revista VIS - Instituto de Artes - UnB
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Introdução<br />
Um Salto no Tempo<br />
<strong>VIS</strong> | Julho/Dezembro <strong>de</strong> 2010 Ano 9 nº 1<br />
Em sua obra Postdramatisches Theater, publicada em 1999, na Alemanha, Hans-Thies Lehmann<br />
retoma antigas teses teatrais e afirma que, do teatro elisabetano ao teatro burguês do final do<br />
século XX, a cena tem funcionado sempre <strong>de</strong>ntro dos princípios da mímesis e da catharsis aristotélica<br />
2 . Apesar <strong>de</strong> vir sustentando a função <strong>de</strong> porta-voz da esfera crítica pública <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />
XX, no século XXI o teatro estaria à procura <strong>de</strong> si mesmo, tentando reconstruir um diálogo com<br />
o seu público.<br />
Lehmann pon<strong>de</strong>ra que, se o teatro per<strong>de</strong>u seu fascínio frente aos gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong> comunicação<br />
<strong>de</strong> massa, por outro lado surgem, ao final do século XX, formas <strong>de</strong> ação teatral que<br />
pesquisam novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação contrárias ao po<strong>de</strong>r absoluto das pseudoesferas<br />
públicas na mídia, estabelecendo espaços próprios <strong>de</strong> comunicação diferenciada. Disto <strong>de</strong>corre o<br />
surgimento <strong>de</strong> uma mescla <strong>de</strong> linguagens, a incorporação <strong>de</strong> diferentes artes e a tônica na relação<br />
com o público.<br />
Esta nova forma teatral não procura suscitar a a<strong>de</strong>são do espectador, mas provocar sua percepção<br />
ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários <strong>de</strong>stes textos, ou <strong>de</strong>stas montagens,<br />
permeiam uma reescritura cênica que engloba os aspectos textuais, cenográficos e os problemas<br />
propostos por um jogo não necessariamente psicológico.<br />
Esta é a teoria do teatro pós-dramático. De fato, as pesquisas no teatro pós-dramático dão<br />
ênfase a situações e não a ações. Isto tem levado a uma recepção difícil, quando não perturbada.<br />
Consi<strong>de</strong>ro que tanto o rótulo para estas novas pesquisas – o teatro pós-dramático – como as<br />
próprias situações postas em cena guardam algo do que está no nome: o drama (mesmo sendo<br />
pós-drama). Portanto, a novida<strong>de</strong>, mesmo negando o drama (ou a tragédia) ou procurando autonomia<br />
em meio ao entrelaçamento <strong>de</strong> diferentes artes, não per<strong>de</strong> as referências fundamentais da<br />
tragédia e do drama, fundadas na existência humana, que po<strong>de</strong>rão ser chamadas <strong>de</strong> miméticas e<br />
catárticas, ou que estão a ela associadas: vida e morte, nostalgia do encontro e da relação amorosa.<br />
Por este motivo estão presentes referências das gran<strong>de</strong>s peças teatrais do passado, que trabalharam<br />
com uma proposta <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>, com a ilusão e com a reprodução do mundo.<br />
O Rei Lear em Análise<br />
A referência ao olhar <strong>de</strong> Lehmann parecerá estar completamente fora <strong>de</strong> lugar num estudo do<br />
Rei Lear, <strong>de</strong> William Shakespeare. O gran<strong>de</strong> Autor trabalha com totalida<strong>de</strong>, ilusão e reprodução<br />
do mundo, que constituem o mo<strong>de</strong>lo do teatro dramático elisabetano por excelência. Em que<br />
medida, porém, po<strong>de</strong>ríamos consi<strong>de</strong>rar que existe uma (muitas, provavelmente) leitura (leituras)<br />
possível(eis) <strong>de</strong> Lear em que o triângulo drama/ação/imitação ce<strong>de</strong> espaço para uma comunicação<br />
diferenciada, que mescla linguagens advindas <strong>de</strong> referências muito diferentes entre si, situadas<br />
para além do que se aceita e se enten<strong>de</strong> como teatro elizabetano? Uma leitura que incorpore<br />
pelo menos uma arte <strong>de</strong>ntro da arte (o teatro), incluindo dialogismos, diferentes vozes, com uma<br />
estratégia cênica e dramática cuja tônica resida na relação com o público, na mescla <strong>de</strong> influências<br />
e em uma costura que pareça histórica, mas que passeie entre a magia da poesia, criadora <strong>de</strong><br />
2. “Para sintetizar melhor seu conceito, Lehmann observa que totalida<strong>de</strong>, ilusão e reprodução do mundo constituem o<br />
mo<strong>de</strong>lo do teatro dramático. E que a realida<strong>de</strong> do novo teatro começa exatamente com a <strong>de</strong>saparição do triângulo dra-<br />
ma, ação, imitação, o que acontece em escala consi<strong>de</strong>rável apenas nas décadas finais do século XX.” (GUINSBURG, Jacó e<br />
FERNANDES, Silvia [orgs.]. O Pós-dramatico: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 13).<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Arte | IdA - <strong>UnB</strong><br />
imagens, e a crueza da realida<strong>de</strong>, no contraponto gerador <strong>de</strong> outra coisa, outro sentido, ancestral<br />
e, ao mesmo tempo, mo<strong>de</strong>rno?<br />
A análise que se propõe caminhará a partir da compreensão do Rei Lear. Só então, com todas<br />
as referências necessárias, voltarei à reflexão sobre a hipótese <strong>de</strong> Lehmann (Lehmann, 1999).<br />
A cena teatral caracterizou-se, durante o chamado teatro dramático, por interpretar textos<br />
pré-escritos. Segundo a crítica contemporânea que revê os clássicos, os textos pré-escritos seriam<br />
<strong>de</strong> difícil interpretação justamente por não contarem com a encenação, que correspon<strong>de</strong> a<br />
uma leitura e interpretação. Daí textos pré-escritos e não improvisados serem vistos por alguns<br />
como menos tangíveis, compreensíveis, por objetivarem conflitos psicológicos e morais entre as<br />
personagens, conflitos que sempre contêm não ditos e interstícios que afundam no insconsciente.<br />
Este seria, a meu parecer, um quadro temático narrativo que serviria mais ao cinema e à televisão<br />
que ao teatro. As noções <strong>de</strong> tragédia e <strong>de</strong> comédia, aparentemente separadas, já começam a se<br />
mesclar tanto na Ida<strong>de</strong> Média, nas festas carnavalescas, como nos Autos <strong>de</strong> Gil Vicente e no teatro<br />
shakespeareano e elisabetano. Em qualquer pesquisa que se faça, encontramos a indicação das<br />
mesclas entre tragédia e comédia e o comentário sobre a ironia shakespeareana. Portanto, neste<br />
universo teatral, os princípios da mímesis e da catarse não vigoram3 . O cômico do Rei Lear, com a<br />
loucura do rei caído em <strong>de</strong>sgraça pela traição <strong>de</strong> suas filhas, a quem, por afeto, havia presenteado<br />
com todo seu patrimônio, proporcionava o alívio cômico ao público, fazendo ressaltar, como pelo<br />
efeito do chiaroscuro, a tragédia pessoal <strong>de</strong> Lear, e a nacional, da Inglaterra maltrapilha por causa<br />
da guerra civil. Já teríamos aí um dado que afetaria a hipótese do teatro pós-dramático. Sem incorporação<br />
<strong>de</strong> TV, tela, projeções, o teatro shakespeareano incorpora o teatro <strong>de</strong>ntro do teatro<br />
e, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da encenação, elementos circenses propostos pelo Bobo. A poesia materializa a<br />
magia, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> incorporar, em encenações contemporâneas, projeções que caracterizam a<br />
mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ou, por relações associativas, a poesia mágica <strong>de</strong>sperta imagens no receptor, que vê<br />
aquilo que é sugerido pela palavra.<br />
O pequeno grupo <strong>de</strong> estudos campineiro “Literatura e Dramaturgia” reuniu-se diversas vezes<br />
para discutir a peça Rei Lear, <strong>de</strong> William Shakespeare. Muitos aspectos foram levantados, muitas<br />
análises foram propostas. Dentre elas, sugeri que Shakespeare, ao redigir e encenar o Rei Lear,<br />
possivelmente teve, no horizonte <strong>de</strong> provocações ou <strong>de</strong> estímulos, dois textos relevantes: o Eclesiastes<br />
(ou Coélet), do Velho Testamento, e o Elogio da Loucura, <strong>de</strong> Erasmo <strong>de</strong> Rotterdam. As referências<br />
reconhecidas como contemporâneas a Shakespeare incluem a história da Grã Bretanha,<br />
especialmente aquela encontrada nas Crônicas <strong>de</strong> Raphael Holinshed (1587) e na Historia Regum<br />
Britanniae, <strong>de</strong> Geoffrey <strong>de</strong> Monmouth, <strong>de</strong> 1135.<br />
Shakespeare cria, nesta tragédia, personagens que serão atingidos seja pela cobiça, prepotência,<br />
orgulho, inveja, ganância, traição, indiferença, antiética, seja por outros atributos do gênero. Seria<br />
uma punição? As personagens reúnem mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>stas características, sempre combinadas<br />
com outros vícios, contrapostos a variações do que seria o Bom e o Bem.<br />
Em ata da reunião inicial do grupo <strong>de</strong> estudos acima referido apareceram os seguintes temas:<br />
• Divisão das personagens em três modalida<strong>de</strong>s ou grupos: aquele que parece ser aquilo que<br />
não é (Edmundo); aquele que age segundo aquilo que <strong>de</strong> fato é (Cordélia); aquele que parece ser<br />
outro para conseguir o que quer (Kent).<br />
• O papel do “<strong>de</strong>saparecimento” do Bobo na obra.<br />
• A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da obra que, por seu caráter mo<strong>de</strong>rno, engloba temáticas metalinguísticas, fi filolosóficas, sociais, etnológicas, históricas, políticas, psicológicas, psicanalíticas e religiosas. Há o teatro<br />
3. O teatro elizabetano tem seu auge <strong>de</strong> 1562 a 1642. As peças caracterizam-se pela mistura sistemática do sério e do<br />
cômico, da ironia e da realida<strong>de</strong>, dos gêneros; pelo abandono das unida<strong>de</strong>s aristotélicas clássicas; pela varieda<strong>de</strong> na escolha<br />
dos temas, tirados da mitologia, das literaturas medieval e renascentista e da história; por uma linguagem que mistura o<br />
verso mais refinado à prosa mais <strong>de</strong>scontraída.<br />
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