Julie Travassos Gallina - pgpsa/uerj
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O MAL-ESTAR EM FUNÇÃO DO NOME PRÓPRIO<br />
<strong>Julie</strong> <strong>Travassos</strong> <strong>Gallina</strong><br />
Este trabalho pretende apresentar o recorte do caso clínico de uma criança de 5 anos<br />
que esclarece, logo na primeira entrevista, a relevância de seu nome. Com perspicácia e<br />
eloquência explica que foi seu pai quem escolheu o nome Ricardo para designá-lo. Seu pai,<br />
torcedor apaixonado por futebol e admirador de Kaká, cujo nome de batismo é Ricardo,<br />
decidiu colocar no segundo filho o nome do jogador pelo qual cativa extrema apreciação.<br />
Embora tenha conhecimento da motivação que inspirou a escolha de seu nome, o menino<br />
revela que houve outro personagem importante e este “marcou a História mundial: o Rei<br />
Ricardo – Coração de Leão”.<br />
Na primeira entrevista com os pais, estes utilizam uma série de significantes para<br />
denominar o filho: “dominante, que se destaca e ataca, guerreiro, agressivo, sedutor, de<br />
temperamento irritadiço, briguento, com acessos de raiva e descontrole”, características que<br />
também marcam a história do pai do paciente, do rei e do jogador em questão.<br />
Freud em “O Eu e o Isso” (1923), discorre acerca do aparelho psíquico ressaltando a<br />
importância das palavras para a constituição deste. Segundo ele, as formações que merecem<br />
consideração são “essencialmente os restos de recordação da palavra ouvida” (idem,<br />
ibidem, p. 34). Lacan, em O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da<br />
psicanálise (1964), toma de empréstimo o termo “alienação” de Karl Marx, para designar<br />
que todo sujeito é alienado ao significante do Outro. Segundo Lacan, “o Outro é o lugar no<br />
qual se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do<br />
sujeito” (idem, ibidem, p. 193-194). A palavra, portanto, tem materialidade e é sobre seus<br />
alicerces que o sujeito se constitui enquanto tal, pois o sujeito é efeito de significante.<br />
Segundo o relato dos pais de Ricardo, as pessoas se impressionam com sua “beleza,<br />
inteligência, esperteza, sagacidade”. Além disso, ele atrai a atenção de todos ao seu redor<br />
por ter uma “personalidade forte”. Impera nas brincadeiras, lidera o grupo de amigos,<br />
agride quando contestado, irrita-se com “pessoas ignorantes”.<br />
Durante as entrevistas, Ricardo narra histórias sobre foguetes super potentes, com<br />
turbinas que soltam fogo, aceleram a toda velocidade e obtém implacavelmente a primeira
colocação. “Ser o primeiro é ser o melhor”, diz ele e é a isso que se destina. Dedica-se a<br />
aniquilar tudo aquilo que seja causa de mal-estar. Para isso, "combate o inimigo" tal como<br />
o "Homem Fogo", como ele próprio afirma. O Homem Fogo é dotado de garras afiadas e<br />
pode explodir a qualquer momento, basta que algo o incite a perder a paciência. Ninguém<br />
pode se aproximar dele já que seu corpo é feito de labaredas. O personagem ao qual<br />
Ricardo identifica-se é "indestrutível", mas pode "exterminar" qualquer pessoa.<br />
Antes de completar cinco anos Ricardo já lia e escrevia sem dificuldade, utiliza um<br />
vocabulário incomum para uma criança de sua idade, em diversas sessões escolhe sentar na<br />
“poltrona de adulto” e falar, deixando as brincadeiras de lado. É considerado um menino<br />
prodígio pela família, além de exibir uma beleza que se destaca entre os irmãos. Quando<br />
sente-se ameaçado ou vislumbra a possibilidade do desmoronamento de tantas qualidades,<br />
reage com violência. Ao ser derrotado nos jogos se enfurece e exclama: “Fico com ódio”.<br />
Repete a brincadeira na tentativa de ganhar e quando não consegue alcançar seu objetivo<br />
fica com muita raiva e revela que quando algo o irrita tem de tentar se "controlar para não<br />
explodir". Nas ocasiões em que não consegue obter o controle, "explode, quebra tudo, parte<br />
para cima".<br />
Ricardo é fisgado freqüentemente em circunstâncias que têm como pano de fundo a<br />
agressividade. Os pais decidem procurar tratamento para o filho após um episódio na escola<br />
que culmina em uma suspensão, onde Ricardo, irritado com as “perguntas idiotas” de um<br />
colega de turma, arremessa uma cadeira na direção deste a fim de acertá-lo. Não por<br />
coincidência o pai de Ricardo está proibido judicialmente de assistir jogos de futebol em<br />
determinado bar, pois ao presenciar a derrota de seu time destruiu o estabelecimento ao<br />
atirar cadeiras para todos os lados.<br />
Identificado a este traço paterno, Ricardo repete a agressão. Em “Psicologia das<br />
massas e análise do eu” (1921), Freud afirma que “a identificação é conhecida pela<br />
psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (idem,<br />
ibidem, p. 133). Freud intitulou esta modalidade de identificação de regressiva,<br />
caracterizada por uma introjeção do objeto no eu.<br />
Lacan atribui a este tipo de identificação, em que o sujeito se identifica a um traço<br />
único, parcial da pessoa objetalizada, grande relevância. Em O Seminário, livro 9: A<br />
identificação (1961-1962), afirma que essa identificação está relacionada ao abandono ou
perda do objeto. À medida que se produz esta perda, o sujeito se identifica com um traço do<br />
objeto.<br />
Ricardo parece estar identificado com alguns traços paternos: ambos são<br />
“impacientes, agressivos, irritadiços”. A partir disso, podemos considerar que o nome do<br />
paciente, escolhido pelo pai, parece ter adquirido singular significado para ele a partir da<br />
efetuação de tal identificação. O nome escolhido pelo pai parece ter vaticinado o<br />
posicionamento subjetivo de Ricardo.<br />
A história do rei Ricardo nos mostra que este recebeu a alcunha de Coração de Leão<br />
por conta das inumeráveis guerras e conflitos que deflagrou, inclusive em seu meio<br />
familiar, ora aliado aos irmãos contra o pai, ora associado ao pai em oposição aos irmãos.<br />
Tal qual Coração de Leão, Ricardo se encontra constantemente envolvido em brigas entre<br />
seus irmãos e seu pai. Ao ser questionado pela analista acerca do motivo que o levava ao<br />
tratamento, responde: “Eu me comporto mal, brigo com meus irmãos sempre. Não sei quem<br />
é pior, se o mais velho ou o caçula. Brigo com meu pai também, porque ele briga comigo,<br />
não tem paciência. Eu também não tenho”.<br />
Lacan dá acento a temática do nome próprio em diversos momentos de seu ensino,<br />
embora se debruce sobre o assunto de forma mais extensa em O Seminário, livro 9: A<br />
identificação. Neste, Lacan aduz a conexão entre o nome próprio e o traço unário,<br />
apontando para o caráter distintivo como o componente fundamental de um nome próprio.<br />
Na mesma direção, Lacan destaca em O Seminário, livro 10: A angústia (1962-1963) que<br />
“o traço unário é anterior ao sujeito. No princípio era o verbo quer dizer, no princípio é o<br />
traço unário” (idem, ibidem, p. 31).<br />
Lacan propõe que o nome próprio é o traço primordial ao qual o sujeito irá se<br />
identificar. O nome próprio não designa um sujeito, mas o torna legítimo, uma vez que a<br />
escolha do nome traz uma marca especial que permite uma proximidade própria entre o<br />
nome e o sujeito.<br />
Ao articular o nome próprio ao traço unário, Lacan sustenta que o nome constitui a<br />
marca primitiva, o traço distintivo, que por si só não representa o sujeito, mas que o<br />
representará na medida em que o sujeito o inscreve na cadeia significante, onde passa a<br />
adquirir uma significação subjetiva. Neste sentido:<br />
O que distingue um nome próprio, apesar de pequenas aparências de adaptação,
(...), é que de uma língua para outra isso se conserva em sua estrutura (...) e isso<br />
em razão da afinidade justamente do nome próprio com a marca, com a<br />
designação direta do significante com o objeto. (...) Foi por causa de Cleópatra e<br />
Ptolomeu que toda a decifração do hieróglifo egípcio começou porque em todas<br />
as línguas Cleópatra é Cleópatra e Ptolomeu é Ptolomeu (idem, 1961-1962, p.<br />
94).<br />
Lacan (1961-1962) afirma que o ato de nomear não pode ser equiparado ao de dar<br />
nome, pois o nome é o ponto de basta, a amarra que contribui para a constituição do sujeito,<br />
fazendo com que o sujeito se aliene diante do Outro. Nomear não é imputar características,<br />
metáforas, acepções, mas ser capaz de designar algo de modo inflexível. O “nome próprio é<br />
uma função volante (...), ele é feito para ir preencher os buracos, para lhe dar sua obturação,<br />
para lhe dar seu fechamento, para lhe dar falsa aparência de sutura” (idem, 1964-1965, p.<br />
74). Trata-se, portanto, de uma alienação significante. Ali onde há uma falta, uma falta de<br />
significante, o nome próprio a escamoteia (idem, 1966). Nas palavras de Lacan, em O<br />
Seminário, livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965):<br />
O nome próprio vai sempre colocar-se no ponto em que justamente a função<br />
classificatória tropeça, não diante de uma enorme particularidade, mas ao<br />
contrário, diante de uma rasgadura, a falta, propriamente esse buraco do sujeito, e<br />
justamente para suturá-lo, para mascará-lo, para colá-lo (idem, ibidem, p. 168).<br />
É no laço social, ou seja, no contato com o outro que o sujeito se institui. Freud<br />
desde o princípio entende que a experiência subjetiva remete-se invariavelmente a um laço<br />
primordial, cultural com o outro. O outro é, portanto, a cultura. Deste modo, embora o<br />
trabalho da psicanálise privilegie uma escuta individual, leva em conta o laço que o sujeito<br />
estabelece com o Outro, visto que são estes que lhe brindam com significantes, incluindo-o<br />
na linguagem.<br />
Deter-se no laço social requer do sujeito a renúncia pulsional, conforme é destacado<br />
em "O mal-estar na civilização" (1930). Neste texto Freud aponta que o relacionamento<br />
com os outros é a principal causa de sofrimento humano. O mal-estar na cultura é, portanto,<br />
inerente aos laços sociais, pois há um paradoxo intransponível entre as exigências<br />
pulsionais e aquelas ditadas pela civilização para que seja possível viver em comunidade.<br />
Freud nos diz: "Essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós mesmos e cuja<br />
existência supomos também nos outros, constitui o fator principal da perturbação em nossas<br />
relações com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à civilização" (idem, ibidem, p.
65).<br />
A agressividade contida em todo sujeito parece ter ganho reforço através do nome<br />
de Ricardo associado a cadeia de significantes a qual ele se inscreveu. De toda malha de<br />
significantes possíveis, Ricardo escolheu permanecer entre o rei que “comanda, tem poder,<br />
é tirano” e o jogador de futebol que “ataca, brilha, é o melhor”, aduzindo a solidez<br />
significante.<br />
O registro do significante institui-se pelo fato de um significante representar um<br />
sujeito para outro significante. Essa é a estrutura, sonho, lapso e chiste, de todas<br />
as formações do inconsciente. E é também a que explica a divisão originária do<br />
sujeito. Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda não discernido, ele<br />
faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui fala, mas ao preço de<br />
cristalizá-lo. O que ali havia de pronto para falar..., o que lá havia desaparece, por<br />
não ser mais que um significante (LACAN, 1966, p. 854).<br />
Com um breve percurso de análise Ricardo ainda não pode abrir mão da<br />
petrificação que impõe o significante e do gozo impetrado em sua posição subjetiva,<br />
embora tenha proposto a analista em uma sessão recente que esta jogue um balde de água<br />
no homem fogo a cada acesso de descontrole.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
FREUD, S. (1921) Psicologia das massas e análise do eu. In: Edição Standard<br />
Brasileira das Obras Completas (ESB), vol. 18. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1990.<br />
______. (1923) O eu e o isso. In: ESB, op. cit., vol. 19.<br />
______. (1930) O mal-estar na civilização. In: ESB, op. cit., vol. 21.<br />
LACAN, J. (1961-1962) O Seminário, livro 9: A identificação. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Editor, 2003.<br />
______. (1962-1963) O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar Editor, 2005.<br />
______. (1964) O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da<br />
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />
______. (1964-1965) O Seminário, livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, inédito.<br />
______. (1966) Posição do inconsciente. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge<br />
Zahar Editor, 1998.