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TÚMULO Rogério Ribeiro Macêdo Sentado em uma cadeira ... - UTP

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MACÊDO, <strong>Rogério</strong> <strong>Ribeiro</strong>. Túmulo. Eletras, vol. 22, n.22, jul. 2011.<br />

www.utp.br/eletras<br />

<strong>TÚMULO</strong><br />

<strong>Rogério</strong> <strong>Ribeiro</strong> <strong>Macêdo</strong><br />

<strong>Sentado</strong> <strong>em</strong> <strong>uma</strong> <strong>cadeira</strong>. Uma <strong>cadeira</strong> concebida por de um amontoado de<br />

fibras, fibras agora disformes, disformes pela ação do t<strong>em</strong>po, um t<strong>em</strong>po que v<strong>em</strong><br />

saboreando, pedaço por pedaço, partícula por partícula, <strong>uma</strong> lasca aqui e outra ali, essa<br />

coisa que um tinha foi árvore. Assim, esse t<strong>em</strong>po que não se sabe quanto se passou vai<br />

consumindo um objeto que um dia foi feito com tanto esmero por mãos calejadas de um<br />

trabalho duro e seco. Durante dias, noites, tardes de sol ou de chuva, num t<strong>em</strong>po de dor<br />

ou de alegrias, com crianças correndo <strong>em</strong> volta ou apenas à sombra dos mortos.<br />

Sombras que povoam o mundo trazendo notícias do além túmulo que nunca ninguém<br />

sequer voltou para dizer como é. Deve ser muito bom ou deve ser muito ruim. Se<br />

ninguém ainda voltou para contar é porque exist<strong>em</strong> congestionamentos e atrasos nos<br />

vôos de volta para esta terra úmida. Aqui sentado, escondido, com essa busca louca e<br />

medíocre do que se é, essa coisa fétida que todos chamam de essência. Ela me enoja,<br />

<strong>uma</strong> doença que nunca morre. Sangra e sangra, não cessa; passam-se os anos,<br />

esquec<strong>em</strong>-na; depois, a doença da essência volta, fulminando o cérebro incauto do mais<br />

jov<strong>em</strong>, ou até mesmo do velho que não sabe que ela já foi buscada e nunca encontrada.<br />

Deve ser algo como nossos genes, um m<strong>em</strong>e da essência? Talvez como o m<strong>em</strong>e daquela<br />

outra coisa que se busca.<br />

Uma goteira no canto faz ecoar pelo espaço vazio um som que enche todas as<br />

frestas desta casa velha, fétida, cheia de carne, carne que parece a madeira da <strong>cadeira</strong>,<br />

carne agridoce que o t<strong>em</strong>po saboreia. As paredes que um dia estiveram limpas e<br />

confortavelmente enfeitadas estão agora negras, solapadas por sujeiras altivas; as<br />

recobre um pó negro da f<strong>uma</strong>ça do mundo, as chuvas gastam, os sóis secam, os ventos<br />

lascam. Ouço passos do lado de fora. Eles estão de volta e quer<strong>em</strong> me levar; quer<strong>em</strong> me<br />

conduzir para um não sei onde que não existe <strong>em</strong> um não mundo que cai. Prendo a<br />

respiração, as palavras não me sa<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> <strong>em</strong>oção. Estão enlatadas dentro de mim.<br />

Poros fechados. Nada escapa, nenhum ruído. Um silêncio maldito. Eles não pod<strong>em</strong><br />

saber que estou aqui dentro. Elas tentam sair. Não deixo, elas quer<strong>em</strong> a liberdade.<br />

Quer<strong>em</strong> fluir. Conduzir. No fundo eu também quero isso, mas agora não, não agora, não<br />

Eletras, vol. 22, n.22, jul.2011 81


MACÊDO, <strong>Rogério</strong> <strong>Ribeiro</strong>. Túmulo. Eletras, vol. 22, n.22, jul. 2011.<br />

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por hora. Se não pod<strong>em</strong> sair então há apenas um único caminho a seguir, seguir<br />

viajando por entre os inexcrutáveis caminhos de um cérebro vazio, caminhando por<br />

entre os sulcos, saltitando de lobo <strong>em</strong> lobo, passeando pelas curvas de meu giro frontal e<br />

indo de encontro ao giro occipital. Amontoados de córtices. Ali elas se faz<strong>em</strong> presentes<br />

diante de meus olhos, todas as letras, todas as formas, cursivas, redondas, rabiscadas,<br />

inteligíveis. Inapropriadas, deliciosamente inapropriadas! Elas aquec<strong>em</strong> meu corpo<br />

amenizando o frio do lado de fora. Não ouço mais os passos, eles se foram. Posso agora<br />

respirar! Libero um ar podre, respiro um ar pesado com cheiro de pó e chuva, um ar que<br />

me renova e me mata. Perscruto com os olhos, olhos b<strong>em</strong> abertos e interessados <strong>em</strong><br />

enxergar as formas das sombras, há outros aqui dentro!<br />

Alguns parec<strong>em</strong> chorar, outros apenas se curvam para frente e para traz, ou seria<br />

apenas o vento acariciando as <strong>em</strong>poeiradas e rasgadas cortinas que tentam enfeitar as<br />

paredes podres? Na escada faltam degraus, há espaços faltantes no caminho para o alto.<br />

Assim como há pedaço faltantes <strong>em</strong> mim. Lacunas que agora não consigo preencher,<br />

apenas o vazio, o nada; o nada que ao mesmo t<strong>em</strong>po é um certo tudo. Tudo e nada,<br />

amantes voluptuosos seduzindo e amaldiçoando.<br />

Olho para cima, um pequeno raio de luz ilumina um ponto qualquer neste<br />

sombrio lugar; me l<strong>em</strong>bro da lua, daquele luar, naquele lugar. Ensaio um levantar, o<br />

corpo começa o movimento, o cérebro inicia os comandos necessários; primeiro movo-<br />

me lentamente para frente, aliás, primeiro uno minha pernas separadas pelo cansaço e<br />

pela dor; elas estavam separadas como que jogadas, moles e inertes; agora sim, o<br />

movimento para frente, sinto os músculos da coxa se enrijecer<strong>em</strong>, uno as forças que não<br />

tenho, a dor dói, o cansaço dói, o ligamento do joelho prepara-se para auxiliar no<br />

movimento. Inicio, começo, estou ficando quase de pé, mais um pouco, a dor agora é<br />

maior; de repente, sinto como se <strong>uma</strong> mão pousasse <strong>em</strong> meu ombro, leve, suave, com<br />

um perfume delicado de rosas, parece mão de mulher. Volto para a <strong>cadeira</strong>, sento-me,<br />

esperarei um outro momento. Eles estão de volta, ouço seus passos, suas vozes e prendo<br />

a respiração... Já foram, ou seria apenas <strong>uma</strong> ilusão? Ilusão auditiva que meus ouvidos<br />

insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> fazer recorrente, ouvidos que já sab<strong>em</strong> o sabor de <strong>uma</strong> melodia, <strong>uma</strong> voz<br />

suave que <strong>em</strong>bala o sono.<br />

Faz frio! Muito frio! Sinto-me como se milhões de formigas caminhass<strong>em</strong> por<br />

dentro de mim, estão por todas partes, <strong>em</strong> cada célula, cada músculo; nas veias não<br />

corre o sangue vermelho e quente da infância a muito esquecida, corr<strong>em</strong> milhões de<br />

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MACÊDO, <strong>Rogério</strong> <strong>Ribeiro</strong>. Túmulo. Eletras, vol. 22, n.22, jul. 2011.<br />

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pequenas patas, pisoteando as fibras de minhas veias. Meu coração bombeia<br />

formigamento. Sinto a respiração cansada. Os olhos úmidos, <strong>uma</strong> lágrima corre na face<br />

e encontra o canto de minha boca seca; os lábios cortados, devo estar aqui a muito,<br />

muitos anos, muitos séculos, muitos milênios; ainda ouço vozes lá fora, eles estão...<br />

sussurram! Preciso urgent<strong>em</strong>ente contar que agora as formigas já se foram, saíram de<br />

meu corpo pelos poros de minha pele cheia de feridas. Estão agora amontoadas <strong>em</strong> um<br />

canto deste fétido mundo. Consigo ver seus olhos! Elas me observam! O que estão<br />

esperando? Estão cansadas de minha carne, estariam satisfeitas de sorver o meu sangue<br />

gelado? Sangue gelado de <strong>uma</strong> idade adulta s<strong>em</strong> amor, paixão, tesão, amigos. Fecho os<br />

olhos e vejo <strong>uma</strong> taça brilhante, linda e belamente incessante, está preenchida por um<br />

verde suave. Parece-me <strong>uma</strong> mulher. Linda, elegante! O perfume que povoa o ar me<br />

<strong>em</strong>briaga, sou seu, possua-me, toma-me <strong>em</strong> seus braços e faça o que b<strong>em</strong> entender. Sou<br />

escravo feliz, milhões de vezes essa escravidão do que sentir as formigas. Elas estão<br />

voltando! As malditas sob<strong>em</strong> pelas minhas pernas, tomam conta de meu corpo! Me<br />

deix<strong>em</strong>! Saiam! Mas nada pode, elas invad<strong>em</strong> os meus poros, estão novamente <strong>em</strong><br />

minhas veias. Malditas teias! O que elas quer<strong>em</strong> comigo, estariam tentando me comer<br />

vivo? Sinto que despedaço-me <strong>em</strong> pequenas partículas iônicas, me desfaço no<br />

t<strong>em</strong>po/espaço/t<strong>em</strong>po de um t<strong>em</strong>po que não vivi, de um espaço que não conheci. Tudo<br />

agora está mais estranho, tudo brilha, um brilho intenso que cega meus olhos, estou<br />

deitado. Uma sala branca. Vejo claramente que não estou sozinho, há outros junto a<br />

mim e ouço suas vozes; mas elas me são inteligíveis, não compreendo, parece-me <strong>uma</strong><br />

língua estrangeira. Uma mão suave toca agora a minha testa, abro um pouco os olhos<br />

cansado e lacrimejados; vejo que é ela, toda de branco, um tom suave de verde <strong>em</strong> si.<br />

Esboço um sorriso! Sim, minha boca seca agora consegue sorrir. Parece-me que ela<br />

também sorri, ela me aceita, ela me quer, sim, eu sei disso! Toma-me <strong>em</strong> seus braços,<br />

leva-me contigo! As formigas já não estão dentro de mim, estão <strong>em</strong> um canto. Vejo seus<br />

pequeninos olhos carniceiros. Será que elas estão novamente esperando para continuar a<br />

me consumir?<br />

Desfaleço-me!<br />

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