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PIERRE ASSOULINE – Henri Cartier-Bresson, o olho do século

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Quan<strong>do</strong> o herói se torna amigo<br />

Na amizade como no amor, e em todas as coisas que ajudam a viver, nunca<br />

esquecemos uma primeira vez. Pelo menos não gostaríamos de esquecer.<br />

A primeira vez que encontrei <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> foi em 1994. Nesse dia, o<br />

jornalista, e não o escritor, bateu à porta de seu ateliê, perto da Place des Victoires, em<br />

Paris, onde ele regularmente se isolava para desenhar. Ele finalmente aceitara as<br />

exigências de uma entrevista, mas com uma condição: que ela não fosse uma.<br />

Conhecen<strong>do</strong> seu gosto por para<strong>do</strong>xos, aceitei a proposta ante a perspectiva de uma<br />

conversa. Se ele tivesse apenas me convida<strong>do</strong> para tomar um chá eu teria acorri<strong>do</strong> da<br />

mesma maneira, tanto minha admiração por ele era profunda, meu fascínio antigo e<br />

minha curiosidade sem limites.<br />

Passamos mais de cinco horas conversan<strong>do</strong>, trilhan<strong>do</strong> o curso sinuoso de sua<br />

memória e seguin<strong>do</strong> apenas o coração, em digressões surpreendentes. Nada foi menos<br />

histórico que aquela viagem no tempo. Saí de lá exausto e invadi<strong>do</strong> por um<br />

sentimento caótico diante da imagem da época desordenada que ele vivera dia após<br />

dia como um presente imediato.<br />

Convocamos o <strong>século</strong> em todas as suas manifestações, os homens que o<br />

haviam molda<strong>do</strong> e os lugares que o simbolizavam. Mas menos os acontecimentos <strong>do</strong><br />

que os instantes, como se a prova importasse menos que o vestígio. Nada de datas,<br />

acima de tu<strong>do</strong> nada de datas! Apenas impressões e silhuetas evocadas com fraca<br />

intensidade e, quan<strong>do</strong> eu menos esperava, relatos de inacreditável exatidão.<br />

O dia terminava. A luz da rua se insinuava cada vez mais fraca pelo ateliê,<br />

sem que no entanto ele se preocupasse em acender uma lâmpada. Não era importante.<br />

Enquanto ele preparava o chá, eu inspecionava o local. O mobiliário estava reduzi<strong>do</strong> a<br />

mais absoluta simplicidade, uma biblioteca transbordan<strong>do</strong> de livros de arte e catálogos<br />

de exposições com encadernações gastas de tão manuseadas. Nas paredes, em<br />

molduras de vidro um pouco deterioradas, desenhos de seu pai, guaches de seu tio e<br />

duas fotografias que não eram suas: uma tirada pelo húngaro Martin Munkacsi por<br />

volta de 1929, três meninos negros de costas e à contraluz corren<strong>do</strong> em direção às<br />

águas <strong>do</strong> lago Tanganica; a outra, pertencente ao Museu da Revolução no México, <strong>do</strong><br />

mexicano Agustin Casasola, mostran<strong>do</strong> o falsário Fortino Samano em 1913, de costas<br />

para um muro e diante <strong>do</strong> pelotão de fuzilamento, com as mãos nos bolsos e um<br />

cigarro nos lábios, esboçan<strong>do</strong> um sorriso de provocação e numa pose insolente, para<br />

melhor enfrentar a morte. A primeira expressa a alegria de viver no que ela tem de<br />

mais intenso e espontâneo; a segunda, a liberdade absoluta apreendida no momento<br />

fatídico em que ultrapassa o ponto de não-retorno.<br />

Nenhuma outra imagem, muito menos sua.<br />

Quan<strong>do</strong> voltamos a sentar, a conversa foi retomada de maneira mais intensa<br />

ainda, mas sob a condição de que eu desse algo em troca ao que ele me dera. No caso,<br />

respostas a suas perguntas. Enquanto eu levava a xícara aos lábios, ele deixou o<br />

silêncio se instalar e me <strong>olho</strong>u fixamente por um momento. Depois, esboçou um<br />

sorriso:<br />

<strong>–</strong> Há pouco, você me perguntou se eu continuava a tirar fotos.<br />

<strong>–</strong> De fato...<br />

<strong>–</strong> Pois bem, acabei de tirar uma de você, mas sem máquina, o que dá no<br />

mesmo... A armação de seus óculos exatamente paralela à parte superior <strong>do</strong> quadro<br />

atrás de você, chamava a atenção... eu não podia deixar passar essa admirável<br />

simetria... pronto!... De que falávamos mesmo? Ah, sim, Gandhi... Você conheceu<br />

Lord Mountbatten?


Reembarcamos para a Índia da descolonização, que nos levou naturalmente à<br />

China libertada <strong>do</strong> Kuomintang pelos comunistas, portanto rapidamente à União<br />

Soviética, isto é, a Louis Aragon e a seu jornal nos tempos da Frente Popular,<br />

conseqüentemente aos filmes de Jean Renoir, e é claro à influência da pintura e...<br />

No fim <strong>do</strong> dia, eu estava convenci<strong>do</strong> de ter recolhi<strong>do</strong> palavras das mais<br />

preciosas. Eu estava enfeitiça<strong>do</strong>. Mas não era um sentimento inédito, pois essa<br />

profissão concede às vezes o privilégio de lidar com homens extraordinários, grandes<br />

testemunhas que atravessaram seus <strong>século</strong>s de ponta a ponta sem jamais trair sua<br />

visão de mun<strong>do</strong>.<br />

Se tivéssemos para<strong>do</strong> ali, aquela tarde não teria ti<strong>do</strong> outra conseqüência que<br />

seu reflexo na matéria para o jornal. Acontece que, intriga<strong>do</strong> com algo enigmático<br />

bem na hora de partir, me senti frustra<strong>do</strong> com sua discrição ao evocar a guerra.<br />

Arriscan<strong>do</strong> desrespeitar seu pu<strong>do</strong>r, perguntei novamente sobre seus anos de cativeiro<br />

na Alemanha, a promiscuidade, as fugas fracassadas... Ele ficou pensativo por<br />

bastante tempo, com o olhar perdi<strong>do</strong> no vazio, depois voltou a falar. Quanto mais<br />

avançava em seu relato, mais eu me convencia que as confidências menos falsas são<br />

mais facilmente feitas a desconheci<strong>do</strong>s. Não me contara ele que um dia, ao pegar um<br />

táxi em Paris, na conversa com o motorista revelara segre<strong>do</strong>s que nunca confiara a<br />

ninguém, pois tinha a certeza de nunca mais revê-lo?<br />

Ao lembrar de seus camaradas denuncia<strong>do</strong>s, tortura<strong>do</strong>s ou fuzila<strong>do</strong>s, ficou<br />

com um nó na garganta. Ao murmurar seus nomes, a tristeza passou para o olhar.<br />

Então virou a cabeça, incapaz de reter as lágrimas.<br />

Depois disso, ao me despedir de <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong>, eu sabia que um dia<br />

lhe dedicaria não mais um artigo mas um livro. Não apenas ao maior fotógrafo vivo,<br />

ao desenhista renasci<strong>do</strong>, ao repórter de longa data, ao aventureiro tranqüilo, ao<br />

viajante de outra era, ao contemporâneo essencial, ao fugitivo constante, ao geômetra<br />

obsessivo, ao budista agita<strong>do</strong>, ao anarquista puritano, ao surrealista não-arrependi<strong>do</strong>,<br />

ao símbolo da imagem no <strong>século</strong>, ao <strong>olho</strong> que escuta, mas principalmente ao homem<br />

por trás desses to<strong>do</strong>s, aquele que os reúne, um francês em seu tempo. Pois como disse<br />

o poeta, é <strong>do</strong> homem que se trata.<br />

Depois desse primeiro encontro, os anos se passaram. Nos vimos, falamos,<br />

ouvimos e observamos bastante. Quantas vezes? Não importa. Isso não quer dizer<br />

nada. Quan<strong>do</strong> uma conversa dura<strong>do</strong>ura se instala no tempo, ela se permite longas<br />

ausências antes de ser retomada como se tivesse si<strong>do</strong> interrompida na véspera, ela se<br />

reata a qualquer momento em ligações telefônicas, cartas e faxes, e se insere<br />

naturalmente no passar <strong>do</strong> tempo. Ela pode só pode acabar com a morte de um de seus<br />

interlocutores.<br />

Durante muito tempo <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> não quis nem ouvir falar em<br />

biografia. Mencionar a palavra já lhe causava horror. Ele inclusive garante nunca ler<br />

biografias, conforme atesta<strong>do</strong> por sua biblioteca. Dedicar-lhe um livro <strong>do</strong> gênero<br />

equivaleria a tirar uma foto sua. Ou pior ainda: a ofuscá-lo com a luz de um flash.<br />

Diante de uma objetiva necessariamente inquisi<strong>do</strong>ra, quem nunca o viu explodir de<br />

raiva, brandir sua faca Opinel e ameaçar o intrometi<strong>do</strong>? Ele nunca suportou que lhe<br />

fizessem o que ele faz com os outros.<br />

Assim como via as retrospectivas de sua obra fotográfica como honras<br />

fúnebres um pouco prematuras, ele concebe a perspectiva de uma biografia como a<br />

colocação de uma laje tumular. Viver o momento presente, somente isso é váli<strong>do</strong>. A<br />

vida é imediata e lancinante. A notícia pertence ao passa<strong>do</strong>. Esse é o ensinamento de<br />

sua Leica.


Esse não é um pretexto para reservar para si a opção de escrever uma<br />

autobiografia. <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> também nunca quis escrever suas memórias, apesar de<br />

não ter nada a esconder... De qualquer forma, o essencial sempre é melhor dito<br />

indiretamente.<br />

Em to<strong>do</strong> caso, ele se escuda em bons autores para justificar com livros sua<br />

hostilidade ao nascimento desse livro aqui. Proust, é claro, que queria apartar o artista<br />

de sua obra, sen<strong>do</strong> esta o produto de um eu diferente <strong>do</strong> eu percebi<strong>do</strong> em sociedade,<br />

evoca<strong>do</strong> por cartas, traí<strong>do</strong> por hábitos ou revela<strong>do</strong> por confidências. Léautaud<br />

também, que convidava a escrever falsas biografias, já que de qualquer maneira o<br />

gênero, a seus <strong>olho</strong>s, pertencia à ficção. E o velho Degas, praguejan<strong>do</strong> contra os<br />

literatos, acusa<strong>do</strong>s de industriais da ane<strong>do</strong>ta: mmmmm... não, não... o que está oculto<br />

não diz respeito a ninguém... as obras precisam de um certo mistério... Cioran, por<br />

fim, mas somente até certo ponto. Pois por mais terrível que pareça, a idéia de um dia<br />

ter um biógrafo nunca faria <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> renunciar a ter uma vida.<br />

Sua postura me pareceu das mais respeitáveis. Mas quanto mais penetrei suas<br />

contradições, mais mergulhei num mun<strong>do</strong> onde a busca pela harmonia<br />

constantemente rivalizava com a tirania <strong>do</strong> caos. Sua paz interior dependia <strong>do</strong><br />

resulta<strong>do</strong> dessa luta. Não me senti no direito de perturbar o epílogo de sua história<br />

pessoal até o dia em que tive consciência de que a vida de <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> era<br />

uma escola da desobediência.<br />

Então tomei o exemplo <strong>do</strong> mestre e desobedeci a ele.<br />

É uma sensação muito estranha escrever sobre um contemporâneo. A<br />

vantagem pode se transformar em desvantagem. Entre esses <strong>do</strong>is extremos, é preciso<br />

manter o fascínio intacto sem que ele jamais deixe de ser crítico, e encontrar a boa<br />

distância entre a curiosidade e a indiscrição. Essa é a condição sine qua non para<br />

conseguir um retrato definitivo que não seja uma biografia apressada. Ao estudar<br />

Flaubert, Sartre dizia que entramos num morto da mesma maneira que num moinho.<br />

Mas como entrar num vivo?<br />

Por um la<strong>do</strong>, gozamos da secreta volúpia de poder solicitar sua memória a<br />

qualquer momento. Por outro, temos a estranha impressão de que ele espia por cima<br />

de nosso ombro enquanto escrevemos. Stefan Zweig teria sonha<strong>do</strong> em poder telefonar<br />

a Maria Antonieta em plena noite para verificar se ela ficara tão “encantada” quanto<br />

dissera por ser invocada no banquete ofereci<strong>do</strong> ao regimento de Flandres em 1º de<br />

outubro de 1789. Como teria reagi<strong>do</strong> André Maurois se Benjamin Disraeli tivesse<br />

meticulosamente critica<strong>do</strong> cada uma das páginas <strong>do</strong> manuscrito dedica<strong>do</strong> a ele à<br />

medida que avançava? Quanto a mim, algo inédito aconteceu: meu herói se tornou<br />

meu amigo.<br />

É curioso bater nas costas de um mito, insólito contradizer uma lenda,<br />

estranho interpelar uma instituição, arrisca<strong>do</strong> criticar um clássico, audacioso corrigir<br />

um monumento... No Japão, diriam que ele é um tesouro nacional vivo. Com um<br />

levantar de ombros, um gesto da mão, <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> liquida esse falso<br />

problema. Quanto a essas palavras, ele as tem por palavrões. Até mesmo o suave<br />

nome de “artista” o exaspera, tanto vê nele uma noção burguesa herdada <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />

anterior.<br />

Que seja. Mas como retraçar o destino excepcional de alguém que chamamos<br />

por tu apesar <strong>do</strong> meio <strong>século</strong> de diferença de idade, uma pessoa que nos confia sua<br />

intimidade depois de fazermos o mesmo? Dizemos para nós mesmos que de qualquer<br />

forma ele tem muitos amigos, que nunca os trata formalmente e que facilmente é<br />

generoso. E se isso não basta, pensamos no que Joseph Kessel escreveu no prefácio


<strong>do</strong> livro que dedicou a seu amigo Mermoz: “Terei o direito de me utilizar de minhas<br />

descobertas, de tuas confissões? Onde passa a linha divisória entre a exigência <strong>do</strong><br />

verdadeiro e a indiscrição inútil? Penso que não se deve esconder nada <strong>do</strong>s<br />

movimentos de um ser que é profun<strong>do</strong> e puro...”.<br />

Para to<strong>do</strong>s que têm <strong>olho</strong>s para ver, em quase to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong> planeta, ele é<br />

<strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong>. Os profissionais da área o evocam pela sigla HCB. Os inicia<strong>do</strong>s<br />

preferem a piscadela surrealista de suas dedicatórias cheias de cumplicidade: “En rit<br />

Ca-Bré 1 ”. Os outros o chamam de <strong>Henri</strong> como se ele fosse o único.<br />

To<strong>do</strong>s se fazem uma idéia própria desse personagem. Elas tornam um pouco<br />

menos indecifrável seu grão de loucura, seu gênio, sua parte sombria. Todas têm um<br />

pouco de verdade, pois cada um se apropriou de uma parte <strong>do</strong> homem de quem é<br />

amigo. A minha é o mosaico de todas. Biógrafos ou retratistas, não deixamos de ser<br />

intermediários, insignificantes mensageiros que se auto-condenam a fazer a ligação<br />

entre um homem e o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para saciar sua legítima curiosidade.<br />

Esse homem que alguns julgam insuportável, a maioria considera morto, pois<br />

apesar de sua importância no imaginário coletivo, ele não abusa <strong>do</strong> exercício de sua<br />

autoridade. Quase nunca o vemos na televisão, quase nunca o ouvimos no rádio, e ele<br />

não aparece na imprensa de maneira intempestiva. Acham que ele está morto e ele<br />

não faz nada para desmentir isso, to<strong>do</strong> contente de escapar <strong>do</strong>s incômo<strong>do</strong>s que a<br />

notoriedade invariavelmente atrai.<br />

Ele é a impaciência em carne e osso, mas também a curiosidade, a indignação,<br />

o entusiasmo e a cólera. Esse meditativo frenético não pára no lugar, incapaz de<br />

<strong>do</strong>minar seu próprio temperamento, como se a verdadeira vida estivesse<br />

necessariamente no movimento. Sua intranqüilidade acaba perturban<strong>do</strong> a paisagem.<br />

Ele é daqueles que deve sua nobreza à excentricidade. Nada o deixa mais<br />

secretamente feliz <strong>do</strong> que valer-se deliberadamente <strong>do</strong> prazer aristocrático de<br />

desagradar. Quan<strong>do</strong> pensamos em tu<strong>do</strong> que seus <strong>olho</strong>s viram, sentimos vertigens.<br />

Enfim, um artista. Retraçar sua vida e revisitar sua obra é contar a história de<br />

um olhar.<br />

Uma vida é como uma cidade: para conhecê-la, é preciso se perder nela. Foi<br />

isso que fiz: me perdi em seu universo interior sem me preocupar com a cronologia.<br />

Por dias e noites a fio li até o menor de seus escritos e analisei toda a literatura<br />

dedicada a ele. Mergulhei em seus arquivos com a secreta esperança de nunca mais<br />

emergir. Interroguei seus amigos, não sem pensar às vezes numa frase de Max Jacob:<br />

“Sempre esboçamos um sorriso ao falar de um ‘grande homem’ que conhecemos, pois<br />

se estabelece um contraste entre a reputação e o roupão”. Revi suas fotografias pela<br />

enésima vez como se descobrisse cada uma pela primeira vez. De novo e de novo,<br />

encarei seus personagens tentan<strong>do</strong> entender como eles tinham consegui<strong>do</strong> resistir ao<br />

tempo. Quanto a ele, o ouvi falar sobre tu<strong>do</strong> e nada na fabulosa barafunda de suas<br />

lembranças.<br />

Não sabemos o que nos reserva o passa<strong>do</strong>. Existem coisas que somente um<br />

homem pode saber sobre sua própria vida. Algumas verdades sempre escaparão aos<br />

<strong>do</strong>cumentos e testemunhos, e isso é bom. Se tu<strong>do</strong> pudesse ser reduzi<strong>do</strong> à lógica deles,<br />

perderíamos o mistério. Os fatos que enfileiramos como pérolas num colar são falsos,<br />

pois, como elas, obedecem a uma ordem implacável que despreza toda poesia. De que<br />

serve saber tu<strong>do</strong> se não sabemos nada a mais? Muitas vezes, no juízo que fazemos de<br />

1<br />

Em francês, “En rit Ca-Bré” (que significa algo como “Ri o rebelde”) tem o mesmo som de “<strong>Henri</strong><br />

Ca-Bre”. (N.T.)


uma obra, o inefável pre<strong>do</strong>mina sobre demonstrações mais bem argumentadas. Ele<br />

aparece como uma transparência sobre aquilo que a imagem não mostra, que está fora<br />

<strong>do</strong> campo de visão e que não é dito pelo fotógrafo. Tu<strong>do</strong> isso sobressai num<br />

observa<strong>do</strong>r como <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong>, que sempre se interessou menos pelas pérolas <strong>do</strong><br />

que pelo fio que as segura.<br />

A verdade não está no esgotamento de um tema mas nos interstícios. Para que<br />

fazer a ladainha <strong>do</strong>s países onde ele viveu, se ele visitou quase to<strong>do</strong>s? Para que fazer<br />

uma lista das personalidades que ele retratou, se ele fixou quase todas para a<br />

eternidade? Ganharíamos tempo apontan<strong>do</strong> o que lhe escapou. E depois? Mais nada.<br />

Não exigimos que um poeta seja completo em seu recenseamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

principalmente depois de descobrirmos que Proust e Cézanne são seus únicos<br />

“fotógrafos” de cabeceira. Pois suas verdadeiras referências são culturais.<br />

Se quisermos entender <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong>, é preciso nos desfazermos da<br />

concepção tradicional de tempo e assimilarmos outra, às vezes anacrônica, onde o<br />

calendário <strong>do</strong>s fatos não necessariamente coincide com o das emoções. É preciso<br />

também imaginar que o tempo <strong>do</strong> relógio não é o mesmo <strong>do</strong> homem, que cada um<br />

tem sua música interior e que contar os acontecimentos de uma vida sem levar em<br />

conta sua própria lógica seria tão inútil quanto lembrar uma ópera por seu libreto.<br />

Proust disse tu<strong>do</strong> isso, e mais: “Há dias montanhosos e árduos que levamos um tempo<br />

infinito a galgar, e dias de declive que se deixam percorrer a toda velocidade,<br />

cantan<strong>do</strong>”.<br />

<strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> passou sua vida assim. Ele não viajou, ele morou no exterior<br />

sem se perguntar quan<strong>do</strong> voltaria. Mais que uma sutileza, se trata de outra<br />

compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Sua obra assim demonstra. Ela também deve a Rodin,<br />

quan<strong>do</strong> ele dizia: “O que fazemos com o tempo, o tempo respeita”. É por isso que o<br />

inventário rigoroso <strong>do</strong>s dias desse homem será sempre menos importante que a<br />

sombra feita por alguns deles em sua memória e na nossa.<br />

Uma noite, quan<strong>do</strong> perguntei se ele ficava sensibiliza<strong>do</strong> com a visão de mun<strong>do</strong><br />

de Nicolas de Staël, ele pulou de repente da poltrona, ficou na ponta <strong>do</strong>s pés, me<br />

<strong>olho</strong>u <strong>do</strong> alto e, com a voz muita mais grave, disse num tom cavernoso:<br />

<strong>–</strong> Stâââl, Staâââl...<br />

Eu pensava saber quase tu<strong>do</strong> sobre aquele pintor, mas ignorava algo que<br />

<strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> recordava: que ele era imenso e que sua voz de bronze marcava a<br />

to<strong>do</strong>s os seus interlocutores. O timbre é uma coisa importante. Uma gravação antiga<br />

pode traduzir sua cor, restituir seus contornos, indicar sua silhueta, mas jamais<br />

reproduzirá sua alma. O mesmo acontece com a intensidade <strong>do</strong> aperto de mão, esse<br />

contato de palma com palma que permite sentir o toque da mão <strong>do</strong> outro e guardar sua<br />

memória particular.<br />

Uma inflexão de voz e uma pressão às vezes dizem mais sobre um homem <strong>do</strong><br />

que suas confissões. <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong> tem uma maneira bem própria de apertar<br />

firmemente a mão, com um vigor que reflete seu caráter por inteiro, e de pronunciar<br />

delicadamente as palavras, com uma distinção na ponta da língua que revela sua<br />

educação mais <strong>do</strong> que ele gostaria.<br />

Se ganha em ser conheci<strong>do</strong>, ele gostaria de ganhar o mesmo em mistério. Ele<br />

aceita ser famoso, com a condição de permanecer desconheci<strong>do</strong>. Ele visivelmente<br />

concebeu o plano de morrer jovem, mas o mais tarde possível. Inapreensível, ele é<br />

aquele que, quan<strong>do</strong> para<strong>do</strong> para responder se é mesmo <strong>Henri</strong> <strong>Cartier</strong>-<strong>Bresson</strong>,<br />

responde:<br />

<strong>–</strong> Eventualmente...


A história de seu olhar é a história de um homem que durante toda a vida se<br />

fez a mesma pergunta, “De que se trata?”, e que nunca encontrou resposta, porque ela<br />

não existe.

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