong> que o composto<br />
<strong>de</strong>ve ficar <strong>de</strong> pé sozinho ... manter-se <strong>de</strong> pé sozinho não é ter um alto e um baixo, não é ser ereto<br />
( pois mesmo as casas são bêbadas e tortas), é somente o ato pelo qual um composto <strong>de</strong><br />
sensações se conserva em si mesmo. DELEUZE, G. e GUATTARI,F. O que é a Filosofia, p. 214.<br />
[190] PROUST, M. O Caminho <strong>de</strong> Guermantes, p. 494.<br />
[191] PROUST, M. A Prisioneira, p. 166.<br />
[192] Loc. Cit.<br />
[193] I<strong>de</strong>m, p.179.<br />
[194] ROBBE-GRILLET, A. Por um Novo Romance, p. 72.<br />
[195] Há uma passagem especialmente cômica e crítica sobre os médicos: (Bergotte) consultou os<br />
médicos que, lisonjea<strong>do</strong>s por terem si<strong>do</strong> chama<strong>do</strong>s por ele, viram em suas virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
trabalha<strong>do</strong>r (há vinte nos que ele já não fazia nada), no cansaço excessivo, a causa <strong>de</strong> seu mal<br />
estar. Aconselharam -no que não lesse contos <strong>de</strong> terror (ele não lia nada), a <strong>de</strong>sfrutar mais sol ... a<br />
se alimentar mais (o que o fez emagrecer e aumentou sobretu<strong>do</strong> os pesa<strong>de</strong>los). A Prisioneira, p.<br />
164.<br />
[196] GUATTARI, G. Os Ritornellos <strong>do</strong> Tempo Perdi<strong>do</strong>. In: O Inconsciente Maquínico, p. 225.<br />
[197] I<strong>de</strong>m, p. 135<br />
[198] Loc. Cit.<br />
[199] I<strong>de</strong>m, p. 231.<br />
[200] A recente visita <strong>de</strong> Michael Jackson ao Brasil, a proibição inicial <strong>de</strong> que ele subisse o morro<br />
"para que não fosse mostrada na mídia internacional a miséria" leva-nos a perguntar: que perigo<br />
po<strong>de</strong> haver na subida <strong>de</strong> Michael Jackson ao morro carioca? Creio que as autorida<strong>de</strong>s<br />
perceberam algo - não se po<strong>de</strong> negar a competência política <strong>de</strong> nossas "elites" para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem e<br />
manterem este apartheid social em que vivemos. Michael Jackson, esta figura andrógina, o preto<br />
que pô<strong>de</strong> inclusive virar branco, mas que continuou preto na dança (é uma composição diferente<br />
<strong>do</strong> preto <strong>de</strong> alma branca) ... uma figura disruptiva, que po<strong>de</strong> comprometer o frágil equilíbrio racial<br />
numa cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o miserável observa, <strong>de</strong> cima, a vida <strong>do</strong>s mais abasta<strong>do</strong>s. O pago<strong>de</strong>, por outro<br />
la<strong>do</strong>, embora seja mais "nacional", em seu canto monótono sobre o amor, geralmente associa<strong>do</strong> à<br />
<strong>de</strong>silusão, à falta, à traição, po<strong>de</strong> estar sen<strong>do</strong> um instrumento muito mais débil neste senti<strong>do</strong>. Por<br />
outro la<strong>do</strong>, as escolas <strong>de</strong> samba, em que pese toda sua rica história, correm o risco <strong>de</strong> serem<br />
totalmente colonizadas, invadidas pela monotonia <strong>de</strong> temas como Disneyworld, transforman<strong>do</strong>-se,
é o que assistimos, em gran<strong>de</strong>s shows <strong>de</strong> inspiração global, com os mesmos artistas que vemos<br />
na TV <strong>de</strong>sfilan<strong>do</strong> como se fossem heróis, em carros alegóricos <strong>de</strong> gosto duvi<strong>do</strong>so. Elas estão mais<br />
ameaçadas por estes elementos que pela batida funk que começa a ser incorporada à <strong>do</strong> samba.<br />
[201] I<strong>de</strong>m, p. 232-233.<br />
[202] Esse trabalho <strong>do</strong> artista <strong>de</strong> procurar vislumbrar sob a matéria, sob a experiência, sob as<br />
palavras, algo diferente é um trabalho em senti<strong>do</strong> inverso àquele feito pelo amor próprio, a paixão,<br />
a inteligência e o hábito, quan<strong>do</strong> amontoam sobre nossas verda<strong>de</strong>iras impressões, mas para<br />
oculta-las <strong>de</strong> to<strong>do</strong>, as nomenclaturas, os objetivos práticos que falsamente chamamos vida. O<br />
Tempo Reencontra<strong>do</strong>, p. 105.<br />
[203] DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 203.<br />
[204] Aqui existe uma diferença entre Proust e Bergson: enquanto para Proust o acesso a este<br />
plano das essências é possível por estes <strong>do</strong>is caminhos - pela memória involuntária e pela arte - a<br />
memória imemorial em Bergson é essencialmente inativa; apenas po<strong>de</strong> agir "como um to<strong>do</strong>" como<br />
plano virtual. Nossa perspectiva se inclina mais pela solução proustiana: a da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
acesso a este plano das intensida<strong>de</strong>s através da arte e da clínica.<br />
[205] PROUST, M. Op. cit. p. 208.<br />
[206] GUATTARI, F. As Três Ecologias, p.21.<br />
[207]A filosofia é um construtivismo, e o cosntrutivismo tem <strong>do</strong>is aspectos complementares, que<br />
diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a<br />
filosofia? p. 51.<br />
[208] TARABUKIN, N. El Ultimo Cuadro, p. 155.<br />
[209] Gassner, H. Construcción 1920 o el arte <strong>de</strong> organizar la vida, p. 11.<br />
[210]Um <strong>de</strong>vir revolucionário é mais importante que o futuro ou passa<strong>do</strong> da revolução. DELEUZE,<br />
G. Dialogue, p. 65.<br />
[211] MARX, K. El Capital. Vol. 1, p. 390. No capitalismo a máquina transforma parte da classe<br />
operária em população supérfula crian<strong>do</strong> permanentemente um exército <strong>de</strong> reserva. O valor da<br />
força <strong>de</strong> trabalho cai e a classe operária torna-se ao mesmo tempo mais homogênea, uma vez<br />
que o operário hábil e o inábil tornam-se semelhantes. A máquina é uma arma contra as revoltas<br />
<strong>de</strong> classe.<br />
[212] MALEVITCH, K. Des Nouveaux Systèmes Dans L'Art. In: Malevitch Écrits. p. 308.<br />
[213] Gassner, H. Construcción 1920 o el arte <strong>de</strong> organizar la vida, p. 16.<br />
[214] I<strong>de</strong>m, p. 23.<br />
[215] Malévitch Écrits, p. 143<br />
[216] O quadra<strong>do</strong> negro é uma das obras suprematistas mais famosas.
[217] É possível ver no construtivismo um plano virtual: o coletivo. As duas tendências -<br />
suprematismo e construtivismo não divergem em suas concepções tão radicalmente. A trajetória<br />
<strong>de</strong>stes movimentos repete a <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerda e seu divisionismo crônico.<br />
[218] TARABUKIN, N. Op. Cit. p. 167.<br />
[219] GROPIUS, V. Bauhaus: Novarquitetura, p. 32.<br />
[220] DELEUZE, G. Logique <strong>de</strong> La Sensation, p.29.<br />
[221] Na obra <strong>de</strong> Lígia Clark Baba Antropofágica é possível fazer uma experimentação com uma<br />
"memória <strong>do</strong> corpo intensivo": O que a baba ativou foi a memória <strong>do</strong> arcaico, mais um <strong>de</strong> seus<br />
ritornelos: o tal bicho - o não humano no homem e seus afetos - é para<strong>do</strong>xalmente sempre<br />
contemporâneo. Memória <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>s emaranha<strong>do</strong>s-baba, campo <strong>de</strong> experimentação <strong>de</strong> uma<br />
cronogênese: engendramento <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> tempo espacializan<strong>do</strong>-se em novos mun<strong>do</strong>s. Memória<br />
prospectiva, acessada por reativação (<strong>do</strong> bicho) e não por regressão (ao passa<strong>do</strong> humano e seus<br />
conteu<strong>do</strong>s recalca<strong>do</strong>s). Rolnik, S. Lygia Clark e a produção <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> arte. In: Imagens,<br />
p.3.<br />
[222] DELEUZE, G. Op. Cit. p.38.<br />
[223] Para uma discussão sobre a questão da forma na estética <strong>de</strong>leuziana, ver BUYDENS, M.<br />
Sahara: L'Esthétique <strong>de</strong> Gilles Deleuze.<br />
[224].DELEUZE, G. Ce que Les Infants Disent. In: Critique et Clinique, pp. 81-7.<br />
[225] Há uma reforma psiquiátrica em curso no Brasil, que se apóia principalmente no Sistema<br />
Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS) aprova<strong>do</strong> pela constituição brasileira <strong>de</strong> 1988. Este sistema municipaliza a<br />
gestão da saú<strong>de</strong> pública - caben<strong>do</strong> ao governo fe<strong>de</strong>ral repassar os recursos correspon<strong>de</strong>ntes aos<br />
municípios. Como isto não vem acontecen<strong>do</strong> a contento, os municípios viram aumentarem seus<br />
encargos <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços sem o aumento <strong>do</strong>s recursos. A reforma psiquiátrica é<br />
sustentada por profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental, muitos <strong>de</strong>les militantes <strong>de</strong> longa data da "Luta Anti-<br />
Manicomial". Ao menos num aspecto esta reforma parece agradar aos tecnocratas neo-liberais <strong>do</strong><br />
governo: ela ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sarticular os gran<strong>de</strong>s hospitais psiquiátricos e <strong>de</strong>sobrigar o esta<strong>do</strong> da tutela<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente mental. O êxito da reforma italiana se apoiou na criação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento <strong>de</strong><br />
tipo ambulatorial. Nosso sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública fali<strong>do</strong> tem dificulda<strong>de</strong>s em realizar esta parte da<br />
reforma. No entanto, e apesar disso, pensamos que há <strong>de</strong>vires revolucionários que atravessam a<br />
atual reforma psiquiátrica brasileira.<br />
[226] Algo semelhante se passa com as prisões: a reforma da prisão é tão antiga quanto a própria<br />
prisão, diz Foucault em Vigiar e Punir.<br />
[227] Ver a esse respeito SARACENO, B. Reabilitação Psicossocial. <strong>Uma</strong> Prática à Espera <strong>de</strong><br />
Teoria. In: Reabilitação Psicossocial no Brasil. pp. 150-154.<br />
[228]LAPIDUS Y OSTROVITIANOV. Manual <strong>de</strong> Economia Política, p. 51.<br />
[229] LORENZ, K. A Agressão, p. 245.<br />
[230] SARACENO, B. Loc. Cit.<br />
[231] Paciente <strong>do</strong> Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio <strong>de</strong> Janeiro conheci<strong>do</strong> por sua obra no campo<br />
das artes plásticas.<br />
[232] SAUER, E. Org. O Papalagui, p.89
[233] Foucault nos mostrou em Vigiar e Punir que paralelamente à coletivização da produção que<br />
o capitalismo produz, ele também foi capaz <strong>de</strong> produzir estratégias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r altamente<br />
individualizantes, que ele <strong>de</strong>nominou po<strong>de</strong>r disciplinar.<br />
[234] A expressão "utopia ativa" tem si<strong>do</strong> no contexto <strong>do</strong> movimento Anti-Manicomial(Ver<br />
LANCETTI, A. Loucura Metódica. In: Saú<strong>de</strong> e Loucura 2, p. 143). Os que lutam por uma socieda<strong>de</strong><br />
sem manicômios são questiona<strong>do</strong>s <strong>de</strong> diversas formas: que fazer com a população atual <strong>do</strong>s<br />
manicômios? como falar em extinção <strong>de</strong> manicômios se não há re<strong>de</strong> ambulatorial satisfatória?<br />
Não será esta uma questão apenas ligada à redução <strong>de</strong> gastos públicos? Apesar <strong>de</strong> todas estas<br />
objeções frequentemente levantadas pelos opositores <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s manicômios, esta luta é mantida<br />
como utopia ativa. Nada justificaria a manutenção <strong>do</strong> encarceramento <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente mental. Ele não<br />
po<strong>de</strong> ser vista como solução para nenhum problema, já que a questão é em primeiro lugar <strong>de</strong><br />
ór<strong>de</strong>m ética. Além disso, como aponta Peter Pal Pelbart, <strong>de</strong> nada adiantará simplesmente <strong>de</strong>struir<br />
os muros <strong>do</strong> hospício se preten<strong>de</strong>rmos manter longe <strong>de</strong> nós tu<strong>do</strong> o que é da ór<strong>de</strong>m da <strong>de</strong>srazão.<br />
A luta anti-manicomial, portanto, não se separa também <strong>de</strong> uma luta pelo direito à <strong>de</strong>srazão.<br />
PELBART, p. A Nau <strong>do</strong> Tempo Rei, p. 108.<br />
[235] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo. pp. 44-47.<br />
[236] E mesmo antes <strong>de</strong> Stalin. Vejamos esta referência jocosa a esta questão, <strong>de</strong> Deleluze e<br />
Guattari, numa comparação com a psicanálise: A psicanálise é como a revolução russa, nunca se<br />
sabe quan<strong>do</strong> começa a ir mal. É preciso sempre recuar mais um pouco. Com os americanos?<br />
Com a primeira Internacional? ... com os primeiros rompimentos que marcaram renúncias <strong>de</strong><br />
Freud tanto quanto traições daqueles que rompem com ele? Com o próprio Freud, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
"<strong>de</strong>scoberta" <strong>de</strong> Édipo? I<strong>de</strong>m, p. 76.<br />
[237] A forma homem correspon<strong>de</strong> ao instituí<strong>do</strong>, ao territorializa<strong>do</strong>. Por isso não se po<strong>de</strong> falar<br />
num <strong>de</strong>vir-homem, mas em <strong>de</strong>vir-mulher; enquanto <strong>de</strong>vir minoritário ou linha <strong>de</strong> fuga, que po<strong>de</strong><br />
não estar presente nas mulheres. (anotações <strong>do</strong> Seminário <strong>de</strong> Suely Rolnik no segun<strong>do</strong> semestre<br />
<strong>de</strong> 1995, PUC-SP)