16 rascunho <strong>114</strong> • OUTUBRO de 2009 ATRÁS DA ESTANTE “Não me interessa a crítica quan<strong>do</strong> ela não se desenvolve na esfera daquilo que pretendi fazer”, respondeu uma vez a escritora norte-americana Flannery O’Connor, quan<strong>do</strong> lhe perguntaram sobre uma resenha feita de seu livro. Em carta à amiga Elisabeth Bishop, O’Connor lamenta quan<strong>do</strong> os críticos buscam em seus livros aquilo que não está nele, em vez de construírem suas análises a partir <strong>do</strong> que ele é. “Escrevo sobre os ideais da fé religiosa e da convivência humana, corrompi<strong>do</strong>s pelos preconceitos enraiza<strong>do</strong>s, naturaliza<strong>do</strong>s e pela decadência econômica.” Vale lembrar que a escritora, assim como Willian Faulkner e Truman Capote, era <strong>do</strong> sul <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. “Mas a crítica prefere dizer que faço apologia da religião católica em um país protestante <strong>do</strong> que reconhecer que coloco a fé espiritual em combate na alma humana”, disse à amiga poeta, “prefere dizer que sou racista a reconhecer que é justamente a intolerância, em to<strong>do</strong>s seus aspectos, que coloco em confronto e evidência em meus livros”. Uma resenha havia especialmente irrita<strong>do</strong> a escritora: “Como sou mulher e não escrevo histórias românticas, não tenho como temas a paixão nem o sexo, fui considerada ‘esquisita’. O que, em outros escritores, seria interpreta<strong>do</strong> como humor áci<strong>do</strong> ou ironia, em mim foi visto como frieza”. Não é preciso ir à América <strong>do</strong> Norte para encontrar outros escritores que pensam ou pensaram de forma semelhante à Flannery O’Connor a respeito da atividade da crítica literária. “O crítico deve saber a matéria em que fala, procurar o espírito <strong>do</strong> livro, escarnálo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma”, escreveu em um artigo o nosso Macha<strong>do</strong> de Assis, em pleno século 19. O escritor brasi- CLAUDIA LAGE O transitório trono da crítica QUANDO ALGUÉM SE TRANSFORMA EM DEUS DE UM PEQUENO MUNDO leiro, hoje cânone nacional, ouviu duras palavras a respeito de seu trabalho. “Um artista de menor porte e sem autenticidade”, sentenciou Silvio Romero, nos primeiros anos da escrita machadiana. E mesmo posteriormente, após o lançamento de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, “o estilo de Macha<strong>do</strong> de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser nota<strong>do</strong> por um forte cunho pessoal, é correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútulo, nem grandioso, nem eloqüente. É pláci<strong>do</strong> e igual, uniforme e compassa<strong>do</strong>”. O que hoje a recepção crítica considera profundamente inova<strong>do</strong>r na obra de Macha<strong>do</strong>, como a fragmentação e a não linearidade, o discurso psicológico integra<strong>do</strong> à narrativa <strong>do</strong>s acontecimentos e fatos, Romero considerava falhas imper<strong>do</strong>áveis: “Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer no órgão da palavra [...] repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que nos deixa a impressão dum perpétuo tartamudear”. No decorrer de sua carreira, o próprio Macha<strong>do</strong> de Assis exerceu a crítica, sem deixar de perceber que havia no ofício perigosas armadilhas. “A crítica, que para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limita a uma proscrição em massa, é a crítica da destruição e <strong>do</strong> aniquilamento”, ele escreveu em um artigo. O nosso grande escritor brasileiro, ao sair de sua posição de cria<strong>do</strong>r para a de leitor especializa<strong>do</strong>, reconheceu que havia a sua frente um trono transitório, no qual, pelas horas em que levaria escreven<strong>do</strong> a crítica, poderia sentir-se Deus de um pequeno mun<strong>do</strong>. Pequeno, como é o mun<strong>do</strong> literário, mas, visto <strong>do</strong> ilusório trono da crítica, aparentemente infinito e suscetível a tu<strong>do</strong> que o seu olhar aludisse e o seu de<strong>do</strong> apontasse. “Uma crítica que para a expressão de suas idéias só encontra fórmulas ásperas pode perder as esperanças de influir e dirigir.” Macha<strong>do</strong> tinha as esperanças de que, um dia, a crítica literária se ocuparia mais com a estética e a concepção criativa <strong>do</strong> que com vaidades ideológicas e interesses circunstanciais. “Do outro mo<strong>do</strong>, o crítico passará <strong>do</strong> limite da discussão literária para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias para o de julgamentos e recriminações.” Macha<strong>do</strong> de Assis não tinha dúvidas de que quem perdia com isso não era ele, ou qualquer outro escritor, mas a própria literatura. No entanto, as esperanças de Macha<strong>do</strong> só encontraram eco no século seguinte, na figura sempre interessada, e, talvez, por isso, também sempre interessante, <strong>do</strong> crítico Antonio Candi<strong>do</strong>. Em Estouro e libertação, artigo escrito sobre Oswald de Andrade, Candi<strong>do</strong> demonstra ponderação para tratar da obra <strong>do</strong> controverso escritor: “Ainda não é o momento de julgar uma atividade que se inicia cheia de expectativas e promissoras de renovação”. Candi<strong>do</strong> sabia que Oswald de Andrade era uma figura polêmica, e, por isso, amada e odiada com intensidade, independentemente de sua obra. “Tu<strong>do</strong> isso nos leva à necessidade de estabelecer a seu respeito alguns juízos cuida<strong>do</strong>samente forma<strong>do</strong>s, e não oriun<strong>do</strong>s das conversas de café ou da informação apressada”, ponderou o crítico, que escreveu um artigo com critérios de análise bem defini<strong>do</strong>s. “Nota-se, antes de mais nada, uma técnica original de narrativa e uma procura constante de estilo. Um esforço de fazer estilo.” E é a partir da ex- perimentação estética em Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande que Candi<strong>do</strong> inicia sua reflexão teórica, buscan<strong>do</strong> as referências na própria obra oswaldiana, e não fora dela. Candi<strong>do</strong> pensava a literatura brasileira como um embate expressivo entre a língua e o pensamento. Para ele, cada livro publica<strong>do</strong> era o resulta<strong>do</strong> de uma visão e posicionamento a respeito desse embate. Cada escritor, um novo universo a ser desvenda<strong>do</strong>, um novo enigma a ser decifra<strong>do</strong>, e não julga<strong>do</strong>. Provavelmente, por isso, a sua reação ao ler o romance de estréia de Clarice Lispector, Perto <strong>do</strong> coração selvagem, foi bem diferente da de seu colega Alvaro Lins. Enquanto Lins apontava no romance da autora os aspectos que não correspondiam à estrutura tradicional da narrativa, julgan<strong>do</strong>-os grandes equívocos, Candi<strong>do</strong> buscou se aproximar das diferenças da escrita de Clarice, reconhecen<strong>do</strong> em seu estilo e voz narrativa grande singularidade. “Este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua a <strong>do</strong>mínios pouco explora<strong>do</strong>s”, escreveu no artigo Uma tentativa de renovação. E disse, anos depois, “Clarice Lispector forçou a crítica brasileira a rever as suas referências”, com a consciência de que a literatura não é uma estrutura sólida sobre a qual cada escritor deve pôr a sua massa, mas sim um organismo em constante elaboração, feito, não de regras, mas de convenções, nas melhores vezes, criadas pelo próprio autor. O movimento de uma crítica digna não seria então de fora — <strong>do</strong>s arcabouços e critérios teóricos — para dentro, mas de sempre de dentro para fora, da visão pessoal <strong>do</strong> artista para os ditames <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>. • r
<strong>114</strong> • OUTUBRO de 2009 rascunho 17