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1 a problemática jurídica-civil no tocante à reprodução ... - Asces

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A PROBLEMÁTICA JURÍDICA-CIVIL NO TOCANTE À REPRODUÇÃO<br />

HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA<br />

CIVIL LEGAL PROBLEMAS IN RELATION TO THE ASSISTED HUMAN<br />

REPRODUCTION HETEROLOGOUS<br />

Ana Gabriela Soares Barbosa 1<br />

RESUMO: A Constituição Federal consagrou o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como<br />

basilar da ordem <strong>no</strong>rmativa brasileira, da qual devem se pautar todos os princípios dele decorrentes. O<br />

Direito <strong>à</strong> Filiação não pode fugir deste sistema <strong>no</strong>rmativo. Com o intuito de analisar as <strong>no</strong>vas condutas<br />

sociais <strong>no</strong> que tange ao desejo do projeto parental, o presente trabalho traz um apanhado teórico acerca<br />

da regulamentação <strong>jurídica</strong> das técnicas de <strong>reprodução</strong> humana assistida. Discutem-se as lacunas<br />

<strong>no</strong>rmativas para <strong>no</strong>vos anseios populares, como o direito <strong>à</strong> descoberta da identidade genética em<br />

contrapeso ao direito ao sigilo dos doadores dos gametas. O intuito é trazer a discussão esses pontos de<br />

estrangulamento existentes <strong>no</strong> ordenamento, sem, contudo, esgotá-los.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; Inseminação artificial heteróloga;<br />

A<strong>no</strong>nimato do doador; Direito <strong>à</strong> informação.<br />

ABSTRACT: The Constitution of 1988 consecrate the Principle of Human Dignity as a new<br />

constitutional order witches all other principles has submission. The Filiations Right can<strong>no</strong>t be<br />

separated of this new regulatory system. Intend to analysis the social demand, especially in the<br />

parental project, this paper brings the doctrine about the legal regulation of the assisted reproduction<br />

techniques. Discuss the absence regulation for thematic as the right to genetic identity and the secret of<br />

identity of the sperm donator. The intention is analyzing the reasons about these absences, although do<br />

<strong>no</strong>t exhaust them.<br />

KEYWORDS: Principle of Human Dignity; Artificial insemination heterologous; A<strong>no</strong>nymity of the<br />

do<strong>no</strong>r; Right to information.<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana foi consagrado fundamento do Estado<br />

Democrático de Direito na Constituição Federal de 1988, <strong>no</strong> art. 1º, inciso III 2 . A partir de<br />

então, pode-se concluir que o Estado Brasileiro existe para atender as pessoas, e não são estas<br />

1 Advogada. Professora Universitária. Mestranda em Direito pela UFAL.<br />

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da<br />

República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 de janeiro<br />

de 2011. “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e<br />

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a<br />

dignidade da pessoa humana”.<br />

1


que existem em função do Estado. Consequentemente, o Direito, enquanto criação do Estado,<br />

deve atender os mesmos fins 3 .<br />

Tal princípio constitui um valor unificador de todos os Direitos Fundamentais. Os<br />

direitos <strong>à</strong> vida, <strong>à</strong> liberdade, <strong>à</strong> igualdade correspondem diretamente <strong>à</strong>s exigências mais<br />

elementares da dignidade da pessoa humana. Não é possível uma definição clara e precisa do<br />

conteúdo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; uma vez que se trata de conceito<br />

vago e impreciso. Mas pode-se afirmar que a dignidade é uma qualidade inata da condição<br />

humana, simplesmente existindo, na medida em que qualifica o homem como tal 4 . Ingo Sarlet<br />

entende dignidade humana como sendo<br />

(...) a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser huma<strong>no</strong> que o faz<br />

merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,<br />

implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que<br />

assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e<br />

desuma<strong>no</strong>, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma<br />

vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável<br />

<strong>no</strong>s desti<strong>no</strong>s da própria existência e da vida em comunhão com os<br />

demais seres huma<strong>no</strong>s 5.<br />

O Direito <strong>à</strong> Filiação, previsto <strong>no</strong> art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente 6 , é<br />

uma expressão do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. A pessoa só usufrui de uma<br />

vida com dignidade <strong>no</strong> momento em que toma conhecimento de sua origem, sendo está a<br />

maior concretização da personalidade 7 .<br />

Hoje a sociedade se depara com os avanços científicos e tec<strong>no</strong>lógicos ao mesmo<br />

tempo em que clama por uma delimitação <strong>jurídica</strong> e moral que legitime e limite tais avanços.<br />

A Bioética surge para regulamentar a ciência frente a sua atuação perante a vida e a saúde,<br />

3 ANDRADE, Denise Almeida de. CHAGAS, Márcia Correia. 2010, p. 705. No mesmo sentido, SARLET, Ingo<br />

Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,<br />

2008, p. 111.<br />

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 113. “(...) o princípio da dignidade da pessoa humana constitui uma<br />

categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que<br />

uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas<br />

sociedades democráticas contemporâneas”.<br />

5 SARLET, Ingo Wolfgang, As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídicoconstitucional<br />

aberta e compatível com os desafios da biotec<strong>no</strong>logia. In: SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE,<br />

George Salomão. Direitos fundamentais e biotec<strong>no</strong>logia. São Paulo: Método, 2008, p. 37-38. Grifos <strong>no</strong><br />

original.<br />

6 BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da<br />

República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 de janeiro<br />

de 2011. “Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e<br />

imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observando o<br />

segredo de Justiça”.<br />

7 ANDRADE, Denise Almeida de. CHAGAS, Márcia Correia. 2010, p. 708.<br />

2


estabelecendo princípios morais 8 . Com os avanços biotec<strong>no</strong>lógicos, a técnica de <strong>reprodução</strong><br />

humana assistida tor<strong>no</strong>u possível o sonho de milhares de casais. Tais métodos artificiais de<br />

procriação constituíram estruturas familiares em que o conteúdo genético dos pais não<br />

corresponde aos dos filhos.<br />

Para definir os critérios da filiação, o Código Civil Brasileiro de 1916 estava atrelado<br />

ao caráter biológico. O parentesco se edificava através dos laços consanguíneos. Porém, o<br />

atual Código Civil Brasileiro optou pela verdade <strong>jurídica</strong> em detrimento do biologismo,<br />

atribuindo status de família aqueles que socialmente se portam como tal, ou seja, a afetividade<br />

é a maior expressão para a constituição de uma família. Com isso, as técnicas de <strong>reprodução</strong><br />

humana assistida passaram a ser reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro como mais<br />

uma possibilidade de concretizar o vínculo parental 9 .<br />

Porém todos esses avanços advindos das <strong>no</strong>vas pesquisas biomédicas ocorrem numa<br />

velocidade a qual o Direito não consegue alcançar. São tantas evoluções <strong>no</strong> campo da<br />

biotec<strong>no</strong>logia que as lacunas da lei não se preenchem. O surgimento das técnicas de<br />

<strong>reprodução</strong> humana assistida foi muito bem recebido pela sociedade carecedora de soluções<br />

para combater a esterilidade, que o Direito não viu alternativa senão legitimá-lo.<br />

Mas questões procedimentais foram omitidas na lei, deixando a sociedade sem uma<br />

completa proteção <strong>jurídica</strong>. O presente trabalho tem por objetivo levantar algumas dessas<br />

questões, sem com isso ter a pretensão de esgotá-las. Trata-se de uma busca, curiosa, por<br />

respostas <strong>jurídica</strong>s para questionamentos morais e éticos que nem mesmo a precisão da<br />

ciência é capaz de responder.<br />

2. FILIAÇÃO CIVIL DECORRENTE DA REPRODUÇÃO HUMANA<br />

ASSISTIDA<br />

2.1. ESCLARECENDO OS CONCEITOS<br />

A <strong>reprodução</strong> humana assistida é um método alternativo e eficaz de procriação, o<br />

qual possibilita a concretização do sonho da maternidade/paternidade <strong>à</strong>queles que não<br />

conseguem atingir tal êxito por vias naturais, seja pela sua esterilidade, seja para prevenir<br />

doenças geneticamente determinadas pelo sexo, ou pela falta de um parceiro para<br />

8 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles. 2008.1, p. 152.<br />

9 ANDRADE, Denise Almeida de. 2010, p. 708.<br />

3


compartilhar o mesmo desejo. A <strong>reprodução</strong> humana assistida é o gênero do qual decorre as<br />

seguintes espécies: inseminação artificial, GIFT, fertilização in vitro e transferência intra-<br />

uterina e, por fim, transferência intratubária do zigoto.<br />

A inseminação artificial é a técnica me<strong>no</strong>s invasiva. Consiste na colocação do sêmen<br />

masculi<strong>no</strong> dentro do organismo femini<strong>no</strong>, onde ocorrerá a fertilização natural com o gameta<br />

femini<strong>no</strong> 10 . Para o êxito dessa técnica, a mulher não pode ser estéril e passa por um processo<br />

artificial de hiper-ovulação.<br />

A técnica de <strong>reprodução</strong> humana assistida de<strong>no</strong>minada GIFT decorre da introdução<br />

de ambos os gametas, tanto o masculi<strong>no</strong> como o femini<strong>no</strong> dentro da tuba uterina da futura<br />

gestante, através de um cateter. A fecundação ocorrerá posteriormente, por meio natural,<br />

dentro do organismo femini<strong>no</strong>. Assim, só é utilizada essa técnica quando ambos os genitores,<br />

ou apenas a mulher é estéril 11 .<br />

A técnica de fertilização in vitro e transferência do pré-embrião para a cavidade<br />

uterina é realizada pela extração do gameta masculi<strong>no</strong> e do gameta femini<strong>no</strong> dos futuros pais,<br />

ou recorre-se ao material genético existente em bancos de sêmen, e, a partir deles, concretiza-<br />

se a fertilização em laboratório. Apenas após o êxito do pré-embrião, ocorre a transferência do<br />

mesmo para o colo do útero da futura gestante. Transfere-se um total de 04 (quatro) pré-<br />

embriões por procedimento 12 .<br />

O último procedimento, de<strong>no</strong>minado transferência intratubária do zigoto, é similar a<br />

fertilização in vitro e transferência intra-uterina. A diferença ocorre apenas quanto ao local em<br />

que se depositarão os óvulos já fecundados. A transferência dos pré-embriões ocorrerá na tuba<br />

uterina e não <strong>no</strong> colo do útero como visto <strong>no</strong> método acima 13 .<br />

Todos os métodos de <strong>reprodução</strong> humana assistida analisados podem ainda receber<br />

outra qualificação, a que mais repercute conseqüências para o Direito, pois está intimamente<br />

ligada ao instituto jurídico da filiação. São as qualificações: <strong>reprodução</strong> humana assistida<br />

homóloga e <strong>reprodução</strong> humana assistida heteróloga.<br />

A <strong>reprodução</strong> humana assistida homóloga decorre da utilização do material genético<br />

do próprio casal (óvulo e espermatozóide). Assim, a filiação biológica se iguala a filiação<br />

10 FERRARI, Rita Vieira Guarnieri. 1996, p. 253-254. A autora discorre sobre todos os tipos de inseminação<br />

quais sejam: intravaginal, intracervical, intra-uterina, intratubária direta e indireta e intraperitoneal. Por se tratar<br />

de métodos tipicamente da literatura médica, não vamos adentrar na distinção de cada sub-técnica.<br />

11 SANTOS, Nelson da Cruz. 1996, p. 261.<br />

12 TOGNOTTI, Élvio. LOYELO, Taisa. 1996, p. 270.<br />

13 UENO, Joji. 1996, p. 272.<br />

4


<strong>civil</strong>, ou seja, a criança terá o mesmo material genético de seus pais 14 . Esse tipo de fecundação<br />

não acarreta maiores problemas <strong>no</strong> âmbito jurídico <strong>no</strong> <strong>tocante</strong> <strong>à</strong> filiação.<br />

Por outro lado, a <strong>reprodução</strong> humana assistida heteróloga resulta da utilização de<br />

material genético de terceiros, que não sejam os interessados com a geração daquela criança.<br />

O casal tem que recorrer a doadores de óvulos e/ou espermatozóides, fazendo com que a<br />

criança gerada tenha parte do material genético do casal ou não.<br />

A legislação em vigor, <strong>no</strong> que tange a <strong>reprodução</strong> humana assistida heteróloga, não<br />

exige a esterilidade do marido ou da esposa para a realização do procedimento, o único<br />

requisito legal é a prévia autorização do marido para a utilização de material genético distinto<br />

do seu 15 . Esse tipo de procedimento traz conseqüências para o mundo jurídico, o qual<br />

reconhece vínculos de parentesco independente da carga genética dos envolvidos <strong>no</strong> processo<br />

de filiação 16 .<br />

2.2. VÍNCULOS CONSTITUTIVOS<br />

Enquanto que a fecundação homóloga não gera dúvidas <strong>no</strong> que concerne a<br />

paternidade e maternidade da criança, uma vez que existe o vínculo sanguíneo entre os<br />

sujeitos da relação de parentesco, e o próprio Código Civil reconhece tal relação por força do<br />

artigo 1.597 17 , a fecundação heteróloga gera familiares sem laços de consanguinidade, o que<br />

poderia suscitar dúvidas na relação de parentalidade. Mas, decorrentes do desejo inconsciente<br />

ou mesmo consciente de gerar um filho, a <strong>reprodução</strong> humana assistida heteróloga acende<br />

uma filiação presumida, reconhecida pelo legislador <strong>no</strong> próprio artigo supracitado e em<br />

consonância com os princípios da desbiologização, responsabilidade parental e o melhor<br />

interesse da criança 18 .<br />

Pelo antigo critério do biologismo, a regra da verdade biológica, ou pater is est quem<br />

justae nuptiae demonstrant, deveria sempre prevalecer, em detrimento da paternidade<br />

14 KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 149.<br />

15 LÔBO, Paulo. 2009, p. 203.<br />

16 KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 149.<br />

17 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2003. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República<br />

Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 de janeiro de 2011.<br />

“Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias,<br />

pelo me<strong>no</strong>s, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos <strong>no</strong>s trezentos dias subseqüentes <strong>à</strong><br />

dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos<br />

por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se<br />

tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação<br />

artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.<br />

18 KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 156.<br />

5


<strong>jurídica</strong>. Porém tal regra não mais condiz com a realidade social, onde hoje é comum que a<br />

paternidade <strong>jurídica</strong> não coincida com a paternidade biológica 19 .<br />

(...) o pater não é determinado pelo critério da progenitura mas sim pela função<br />

social de pai, pelo ofício familiar da paternidade – em homenagem ao interesse<br />

concreto do filho, <strong>à</strong> paz de um certo agregado familiar, ou para tutela do<br />

desenvolvimento útil das técnicas modernas da terapêutica da infertilidade. Isto é, a<br />

condição de pai mantém-se por vezes separada da progenitura, e determina-se<br />

obedecendo a motivos culturais; obedecendo, para falar de um modo que já entrou<br />

<strong>no</strong>s usos, a um critério socialista 20 .<br />

A busca pelo parentesco será sempre uma constante na vida da criança, seja pela<br />

necessidade de procurar sua ascendência genética, parentesco biológico, ou, seja pela<br />

necessidade de constituir vínculos sociais com um sujeito que se porte socialmente como pai.<br />

Contudo, dentre as diversas opções para se constituir um vínculo paternal, aquele que cuida<br />

do cotidia<strong>no</strong> da criança, contribui mais significativamente para sua estabilidade psicológica 21 .<br />

Com isso, consagra-se a paternidade <strong>jurídica</strong> em detrimento da paternidade biológica.<br />

A <strong>reprodução</strong> humana assistida, independente de que modo opere – homóloga ou<br />

heteróloga, acarreta um vínculo originário de parentalidade-filiação, pois resulta da própria<br />

vontade livremente manifestada pelos genitores em dar vida a uma criança, mas<br />

impossibilitados de recorrerem aos métodos originais para tanto (conjunção carnal).<br />

Aqui se observa um ponto de congruência entre a filiação originada da técnica de<br />

<strong>reprodução</strong> heteróloga e a filiação advinda de origem sanguínea: ambas constituem<br />

vínculos de filiação originários; a diferença, entretanto, se dá quanto ao elemento<br />

constitutivo (fundamental) desse vinculo: na fecundação heteróloga, pela vontade<br />

livre e manifestada; na filiação clássica, originalmente estabelecido, o tratamento<br />

jurídico deve ser idêntico <strong>à</strong> hipótese da procriação carnal, com a nuança de que na<br />

<strong>reprodução</strong> assistida não houve relação sexual, mas a vontade associada ao êxito do<br />

procedimento médico como elemento substitutivo da relação carnal 22 .<br />

Ou seja, o elemento volitivo impera para o estabelecimento dos vínculos jurídicos<br />

decorrentes da parentalidade. Seja num momento posterior ao nascimento da criança, como<br />

<strong>no</strong>s casos de reconhecimento voluntário da paternidade de filho extramatrimonial e nas<br />

hipóteses de adoção; ou, seja num momento anterior a própria concepção da criança, quando<br />

há a concepção natural decorrente de uma relação sexual da qual resulte uma gravidez, ou até<br />

19<br />

OLIVEIRA, Guilherme de. 2003, p. 177.<br />

20<br />

Idem, p. XXII.<br />

21<br />

LÔBO, Paulo. 2009, p. 195-196. Contudo, a paternidade biológica ainda persistirá <strong>no</strong>s casos em que não há<br />

nenhum vínculo pater<strong>no</strong>-social com a criança.<br />

22<br />

OLIVEIRA, Guilherme de. 2003, p. 152.<br />

6


mesmo decorrente dos processos de <strong>reprodução</strong> humana assistida, em que o casal deve<br />

manifestar livremente sua vontade consentindo com a procriação artificial.<br />

Quaisquer das hipóteses de manifestação de vontade anteriores <strong>à</strong> geração da criança,<br />

comentadas acima <strong>no</strong>s casos de gravidez resultante de relação sexual e nas hipóteses de<br />

gravidez decorrente de <strong>reprodução</strong> humana assistida, são irrevogáveis e geram vínculos de<br />

parentalidade originários. Uma gravidez decorrente da procriação carnal não pode ser<br />

interrompida sob pena de insurgir na conduta do abortamento; o consentimento expresso em<br />

constituir uma família por métodos artificiais de fecundação, uma vez bem sucedido tal<br />

procedimento, não há como voltar atrás, pois o estado gravídico já está consumado. Com isso,<br />

opera-se a construção <strong>jurídica</strong> do elemento volitivo como determinante para a concretização<br />

das relações parentais.<br />

Surge, desse modo, a ficção <strong>jurídica</strong> atinente ao elemento volitivo agregado ao<br />

projeto parental que, uma vez iniciado com a concepção e o início da gravidez, não<br />

pode mais retroagir, da mesma forma que ocorre na procriação carnal diante da<br />

gravidez resultante de relação sexual. Assim, a paternidade que se estabeleceu é<br />

certa ou “presumida de forma absoluta” 23 .<br />

Há a completa igualdade de condições e autoridade parental entre os pais que<br />

geraram seus filhos por meios naturais e aqueles que recorreram <strong>à</strong>s técnicas de <strong>reprodução</strong><br />

humana assistida para alcançar tal sonho. O próprio Código Civil, em seu artigo 1.597<br />

reconhece a relação de parentalidade entre os casados e os filhos nascido na constância do<br />

casamento, bem como entre os casados e os filhos advindos de fecundação homóloga e, por<br />

fim, entre os casados e os filhos decorrentes da fecundação heteróloga, desde que haja o<br />

consentimento expresso do pai. Ainda que, futuramente, tal relação conjugal deixe de existir,<br />

a paternidade e a maternidade persistem, pois são funções parentais e não conjugais.<br />

3. PRINCIPAIS PROBLEMATIZAÇÕES DA FILIAÇÃO DECORRENTE DA<br />

REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA<br />

3.1. PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE versus IMPUGNAÇÃO DA<br />

PATERNIDADE<br />

23 KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 153.<br />

7


Uma vez que não há semelhança genética entre os filhos advindos dos processos de<br />

<strong>reprodução</strong> humana assistida e os futuros pais, pode-se afirmar que os vínculos parentais são<br />

incertos. Para evitar tal insegurança <strong>jurídica</strong>, uma vez que futuramente os pais biológicos<br />

podem reclamar o reconhecimento do vínculo familiar, o Projeto de Lei n.º1.184/2003, em<br />

seu artigo 17, observando o que dispõe a Resolução n.º 1.358/92 do Conselho Federal de<br />

Medicina, veda o estabelecimento de vínculos familiares entre os parentes biológicos e a<br />

criança nascida por <strong>reprodução</strong> humana assistida 24 .<br />

Por outro lado, o marido da parturiente que consentiu com o projeto de paternidade<br />

decorrente de procedimento artificial, seja homóloga ou heteróloga, não pode, posteriormente,<br />

impugnar sua condição de pai. Principalmente na hipótese de <strong>reprodução</strong> humana assistida<br />

heteróloga, em que a autorização expressa do homem é condição sem a qual o procedimento<br />

não se efetiva. A manifestação anterior da vontade não pode ser objeto de impugnação.<br />

Essa construção <strong>jurídica</strong> do vínculo constitutivo originário da paternidade vem<br />

contribuir para o fortalecimento da filiação socioafetiva, e não biológica. A presunção da<br />

paternidade é absoluta, consoante o enunciado n.º 258 da III Jornada de Direito Civil do<br />

Conselho da Justiça Federal 25 . “Pode parecer surpreendente que, em um campo onde a ciência<br />

genética é triunfante, a verdade biológica seja proibida” 26 .<br />

Já nas hipóteses de fecundação homóloga, só é cabível a contestação de paternidade<br />

quando comprovado que o marido da parturiente não é o pai biológico da criança. Ou seja,<br />

houve um erro ou dolo por parte do laboratório que utilizou material genético de terceiro,<br />

resultando num procedimento heterólogo 27 .<br />

Apesar da falta de legislação <strong>no</strong> <strong>tocante</strong> a esta temática, a doutrina se constrói <strong>no</strong><br />

sentido de vetar a futura impugnação da paternidade da criança fruto do procedimento de<br />

fertilização assistida. Os doutrinadores fundamentam seus posicionamentos na Lei Sueca de<br />

1985, artigo 4º, pioneira nas técnicas de fertilização, a qual reconhece o direito ao<br />

conhecimento da ascendência genética, mas esse conhecimento não gera o vinculo jurídico da<br />

paternidade. Também são contrários <strong>à</strong> impugnação posterior da paternidade o Código Civil<br />

24<br />

Projeto de Lei n.º 1.184/2003. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 06 de fevereiro de 2011. “Art.<br />

17. O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto <strong>à</strong> paternidade<br />

ou maternidade, em relação <strong>à</strong> pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de Reprodução Assistida, salvo os<br />

impedimentos matrimoniais elencados na legislação <strong>civil</strong>.”.<br />

25<br />

III Jornada de Direito Civil. Org.: Ruy Rosado. Brasília: CNJ. 507 p. ISBN 85-85572-80-9. Disponível em:<br />

www.cjf.jus.br/revista/enunciados. Acesso em: 14 de fevereiro de 2011. “258: Arts. 1.597 e 1.601: Não cabe a<br />

ação prevista <strong>no</strong> artigo 1.601 do Código Civil se a filiação tiver origem em procriação assistida heteróloga,<br />

autorizada pelo marido <strong>no</strong>s termos do inc. V do art. 1.597, cuja paternidade configura presunção absoluta”.<br />

26<br />

LÔBO, Paulo. 2009, p. 204.<br />

27<br />

KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 158.<br />

8


Português (art. 1.839, n.º 3º), o Canadá, a Grã-Bretanha, a França, a Lei Alemã (1989), a Lei<br />

Espanhola n. 35/1988 28 .<br />

Em Portugal, por força do art. 1.839, n.º 3º, o cônjuge que consentiu com o projeto<br />

parental através da inseminação artificial heteróloga não pode, posteriormente, impugnar a<br />

paternidade. Tal dispositivo português é uma exceção ao biologismo, onde o marido é forçado<br />

a se manter na condição de pai, mesmo sem ser o genitor da criança. 29 A vedação de uma<br />

posterior impugnação da paternidade do cônjuge que consentiu com o projeto parental possui<br />

uma justificativa de natureza familiar e social.<br />

A tec<strong>no</strong>logia ocidental encontrou na inseminação heteróloga um processo de<br />

resolver o problema da esterilidade do marido sem ofender a tradição de fidelidade<br />

judaico-cristã e respeitando a intimidade da família conjugal moderna. Esse processo<br />

exige, por outro lado, um compromisso firme do pater; por outro, a omissão do<br />

genitor. É nesta separação entre o pai e o procriador, dolorosa na cultura ocidental e<br />

exigindo dos cônjuges um compromisso firme, que se encontra o motivo pelo qual<br />

se julga contrário <strong>à</strong> boa-fé – e abusivo – o exercício da impugnação por quem<br />

aceitara a investidura do marido na função social de pai 30 .<br />

Tendo por base que a vedação para uma futura impugnação de paternidade tem fonte<br />

<strong>no</strong> compromisso familiar, ora investidura do marido na condição de pai, é possível constatar<br />

que há uma incoerência <strong>no</strong> sistema. É certo que possa haver casos em que o marido consentiu<br />

com a <strong>reprodução</strong> humana assistida, mas a mesma ocorreu de modo diverso do acordado. A<br />

mulher utilizou outro médico, aceitou doação de doador conhecido; sempre hipóteses que<br />

transcendem o consentimento do marido. É possível também que a criança apresente<br />

características físicas muito destoantes com as do marido, sendo impossível este se fazer<br />

passar por progenitor. Concebe-se, ainda, que a maternidade desperte na mulher uma rejeição<br />

do marido, pautada em motivos irrelevantes, razão pela qual a união não se faz necessária 31 .<br />

É certo que as circunstâncias da vida levantarão hipóteses outras as quais não seja<br />

justo vincular o cônjuge, de modo intransigente, ao consentimento que foi concedido para a<br />

realização do procedimento. Quando a estabilidade sociológica e afetiva da família está<br />

comprometida, quando o próprio filho rejeita aquele homem como pai, essa <strong>no</strong>rma passa a ter<br />

caráter abusivo 32 .<br />

28<br />

Idem, p. 158 e ss.<br />

29<br />

OLIVEIRA, Guilherme de. 2003, p. 335.<br />

30<br />

Idem, p. 352.<br />

31<br />

Ibidem, p. 352-353. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa proibiu a eugenia <strong>no</strong> momento da<br />

escolha do doador, exceto: a) para evitar doença grave (interesse social); b) para evitar características<br />

ostensivamente diferentes (interesse do filho).<br />

32<br />

Ibdem, p. 354.<br />

9


Não se trata de impugnar a paternidade pela não coincidência da base genética entre<br />

pai e filho, até mesmo porque é sabido que não há semelhança <strong>no</strong> <strong>tocante</strong> ao material<br />

genético, mas sim porque não há estado de filiação de natureza socioafetiva. Uma vez que há<br />

essa possibilidade para as relações de parentesco não advindas das técnicas de <strong>reprodução</strong><br />

humana assistida, por que tutelar de modo diverso para os métodos artificiais de procriação? 33<br />

Essa vedação doutrinária, uma vez que não há expressamente dispositivo legal para<br />

tanto, decorre da participação voluntária do pai <strong>no</strong> consentimento para se recorrer <strong>à</strong>s técnicas<br />

de <strong>reprodução</strong> humana assistida.<br />

(...) não admite a contestação da paternidade em razão da divergência da origem<br />

genética, porque a inseminação artificial com sêmen de outro homem,<br />

principalmente em virtude de esterilidade do pai, foi por este autorizada. Este é mais<br />

um elemento de conformação da primazia do estado de filiação, em matéria de<br />

paternidade, sobre a origem genética 34 .<br />

O <strong>no</strong>sso sistema é pautado na auto<strong>no</strong>mia da vontade, logo devia prever hipóteses<br />

para quebrar a rigidez da impossibilidade de impugnação posterior. Deve haver uma limitação<br />

ao direito de impugnar, tendo por base a dimensão cultural da paternidade 35 . “O cônjuge<br />

deve ser admitido de impugnar quando, excepcionalmente, a quebra da boa-fé conjugal for<br />

admissível para evitar prejuízo maior – a ofensa do interesse concreto do filho” 36 .<br />

Não se trata de liberar a qualquer hipótese a impugnação. Bem porque há<br />

necessidade de se limitar o direito de impugnar, uma vez que o mesmo decorre da adesão<br />

voluntária a uma estrutura familiar na condição de pater. Buscar, através da impugnação,<br />

desconstituir o estatuto de pai sem uma situação relevante para tanto, representaria uma<br />

quebra na solidez dos vínculos familiares, como também, uma má-fé e desrespeito com a<br />

família e a sociedade.<br />

Nestes termos, ao pretender afastar-se do compromisso anterior depois de ter<br />

consumado fecundação heteróloga, o cônjuge pretende negar uma paternidade<br />

assumida perante a família e sociedade; não se trata apenas de voltar com uma<br />

palavra atrás – o que já seria talvez prejudicial e contrário <strong>à</strong> boa-fé – mas sim de<br />

negar uma paternidade a que aderiu 37 .<br />

33<br />

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2003. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República<br />

Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 de janeiro de 2011.<br />

“Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal<br />

ação imprescritível”.<br />

34<br />

LÔBO, Paulo. 2003, p. 78.<br />

35<br />

OLIVEIRA, Guilherme de. 2003, p. 358.<br />

36<br />

Idem, p. 361.<br />

37<br />

Idem, p. 358.<br />

10


O consentimento para com o projeto parental não pode ser quebrado arbitrariamente,<br />

sob pena de constituir um abuso. Mas deveria ser levado em consideração, para uma posterior<br />

impugnação, o melhor interesse da criança.<br />

3.2. DOAÇÃO DOS GAMETAS: SIGILO DO DOADOR versus DIREITO<br />

À IDENTIDADE GENÉTICA<br />

As técnicas de <strong>reprodução</strong> humana assistida já se consagraram como alternativa para<br />

combater a esterilidade. Não se conhece bem a extensão desse fenôme<strong>no</strong>; seja porque ocorre<br />

em consultórios médicos fechados, seja por adentrar na seara de outros saberes; o fato é que<br />

tal procedimento merece o olhar cuidadoso dos juristas, pois consagra a paternidade sem a<br />

existência de um vínculo biológico 38 . De mesmo modo, há a violação ao direito <strong>à</strong> identidade<br />

genética do filho, o qual cresce sem conhecer sua ascendência biológica, visto que a<br />

legislação consagra o a<strong>no</strong>nimato do doador.<br />

Porém, independente desse confronto genético, a sociedade legitimou a utilização<br />

das <strong>no</strong>vas técnicas, como forma de romper com a fragilidade humana atrelada <strong>à</strong> esterilidade.<br />

O desejo de procriação deixou de ser apenas <strong>no</strong> intuito de constituir uma família e passou a<br />

representar, também, uma manifestação de sucesso pessoal.<br />

Numa sociedade competitiva, que a tônica é a realização imediata de todos os<br />

desejos e aspirações, onde qualquer frustração influi num sentimento de<br />

inferioridade e fracasso, a esterilidade, mesmo sem causa aparente, fragiliza pessoas<br />

e relações 39 .<br />

Frente ao desejo de ter filhos e da impossibilidade de se concretizar por meios<br />

naturais, a medicina reprodutiva ganha força. Com isso, o paradigma do biologismo deixa de<br />

perdurar. Mas a procriação artificial ainda se encontra inserida <strong>no</strong> campo jurídico das<br />

incertezas. Através das técnicas de <strong>reprodução</strong> humana assistida, encontra-se a ig<strong>no</strong>rância<br />

acerca da consideração da criança a nascer. São conflitos que carecem do Direito um<br />

posicionamento firme, sem, contudo, afastar-se dos princípios éticos e morais e enrijecendo os<br />

avanços da biotec<strong>no</strong>logia.<br />

Diz-se isto porque estas práticas biomédicas, enquanto restritas aos laboratórios e<br />

centros de pesquisa, são conquistas admiráveis, mas quando transportadas para a<br />

seara do Direito, se apresentam como um emaranhado de dúvidas e incertezas, que<br />

38 Ibidem, p. 336.<br />

39 ANDRADE, Denise Almeida de. CHAGAS, Márcia Correia. 2010, p.706.<br />

11


ameaçam a efetividade de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa<br />

humana e de direitos já enraizados na legislação nacional, como o direito ao<br />

conhecimento de filiação completa 40 .<br />

Assim, constata-se uma <strong>no</strong>va realidade construída pelo Direito: o marido é pater<br />

excepcional do critério do biologismo e o doador anônimo é genitor excepcionalmente<br />

desvinculado das obrigações familiares 41 .<br />

Antes de se analisar a questão do sigilo do doador do gameta, é necessário esclarecer<br />

a significação do direito fundamental <strong>à</strong> informação genética e o direito <strong>à</strong> filiação. Ambos não<br />

se confundem. O direito <strong>à</strong> filiação se encontra tutelado pela Convenção dos Direitos da<br />

Criança da ONU, de 1989, em seu artigo 7º, número 1 42 , sendo recepcionada pelo<br />

ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo n. 28, de 24 de setembro de 1990.<br />

Assim, o direito <strong>à</strong> filiação tem caráter de Direito Fundamental, sendo um direito da<br />

personalidade 43 . É do direito <strong>à</strong> filiação que se reconhece o atributo da maternidade e da<br />

paternidade, estes não coincidentes, necessariamente, com a origem biológica.<br />

Assim, surgem duas figuras distintas: o pai, decorrente do vínculo de paternidade,<br />

aquele que comunga afeto com o filho, participando de todas as etapas do desenvolvimento<br />

físico e psíquico da criança; e o ascendente biológico, mero procriador que contribuiu com<br />

seu material genético para o nascimento da criança 44 . O direito <strong>à</strong> filiação faz surgir a figura do<br />

pai, enquanto que o direito <strong>à</strong> identidade genética assegura <strong>à</strong> criança a buscar pela sua origem<br />

genética sem, contudo, firmar entre as partes o vínculo constitutivo da paternidade.<br />

É a partir dos direitos da personalidade que pode ser investigada a ascendência<br />

genética. A Corte Constitucional Alemã, em 1994, decidiu pela preservação do<br />

direito ao conhecimento da própria ascendência sem que com isso houvesse uma<br />

modificação <strong>no</strong>s efeitos sobre a relação de parentesco, compreendendo o direito ao<br />

conhecimento da própria ascendência, como dimensão juridicamente autô<strong>no</strong>ma e<br />

distinta do âmbito do reconhecimento judicial da paternidade. 45<br />

40 Idem, p. 706.<br />

41 OLIVEIRA, Guilherme de. 2003, p. 337.<br />

42 Convenção sobre os direitos da criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, resolução n.º<br />

1.386 da ONU, de 20 de <strong>no</strong>vembro de 1959. Disponível em: www.onubrasil.org.br/documentos_convencoes.php.<br />

Acesso em 02 de fevereiro de 2011. “Art. 7º. Número 1: A criança<br />

será registrada imediatamente após o seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um <strong>no</strong>me,<br />

a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles”.<br />

43 BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da<br />

República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 de janeiro<br />

de 2011. “Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e<br />

imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais e seus herdeiros, sem qualquer restrição”.<br />

44 KRELL, Olga Jubert Gouveia. 2008, p. 161-162.<br />

45 Idem, p. 162.<br />

12


O que ocorre é a existência de dois direitos fundamentais autô<strong>no</strong>mos, os quais não<br />

conflitam entre si: o direito <strong>à</strong> identidade genética e o direito <strong>à</strong> filiação (identidade familiar).<br />

Conhecer a origem genética não altera o vínculo parental constituído anteriormente. Assim, a<br />

identidade do doador do gameta, nas hipóteses de <strong>reprodução</strong> humana assistida heteróloga,<br />

pode ser revelada quando a criança pleiteia o seu direito ao conhecimento da origem genética.<br />

Tal direito é suscitado <strong>no</strong>s casos de busca de doenças hereditárias e para evitar impedimentos<br />

matrimoniais, ou até mesmo pela simples curiosidade da criança, a qual deve ter o seu direito<br />

da personalidade assegurado.<br />

Porém essa busca não pode resultar em uma impugnação da paternidade socioafetiva<br />

preestabelecida. Até porque os pais biológicos efetuaram um ato de liberalidade ao doarem<br />

seu material genético, sem qualquer intenção de constituir uma família. Mesmo quando<br />

protegidos pelo contrato firmado com as clínicas de <strong>reprodução</strong> humana assistida que garante<br />

o sigilo do doador, o direito ao estado de filiação é personalíssimo, pelo art. 27 do ECA,<br />

assim, inalienável, e não pode ser contestado por um ato bilateral entre o doador e a clínica 46 .<br />

Há, porém, um entrave para a busca da origem genética. Nenhuma pessoa pode ser<br />

coagida a prestar um exame de DNA, sem seu consentimento. Não há <strong>no</strong>rma coercitiva que<br />

inflija qualquer pessoa a se submeter ao exame 47 . O Projeto de Lei n.º1.184, de 2003, optou<br />

por estabelecer, enquanto regra, o sigilo do doador, para tanto, admite, em alguns casos,<br />

exceções, possibilitando o acesso <strong>à</strong>s informações genéticas, inclusive <strong>à</strong> identidade <strong>civil</strong> do<br />

doador. São as hipóteses previstas <strong>no</strong>s parágrafos 1º e 2º do referido artigo 48 :<br />

§ 1º A pessoa nascida por Reprodução Assistida terá acesso, a qualquer tempo,<br />

diretamente ou por meio de representante legal, e desde que manifeste sua vontade,<br />

livre, consciente e esclarecida, a todas as informações sobre o processo que o gerou,<br />

inclusive <strong>à</strong> identidade <strong>civil</strong> do doador, obrigando-se o serviço de saúde responsável a<br />

fornecer as informações solicitadas, mantidos os segredos profissionais e de justiça.<br />

§ 2º Quando razões médicas ou <strong>jurídica</strong>s indicarem ser necessário, para a vida ou a<br />

saúde da pessoa gerada por processo de Reprodução Assistida, ou para oposição de<br />

impedimento do casamento, obter informações genéticas relativas ao doador, essas<br />

deverão ser fornecidas ao médico solicitante, que guardará o devido segredo<br />

profissional, ou ao oficial do registro <strong>civil</strong> ou a quem presidir a celebração do<br />

casamento, que <strong>no</strong>tificará os nubentes e procederá na formação da legislação <strong>civil</strong>.<br />

Assim, entende-se que deve ser assegurado o direito a ter acesso <strong>à</strong>s informações<br />

genéticas. A criança busca, através de uma Ação de Investigação de Paternidade, sua origem<br />

genética, mas o estado de filho não pode ser desconstituído em favor daquele que não<br />

46<br />

ANDRADE, Denise Almeida de. CHAGAS, Márcia Correia. 2010, p. 711.<br />

47<br />

STF, HC n.º 71.373/RS. Min. Rel. Francisco Rezek. D.J. 22.11.96. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em:<br />

13 de janeiro de 2011.<br />

48<br />

Projeto de Lei n.º 1.184/2003. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 06 de fevereiro de 2011.<br />

13


participou do projeto familiar de gerar uma criança. O estado de filiação decorre da prática de<br />

atos de maternidade/paternidade, sendo assim, a responsabilidade decorrente da parentalidade<br />

não pode recair sob aqueles que prestaram um ato de liberalidade em conceder material<br />

genético para concretizar o sonho de outras famílias.<br />

4. CONCLUSÃO<br />

O presente trabalho analisou as questões controvertidas <strong>no</strong> <strong>tocante</strong> <strong>à</strong>s técnicas de<br />

<strong>reprodução</strong> humana assistida, especialmente quanto <strong>à</strong> <strong>reprodução</strong> humana assistida<br />

heteróloga. É possível constatar o avanço da biotec<strong>no</strong>logia na tentativa de possibilitar o sonho<br />

da parentalidade para casais classificados como inférteis para a literatura médica. A sociedade<br />

recepcio<strong>no</strong>u bem essas <strong>no</strong>vas formas de constituir uma família, uma vez que o sonho da<br />

parentalidade é comum a quase toda a população.<br />

Porém, o ordenamento jurídico brasileiro silenciou quanto <strong>à</strong>s implicações <strong>jurídica</strong>s<br />

advindas desses procedimentos. Restou a doutrina a construção de orientações a serem<br />

seguidas pelos julgadores para solucionar os casos em concreto, sempre tendo por base o<br />

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.<br />

Primeiramente, foi avaliado o vínculo constituído através da <strong>reprodução</strong> humana<br />

assistida. Neste ponto, leva-se em consideração o princípio da auto<strong>no</strong>mia da vontade do<br />

marido da parturiente que consentiu, previa e expressamente, com a utilização de material<br />

genético distinto. Assim, o elemento volitivo tem relevância para se consumar o estado<br />

gravídico da futura mãe. Sem este consentimento, não há o que se falar em gravidez. Como se<br />

trata de um ato anterior <strong>à</strong> gestação, decorrente do projeto de parentalidade, diz-se que o<br />

vínculo de filiação constituído a partir das técnicas de <strong>reprodução</strong> humana assistida é<br />

originário.<br />

Uma vez estabelecida a paternidade, decorrente da filiação originária, esta não<br />

poderá ser contestada (impugnada). Tendo por base a construção da família por vínculos<br />

meramente socioafetivos, a parentalidade não pode ser futuramente questionada sob o<br />

argumento da falta de semelhança genética entre os membros familiares. Mas uma vez está<br />

presente o elemento volitivo anterior ao sucesso do procedimento como forma de<br />

impossibilitar futura impugnação e, com isso, garantir maior segurança <strong>jurídica</strong> para essas<br />

estruturas familiares.<br />

14


O autor português Guilherme de Oliveira questiona essa posição intransigente da<br />

doutrina alegando que deveria prevalecer, sempre, o melhor interesse da criança,<br />

independentemente da vontade anteriormente expressada. Assim, desde que não haja convívio<br />

socioafetivo entre pai e filho, a paternidade constituída por <strong>reprodução</strong> humana assistida<br />

heteróloga poderá ser desconstituída.<br />

Por fim, tratou-se a questão do sigilo do doador em detrimento da busca pela origem<br />

genética por parte da criança. Partiu-se do pressuposto que o critério biológico não possui<br />

caráter absoluto para consolidar o estado de filiação. Assim, a busca pela identidade genética<br />

não desconstitui a relação parental firmada anteriormente e pautada pela afinidade. O doador<br />

poderá ter sua identidade revelada, mas isso não o fará pai jurídico da criança.<br />

Como analisado ao longo do trabalho, há a falta de regulamentação <strong>jurídica</strong> para<br />

uniformizar esses entendimentos. Por ora, tem-se a construção doutrinária e a comparação<br />

com a legislação estrangeira para <strong>no</strong>rtear os conflitos jurídicos sempre com o intuito de<br />

preservar a estrutura familiar.<br />

5. REFERÊNCIAS<br />

5.1.Artigos:<br />

ANDRADE, Denise Almeida de. CHAGAS, Márcia Correia. Limitações ao a<strong>no</strong>nimato dos<br />

doadores de material genético nas fecundações artificiais humanas frente ao direito <strong>à</strong><br />

informação do receptor: uma <strong>no</strong>va mirada <strong>à</strong> luz do princípio da dignidade da pessoa<br />

humana. Trabalho publicado <strong>no</strong>s Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado<br />

em Fortaleza-CE <strong>no</strong>s dias 09, 10, 11 e 12 de junho de 2010, pp. 705-716.<br />

ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles. Disciplina <strong>jurídica</strong> do embrião extracorpóreo. Revista do<br />

Programa de Pós-Graduação UFBA, n. 16, 2008.1. Salvador, pp. 151-175.<br />

FERRARI, Rita Vieira Guarnieri. Técnicas de <strong>reprodução</strong> assistida: inseminação artificial. In:<br />

PINOTTI, José Aristodemo, et al. Reprodução humana. São Paulo: Fundação BYK, 1996,<br />

pp. 253-260.<br />

15


KRELL, Olga Jubert Gouveia. As principais questões jurídico-civis ligadas <strong>à</strong>s técnicas de<br />

<strong>reprodução</strong> assistida e o seu tratamento: de lege lata e de lege ferenda <strong>no</strong> Brasil. Revista do<br />

Mestrado em Direito – v.2, n.3, dez.2006. Maceió: Edufal, 2008, pp.147-178.<br />

SANTOS, Nelson da Cruz. Técnica de <strong>reprodução</strong> assistida: GIFT. In: PINOTTI, José<br />

Aristodemo, et al. Reprodução humana. São Paulo: Fundação BYK, 1996, pp. 261-264.<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão<br />

jurídico-constitucional aberta e compatível com os desafios da biotec<strong>no</strong>logia. In: SARLET,<br />

Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão. Direitos fundamentais e biotec<strong>no</strong>logia. São<br />

Paulo: Método, 2008, pp. 13-44.<br />

TOGNOTTI, Élvio. LOYELO, Taisa. Técnica de <strong>reprodução</strong> assistida: fertilização in vitro e<br />

transferência intra-uterina. In: PINOTTI, José Aristodemo, et al. Reprodução humana. São<br />

Paulo: Fundação BYK, 1996, pp. 265-271.<br />

UENO, Joji. Técnica de <strong>reprodução</strong> assistida: transferência intratubária do zigoto. In:<br />

PINOTTI, José Aristodemo, et al. Reprodução humana. São Paulo: Fundação BYK, 1996,<br />

pp. 272-277.<br />

5.2.Legislação, Enunciados e Julgados:<br />

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário<br />

Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em:<br />

www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 de janeiro de 2011.<br />

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário<br />

Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em:<br />

www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 de janeiro de 2011.<br />

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2003. Institui o Código Civil. Diário Oficial da<br />

República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso<br />

em: 20 de janeiro de 2011.<br />

16


Convenção sobre os direitos da criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,<br />

resolução n.º 1.386 da ONU, de 20 de <strong>no</strong>vembro de 1959. Disponível em: www.onubrasil.org.br/documentos_convencoes.php.<br />

Acesso em 02 de fevereiro de 2011.<br />

Projeto de Lei n.º 1.184/2003. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 06 de<br />

fevereiro de 2011.<br />

STF, HC n.º 71.373/RS. Min. Rel. Francisco Rezek. D.J. 22.11.96. Disponível em:<br />

www.stf.jus.br. Acesso em: 13 de janeiro de 2011.<br />

III Jornada de Direito Civil. Org.: Ruy Rosado. Brasília: CNJ. 507 p. ISBN 85-85572-80-9.<br />

Disponível em: www.cjf.jus.br/revista/enunciados. Acesso em: 14 de fevereiro de 2011.<br />

5.3.Livros:<br />

LÔBO, Paulo. Código Civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito<br />

patrimonial (arts. 1.591 a 1.693). Vol. XVI. São Paulo: Atlas, 2003.<br />

______. Direito Civil – Família. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2009.<br />

OLIVEIRA, Guilherme de. Critério jurídico da paternidade. Coimbra: Livraria Almedina,<br />

2003.<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9ª ed. rev. atual. e ampl.<br />

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.<br />

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