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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E PRÉ-<br />
ALAS BRASIL<br />
04 A 07 DE SETEMBRO DE 2012<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ<br />
TERESINA – PI<br />
GT 23 – ECONOMIA SIMBÓLICA E POLÍTICA DOS AFETOS<br />
À Procura de um Herói: a disputa entre Lampião e Mossoró na<br />
literatura de cordel<br />
RESUMO<br />
Karlla Christine Araújo Souza(UERN) - karlla_chris@yahoo.com.br<br />
Isadora Ingrid Augusto da Cruz(UERN) - isadora.cruz@hotmail.com<br />
Ridna Maria Tavares(UERN) - ridnatavares@homtail.com<br />
A Invasão do bando de Lampião a Mossoró-RN em 1927 foi um acontecimento<br />
histórico que gerou grande repercussão cultural, atestada pela quantidade de<br />
folhetos produzida por poetas locais. Neste trabalho, elegemos “O Ataque de<br />
Mossoró ao Bando de Lampião” de Antônio Francisco, em que a história ganha<br />
uma (re)modelagem e passa-se no inferno, onde Lampião vence um festival de<br />
talentos e ganha um passe para viajar, escolhendo vir para Mossoró, onde a<br />
invasão acontece em dias atuais. No folheto “Defesa de Lampião” de José<br />
Augusto, ocorre uma inversão dos fatos, o autor conta que Lampião foi<br />
enganado pelo prefeito, que garantira não revidar com violência caso entrasse<br />
na cidade. O folheto aponta que o prefeito desejava apenas ganhar fama.<br />
Desse modo, a experiência coletiva foi refigurada na narrativa poética e a<br />
continuidade da “voz viva” apresenta disputas culturais e denúncias políticas.<br />
1
INTRODUÇÃO<br />
Uma cidade do Oeste Potiguar, localizada entre duas capitais, Fortaleza<br />
e Natal, que tem sua principal fonte de renda baseada na indústria salineira, na<br />
produção de petróleo, na extração de calcário e na agropecuária, tendo em sua<br />
área urbana maior rentabilidade no comércio e prestação de serviços. Mossoró<br />
está em crescente ascensão econômica tendo ganhado também considerável<br />
visibilidade culturalmente falando. Mas nem sempre foi assim, esta que é a<br />
segunda maior cidade do Estado do Rio Grande do Norte, ficando atrás apenas<br />
da capital Natal, já foi uma pacata cidade do sertão nordestino que se<br />
desenvolvia timidamente.<br />
No ano de 1927, mais especificamente a 13 de junho esta história<br />
ganhou novas personagens e a partir de então uma forma particular de integrar<br />
no contexto cultural. Esta foi a data em que Virgolino Lampião, cangaceiro<br />
temido em toda região nordeste do Brasil, chefiando seu destemido bando,<br />
invadiu a cidade de Mossoró. Mas o que na verdade ganhou maior destaque foi<br />
a defesa arquitetada pelo então prefeito Rodolfo Fernandes, o coronel, o padre<br />
e alguns mossoroenses, conseguindo derrotar o bando de cangaceiros, que<br />
fugiu em retirada.<br />
A partir deste feito não seria apenas uma cidadela comum, mas a cidade<br />
que derrotou Lampião, o lugar da resistência. Segundo contam, o município<br />
não seria mais o mesmo, pois esta conquista lhe proporcionaria respeito e um<br />
considerável destaque com relação às demais cidades. Este acontecimento<br />
histórico não se fixou apenas nas páginas do passado, repercutindo nos dias<br />
atuais com força suficiente para assegurar seu estatus de “terra da resistência”.<br />
Em conseqüência deste acontecimento que engrandeceu a cidade, Mossoró<br />
ganha o título fictício de “País”. Dentro deste contexto de tamanha resistência e<br />
coragem ser apenas cidade parecia uma modéstia inaceitável, tendo no título<br />
de país a suficiência necessária para expressar sua grandiosidade.<br />
A história da invasão do bando de Lampião a Mossoró tem passado<br />
pelas gerações, dando a este município a possibilidade de ser não apenas<br />
2
território, mas um lugar, um “País”. No território, como é comum, principalmente<br />
na atualidade, há violência, desigualdade e problemas de infra-estrutura. No<br />
lugar, há respeito, desenvolvimento e acima de tudo, liberdade (FELIPE, 2001).<br />
Vale salientar que a invasão do bando de Lampião a Mossoró tem sido<br />
um feito reencenado há várias décadas enquanto efeméride municipal. Como<br />
esclarece Paiva Neto (2001) a família Rosado, muito conhecida em toda<br />
região, utilizou implicitamente a celebração desta data para destacar-se no<br />
âmbito político. Desde o ano de 1946, quando os primeiros membros desta<br />
família ocuparam mandatos políticos, impulsionados pelo patriarca Jerônimo<br />
Rosado, foram pouquíssimas as vezes em que concorreram a prefeitura de<br />
Mossoró saindo derrotados. Além de estarem registrados na memória social<br />
pelos mandatos que exerceram e seus feitos, estão “eternizados” em<br />
monumentos, como estátuas e nomeando ruas e logradouros, bem como por<br />
fomentarem as festas cívicas da cidade. Mesmo aqueles que não se<br />
envolveram diretamente com a política, eram profissionais de diversas áreas e<br />
intelectuais que auxiliaram a articular mitos, símbolos e rituais como base do<br />
discurso que justifica o domínio político.<br />
No que diz respeito ao episódio da invasão do bando de Lampião, os<br />
rituais vêm mostrando, através da figura do prefeito na época Rodolfo<br />
Fernandes, o engrandecimento da classe política, sendo o mesmo destacado<br />
como o homem corajoso que elaborou o plano para derrotar o bando de<br />
cangaceiros. Dessa forma, a família Rosado indiretamente, mesmo não<br />
participando da resistência a Lampião, ganha força e o renome de coragem<br />
para representar a cidade no setor político, através dos efeitos de um tempo<br />
cíclico, em que os acontecimentos do passado aparecem exercendo influência<br />
de comandar o presente.<br />
Já se passaram mais de 80 anos desde o acontecimento e o mesmo<br />
continua sendo relembrado, não somente pela população, mas é recontado<br />
anualmente na maior festa comemorativa da cidade, que é um espetáculo<br />
teatral em espaço aberto conhecido como Chuva de bala no país de Mossoró;<br />
constantemente presente em um espaço memorial que celebra a resistência ao<br />
bando de Lampião; nas propagandas turísticas, nas escolas e, graciosamente,<br />
3
na literatura de cordel. Percebe-se, então, a alavancada cultural que essa<br />
celebração deu à cidade, ajudando a construir uma parte considerável de sua<br />
identidade coletiva e promover o imaginário político.<br />
Antônio Augusto Arantes (1982) ao analisar o folheto de cordel em sua<br />
relação com o trabalho da cana-de-açúcar, como produto de uma atividade<br />
social determinada, admite que os grupos sociais utilizam os mitos, as<br />
histórias, os poemas como signos através dos quais expressam atitudes<br />
coletivas em relação a áreas problemáticas da vida social. Assim, começamos<br />
nos indagando de que modo os cordéis estudados se referem à vida social do<br />
poeta e de seu público, isto é, os citadinos de Mossoró?<br />
A CONTINUIDADE DA “VOZ VIVA”<br />
Na época de nossos antepassados, onde os meios tecnológicos eram<br />
praticamente inexistentes, principalmente entre as camadas mais pobres da<br />
população, a voz servia como principal meio transmissor de notícias. As<br />
pessoas sentavam em torno do rádio para manter-se informadas dos principais<br />
acontecimentos de sua região e das demais regiões do Brasil, bem como para<br />
entreter-se com as músicas e radionovelas. Já era de costume que os mais<br />
jovens se reunissem para ouvir os anciãos contar os fatos de sua época e<br />
transmitir experiências.<br />
No tocante aos feitos de Lampião, neste caso específico, o que diz<br />
respeito à invasão de seu bando a cidade de Mossoró, muito do que se tem<br />
conhecimento, foi passado de pessoa a pessoa, através da voz. Essa “voz<br />
viva” de que trata Paul Zumthor (2010) em sua obra “Introdução à Poesia Oral”.<br />
Voz que passeia pelas gerações, permitindo que fatos relevantes da história e<br />
cultura de um povo não sejam esquecidos.<br />
Com o surgimento dos folhetos de cordel, aquilo que era dito passou a<br />
ser registrado se mantendo gravado através da escrita. O cordel passando de<br />
mão em mão, se revela com a principal característica presente na voz, a de<br />
perpetuar-se Com o passar dos anos e a perda das reais personagens −<br />
pessoas que por terem vivido os fatos, contavam sua versão dos<br />
4
acontecimentos −, inúmeros elementos fictícios são agregados, mitificando as<br />
histórias. Este é também um meio para que algumas críticas e<br />
questionamentos sejam feitos, permitindo que o leitor, tomando conhecimento<br />
de diferentes versões, tire suas próprias conclusões.<br />
No cordel: Defesa de Lampião, de José Augusto, a crítica em questão<br />
mostra-se claramente, pois neste caso o prefeito Rodolfo Fernandes haveria<br />
ludibriado Lampião dando a sua palavra de que a quantia que desejara estaria<br />
logo na entrada da cidade escondida em uma “coivara”, desse modo todo o<br />
bando deveria entrar sem atirar, pois os mossoroenses esperavam em paz.<br />
Quando o bando entrou na cidade, foi recebido com tiros, o que para Lampião<br />
foi uma tremenda covardia, tendo o prefeito interesse de auto promover-se<br />
através desta vitória. José Augusto deixa espaço para que os leitores se<br />
atentem para outras versões. Embora os fatos narrados sejam fictícios,<br />
permitem que se questione se os mossoroenses foram mesmo tão bravos e<br />
resistentes como é colocado na maioria das versões atuais.<br />
E quando vi era tarde<br />
Aquela cilada armada<br />
Que logo se confirmou<br />
Co’os sinos em badalada<br />
Nos três cantos da cidade,<br />
Agora era tudo ou nada.<br />
No cordel: O ataque de Mossoró ao bando de Lampião do cordelista<br />
mossoroense Antônio Francisco, é possível perceber uma série de<br />
modificações no contexto da história, a começar pelo título, pois neste caso<br />
não é o bando de Lampião que faz o ataque e sim a cidade de Mossoró. A<br />
história se passa no inferno onde acontece um festival com intuito de premiar<br />
os que cantam melhor. Lampião apresenta seus dotes artísticos cantando<br />
mulher rendeira, obtém bom desempenho e ganha assim um passe para viajar<br />
para qualquer parte do inferno, mas prefere ir a Mossoró, de onde é novamente<br />
expulso.<br />
5
..........................................................<br />
E foi Lula 1 quem me disse,<br />
Que tinha achado um caderno,<br />
Que tinha a data marcada,<br />
Muito antes do inverno<br />
Sobre um evento que houve<br />
Em um dos palcos do inferno.<br />
Um evento musical<br />
Chamado, Canta vem-vem<br />
Que busca prestigiar<br />
Os valores que eles têm,<br />
Dando prêmios e mais prêmios,<br />
Pras almas que cantam bem.<br />
Lampião foi o primeiro<br />
Cantando “Mulher Rendeira”,<br />
O segundo, Cão sem dedo,<br />
O inventor da soqueira,<br />
Que ganhou cantando a música:<br />
Bagaço de fim de feira.<br />
............................................................<br />
A Lampião eles deram<br />
Um passe pra viajar,<br />
Por todo canto do inferno,<br />
Mas se quisesse arriscar,<br />
Podia vir pro Nordeste,<br />
Tomar cachaça e brincar.<br />
Essa é justamente uma das principais capacidades presentes no cordel,<br />
a de acrescentar novos elementos para ilustrar o que está sendo contado,<br />
agregando novos significados, o que atrai os ouvintes e torna a história<br />
marcante para os leitores de hoje.<br />
UM HERÓI E SEU MITO<br />
Dentre os muitos elementos que aparecem nas mais diversas culturas<br />
e povos, encontra-se a figura do herói. Desde os povos chamados “primitivos”<br />
até os dias de hoje, o herói se apresenta como um indivíduo destacado dos<br />
demais, muitas vezes é um semideus ou um sujeito com capacidades sobre-<br />
1 Aqui o poeta refere-se a um contador de “causos” que haveria lhe repassado essa história.<br />
6
humanas, mas sempre com qualidades diferenciadas e superiores aos demais<br />
seres humanos.<br />
O herói é anterior à literatura, às revistas em quadrinho e ao cinema –<br />
meios que difundiram demasiadamente os heróis inventados na Grécia antiga,<br />
na Europa medieval e no cenário moderno do mercado editorial Norte-<br />
americano. O herói já existia entre os povos ditos primitivos, ainda que não<br />
fossem chamados de ‘heróis’. De fato, onde quer que haja um indivíduo<br />
corajoso, que se destaca dos seus pares em alguma virtude, ali se encontra<br />
alguém potencialmente merecedor do título.<br />
Nos povos arcaicos, o herói surge juntamente com o mito e se difundiu<br />
através de estórias e lendas míticas que foram preservadas e transmitidas de<br />
geração em geração. Apesar de já existirem nos povos arcaicos, é na mitologia<br />
grega que os heróis ganham nomes e engrandecimento, tanto que Feijó<br />
destaca, “a mitologia grega pode ser resumida na vida dos deuses e heróis”<br />
(1984, p. 14). Aqui é importante lembrar que na mitologia grega há uma<br />
inversão básica de qualidades entre deuses e heróis: os deuses eram descritos<br />
com características humanas (tantos as nobres como as vis), enquanto os<br />
heróis eram revestidos de características divinas (virtudes e poderes). Percebe-<br />
se, então, uma projeção de ideais humanos na mitologia grega, uma projeção<br />
do desejo de transcender o comum e corriqueiro, de encurtar a distância que<br />
separava o humano do divino, de elevar as virtudes e atenuar os vícios<br />
humanos.<br />
Ao se pensar na figura do herói toma-se por certo de que ele é sempre<br />
uma invenção, um elemento imaginário, jamais tendo existido no mundo real,<br />
com as características que ele adquire no mito. No entanto, para alguns<br />
estudiosos, os heróis míticos eram indivíduos reais que se destacaram dos<br />
demais por causa de alguma façanha por eles realizada e que o imaginário<br />
coletivo dotou de capacidades extra-humanas: “o mito teria nascido da história<br />
real e o herói era o que restou de algum indivíduo destacado” (FEIJÓ, 1984, p.<br />
17).<br />
Contudo, mais importante do que pensar se eles eram figuras reais ou<br />
imaginárias é considerar que os heróis estão presentes e têm sempre as<br />
mesmas características básicas nos mais diferentes povos, culturas e línguas,<br />
7
pois revela que o mito se torna parte da vida, história e da herança cultural de<br />
um povo, fazendo com que toda uma comunidade passe a “ter uma mesma<br />
crença porque, se os símbolos se originam de uma necessidade psicológica e<br />
pessoal, eles adquirem uma forma que passa a ser assumida por toda a<br />
sociedade” (FEIJÓ, 1984, p. 21). É nessa conjuntura, então, que surge a ideia<br />
do mito universal do herói – que aparece para defender seu povo do mal, da<br />
destruição e da morte, e cuja exaltação conduz à identificação do próprio povo<br />
com a de seu herói salvador.<br />
Diante do exposto, a figura de Lampião pode muito bem ser vista a<br />
partir do mito do herói universal. Ora, Lampião encarna a figura do herói<br />
bandido medieval nos tempos modernos. Assim, no imaginário popular, ele é o<br />
herói do povo que luta contra as autoridades políticas que privam o povo<br />
nordestino de seus direitos sociais. Ele torna-se bandido para as classes<br />
dominantes, porém, o herói popular para os dominados, o representante de<br />
uma sede coletiva por justiça social.<br />
Virgolino Ferreira da Silva, popularmente conhecido como Lampião,<br />
ingressou no cangaço ainda bem jovem, no auge de seus vinte e dois anos, por<br />
ocasião de um desentendimento entre sua família, sobretudo seu pai José<br />
Ferreira dos Santos, com a família de seus vizinhos os Alves de Barros,<br />
representados na figura de José Alves de Barros. A vingança foi sempre o<br />
motivo usado por Virgolino como justificativa para seu ingresso no cangaço.<br />
Muito se especula a este respeito, inclusive que Lampião teria feito acordo de<br />
paz com os Alves de Barros, permanecendo no cangaço até sua morte em<br />
1938 por preferência sua, e não pelo motivo que alegara.<br />
Outros cangaceiros também ficaram conhecidos por seus feitos e<br />
crimes, como Antônio Silvino, o pioneiro em fama nesta prática, no entanto<br />
nenhum deles se tornou tão conhecido quanto Lampião. Sua passagem pelo<br />
sertão nordestino, fazendo assaltos e praticando crimes diversos se tornou<br />
uma marca indestrutível na história de todo um povo. Virgolino Ferreira tornou-<br />
se conhecido sobretudo por sua coragem e astúcia, bem como pelos aliados<br />
influentes que contribuíram inúmeras vezes para que escapasse da volante.<br />
8
Lampião nem sempre esteve tendencioso para o mundo do crime, no<br />
início da juventude trabalhou como almocreve, transportando mercadorias<br />
utilizando carroças de burros, para vendê-las em outros estados do País.<br />
Estudiosos afirmam que a vida do cangaço lhe proporcionou uma série de<br />
benefícios como o “dinheiro fácil”, principal motivo para sua permanência nesta<br />
prática. Após a invasão de Lampião e seu bando em 1927 a Mossoró, tendo<br />
sido derrotados pela resistência arquitetada pelo prefeito Rodolfo Fernandes e<br />
alguns aliados políticos, poucos anos lhe restaram de vida, tendo sido morto<br />
em emboscada no ano de 1938.<br />
Além das crueldades que espalharam sua fama, Virgolino Ferreira da<br />
Silva tinha grande habilidade para liderança, era corajoso, destemido e detinha<br />
grande capacidade de percepção e inteligência. “A procura deste herói” de que<br />
tratamos é subjetiva, pois o mesmo Lampião repudiado por seus feitos cruéis é<br />
outrora aclamado tendo suas atitudes justificadas pelas dificuldades de<br />
nordestino sofrido que teve que enfrentar. Neste contexto de infindáveis<br />
versões, cabe a cada um sua interpretação particular.<br />
De acordo as fontes de folhetos e baladas Erick Hobsbawn (1976) afirma<br />
que Lampião pode ser considerado um herói bandido, o mesmo tipo que teria<br />
em Robin Hood um paradigma internacional. Segundo o historiador, o<br />
banditismo social emerge de realidades históricas que enfrentam problemas de<br />
pauperismo e crise econômica, mas também na literatura, como símbolo contra<br />
forças opressoras. De modo geral, o banditismo social corresponde aos<br />
dramas vividos por sociedades camponesas ou semirurais. Assim o autor<br />
descreve a sua compreensão sobre esses heróis bandidos:<br />
“(...) são proscritos rurais, encarados como criminosos, pelo<br />
senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da<br />
sociedade camponesa e são considerados por sua gente como<br />
heróis e como campeões, vingadores, paladinos da justiça,<br />
talvez até como líderes da libertação(...)” (HOBSBAWN, 1976,<br />
p.11)<br />
De fato, o contexto histórico em que surge o cangaço, e de forma<br />
eminente o cangaceiro Lampião, resultou das tensões econômicas e políticas<br />
que marcaram a ruptura entre o nordeste agrícola tradicional e a nova ordem<br />
capitalista (CHANDLER, 1980). Porém, as concepções de Hobsbawn (1976)<br />
9
sobre o bandido social não são apenas reflexos da realidade, não se baseiam<br />
exclusivamente em atos verídicos, mas principalmente nas concepções<br />
populares através de cantadores e contadores de histórias que deixam em<br />
seus poemas “causos” que servirão para as gerações futuras. Outrossim,<br />
podemos considerar esse herói como mito e realidade ao mesmo tempo.<br />
Apesar de herói, Lampião não era um herói bom. Seus atos atrozes<br />
causavam terror pelos sertões. No entanto, há uma necessidade de que ele<br />
seja constantemente lembrado. Erick Hobsbawn 2 afirma que essa necessidade<br />
advém de certo ato de protesto, por meio do qual os fracos e pobres provam<br />
que podem ser terríveis e que recusam a dobrar a cerviz dentro de uma<br />
realidade de opressão.<br />
É bem verdade que Lampião é lembrado por seus atos terríveis. Mas<br />
atualmente há uma tendência de serem esquecidos os horrores que<br />
acompanharam sua carreira enquanto bandido social. E não faltam as boas<br />
descrições sobre sua personalidade, de ser um homem de fé, devoto do Padre<br />
Cícero, um homem de palavra, que calculadamente sempre cumpriu o seu<br />
prometido. Porém, é interessante questionar qual seria a força social que<br />
promove Lampião como rebelde, um bandido com consciência social?<br />
A LITERATURA DE CORDEL E O HERÓI<br />
De modo geral, considera-se que todas as sociedades têm seus rituais,<br />
pois o ritual não está confinado apenas aos povos primitivos ou às tribos<br />
indígenas como costumeiramente se pensa. E, assim como se dá com as<br />
tribos, as sociedades modernas também têm seu ritual de iniciação. Nas tribos,<br />
os jovens são colocados à prova, a fim de entrarem na vida adulta. O rito de<br />
iniciação faz com que eles mudem seu status na tribo, promovendo assim uma<br />
passagem de um estágio a outro de sua vida. Para Feijó, o ritual de iniciação<br />
em nossa cultura se dá por meio da “transferência de emoções” e isso por meio<br />
da literatura: “É na criação literária, fruto da imaginação e conhecimento, que<br />
2 Ibdem. Idem.<br />
10
vamos encontrar na luta do herói para atingir sua maturidade a nossa iniciação:<br />
a descoberta de nós mesmos” (1984, p. 51).<br />
Os heróis da literatura são moldados pela poesia e pela imaginação<br />
dos escritores, que artisticamente dão vida aos mitos – expressões de anseios<br />
e desejos coletivos – diante dos olhos do leitor, que acompanhando a trajetória<br />
do herói encontra a si mesmo na mesma jornada em busca do conhecimento<br />
de si enquanto ser humano:<br />
Na mitologia, o herói é divino. Na poesia épica ele é unidade de<br />
sentimento e ação. Na história é separado da realidade. Na<br />
literatura, o destino do herói é a sua iniciação: a descoberta de<br />
si mesmo. [...] A história da literatura é a história da passagem<br />
do herói divino para o herói humano: a personagem (Feijó,<br />
1984, p. 62-63).<br />
Assim, pois, se dá com Virgulino Ferreira, esse herói bandido, o<br />
Lampião, que não tinha super poderes nem nada de divino; porém, recriado<br />
nas páginas da literatura de cordel, a personagem torna-se o herói humano, o<br />
sertanejo oprimido que faz o que ninguém ousaria fazer para sobreviver à seca<br />
e aos mandos e desmandos dos políticos e dos coronéis. Portanto, revestido<br />
de virtudes e de vícios humanos, misturando atos de bondade para com os<br />
pobres e de crueldade para com seus inimigos, Lampião serviu como condutor<br />
no rito de iniciação da própria cidade de Mossoró, que construiu a sua<br />
identidade coletiva a partir de sua resistência ao bando de Lampião.<br />
A vitória do prefeito sobre o bando de Lampião produziu um efeito<br />
duradouro na política e na identidade cultural da cidade. Assim, a cidade de<br />
Mossoró passou a ser conhecida como brava e heroica, uma cidade que na<br />
figura de seu destemido prefeito lutou contra Lampião e seu bando com fervor<br />
e bravura, resistindo a toda violência e protegendo a sua população. Foi a partir<br />
das encenações desse acontecimento heroico que a cidade de Mossoró<br />
passou a ser projetada no cenário cultural. Sua cultura cresceu com ênfase<br />
nesse acontecimento histórico, cuja narrativa continua viva.<br />
Porém, na cidade de Mossoró, Lampião se torna um herói às avessas.<br />
Isso porque ele se torna figura emblemática no imaginário popular não por ter<br />
conseguido salvar o seu povo, mas porque fez um assalto à cidade. Segundo<br />
11
uma das versões narradas no cordel “Defesa de Lampião” do poeta José<br />
Augusto, Lampião foi enganado em um acordo com a classe dominante e teve<br />
o seu bando derrotado em uma emboscada na cidade de Mossoró-RN.<br />
É interessante considerar que Lampião torna-se uma peça chave<br />
quando é “contratado” pelo prefeito de Mossoró para atuar como bandido a fim<br />
de tornar esse mesmo prefeito um herói!<br />
Mas como não tinha visto<br />
Nem nunca ninguém contar<br />
Prefeito de qualquer canto<br />
A meu cangaço pagar!<br />
Pra seu lugar invadir<br />
Pra ser um ser popular...<br />
Em busca de se tornar político destacado para a população da cidade<br />
de Mossoró, o prefeito Rodolfo Fernandes busca um acordo com o herói mítico<br />
do sertão, Lampião, o Virgulino Ferreira, acordo esse que é brilhantemente<br />
descrito no cordel de Jose Augusto (2007):<br />
(...) Mandado pelo prefeito<br />
Um bilhete que dizia:<br />
“Caro, caro Virgulino,<br />
É só por mal entendido<br />
Tanta gente mata e morre<br />
Deixando desprotegido<br />
Esposa, pai, filho e mãe,<br />
Quando pode ser resolvido.<br />
Saiba que eu darei o dobro<br />
Da quantia que pedir,<br />
Assim não atrapalhando<br />
Pra onde você quer ir<br />
Ficando em paz Mossoró<br />
Sem nada se destruir.<br />
E não mude a estratégia<br />
Entre chamando atenção,<br />
Os poucos que aqui ficaram,<br />
Ficaram sem guarnição<br />
Pra olhar sua passagem<br />
Sem ter feito confusão.<br />
12
Diante do acordo proposto pelo prefeito, como visto no cordel, percebe-<br />
se, então, sua façanha para se tornar um “representante popular”. De fato, ele<br />
engana Lampião, pois desde o começo o prefeito se prepara para<br />
verdadeiramente enfrentá-lo, armando assim uma cilada para o líder<br />
cangaceiro e seu bando, como narra o cordel:<br />
...................................................<br />
Na entrada da cidade<br />
Antes da tarde terminar,<br />
Lampião só esperava<br />
Uma chuvinha passar<br />
Para atravessar as ruas<br />
Sem um tiro disparar.<br />
Em três frentes singulares<br />
O grupo foi dividido<br />
Só para se ter garantia<br />
De que não fora esquecido<br />
Que ninguém perdia a vida<br />
Depois do trato assumido.<br />
Mas eu achei muito estranho<br />
Toda aquela calmaria,<br />
Nenhum rastro de ser vivo,<br />
Nenhum barulho se via<br />
Naquela terra de torres<br />
Que se diz sem valentia.<br />
............................................................<br />
Em frente da São Vicente<br />
E da casa do prefeito<br />
Trava grande tiroteio<br />
Que me deixou sem jeito,<br />
Pensativo e sem coragem<br />
Fazer frente aquele eito.<br />
Tiros foram disparados:<br />
Um, dois, três, dez, vinte, cem...<br />
Vindo de todas as partes<br />
Sem a gente ver ninguém,<br />
Foi corre, corre danado<br />
E Maria grita amém...<br />
Quase uma hora de tiros<br />
Assim segue a sinfonia<br />
Alguns dos nossos sumidos,<br />
Outro na terra gemia<br />
13
Ferido se maldizendo<br />
De ter chegado esse dia.<br />
Eu me mordendo de raiva<br />
Fui obrigado a correr,<br />
Ordenei a retirada<br />
Pois não queria perder<br />
A vida nessa cilada<br />
Nem mais em Massilon crer.<br />
Na literatura de cordel, o herói do sertão – como todo herói – passou<br />
pelo seu próprio Inferno, depois do qual saltou da realidade histórica para ser<br />
celebrado na imaginação popular e eternizado nas páginas da literatura de<br />
cordel. Não é à toa que na história de Antônio Francisco, Lampião ressurge do<br />
inferno de onde sai para passar mais um teste na cidade de Mossoró:<br />
Quando Lampião calou-se,<br />
O inferno estremeceu,<br />
Quando parou de tremer,<br />
Lampião apareceu,<br />
No vale do Apodi<br />
Com todo cangaço seu.<br />
É curioso perceber que as histórias narradas pelos poetas Antônio<br />
Francisco e José Augusto não se passam como se tivessem ocorrido há muito<br />
tempo atrás. Ao contrário, são criações que admitem as raízes na vida social<br />
presente. Quando do inferno Lampião retorna a Mossoró, encontra uma<br />
realidade calamitosa, peões da Petrobrás que vivem do trabalho pesado “no<br />
meio do mato”, meninos de rua, desrespeito no trânsito, carnaval fora de<br />
época, cordão de isolamento, uma banda da Bahia cantando Che bom bom<br />
bom, discriminação e violência racial, poluição e destruição do rio Mossoró, e<br />
tamanha violência, a ponto de o próprio Virgulino ser assaltado:<br />
Quando saíram do mato,<br />
O bando tinha os sinais,<br />
Daqueles peões que vivem,<br />
Por dentro dos matagais,<br />
Abrindo com “ferro e fogo”<br />
Os piques da PETRBRAS.<br />
Quando subiram na pista,<br />
O bando foi assaltado.<br />
Deram um tabefe em Colchete,<br />
Lampião foi empurrado.<br />
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Cacheado apanhou tanto,<br />
Que ficou sem cacheado<br />
..........................................................<br />
Já perto de Mossoró,<br />
Um carro na contra-mão<br />
Passou tão perto do bando,<br />
Que botou oito no chão.<br />
E partiu em três pedaços<br />
O chapéu de Lampião<br />
...........................................................<br />
E entraram na cidade<br />
À uma da madrugada.<br />
Nessa hora o Carna-Ilha<br />
Deu a primeira pancada.<br />
Botando todo o cangaço<br />
No ritmo da batucada.<br />
...........................................................<br />
Ás de Ouro e Asa Branca,<br />
Atrás do carro do som,<br />
Diziam pra Mergulhão:<br />
Queria ver Massilon,<br />
No meio deste chafurdo<br />
Não cantar “Che bom, bom, bom”.<br />
Rio Preto ia dançando,<br />
Olhando pro firmamento<br />
Sem quere o pobre entrou<br />
No cordão de isolamento.<br />
Mas deram tanto no negro,<br />
Que o preto ficou cinzento.<br />
Quando o dia amanheceu<br />
Estavam no Rabicó<br />
E pra tirar a ressaca<br />
E um pouco também do pó.<br />
Nove deles mergulharam<br />
No ex-rio Mossoró.<br />
...............................................................<br />
[Lampiâo]<br />
Passou na Rádio Rural,<br />
Tomou uma no Oitão.<br />
Comprou um cordel a Zé<br />
E saiu riscando o chão.<br />
Com três moleques de rua,<br />
Limpando o seu chinelão.<br />
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De fato, os problemas apontados pelo poeta estão presentes no<br />
cotidiano da cidade, os dados estatísticos e as pesquisas antropológicas têm<br />
confirmado o crescente índice de violência em Mossoró. Porém, Lampião não<br />
serviu para “colocar ordem”, para estabelecer a supremacia da sua violência,<br />
visto que hoje em dia os heróis são outros, são aqueles que têm seus nomes<br />
estampados nas praças, nos monumentos, logradouros e repartições públicas.<br />
São aqueles que sucederam a classe política responsável por resistir às<br />
ameaças de Lampião.<br />
Na disputa contra a cidade de Mossoró, Lampião não conseguiu vencer<br />
sua condição de oprimido:<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Quando o dia ia morrendo,<br />
Todo coberto de pó,<br />
Passou lá no Jucuri,<br />
E disse a Zé Mororó,<br />
Que estava muito enjoado,<br />
Aborrecido e cansado,<br />
De correr de Mossoró.<br />
O hábito de contar histórias corresponde a uma vontade cultural de<br />
vencer a monotonia da vida. Por outro lado, expressa também a consciência<br />
social de um povo. Portanto, ao final do nosso estudo, concluímos que o poeta<br />
lembra o cangaceiro Lampião não apenas porque ele faz render uma boa<br />
história fictícia, mas porque pode servir como um símbolo eficaz para<br />
representar a insatisfação social, denunciar injustiças, desigualdades e<br />
arbitrariedades políticas.<br />
A julgar pela estrofe final do poema de Antônio Francisco, o nome de<br />
Lampião prestou-se para tornar ouvida uma denúncia:<br />
Hoje Lampião está<br />
Bem distante do sertão<br />
Lampião está distante<br />
Mas a violência não<br />
Vamos parar de brincar<br />
Fazer força e acabar,<br />
Quem acaba de expulsar<br />
O bando de Lampião.<br />
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A nosso ver, a persistência de Lampião no imaginário substitui uma real<br />
deficiência das formas de rebelião e contestação por parte de determinados<br />
segmentos populares, insatisfeitos com a realidade política e social a que ainda<br />
estão submetidos. Conforme afirma Hobsbawn 3 , o mundo moderno matou o<br />
bandido social e no seu lugar colocou o criminoso.<br />
De modo geral, observa-se que existe uma desproporção entre o fato e<br />
as histórias que hoje se recriam, sobretudo pela insistência no massacre de<br />
Lampião pela cidade de Mossoró. Consideramos que é tamanha a necessidade<br />
de a cidade erigir seus heróis que, existindo apenas candidatos pouco<br />
adequados, são levados a se representar, forçadamente, na carona de um<br />
herói popular. Neste caso, os heróis vencedores são apenas campeões, mas<br />
não aqueles que promoveram a justiça e a equidade social.<br />
REFERÊNCIAS BIBOLGRÁFICAS<br />
ARANTES, A. A. O <strong>Trabalho</strong> e a Fala. São Paulo: Kairos/FUNCAMP, 1982.<br />
CHANDLER, Billy Jaymes. Lampião. O rei dos cangaceiros. 4ed. Rio de<br />
Janeiro: Paz e Terra, 1980.<br />
FEIJÓ, Martim Cezar. O que é o Herói. São Paulo> brasiliense, 1980 (coleção<br />
primeiros passos).<br />
FELIPE J. L. A. A reinvenção do lugar: os Rosado e o país de Mossoró. In:<br />
ROSADO C.A.S. & MAIA, I. A. R. (orgs.) Os Rosado em Tese. Natal:<br />
Normalize/SerGraf, 2001.p. 125-189.<br />
HOBSBAWM, E. J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense. 2ed. 1976.<br />
LE GOOF, Jacques. Herois e Maravilhas da Idade Média. Petrópolis:<br />
Vozes,2009.<br />
MACHADO, Luís T. O Herói, O Mito e a Epopéia. São Paulo: Alba, 1962.<br />
MELO, V. O Ataque de Lampião a Mossoró Através do Romanceiro Popular.<br />
Natal: Sebo Vermelho, 2007.<br />
PAIVA NETO, F. F. de. Liturgias Políticas do “País de Mossoró”. In: ROSADO<br />
C.A.S. & MAIA, I. A. R. (orgs.) Os Rosado em Tese. Natal: Normalize/SerGraf,<br />
2001.p. 125-189.<br />
3 Op. Cit.<br />
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ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: Editora da UFMG,<br />
2010.<br />
LITERATURA DE CORDEL<br />
AUGUSTO, José. Defesa de Lampião. Mossoró: Editora Cordel, 2009.<br />
FRANCISCO, Antônio. O Ataque de Mossoró ao Bando de Lampião. Mossoró:<br />
Queima Bucha, s/d. (coleção queima-bucha de cordel).<br />
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