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ETNOCENTRISMO E TERRITORIALIDADE - José Augusto ... - UFF

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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas<br />

Nº 1, setembro de 2011<br />

RESUMO:<br />

<strong>ETNOCENTRISMO</strong> E <strong>TERRITORIALIDADE</strong><br />

<strong>José</strong> <strong>Augusto</strong> Conceição 1<br />

joseaugustopsicossocial@gmail.com<br />

Celia Regina do Nascimento de Paula 2<br />

celiareginadepaula@gmail.com<br />

O artigo historia os conceitos que abordam o problema do racismo. Sem, contudo, termos a pretensão de<br />

produzir alguma sorte de história da ciência, das mentalidades ou das idéias. Nosso objetivo específico é o<br />

de confrontar o conceito de racismo ambiental com outros que lhe são precedentes e avaliar a pertinência de<br />

sua aplicação na análise dos problemas socio-ambientais brasileiros.<br />

Palavras-chave: etnia; racismo; racismo ambiental, territorialidade; etnocentrismo<br />

ABSTRACT<br />

Here we seek to historicize the concepts which address the problem of racism. Without yet having the<br />

intention of producing some sort of history of science, mentalities or ideas. Our specific goal is to confront<br />

the concept of environmental racism with others that have preceded it and assess the appropriateness of its<br />

application in analysis of socio-environmental problems in Brazil.<br />

Keywords: ethnicities, racism, environmental racism, territory, ethnocentrism<br />

INTRODUÇÃO<br />

Embora não lhes tenhamos dado centralidade alguma no modo como construímos o texto, os objetos<br />

em discussão são a expressão e o conceito de racismo ambiental. E o problema que buscamos enfrentar é o<br />

dos limites da conveniência desta expressão e da aplicação deste conceito na análise dos problemas sócio-<br />

ambientais em contexto de melting pot, como o brasileiro.<br />

Em lugar de formularmos uma hipótese, partimos de um pressuposto: se está tratando de<br />

territorialidade apelando-se para o relevo emocional portado pelo termo racismo, ao mesmo tempo em que se<br />

confunde o fenômeno do racismo com uma dimensão maior, pela qual ele próprio é abrangido, a saber: o<br />

1 Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre a importância das<br />

categorias raça e consumo na demarcação das fronteiras étnicas na cidade do Rio de Janeiro.<br />

2 Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve pesquisa sobre as representações sociais<br />

do judiciário, de seus agentes e de seus usuários.


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Nº 1, setembro de 2011<br />

etnocentrismo.<br />

Neste diapasão, são três os objetivos deste artigo. Um de caráter geral: historiar os conceitos que<br />

abordam o problema do racismo; e outros dois de ordem específica: confrontar o conceito de racismo<br />

ambiental com outros que lhe são precedentes e avaliar a pertinência de sua aplicação na analise dos<br />

problemas socio-ambientais brasileiros. Para tanto, organizamos o argumento em 10 tópicos: Raça,<br />

Racismo, Imperialismo, Racismo no Brasil, Etnia, Grupos Étnicos, Tribos urbanas, Etnocentrismo,<br />

Territorialidade e Racismo Ambiental.<br />

Frisemos que, de modo algum nos arvoramos no ofício do historiador; para o que não somos<br />

competentes. E, por isso mesmo, não nos comprometemos em produzir história das idéias, da ciência ou das<br />

mentalidades. Embora admitamos que a abordagem que empreendemos guarda maior proximidade com esta<br />

última, à medida que foi nossa preocupação evidenciar, o quanto possível, a relação entre condições<br />

objetivas de vida e os modos de pensamento.<br />

Em lugar de produzirmos uma análise crítica da expressão racismo científico e do conceito dela<br />

derivado, nossa opção foi, pois, a de apresentar todo o conjunto de dados qualitativos que embasam esta<br />

nossa crítica. Favorecendo, destarte, a avaliação do leitor quanto à propriedade de nossos próprios<br />

argumentos.<br />

RAÇA<br />

O termo raça tem origem em ratio, palavra latina que expressa modalidade, maneira ou jeito próprio<br />

de ser. Segundo o léxico de Francisco da Silveira Bueno, neste sentido, o termo fora encontrado, já na<br />

antiguidade, nos textos de Cícero e utilizado por toda a filosofia medieval. Bueno afirma que o termo teria<br />

aparecido no provençal sob o signo rassa e, a partir de então, se propagado para as línguas da península<br />

ibérica.<br />

Com vistas a classificar seu objeto de estudo, o botânico e médico, Carl Von Linné (Lineu)<br />

desenvolveu um sistema taxionômico, organizado em reinos (animal e vegetal) os quais se subdividiriam em<br />

filo, sub-filo, classe, sub-classe, ordem, família, gênero, espécie, subespécie, raça, variedade e cepa. Por<br />

meio deste sistema, Lineu classificou o homem como integrante do reino animal, sub-reino dos metazoários,<br />

filo dos cordados, subfilo dos vertebrados, classe dos mamíferos, ordem dos primatas, subordem<br />

anthropoidea, superfamília hominoidea, gênero homo, espécie sapiens.<br />

O zoólogo Johann Friederich Blumenbach desenvolveu outra sistemática, em oposição ao trabalho<br />

de Lineu e utilizou o termo raça para designar grupamentos humanos diferenciados entre si, em razão da<br />

herança biológica. Mas, de acordo com Lilia Ferreira Lobo (1997: 259), teria sido George Cuvier, no limiar<br />

do século XIX, quem introduziu a noção de raça articulada à hereditariedade de traços físicos comuns,<br />

permanentes e bem diversos entre os grupos humanos.<br />

Nos Oitocentos, por hereditariedade se podia entende um conjunto vago de ideias, na forma das<br />

mais diversas teorias, sobre o processo de transmissão de características entre as gerações (Del Cont, 2008:


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201). Havia teorias que defendiam a ideia de que a herança biológica era transmitida através do sangue,<br />

correspondendo, precisamente, à metade dos caracteres de cada genitor, em virtude do que a terceira geração<br />

contaria com apenas um quarto dos caracteres da primeira e, consequentemente, ao cabo de muitas gerações,<br />

as populações tenderiam a uma homogeneização ou uniformidade, convergindo para uma média ideal das<br />

populações originalmente diversificadas. Outras se pautavam na hipótese de que as características<br />

individualizantes eram decorrentes da mistura de elementos, que tanto podiam ser forças vitais ou espirituais<br />

que ambos os pais forneciam aos filhos quanto “consequência de treino, educação e experiências que os<br />

indivíduos adquiriam durante sua trajetória de vida”. Todas estas teses, no entanto, atestam o fato de que –<br />

até Hugo Vries, Karl Erich Correns e Erich Tschermak resgatarem, em 1900, os trabalhos desenvolvidos por<br />

Grergor Johann Mendel 3 – a noção de hereditariedade permaneceu algo tributária ao estatuto do sangue.<br />

Experimentos especulativos que se fizeram ao longo do XIX opuseram duas correntes de explicação<br />

quanto ao surgimento da humanidade, os monogenistas e os poligenistas; defensores, respectivamente, da<br />

unicidade ou pluralidade da origem da espécie. Em um artigo no qual discute O uso da variável "raça" na<br />

pesquisa em saúde, Josué Laguardia (2004: 202) explica que:<br />

O monogenismo nivelava todos os povos à unidade da Santa Escritura, a partir da criação de Adão e<br />

Eva, e afirmava que as “raças” humanas eram um produto da degeneração da perfeição do Éden,<br />

sendo que, dado sobretudo o clima, os brancos tinham declinado menos que os negros. O<br />

poligenismo alegava que a Sagrada Escritura era alegórica e que as “raças” humanas eram espécies<br />

biológicas separadas, descendentes de diferentes “adãos”. Os negros, como uma outra forma de vida,<br />

não deveriam, portanto, participar da igualdade do homem branco civilizado. Entretanto, a<br />

interfertilidade de todas as “raças” humanas parecia garantir sua unicidade, como uma espécie,<br />

definida enquanto uma população de indivíduos capazes de procriar. Cientistas sustentavam que a<br />

poligenia não era um ataque à doutrina da unidade do homem, pois embora as “raças” fossem<br />

espécies criadas separadamente, os homens estariam unidos por uma estrutura e compaixão comuns.<br />

Nem mesmo o advento da teoria da ancestralidade foi vista como uma ameaça às teses poligenistas,<br />

pois a teoria de Darwin não apagava as evidências acerca da diversidade humana, nem explicava<br />

essas diferenças ou os efeitos da mistura racial.<br />

Mas se a publicação, em 1859, de A origem das espécies não poria fim aos debates; ao menos<br />

mudaria seu rumo. Os poligenistas passariam a argumentar que as raças, apesar da origem única, haviam se<br />

separado em épocas remotas e que, por seleção natural das contingências do meio, umas evoluíram, outras<br />

não (Lobo, 1997: 261). Ao passo que os monogenistas iriam sustentar a ideia de que, tendo a humanidade<br />

uma origem única – como Darwin demonstrara –, as marcas biológicas seriam semelhantes para todos; e as<br />

desigualdades perceptíveis se explicariam por diferenças dos graus de evolução sócio-culturais.<br />

RACISMO<br />

Antes e depois de Darwin, porém, naturalistas (quase todos poligenistas) e filósofos ensejaram várias<br />

escolas de pensamento. A fisiognomia – que, embora muito antiga, teve em Johann Kaspar Lavater seu<br />

expoente moderno – asseverava poder revelar o caráter dos indivíduos a partir do estudo de seus traços<br />

3 Estes trabalhos foram publicados 1865 pela Sociedade de Naturalistas de Brüinn.


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externos; a frenologia, principiada pelos trabalhos de Franz Joseph Gall, postulava julgar as qualidades<br />

intelectuais e morais de um homem por meio da análise de seu crânio; o lombrosianismo – teoria<br />

criminológica desenvolvida a partir da Antropologia de Cesare Lombroso – se pautava na ideia de que a<br />

prática criminosa era decorrência da predisposição hereditária; o gobinismo, doutrina formulada pelo conde<br />

Joseph Arthur de Gobineau, denunciava a miscigenação entre tipos humanos como fator de sua<br />

degenerescência física e intelectual; o determinismo geográfico, de Friedrich Ratzel, sustentava a tese do<br />

meio natural como entidade definidora da fisiologia e psicologia humana; o darwinismo social, de Herbert<br />

Spencer, assumia a desigualdade entre os homens como algo natural e afirmava que sua evolução se daria<br />

por meio de processos espontâneos de seleção dos mais aptos; e o eugenismo, de Francis Galton,<br />

desacreditando da espontaneidade da seleção natural, propunha a intervenção científica na produção dos<br />

bons indivíduos.<br />

Porque todas estas escolas de pensamento – que buscavam explicar o comportamento humano por<br />

meio de causas naturais (e não culturais) – tinham em comum a raça como categoria analítica, a partir da<br />

década de 1930, passaram a ser referidas, de modo crítico e até pejorativo, como teorias do racismo<br />

científico. Mas, longe do que se pensa, não foram elas que ensejaram o fenômeno do racismo. Muito ao<br />

contrário – como bem acentua Hannah Arendt (2004: 189) – neste particular a ciência desempenhou um<br />

papel secundário. Aliás, antes até (2004: 188) Arendt dirá que:<br />

A verdade histórica de tudo isso é que a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII,<br />

emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. Desde o início do<br />

século XX, o racismo reforçou a ideologia da política imperialista. O racismo absorveu e reviveu<br />

todos os antigos pensamentos racistas, que, no entanto, por si mesmos, dificilmente teriam sido<br />

capazes de transformar o racismo em ideologia. Em meados do século XIX, as opiniões racistas eram<br />

ainda julgadas pelo critério da razão política: Tocqueville escreveu a Gobineau a respeito das<br />

doutrinas deste último que “elas são provavelmente erradas e certamente perniciosas”. Mas já no fim<br />

daquele século concederam-se ao pensamento racista dignidade e importância, como se ele fosse uma<br />

das maiores contribuições espirituais do mundo ocidental.<br />

Portanto, para entendermos as origens da ideologia racial, se faz necessário irmos mais longe e mais<br />

fundo. É preciso ir àquilo que Norbert Elias, em um estudo centrado na história francesa, designou como A<br />

sociedade de Corte. Formação social de molde aristocrático que se consolida na França de Luís XIV e se<br />

replica, mutatis mutandi, por quase toda Europa e domínios europeus ultramarinos. Ela sucede, a partir do<br />

século XVI, aquela formação social própria à sociedade feudal e antecede aquela outra que, típica da<br />

sociedade burguesa, vigerá nos séculos XIX e XX.<br />

A sociedade de corte é, portanto, algo característico da idade moderna. E decorre de um processo<br />

que se inicia com o “afluxo de metais preciosos provenientes das terras ultramarinas e o correspondente<br />

aumento na circulação de bens que se efetuou em virtude disso”, (Elias, 2001: 164), desdobra-se na alta geral<br />

dos preços, na proporcional desvalorização da moeda e na equivalente queda da arrecadação tributária; e<br />

resulta na ruína, não da camada média – integrada por agricultores, industriais ou comerciantes que, nesta<br />

condição, sempre podiam reajustar seus preços – mas das camadas nas extremidades da pirâmide social,<br />

representadas pela nobreza, em um polo e pelos trabalhadores, em outro.


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Assim, modo geral, o quadro se definia em termos de uma gradativa depauperação da nobreza e do<br />

enriquecimento das “corporações burguesas” que se iam tornando numerosas e “conscientes de seu valor”.<br />

Nestas condições – consoante a lógica da filósofa Marilena Chauí (2001: 90) segundo a qual “a classe que<br />

explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente” – a burguesia,<br />

“embora sem força o bastante para reivindicar a dominação para si mesma, passa a opor uma feroz<br />

resistência às reivindicações de dominação e poder da nobreza”; que, ainda “forte o bastante para desafiar a<br />

camada burguesa ascendente e afirmar-se em relação a ela”, já se havia tornado “fraca demais, sobretudo do<br />

ponto de vista econômico, para conseguir sua dominação sobre a burguesia” (Elias, 2001: 178).<br />

O rei de França, por exemplo, que em função de sua especial posição sócio-política pôde preservar<br />

sua base econômica quase que à margem daqueles acontecimentos e ampliar as condições de seu poder,<br />

assume, a partir de então, um protagonismo social sem precedentes, exercendo o papel de árbitro desta luta<br />

travada ao longo dos séculos XVI e XVII.<br />

Mas, aqui, vale uma pequena digressão. A formação social desenvolvida ao longo da Idade Média<br />

reservou à figura real o papel de líder político e militar. No entanto, a hierarquia nobiliárquica espelhava a<br />

hierarquia marcial, e o exército real era, então, constituído da reunião de tropas formadas cada qual por um<br />

grupo de homens fiéis a um “Grande” nobre e sob o comando deste. Estes homens eram, em regra, também<br />

nobres (cavaleiros) de classes diversas, relacionados entre si por força de direitos de suserania e deveres de<br />

vassalagem; e excepcionalmente (quando necessário reforços) camponeses aos seus serviços. O peso da<br />

nobreza medieval era proporcional à dependência que dela tinha o monarca com relação a todos os seus<br />

empreendimentos bélicos e governativos. Porque sem corpos administrativo e militar próprios, o rei<br />

apoiava-se sempre em frágeis alianças de interesses e quedava-se invariavelmente sob o risco de ver seu<br />

poder usurpado pela casa de um dos Grandes ou partilhado entre elas.<br />

Esta situação só irá mudar quando, em virtude das transformações da ordem econômica, ocorridas<br />

notadamente a partir do século XVI, o rei se torna menos dependente de recursos fundiários e mais lastreado<br />

por verbas tributárias. Neste novo ambiente pôde o rei reduzir significativamente a expressão da nobreza<br />

cavalheiresca, formando tropas com homens recrutados nas camadas inferiores (aos quais, em lugar de doar<br />

feudos, pagava em moeda, na forma de soldo) e equipando seus exércitos com armas de fogo. Demais disso,<br />

conforme dissemos linhas acima, as mesmas circunstâncias econômicas já haviam, em boa medida,<br />

empobrecido a nobreza, como um todo; tornando-a dependente do dinheiro que o rei (em razão do juízo que<br />

fazia quanto à conduta ou a própria pessoa do pretenso beneficiário) distribuía, sob a forma de salários,<br />

pensões ou donativos. Por isso, de acordo com Elias (2001: 200):<br />

A corte cresceu imensamente com o afluxo de nobres desarraigados, sendo, como na época de<br />

Henrique IV, uma espécie de caldeirão onde se encontravam e se misturavam por casamentos os<br />

burgueses em ascensão – sobretudo pela compra de cargos oficiais –, nobres recentes, saídos<br />

especialmente da noblesse de robe, e membros da antiga nobreza.<br />

Vê-se, portanto, que na sociedade de corte “o dever tradicional que o rei tinha de sustentar os nobres,<br />

assim como o dever dos nobres de servir ao rei – nada disso desapareceu” (Elias, 2001: 170). Nela, a


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nobreza, mesmo sem função militar, ainda serviria ao rei como contrapeso às pressões exercidas pelas<br />

camadas burguesas. Embora, ele próprio, para conter as pressões da nobreza, fortalecesse a burguesia,<br />

franqueando a seus membros posições importantes na administração dos negócios do reino.<br />

Elias (2001: 188) explica este quadro de modo mais detalhado:<br />

Objetivamente, ele [o rei] precisava da nobreza como contrapeso às outras camadas de seu reino. A<br />

aniquilação da nobreza, a supressão da distância que a separava da burguesia, o aburguesamento da<br />

nobreza, essas coisas teriam provocado um grande deslocamento do equilíbrio dessa figuração, um<br />

significativo aumento do poder das camadas burguesas e uma dependência dos reis em relação a elas.<br />

Tanto que os soberanos, mesmo sem compreender com clareza o sentido desse equilíbrio para sua<br />

própria posição social em seu reino, zelavam ciosamente pela preservação das distinções entre os<br />

estados, mantendo assim a condição da nobreza como uma camada própria, bem diferenciada.<br />

Contudo, se os reis precisavam da nobreza e por isso a sustentavam, também tinham de preservá-la de<br />

maneira que o perigo que ela representava para a realeza fosse suprimido amplamente. Um<br />

desenvolvimento lento e muito gradual preparou a solução definitiva desse problema. Primeiro, com<br />

o auxílio de um funcionalismo constituído de burgueses, o rei afastou a nobreza de quase todos os<br />

cargos elevados do judiciário e da administração. Desse modo surgiu a poderosa camada da noblesse<br />

de robe, que se equiparava à nobreza em poder, e às vezes até em prestígio social. Mantendo tal<br />

procedimento e reativando-o sempre, a preocupação do rei era ocupar todas as posições de poder do<br />

seu governo com pessoas sem relações, que dependessem exclusivamente dele. Assim, no século<br />

XVI a maior parte da nobreza foi lançada de volta à suas funções de cavaleiros e proprietários de<br />

terra. Com o lento progresso da economia monetária e as mudanças daí advindas, sobretudo em<br />

termos do valor do dinheiro e da reforma do exército, essa base estava extremamente abalada. Foi tal<br />

abalo, principalmente, que obrigou boa parte da nobreza a se dirigir para a corte, vinculando-a ao rei<br />

sob uma nova forma.<br />

Em um contexto no qual, até então, as hierarquias sociais eram definidas em razão do pertencimento<br />

a um estamento e, no caso da nobreza, também a uma casa específica (quer dizer, eram definidas em virtude<br />

do nascimento) era lícito se acreditar que a superioridade social decorresse de uma superioridade hereditária,<br />

na exata acepção oitocentista de hereditariedade a que nos referimos acima. Era, porém, igualmente lícito, a<br />

uma burguesia empoderada, afirmar que nenhuma diferença natural havia entre os homens e que toda<br />

distinção repousava na riqueza e no prestígio que o indivíduo e seu grupo possuíssem. Por isso, Arendt<br />

(2004: 189) dirá que “somente duas ideologias sobressaíram-se e praticamente derrotaram todas as outras: a<br />

ideologia que interpreta a história como uma luta econômica de classes, e a que interpreta a história como<br />

uma luta natural entre raças”.<br />

Para Arendt ideologias são “sistemas baseados numa única opinião suficientemente forte para atrair e<br />

persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientá-las nas experiências e situações da vida<br />

moderna”; mas cuja força persuasiva não é possível sem que o seu apelo corresponda às nossas experiências<br />

ou desejos. De sorte que, ao sustentar (Ibidem) que o papel da ciência, em cenários como este, “resulta da<br />

necessidade de proporcionar argumentos aparentemente coesos, e assume características reais, porque seu<br />

poder persuasório fascina também a cientista, desinteressados pela pesquisa propriamente dita e atraídos pela<br />

possibilidade de pregar à multidão as novas interpretações da vida e do mundo”; ela está a dizer (1) que o<br />

argumento científico se faz, aí, necessário para conferir verossimilhança ao discurso político e (2) que os<br />

homens de ciência se permitem prestar este papel sempre que, enredados por uma ideologia, renunciam à<br />

função de críticos, em favor da atividade de militantes.<br />

Porém, quando a politóloga, tratando da ideologia racial, sentencia que “toda ideologia que se preza


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é criada, mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica” ela não se refere apenas à<br />

política interna, ou seja, ao confronto entre nobreza e burguesia; mas também à política externa, isto é, ao<br />

fenômeno do imperialismo.<br />

IMPERIALISMO<br />

O advento do imperialismo marca o esgotamento do modelo de sociedade de corte e sua substituição<br />

por aquele de sociedade burguesa. Definido como política de expansão da área territorial de influência ou de<br />

poder direto, de exploração econômica dos povos subjugados e, por vezes, de dominação cultural dos<br />

mesmos, o fenômeno do imperialismo, tem sido estudado por pensadores das mais diversas linhas de análise<br />

as quais, de acordo com Sergio Pistone (1995: 611), vão desde a teoria do subconsumo até a teoria da razão<br />

do Estado, passando pelas: teoria leninista do imperialismo, teoria do capitalismo monopólico, teoria social-<br />

democrata e teoria liberal.<br />

Pistone acredita que o termo imperialismo tenha surgido na Inglaterra da década de 1870 quando a<br />

política de Disraelli buscou “robustecer a unidade dos Estados autônomos, ou seja, criar a imperial<br />

federation”. No entanto, admite que, para além do caso inglês, nesta década – sobretudo após a conclusão do<br />

processo de unificação italiana e alemã – teve início uma fase de intensificação quantitativa e qualitativa de<br />

episódios caracterizados como próprios do imperialismo.<br />

Para o historiador, o fator decisivo sobre o qual se chama a atenção para explicar o imperialismo<br />

neste período, entre 1870 e 1945, é a crise do Estado nacional. Assim entendida a contradição que se vinha<br />

manifestando desde o final do século XIX entre as possibilidades econômicas oferecidas pelos Estados<br />

nacionais nos limites de seus próprios territórios e as exigências do desenvolvimento produtivo que, em<br />

consequência do início da produção de massa instavam não apenas por mercados consumidores, como<br />

também por fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra.<br />

Embora longo, o trecho, vale a pena transcrever a explicação de Arendt (2004: 215) sobre a relação<br />

entre racismo e imperialismo:<br />

Dois novos mecanismos de organização política e de domínio dos povos estrangeiros foram<br />

descobertos durante as primeiras décadas do imperialismo. Um foi a raça como princípio da estrutura<br />

política; o outro, a burocracia como princípio do domínio no exterior. Sem a raça para substituir a<br />

nação, a corrida para a África e a febre dos investimentos poderiam ter-se reduzido – para usar a<br />

expressão de Joseph Conrad – à desnorteada “dança da morte e do comércio” das corridas do ouro.<br />

Sem a burocracia para substituir o governo, a possessão britânica da índia poderia ter sido<br />

abandonada à temeridade dos “infratores da lei na Índia” (Burke), sem que isso alterasse o clima<br />

político de toda uma época.<br />

Ambas as descobertas foram realizadas no Continente Negro. A raça foi uma tentativa de explicar a<br />

existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão dos europeus, e cujas formas e<br />

feições de tal forma assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que<br />

eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na idéia da raça encontrou-se a<br />

resposta dos bôeres à “monstruosidade” esmagadora descoberta na África – todo um continente<br />

povoado e abarrotado de selvagens – e a justificação da loucura que os iluminou como “o clarão de<br />

um relâmpago num céu sereno” no brado: “Exterminemos todos esses brutos!” Dessa ideia<br />

resultaram os mais terríveis massacres da história: o extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as<br />

selvagens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão, a dizimação da pacata população do<br />

Congo reduzida de uns 20 milhões para 8 milhões; e, o que é pior, a adoção desses métodos de


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Nº 1, setembro de 2011<br />

“pacificação” pela política externa européia comum e respeitável.<br />

De modo sintético e tomando por referência a figura dos Estados nacionais, se pode dizer que, no<br />

plano das relações domésticas, a raça foi o princípio estruturante das hierarquias sociais nas sociedades<br />

burguesas, à semelhança do que foi a casa para as sociedades aristocráticas (notadamente as sociedades de<br />

corte) e do que veio a ser o consumo para as sociedades de massas. No plano das relações exteriores a raça,<br />

confundida com o fenótipo e, praticamente, reduzida a cor da pele, foi o princípio criador de uma hierarquia<br />

entre os povos que, lastreada no argumento messiânico encerrado na ideia do “fardo do homem branco” 4 ,<br />

justificava a dominação européia sobre a África, tanto quanto (como se viu mais tarde) a invasão dos<br />

territórios de Estados vizinhos e a dominação de suas populações pelos países do Eixo.<br />

Resta evidente que o racismo nada tem de ver com o escravismo, senão o fato de, nas Américas, se<br />

haver prestado a reorganizar as hierarquias sociais em vista do fim do regime do trabalho escravo;<br />

substituído, então, pelo do trabalho livre. Este dado, porém, não se tem mostrado claro a boa parte das<br />

gentes, notadamente aquelas que se encontram no Novo Mundo, sem exceção de seus intelectuais. Por isso,<br />

a par desta confusão, Claude Meillassoux cuida de explicitar o fato de a escravidão ser um fenômeno de<br />

origem mais distante que o continente africano e mais remota que a diáspora de seus nativos. É neste sentido<br />

que sustenta (1995: 17) que:<br />

A causa indireta desse modo de exploração e dos confrontos entre povos que ele gera se explica<br />

provavelmente por um processo histórico que se estende durante séculos. A escravidão é um período<br />

da história universal que afetou todos os continentes, simultaneamente às vezes, ou sucessivamente.<br />

Sua “gênese” é a soma de tudo o que adveio durante um tempo indeterminado, em vários lugares. O<br />

tráfico africano de escravos para o Maghreb, e depois para a Europa, que está na origem da<br />

escravidão na África Negra, apenas substitui tráficos que subsistiram durante séculos na Ásia, no<br />

continente europeu e em torno do Mediterrâneo. Os eslavos forneceram seu contingente de “slaves” –<br />

os esclavões – de escravos; nosso antepassados, os gauleses, vendiam regularmente os seus cativos da<br />

Inglaterra ao romanos, os vikings os capturavam e vendiam durantes suas cabotagens. Piratas<br />

muçulmanos e cristãos se capturavam mutuamente... A escravidão já estava iniciada há muito, e seria<br />

preciso, para explicá-la na África, explicar o seu aparecimento no continente euro-asiático.<br />

Entretanto, é paradoxalmente na África, último dos continentes que abasteceu o tráfico, que se<br />

procura ainda uma explicação original para a escravidão, a partir do desenvolvimento endógeno de<br />

sociedades ainda suspeitas de primitivismo e de isolamento, e, consequentemente, laboratório de<br />

fantasmas atrasados.<br />

Daí a preocupação que Meillassoux nutre, em Antropologia da escravidão, de esclarecer as diversas<br />

sortes de relações sociais escravistas e os muitos sentidos que os povos conferem a palavra escravo. Segue<br />

mais ou menos no mesmo sentido Hebe Maria Mattos; para quem “a força da associação que atualmente se<br />

faz entre a diáspora africana e a escravidão americana é de tal monta que obscureceu quase que totalmente o<br />

caráter não racial da origem da instituição”, (2000: 16). A historiadora dedica uma obra à elucidação do fato<br />

do conceito de raça, bem assim, da racialização da justificativa da escravidão americana, serem construções<br />

sociais do século XIX, especificamente; cujo papel, neste continente, fora conter, em sociedades – que,<br />

4 The white man burden – O Fardo do Homem Branco – é o título do poema de Rudyard Kipling que, publicado em 1899, incitava<br />

europeus e norte-americanos à conquista imperialista do mundo. Nele, Kipling sustentava ser o domínio do planeta uma missão<br />

que todos os homens brancos deviam assumir, como um fardo, uma obrigação dos civilizados do mundo para com a parte a que o<br />

autor considerava selvagem ou bárbara.


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então, não reuniam condições políticas efetivas para tanto – a voga da universalização de direitos do cidadão,<br />

decorrente dos liberalismos político e econômico que forçavam a abolição daquele regime de trabalho.<br />

Mattos (2000: 14) observa, no entanto, que “afirmar que a legitimação da escravidão moderna não se<br />

fez em bases raciais não implica considerar que estigmas e distinções apoiados na ascendência deixassem de<br />

estar presentes nas sociedades do Antigo Regime, em especial, no Império Português, (2000: 14). Ela<br />

explica que o chamado estatuto da pureza de sangue, em Portugal, por força das Ordenações Afonsinas<br />

(1446-47), “limita[va] o aceso a cargos públicos, eclesiásticos e a títulos honoríficos aos chamados cristãos<br />

velhos (famílias que já seriam católicas há pelo menos quatro gerações)”, privando, de imediato, mouros e<br />

judeus; em seguida, por meio das Ordenações Manuelinas (1514-21), ciganos e indígenas; e mais tarde, já<br />

sob a égide das Ordenações Filipinas (1603), também, negros e mulatos. E remata dizendo que:<br />

O estatuto da pureza de sangue, apesar de sua base religiosa, construía uma estigmatização baseada na<br />

ascendência, de caráter proto-racial – que, entretanto, era usada não para justificar a escravidão, mas<br />

antes para garantir os privilégios e a honra da nobreza, formada por cristãos velhos, no mundo dos<br />

homens livres.<br />

Ainda mais explícita é Manuela Carneiro da Cunha que, na orelha do livro de Lilia Moritz Schwarcz,<br />

O espetáculo das raças, sustenta que o desmantelamento do escravismo se deu por meio da construção de<br />

instituições assentes na idéia de igualdade política o que exigiu, para fins de manutenção das hierarquias<br />

sociais, o apoio ideológico do discurso racial. Por isso, segundo ela “o Brasil de 1870 a 1930, é assim, a um<br />

tempo, liberal e racista: racismo de folhetim, sorvido de manuais e de autores de segunda categoria, e talvez<br />

por isso mesmo tão abrangente”.<br />

RACISMO NO BRASIL<br />

Reduzindo-se, então, o plano de análise do ocidente, como um todo, para o Brasil, em específico,<br />

constata-se que a peculiaridade deste contexto não permite se diga que aqui a ciência teve um papel<br />

secundário na constituição de uma ideologia racial. Neste país vale mais o argumento de Jessé Souza (2009:<br />

51) de que “o estímulo e o limite de qualquer ação política” decorre de um conjunto de ideias desenvolvidas<br />

por pessoas que “possuem a „autoridade científica‟, para falar sobre os assuntos públicos”.<br />

A peculiaridade oitocentista brasileira, a que nos referimos parágrafo acima, é explicada, por Lilia<br />

Moritz Schwarcz (2004: 18), em termos de incipiência da estrutura acadêmica e consequente escassez de<br />

quadros que faziam de nossos homens de ciência um “misto de cientistas e políticos, pesquisadores e<br />

literatos, acadêmicos e missionários” os quais, na qualidade de “Novos-ricos da cultura” – expressão que<br />

Schwarcz (2004: 41) atribui a Antonio Candido –, tinham na “leitura e interpretação de textos e manuais<br />

positivistas, darwinistas sociais e evolucionistas sua atividade intelectual por excelência”.<br />

Schwarcz, entretanto, defende a tese de que a assimilação do pensamento racial europeu pelos<br />

intelectuais brasileiros não se deu em razão de qualquer sentimento de inferioridade diante da solidez das<br />

academias estrangeiras, mas em virtude da conformação deste pensamento à necessidade de composição de


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interesses que se conflitavam, tanto mais a doutrina liberal avançava sobre a cena política nacional. E no<br />

mesmo diapasão, afirma que a escolha de referências teóricas, por parte destes intelectuais, não foi aleatória,<br />

mas cuidadosa; tendo observado o critério de adequação do conteúdo das obras à defesa da preservação de<br />

uma hierarquia social tipicamente aristocrática no contexto de uma sociedade que se ia tornando burguesa.<br />

No século XX, entre as décadas de 1930 e 1950, ocorrerá uma nova e, até mesmo, bizarra conjunção<br />

de fatores: (1) a Revolução de 1930; (2) a publicação, em 1933, do livro Casa Grande e Senzala; e (3) a II<br />

Grande Guerra, entre 1939 e 1945.<br />

Getúlio Vargas, candidato que, por força de fraude, foi derrotado nas eleições presidenciais, articulou<br />

um bem-sucedido golpe de Estado, com o que pode, no domínio econômico, reordenar os papéis das<br />

unidades federadas na cadeia produtiva nacional e, particularmente, o desenvolvimento industrial; e, no<br />

âmbito político, esvaziar o poderio das oligarquias locais e silenciar os movimentos reivindicatórios.<br />

Concluindo, assim, o processo de implementação do liberalismo no Brasil o qual se arrastava fazia 108 anos,<br />

e completando a revolução burguesa que já se vinha desenvolvendo, nos domínios econômico e social, havia<br />

pelos menos uma década.<br />

Gilberto Freyre, oficial de gabinete do governador do Estado de Pernambuco, perdeu o cargo quando<br />

o governo revolucionário substituiu Estácio de Albuquerque Coimbra e todos os demais governadores<br />

eleitos, por interventores nomeados presidente da república. Estando entre as primeiras vítimas da<br />

Revolução, colocou-se desde sempre na oposição a Vargas. Contudo, mesmo que a contragosto, não apenas<br />

Casa Grande e Senzala – trabalho idealizado a partir de seu exílio – como toda sua obra, viria dar os<br />

melhores argumentos à formação da consciência nacional como apregoada pelo aparelho de Estado<br />

varguista.<br />

Por fim, a guerra fundada na questão racial foi uma das principais causas da derrocada da ideologia<br />

racista. Com a capitulação alemã, o racismo científico que já havia perdido, quase que totalmente, seu<br />

prestígio entre os acadêmicos, tornou-se impopular.<br />

Não é por outra razão que, em 1950, o ideal de uma democracia racial já se havia tornado consenso<br />

entre a militância do embrionário Movimento [social] Negro e os intelectuais anti-racistas, (D‟ADESKY,<br />

2005). Contudo, o que se queria como um ideal foi sendo aos poucos tomado como um fato já consumado,<br />

por força, muito especialmente, da propaganda empreendida pelos aparelhos ideológicos do Estado. E nisto<br />

reside um dos motivos da ruptura do Movimento Negro em relação aos defensores desta matriz do<br />

pensamento anti-racista.<br />

Os teóricos da democracia racial, de acordo com Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, (2000: 22), vão<br />

defender a idéia de que, no Brasil:<br />

(a) a “cor” e a “aparência” são mais importantes do que a “raça”; (b) a noção de cor é ambígua,<br />

existindo um contínuo de cor; (c) a polaridade branco/negro organiza o gradiente de cor e de prestígio<br />

social; (d) o embranquecimento, que antes significava tão-somente substituição da população negra<br />

pela branca ou, quando muito, miscigenação biológica, passa a significar ascensão social e<br />

aculturação dos negros e mulatos; (e) de que não existem, propriamente falando, grupos raciais ou<br />

comunidade negra no Brasil; (f) de que a discriminação e o preconceito raciais existentes seriam de<br />

caráter individual; (g) a discriminação de classe seria responsável pelo grosso das discriminações que


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aparentam ser raciais; (h) as desigualdades raciais seriam produto dos anos de escravidão e das<br />

dotações iniciais desiguais entre brancos e negros, em termos de capital (econômico, cultural, social,<br />

educacional. etc.).<br />

Embora tais ideias se encontrassem no substrato das motivações que levaram à eleição do Brasil para<br />

campo de pesquisa do Projeto UNESCO, seriam os trabalhos resultantes deste projeto que as denunciariam<br />

como responsáveis pelo imobilismo político que militava em favor do status quo ante, isto é – em favor do<br />

racismo. A crítica se fundava no fato desta matriz de pensamento celebrar a contribuição cultural da<br />

população estigmatizada, sem promover sua inclusão social. O que significa dizer que, se de um lado ela – a<br />

democracia racial – colaborou para o reconhecimento da contribuição cultural do negro, (africano e crioulo)<br />

e do vermelho (ameríndio); de outro, permitiu que o negro e o vermelho fossem apropriados apenas como<br />

objetos culturais – ou no dizer de Guimarães, (2000: 27), como símbolos e “marcos de fronteira da<br />

civilização brasileira, remanescentes dos antepassados que criaram a nação, restos e vestígios das origens”.<br />

Desde então a democracia racial passará a ser tratada como um mito ao qual raramente se atribui o<br />

mérito de haver tranquilizado o gentio quanto a nossa herança biológica, (elidindo, assim, o potencial de<br />

conflito étnico provocado pelo ideário do racismo científico); e a que sempre se acusa de haver promovido o<br />

igualitarismo racial somente no plano dos discursos, (o que se prestaria apenas a reforçar o mito do Brasil<br />

país do futuro e franquear a lealdade de todos os cidadãos à ideologia da “questão nacional”) 5 .<br />

ETNIA<br />

O significado que os gregos atribuíram ao signo εθνο (ethnos) guarda maior relação com o que os<br />

latinos designaram gens, do que com aquilo que os povos neo-latinos chamam raça (razza, raza, rasa, race<br />

etc.) e, menos ainda, com que chamam etnia (etnie, ethnie ou coisa semelhante). Como vimos, a noção de<br />

raça, a partir de Lineu, se estabeleceu como relacionada ao que Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart<br />

(1998: 41) chamam “hereditariedade biossomática”, desdobrando-se ao longo da história até denotar, tão<br />

somente, “a percepção das diferenças físicas, no fato de elas terem uma incidência sobre os estatutos dos<br />

grupos e dos indivíduos e as relações sociais”. A noção de etnia, entretanto, se mostra algo mais complexa, à<br />

medida que abrange sentidos os quais, conforme cada teórico, se encontram articulados ora com a própria<br />

noção de raça; ora com a de nação; ora, ainda, com a de tribo. Demais disso, sua história se revela<br />

atravessada por eventos, demandas e questionamentos, muito diversos, embora tantas vezes concomitantes.<br />

Por exemplo, Poutignat e Streiff-Fenart (1998: 55), lastreados em Jean-Loup Amselle e Britta Rupp-<br />

Eisenreich, explicam que o termo nação, antes empregado para referir-se às chamadas “sociedades<br />

primitivas” passou a vincular-se a ideia de sociedades (complexas) organizadas sob a forma de Estados.<br />

Assim é que os vocábulos etnia e tribo assumiram, em substituição, o sentido de “sociedades primitivas”.<br />

5 Marilena Chauí, à página 16 de Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, sustenta que de acordo com Eric Hobsbawn, o<br />

aparecimento do termo nação no vocabulário político data da década de 1830, sofrendo, neste âmbito, variações semânticas, nas<br />

décadas 1880 e de 1910. A estes períodos corresponderiam as ideologias do “princípio da nacionalidade”, da “idéia nacional” e<br />

da “questão nacional”, às quais se vinculariam o entendimento de nação ora associado a território; ora a um complexo<br />

envolvendo língua, religião e raça; ora a um conjunto de lealdades políticas.


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Com a consequência de, a par de outras distinções, operarem a grande divisão entre a antropologia e a<br />

sociologia, a saber: “sociedade sem história/sociedade com história, sociedade pré-industrial/sociedade<br />

industrial, comunidade/sociedade”.<br />

Além disso, se hoje “na sociologia anglo-saxônica, admite-se, de modo explícito ou implícito, que os<br />

grupos raciais diferem dos grupos étnicos pelo fato de serem definidos não em termos de diferenças<br />

socioculturais, mas a partir de diferenças percebidas no fenótipo” (idem: 41); a primeira instituição norte-<br />

americana voltada exclusivamente aos estudos e debates no campo da etnologia – a American Ethnological<br />

Society (fundada em 1842) – tinha textualmente como principal objetivo estatutário “incluir inquéritos sobre<br />

a origem, evolução e características das várias raças de homem” (Paulino, 2010). E, mesmo na França da<br />

atualidade, o uso do vocábulo etnia, segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998: 43), se dá como eufemismo de<br />

raça.<br />

Em paralelo, conforme registro que faz a edição de 1966 da Enciclopédia Barsa, em seu verbete<br />

raça, “controvérsias e discordâncias surgidas em torno do 'problema racial'” levaram grande parte dos<br />

antropólogos a propor o abandono do termo e sua substituição “por uma expressão nova, não comprometida:<br />

grupo étnico”. E, de fato, nota Manuela Carneiro da Cunha (2009: 250) que após a Segunda Guerra Mundial<br />

o critério racial de identificação dos grupos humanos foi substituído pelo cultural. Definindo-se grupo étnico<br />

como o portador de “valores, formas e expressões culturais”; quando não, “de uma língua ao mesmo tempo<br />

exclusiva e usada por todo o grupo” (idem).<br />

O novo critério, não obstante suas vantagens em relação ao anterior, induzia à equivocada<br />

pressuposição da existência, sempre e obrigatoriamente, apriorística e ancestral de uma cultural que, nesta<br />

condição, figurava como ensejadora de uma etnicidade a partir da qual se constituía um grupo; quando, ao<br />

contrário, é – a cultura – a resultante da própria organização de um grupo étnico. Demais disso, diante da<br />

eleição de certos signos e sinais diacríticos como elementos da afirmação da identidade grupal, o novo<br />

critério revelou-se incapaz de predizer “quais entre todos os traços culturais seriam enfatizados” (Idem).<br />

Daí que a expressão grupo étnico só conheceu efetivo avanço em sua conceitualização, em fins da<br />

década de 1960, quando, então, “o objeto das pesquisas sobre etnicidade passou do estudo das características<br />

dos grupos para o estudo das propriedades de um processo social” (Poutignat e Streiff-Fenart: 65). Foram os<br />

trabalhos de Abner Cohen, Fredrik Barth e Michael Moerman 6 (Cunha, 2009: 252; e Poutignat e Streiff-<br />

Fenart, 1998: 84) que consagram esta nova perspectiva a partir da qual se definem grupos étnicos como<br />

“formas de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como tais<br />

pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem” (Cunha, 2009: 251).<br />

GRUPOS ÉTNICOS<br />

6 Os autores se referem à monografia Custom and politics in urban Africa, de Cohen; à introdução de Barth à coletânea por ele<br />

próprio organizada sob o título de Ethinic groups and boundaries; e ao artigo Ethnic identification in a complex civilization: who<br />

are the Lue?, publicado por Moerman, no número 67 da revista American Anthropologist.


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Barth – talvez o maior expoente desta que restou conhecida como antropologia do contato<br />

interétnico – inicia seu texto clássico repisando aquelas críticas às soluções apresentadas, pelo chamado<br />

método comparativo, ao problema da delimitação das unidades étnicas como base de amostragem válida para<br />

a análise estatística. Neste sentido, sobre o que chama de raciocino antropológico [clássico], afirma emergir<br />

o conceito de cultura como "uma maneira de descrever o comportamento humano", (ibidem) e, via de<br />

consequência, o entendimento de que cada grupo de comungantes de uma cultura integra um grupo étnico<br />

(Barth, 2000: 26). Observa, ainda, de modo crítico, o fato de praticamente todo o raciocínio antropológico<br />

basear-se na premissa de que a variação cultural é descontínua; supondo, pois, “que há agregados humanos<br />

que compartilham essencialmente uma mesma cultura e que há diferenças interligadas que distinguem cada<br />

uma dessas culturas de todas as outras” (idem).<br />

Disto desdobra-se a crítica que faz àquela tradição etnográfica que se pauta em inventários culturais<br />

os quais, segundo aponta, estariam fundados em construções típico-ideais de grupo étnico como população<br />

que: (1) em grande medida se auto-perpetua do ponto de vista biológico; (2) compartilha valores culturais<br />

fundamentais, realizados de modo patentemente unitário em determinadas formas culturais; (3) constitui um<br />

campo de comunicação e interação; (4) tem um conjunto de membros que se identificam e são identificados<br />

por outros, como constituindo uma categoria que pode ser distinguida de outras categorias da mesma ordem.<br />

O que, segundo ele, "não está muito longe, em termos de conteúdo, da proposição tradicional de que uma<br />

raça = uma cultura = uma língua, e de que sociedade = unidade que rejeita ou discrimina outros", (Barth,<br />

2000: 27).<br />

Muito embora admita que a perspectiva de seu trabalho tome os grupos étnicos como descrito no<br />

item (4), afirma (idem: 28) "ao tentar oferecer um modelo típico-ideal de uma forma empírica encontrada<br />

recorrentemente, essa formulação traz implícita uma visão preconcebida de quais são os fatores<br />

significativos para a gênese, a estrutura e a função de tais grupos”, o que induz à compreensão do fenômeno<br />

– grupos étnicos – como sendo as próprias características morfológicas das culturas de que são portadores.<br />

Sua resistência ao modelo antropológico clássico se explica nos seguintes termos: "minha principal<br />

objeção é que, tal como está formulada, essa definição nos impede de compreender o fenômeno dos grupos<br />

étnicos e seu lugar na sociedade e na cultura humanas", (ibidem). E completa: "esse ponto de vista contém<br />

uma opinião preconcebida a respeito (i) da natureza da continuidade dessas unidades no tempo; e (ii) do<br />

lócus dos fatores que determinam a forma dessas unidades", (idem: 29).<br />

A dimensão tempo-espaço, contida, nesta visão demanda, em seu aspecto temporal, a verificação da<br />

presença de dados traços culturais para a identificação de pessoas e grupos como integrantes de um dado<br />

grupo étnico, o que leva ao privilégio da "análise das culturas, em detrimento da organização étnica",<br />

(ibidem). Ao passo que, em seu aspecto espacial, considera as formas culturais aparentes como resultante<br />

das condições ambientais, isto é, como resultado das soluções históricas apresentadas pelo grupo como modo<br />

de adaptação ao meio natural. No limite, uma tal visão não considera a possibilidade de um mesmo grupo<br />

ocupar uma área geográfica bastante ampla cuja diversidade ambiental implique na manifestação de formas<br />

diferentes de adaptação, sem que tais variações importem na constituição de novas identidades étnicas.


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Barth, então, defende o argumento de que nem o ambiente pode ser reconhecido como determinante<br />

constitutivo da cultura, nem os elementos formadores de cada cultura podem ser reconhecidos como<br />

constitutivos de uma etnia ou de um grupo étnico. É neste sentido que (idem: 31) sustenta ser:<br />

TRIBOS URBANAS<br />

Inadequado considerar que as formas institucionais manifestas constituem as características culturais<br />

que a todo momento permitem distinguir um grupo étnico, pois estas formas são determinadas tanto<br />

pela ecologia quanto pelo legado cultural. Também não é correto alegar que toda diversificação<br />

interna a um grupo seja um primeiro passo rumo à subdivisão e à multiplicação de um mesmo grupo<br />

étnico.<br />

Desta sorte, no esforço por entender o(s) papel(éis) assumido(s) pelo negro na organização social<br />

brasileira, o recurso à teoria de Barth nos permitiu compreender porque nas Américas parte expressiva dos<br />

negros se consideram e são considerados como componentes de um único grupo étnico; enquanto na África<br />

compõem uma miríade destes grupos. Assim como, por extensão, nos fez constatar que indivíduos negros<br />

podem se definir como integrantes do grupo étnico negro ou se identificar como pertencentes a qualquer<br />

outro.<br />

Então, levando em conta a notação de Poutignat e Streiff-Fenart (1998: 112) – de que “Considerando<br />

o grupo étnico do ponto de vista da atribuição de categorias de 'Nós' e de 'Eles', Barth faz da etnicidade um<br />

processo organizacional que não podemos, de um ponto de vista analítico, distinguir a priori e por definição<br />

de outras formas de identidades coletivas” – reduzimos nossa unidade social de análise à cidade do Rio de<br />

Janeiro e tendo admitido, apenas por hipótese: a) corresponder a cada grupo de cor, um grupo étnico, b)<br />

existir um grupo étnico burguês no qual se encerram todos e apenas os brancos (tendo por seu termo de<br />

alteridade outro grupo formado de todos e apenas negros) e, c) que a cidade é habitada não somente por<br />

brancos e negros (mas também por amarelos e vermelhos); concluímos faltar, neste modelo ideal, grupos<br />

étnicos que representassem os demais grupos de cor.<br />

Decorreu deste exercício de lógica nossa certeza quanto a existência, no Rio de Janeiro, de outros<br />

grupos étnicos para além de negros e burgueses. E, daí, pensamos inventariar os grupos de pertencimento<br />

mais expressivos da sociedade carioca. Todavia, diante do risco de um indivíduo poder cambiar<br />

sucessivamente de grupo, como poder pertencer simultaneamente a mais de um, restringimos o elenco<br />

àqueles grupos de pertencimento constituídos, em caráter perene, em torno de identidades básicas as mais<br />

gerais, a saber: origem e circunstâncias de conformação; estas últimas – as circunstâncias de conformação –<br />

reduzidas a duas diferentes ordens de conteúdo cultural: (1) sinais e signos diacríticos e (2) orientações<br />

valorativas básicas, o que usualmente tratamos por etnicidade (Idem: 32).<br />

Dito de outra forma, distinguimos – entre os grupos de pertencimento – os grupos étnicos, das tribos<br />

urbanas. Este último conceito foi proposto por Michel Maffesoli (2006: 4) como metáfora para observar a<br />

metamorfose do vínculo social” na pós-modernidade. Para ele (idem: 11) a socialidade pós-moderna<br />

privilegia o sentimento de pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial do todo da


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vida social. Assim, se opõe àquele modo de socialidade típico moderno o qual – caracterizado por aquilo a<br />

que o próprio Maffesoli (idem: 11) define como um etnocentrismo particular difundido como modelo válido<br />

para todo o mundo; a saber – se expressa por meio de um individualismo liberal e um universalismo<br />

iluminista. É por isso que, em relação ao que chama tribos urbanas, afirma (idem: 11) salientarem “a<br />

urgência de uma socialidade empática, na forma de uma partilha das emoções ou uma partilha de afetos”.<br />

Neste sentido, completa o sociólogo (idem: 31):<br />

A massa, ou o povo, diferentemente do proletariado ou de outras classes, não se apóiam (sic) em<br />

sujeitos de uma história em marcha. A metáfora da tribo, por sua vez, permite dar conta do processo<br />

de desindividualização, da saturação da função que lhe é inerente, e da valorização do papel que cada<br />

pessoa (persona) é chamada a representar dentro dela. Está claro que, como as massas em<br />

permanente agitação, as tribos que nelas se cristalizam tampouco são estáveis. As pessoas que<br />

compõem essas tribos podem evoluir de uma para a outra.<br />

Obedecendo, porém, o critério de seleção dos grupos estritamente caracterizados, conforme os<br />

moldes descritos acima, como de pertencimento identitário, nos foi possível chegar à formulação de um rol<br />

integrado por cinco unidades: os burgueses, os evangélicos, os favelados, os negros e os nordestinos.<br />

Curiosamente, mais tarde, viríamos encontrar na obra em que Zuenir Ventura descreve o Rio de Janeiro com<br />

uma Cidade Partida, uma passagem extraída de um livro do jornalista Paulo Francis em que este diz:<br />

“existia, claro, o pau-de-arara, o pobre, a personagem do morro, mas em quantidades muito menores e não<br />

intromissivas. As ruas da Zona Sul eram 'nossas', da classe média e acima”, (apud Ventura, 1994: 19).<br />

Malgrado a inegável expressão de preconceito, as memórias de Francis não deixam dúvida que, em<br />

1980 (ano da publicação), já era visível o recorte da população carioca em grupos de pertencimento<br />

identitário como os nordestinos, tratados, pelo autor, pelo pejorativo paus-de-arara (bastante popular até o<br />

advento do politicamente correto); os favelados, lembrados como a personagem do morro; os burgueses,<br />

encerrados na expressão classe média e acima; e, seguramente, os negros, referidos por meio do eufemismo:<br />

o pobre. E, se o mesmo se quedou silente com relação ao evangélicos foi apenas porque, à ocasião, como se<br />

sabe, o fenômeno neo-pentecostal ainda não havia despontado.<br />

Francis, então, atesta a não-arbitrariedade de nosso recorte do objeto, ao passo que Barth nos<br />

autoriza a redefinir como étnicas populações tradicionalmente representadas como classe social, grupo<br />

religioso, grupo de vizinhança, grupo de cor e grupo regional.<br />

Etnocentrismo<br />

Para efeito do que discutimos neste artigo, os resultados desta tal pesquisa – sobre o(s) papel(éis)<br />

assumido(s) pelo negro na organização social brasileira – se mostram menos importantes do que as razões<br />

que nos levaram a realizá-la; na medida em que ela não é mais que um desdobramento de outra investigação<br />

que empreendemos.<br />

A pesquisa original foi motivada pelo incômodo que nos causava a incongruência entre as repetidas<br />

denúncias, do Movimento Negro brasileiro, sobre episódios de racismo e o discurso, ainda hegemônico, que


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nos representa, com jactância, como um país de miscigenados. Oposição que, no limite, remontava à<br />

discussão, nunca superada, sobre a preponderância, no Brasil, de preconceito e discriminação em razão do<br />

fator raça ou do fator classe (Conceição, 2003: 118). Nela, contudo, verificamos que a chamada questão<br />

racial brasileira se confundia, em grande medida, com aqueloutra nomeada questão nacional, bem assim que,<br />

especialmente no caso brasileiro, esta última importava na decisão quanto à inclusão ou não do negro na<br />

constituição deste tal tipo (antropológico) ideal, isto é, do tipo nacional.<br />

A decisão quanto à inclusão do negro na constituição do tipo-ideal brasileiro, bem assim em relação<br />

à forma de sua inclusão na sociedade de classes, continua sendo objeto de longo debate, iniciado há coisa de<br />

ao menos século e meio, através de obras literárias; artigos e crônicas jornalísticas; textos e congressos<br />

científicos; reuniões de associações, nacionais e internacionais, de todo gênero e em plenários de<br />

parlamentos. Seus argumentos, no entanto, se podem, esquematicamente, agrupar sob cinco diferentes<br />

rótulos, a saber: o redencionismo escravista, o racismo científico, a democracia racial, o multiculturalismo e<br />

a diversidade cultural. Cada rótulo encerrando uma matriz de pensamento hegemônica a seu tempo; sem, no<br />

entanto, lograr excluir do imaginário social as que lhe antecederam.<br />

A constituição, portanto, deste imaginário a partir da reunião de discursos raciais antagônicos,<br />

explicaria, a princípio, a perseverança de práticas racistas em um país de miscigenados, sobremaneira<br />

reforçado pelo próprio modelo brasileiro de racismo, também dito racismo à brasileira. Para além disso,<br />

estaria pesando sobre as relações supostamente étnico-raciais, passadas no Brasil, um outro fator imagético o<br />

qual procuramos denominar Ideal de França Antártica 7 , a saber: o surgimento, pós-independência, de um<br />

querer coletivo, (uma vontade geral), de busca de marcos de alteridade em relação ao ex-colonizador,<br />

expressa na fixação da cultura francesa como paradigma da sociedade brasileira.<br />

Este fato se traduziu, desde as primeiras horas do Brasil Estado independente do Reino de Portugal,<br />

na valorização de caracteres indígenas idealizados e na negação a tudo quanto representasse lusitanismo; e,<br />

pós-abolição, na oscilação quanto ao reconhecimento da influência negra na tal formação da identidade<br />

nacional. O que teria implicado na importação, para um país de nobres ruralistas, de uma cultura própria à<br />

burguesia industrial. E, consequentemente, na instalação, sobremaneira nos centros urbanos, de um ideal<br />

burguês que se foi consolidando à medida que se ia cambiando o regime do trabalho escravo para este do<br />

trabalho livre, industrializando a economia e instituindo a classe média.<br />

Este dado nos levou a interpretar o ideal burguês como o significante central da neurose coletiva em<br />

que se constitui o problema étnico-racial no Brasil e concluir: (1) que o imaginário social brasileiro tem<br />

representado a burguesia como uma etnia e não como uma classe e (2) que a segregação torna-se a pena para<br />

aqueles que deliberada ou inocentemente, de alguma forma, se oponham ou se distanciem do paradigma<br />

burguês. Em suma, concluíamos, aí, que o problema relacional brasileiro não configurava precisamente<br />

racismo, porém etnocentrismo, na exata acepção que Sumner – criador do termo – lhe conferiu, isto é, como<br />

“nome técnico para esta visão segundo a qual o próprio grupo é o centro de tudo; e todos os demais são<br />

7 Nome da colônia francesa fundada, no Rio de Janeiro, pelo Almirante Nicolas Durand de Villegagnon.


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medidos e avaliados por referência a ele” 8 (Sumner, 1906: 15).<br />

Territorialidade<br />

Estas conclusões, no entanto, nos obrigaram a um novo estudo de modo a nos permitir enfrentar dois<br />

problemas que, delas, se desdobravam: o primeiro, a admissão explícita da possibilidade da burguesia ser –<br />

mesmo que apenas no plano do inconsciente – algo diferente daquilo que as Ciências Sociais já haviam<br />

consagrado; e o segundo, a afirmação subliminar – sem qualquer base de dados empíricos – de que as<br />

fronteiras entre a população branca e a população negra tendiam a se afrouxar à medida do crescimento do<br />

número de negros a exteriorizar sinais diacríticos de pertencimento à burguesia.<br />

Estas, pois, foram as razões porque desenvolvemos a tal pesquisa – sobre o(s) papel(éis) assumido(s)<br />

pelo negro na organização social brasileira; a qual, por sua vez, demonstrou-nos que, no pós-2ª Guerra, as<br />

economias do capitalismo central se encontravam em recuperação e algumas das economias do capitalismo<br />

periférico – como o Brasil – em desenvolvimento industrial. Por isso, os desenvolvidos e os em-<br />

desenvolvimento experimentaram numa mesma época – a década de 60 – o esgarçamento de seus tecidos<br />

sociais, divididos entre os esforços, dos segmentos emergentes, em prol de reformas nas bases de suas<br />

sociedades e a resistência (violenta, no caso do terceiro mundo), dos segmentos tradicionais, à derrocada da<br />

formação social burguesa. Do que, aliás, é marco histórico e, antes disso, sua própria consequência e<br />

resumo, o emblemático episódio do Maio de 68.<br />

A partir daí, se vai verificar, primeiramente – em decorrência dos fenômenos complementares da<br />

concentração industrial, na região centro-sul do país e do êxodo rural, na região nordeste – a estigmatização<br />

do imigrante nordestino e seu descendente que, em São Paulo, sob a alcunha de “baiano” e, no Rio de<br />

Janeiro, “paraíba”, serão percebidos como não-negros e dividirão com este a condição de uma identidade<br />

deteriorada. O que, embora não tenha reduzido o preconceito contra os negros e malgrado os atritos iniciais<br />

entre estabelecidos e outsiders, serviu-lhes à relativização da interpretação simplista que vinham dando a<br />

seus problemas, em termos de uma rematada implicância dos brancos em relação aos negros.<br />

Em paralelo, aqueles a quem Costa Pinto definiu como elite negra vão se dividir entre uma minoria<br />

que prosseguirá na vertente da assimilação das formas burguesas e uma maioria que buscará intensificar uma<br />

postura diferencialista, marcada pelo apelo à ideologia da negritude e à solidariedade negra, bem assim à<br />

supervalorização das “matrizes africanas” e dos “valores negros”. Ao passo que aqueles outros a quem o<br />

sociólogo designou negro-massa vão se dividir entre um grupo tendente ao assentimento à proposta<br />

diferencialista e outro que renega tudo isso, em favor da conversão à novidade de uma ideologia<br />

integracionista, travestida de solidariedade cristã, de matriz neo-pentecostal, radicada em valores capitalistas<br />

(teologia da prosperidade).<br />

A divisão dos negros das camadas populares se explica, entre outras razões, pelo fato de o discurso<br />

8 Tradução livre de: “is the technical name for this view of things in wich one's own group is the center of everything, and all<br />

others are scaled and rated with reference to it”.


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diferencialista da chamada militância negra propor, à miúde, o enfrentamento do branco a que culpam pelas<br />

vicissitudes suportadas pelo negro. Onde negros e brancos se encontram em situação de proximidade social<br />

tal que vínculos de amizade e intercurso sexual são fortemente favorecidos, percebe-se com mais facilidade<br />

que a questão não se resume a raças (assim entendido os fenótipos). Por isso, (em parte, corroborando uma<br />

das teses da democracia racial: aquela segundo a qual “a polaridade branco/negro organiza o gradiente de<br />

cor e de prestígio social”) o negro-massa, mesmo quando tendente ao diferencialismo, vacila nesta sua<br />

adesão.<br />

Paradoxalmente, este negro-massa mantido para além das fronteiras dos demais grupos, como um<br />

non-ethnic, acaba por constituir-se como grupo-pária e, nele, forjando a identidade étnica do favelado.<br />

Enquanto a parcela minoritária da elite negra (aquela que refuta o diferencialismo), juntamente com todos os<br />

não-negros supostamente non-ethnics, buscando manter-se à margem (das fronteiras) destes grupos, subsume<br />

no grupo hegemônico – o dos burgueses – constituindo um outro étnico.<br />

Por seu turno, os imigrantes negros e não-negros provindos dos estados da região nordeste e seus<br />

descendentes, todos movidos, a um, pela discriminação que lhes infligem os grupos estabelecidos e, a outro,<br />

pela comunhão de origem e orientações valorativas básicas que mantêm conformam-se também em um<br />

grupo étnico: o dos nordestinos.<br />

Esta nova organização das hierarquias sociais, marcada pela exacerbação da diferenciação dos<br />

negros entre si, também chancela como verdade a tese de que, no Brasil, “não existem, propriamente falando,<br />

grupos raciais ou comunidade negra”, conforme afiançado pelos teóricos da democracia racial.<br />

Finalmente percebe-se: (1) que a mudança mais significativa se comparado o padrão tradicional das<br />

relações chamadas “étnico-raciais” ou, simplesmente, “raciais” é que elas se tornaram simplesmente étnicas;<br />

(2) que a divisão dos negros em vários grupos, cada qual com uma diferente estratégia de integração à<br />

sociedade de classes e, em paralelo, o surgimento de novas fontes de prestígio social, em decorrência da<br />

massificação da sociedade geraram a necessária acomodação social – expressa em termos de redução da<br />

pressão que se exercia sobre a burguesia, em vista ao franqueamento do acesso a seus espaços e privilégios;<br />

(3) que, em consequência, se esvaziou quase que por completo a função de demarcador social que tinha o<br />

racismo; persistindo, porém, seu manejo particular, em par com o nepotismo, exercido por alguns (cada vez<br />

menos) indivíduos e grupos, de todos os fenótipos, uns contra os outros, quando não contra seus próprios<br />

pares, na crença de estarem preservando seus lugares sociais ou alguma outra coisa que julgam de mais alto<br />

valor; (4) que, pelas mesmas razões já expostas, o racismo deixou de ser óbice estrutural à mobilidade social<br />

ascensional dos negros, constituindo-se, pois – racismo e exclusão social – em dois problemas de naturezas<br />

distintas a exigir formas de enfrentamento distintas; e (5) que, malgrado estes dados confirmarem as teses da<br />

democracia racial, eles evidenciam a inexistência desta sorte de democracia temática, seja no sentido de<br />

igualdade sócio-econômica entre os grupos fenotípicos (supostos raciais), seja no sentido de esgotamento<br />

recente ou da inocorrência desde sempre da ideologia ou das práticas do racismo, no Brasil.<br />

Postas as coisas nestes termos, resta evidente que o conceito de territorialidade [humana] –<br />

entendido, conforme (Sacks, 1983: 55), como a tentativa de afetar, influenciar ou controlar ações e interações


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(de pessoas, coisas e relacionamentos) afirmando e tentando impor controle sobre uma área geográfica 9 – não<br />

coincide, sequer guarda relação, com a noção de etnicidade. No entanto, precisamente por esta<br />

incoincidência, ele se mostra útil a se pensar a respeito da impropriedade do conceito de racismo ambiental<br />

e, mormente, de sua aplicação à análise dos problemas sócio-ambientais brasileiros.<br />

Racismo Ambiental<br />

Para esta reflexão, convém aqui rememorarmos Cornelius Castoriadis (2000: 154), para quem:<br />

As profundas e obscuras relações entre o simbólico e o imaginário aparecem imediatamente se refletimos sobre o<br />

seguinte fato: o imaginário deve utilizar o simbólico, não somente para “exprimir-se”, o que é óbvio, mas para<br />

“existir”, para passar do virtual a qualquer coisa a mais. O delírio mais elaborado bem como a fantasia mais<br />

secreta e mais vaga são feitos de “imagens” mas estas “imagens” lá estão como representando outra coisa;<br />

possuem, portanto, uma função simbólica. Mas também, inversamente, o simbolismo pressupõe a capacidade<br />

imaginária. Pois pressupõe a capacidade de ver em uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é.<br />

Entretanto, na medida em que o imaginário se reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou de dar-se, sob a<br />

forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção ou nunca o<br />

foram), falaremos de um imaginário último ou radical, como raiz comum do imaginário efetivo e do simbólico. É<br />

finalmente a capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem.<br />

Assim o dizendo, Castoriadis nos faz compreender que, na psique, imagens, sob a forma de um<br />

magma, se compõem como “organizações conjuntistas” que dão origem às representações sociais<br />

elementares e estas, não só a todas as demais, como também, por via de consequência, ao simbólico.<br />

Isto é o bastante para sustentar nosso argumento de que tanto o signo quanto o significante racismo<br />

ambiental remete a representações sociais de preconceito, discriminação, estigma, genótipo, fenótipo, cor,<br />

natureza, lugar, espaço, gueto, território, entre outras; desta forma, induzindo à idéia de segregação territorial<br />

de grupos genotípicos ou fenotípicos (conforme o caso), as quais se lega assistência e benefícios, quando<br />

hegemônicos; ou se relega à desassistência e acomete de malefícios, se subalternos.<br />

Entretanto, o conceito de racismo ambiental é um outro, a saber: políticas e regulações ambientais<br />

cujos impactos negativos recaem exclusivamente sobre as chamadas minorias [político-econômicas]. O que<br />

no caso norte-americano, de acordo com o relatório Toxic waste and race at twenty: 1987-2007, corresponde,<br />

primeiramente, aos latinos, logo após os negros, seguidos dos asiáticos e rematados pelos indígenas 10 .<br />

Relatório, aliás, que demonstrou haver estrita relação entre distância geográfica das áreas degradadas, de um<br />

lado e taxa de pobreza, renda familiar, e valor das habitações, de outro. Assim como, também, admitiu a<br />

interveniência de outros fatores, como os preconceitos relativos à classe, ao gênero e à idade dos habitantes,<br />

no resultado do que, mais adequadamente, chamaram environmental inequality (desigualdade ambiental).<br />

Em defesa do conceito, Tania Pacheco, no blog Combate ao Racismo Ambiental, critica o<br />

Movimento Negro brasileiro que, segundo ela, acusa a noção de racismo ambiental de encerrar uma tentativa<br />

9 Tradução livre de: “by human territoriality I mean the attempt to affect, influence, or control actions and interactions (of people,<br />

things, and relationships) by asserting and attempting to enforce control over a geographic area”.<br />

10 A expressão “people of color” não se traduz por pessoas de cor, no sentido que se lhe dá no Brasil, isto é, não se<br />

traduz por negros. Por “people of color” os norte americanos designam todos os non-white (não-brancos), o que,<br />

pois, envolve os quatro grupos aqui arrolados.


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de minimização do problema racial, por redução de sua extensão a uma dimensão estritamente ecológica.<br />

Todavia é mesmo evidente que um conceito que abrange formas de preconceito, discriminação e segregação<br />

(geográfico) de grupos censitários, etários, étnicos, raciais e sexuais confunde o termo racismo com<br />

quaisquer destas práticas estigmatizadoras; esvazia seu sentido original; torna-o gênero do que preconceito,<br />

discriminação e segregação seriam espécies e, via de consequência, furta de todos os movimentos,<br />

efetivamente, anti-racistas seu instrumento discursivo mais essencial.<br />

É, porém, um paradoxo que setores do Movimento Negro brasileiro rejeitem um conceito que se<br />

desdobra precisamente do ativismo negro norte-americano; quando este sempre foi seu principal exemplo e<br />

inspiração. No entanto, para além dos motivos já expostos, para tal rejeição também contribui a<br />

dessemelhança quanto ao modo de distribuição espacial das populações nos Estados Unidos e no Brasil.<br />

Tradução da desigualdade destes países com relação a fatores produtivos, como: nível de industrialização e<br />

demanda por serviço doméstico, os quais mais que o racismo, induziram à formação de cidades modeladas<br />

como mosaicos de clusters étnicos, no caso norte-americano; e como melting pots, no caso brasileiro (como<br />

tentamos evidenciar ao resumirmos, pouco atrás, dados e resultados de nossas pesquisas).<br />

Convém explicar que a expressão environmental racism – ao par de environmental civil rights 11 e<br />

environmental justice – surgiu, no bojo do episódio de Warren County, em 1982, quando o Movimento Negro<br />

americano (Civil Rights Movement) percebeu, na decisão do governo da Carolina do Norte de instalar um<br />

aterro de dejetos químicos junto a uma pequena comunidade de negros, a extensão do racismo que, a<br />

décadas, enfrentavam no setor da educação e nos mercados de habitação e trabalho; tratava-se, agora,<br />

entretanto, de um racismo ambiental (Skelton e Miller, 2006). Note-se, aí, porém, que tal percepção só se<br />

fez possível em virtude da prevalência, nos EUA, de uma estrutura urbana do tipo “mosaico de clusters<br />

étnicos”; a qual permite se identifique na degradação de certos territórios o descaso para com um grupo<br />

étnico ou fenotípico em específico.<br />

No Brasil, entretanto, a rara observância de padrões étnicos ou fenotípicos de ocupação do solo<br />

produziu o modelo de melting pot. O qual não apenas, no mais das vezes, impossibilita se assevere<br />

direcionamento do dano ambiental a grupo étnico ou fenotípico específico, como também tem evidenciado o<br />

recurso a critérios censitários, isto é, a critérios de classe/renda na definição do grupo e, consequentemente,<br />

do tratamento deferido: se de aviltação ou favorecimento.<br />

Acresce-se, então, o dado de que o recurso à expressão ou ao conceito de racismo ambiental por<br />

ambientalistas e ecologistas brasileiros faz supor que – dessituados tanto frente ao anti-racismo moderno do<br />

Movimento Negro quanto em relação ao anti-racismo tradicional dos filiados ao ideário da Democracia<br />

Racial – constituam uma terceira sorte de anti-racismo; quando não é o caso.<br />

Diga-se, enfim, que o conceito de racismo ambiental – construído pelo meio acadêmico norte-<br />

americano a partir da expressão homônima – representa uma ruptura em relação à própria história acadêmica<br />

11 A tradução literal para “civil rights” é direitos civis. Todavia a expressão direito civil, em língua portuguesa guarda<br />

um sentido específico, diverso do que se quer expressar em locuções como civil rights movement ou environmental<br />

civil. Nestes casos, talvez a melhor tradução para “civil rights” seja: direitos de cidadania ou, simplesmente,<br />

cidadania.


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que sintetizamos linhas atrás, pois que não decorre do regular esforço científico de se reduzir aspectos do<br />

objeto observado à categorias de pensamento e análise. Porém, muito ao contrário – acompanhando a<br />

tendência atual e, ao que parece, universal de se conferir primazia aos diagnósticos e propostas produzidos<br />

pelos movimentos sociais; reduzindo, destarte, a extensão da atividade profissional do técnico/acadêmico à<br />

função de assistente de redação destes mesmos movimentos – trata-se apenas da tentativa sociológica de<br />

conferir formato (e status) acadêmico à expressão emergente do movimento social norte-americano.<br />

Vê-se claro, então, que na expressão racismo ambiental – e, por extensão, no conceito construído em<br />

torno dela – o emprego do vocábulo racismo se deu em favor da comoção que suscita, sob a forma da natural<br />

repulsa que, hoje, se tem em relação às práticas de assédio, discriminação, perseguição ou segregação,<br />

sobretudo estas baseadas em critérios fenotípicos ou genotípicos. Trata-se, pois, do apelo à uma figura de<br />

retórica como estratégia de marketing político. O problema, no entanto, é que sequer no campo dos business<br />

studies se utilizam estratégias de marketing como método para elaboração de conceitos científicos.<br />

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