CUBA 40 GRAUS:
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Beatbrasilis Nº<br />
A LENDA EDY STAR ABRE O VERBO EM ENTREVISTA EXCLUSIVA<br />
ALDOUS HUXLEY, O VELHO QUE VIAJAVA NO LSD<br />
ON THE ROAD EM FAMÍLIA<br />
BODEGAS E CITRÖENS NA ARGENTINA<br />
DOLORES, A MARETRIZ QUE ATRACOU NO BRASIL<br />
POESIA BEAT<br />
JULES ET JIM E MONOGAMIA<br />
SOLIDÃO E O SONHO DO FUSCA VERDE<br />
<strong>CUBA</strong> <strong>40</strong> <strong>GRAUS</strong>:<br />
Uma aventura sensual<br />
Nos cordões das calçadas de Fidel<br />
REVISTA 1 BEATBRASILIS<br />
9 #dez/2012
REVISTA 2 BEATBRASILIS
EDITORIAL<br />
O vento quente se deve ao calor que levanta do asfalto que até a pouco queimava sob um sol amarelo.<br />
E nem mesmo o cinza que tomou conta do céu ameniza essa temperatura que nos faz suar.<br />
O Vagabundo Iluminado, o Herói do Imaginário Coletivo, cutuca algumas pedras com suas botas<br />
enquanto espera alguma próxima carona.<br />
Assim como nós, ele não sabe ao certo o que virá depois se o depois chegar.<br />
Como nós ele recolhe sua vontade do acostamento e a carrega em suas costas suadas.<br />
As árvores balançam com o sopro úmido do Universo que nos ensina a dançar.<br />
Um calor dos infernos! É isso o que faz agora, quase nos fazendo desistir da estrada.<br />
Um calor dos infernos que aumenta com os anos, que desgasta, que desbota, que agrada apenas aos diabos.<br />
REVISTA 3 BEATBRASILIS<br />
Mas meu bem, teremos a chuva muito em breve! Aguente!<br />
Força no teu polegar erguido lânguido, cansado, erótico — um pequenino santo que é parte de teu<br />
corpo — um santo pedindo ajuda às margens dessas rodovias!<br />
Pindabat de piche!<br />
Mendicância pelo mínimo de asfalto necessário!<br />
Nossos joelhos são fortes e farão a diferença, eu bem sei.<br />
E nem preciso lhes lembrar da chuva que lavará nossos problemas, caindo sobre a estrada e beijando o<br />
chão como letras no papel virgem.<br />
Fabrício Busnello
REVISTA 4 BEATBRASILIS<br />
Beatbrasilis<br />
#Número 9<br />
(Dezembro de 2012)<br />
Colaboraram nesta Edição:<br />
Cícero Bezerra; Daniel Caldas; Fabrício Busnello; Gabriel Megracko; Guilherme Rocha; Jim Duran; Julieta Puy; Keila Costa;<br />
Leandro Durazzo; Marcus Vinicius Marcelini; Mateus Marcelini; Mauro Cass; Sânzio Barreto; Véio China; Vitor Souza<br />
Conselho Editorial:<br />
Fabrício Busnello; Gerald Iensen; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Durazzo; Mauro Cass; Vitor Souza<br />
Diagramação:<br />
Taly Procópio e Vitor Souza<br />
Sobre:<br />
Beatbrasilis é um coletivo cultural.<br />
Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e quase sazonal.<br />
Contato:<br />
beatbrasil@gmail.com<br />
http://beatbrasilis.wordpress.com<br />
Reprodução:<br />
Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir<br />
qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima.
ENTREVISTA<br />
EDY STAR<br />
Edy Star é mesmo uma figura incrível. Um dínamo divertido que possui uma verborragia contagiante e um propósito claro: continuar. Eu o assisti em<br />
cena na Virada Cultural Paulista de 2010, ele com o show “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão Das Dez” e participação especial de<br />
Sylvio Passos encarnando Jorginho Maneiro e Rodrigo Titarelli dando vida a Dr. Paxeco. No show ao lado de meu amigo/irmão Wander Killer revivi a<br />
nossa adolescência curtindo um Raul arretado numa vitrolinha. Edy pulava, cantava e mexia com a massa raulseixista em pleno Anhangabaú, as<br />
músicas do disco do início de carreira de Raul, Sérgio Sampaio, Mirian Batucada e Edy “Bofélia” Star.<br />
Reencontrei Edy em 22 de agosto de 2011 na loja “Baratos Afins”, do Luiz Calanca, lá na Galeria do Rock. Iria fazer uma entrevista especial<br />
com Sylvio Passos, com o Calanca e, é claro, com o próprio Edy, que arrancou risos da equipe e contou sua história de caminhada, brilho,<br />
música e muita personalidade. Revemo-nos por acaso em março deste ano na mesma loja da galeria de onde trouxe uma das poucas<br />
cópias que ainda estavam disponíveis do cd “Sweet Edy”, reedição do LP lançado pelo cantor em 1974, que conta com letras e<br />
músicas especialmente feitas para ele por um time composto por Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil,<br />
Leno, Galvão e Moraes Moreira, Jorge Mautner, Renato Piauí e Sergio Natureza, além dele próprio. Depois de muitos<br />
anos morando na Espanha, Edy retornou ao Brasil e segue com agenda lotada em<br />
diversos shows e projetos.<br />
REVISTA 5 BEATBRASILIS<br />
Por JIM DURAN<br />
Edivaldo Souza nasceu em Juazeiro, Bahia, em 1938. É um<br />
cantor, ator, dançarino, produtor teatral e artista<br />
plástico brasileiro. Em 1975 estrelou a primeira<br />
montagem brasileira da peça Rocky Horror<br />
Show, produzida por Guilherme<br />
Araújo. Ele não para e me disse<br />
uma vez: “eu já vivi mais do<br />
que irei viver, o que vier é<br />
lucro”. Isso pode caber<br />
para o Edivaldo,<br />
mas para o Edy<br />
não, afinal ele<br />
é Star.
Beatbrasilis: Desde o seu retorno ao Brasil você não tem parado, né?<br />
EDY STAR: Bem, tenho que me virar, pois tenho contas a pagar y<br />
presentes a dar... y não tenho empresário, luto sozinho, né?<br />
Beatbrasilis: São quantos projetos em andamento?<br />
EDY STAR: Depois do show do lançamento do meu CD Sweet Edy, no<br />
Theatro Municipal, durante a Virada Cultural 2012, me dediquei ao atual ‘O<br />
Último Kavernista Canta Raul!’, que é o que venho apresentando<br />
atualmente. Mas estou prenho de projetos: musicalmente quero fazer algo<br />
sobre os anos 60: ‘Rocks, Boleros y Cha-cha-chas...’, gostaria de trabalhar a<br />
obra de Zé Rodrix, y tenho mais um outro. Mas também tenho que realizar<br />
alguma coisa em teatro y voltar a pintar... y arranjar um companheiro.<br />
Beatbrasilis: Como surgiu o convite para a Virada Cultural Paulista de<br />
2010 (Edy foi um dos convidados do palco RAUL SEIXAS)?<br />
EDY STAR: Você quer dizer de 2009, né? O pessoal da Séc de Cultura<br />
ligou pra minha casa em Madrid para me convidar. Cheguei a pensar que era<br />
trote! Mas vim até São Paulo y acertamos tudo, eu já tinha aquele show na<br />
cabeça, y era para um teatro, com os efeitos de luz, marcações, etc... Ali não<br />
deu pra fazer, era muito precário. Mas foi o rebu naquele palco, y assim me<br />
chamaram a repetir O MESMO SHOW no ano seguinte... Num palco bem<br />
melhor localizado, mas entrei as 5 horas da manhã y mesmo assim tive o<br />
maior publico!, y num palco onde também estiveram Flora Purim, Ayrton<br />
Moreira...<br />
REVISTA 6 BEATBRASILIS
Beatbrasilis: Como foi<br />
ser recebido pelos fãs de Raul<br />
Seixas? Como foi esse<br />
contato? A amizade surgiu<br />
fácil?<br />
EDY STAR: Estive aqui em<br />
2008, foi quando fiz contato<br />
com o movimento raulseixista<br />
y todo povo que eu só<br />
conhecia de papo pelo orkut.<br />
Marcamos um encontro numa<br />
barraca de bebidas, frente a<br />
Estação da Barra Funda. Foi<br />
fantástico! Muita gente, muito<br />
carinho, muita risada... como<br />
velhos amigos! Estive em casa de alguns deles... Uma festa! Sou muito grato<br />
a toda essa gente, aliás a TODOS os raulseixistas de todo o Brasil... Y<br />
retribuo tudo isso, visitando sempre o túmulo do de Raul em Salvador.<br />
Beatbrasilis: De onde veio o apelido “Bofélia”?<br />
EDY STAR: ‘Bofe’, na Salvador antiga, significava ‘macho’, ‘homem’, y<br />
como eu era uma bicha maluca porradeira, brigava, etc, me colocaram esse<br />
apelido dizendo que eu era a ‘bicha mais macho’ dali. Y creio que o Raul,<br />
por intermédio de Waldir Serrão, soube disso, porque perto da casa de<br />
Waldir, na Av. Luiz Tarquínio, tinha um garotão que ganhou esse apelido<br />
porque dei porrada nele. Então, na CBS, Raul y Sergio me chamavam assim:<br />
REVISTA 7 BEATBRASILIS<br />
Mister Bofelia... mas nunca tomei por pejorativo, era mais de carinho, de<br />
amizade mesmo.<br />
Beatbrasilis: Você curte literatura?<br />
EDY STAR: SIM! Cresci lendo muito, não havia TV nem internet... aos 18<br />
anos já havia lido toda a literatura de Dickens, Jorge Amado, Érico<br />
Veríssimo, José de Alencar, Alexandre Dumas, Victor Hugo y<br />
principalmente Monteiro Lobato (infantil y adulta), y muita poesia.<br />
Aprendíamos cultura nos livros y todos queriam mostrar conhecimento.<br />
Beatbrasilis: Te surpreendeu o fato de seu cd Sweet Edy ter se<br />
esgotado pouco tempo depois de ter sido relançado?<br />
EDY STAR: MUITISSIMO! Eu sempre quis lançar em CD, y quando o Zé<br />
Pedro y o Thiago Marques Luiz se prontificaram a isso, fiquei muito<br />
contente y confiante. Mas só vi o produto depois de pronto: com aquele<br />
livreto, etc. Y sabe que foi o CD que a (gravadora) Jóia Moderna vendeu<br />
mais rapidamente y o que mais deu retorno publicitário? Coisas de Star<br />
(risos). No mercado livre da internet já se encontra com preços bem altos!<br />
Beatbrasilis: Tem previsão de lançamento de algum cd de inéditas?<br />
EDY STAR: Por mim, já teria entrado em estúdio y gravado algo novo. EU<br />
PRECISO! Tem gente ainda escrevendo musicas pra mim, tenho umas<br />
coisinhas minhas, y umas outras que gostaria de dar a minha versão,<br />
inclusive algumas espanholas. Nesse disco novo, deverei ter quatro cantores<br />
amigos como convidados, y já poderei ir descansar na Ilha de Itaparica,<br />
olhando o mar.
Beatbrasilis: Como foi o começo de tudo no mundo da música?<br />
EDY STAR: Desde pequeno fui envolvido pelo ambiente musical das<br />
Rádios. Aos 14 anos ingressei num programa infanto-juvenil na Radio<br />
Sociedade da Bahia y não parei mais... a dizer tenho 60 anos de carreira, né?<br />
2011 — Edy REVISTA Star, Jim 8 Duran BEATBRASILIS<br />
e Silvio Passos na Galeria do Rock<br />
Beatbrasilis: O que você anda ouvindo de bom?<br />
EDY STAR: Continuo ouvindo muitos clássicos, muita ópera y muita salsa<br />
caribeña. Muita MPB velha, pois pouca coisa contemporânea me atrai, ando<br />
numa fase de fastio y desencanto com tanta besteira, tanta coisa ruim, em<br />
todos os segmentos, mas ainda consigo descobrir jóias como o grupo<br />
Sambô ou o Zeca Baleiro.<br />
Beatbrasilis: Como foi assumir a homossexualidade em uma época em<br />
que tudo era reprimido ou muito bem escondido?<br />
EDY STAR: A mim foi muito natural y nada proposital. Lidava y vivia num<br />
meio artístico, onde praticamente esse ‘problema’ não existe tão<br />
acintosamente. Afora minha fase colegial de bulling, nunca sofri restrições<br />
por ser gay... a grande repressão vinha mesmo da polícia com seus abusos<br />
machistas, não era bem da ditadura. Mas sempre se driblava o cerco, y todo<br />
mundo fazia suas bacanais, concursos de misses, festinhas de embalo... Bons<br />
tempos, pois apesar de tudo, não havia AIDS nem o execrável<br />
‘politicamente correto’, y uma maior liberdade y liberalidade quanto aos<br />
costumes sexuais.<br />
Beatbrasilis: Como foi a sua ida pra Espanha?
REVISTA 9 BEATBRASILIS
EDY STAR: A situação de trabalho estava muito ruim... eu que sempre<br />
trabalhei nos cabarés, onde já não havia conjuntos nem musica ao vivo, y<br />
antes que morresse de fome, resolvi ir conhecer o país que mais admirava y<br />
depois me suicidaria. Mas três dias depois de chegar em Madrid já estava<br />
trabalhando num cabaré... y fui ficando, ficando... 19 anos!<br />
Beatbrasilis: Você trabalhou muitos anos em cabarés. Como era a vida<br />
nessa época?<br />
EDY STAR: No Rio, sempre trabalhei na noite, em cabarés... Durante<br />
minha juventude conheci y me preparei para trabalhar em teatro musical<br />
brasileiro, o famoso teatro de revistas, mas aquilo estava acabando, y peguei<br />
os últimos resquícios nos cabarés da Praça Mauá y tomei gosto. Fiz também<br />
teatros, mas gosto mesmo é de cabaré: trabalhar com as putas y todo aquele<br />
mundo: é algo fantástico. Elas são mães dedicadas, amigas incríveis, y todas<br />
tem uma historia de vida sofrida y desigual. Era para mim um trabalho<br />
como outro qualquer, cheguei a fazer 6 shows por noite, correndo com meu<br />
fusca entre a Praça Mauá, Lapa y Copacabana... Ao chegar na Espanha<br />
calhou de também trabalhar no mais famoso cabaré do centro de Madrid:<br />
‘Chelsea II’, y ali fiquei por 18 anos... Dirigindo 36 mulheres internacionais,<br />
devo ser bom, né?<br />
Beatbrasilis: Sente falta da Espanha??<br />
EDY STAR: Não tanto quanto eu gostaria... sou muito camaleônico: me<br />
adapto com muita facilidade aos lugares ou situações. Mas, me faz falta a<br />
organização, a cultura y principalmente a educação, não só da Espanha, mas<br />
da Europa, pois conheço outros países... Tive que me ‘deseducar’ para me<br />
REVISTA 10 BEATBRASILIS<br />
1989 — Edy entre Raul Seixas e Marcelo Nova
REVISTA 11 BEATBRASILIS<br />
readaptar ao BraZil. Sinto falta do meu apartamento quase em frente ao<br />
Palacio Real, das ‘niñas’ do Chelsea, da música flamenca, dos museus, das<br />
tardes de toros (touradas), y da facilidade para encontrar coisas de países<br />
vizinhos... Sinto falta de uma certa segurança y da maneira como<br />
administram a corrupção: lá não se faz pizza politica!<br />
Beatbrasilis: E o artista plástico Edy Star? Pensa em expor seus<br />
trabalhos?<br />
EDY STAR: Precisa ser reativado urgentemente. Agora que tenho lugar y<br />
luz, tenho que voltar a pintar, y naturalmente mostrar o que sei y posso<br />
fazer... Em parte é também uma necessidade de realização pessoal. Nem só<br />
de música vive o homem... ou não?
O VELHO E ADMIRÁVEL ALDOUS<br />
REVISTA 12 BEATBRASILIS<br />
Fabrício Busnello<br />
“O medo elimina a<br />
inteligência, elimina a<br />
bondade, elimina todo<br />
pensamento de beleza e<br />
verdade. Só persiste o<br />
desespero mudo ou<br />
forçadamente jovial de<br />
quem pressente a<br />
obscena presença no<br />
canto do quarto e sabe<br />
que a porta está trancada,<br />
que não há janelas.”<br />
- Aldous Huxley (1894-1963),<br />
em O Macaco e a Essência.
REVISTA 13 BEATBRASILIS<br />
S<br />
e você, em alguma conversa num grupo de convivas, disser que curte<br />
Aldous Huxley, existe uma grande probabilidade de algum gaiato,<br />
exultante e faceiramente, lhe contar o quanto ele gostou d'As Portas da<br />
Percepção (1954), complementando, quase mijando nas calças de êxtase a essa<br />
altura, que foi o livro que deu origem à banda de rock norte-americana The<br />
Doors. Se não isso, alguma outra figura lhe lembrará, de forma mais<br />
intelectual e comedida – talvez acendendo um cachimbo - que Huxley é<br />
muito mais autor em Admirável Mundo Novo (1932) que no livro<br />
anteriormente citado. E ele não estará, de forma alguma, equivocado.<br />
Equivocado mesmo, penso eu, é o fato da maioria das pessoas começar e<br />
terminar suas experiências huxleianas nestes dois livros, quando o universo<br />
literário deste recatado autor inglês é muito mais rico do que nos permitem<br />
imaginar estas duas obras – ou bem permitem sim, o que torna mais difícil<br />
de entender o porquê do limite ser normalmente restrito a estes parcos<br />
títulos.<br />
‘Mas o cara é chato pra caralho, Fabrício!’. Não... não é, velho! Tal e qual<br />
alguns outros grandes escritores como Joyce, Pound ou Saramago, é<br />
preciso, com Huxley, sacar qual é a dele, ter paciência. E a dele, babe, é se<br />
tocar que atrás de todos aqueles bons modos, toda aquela distinção e<br />
fidalguia, está um gênio que reclama abertamente a cruzada de cada Homem<br />
em busca do ápice de sua consciência, e também um crítico ácido da<br />
humanidade e de suas escolhas pelo caminho que ela trilhou; e ele te contará<br />
isso em voz baixa, com calma pausada, tomando um chá num jardim de<br />
inverno. É assim em Contraponto (1928), um romance absurdo em que<br />
cheguei a cogitar do velho Huxley ser esquizofrênico, tamanha a<br />
profundidade das suas personagens, cada uma com uma personalidade dife-
Úteros artificiais no “Admirável Mundo Novo" de Huxley<br />
REVISTA 14 BEATBRASILIS
ente da outra, e todas sólidas, completas, influentes! Ou então nas bizarras<br />
situações contidas em Também o Cisne Morre (1939), onde um doutor maluco<br />
se presta a pagar caro pela busca da imortalidade. Falarei então de um outro<br />
exemplo que mostra um Aldous mais explícito e desesperançado, colocando<br />
a crítica à nossa raça no limite em O Macaco e a Essência (1949): um romance<br />
pós-apocalíptico escrito em forma de roteiro de cinema que nos mostra um<br />
mundo destruído pela bomba atômica e uma nova Califórnia habitada por<br />
babuínos que levam cientistas pra passear presos em coleiras (e que devem<br />
juntar seus cocôs em saquinhos, por certo).<br />
Huxley não é chato, viu? Era isso que eu queria te mostrar! Posso mais um?<br />
Ok. Então espera só até eu te contar um pouquinho d’A Ilha (1962), seu<br />
canto do cisne, seu livro-testamento, a sua obra-prima em que ele nos fala<br />
de uma sociedade idealizada que se contrapõe ao sinistro futuro sombrio<br />
que lemos em Admirável Mundo Novo, escrito 30 anos antes: a civilização<br />
da Ilha de Huxley busca com calma e equilíbrio uma existência plena e feliz<br />
– e consegue. (destaque para as viagens de cogumelo das personagens em<br />
determinado momento... de verter lágrimas, lhes juro).<br />
E já que tocamos em cogumelos e como uma coisa liga a outra e também<br />
por que esse texto tem que terminar como tudo nessa vida, vou contar, pra<br />
quem ainda não sabe, quais foram as últimas palavras que escreveu o velho<br />
Aldous, já fatalmente doente em um leito de hospital: impossibilitado de<br />
falar, escreveu ele à sua mulher num pedacinho de papel: “100 microgramas<br />
de LSD, aplicação intramuscular”. Depois de 69 anos e 47 lindos livros<br />
cerebrais, era assim que se despedia o nobre bretão. Duas doses lisérgicas e<br />
algumas horas depois de atendido seu desejo, ele morreria quase junto com<br />
REVISTA 15 BEATBRASILIS<br />
aquele dia, às 17 horas dum 22 de novembro de 1963. Mesclou a morte com<br />
uma viagem colorida, e deve ser mesmo isso o que nos aguarda depois do<br />
último piscar de nossos olhos abestalhados!
REVISTA 16 BEATBRASILIS
SEM FIM: UM<br />
POUCO SOBRE<br />
ON THE ROAD<br />
Keila Costa<br />
Em que lugar vai dar aquela estrada sem fim, de curvas pouco sinuosas,<br />
declives e aclives suaves a penetrar a vegetação árida, por vezes nevada sem<br />
deixar nunca a aridez? Seria na verdade a secura da alma a verter toda sorte<br />
de encontros imprevistos, de digestivas indigestas substâncias alucinógenas?<br />
De amizades e amores parcos e loucos por anunciarem sempre o fim, ainda<br />
que houvesse sempre um trago a mais que sorver, o final do fluido ou o<br />
início quem sabe, na dúvida permanente do copo pela metade; prestes a<br />
acabar ou a ser preenchido? Um novo encontro, embora sempre velho.<br />
O livro On The Road, de Jack Kerouac, pareceu-me assim, mas<br />
diferentemente do filme recentemente visto ao lado da minha mãe, traz uma<br />
compulsividade infinitamente mais frenética, uma loucura imanente e<br />
iminente, enquanto o filme resumiu-se a retratar crises, pequenos clímax do<br />
REVISTA 17 BEATBRASILIS
livro diante da estrada sem fim, quando, é claro, a imagem pudesse render<br />
algum tipo de assombro ou exotismo, sem exageros, devo admitir. Asseguro<br />
que minha mãe manteve-se aparentemente com o olhar fixo na tela; penso<br />
que queria perscrutar a próxima curva, onde ia dar, para depois me dizer se<br />
alguma chegada valeu. O manuscrito é como uma montanha russa; uma<br />
monotonia sórdida, natural da vida de qualquer um, e uma súbita busca<br />
indeterminada, do incompreendido apenas para alguns, os mais ousados ou<br />
porque não dizer alucinados categóricos, ilegais. Curioso é como os lugares<br />
retornam e são sempre obrigatórias passagens ou chegadas triunfais, repletas<br />
de expectativas. Os lugares tem vida, os personagens querem viver ainda<br />
que custe a morte. Esqueçamos da alucinação alienada, legal, mas sem<br />
esquecê-la totalmente. O mundo ‘paralelo’ do ‘autor’ e seus ‘comparsas’<br />
nem mesmo hoje soa como natural, pelo menos para os conservadores, para<br />
não dizer a maioria que nos rondam. E aonde fica a sobriedade que<br />
resguarda a sobrevivência digna, ainda que indignamente tristonha? Como<br />
REVISTA 18 BEATBRASILIS<br />
encontrar em meio à realidade de dentro e de fora essa alucinação legal,<br />
saudável e asséptica? São essas perguntas que KerouaC fez nas entrelinhas.<br />
O diretor Walter Salles deu seu recado, dada as limitações da adaptação para<br />
uma obra tão repleta de movimento; ou ficava na estrada ou ficava nos<br />
lugares ou ficava nas pessoas. Precisou fazer os três e perdeu a<br />
profundidade até mesmo da superficialidade em alguns momentos. O<br />
tempo exíguo deixou o manuscrito sem grande expressão na tela, mas<br />
digestivo. Bonita fotografia, jazz, bop, blues; negros fabulosos, virtuosos na<br />
voz, no toque instrumental, na dança. Menos que no livro, é claro. Não deu<br />
tempo para tanto sexo, drogas e rock n’roll. Mamãe não teceu grandes<br />
comentários. Adolescente nos anos 70, nem de longe soube o que<br />
significava beat, hippie. Foi apenas uma moça interiorana com rebeldia<br />
escondida. Acho que continua rebelde latente.<br />
Penso que ela não acharia mal ir pela estrada sem fim.
UM TURISMO SEM PRESSA PELAS<br />
REVISTA 19 BEATBRASILIS<br />
BODEGAS ARGENTINAS<br />
Mauro Cassane
Eu sei que dirigir não combina com bebida alcoólica, mas para tocar um<br />
Citröen 3CV, vá lá, abra-se uma exceção. E além do mais é vinho! O<br />
carrinho, como um calhambeque, não passa de 60 km por hora. E lá em<br />
Mendoza, na terra do Malbec, eles alugam este carro pra gente passear pelas<br />
bodegas instaladas ao pé da Cordilheira dos Andes.<br />
Fui com meu amigo Marça, que é jornalista de turismo. Nos convidaram<br />
para mostrar este novo serviço em Mendoza, que é o aluguel de carros<br />
antigos impecavelmente recuperados. Na verdade, não há opção, só tem<br />
mesmo o Citröen 3CV. E a estrutura É roots mesmo. Você pega o carrinho<br />
no aeroporto e se vira. Vai curtir o mundo dos vinhos. Não tem som: no<br />
REVISTA 20 BEATBRASILIS<br />
carro é só o barulho do vento, do motorzinho ronc ronc e toma bate papo.<br />
Lá fomos nós num "on the road" etílico.<br />
Primeiro vamos conhecer este antológico automóvel. Não é bonito mas é<br />
simpático, equipado com um motor pequeno, tímido, bicilíndrico,<br />
refrigerado a ar e com pouco mais que 30 cavalos de potência. Muitos já o<br />
viram por aí, particularmente quem já passeou pelas ruas de Paris ou, mais<br />
perto de nossa realidade, por Buenos Aires, na capital argentina, muitas<br />
vezes em estado deplorável.<br />
O carrinho, para os argentinos bem mais clássico e tradicional que o Fusca é<br />
para nós, brasileiros, é o Citroën 3CV. Lançado nos tempos das vacas<br />
magras do Pós-Guerra, na França, em 1948, o carro, de concepção muito<br />
simples, e forte apelo popular, rapidamente conquistou o gosto, e o bolso,<br />
dos trabalhadores que começavam a flertar, e a sonhar, em ingressar na<br />
classe média da maneira que todos, ainda hoje, sonham: motorizados.<br />
Se não dava para comprar aqueles carrões dos endinheirados como Aston<br />
Martin, Oldsmobile 88, Cadillac, Jaguar ou o desejado Studebaker<br />
Champion, com o lançamento do Citröen 3CV o povão ao menos<br />
vislumbrou ser possível, feito os magnatas, também desfilar pelas ruas<br />
dirigindo um legítimo automóvel. Ok, não era exatamente um carrão de<br />
luxo, muito pelo contrário, era pequeno e ordinariamente simples, também<br />
não tinha no design seu ponto mais forte, muitos o apelidaram de "patinho<br />
feio", mas, enfim, era um automóvel e não uma carroça puxada por<br />
jumentos.
O Citröen 3CV foi fabricado por 42 anos. O último modelo saiu de linha de<br />
montagem, em Portugal, em 1990. Assim como seu conterrâneo Fusca,<br />
manteve heroicamente sua carinha simples e pouco simétrica, com formas<br />
arredondadas e nem sempre harmoniosas. Ainda é possível encontrar alguns<br />
pela Europa e, na América do Sul, se vê aos montes na Argentina, muitas<br />
vezes judiado pelos anos. Mas um empresário de Mendoza, terra dos<br />
grandes vinhos Malbec argentinos, com misto de visão empreendedora e<br />
poética, resolveu ousar e alçar o Citöen 3CV, outrora carro de proletário, a<br />
uma categoria muito mais nobre: o símbolo de um estilo de vida onde o<br />
importante não é a pressa ou a ostentação, mas sim a calma e a<br />
contemplação.<br />
REVISTA 21 BEATBRASILIS<br />
Ramiro Marquesini criou a empresa SlowKar com uma proposta ao mesmo<br />
tempo criativa e inusitada. A ideia é oferecer aos turistas que visitam a<br />
região de Mendoza a experiência de conhecer as diversas vinícolas e<br />
excepcionais restaurantes a bordo de um Citröen 3CV, impecavelmente<br />
reformado, com todos os detalhes de como foi originalmente concebido<br />
recuperados. O aluguel da diária do carro não fica muito diferente do que se<br />
paga em um automóvel mediano nas locadoras convencionais. O valor da<br />
diária gira em torno de cem dólares e pode cair caso se aumente o número<br />
de dias com o veículo. O único equipamento de alta tecnologia embarcado<br />
no Citröen 3CV da SlowKar é o GPS, indispensável, que te ajuda a chegar
às principais atrações turísticas de Mendoza: bodegas, restaurantes, museus<br />
e monumentos. Os melhores roteiros ficam inseridos na memória do GPS.<br />
O carro, com muito esforço, chega a 60 km/h. O som é de calhambeque. O<br />
que falta de conforto e potência, sobra em charme e elegância. Com o<br />
Citröen 3CV você, sem dúvida, protagoniza um jeito descolado de fazer<br />
turismo. Diferente das grandes cidades brasileiras, onde os motoristas<br />
parecem ter pouca paciência com carros menos favorecidos em potência,<br />
em Mendoza o pequeno e lento francês não só é respeitado como admirado<br />
por todos os motoristas. Os carros dão farol, motociclistas acenam e<br />
caminhoneiros buzinam cumprimentando. Todos vão te passar, fique certo<br />
disto. Mas o fazem com todo cuidado e muito respeito. O fato é que, com o<br />
carro, você tem a prazerosa sensação de, além de estar fazendo turismo ser,<br />
você mesmo, uma atração turística.<br />
E se os entendidos na arte de apreciar o bom vinho sabem harmonizar a<br />
nobre bebida dos deuses com os mais diversificados pratos da alta culinária,<br />
agora também é possível conjugar vinho à graça de um clássico dos carros<br />
populares, um Citröen 3CV, safra 1980. A SlowKar, atualmente, tem seis<br />
unidades para locação e os interessados podem fazer a reserva no site da<br />
empresa: http://www.slowkar.com.<br />
REVISTA 22 BEATBRASILIS<br />
DICAS<br />
• Para curtir o clima de inverno e a Cordilheira dos Andes com boa<br />
cobertura de neve prefira os meses de abril, maio, junho, julho e agosto.<br />
• Caso opte por ver as uvas nos pés, bem como a colheita, o melhor é ir<br />
entre novembro e fevereiro (neste caso esqueça a neve).<br />
• Prefira fazer os passeios das 8h às 18h no inverno (pois amanhece tarde e<br />
anoitece cedo) ou das 7h às 20h no verão (dias mais longos). A noite opte<br />
pelos serviços de táxi para ir aos restaurantes mais distantes ou faça uma<br />
caminhada por Mendoza que é sempre muito agradável. O Citröen 3CV<br />
oferecido pela SlowKar é excelente, tudo funciona perfeitamente bem, mas<br />
o carro, por ser lento e por ter pouca iluminação, não oferece muita<br />
segurança a noite.<br />
• Faça passeios de, no máximo, 120 quilômetros, mais do que isso a<br />
viagem se torna cansativa e você pode ter que, no retorno, trafegar a noite<br />
pelas autoestradas.<br />
• Visite o restaurante Urban O.Fornier para jantar e a Bodega Fornier, do<br />
mesmo proprietário, para conhecer o processo de fabricação de vinho e<br />
apreciar um almoço com um incrível visual para as Cordilheiras dos<br />
Andes. Ambos restaurantes foram considerados como "O melhor da<br />
Argentina " e o vinho que leva a mesma marca é de primorosa qualidade.<br />
Mas fique atento ao GPS, restaurante e bodega ficam em lugares distintos.<br />
• Se você realmente aprecia bons vinhos coloque em seu roteiro uma visita<br />
à Bodega AVE, do italiano Lacopo di Bugno, que produz um vinho com<br />
identidade de Mendonza, mas com personalidade de Toscana.
( CAPA )<br />
A BOMBA BOMBA SEXUAL SEXUAL<br />
REVISTA 23 BEATBRASILIS<br />
Guilherme Rocha
Ato I<br />
Após uma perambulação etílica pela ilha<br />
revolucionária de Cuba, com direito a encontros e<br />
desencontros com representantes da mais voluptuosa<br />
casta de mulheres cubanas, estou em casa, relembrando<br />
as nebulosas experiências e determinado a chegar a<br />
uma conclusão sobre o que vem a ser a “vida e<br />
formação” destas que virei a chamar, para efeitos<br />
pseudo-sociológicos, de “a bomba sexual cubana”.<br />
Permita-me apontar minha sofisticada hipótese — não é<br />
fácil ser uma bomba sexual! Especialmente uma bomba<br />
sexual que caminha confiantemente pelas preguiçosas<br />
ruelas de Havana com uma bunda grande e saltitante.<br />
Não é fácil. Machos se achegam às fêmeas proferindo<br />
dizeres como “safada”, “cachorra” ou “vou encher-te<br />
de leite”. Não é fácil ser o foco de todos os olhares<br />
da rua quando, inconscientemente, o vestido que já é<br />
curto vai subindo e, de repente, a bolsa cai no chão<br />
e não resta opção senão se agachar para recolhê-la.<br />
Não, não é nada fácil. Os homens se alteram. Param<br />
tudo, urram, martelam os peitos.<br />
Não posso afirmar que é uma realidade exclusiva de<br />
Cuba. Pode até ser que o mesmo ocorra na Finlândia,<br />
na Tailândia ou na Polinésia Francesa, mas duvido<br />
muito. Duvido muito que em Moscou haja bairros como o<br />
da Yéssica, em que homens ociosos se sentam em<br />
muretas, entrando em transes ejaculatórios quando<br />
vêem uma bomba sexual passar.<br />
REVISTA 24 BEATBRASILIS
REVISTA 25 BEATBRASILIS<br />
Conheci Yéssica com as melhores das más intenções. A<br />
idéia era simplesmente convencê-la a sair comigo para<br />
que eu pudesse conquistá-la e levá-la ao meu quarto<br />
de hotel. Entretanto, meu encontro com ela se tornou<br />
premissa para investigação sociológica quando durante<br />
a conversa ela disse: “não consigo imaginar uma vida<br />
em que eu não chame a atenção dos homens, mas, vou te<br />
falar a verdade—se é difícil ser uma bomba sexual,<br />
mais difícil ainda deve ser ter que se conter perto<br />
de uma”.<br />
Ao comentar a frase com amigos (e mostrar a eles uma<br />
foto de Yéssica), estes foram unânimes em dizer que<br />
eu tinha que aprender a reconhecer os momentos certos<br />
para bancar o intelectual. "Ela estava apenas te<br />
dando carta branca para martelar o peito e partir<br />
para o ataque". Provavelmente, mas não tive como<br />
resistir ao estímulo. A partir daquele momento iria<br />
explorar o que ela acabara de dizer. Que ordem<br />
social é essa em que bombas sexuais são elevadas a<br />
níveis de semi-deusas?<br />
Yéssica é graduada com honras pela Universidade de<br />
Havana, mas me explica que prefere sair com tipos<br />
vulgares, que passam a mão na sua bunda em público e<br />
que a abordam sem pudor. Fascinante. “Porque tipos<br />
vulgares quando, claramente, você tem amplas<br />
possibilidades de escolha? Por que não sai com<br />
doutores, empresários, velhos ricos, europeus?”.<br />
“Já tentei, mas não adianta. Gente sofisticada
simplesmente não me faz gozar. Prefiro o trato rude,<br />
as obscenidades no pé do ouvido. Gosto de mordidas,<br />
puxões de cabelo. Quero coisas apegadas ao solo,<br />
coisas que me asseguram que estou viva. Estou pouco<br />
me fudendo para vinhos importados e caviar russo,<br />
casas decoradas com originais de Picasso, esculturas<br />
no estilo Botero; esses ambientes doces e perfumados,<br />
quartos com cama d’água e incensos de mirra ao lado<br />
do televisor LED. Foda-se tudo, nada disso me serve.<br />
Gosto de coisas que me fazem sentir viva, tipo quando<br />
cortam a eletricidade e os mosquitos começam a picar<br />
e azucrinar meu sono, ou, sei lá, quando chove tanto<br />
que a casa inunda. Esse tipo de coisa.”<br />
“O primeiro que uma bomba sexual deseja é ser<br />
empurrada contra uma parede descascada, seguido de<br />
uma mordida bem dada. Não quer concessões ou<br />
tratamento especial. Prefere sua transa em um quarto<br />
sujo, cheio de mofo, numa cama roída por cupins e com<br />
buracos nas paredes para que os vizinhos assistam.<br />
Gosta de mostrar tudo de maneira obscena, vulgar.<br />
Quer abrir as pernas e tragar o mundo. Quer ser<br />
penetradas em camas que se desfazem durante o<br />
orgasmo; quer insultos; quer sangue.”<br />
Desde pequena, Yéssica sai para a rua sentindo uma<br />
enxurrada de olhares sedentos. Jovens que querem<br />
brincar de marido ciumento e que se tocam, golpeiam,<br />
dizendo coisas como “veja que linda, quando crescer<br />
vai ser cachorra”. Ou a mãe que lhe cobria de roupas<br />
REVISTA 26 BEATBRASILIS
REVISTA 27 BEATBRASILIS<br />
tentando esconder suas protuberâncias, porque “sua<br />
filha não vai ser qualquer uma”. Ou então o pai que<br />
pertencia ao Partido Comunista e ainda acredita que o<br />
socialismo é uma percepção estática de uma utopia<br />
onde indivíduos são rígidos e perfeitos (quando se<br />
supõe que um socialista, ou ao menos um<br />
revolucionário, deveria ser uma pessoa que crê<br />
firmemente em uma mudança integral no mundo, que vê<br />
mais além dos dogmas e que, por isso, crê no respeito<br />
e na diversidade do ser humano).<br />
Meu ponto é, caros leitores, que ser uma bomba sexual<br />
é um chamado, é um estilo de vida. Não se escolhe ser<br />
assim. É o resultado de um conjunto de fórmulas e<br />
predisposições unidas a uma equação de caráter e<br />
hábitos. E quando se percebe o que aconteceu, já não<br />
há mais volta.<br />
A formação de bombas sexuais é distinta nos bairros<br />
nobres de Havana (ou em qualquer outro lugar do mundo<br />
onde não se falta água e não se cozinha a luz de<br />
velas). A bomba sexual deve ser crua e orgânica, um<br />
produto de seu meio. Algumas mulheres optam por essa<br />
vida adotando uma ficção. Usam bolsas D&G, peitos de<br />
silicone, vestidos desenhados em Paris e têm<br />
conversas tipo “ohh, meu Fusca 21078 ontem fez um<br />
brum brum brum estranho e agora não tenho opção senão<br />
comprar um carro moderno, um Audi ou talvez um<br />
Nissan.” Essas mulheres são fraudes. Usam saias<br />
curtas, blusas transparentes, mas não buscam uma
profunda penetração anal, senão compras<br />
estratosféricas pelas butiques de Havana, férias em<br />
Miami, café da manhã em restaurantes cinco estrelas,<br />
unhas falsas, Chihuauas trazidos do México que fazem<br />
sei lá o quê com o rabinho e blá blá blá, a lista não<br />
tem fim.<br />
Ato II<br />
Às 8h15 em ponto Yéssica está no lugar combinado,<br />
apetitosa, esperando por mim. Caminho confiante. Nada<br />
de camisa passada, calças sofisticadas, sapatos<br />
finos, nada disso. Apenas uma calça rasgada, um boné<br />
velho e um pulôver apertado definindo os peitorais.<br />
Ela está vestindo uma blusa decotada e uma saia<br />
curta, mas nos meus olhos ela sabe que eu já estou a<br />
vendo nua. “Estás linda, mamita” e ela sabe que quero<br />
dizer que “não vejo a hora de te comer gostoso”.<br />
Enquanto avançamos pela rua, desconhecidos aparecem do<br />
nada e me felicitam. “Aê, mano, tás arrasando, hein?”;<br />
“boa, bróder, se garantiu bonito!”, ou “se liga maluco,<br />
essa mulher vai fazer uma macumba nos teus culhões!”<br />
Pois bem, não estou tirando isso do nada, mas em que<br />
outro país do mundo se pode contemplar uma cena dessas?<br />
Estou convencido que no Vietnã isso aconteceria de uma<br />
outra maneira.<br />
Passamos por uma rua onde jovens sem camisa jogam fute-<br />
REVISTA 28 BEATBRASILIS
REVISTA 29 BEATBRASILIS<br />
bol. Quando vêem Yéssica passar, tocam os testículos,<br />
mordem os lábios, gesticulam, falam besteiras. Ela<br />
não parece se espantar. Eu finjo que já vi coisas<br />
piores. O importante é me concentrar no papel que<br />
decidi interpretar, o do destruidor de tanques de<br />
guerra, o do bárbaro mastigador de granadas<br />
antiaéreas.<br />
Chegamos a uma casa em um beco sem saída. Está cheia<br />
de gente inquieta, suada. A música é irreconhecível.<br />
Não tem melodia. É puro ritmo. Invita movimentos da<br />
pélvis e pegadas por trás. É disso que ela gosta.<br />
Sirvo a ela um gole de meu rum. Dançamos. Ela está em<br />
ebulição, começa a dançar sensualmente, como toda<br />
bomba sexual que se preza. Rebola como se possuída.<br />
Bunda pra lá, bunda pra cá. Homens e mulheres desviam<br />
seus olhares. Copos são virados, cigarros se<br />
ascendem. A saia vai subindo deixando a calcinha a<br />
mostra. Sua blusa adere aos peitos duros. Mulheres<br />
olham com ódio a seus machos, põem as mãos na<br />
cintura.<br />
Opto por menor exposição e, como o bom reptiliano que<br />
decidi ser, eu a agarro pelo braço e a tiro da pista<br />
de dança. A massa protesta. “Deixa ela dançar, mano.<br />
Ela está se divertindo”. Mas não quero saber. Ajeito<br />
sua saia e mando todos à merda. “Não seja um babaca”,<br />
diz um deles ao me empurrar levemente.<br />
Tudo vai de mal a pior. O grupo que implicou comigo
continua protestando efusivamente, mas outros me<br />
defendem e, em pouco tempo, pessoas de todos os tipos<br />
se metem na confusão. Vejo Yéssica de relance. Ela<br />
parece hipnotizada, presa na cena como se sentindo um<br />
perverso êxtase. Afinal, ela havia inspirado toda a<br />
selvageria. De repente ouço o cair de uma garrafa de<br />
vidro e sinto um forte empurrão. Revido com outro<br />
empurrão e pouco depois sou socado por um troglodita<br />
que estava atrás de mim. Giro e acerto uma direita<br />
bem no seu olho. Ele põe as mãos à cara e eu o<br />
empurro pra longe. Esbarra em quem deve ser a<br />
namorada de um mulatão com cara de mau. Agora é ele<br />
que se envolve, socando geral. Mulheres gritam.<br />
Cachaça voa. Já ninguém sabe como tudo começou. O<br />
reggaetón toca enquanto os mais despreocupados<br />
continuam dançando. Desvio agressões enquanto busco<br />
uma saída do rebuliço. Encontro Yéssica. Ela está com<br />
uma cara de fascínio, como se pensando: “esse<br />
encontro está saindo melhor que imaginava”.<br />
Vou até ela. Ela me encara com olhar de predadora. Me<br />
puxa pelo braço e para fora da festa. Não sei para<br />
onde está me levando. Atravessamos a rua e entramos<br />
em um quartinho cuja propriedade não me interessa.<br />
Tem um colchão velho no piso sujo. Na parede uma<br />
reprodução do girassol de Van Gogh. Sobre a mesa um<br />
rádio velho e oxidado. No teto um ventilador<br />
barulhento. Olho para Yéssica. Sei bem o que ela<br />
quer. Arranco meu pulôver rasgado. Beijo seus lábios.<br />
REVISTA 30 BEATBRASILIS
REVISTA 31 BEATBRASILIS<br />
Sinto sangue na minha boca, sinto meu olho inchado, mas<br />
é assim mesmo que ela gosta.<br />
Ela me empurra contra o colchão e me desnuda por<br />
completo. Pega meu membro e enfia na boca. Deleita-se.<br />
Revido. Pego ela pela cintura e forço seu corpo contra<br />
o meu. Mordo seu pescoço, arranco sua roupa de qualquer<br />
maneira. Ponho seus peitos em minha boca, engasgo,<br />
tusso, ponho de volta. Lambo-a de cima a baixo,<br />
deixando-a em um nível de expectativa e total entrega.<br />
Pede pra meter e eu a penetro feito bicho, como se<br />
temendo pelo fim de um sonho imprevisto. Bato. Aperto.<br />
Aumento a velocidade. Sinto fúria. “Goza, cachorra”.<br />
Ao princípio tento me conter, evitar o catastrófico<br />
fim, mas depois o instinto é de deixar ser levado. Logo<br />
vem a inevitável explosão e o caos de sangue, órgãos e<br />
ossos disseminados por todo o quarto. Minha cabeça cai<br />
em frente à velha televisora, meus braços debaixo da<br />
cama, minhas pernas na entrada do banheiro, junto aos<br />
restos do que em vida foi Yéssica.<br />
E com este fim me lembro do que ela havia me dito<br />
enquanto contemplávamos o mar. “A vida bem vivida deve<br />
ser atroz, porém harmônica. Deve ser um deleite<br />
pitoresco. Nada dá um sentido de vida mais intenso do<br />
que, depois de nos estraçalharmos todos, termos que<br />
recolher a desordem e começar tudo de novo”.<br />
E assim seguimos, munidos de nada mais que sonhos e<br />
bravura, despertando todos os dias para eternos<br />
recomeços.
REVISTA 32 BEATBRASILIS
I - A Espanhola<br />
Vem aqui cabron! Quiero cincuenta reales entre los pechos de su<br />
Dolores, ahora! Ela ordena.<br />
Gosto disso. Gosto desse seu jeito de cobra e da hora imprevista do bote.<br />
Portanto, sabendo que vai me pegar de um momento para outro, é que<br />
coloco a nota entre seus seios e adentro o seu pequeno quarto, sua caverna<br />
que fede à perfume e cigarro barato.<br />
Sim, meus senhores! Apresento-lhes Dolores, a “Espanhola”.<br />
É uma história tanto complicada. Dela só sei que veio da Espanha, região<br />
basca propriamente dita e está há pelo menos dois anos aportada no Brasil.<br />
Não, não! Não chegou ao nosso país atrás das folclóricas festas dos bois<br />
amazonenses ou dos badalados desfiles das escolas de samba na Marques de<br />
Sapucaí. Ela pisou o nosso território à custa dum casamento prometido<br />
numa louca história de Internet. Confidências suas e que apesar do pouco<br />
tempo de nossa convivência fez questão que eu soubesse.<br />
Não, Dolores não é mulher de chorar o leite derramado apesar dos seus<br />
momentos de fragilidade. E sei disso, pois certamente sou um dos seus<br />
melhores e privilegiados clientes. Enfim, é uma melancólica e arrebatadora<br />
história de uma mulher que se apaixonou e que acalantou durante um<br />
tempo o grande sonho da felicidade. Felicidade que virou pesadelo a partir<br />
do dia que pisou o par de calçado 39 no Aeroporto Internacional de<br />
REVISTA 33 BEATBRASILIS<br />
Cumbica. Antes, porém, é necessário procurar o fio nesse novelo<br />
emaranhado.
II - O Golpe Vagabundo<br />
(O Brasil envolvido)<br />
Dodô! Sussurrou com voz adocicada (era assim que o vagabundo<br />
chamava a Dolores) Depois de pequena pausa continuou:<br />
Sabe amor, de nada vai adiantar você trazer esse tanto de dinheiro ao<br />
Brasil já que é quase certo que a Federal vai confiscar a sua grana assim que<br />
pisar no aeroporto...<br />
Dolores a tudo ouvia. Ela estava prestes a embarcar para o Brasil e o seu<br />
coração estava apertado e as dúvidas corroendo suas certezas. Contudo o<br />
que ela jamais poderia imaginar era que estava diante dum sujeito que, além<br />
de boa pinta, era frio, calculista, um verdadeiro artista na arte de atuar e<br />
ludibriar.<br />
E outra, amor! Aqui os federais são uns ratos! Esses caras da lei<br />
vasculham tudo, inclusive a genitália para ver se abriga drogas nas entranhas.<br />
É um terror! O malandro dramatizou naquela última conversa diante de<br />
webcams.<br />
O homem percebia que causara a aflição da mulher. Agora quase não havia<br />
mais dúvida; O ardil seguia em bom caminho:<br />
Sí, mi amor. Entonces, qué podemos hacer? Puede usted decirme?<br />
REVISTA 34 BEATBRASILIS<br />
Bingo! Daí para frente foi fácil. O canalha a convenceu de que fizesse em<br />
seu nome uma ordem de pagamento. O dinheiro veio dar numa agência<br />
dum banco na Avenida da Liberdade. Óbvio, tudo frio, nome, conta,<br />
documentos, menos o banco e o dinheiro sacado, claro.
III - A Espanha invade a Coréia<br />
Dónde está el descarado Eustógio? Quiero hablar com ese hijo de puta!<br />
Ela irrompeu o local em altos brados enquanto que batia os pés e<br />
balançava as duas mãos nos quadris.<br />
Depois de algum tempo o perplexo coreano pateticamente protestou.<br />
A senhola só pode tá lôca, dona! Aqui tem Istógio nenhum! Aqui é loja<br />
de internet, lugar de ganha pão de Dong Hwan! Vá ploculá a sua tulma, vá!<br />
Sim, Dong Hwan fora pego de bermudas justas, literalmente, diante da<br />
intempestividade da mulher de corpo farto e encapetado como o próprio<br />
demônio.<br />
Claro que não houvera nada no aeroporto conforme o combinado: o amado<br />
juntamente dum buquê de flores para festejar o seu desembarque. E isso ela<br />
só foi dar conta após duas cansativas horas de espera no saguão sem que<br />
algum sujeito com cara de apaixonado desse as caras e dissesse: Meu<br />
amor, é você? Que felicidade!” Por fim, acabou desistindo de<br />
permanecer ali. Depois disso só restou a esperança de algum contratempo<br />
além das malas e um endereço num pedaço de papel no qual foi deixada<br />
pelo taxi. Com o trio de malas na calçada ainda conferiu por duas ou três<br />
vezes o endereço e confirmou ser aquele o local que certa vez o homem<br />
mencionando ao acaso a aflorada premonição mandou guardar. E o lugar<br />
REVISTA 35 BEATBRASILIS<br />
não poderia ser outro, afinal, até o telefone para o qual esporadicamente<br />
ligava estava impresso na placa indicativa da atividade comercial.<br />
Finalmente, depois de muito olhar para o letreiro, ela entrou e sabemos<br />
agora o desenrolar da parte inicial da história. Porém, somando-se todos os<br />
infortúnios, ainda mantinha-se distante da compreensão da espanhola o fato<br />
de ali ninguém conhecê-lo, saber do seu paradeiro, ou de qualquer detalhe<br />
que a levasse à presença do indivíduo.
A pendenga perdurava e o coreano tentava convencê-la. E ela por mais que<br />
se esforçasse não o entendia e muito menos se fazia entender. De certo só a<br />
persistente afirmação do coreano que dizia desconhecer o tal "Eustógio".<br />
E era esse o motivo que a deixava incontrolável.<br />
Mi San Antonio, usted no entiende, hombre de Dios! Pero este fue el<br />
número de telefono e o local que Eustógio me dice! Está a cá! <br />
Gesticulava ela mostrando o pedaço de papel.<br />
Somente com a ajuda de um moço que acabara de adentrar a loja e que<br />
mantinha parco conhecimento da língua espanhola é que o coreano tomou<br />
ciência do que pretendia a mulher.<br />
IV - A Coréia contra-ataca e a<br />
Espanha bate a retirada<br />
Ah, sim! Agora entende, mas Dong Hwan tem nada a ver com isso! E<br />
esse telefone é de lanhouse e não desse pessoa. Hwang às vezes emplesta<br />
telefone pra fleguês! Só isso!<br />
Foi então que a seu modo tentou explicar para a espanhola que era um<br />
serviço a mais que prestava aos seus clientes. E para isso era necessário<br />
REVISTA 36 BEATBRASILIS<br />
apenas que o cliente fornecesse para ele o número de quem faria a ligação e<br />
ele a transferiria para a cabine assim que fosse identificado no aparelho.<br />
Ta pecebendo minha senhola?
Ele tentava mostrar como as coisas funcionavam apontando para um<br />
caderninho onde fazia as anotações dos números e depois para o moderno<br />
aparelho telefônico com o identificador de chamadas e transferência de<br />
ramais. Para que não houvesse margem de dúvida ainda a levou para uma<br />
das cabines e lá mostrou o interfone que só se prestava para receber as<br />
chamadas. Ela, por sua vez, insistia na leitura dos lábios do coreano e às<br />
explicações do recém chegado, porém compreendia porcamente o que dizia<br />
um e o outro. Por fim, extenuada, desistiu de tudo e também daquele<br />
coreano maluco que dera de mostrar aparelhos e sistemas que ela jamais<br />
conhecera. Trágica, apenas persistia olhando o ambiente e pras máquinas<br />
diabólicas manejadas por garotos que jogavam game em rede e que<br />
berravam tão medonhos quanto furiosos gorilas. E se não bastasse, os seus<br />
gritos se juntavam aos ensurdecedores tiros de metralhadoras, às explosões<br />
de bombas e minas terrestres, estrondos tão dilacerantes que mais davam a<br />
sensação de que seria ali o próprio inferno. Foi então que suas lágrimas<br />
rolaram pelas faces; Agora ela compreendia tudo; jamais encontraria o<br />
patife.<br />
Que gran desgraciado fueste usted, Eustógio! Bradou ferida de morte<br />
ao abandonar a Lan House sem ao menos se despedir do coreano.<br />
E foi desta forma, naquela fria e melancólica segunda feira, que Dolores<br />
descobriu que havia sido mais uma vítima dos golpes virtuais.<br />
REVISTA 37 BEATBRASILIS<br />
V - A Meretriz da Espanha em terras<br />
brasileiras
Cómo pude ser tan ingenua e estúpida? Por coincidência foram<br />
aquelas as recordações que fizeram-na interromper num sofrível portunhol<br />
a nossa "espanhola" de 50 pratas que estava em pleno andamento. O<br />
movimento brusco e irritadiço do seu tórax fez escapulir o meu pau do<br />
meio dos seus peitos.<br />
Ah mi encantador Pujol... como soy tonta e abestada! Ela me olha e<br />
se desarvora no lamento. Óbvio, irrito-me; tinha que haver maior<br />
profissionalismo.<br />
Ei, ei, Manolita! Que merda que é essa? Não tenho nada a ver com esse<br />
teu lance. Eu paguei 50 pratas antecipadas pra ter o meu bibelô no meio das<br />
tuas tetas! Portanto... faça o serviço bem feito!<br />
Não foi um bom momento de esfregar-lhe nas fuças o quanto fora<br />
imbecil. Senti isso em seu olhar rude, estranho, daqueles que não gostam de<br />
levar desaforos para casa.<br />
Oscar, yo sempre me pregunto; cuando su pequeño “pipi” se convierte<br />
en uno de un hombre de verdad? Ela diz com pouco caso.<br />
Claro, era chacota com o tamanho do meu pênis. Era sua forma de se<br />
vingar. Mas, quem era ela pra ferir o orgulho de um homem? O que a<br />
espanhola pretendia provar com a galhofa fora de hora? Pretendia que eu<br />
broxasse? Pois bem, espere!<br />
REVISTA 38 BEATBRASILIS<br />
Sua rameira catalã! Não é meu pau que é pequeno, e sim os teus peitos<br />
que são descomunais! Devolvi furioso. Antes de tudo teria que saber que<br />
eu não era flor que se cheirasse.<br />
Sim, confesso; era o amor próprio atingido. Porém eu tive que atacar aquele<br />
indescritível par de seios, dono de um sutiã cujo número nem mesmo sabia<br />
como calcular. Todavia a mera insinuação que os seus peitos pudessem se<br />
assemelhar aos da vaca leiteira, foi demais. Dolores ainda não acabara<br />
comigo.<br />
No, no! No puedes quejarte jamás, Oscar! O que me pagas és<br />
unicamente la miesma proporción de tamaño de su “pingulim”: Ou<br />
seja, nada! Usted me recuerda a un toro... Un toro capado, Oscar!
VI - O Brasil rendido a “Fúria”<br />
Espanhola<br />
Furiosa como o touro estocado de morte ela se levanta e recoloca a calcinha<br />
de rendas amarelas com pequeno furo numa das nádegas. Continuo olhando<br />
enquanto Dolores abotoa o sutiã lilás. Fixo-me na região do colo e sou<br />
capaz de apostar a vida que naqueles bojos caberiam tranquilamente duas<br />
ótimas bolas de boliche. Depois a vejo dirigir-se à penteadeira, uma peça<br />
antiga que abriga um espelho com algumas ranhuras e marcas do tempo.<br />
E lá ela senta e chora. No início um choro contido, calmo como as mansas<br />
ondas depois do vento sul. Insisto o olhar no espelho e no reflexo da sua<br />
imagem percebo que nela ainda se emoldura algo da nobreza de outrora.<br />
Fidalguia da qual ela se desfaz a cada visita dos nossos hermanos<br />
brazilianos. Visitas que pagam seus favores sexuais, que permitem a sua<br />
subsistência e o pagamento do aluguel dum obscuro quarto de pensão onde<br />
se esconde.<br />
E ela apenas persiste chorando baixinho, sem estardalhaço, e isso me faz<br />
supor as tantas ilusões e mentiras que se fartam nesse meio virtual. E as<br />
coisas tomam formas e cores tão dramáticas que me fazem crer que neste<br />
mesmo momento outras pessoas estão sendo enganadas, lesadas, passando<br />
por situações parecidas ou bem piores que a dela. Ainda penso nisso<br />
quando me levanto da cama e visto a calça, abotôo a camisa e ajeito os<br />
cabelos com os dedos. A noite para nós está irremediavelmente perdida.<br />
REVISTA 39 BEATBRASILIS<br />
Agora o momento era outro; o da necessária solidão para chorar feridas e o<br />
pavor de sair deportada do Brasil. Mais que ninguém, Dolores sabia da<br />
necessidade de voltar para casa. Mas ela é altiva, orgulhosa, não é bandida,<br />
portanto não pretende sair daqui algemada e muito menos pela ação da sua<br />
embaixada "Prefiro ter essa vida de cão a sujeitar-me aos olhares de<br />
desdém dos meus compatriotas" Ela disse ao sair de lá quando lá esteve<br />
numa vez pedindo ajuda para retornar. Óbvio, tinham percebido que ela se<br />
prostituía. E isso a preocupa; eles são orgulhosos, preferem dedurar à<br />
migração brasileira os próprios compatriotas que estejam nessa situação.<br />
Antes que eu saia Dolores já está em pé e veste um robe de cetim rosa onde<br />
notamos visíveis manchas de gordura. Eu insisto com os olhos na sua figura<br />
e percebo que ainda há beleza em seus olhos negros, olhos que<br />
provavelmente já reluziram mais que hoje. Assim que me coloco à saída ela<br />
vem em minha direção com a nota de 50, e enfiando a mão em meu bolso<br />
se livra dela. Faço menção de protestar, de dizer que não quero o dinheiro,<br />
porém ela refuta. E quando Dolores refuta nada a faz retornar. Ao sair ela<br />
beija a minha boca e eu sinto um gosto acre como se ela tivesse degustado<br />
uma salada de alho misturada ao atum. Momentaneamente sinto-me<br />
nauseado e engulo a saliva e fabrico outra na esperança que o gosto se<br />
dissipe ou que amenize.<br />
Ouço o bater da porta e a sua sombra desaparece pela fresta da soleira.<br />
Agora sozinho aguardo alguns segundos e retiro do mesmo bolso duas<br />
notas de 50 e as coloco juntas e as empurro pelo mesmo vão.
La dentro as luzes já estão apagadas, o que me faz crer que Dolores deságua<br />
a dor da saudade com a mesma dolorida frieza dum oceano contaminado<br />
pelo vazamento das petroleiras.<br />
Hasta la vista, baby! Digo ao lançar um beijo na direção da casa <br />
Juro que não sei o porquê, mas gosto de você! Sussurro ao sair pelo<br />
portão e dirigir-me ao ponto de ônibus mais próximo.<br />
Assim que o coletivo estaciona, subo os degraus encapados por uma grossa<br />
borracha negra e acomodo-me no banco ao fundo. O ônibus está<br />
completamente vazio e ainda há em mim um resquício do gosto do alho e<br />
do atum. Abro e olho pela janela e as ruas se desfazem das luzes das casas.<br />
Já é noite quase alta e as pessoas se preparam para descansar no aguardo da<br />
ferocidade do leão diário. No primeiro semáforo vermelho o veículo faz a<br />
parada obrigatória e eu me esforço para fabricar mais uma pequena porção<br />
de saliva.<br />
Ainda continuava nauseado.<br />
REVISTA <strong>40</strong> BEATBRASILIS
REVISTA 41 BEATBRASILIS<br />
Sânzio Barreto
De noite eu ainda a ouvi arrastando os chinelos até o banheiro.<br />
Eu ia me aninhando na sua intimidade a fim de dar aquela tradicional<br />
trepada matinal, quando notei que estava morta. A mulher da minha vida,<br />
personagem principal dos meus sonhos, capítulos inteiros da minha<br />
biografia, desviveu nos meus braços antes mesmo que pudéssemos dizer<br />
que tivemos alguma coisa. Deixou para trás dois filhos, um carro velho,<br />
meia dúzia de carnês e um rastro de sofrimento em todo mundo que tentou<br />
ser inquilino do seu coração.<br />
A gente começou a se ver poucos dias antes. Duas cervejas e uma carona<br />
inocente acabaram em dias inteiros de cama e isolamento do mundo. Não<br />
ousei questionar se não ia voltar para a família, para o trabalho ou mesmo<br />
para suas roupas limpas. Veio com uma malinha simples e se instalou no<br />
apartamento como se a ele pertencesse. Não reclamo. Adorava suas risadas<br />
entremeadas por crises de choro e ataques enfurecidos a geladeira. Resolvia<br />
tudo por telefone. Administrou com quem as crianças ficariam, revezandose<br />
com seus respectivos pais, avós paternos, maternos e quem quer que<br />
pudesse se responsabilizar por eles. Em duas ligações, extinguiu duas<br />
relações afetivas que mantinha a época.<br />
Trouxe também uma bolsa cheia de comprimidos, destino inevitável de<br />
quem faz escolhas erradas na vida. Não perguntei nada. Só agora, buscando<br />
explicar o fato, percebo que trazia consigo doses de desenstristecedor<br />
suficiente para matar uma nação. Também havia muito do que a levou desse<br />
mundo. Misturando tudo, acidentalmente teve uma longa overdose de<br />
remédios para dor.<br />
REVISTA 42 BEATBRASILIS<br />
Deixou para mim o encargo de explicar tudo para o mundo. Legou-me a<br />
dura tarefa de dissipar as suspeitas que recairiam sobre mim. Ninguém diria<br />
que não tive culpa nisso tudo. Seria mais fácil pensar que eu a teria matado<br />
por tê-la forçado a assumir meu estilo de vida. Enquanto vasculho seus<br />
pertences, vou imaginando para quem devo ligar primeiro.<br />
Não vou esconder que segurei sua cabeça no meu colo e passei as mãos em<br />
seus cabelos e chorei muito. Chorei por mim. Chorei por ela, tão delicada e<br />
linda naquele momento. Cada dia da sua vida contribuindo para o<br />
acontecido. Acho que nunca encontrou satisfação embora essa fosse sua<br />
busca desenfreada. Foi a única pessoa que amei. Fui o único que ela não<br />
destruiu a vida.<br />
As 3x4 na sua carteira contam um pouco dessa trajetória curta e dolorida. Se<br />
bem me lembro, este moço é aquele namorado que se matou pouco depois<br />
que ela o deixou para ficar com aquele gringo, de quem ela engravidou da<br />
primeira vez. Foi numa época em que ela tinha percebido que só se daria<br />
bem na vida dando para alguém endinheirado. Aos poucos, o príncipe<br />
encantado virou um cobrador de postura e fidelidade. Na confusão de uma<br />
excursão para a praia, ela deixou o empresário bem-sucedido e foi<br />
amanhecer no muquifo do riponga francês. Sentiu o golpe, sentiu a<br />
desaprovação geral quando teve que voltar para casa, grávida, cheia de<br />
tatuagens e sem um centavo no bolso. Aí já era tarde. O moço da fotografia<br />
deixou uma carta declarando que o motivo era ela antes de jogar o carro<br />
contra a mureta do viaduto.<br />
Ainda muito nova, atraente e misteriosa o suficiente para não ter passado,<br />
achou logo alguém para ser pai do primeiro filho. É esse cara da outra
fotografia, barbudão. É dele que também recebia pensão. O documento de<br />
acordo extrajudicial confirma. Esse eu conheci de porres pela noite da<br />
cidade. Muito antes de ela cruzar seu caminho, era divertido, músico<br />
talentoso e absoluto senhor de si e de sua vida amorosa. Foi um<br />
conquistador de fãs, sempre compositor de doces canções para as<br />
namoradas. Os poucos anos que viveram juntos, pareceram uma família<br />
transbordando felicidade. Parecia que ela ia se redimir da desgraceira que<br />
provocava, parecia que ele não precisava de mais nada na vida exceto a<br />
companhia dela. Foi aí que veio o golpe sob a forma de um “cansei” em<br />
plena noite de natal. Pegou o filho, os trapos e sumiu mais uma vez.<br />
Aqueles que o acompanham de perto, que tiveram coragem de visitá-lo nas<br />
diversas internações de desintoxicação, sabem que seu alcoolismo é oitenta<br />
por cento oriundo desse rompimento. A mim ela alegava que ele não era<br />
mais o mesmo, que ela não aguentava mais a bebida. Conhecendo os dois,<br />
sei que a bebida, dentre outras coisas, era o que os uniu. De repente ele não<br />
servia mais porque bebia. Virou um verme. Hoje sei que precisa de ajuda até<br />
para ir ao banheiro. Nunca mais pisou num palco, seu ganha-pão.<br />
Daí em diante, foram tantos desacertos que nem vale a pena contar. Sei de<br />
um golpe da barriga, de outros golpes e uma migração cansativa por camas e<br />
carteiras risonhas, relacionamentos vazios e lucrativos. Viveu anos com a<br />
REVISTA 43 BEATBRASILIS<br />
convicção de que nascera com um passaporte universal entre as pernas. Sem<br />
pudor me contou essas coisas me abraçando, dormindo de conchinha, me<br />
beijando, parecendo um ser humano.<br />
Queria que tivesse sido diferente. Queria que ela pudesse ao menos ter<br />
remorso, mas ela aceitava sua vida e as decisões que tomou como naturais.<br />
Às vezes ela fingia que sofria para me agradar. Aquilo era só na casca. Por<br />
dentro não sentia nada.<br />
Dois dias antes, um telefonema do então namorado, me deu uma medida do<br />
que ela era. Tratava-se de um recado longo deixado na secretária do celular.<br />
Ela foi até o corredor para ouvir. Do quarto pude escutar meia hora de<br />
desespero, de pranto, de arrancar pena em qualquer um. A luz tinha<br />
acabado por causa da tempestade e, entre um clarão e outro dos<br />
relâmpagos, ouvia-se porquês um atrás do outro. Ela desligou, voltou para<br />
os lençóis com um único comentário:<br />
É um frango mesmo.<br />
Vasculhando sua agenda, não me decido para quem dar a notícia. Pensando<br />
bem, vou deixar ela ai. Vou assistir e gravar ela apodrecendo. Escrota.
UMA MERDINHA<br />
Qualquer*<br />
VITOR SOUZA<br />
“Porra, é o João Napoleão Victor?”<br />
“Sei lá, é uma merdinha dessas aí, uma merdinha qualquer...”<br />
“Caralho, essa merdinha é filho de rico, cacete!”<br />
“Mas é uma porrinha de sete anos... olha aí, nem sangra direito...”<br />
“Não sangra, mas é gente importante, porra!”<br />
“Importante só porque é filho de rico?”<br />
“Claro que é só porque é filho de rico! Tu é muito burro mesmo!”<br />
“Tá, tudo bem, vacilei... mas foda-se! O que a gente faz agora?”<br />
“Agora? Pensa você, porra, não fui eu quem matou o moleque!”<br />
“Tá, vou limpar tudo então, me ajuda aí, pega pelas pernas...”<br />
“Pega sozinho, seu mané!”<br />
“Eu vou me sujar pra caralho!”<br />
“E daí? Tu tá fodido mesmo!”<br />
“Fodido é o cacete! Pega logo pelas pernas aí, vai...”<br />
“Tá, peguei, vamos carregar pra onde?”<br />
“Pra trás da moita. Mais tarde eu jogo no rio.”<br />
“E você acha que até lá ninguém vai dar falta do moleque? Que isso aqui<br />
não vai estar cheio de polícia revirando o sítio todo?”<br />
REVISTA 44 BEATBRASILIS
“Olha só... o pai é viado, tá lá no barracão chupando o pau do caseiro. A<br />
mãe tá na seca, eu vi um garotão arrastando ela pro canil. E tá cheio de<br />
outros merdinhas que nem esse por aqui, correndo, berrando... Não vão dar<br />
falta dele tão cedo!”<br />
“É... até que agora você usou a cabeça, porque é isso mesmo que rola: os<br />
pais ficam trancados lá na casa do patrão e a gurizada largada aqui fora... E<br />
se você ficar parado ali no canteiro, dá pra ouvir as mulheres gemendo e os<br />
maridos se punhetando, dando ordens pros gogo-boys que eles contrataram<br />
enrabarem com bastante força as suas esposinhas...”<br />
“São uns babacas mesmo! Se eu tivesse o dinheiro que esses caras têm,<br />
estaria fazendo programa com a Bruna Surfistinha ou com a Valeska<br />
Popozuda, e não contratando musculoso pra comer minha mulher, não<br />
fode!”<br />
“É, esses ricos são uns depravados mesmo, gente sem moral!”<br />
“Totalmente degenerados, pecadores do caralho!”<br />
“Pode crer...”<br />
“Tá. Agora chega de papo e vamos levar o corpo desse merdinha daqui.<br />
Quero dar mais uma enrabada no cuzinho dele antes de me lavar.”<br />
REVISTA 45 BEATBRASILIS<br />
* Antes que alguém resolva encher a paciência do autor<br />
pelo tom politicamente incorreto do texto, é necessário<br />
esclarecer que “Uma merdinha qualquer” é um<br />
miniconto que se propõe apenas a denunciar a<br />
HIPOCRISIA, mostrando dois degenerados fazendo juízo<br />
de valor dos outros, cujas práticas sexuais não estão de<br />
acordo com o conceito de “moral” deles. Ou seja, é a<br />
velha história do “sujo” falando do “mal-lavado”.<br />
Apenas isso!
new beats on<br />
the block<br />
LEANDRO DURAZZO<br />
Os tempos são novos, os trampos são árduos, a grana é curta. Com sorte,<br />
hoje, a roda se monta em torno de um vidro, de uns tubos, de um fumo.<br />
Amassam-se as baganas e se acende o narguile – narguíle, narguilê, narguilé,<br />
qual seja. Flower Power é passado, não transa mais nada. A onda agora é<br />
Flavor Power, aquele gosto artificial que finge ser um aroma, mas na verdade<br />
não é merda nenhuma.<br />
Dedão na estrada não pega carona, mais. Na estrada, os carros pegam os<br />
dedões, e decepam. O mundo é uma selva de pedra. O mundo é uma bola<br />
de pedra voando pelo espaço, e ninguém acha isso estranho. Ê, volta do<br />
mundo, camará.<br />
Abaixo as estéticas clássicas, abaixo as mágicas, abaixo os cimos, as rimas,<br />
os metros. Abaixo os tetos, e que todos andem engatinhando. Abaixo Dadá,<br />
Dodô e Didi. Abaixo Mussum e Zacarias, mas deixemos uma oferenda a<br />
eles, no jardim.<br />
REVISTA 46 BEATBRASILIS
REVISTA 47 BEATBRASILIS<br />
Fora daqui, já, todos os que se pretendem cult, beats ou intelectuais. Inclusive<br />
eu. Fora aos que sonham, que gritam, que dormem, que morrem; aos que<br />
escrevem merda e aos que escrevem muito. Fora aos que escrevem muita<br />
merda.<br />
O que passou, passou, não volta mais. O que não veio não vai vir, também,<br />
e deixemos de esperanças. O aqui e agora não é nada, só Gil Gomes num<br />
canal de subnível. Perucas, plumas e paetês. Patês de olhos de garça, garças<br />
de canal, de esgoto, urubus de ratos mortos e cachorros dos com sarna.<br />
Presunto de Parma.<br />
Coloquem as velhas imagens num caixão, e as enterrem. Coloquem o<br />
enterro num cartão, de crédito, em 7 vezes sem juros. Eu juro. Mas a mão<br />
na Bíblia não significa mais nada. Fora aos futuristas, aos cubistas, aos<br />
impressionistas e aos impressionáveis. Fora às energias não-renováveis, e à<br />
falta de energia. Viagra de cu é rola. De rola é cu. Ou uma buceta.<br />
Viva o verde, a Vale e a vulva. Por uma energia verde e pornográfica. Por<br />
uma pornografia nacional. Abaixo aos políticos, mas não muito para que<br />
não mostrem os ânus gordos e senhumanidade.<br />
Fora, já, os que estão dentro. E dentro, agora, os que estão fora. Pela perda<br />
de noção, de bom-senso e de eleição. Fora daqui, porra! Diretos já, pra casa<br />
das mães. Ou pra zona. Tanto faz, que eu não vou junto.<br />
Pelo aborto melancólico da melancolia saudosista. Pela morte da melancolia<br />
mal-nascida. Não há nada aqui, nem haverá. Que se matem as fortunas<br />
críticas. Que se peçam tesouros críticos. Que se tenham tesouras críticas. E<br />
que o poder supremo do mundo todo seja afiado feito foice.<br />
E que os fetos nasçam com mais sorte.
Fabrício Busnello<br />
havia sido uma daquelas trepadas inesperadas e enriquecedoras como devem<br />
ser as melhores trepadas. estávamos então fumando um pós coitum:<br />
— (...) e veio um cheiro de café na madrugada - disse ela - e era ele<br />
incrivelmente surreal, por estarem ali dispostos sobre a mesa tantos outros<br />
meios pra se manter insone.<br />
— um mais delicioso do que o outro?<br />
— sim. um mais delicioso do que o outro. e eram muitos. e eu tinha muito<br />
tempo.<br />
suguei da alma um catarro preto inflacionado.<br />
me levantei e me vesti e acendi outro cigarro.<br />
— vou cagar, eu disse.<br />
e nunca mais voltei pr'aquela cama.<br />
REVISTA 48 BEATBRASILIS
Fabrício Busnello<br />
essa letra torta derrama sobre a minha<br />
vida uma conotação estranha de realidade.<br />
sou eu aquele que me confronta!<br />
é minha essa idade fora do tempo que<br />
me inquieta e machuca!<br />
sei pra quem veio esse passado confuso<br />
que há de embriagar ainda<br />
quatro gerações de loucos<br />
e sei onde esta meu filho querido e<br />
assassinado dentro do teu corpo,<br />
pois embalo cansado em meu colo uma canção de<br />
vida que não dorme nunca.<br />
em minha rede repousa uma meia-lua<br />
inquieta de inverno que se recusa a encher<br />
e sobre a minha cama a própria noite<br />
abre as pernas e me mostra a umidade do amor;<br />
e entao eu escorrego lânguido e frouxo e<br />
olhos semicerrados. sou um cárcere estúpido<br />
de mim mesmo e ali eu permaneço num escuro adocicado.<br />
embaralho sonhos com mãos suadas e sobre a mesa<br />
de vidro os disponho de forma errada.<br />
essa é a sina do vencido!:<br />
saber de coração que não existe vencedor!<br />
(seca teus olhos lindos, minha vida:<br />
eis a manga da camisa mais bonita!<br />
mancha o cetim com tua tristeza!<br />
me corta o pulso com esta fina alegria!).<br />
REVISTA 49 BEATBRASILIS
REVISTA 50 BEATBRASILIS<br />
Daniel Caldas<br />
mi barrio a cavallo.<br />
me vuelvo a Lanús. aunque a mi me falte un diente. El dolor uno no lo<br />
siente.<br />
Yo lo hablo en fiestas con chicas y mesas puestas. Jodido. Callado. no<br />
le doy un pedo. Ellos solo me lo dan una yapa.<br />
Y incluso! Hay una Feria. Donde las monjas se encuentran. Las dos son<br />
abogadas. De una crises injusta. Pero sus polleras me hacen ver cosas<br />
lindas. Lo que sienten ustedes? Los vagos que mienten. La Lentidón que<br />
a mi me alcanza trás una de las suyas. Acá te veo cargándome.<br />
Sobrevivirte. No, me duele a la panza. !Que tema de mierda! À las<br />
siete te espero. Sé que Ustedes hablan el inglés. En una Londres<br />
pobrezita! Y igual ahora los diários son vários. Eso es Lanús el de la<br />
Recoleta. Cartoneàndome estoy... al parador nocturno me voy!
O NORDESTE DA<br />
MINHA VIDA<br />
Cícero Bezerra<br />
Aqui nesta manhã cinzenta e chuvosa<br />
Feliz contemplando os trovões e relâmpagos<br />
Dessa nossa natureza maravilhosa<br />
Do meu quarto solitário ouço emocionado<br />
O som da chuva batendo e escorrendo<br />
Por todo o telhado até cair no chão<br />
O cheiro da terra molhada invadindo<br />
Por completo a mim e toda a vastidão<br />
Aqui estou de volta ao nordeste da minha vida<br />
As lembranças prazerosas da minha infância linda<br />
E aos meus velhos amigos cultos, bêbados e chapados<br />
Aos meus velhos amigos loucos, vagabundos iluminados<br />
E as inúmeras recordações felizes e tristes preenchidas<br />
Por nossas histórias cheias de sorrisos e gargalhadas<br />
E a saudade eterna que fica de quem jamais voltou<br />
Mas dentro de cada um de nós o que sentimos nunca mudou<br />
REVISTA 51 BEATBRASILIS
JEFFERSON AIRPLANE<br />
Marcus Vinícius Marcelini<br />
I found her in the alley<br />
the desolation road.<br />
Ela é formada em letras<br />
e dá aula em cursinhos de inglês,<br />
o mundo manda um rugido a todo momento<br />
e não sei como a vida me fez,<br />
esse moleque diz que já viu tudo<br />
no auge dos seus treze anos<br />
cospe com um cachimbo na mão.<br />
Ela dá aulas de inglês<br />
e guarda a cerveja preta que lhe dei,<br />
ouço seus passos ainda na chuva<br />
pernas pelo bar,<br />
esse moleque que viu tudo<br />
diz que a viu passar,<br />
tenho três palavras que não me saem da cabeça<br />
e uma intangibilidade em pronunciá-las<br />
quero essa cerveja preta<br />
essa minha preta<br />
preta<br />
beijando um hash ao luar.<br />
REVISTA 52 BEATBRASILIS
SOLIDÃO<br />
Mateus Marcelini<br />
cinco da matina. chego em casa sozinho, sento no sofá, acendo um cigarro. as<br />
luzes apagadas. as pernas dela ainda estão marcadas no<br />
fundo dos meus olhos, e pra onde quer que eu olhe lá<br />
elas estão, a se cruzar, chegando à divisão da bunda<br />
coberta pelo short jeans, do tamanho da mão. eu sei<br />
que ela é como eu, como você, e nesse momento deve<br />
estar em sua cama, sozinha, agarrada ao cobertor, ou<br />
abraçada ao travesseiro, sonhando com alguma coisa.<br />
eu só precisava saber com o que. eu só precisava dizer<br />
alguma coisa. eu só precisava me aproximar lentamente<br />
de sua boca. a mão puxando pelo braço. a outra no<br />
rosto, talvez. e meus amigos com suas namoradas, seus<br />
casos de alguns dias, suas putas, ou suas garrafas na<br />
mão. o cachorro do estacionamento atrás do prédio não<br />
pára de latir, ele não tem culpa, todas as noites latindo<br />
sem fim, é só o que se ouve na rua deserta, seu latido<br />
sem fim, até que alguém jogue pelo portão sua última<br />
refeição, e na noite seguinte não se ouça mais o latido<br />
solitário do cachorro sem fim. os homens querem<br />
silêncio em seu sono descanso merecido. pois que<br />
tenham seu silêncio, e que façam sua refeição pela<br />
manhã, enxaguem o rosto, coloquem aquela roupa de<br />
trabalho, e façam o que tiverem de fazer, sejam senhor<br />
sejam escravo, sejam patrão ou funcionário. as pernas<br />
dela eram brancas quase rosadas, e minha fome cresce a<br />
cada dia. minha vida some a cada instante, nos pêlos<br />
que crescem no meu rosto e em tudo o que eu planejo<br />
um dia fazer. incluindo todas as pernas que já estiveram deitadas em minha cama,<br />
REVISTA 53 BEATBRASILIS<br />
pelas quais meus dedos corriam de madrugada. eu nunca consegui dormir ao lado<br />
de uma mulher. você pode imaginar os motivos. eu nunca fiz psicanálise. mas<br />
como sonham essas mulheres. como respiram fundo, com seus peitos de variados<br />
tamanhos se expandindo e retrocedendo, seus narizes de formatos diversos<br />
soltando e puxando ar, assoviando em tons agudos. os olhos fechados. como são<br />
belas as mulheres quando dormem. e até no momento em que acordam, serenas e<br />
calmas, complacentes, a beleza do sono ainda resta em<br />
seus olhos semi-abertos e em seus movimentos lentos.<br />
depois do sexo, parecem esquecer suas angústias de<br />
mulher e simplesmente respirar. mas a solidão nos chama<br />
de volta como a mulher mais fiel e a primeira, mítica<br />
companheira. tão sutil, tão rasteira, ela não bate na porta,<br />
não liga nem manda mensagens. quando você menos<br />
espera, ela está deitada ao seu lado, com as pernas<br />
cruzadas, e você não consegue parar de olhar para elas. as<br />
pernas brancas no fundo dos olhos. as pernas brancas que<br />
já foram morenas, que já foram bundas, cabelos, bocetas,<br />
bocas e olhos, já foram pés delicados. cinturas e vozes.<br />
pescoço quente com cheiro de criança. e ela estava me<br />
esperando aquela noite, numa encruzilhada, eu vi, mas<br />
não foi dessa vez. ela até se vestiu com a roupa que eu<br />
gosto, aquele vestido preto curto, mas não foi dessa vez.<br />
ela espera o dia que eu seja só dela, mas não foi dessa vez.<br />
eu ainda resisto, respirando, e ela deitada com a cabeça<br />
sobre as minhas pernas, me olhando nos olhos, as pernas<br />
brancas cruzadas ao longo do sofá, mas ela sabe que<br />
amanhã eu posso me dar bem, e posso não voltar. ela<br />
sabe, e deve ter colocado alguma coisa no meu copo, pra<br />
me fazer dormir, me puxando pelo colarinho, me<br />
beijando no rosto, eu me deito sem medo, e sei que ela<br />
não vai me deixar ir pro trabalho... que se dane. hoje a<br />
noite é dela.
Marcus Vinícius Marcelini<br />
“Mulher que máquina és que só me tens desesperado”<br />
(Vinícius de Moraes)<br />
Tem um poema que não se declama, só com o pensamento fica-se<br />
atordoado por certo tempo, como um cão uivando pra lua. Era uma dessas<br />
que ele estava procurando, sentado na varanda de uma casa alugada no<br />
calçadão de Caraguatatuba ao lado de um bar boa pinta. Tentando<br />
desmistificar a poesia, ou melhor, o fazer poético, que se tornara tão<br />
banalizado em livros comerciais e blogs de lirismo comedido. Não, não<br />
tinha nenhum interesse nisso.<br />
REVISTA 54 BEATBRASILIS<br />
Ela passou e sorriu. Poxa vida, que sorriso maravilhoso.<br />
Que sorriso maravilhoso, escreveu.<br />
Não, não era isso. Ela passou voltando e ele escreveu então:<br />
Nunca ansiei uma mulher muito bonita<br />
Ou farta de talentos corporais<br />
(nádegas, peitos ou coxas)<br />
Mas aquela mulher era demais.<br />
Seria isso ou o que se escondia nas entrelinhas? O não dito? E assim pegou<br />
seu copo e entrou em casa, encheu-o de um suco de saudades, denso como<br />
um pirão mal cozido. Era assim que se sentia, um pirão mal cozido. O que<br />
significaria isso? Então escreveu a ficção, a ficção que não era nada além do<br />
real:<br />
Os passos se arrastavam pelo chão<br />
no soar das velhas botinas<br />
caminhando, frias, até o balcão.<br />
- Uma dose, por favor.<br />
Dois copos são enchidos até a boca,<br />
ele me empurra o meu e vira o dele.<br />
- Dia duro? – me pergunta.<br />
- Mulheres. – respondo e viro minha dose.<br />
Quem sabe a ordem dos fatos não tenha sido bem essa ou a folha branca<br />
nunca tenha estado sem palavras. Quem sabe ela nem tenha passado<br />
novamente, mas passou.
Ei, garota! Isso é seu, de qualquer maneira.<br />
Ela sorriu.<br />
Que sorriso maravilhoso. Era tão maravilhoso que só foi reconhecer as<br />
demais formas do rosto dela três dias depois. Tão maravilhoso que não<br />
achava mais o sorriso algo supervalorizado. Mas tampouco sorria. Ela o<br />
conduziu para um lugar estranho, o vento balançava tudo, uma fumaça<br />
característica não deixava a cabeça no lugar, talvez depois disso ele nunca<br />
mais conseguisse colocar a cabeça de volta no lugar. Beijou-a de leve.<br />
Depois com furor. Depois pediu sua calcinha. Era linda. Mas seu sorriso era<br />
mais lindo ainda. Ele preferiu o sorriso.<br />
Por que os abraços são a deixa da separação? Os abraços apertados, o<br />
coração disparando contra os peitos fartos. Realmente a cabeça dele nunca<br />
voltaria ao mesmo lugar, a poesia, de tão atormentada, se misturaria à prosa<br />
e seria para ele já tão indistinguível qualquer tipo de escrita que nenhum<br />
sentido o interessaria. Apenas o sem sentido.<br />
Ei, garota. Que sorriso lindo. Deixe-me vê-lo novamente.<br />
Não. Não há mais sorrisos.<br />
Tampouco há poesia.<br />
Quinze folhas em branco estão crescendo sobre a escrivaninha. Ninguém<br />
mais sabe escrever poesia. Poesia do corpo. Ninguém mais sabe dar<br />
REVISTA 55 BEATBRASILIS<br />
sorrisos. Sorrisos despretensiosos. Foi tudo assim. Dois ou três sorrisos.<br />
Quinze poemas de amor manchados de café. Ele com cabeça estourando<br />
num sol qualquer que nunca desejou permanecer, sempre tentando fugir de<br />
casa sem realmente fugir de casa. Existiram outros sorrisos, assim como<br />
outros poemas. Nada muito interessante. Afinal, quase nada é.<br />
Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e<br />
disca para algo chamado amor.<br />
Tem pensamentos que dissolvem conexões neuronais e todo o sentido é<br />
perdido pelo caminho, toda a gênese de patologias não orgânicas.<br />
Abre a geladeira, furta três pedaços de pão e o requeijão, pega o telefone e<br />
disca pra ela. Ninguém atende. Veja bem, a vida é pra valer.
ELA PEQUEI<br />
Julieta Puy<br />
REVISTA 56 BEATBRASILIS
Afinal de contas, pra que conjugar o personagem em terceira pessoa se o<br />
personagem sou eu mesma?<br />
Eu, que acreditava na verdade da monogamia. Que acreditava que a<br />
conquista do autocontrole brilhava mais do que ouro, eu acreditava no<br />
pecado contido na maçã.<br />
De repente, como um rio tranqüilo que não espera a tempestade, a<br />
tempestade acontece. O rio acontece. (não posso deixar de notar como<br />
tenho sempre a previsível necessidade de usar metáforas meteorológicas<br />
para fazer certas associações).<br />
Mas enfim, eu estava falando do que mesmo? Ah, do quanto eu gosto de<br />
ouvi-lo cantar. E de como a voz dele é como um mês de junho na selva<br />
tropical, então eu me chovo toda. Tempestades são involuntárias, naturais e,<br />
portanto, maravilhosas.<br />
Sucede que minha vida quase se converte numa versão tupiniquim de Jules<br />
et Jim, maravilhosa película de François Truffaut. Algumas coisas ditas<br />
naquele filme não me saem da cabeça. Aliás, coisas perturbadoras, assim<br />
como aqueles fios de cabelo de fogo, não têm me saído da cabeça<br />
ultimamente. A personagem Catherine, bastante chegada num frisson, se<br />
apaixona por dois amigos. Adoram-se, os amigos. A adoram, os amigos. Ela<br />
adora os amigos. Mas toda metamorfose é dolorosa, se não fosse assim a<br />
palavra metamorfose não teria tantas letras, nem um r antes do f, é mesmo<br />
estranha. E processo? Processo é uma palavra dessas que chegam a ter um<br />
cê e dois esses, tal a complicação do sentido, tal a profundidade do mar do<br />
REVISTA 57 BEATBRASILIS<br />
autoconhecimento. Querer mudar sem risco é em vão, mas eu diria que<br />
mais em vão ainda é tentar mudar sem ter a certeza da incerteza e<br />
reconhecer em si e nos dois amados almas que se querem, que querem estar<br />
vivas. Começando por aí talvez se chegue mais fácil a uma visão mais justa<br />
(ou mais conveniente - me esforçarei para não ser muito hipócrita).<br />
Trata-se do famoso trio amoroso, um verdadeiro power trio.<br />
A culpa não existe se entendemos que o egoísmo é o que move o mundo.<br />
Enquanto eu não tiver meus girassóis floridos, de nada me servirá um dedo
verde, pois eu não conseguiria fazer florescer os girassóis de mais ninguém<br />
se não soubesse amar a minha própria botânica.<br />
Mas existe uma coisa, coisa essa que eu prefiro dizer em francês: la société.<br />
E desde que me entendo por gente, la société me diz que o coração deve ser<br />
de um por vez, tal qual catraca de metrô. E que deve ser de alguém, a posse.<br />
REVISTA 58 BEATBRASILIS<br />
Como pode, a posse? E por causa da société, chego a considerar que, ao<br />
pensar no "outro", o affair (franceses são poligâmicos), estou tendo que tirar<br />
tempo da conta do meu marido pra depositar na conta do amante.<br />
Tempo, cabeça, coração, camisinha, telefonemas inapropriados; tudo acaba<br />
indo pra mesma panela, aquela que cozinha amor com a chama alta.<br />
É uma linda situação de merda esta<br />
Linda, porque abunda em paixão e dúvida e seria um roteiro quente pra<br />
qualquer arte<br />
E de merda, porque é um campo minado<br />
Há que se ter cuidado ao pisar, e pensar se à hora é mesmo a de pisar ou de<br />
levitar pra longe. Ou se a hora é de não pensar. Mas como não dar<br />
importância ao coração, que é quem decide o que tem importância?<br />
Talvez por ser tantas, eu não consiga amar um só. Se tantas Evas mal cabem<br />
em mim, preciso levá-las pra passear, pra modo de eu arejar as janelas de<br />
minh'alma<br />
Não é que procure sarna pra me coçar<br />
É que eu tenho muito amor pra dar<br />
Mcdonalds ama muito tudo isso, pois eu amo muito todos eles<br />
E detesto tudo isso<br />
Tudo isso que reprime, que não come com casca, todas as seringas de moral<br />
que me injetaram a vida toda, você que fuma e não traga.<br />
E a société me abandona agora nessa rua sem saída
Eles se completam, eles me completam. E nessa completição toda, existe o<br />
medo de ferir, o medo do fim de algo, o medo de não saber bem o que é<br />
amor.<br />
Este texto não é a necessidade de contar nada a vocês<br />
É a necessidade de explicar algo pra mim mesma<br />
Artaud disse que viver é arder em perguntas<br />
Logo, posso afirmar que estou vivendo muitíssimo,<br />
Meu suspiro deve estar vagando pela cidade agora<br />
Vou tentar não pensar em não ter que pensar no que me tenta<br />
Fica a vontade, ficamos na vontade<br />
Pra que tanto falar sobre<br />
Melhor beijar sobre<br />
Mas isso implica em dementes jogos da mente<br />
Nem a mentira se atreve mais.<br />
Porque penso que agora mesmo, ao invés de estar aqui, a teorizar sobre algo<br />
que contém todo o teor da anti-teoria,<br />
Eu poderia estar vendo espetáculos de luz enquanto esse sol de fim de<br />
inverno queima os cabelos daquele<br />
Ou poderia estar catando esperança na cesta dos negros e infinitos olhos do<br />
outro<br />
O fato é que nenhum dos dois está aqui<br />
E é nessa hora que os amo mais<br />
Ainda;<br />
REVISTA 59 BEATBRASILIS<br />
Quando os vejo com certa distância<br />
E se é bem verdade que a distância dá casa, comida roupa lavada às<br />
idealizações,<br />
Também é verdade que ela define, ao separar dois corpos e duas<br />
consciências: longe, sabemos que cada um é um, é algo que não se<br />
questiona, pois se vê. Ou não.<br />
E juntos nem sempre temos esta certeza<br />
Os corpos se confundem, se fundem, se unem. Um.<br />
Esta mulher aqui não quer mais ter que fingir que está lembrando que<br />
amanha tem que pagar o aluguel quando estiver pensando no entrefechar<br />
dos olhos do amante quando lhe agarrou as bochechas da bunda, na
sacanagem sacramentada numa cama que não é a minha, que não preciso<br />
chamar de minha.<br />
Como raulzito<br />
Que queria tocar fogo no inferno<br />
A agonia egolescente<br />
De querer saber quando de novo<br />
- E de novo, quando hein?<br />
Mas tudo fica muito tranqüilo do ponto de vista deste Chopin, um pianito<br />
sempre embala qualquer quarta-feira<br />
E assim tomo meu café melancólico<br />
REVISTA 60 BEATBRASILIS<br />
Que fica úmido e metafórico<br />
Querendo entender comigo esse labirinto (é muito brega usar labirinto para<br />
se referir a questões amorosas?)<br />
Esse triangulo pode ser visto de vários ângulos<br />
Por se tratar de um triângulo mais amoroso, já que tem amor em todas as<br />
direções<br />
Mas com algumas fronteiras burocráticas, isso sim<br />
Lampejo de felicidade:<br />
é fantástico saber que se é a fantasia de alguém<br />
Mexo com ele, mexo com meu ego<br />
Será porque que estamos no mês de Egosto?<br />
Lampejo de tesão:<br />
é assim, somos hormônios e outras coisas invisivelmente inexplicáveis<br />
Queremos, queremos e queremos agora<br />
Queremos tudo, o marido, o amante, o feijão com arroz e a lagosta de cada<br />
dia<br />
Se não fosse por essa cãibra de euforia entre as pernas<br />
Por rir sozinha no meio da farmácia<br />
Os olhos e as covinhas denunciam que algo de extraordinário andou<br />
acontecendo<br />
E me golpeia essa saudade de algo tão sem sentido<br />
Tão descolocado<br />
Que concluo que é justamente essa falta de propósito
O que faz com que amantes tenham uma relação natural, orgânica mesmo<br />
Amantes se amam<br />
Se encantam<br />
Não se burocratizam<br />
E se separam sempre querendo não ter que voltar pra casa<br />
Querendo andar loucamente na garupa do outro e se derramar cerveja no<br />
banheiro.<br />
Mas Eva é desapegada e ainda culpas os astros, que a fizeram nascer neste<br />
interminável aquário de amor<br />
E a fazem incompreendida por só querer saber de blues, velas e banhos<br />
masturbados<br />
E fuma como nunca, a pobre Eva<br />
E pensa em como a física separa as pessoas<br />
Maldita física, Eva sempre a detestou<br />
E já está a culpar alguém de novo, nem a pobre e digna física se salvou<br />
Foi a própria société que criou os moralismos<br />
E códigos ávidos por obediência<br />
Ora, se sou parte da sociedade, então cabe a mim mudar tais códigos<br />
Pelo menos dentro de mim<br />
Beatniks querendo me levar por algum caminho<br />
On the road, any road<br />
Se é bom ou mau, é tudo uma questão de ponto de vista e de espelho<br />
retrovisor<br />
Os livros me confundem mais<br />
REVISTA 61 BEATBRASILIS<br />
Ou me inspiram tanto que saio decidindo coisas<br />
A arte a serviço do impulso<br />
Raul Seixas me diz cada coisa<br />
Tudo é interpretável, associável e identificável<br />
Pois interpreto, associo e identifico<br />
Não tem Pepsi - Cola que sacie, não tem<br />
Truffaut me diz coisas<br />
Todo mundo me diz coisas<br />
Meu coração então, não cala mais a boca<br />
Simone de Beauvoir nasceu em 1908<br />
E fez confissões que clitóris nenhum da época sonhava em tremer sobre<br />
Cento e quatro anos depois, cá estou, cá estamos, na mesma repressão<br />
Falo por mim, não posso falar por outras,<br />
Não estou a levantar bandeira de nada<br />
Não sou feminista<br />
Sou serista<br />
Só quero ser<br />
E como quero tanto,<br />
Me pergunto se não haverá mais gente nesta situação medonha<br />
De se estranhar por não entender como cabe tanto sonho
A BORBOLETA<br />
TRANSPARENTE<br />
Gabriel Megracko<br />
REVISTA 62 BEATBRASILIS
Certo dia, no meio da tarde, havia saído da casa da minha namorada, na rua<br />
Frederico Abranches, e estava entrando nas dependências da estação Santa<br />
Cecília, do metrô. Quando me aproximava da catraca, em meio a uma<br />
aglomeração densa mas fluida de pessoas, avistei algo voando. Passou na<br />
minha frente, perto do chão e desviou das pessoas habilidosamente, o que<br />
provava que tinha uma direção independente do ar. Curioso foi que logo que a<br />
avistei me acometeu a sensação de que, apesar de eu nunca ter visto aquilo<br />
antes e nem ouvido falar, estava vendo exatamente o que imaginava. Saí, meio<br />
como ela, mas à moda humana, desviando das pessoas, que desviavam de nós<br />
dois com gestos parecidos, salvo as proporções dos dois corpos.<br />
Desvencilhei-me das pessoas e a segui. Ela havia pousado em um lugar onde<br />
não passavam pessoas, próximo de uma parede que perto fazia vértice com<br />
outra, formando meio cubo retangular, fazendo-se obsoleto na disposição da<br />
coisa toda; o palco perfeito para o meu público alumbramento. Me agachei<br />
perto dela, mas não muito para não espantá-la, murmurei alto "Cara, é uma<br />
borboleta transparente mesmo!" e sorri. Tinha um contorno preto<br />
arredondado em torno das asas, tão transparentes que dava pra reconhecer as<br />
sistemáticas saliências arredondadas do chão preto emborrachado. As linhas<br />
eram grossas e duas delas saíam de onde suas asas se ligavam ao corpo e iam<br />
em curvas suaves terminar nas costas das asas. Observei seu desenho por coisa<br />
de um minuto ou menos, porque um sujeito estava vindo na minha direção, e<br />
falava comigo. Tentei ignorá-lo por medo de que viesse e espantasse a<br />
borboleta, mas ele continuou vindo. Quando chegou mais perto entendi o que<br />
estava me dizendo. Me perguntava se eu estava passando mal. Disse pra ele<br />
que estava olhando uma borboleta transparente. Ele pareceu não ter ouvido e<br />
chegou à minha frente. Eu dizia pra ele tomar cuidado com a borboleta, mas<br />
ele sequer olhou para onde eu apontava. Seu pé parou a uns dez centímetros<br />
REVISTA 63 BEATBRASILIS<br />
da borboleta, que para ele era idêntica ao chão onde estava pisando. Tudo não<br />
tinha demorado mais de dois minutos, e eu estava já muito afetado pela<br />
situação. Enquanto ainda agachado apontava para a borboleta e falava com o<br />
sujeito, que ignorava o que eu estava dizendo como se estivesse vendo uma<br />
alucinação, um velho também se aproximava. Entendi rápido o que dizia.<br />
— Olha a borboleta aí, você vai pisar nela! Aí no seu pé - disse o velho pro<br />
outro. Aí me levantei. Como se duas pessoas dizendo a mesma coisa tornasse a<br />
coisa real de repente, o imbecil finalmente olhou para a borboleta.<br />
— Olha, é verdade! Olha a borboleta aqui! — disse — Eu achei que você<br />
estava doido, cara, ou passando mal, não tinha visto a borboleta --, abaixou,<br />
pegou a borboleta pelas asas e levantou. Eu sentia uma aflição aguda pela<br />
dissolução tão rápida de evento tão inédito pra mim.<br />
— Cara, cuidado com a borboleta! Olha o que você tá fazendo — eu disse.<br />
Não lembro o que aconteceu com o velho. Não lembro o que me respondeu o<br />
sujeito, na hora. Sei que ele soltou a borboleta, ela saiu voando e foi embora.<br />
Entre o meu desejo de ver cada milésimo da vida daquele ser e o impulso de<br />
assassinar o mentecapto, ele disse que a borboleta estava transparente porque<br />
estava mudando de pigmentação. Pela primeira vez prestei atenção no homem.<br />
Percebi que ele me olhava como eu olho pra uma mulher e entendi então a<br />
cena toda. Ainda dizia alguma coisa sobre a pigmentação da borboleta<br />
enquanto se distanciava.<br />
Como a borboleta não estava mais lá, eu estava atrasado para o trabalho e com<br />
vontade de cometer um homicídio, me dirigi para a catraca, encostei o cartão<br />
no negócio de encostar o cartão e girei a roleta.
REVISTA 64 BEATBRASILIS
Quando o despertador toca, ainda está escuro. Carlos levanta sem muita<br />
dificuldade e caminha até a janela noroeste do pequeno chalé de madeira. Há<br />
poucas nuvens ao alcance da vista e uma brisa suave impõe movimento aos<br />
cumes das árvores mais altas. Mas o que lhe chama a atenção mesmo é a<br />
imponência da mesma lua cheia que na noite anterior ele admirou por trinta<br />
minutos antes de ir dormir, acompanhado de um cigarro de palha e uma cerveja<br />
quente. Ver o astro radiante “morrendo” por trás da serra e iluminando todo o<br />
vale é uma ótima forma de começar o dia. Dia que encerra mais uma semana de<br />
trabalho na reserva florestal que Carlos ajuda a monitorar. É sexta-feira e só para<br />
não perder o hábito, ele murmura um “vamos lá” antes de dar as costas à<br />
paisagem e sair para sua higiene matinal.<br />
Toma seu café da manhã ouvindo um som maneiro, do velho Raul, na vitrola<br />
carcomida pelos cupins. Ele até possui computador portátil conectado a um<br />
moderno e compacto sistema de amplificação, mas o som chiado e estalado de<br />
radinho de pilha que vem do aparelhinho marrom possui charme e mil<br />
quinhentos e trinta e seis significados para Carlos.<br />
Ao sair do chalé com sua mochila e caderno de campo, o dia já está mais que<br />
ofuscante. Carlos abre as portas laterais da van e confere todo o material de<br />
análise de que vai precisar. Também verifica o estado dos equipamentos de<br />
proteção individual que irão cobri-lo ao longo do dia. Depois dirige por uma<br />
estrada de terra por meia hora e entra sorrateiro no escritório de administração<br />
da reserva. Os demais funcionários ainda não chegaram. Ele deixa um farnel frio<br />
ao lado do vigia que dorme profundamente, bate seu ponto e sai.<br />
Durante parte da manhã, Carlos coleta e faz análises de amostras de solo e água.<br />
Um riacho e um pequeno lago são os corpos hídricos que ele monitora. O lago é<br />
o mais crítico, pois está situado em uma das extremidades do parque e já sofre as<br />
consequências da especulação imobiliária que sem fiscalização instalou-se ao<br />
redor daquela Unidade de Conservação. O riacho tem sua nascente na área onde<br />
a mata atlântica apresenta-se em sua forma mais preservada, ou seja, no alto da<br />
serra. Então não há o que se falar em grande influência antropogênica.<br />
REVISTA 65 BEATBRASILIS<br />
A outra metade da manhã ele dedica ao levantamento de fauna que pretende<br />
citar no relatório anual a ser encaminhado ao Instituto. Para isso confere as<br />
memórias das armadilhas fotográficas que instalou em pontos aleatórios da mata.<br />
Descarregar aquelas imagens no tablet virou momento ultra expectativa para<br />
Carlos, pois ele nunca sabe o que elas irão mostrar...<br />
Às treze horas, Carlos está de volta ao seu abrigo. Devora feijão com soja<br />
enquanto assiste o telejornal do almoço, bebericando uma dose de conhaque.<br />
Depois liga o barulhento ventilador de teto e se esparrama na cama rústica a fim<br />
de fazer sua cesta. O despertador o levanta às quinze horas. Hora de redigir<br />
relatórios e enviá-los à administração da reserva via conexão weireless. Hora<br />
também de responder e-mails, navegar pelas redes sociais das quais participa,<br />
atualizar seu blog e estudar as coisas sacais que seu ofício exige que ele estude.<br />
Quando termina, a noite já está alta. Ele coloca um traje riponga e caminha por<br />
trinta minutos em meio ao breu a fim de ter com os amigos do Coletivo Pataxó.<br />
Carlos proseia animado, toma cachacinha com garapa em simpáticos copos de<br />
bambu, batuca num bongô, expele fumaças ilícitas e troca olhares com uma<br />
inglesinha que está ali fazendo intercâmbio e não fala vinte palavras em<br />
português, sendo que ele não fala dez em inglês.<br />
À meia-noite, Carlos está novamente sozinho no pequeno chalé de madeira onde<br />
tem vivido os últimos vinte anos da sua vida. Dos parentes não tem mais notícias<br />
e apesar dos seus quarenta de idade, não constituiu família. Uma pessoa sensata<br />
diria que Carlos deve ser um sujeito muito solitário e infeliz, mas ela estaria por<br />
certo enganada. Na verdade Carlos é um homem quase realizado, pois sente que<br />
está fazendo exatamente o que deveria fazer. Só falta agora comprar o seu “fusca<br />
verde”, colocá-lo pra funcionar com algum biocombustível feito em casa e<br />
compartilhar em seu blog, sob licença livre, a solução química que encontrou.<br />
Esse com certeza será um grande dia para ele.<br />
Enfim, essa é a vida de Carlos.
REVISTA 66 BEATBRASILIS
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REVISTA 67 BEATBRASILIS