revista VIS - Instituto de Artes - UnB
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<strong>VIS</strong> | Julho/Dezembro <strong>de</strong> 2010 Ano 9 nº 1<br />
renças na tecnologia e pela tecnologia (JORDAN, 2008; WARK, 2004). Essa produção artística e<br />
hacker 2 promove subversão, interferência e expansão da operacionalida<strong>de</strong> dos dispositivos abordados<br />
por arranjos <strong>de</strong> ativismo e colaboracionismo. Esses arranjos são agenciamentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
da liberda<strong>de</strong> e do compartilhamento da informação, da <strong>de</strong>scentralização e da <strong>de</strong>scrença em autorida<strong>de</strong>s<br />
unidimensionais, das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> benefício da vida pela tecnologia e do<br />
próprio princípio <strong>de</strong> autopropagação <strong>de</strong>ssa mesma ética (RAYMOND, 2003).<br />
Segundo a perspectiva mais operacional, estamos tratando da artemídia, aquela que se caracteriza<br />
pelo <strong>de</strong>svio do projeto industrial por meio da apropriação e da intervenção nos canais tecnológicos<br />
<strong>de</strong> difusão e <strong>de</strong> entretenimento (MACHADO, 2007). Por outro lado, se adotamos o ponto <strong>de</strong> vista<br />
comunitário <strong>de</strong> produção da diferença, assumimos a via das poéticas relacionais, que se especificam<br />
pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer formas em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> relações intersubjetivas, resultantes da<br />
associação, por retomada e <strong>de</strong>scaminho ou por embate aleatório, <strong>de</strong> objetos, imagens, i<strong>de</strong>ias, processos<br />
e situações (BOURRIAUD, 2002). A arte_hackeamento 3 afeta, portanto, tanto as técnicas<br />
quanto as lógicas, <strong>de</strong> modo recíproco.<br />
Conforme indica Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2000), todo conhecimento é uma prática social<br />
que dá sentido e ajuda a transformar outras práticas. Se as socieda<strong>de</strong>s complexas são configurações<br />
<strong>de</strong> conhecimentos e se a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada saber resi<strong>de</strong> em sua a<strong>de</strong>quação à prática que visa<br />
constituir, a crítica da teoria implica a crítica da prática social a que ela se adapta. Nessa avaliação,<br />
o dissenso se expressa como reverberação das senhas tomadas e rompidas pela produção da<br />
diferença no hackeamento.<br />
Para enfrentar a questão <strong>de</strong> uma arte que transita por ilicitu<strong>de</strong>s conveniadas <strong>de</strong> restrição do<br />
fazer e do pensamento, recorremos à hipótese <strong>de</strong> legitimação pela paralogia <strong>de</strong> Lyotard (2002,<br />
111-120). Assim como nesse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> valoração, a arte_hackeamento é um “lance <strong>de</strong> importância”<br />
<strong>de</strong>sconhecida, “feito na pragmática dos saberes”, porém distinto da inovação, a serviço do<br />
aprimoramento da eficiência do sistema vigente. Vale aqui o dissenso, a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> regras<br />
particulares e a negação dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> sistemas estáveis da ciência, ilusoriamente imune a influências<br />
da práxis.<br />
A arte_hackeamento é aquela que possibilita a recomposição <strong>de</strong> circuitos e <strong>de</strong> rotinas <strong>de</strong> comunicação<br />
produtiva e reflexiva. É uma arte tecnológica, que se faz pela técnica, no sentido da<br />
habilida<strong>de</strong> (τέχνη – tékhne), mas também se conjuga com a lógica da ciência (επιστήμη – episteme).<br />
Por essa via, converte-se em instrumento para reação contra a profusão <strong>de</strong> estímulos sensoriais<br />
difundidos e acumulados nas diversas camadas <strong>de</strong> sentido do mundo codificado. Afirma-se, assim,<br />
como ruptura dos códigos da caixa-preta dos aparelhos que transformam seus usuários em meros<br />
operadores <strong>de</strong> programas pre<strong>de</strong>terminados (FLUSSER, 2002, 2007).<br />
Aplicativos da Dissidência na Arte_Hackeamento<br />
Abertura à participação e compartilhamento, táticas do “faça-você-mesmo” e interferências nas<br />
mídias são alguns dos traços que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar recorrentes na arte_hackeamento. Estes<br />
traços estabelecem dimensões híbridas que não promovem especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> correntes e sub-<br />
2. Admitimos que o hacker é aquele que se <strong>de</strong>leita com a exploração e expansão comunitária das capacida<strong>de</strong>s da tecno-<br />
logia (RAYMOND, 2003), sobretudo no que se refere aos programas e à montagem <strong>de</strong> componentes da informática. Essa<br />
<strong>de</strong>finição é adotada pelos próprios hackers, que <strong>de</strong>marcam uma ética própria para se diferenciar daqueles que utilizam a<br />
tecnologia para invadir sistemas, programar vírus e promover roubos e <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> dados – os chamados crackers.<br />
3. Para a grafia do termo arte_hackeamento, em lugar do hífen, sinal com valor <strong>de</strong> união, preferimos o uso do traço inferior,<br />
caractere largamente utilizado na informática para substituição do espaço em branco em aplicações e sistemas que não o<br />
suportam – a exemplo dos en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> internet ou <strong>de</strong> correios eletrônicos.<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Arte | IdA - <strong>UnB</strong><br />
grupos, mas sim contínuas combinações entre seus interesses e meios <strong>de</strong> realização, bem como<br />
agenciamentos com outras possibilida<strong>de</strong>s para além <strong>de</strong> seus limites.<br />
Em primeiro lugar, estabelecemos a ligação das poéticas colaborativas, relacionais, com o pa- paradigma<br />
do copyleft, forma <strong>de</strong> licenciamento que permite ao usuário a modificação e cópia do<br />
software ou outro conteúdo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o resultado seja compartilhado com outros interessados.<br />
Em projetos como Free Beer (figura 1), <strong>de</strong> 2005, e Guaraná Power4 , <strong>de</strong> 2003, o coletivo Superflex<br />
subverte a tecnologia econômica da indústria <strong>de</strong> bebidas. No primeiro caso, coloca em circulação<br />
uma cerveja <strong>de</strong> código aberto, passível <strong>de</strong> adaptações, aprimoramentos, e partilha <strong>de</strong> novas receitas.<br />
Já com Guaraná Power, apropria-se da linguagem visual da marca Antarctica, que é adaptada<br />
para utilização em um produto alternativo, feito em parceria com uma cooperativa <strong>de</strong> guaranaicultores<br />
do Amazonas.<br />
Figura 1:<br />
Rótulo com a receita <strong>de</strong> uma das versões da Free Beer.<br />
Fonte: http://freebeer.org/blog/label/<br />
Os trabalhos do Superflex orientam-se, notadamente, pelos conceitos <strong>de</strong>rivados do software livre<br />
e do código aberto (FLOSS 5 ), segundo os quais o que interessa é a disponibilida<strong>de</strong> dos dados <strong>de</strong><br />
um programa para a alteração e aprimoramento <strong>de</strong> um produto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
interessados. Representam, ainda, interferências em circuitos <strong>de</strong> promoção, um <strong>de</strong>les baseado na exclusivida<strong>de</strong><br />
do aparato <strong>de</strong> fabricação e da própria receita; o outro, acomodado sobre o apelo visual<br />
dos elementos <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>. Por fim, são exemplos da abordagem imediata e direta – do arregaçar<br />
<strong>de</strong> mangas para a ação autônoma em searas inicialmente consi<strong>de</strong>radas alheias ao mero usuário.<br />
4. Os projetos po<strong>de</strong>m ser conhecidos nos en<strong>de</strong>reços da internet www.freebeer.org e www.guaranapower.org.<br />
5. Sigla para Free/Libre Open Source Software.<br />
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