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Edição 114 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo

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32 rascunho <strong>114</strong> • OUTUBRO de 2009<br />

Viajan<strong>do</strong> sem sair de casa<br />

Não era o Ulisses de Homero, cujo retorno ao<br />

lar foi pleno de aventura e emoção, nem o Leopold-Ulisses<br />

<strong>do</strong> Joyce, em intermináveis viagens<br />

por sua Dublin. Era o Ulisses da Ilha, a maior<br />

viagem que fizera tinha si<strong>do</strong> de sua casa na Agronômica<br />

até o Correio, na Praça XV. No entanto,<br />

conhecia praticamente o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>.<br />

Dia sim dia não, pela manhã ou à noitinha,<br />

percorria as livrarias e nem necessitava pronunciar<br />

a mesma frase, temos novidades?<br />

Toda semana, to<strong>do</strong> mês, to<strong>do</strong> ano (durante muitos),<br />

o homem se postava primeiro em frente à livraria<br />

Anita Garibaldi (a mesma que foi queimada<br />

em 1964, durante o golpe militar), esperan<strong>do</strong> que a<br />

porta fosse aberta. Visitava, também, com igual regularidade<br />

as outras: Moderna, Record, Rosa.<br />

Enquanto ia percorren<strong>do</strong> as estantes, não se<br />

cansava de repetir a mesma frase. A resposta,<br />

em geral, era um sinal negativo com a cabeça,<br />

mas o homem não se dava por satisfeito. Retirava<br />

da prateleira um livro já examina<strong>do</strong> à exaustão,<br />

ia folhean<strong>do</strong>-o minuciosamente página a página<br />

em busca de fotos, ilustrações, gravuras.<br />

Durante os anos 1950, ao contrário <strong>do</strong>s dias atuais,<br />

eram numerosos os jornais, até mesmo em Florianópolis;<br />

ele jamais foi visto folhean<strong>do</strong> um único.<br />

Sua paixão era, nesta ordem, álbum, livro, revista.<br />

Sabia tu<strong>do</strong>, quase, a respeito de monumentos,<br />

museus, antiguidades, sítios históricos, peculiaridades<br />

desta ou daquela região. Discorria<br />

sobre Baalbek como se lá tivesse vivi<strong>do</strong> nos tempos<br />

áureos ou acaba<strong>do</strong> de chegar indagorinha das<br />

ruínas. Falava <strong>do</strong>s setecentos quartos, das dezenas<br />

de salas e salões de Versalhes, <strong>do</strong>s monumentos<br />

inumeráveis que cobriam vastíssimas<br />

áreas e de como, para não perder de vista tais<br />

fantásticas construções, Luiz XIV, o rei Sol, havia<br />

modifica<strong>do</strong> a posição das árvores. Conhecer<br />

o Coliseu era fichinha para ele, o mesmo no que<br />

se refere ao Partenon, às ruínas Maias, às pirâmides<br />

<strong>do</strong> Egito, à Roma <strong>do</strong>s papas. Nos fins de<br />

semana, em sua casa, abria <strong>do</strong>is álbuns, debruçava-se<br />

sobre o Sena e o Tejo e passava horas<br />

viajan<strong>do</strong> por aquelas águas de Paris e de Lisboa.<br />

Encosta<strong>do</strong> ao balcão da livraria, discorria com<br />

igual sabença sobre as cidades históricas mineiras,<br />

os Sete <strong>Povo</strong>s das Missões, o Cristo Redentor.<br />

Embora <strong>do</strong>minasse apenas o português, nosso<br />

Ulisses que jamais saíra de sua Ítaca, talvez<br />

nem tivesse atravessa<strong>do</strong> a ponte Hercílio Luz,<br />

segun<strong>do</strong> ele, construída em 1926, o nome uma<br />

homenagem a seu idealiza<strong>do</strong>r que morrera antes<br />

de vê-la concluída, mas vira uma maquete<br />

perfeitamente igual; a frase já vai longa, o fundamental<br />

é dizer que Ulisses apenas sabia português,<br />

contu<strong>do</strong>, desde que existissem fotos ou<br />

gravuras ou ilustrações, ia compran<strong>do</strong> ou encomendan<strong>do</strong>,<br />

mesmo com sacrifício de outros<br />

itens, tu<strong>do</strong> retira<strong>do</strong> de seu modesto salário de<br />

funcionário <strong>do</strong>s Correios.<br />

Certa ocasião, outro freqüenta<strong>do</strong>r assíduo de<br />

livrarias, provocou-o: certamente conheces a<br />

igreja, o casarão e o aqueduto de São Miguel, ali<br />

depois de Biguaçu; a resposta foi a esperada, com<br />

um taxativo: claro, tenho tu<strong>do</strong> isto num livrinho.<br />

De repente, um dia a surpresa, Ulisses se decidira,<br />

tinha férias, ia acompanhar um grupo que<br />

alugara um ônibus e durante vinte dias viajariam<br />

por cidades históricas, a primeira parada em Tiradentes,<br />

destino final, Salva<strong>do</strong>r. Nem foi surpresa<br />

vê-lo, em menos de uma semana, de novo na<br />

Ilha. E logo Ulisses apareceu na livraria com a<br />

mesma pergunta de sempre, temos novidades?<br />

Sem que lhe perguntassem, foi logo esclarecen<strong>do</strong>,<br />

não dá, não dá mesmo, coisa antiga é pra se<br />

ver em álbum, em revista, aí adquire vida por si<br />

só, nem há necessidade de legenda. Por isso, em<br />

lugar de ir até a Ponte Hercílio Luz, prefiro uma<br />

boa fotografia dela. Da mesma forma, de Tiradentes,<br />

prefiro, também, ver as esculturas <strong>do</strong> Aleijadinho<br />

nos três álbuns que possuo. E, para se livrar<br />

<strong>do</strong>s goza<strong>do</strong>res, a<strong>do</strong>tou como lema de vida um velho<br />

brocar<strong>do</strong> português, com duas brevíssimas modificações.<br />

Dizia o brocar<strong>do</strong>: boa romaria faz quem<br />

em casa fica em paz. Para ele ficou sen<strong>do</strong>: boa<br />

viagem faz quem em casa vê em paz.• r<br />

Salim Miguel<br />

SALIM MIGUEL nasceu no Líbano, em<br />

1924. Está radica<strong>do</strong> no Brasil desde os<br />

três anos de idade, quan<strong>do</strong> sua família se<br />

estabeleceu em Santa Catarina. Iniciou sua<br />

carreira literária nos anos de 1950, ten<strong>do</strong><br />

publica<strong>do</strong> cerca de 30 livros. Entre eles,<br />

Nur na escuridão, Mare nostrum, Areias<br />

<strong>do</strong> tempo e Jornada com Rupert.

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