Introdução - Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Introdução - Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Introdução - Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A Corrupção no EstA<strong>do</strong><br />
pós-ColoniAl Em ÁfriCA<br />
duas visões literárias
A Corrupção no EstA<strong>do</strong><br />
pós-ColoniAl Em ÁfriCA<br />
duas visões literárias<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong>
A Corrupção no EstA<strong>do</strong> pós-ColoniAl Em ÁfriCA<br />
DuAs visões literáriAs<br />
Autor: Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Editor: <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong><br />
Colecção: e-books<br />
Edição: 1ª (Abril/2007).<br />
ISBN: 978-972-99727-6-8<br />
Localização: http://www.africanos.eu<br />
Referência bibliográfica:<br />
FRADE, Ana Maria Duarte. 2007. A corrupção no Esta<strong>do</strong> Pós-Colonial em África.<br />
Duas Visões Literárias. ISBN: 978-972-99727-6-8. <strong>Porto</strong>: <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong><br />
<strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>. http://www.africanos.eu<br />
Observação: Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> em <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong>, orienta<strong>da</strong> por<br />
Prof. Doutores António Custódio Gonçalves e José Carlos Venâncio, 2004.<br />
Preço: gratuito na edição electrónica, acesso por <strong>do</strong>wnload.<br />
Solicitação ao leitor: Transmita-nos (ceaup@letras.up.pt) a sua opinião sobre<br />
este trabalho.<br />
©: É permiti<strong>da</strong> a cópia <strong>de</strong> partes <strong>de</strong>ste <strong>do</strong>cumento, sem qualquer modificação, para utilização individual.<br />
A reprodução <strong>de</strong> partes <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> é permiti<strong>da</strong> exclusivamente em <strong>do</strong>cumentos científicos, com indicação<br />
expressa <strong>da</strong> fonte.<br />
Não é permiti<strong>da</strong> qualquer utilização comercial. Não é permiti<strong>da</strong> a sua disponibilização através <strong>de</strong> re<strong>de</strong><br />
electrónica ou qualquer forma <strong>de</strong> partilha electrónica.<br />
Em caso <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong> ou pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> autorização, contactar directamente o CEAUP (ceaup@letras.up.pt).
ÍNDICE<br />
introdução 13<br />
01. EnquAdrAmEnto tEóriCo 19<br />
1. O fenómeno <strong>da</strong> corrupção 19<br />
1.1. A corrupção nos países africanos: os casos <strong>de</strong> Angola<br />
e <strong>de</strong> Moçambique 30<br />
1.2. A Literatura e a <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> corrupção 40<br />
02. A Corrupção: duAs visõEs litErÁriAs 50<br />
2. A corrupção na literatura angolana e moçambicana<br />
pós-colonial 50<br />
2.1. O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo 58<br />
2.1.1. O Tradutor: um narra<strong>do</strong>r incriminatório 59<br />
2.1.2. A corrupção em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo 63<br />
2.2. Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto 74<br />
2.2.1. Quatro narra<strong>do</strong>res: quatro testemunhas <strong>de</strong> acusação<br />
em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto 77<br />
03. miA Couto E pEpEtElA: EnContros<br />
E dEsEnContros 97<br />
3.1. Duas gerações: o contexto 97<br />
3.2. Estrutura e estratégias a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s 113<br />
ConClusão 119<br />
BiBliogrAfiA 125<br />
Activa 125<br />
Geral 126
“Quan<strong>do</strong> um indivíduo se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a enfrentar o papel<br />
sujeita-se voluntariamente a tu<strong>do</strong>”.<br />
— Pepetela, O Cão e Os Caluan<strong>da</strong>s
Agra<strong>de</strong>ço ao Professor Doutor José Carlos Venâncio a disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
a orientação e os incentivos <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s, que foram fun<strong>da</strong>mentais<br />
para a elaboração <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>.<br />
Uma palavra, também, <strong>de</strong> apreço ao Professor Doutor António Custódio<br />
Gonçalves que, sem hesitação, aceitou co-orientar esta tese.<br />
Agra<strong>de</strong>ço ain<strong>da</strong> aos meus novos Amigos: à Ana, à Rosa Maria e ao<br />
Arlin<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o apoio imprescindível, quer nas sugestões, quer na contribuição<br />
bibliográfica. A eles, muito obriga<strong>da</strong>.<br />
Ao João, que me proibiu <strong>de</strong> fazer qualquer referência, agra<strong>de</strong>ço em<br />
priva<strong>do</strong>. Sem ele, na<strong>da</strong> disto teria si<strong>do</strong> possível!<br />
Às minhas filhas, Mariana e Joana, que nasceram e cresceram durante<br />
a frequência <strong>de</strong>ste mestra<strong>do</strong>, pela ternura, pela inocência e pela<br />
ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>, que nos leva a lutar contra os pre<strong>da</strong><strong>do</strong>res humanos. Que<br />
também as crianças <strong>de</strong> África possam ter um mun<strong>do</strong> melhor!
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
INTRODUÇÃO<br />
A corrupção não conhece fronteiras geográficas nem históricas. O<br />
fenómeno atinge to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e po<strong>de</strong>rá pôr em causa o próprio<br />
sistema <strong>de</strong>mocrático. O sufrágio, mesmo quan<strong>do</strong>, efectivamente, é universal<br />
e directo, po<strong>de</strong> não ter em conta certas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s ocultas que<br />
contribuem para adulterar a justiça <strong>do</strong>s seus resulta<strong>do</strong>s. O financiamento<br />
<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s políticos, os jobs for the boys, a promiscui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> futebol e o po<strong>de</strong>r local, o aparecimento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosas organizações<br />
criminosas à escala global geram outras formas <strong>de</strong> representação,<br />
mecanismos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> contrapo<strong>de</strong>r que se sobrepõem ao mo<strong>do</strong> normal<br />
e legítimo <strong>do</strong> exercício <strong>da</strong> soberania.<br />
“As situações em que um funcionário (...) solicita ou aceita uma vantagem<br />
patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como contraparti<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> um acto (lícito ou ilícito, passa<strong>do</strong> ou futuro) que traduz o<br />
exercício efectivo <strong>do</strong> cargo em que se encontra investi<strong>do</strong>” (Costa, 2001:<br />
655) são categoricamente con<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s no chama<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal. O<br />
mesmo se passa porventura com muitas outras condutas que embora não<br />
caibam nos tipos legais <strong>de</strong> crime são reprova<strong>da</strong>s <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista social.<br />
Exige-se <strong>do</strong> funcionário a persecução <strong>do</strong> interesse público mediante uma<br />
actuação pauta<strong>da</strong> pela observância estrita <strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> transparência,<br />
<strong>da</strong> objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência. O particular não po<strong>de</strong> abusar<br />
<strong>da</strong>s suas funções, substituin<strong>do</strong>-se ao Esta<strong>do</strong> e invadin<strong>do</strong> a sua área <strong>de</strong><br />
actuação. Não po<strong>de</strong> utilizar o Esta<strong>do</strong>, o po<strong>de</strong>r que o exercício <strong>da</strong>s suas<br />
funções lhe confere, para seu proveito pessoal.<br />
A corrupção (in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> sua tipificação ou não como<br />
crime) é, to<strong>da</strong>via, <strong>de</strong> certa forma, legitima<strong>da</strong> nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas (1)<br />
1 Embora <strong>de</strong>nunciem o fenómeno <strong>da</strong> corrupção, a maioria <strong>do</strong>s escritores <strong>de</strong>sculpabiliza o crime num<br />
cenário <strong>de</strong> fome e <strong>de</strong> miséria, conforme se constatará no presente trabalho. Tahar Bem Jelloun chama-<br />
-lhe “contribuição para a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional”, em O Homem Quebra<strong>do</strong> (1995: 36).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
13
14<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que alimente uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> clientes (Chabal e Daloz, 2001: 157) e<br />
serve para a manutenção <strong>de</strong> uma economia informal, paralela, on<strong>de</strong> os<br />
vínculos familiares, os grupos, as cores políticas, o status, <strong>de</strong>sempenham<br />
um papel muito importante. A racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> administrativa, com to<strong>do</strong>s<br />
os princípios e <strong>de</strong>veres que lhe an<strong>da</strong>m associa<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal,<br />
dá lugar a outras lógicas, a discursos alternativos, a linguagens diferentes,<br />
que só uma análise global e socialmente inseri<strong>da</strong> permite <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r<br />
e compreen<strong>de</strong>r.<br />
A nossa análise centra-se na corrupção, no Esta<strong>do</strong> pós-colonial (2) ,<br />
através <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> <strong>do</strong>is escritores paradigmáticos. Mia Couto e<br />
Pepetela revelam em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo e Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente<br />
Secreto, respectivamente, um mecanismo <strong>de</strong> funcionamento <strong>do</strong> próprio<br />
Esta<strong>do</strong>. Com um Esta<strong>do</strong> não institucionaliza<strong>do</strong>, não burocrático (3) , neopatrimonial<br />
e que não consegue afirmar-se como enti<strong>da</strong><strong>de</strong> abstracta, autónoma<br />
e diferente <strong>do</strong>s seus titulares, as formas <strong>de</strong> controlo não existem.<br />
Mesmo os órgãos que, pretensamente, o <strong>de</strong>viam fazer estão contamina<strong>do</strong>s.<br />
A infecção também os atingiu, impedin<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenharem,<br />
cabalmente, as suas funções. Utilizan<strong>do</strong> a clarifica<strong>do</strong>ra síntese <strong>de</strong> uma<br />
personagem <strong>de</strong> Tahar Bem Jelloun, “neste país, os ladrões são protegi<strong>do</strong>s,<br />
os corruptos encoraja<strong>do</strong>s e as pessoas honestas persegui<strong>da</strong>s” (1995:<br />
141). A própria socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil, talvez por <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong>, não encontra mecanismos<br />
<strong>de</strong> tutela, capazes <strong>de</strong> superar o problema ou, pelo menos, reduzir<br />
a sua frequência a uma margem ain<strong>da</strong> aceitável. No fun<strong>do</strong> ela também<br />
é conivente, olhan<strong>do</strong> esses comportamentos com muita indulgência, na<br />
expectativa <strong>de</strong> um dia também gozar <strong>do</strong>s seus avulta<strong>do</strong>s benefícios.<br />
A in<strong>de</strong>pendência, que prometia melhores condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> para<br />
o povo coloniza<strong>do</strong>, traduziu-se numa longa guerra civil motiva<strong>da</strong> pelo<br />
egoísmo <strong>de</strong> alguns, pela ânsia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> riqueza, ain<strong>da</strong> que por meios<br />
ilícitos, <strong>de</strong> outros. A falta <strong>de</strong> transparência <strong>de</strong> uma Administração Pública,<br />
que per<strong>de</strong>u os seus quadros mais qualifica<strong>do</strong>s, a fome e a miséria<br />
2 Utilizamos o termo pós-colonial no seu senti<strong>do</strong> empírico. Colonialismo e pós-colonialismo <strong>de</strong>vem<br />
ser entendi<strong>do</strong>s nessa perspectiva, referin<strong>do</strong>-se os vocábulos a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> histórico. Assim,<br />
por pós-colonialismo, <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r-se, neste trabalho, o perío<strong>do</strong> que se inicia com a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong><br />
Angola e <strong>de</strong> Moçambique.<br />
3 Enten<strong>da</strong>-se burocracia à luz <strong>da</strong> teoria weberiana. Administração burocrática significa racionali<strong>da</strong>-<br />
<strong>de</strong> administrativa.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
favoreceram a corrupção. Os novos <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r aproveitaram<br />
to<strong>da</strong>s as oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s proporciona<strong>da</strong>s pelos <strong>do</strong>is paradigmas políticos<br />
que marcaram o perío<strong>do</strong> que se seguiu à in<strong>de</strong>pendência formal. Primeiro<br />
o marxismo, <strong>de</strong>pois o liberalismo serviram para a concretização <strong>do</strong>s interesses<br />
individuais. Duas conjunturas para os mesmos rostos. As elites<br />
recicla<strong>da</strong>s não abdicaram <strong>de</strong> continuar a enriquecer <strong>de</strong> forma ilícita. Só<br />
o povo continua a sofrer, esqueci<strong>do</strong>. Mu<strong>da</strong>ram-se apenas as etiquetas.<br />
Começamos por abor<strong>da</strong>r, no primeiro capítulo, o conceito <strong>de</strong> corrupção<br />
e a sua legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> social nos países sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, particularizan<strong>do</strong><br />
o caso <strong>de</strong> Angola e <strong>de</strong> Moçambique. Estará em causa não<br />
o conceito jurídico, <strong>de</strong> contornos claramente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s e limita<strong>do</strong>s, mas<br />
o conceito corrente, tal como emerge nas representações sincréticas <strong>do</strong><br />
quotidiano. A análise não será, portanto, jurídica mas literária. Melhor:<br />
serão duas visões literárias <strong>da</strong> corrupção no Esta<strong>do</strong> pós-colonial <strong>de</strong> Angola<br />
e <strong>de</strong> Moçambique.<br />
Os anos 90 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como a déca<strong>da</strong> <strong>do</strong> vazio<br />
filosófico e <strong>do</strong> capitalismo selvagem, assistiram à “utilização <strong>da</strong>s lógicas<br />
e <strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> globalização para a organização <strong>do</strong> crime” (Rodrigues,<br />
1999: 12). O fenómeno <strong>da</strong> corrupção agravou-se. Os números,<br />
na sua frieza habitual, são inequívocos. As estatísticas <strong>de</strong>monstram o<br />
seu peso crescente. A déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa, <strong>do</strong> século XX, é a déca<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
confirmação <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> um sonho. Nem o projecto marxista, nem o<br />
neo-liberalismo contribuíram para o concretizar <strong>da</strong> utopia. Os países<br />
africanos estão ca<strong>da</strong> vez mais marginaliza<strong>do</strong>s num mun<strong>do</strong> global, mas<br />
ao mesmo tempo alimentam o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ricos, <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rosos, numa<br />
teia <strong>de</strong> corrupção, <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> armamento, <strong>de</strong> exploração humana, <strong>de</strong><br />
branqueamento <strong>de</strong> capitais (complemento natural <strong>da</strong>queles) que ameaça<br />
a sua própria sobrevivência.<br />
Esta situação calamitosa, principalmente quan<strong>do</strong> observa<strong>da</strong> pelos<br />
olhos <strong>de</strong> um oci<strong>de</strong>ntal, treina<strong>do</strong>s para repudiarem esses comportamentos,<br />
tem certamente reflexos na narrativa literária pós-colonial, como<br />
<strong>de</strong>monstra uma simples abor<strong>da</strong>gem sincrónica. O relacionamento <strong>da</strong> literatura<br />
com o tema <strong>da</strong> corrupção, acentuou-se no fechar <strong>do</strong> século XX,<br />
consistin<strong>do</strong> o tema central ou, pelo menos, lateral <strong>de</strong> muitas obras. As<br />
referências multiplicaram-se e confirmam uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> paradigma.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
15
16<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
A in<strong>de</strong>pendência esgotou o anterior filão e, em consequência, arrastou<br />
outras temáticas mais ajusta<strong>da</strong>s às novas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Os temas em voga<br />
são agora outros. O combate é muito diferente. A ameaça já não está<br />
no coloniza<strong>do</strong>r, na falta <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional, mas<br />
na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criar uma nova utopia. Uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa,<br />
basea<strong>da</strong> na igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> direitos. A <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong><br />
corrupção tornou-se uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> imperiosa e foi ganhan<strong>do</strong> expressão<br />
crescente.<br />
Analisar <strong>de</strong> que forma o fenómeno é ficciona<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> <strong>do</strong>is escritores<br />
que estiveram comprometi<strong>do</strong>s com o nacionalismo, abraçan<strong>do</strong> um<br />
projecto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, nem sempre consentâneo com a tradição africana,<br />
é uma <strong>da</strong>s intenções primordiais <strong>de</strong>ste trabalho, a focar no segun<strong>do</strong><br />
capítulo, e tem como fontes as obras literárias já <strong>de</strong>signa<strong>da</strong>s. O Último Voo<br />
<strong>do</strong> Flamingo e Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto são o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para<br />
uma viagem por universos ficcionais diferentes, que partiram <strong>de</strong> matrizes,<br />
discursos e pressupostos diversos, mas que se unificam e complementam<br />
pela análise <strong>do</strong> mesmo problema forman<strong>do</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> substancial: um<br />
longo, coerente e contun<strong>de</strong>nte libelo anti-corrupção. Esta uni<strong>da</strong><strong>de</strong> substancial<br />
será, no entanto, obra <strong>de</strong> um feliz acaso ou correspon<strong>de</strong> ao pulsar<br />
profun<strong>do</strong> <strong>de</strong> duas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s marca<strong>da</strong>s pela corrupção? Nesse caso, mais<br />
<strong>do</strong> que duas visões literárias, teremos <strong>do</strong>is <strong>do</strong>cumentos sociológicos, contributos<br />
para uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira análise social. Em suma: duas visões cifra<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e que se corroboram mutuamente.<br />
Ao <strong>de</strong>smontarmos os universos narrativos, não preten<strong>de</strong>mos, to<strong>da</strong>via,<br />
retirar o encanto <strong>da</strong>s obras literárias. Tal com Pierre Bordieu afirma:<br />
“O encanto <strong>da</strong> obra literária liga-se <strong>de</strong> certo em gran<strong>de</strong> parte ao facto<br />
<strong>de</strong> ela falar <strong>da</strong>s coisas mais sérias, sem exigir, diferentemente <strong>da</strong> ciência<br />
segun<strong>do</strong> Searle, que a tomemos inteiramente a sério. A escrita oferece ao<br />
próprio autor e ao leitor a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma compreensão <strong>de</strong>negante,<br />
que não é porém uma compreensão até meio” (Bordieu, 1996: 55).<br />
Após a análise <strong>da</strong> representação <strong>da</strong> corrupção nestes <strong>do</strong>is escritores<br />
paradigmáticos, importa apurar em que circunstâncias a sua criação literária<br />
se processa, partin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s experiências quotidianas individuais e<br />
não esquecen<strong>do</strong> a geração e o contexto i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> ambos. Entramos,<br />
assim, no último capítulo, no âmbito <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong>, verifi-<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
can<strong>do</strong> as aproximações e os afastamentos <strong>do</strong>s textos literários <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
escritores, enquanto instâncias autorais que problematizam a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
coeva. São apenas encontros e <strong>de</strong>sencontros, pontes, visões convergentes<br />
e divergentes, contradições ...<br />
Não obstante a importância e a dimensão <strong>do</strong> fenómeno <strong>da</strong> corrupção<br />
– capaz <strong>de</strong> lhe conferir digni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> assunto literário –, falta uma reflexão<br />
crítica actual sobre a sua influência na literatura. Esta influência<br />
não foi ain<strong>da</strong> inventaria<strong>da</strong>, nem discuti<strong>da</strong>. As razões <strong>da</strong> sua existência<br />
também ain<strong>da</strong> não foram apura<strong>da</strong>s, pon<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s e analisa<strong>da</strong>s com rigor<br />
científico. Se os autores escolheram o fenómeno <strong>da</strong> corrupção para tema<br />
central <strong>da</strong>s suas obras é porque o consi<strong>de</strong>ram extremamente importante.<br />
Não será, certamente, apenas um mero exercício egoísta <strong>de</strong> puro virtuosismo<br />
literário! Talvez procurem, como bem dizia Cunha Rodrigues,<br />
“difundir uma cultura cívica que recrie valores numa óptica <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong>” (1999: 29) (4) .<br />
Pisamos, portanto, terreno virgem. No <strong>do</strong>mínio penal, criminológico<br />
e sociológico há muitos companheiros <strong>de</strong> viagem. A sua leitura completa<br />
é praticamente impossível. Faltariam sempre autores importantes,<br />
obras <strong>de</strong> referência <strong>de</strong>ste ou <strong>da</strong>quele canto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Já no campo <strong>da</strong><br />
crítica literária caminhamos quase sempre sozinhos. Os nossos acompanhantes<br />
ocasionais não partilham <strong>do</strong>s mesmos objectivos e, até quan<strong>do</strong><br />
nos cruzamos, é por pouco tempo e para logo prosseguirmos por vere<strong>da</strong>s<br />
diferentes.<br />
Viajamos, assim, acompanha<strong>do</strong>s apenas pelo “Flamingo” e pelo<br />
“Jaime”. Mas as personagens que eles convocam (na sua polifonia) são<br />
vozes suficientes para que não nos sintamos sozinhos. É claro que, <strong>de</strong><br />
vez em quan<strong>do</strong>, socorremo-nos <strong>de</strong> outras testemunhas oculares, oriun<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> literatura, <strong>do</strong> direito, <strong>da</strong> sociologia, <strong>da</strong> antropologia. Nesses<br />
4 Anthony Gid<strong>de</strong>ns, para quem a <strong>de</strong>mocracia está em crise e necessita <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>mocratiza<strong>da</strong>, advoga,<br />
também, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> impulsionar uma cultura cívica. Na era <strong>da</strong> globalização é urgente <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
pensar que “a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é apenas composta por <strong>do</strong>is sectores: o Esta<strong>do</strong> e o merca<strong>do</strong>, ou o sector público e<br />
o priva<strong>do</strong>. Entre os <strong>do</strong>is encontra-se a área <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil, que inclui a família e outras instituições <strong>de</strong><br />
natureza não económica. A construção <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia <strong>da</strong>s emoções é um <strong>do</strong>s aspectos <strong>da</strong> cultura cívica<br />
progressiva. A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil é o fórum on<strong>de</strong> as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas, incluin<strong>do</strong> a tolerância, têm <strong>de</strong> ser<br />
cultiva<strong>da</strong>s. A componente civil po<strong>de</strong> ser estimula<strong>da</strong> pelos governos para, por seu turno, se tornar a base<br />
em que eles se apoiam” (Gid<strong>de</strong>ns, 2001: 77).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
17
18<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
casos, elas servem apenas para conferir maior expressão àquele dueto.<br />
São a sua harmonia.<br />
No final, esperamos ter <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> que também a literatura é um<br />
importante e imprescindível instrumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> corrupção,<br />
contribuin<strong>do</strong> para a caracterização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
1. o fEnómEno dA Corrupção<br />
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
«L’argent apporte le pouvoir, le pouvoir apporte<br />
l’argent et, au nom <strong>de</strong> ce circle infernal, l’homme<br />
aban<strong>do</strong>nne ses convictions, ses rêves et sa créativité».<br />
— Brigitte Henri, La corruption: un mal en<strong>de</strong>mique<br />
ENqUADRAmENTO<br />
TEóRICO .01<br />
A corrupção não é um fenómeno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna (5) . Mas, só a partir<br />
<strong>do</strong>s anos noventa, <strong>do</strong> século XX, a sua <strong>de</strong>núncia passou a ser uma preocupação<br />
<strong>do</strong>s investiga<strong>do</strong>res, <strong>do</strong>s escritores, <strong>do</strong>s jornalistas, <strong>de</strong> alguns políticos<br />
e <strong>da</strong>s instituições internacionais (6) . De certa forma, po<strong>de</strong>mos dizer<br />
que é um <strong>do</strong>s temas <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>. Um pouco por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong>, mesmo nos mais<br />
importantes areópagos mundiais, não faltam conferências, <strong>de</strong>bates, artigos,<br />
propostas... O habitual circo <strong>do</strong>s políticos e <strong>da</strong> comunicação social,<br />
a que se juntam outras intervenções, porventura cientificamente mais<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s e com propósitos mais sérios, mas com muito menos impacto.<br />
Muitas <strong>de</strong>stas últimas contribuições situam-se, sem dúvi<strong>da</strong>, na área<br />
privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> literatura. Voluntária ou involuntariamente, os autores<br />
inserem-se no seu tempo, reflectin<strong>do</strong> as suas virtu<strong>de</strong>s e os seus <strong>de</strong>feitos.<br />
E, como advoga o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s, um escritor não<br />
<strong>de</strong>ve ter escrúpulos, caso contrário não po<strong>de</strong>ria escrever sobre pessoas<br />
5 Por vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r-se um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> organização social, que na perspectiva <strong>de</strong> Gid<strong>de</strong>ns<br />
assenta em quatro dimensões institucionais fun<strong>da</strong>mentais que se inter-relacionam: industrialismo,<br />
capitalismo, vigilância e po<strong>de</strong>r militar (Gid<strong>de</strong>ns, 2002: 42).<br />
6 Um <strong>do</strong>s objectivos <strong>do</strong> Comité <strong>de</strong> Aju<strong>da</strong> ao Desenvolvimento, <strong>da</strong> OCDE, traça<strong>do</strong>s e não traça<strong>do</strong>s (no<br />
<strong>do</strong>cumento “Cooperação para o Desenvolvimento no limiar <strong>do</strong> século XXI”) para 2015 é o combate à corrupção.<br />
Já em 1997, foi assina<strong>da</strong> a Convenção Internacional contra a corrupção, pelos países <strong>da</strong> OCDE.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
19
20<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
reais. “O escritor <strong>de</strong>ve ser cruel e <strong>de</strong>sumano, é essa a sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> ”<br />
(Pepetela, 1995: 92).<br />
Embora se assista a uma crescente cultura <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, o flagelo<br />
continua, no entanto, sem cura. O avolumar <strong>da</strong> <strong>de</strong>núncia ain<strong>da</strong> não contribuiu,<br />
<strong>de</strong>cisivamente, para a sua diminuição. Pelo contrário, parece<br />
fonte <strong>de</strong> inspiração para novos corruptos, ávi<strong>do</strong>s, também eles, <strong>do</strong> enriquecimento<br />
fácil e a to<strong>do</strong> o custo.<br />
A corrupção é uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> transnacional que abrange to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
sejam <strong>do</strong> norte ou sejam <strong>do</strong> sul. Nos países sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s,<br />
ao nível cultural e económico, esta reali<strong>da</strong><strong>de</strong> atinge, contu<strong>do</strong>, proporções<br />
mais alarmantes, geran<strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras oligarquias, Esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, originan<strong>do</strong> para alguns (poucos) a acumulação <strong>de</strong> fortunas<br />
colossais e para outros (muitos) a mais ignóbil miséria. A <strong>de</strong>sinformalização<br />
<strong>da</strong> economia e <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong> é solo fértil para o seu germinar.<br />
É mais fácil manipular (para proveito pessoal é claro) um Esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>bilita<strong>do</strong> <strong>do</strong> que um Esta<strong>do</strong> forte (7) , sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil<br />
não aju<strong>da</strong>, não exercen<strong>do</strong> uma imprescindível função <strong>de</strong> controlo, por<br />
absoluta incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
O fenómeno <strong>da</strong> corrupção po<strong>de</strong> ser abor<strong>da</strong><strong>do</strong> sob várias perspectivas,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sociológica à jurídica. Numa perspectiva jurídica, teremos,<br />
por força <strong>da</strong> fragmentarie<strong>da</strong><strong>de</strong>, subsi<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> e ultima ratio <strong>do</strong> direito<br />
penal, um conceito técnico recorta<strong>do</strong> e restritivo. Assim, resume-se a<br />
comportamentos activos ou passivos previstos nos respectivos tipos legais<br />
<strong>de</strong> crime, sen<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos princípios <strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> tipici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
inimaginável qualquer tentativa <strong>de</strong> extensão analógica <strong>da</strong>quelas condutas.<br />
Pelo menos, num Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>mocrático. Só as condutas previstas<br />
como crimes po<strong>de</strong>rão ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s. Os tipos legais funcionam<br />
7 O princípio nullum crime sine lege po<strong>de</strong>, em Esta<strong>do</strong>s menos fortaleci<strong>do</strong>s ou on<strong>de</strong> a separação <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>res não é tão níti<strong>da</strong>, ser habilmente manobra<strong>do</strong> para a concretização <strong>de</strong> interesses individuais. A<br />
existência <strong>de</strong> lacunas premedita<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> leis individuais e concretas (aprova<strong>da</strong>s anteriormente à conduta<br />
e, sob o manto legitima<strong>do</strong>r <strong>da</strong> generali<strong>da</strong><strong>de</strong>, dirigi<strong>da</strong>s para esse caso concreto) ou mesmo <strong>de</strong> amnistias e<br />
<strong>de</strong> perdões (posteriores) permite aos seus feitores uma impuni<strong>da</strong><strong>de</strong> in<strong>de</strong>seja<strong>da</strong> e, muitas vezes, incompreensível<br />
aos olhos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil. Ain<strong>da</strong> recentemente Berlusconi, primeiro-ministro italiano, tentou<br />
utilizar este expediente para fugir às malhas <strong>da</strong> justiça. Aquilo que é uma garantia sagra<strong>da</strong> <strong>do</strong> direito<br />
penal converte-se, assim, num obstáculo inultrapassável à realização <strong>do</strong> direito, à realização <strong>da</strong> justiça.<br />
Aliás, na lúci<strong>da</strong> análise <strong>de</strong> Luigi Ferrajoli, um <strong>do</strong>s maiores penalistas europeus vivos, a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>r “caracteriza-se por uma pretensão à impuni<strong>da</strong><strong>de</strong>” (2003: 12).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
como um óculo que apenas permite visionar aquilo que não é legal. O<br />
resto, por mais injusto que possa parecer, é irrelevante. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />
normativo, a corrupção consiste, pois, num <strong>de</strong>svio. É o <strong>de</strong>srespeito por<br />
um procedimento regular, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, legal, uma violação <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
<strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, <strong>da</strong> objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong> que num Esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> direito <strong>de</strong>vem coman<strong>da</strong>r o exercício <strong>da</strong> função pública.<br />
Numa perspectiva sócio-cultural, atentas as representações sintéticas<br />
<strong>do</strong> quotidiano, temos um conceito fluí<strong>do</strong>, que se expan<strong>de</strong> ou retrai,<br />
consoante as valorações e preocupações <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> época. Já não se trata<br />
<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo jurídico-científico, mas <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo sócio-cultural,<br />
on<strong>de</strong> se cruzam reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s tão distintas como: a corrupção; o tráfico <strong>de</strong><br />
influências; o abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r; o peculato; os mo<strong>de</strong>rnos: branqueamento<br />
<strong>de</strong> capitais; tráfico <strong>de</strong> estupefacientes ou <strong>de</strong> armas e, o ain<strong>da</strong> mais<br />
recente, tráfico <strong>de</strong> pessoas/orgãos e <strong>de</strong> espécies em vias <strong>de</strong> extinção. É,<br />
também, ten<strong>do</strong> presente estas representações quotidianas, que partimos<br />
para a análise <strong>de</strong>ste comportamento <strong>de</strong>sviante.<br />
Na linguagem comum “we call corrupt a public servant who accepts<br />
gifts bestowed by a private person with the object of inducing him to give<br />
special consi<strong>de</strong>ration to the interests of <strong>de</strong> <strong>do</strong>nor”. Para Syed Hussein Alatas,<br />
a corrupção abrange, no entanto, três conteú<strong>do</strong>s: suborno, extorção<br />
e nepotismo (1999: 6, 7). Na Convenção Internacional contra a Corrupção,<br />
assina<strong>da</strong> pelos países <strong>da</strong> OCDE, em 1997, esta é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, em termos<br />
amplos, como <strong>de</strong> “use of public office for private gains”. Alexandra Mills<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que “in this sense corruption can be seen as a failure of the ethics<br />
of public administration, with the result that, in remedial terms, many of<br />
the same measures to prevent corruption can be applied to promote ethics ”<br />
(2001: 142).<br />
A corrupção marca presença em to<strong>da</strong>s as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s (8) . Ca<strong>da</strong> vez mais<br />
a população <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os cantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vai toman<strong>do</strong> consciência <strong>da</strong><br />
sua presença insidiosa. Mesmo no oci<strong>de</strong>nte, que se pensava imune, que<br />
julgava tê-la erradica<strong>do</strong> ou, pelo menos, remeti<strong>do</strong> para valores socialmente<br />
suportáveis, <strong>de</strong>scobre-se, agora, com surpresa, que a corrupção<br />
8 Sobre a corrupção na Ásia, nomea<strong>da</strong>mente na In<strong>do</strong>nésia, ver o interessante estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Syed Hus-<br />
sein Alatas (1999).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
21
22<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
continua a subsistir, inclusivamente ao mais alto nível (9) . No continente<br />
africano, to<strong>da</strong>via, “la corruption n’est pas une dérive <strong>de</strong> l’État mais un<br />
mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> fonctionnement <strong>de</strong> l’État (10) ” (Henri, 2002: 111) e afecta <strong>de</strong> forma<br />
mais incisiva a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil <strong>do</strong> que no norte.<br />
Analisar as causas e os efeitos <strong>da</strong> corrupção é uma tarefa gigantesca,<br />
complica<strong>da</strong> a que, no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Syed H. Alatas, a própria sociologia<br />
não tem <strong>da</strong><strong>do</strong> a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> atenção e abrange reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s tão distintas quanto<br />
o ângulo <strong>de</strong> análise. Contu<strong>do</strong>, “os dicionários <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e os <strong>de</strong> hoje inci<strong>de</strong>m<br />
no mesmo tópico, só que hoje, os políticos, os homens <strong>do</strong> futebol,<br />
juntam-se aos advoga<strong>do</strong>s no ponto <strong>de</strong> mira <strong>da</strong> CORRUPÇÃO” (Vilela,<br />
2002: 299. Maiúsculas no original).<br />
Em pleno século XXI, a corrupção tornou-se notícia, invadiu os meios<br />
<strong>de</strong> comunicação social e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> políticos a homens <strong>do</strong> futebol muitos são<br />
alvo <strong>de</strong> investigações criminais. O Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno não conseguiu erradicá-la.<br />
O racionalismo burocrático, a transparência <strong>da</strong> Administração<br />
Pública, a imposição <strong>de</strong> exigências <strong>de</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência,<br />
no exercício <strong>de</strong> cargos públicos não foram suficientes para<br />
a afastar. Ao mesmo tempo, cresceram também o he<strong>do</strong>nismo, o sucesso<br />
a to<strong>do</strong> o custo e, sobretu<strong>do</strong>, o materialismo. Para alguns, to<strong>da</strong>s as vias<br />
são possíveis para ascen<strong>de</strong>r socialmente, para obter riqueza, para conseguir<br />
o sucesso. “A criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> que hoje ameaça maioritariamente<br />
os direitos, a <strong>de</strong>mocracia, a paz e o próprio futuro <strong>do</strong> nosso planeta é<br />
antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> uma criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r: um fenómeno já não marginal<br />
nem excepcional, como a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional, mas sim inseri<strong>do</strong><br />
no funcionamento normal <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Ferrajoli, 2003: 9). Isto é: as<br />
ofertas, as comissões, a peita, o suborno, tornam-se <strong>de</strong>corrências normais<br />
<strong>do</strong> exercício <strong>de</strong> funções públicas, transforman<strong>do</strong>-se numa espécie<br />
<strong>de</strong> retribuição suplementar, que to<strong>do</strong>s olham com indulgência e muitos<br />
almejam mesmo também alcançar. O <strong>de</strong>svio converte-se em norma, ins-<br />
9 Os exemplos <strong>da</strong>s americanas Enron e World.com, e mais recentemente <strong>da</strong> italiana Parmalat, revelam,<br />
com clareza, essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A falsificação <strong>do</strong>s balanços, <strong>da</strong>s contas, <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, é consequência<br />
<strong>de</strong> uma concorrência feroz, selvagem, que não olha a meios e que é imune a quaisquer valores. Vale tu<strong>do</strong>.<br />
Ao ponto <strong>de</strong> já se falar nas mais prestigia<strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s americanas na introdução <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ética<br />
nos cursos <strong>de</strong> gestão.<br />
10 Aliás, em África o Esta<strong>do</strong> não existe como uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> abstracta. O Esta<strong>do</strong> é a pessoa que con-<br />
trola os recursos, como salienta Mérard (apud Henri, 2002: 111).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
titucionaliza-se, quase que ganha legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> oficial. Os seus custos<br />
po<strong>de</strong>m ser calcula<strong>do</strong>s e po<strong>de</strong>m até ser repercuti<strong>do</strong>s. “Há alguém que não<br />
lhe paga a ren<strong>da</strong>. Mete-lhe um processo. Se seguir as vias normais, isso<br />
po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>morar quatro a cinco anos. Se seguir as vias paralelas, o seu<br />
assunto po<strong>de</strong>rá ficar arruma<strong>do</strong> em alguns meses. E é só essa via que resulta.<br />
Acredite, não é nem má nem <strong>de</strong>sonesta. É razoável, realista. Você<br />
sofre as falhas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Eu sou pela justiça e pelo Direito. Mas quan<strong>do</strong><br />
to<strong>da</strong> a gente entra pela porta <strong>da</strong>s traseiras e é tu<strong>do</strong> trata<strong>do</strong> nos corre<strong>do</strong>res,<br />
seria um suicídio agir <strong>de</strong> outra forma. O país funciona bem assim.<br />
Há maneira <strong>de</strong> renunciar a este sistema? Não creio. E <strong>de</strong>pois, as pessoas<br />
já se habituaram. Antes mesmo <strong>de</strong> fazer as diligências normais, como,<br />
por exemplo, ir buscar um <strong>do</strong>cumento – o que é simples – começam por<br />
procurar quem possa intervir... é a contribuição para a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional.<br />
A corrupção é uma forma disfarça<strong>da</strong> <strong>de</strong> imposto complementar”<br />
(Jelloun, 1995: 36).<br />
O problema agudiza-se quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> nem sequer está institucionaliza<strong>do</strong>.<br />
Em África, o Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno não conseguiu implementar-se (11) .<br />
Os preceitos <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> (racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> económica e inovação tecnológica)<br />
não foram concretiza<strong>do</strong>s. Embora os dirigentes africanos preconizem<br />
o Esta<strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rno, na prática reivindicam valores tradicionais (12) .<br />
11 Doravante sempre que nos referirmos a África, continente africano ou outras expressões análogas,<br />
estamos a centrar-nos, obviamente, na África subsariana, particularizan<strong>do</strong>, no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> análise, os<br />
casos <strong>de</strong> Angola e <strong>de</strong> Moçambique.<br />
12 Chabal e Daloz salientam que o que se verifica em África é para<strong>do</strong>xal. A tradição e a religião são<br />
instrumentaliza<strong>da</strong>s pelos políticos (2001: 190-202). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno é laico. Existe uma<br />
separação níti<strong>da</strong> entre o religioso e o político. A religião limita-se à esfera priva<strong>da</strong>, o que não se verifica<br />
nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas. O mesmo suce<strong>de</strong> com as crenças ou bruxarias! Tanto se utiliza um telemóvel <strong>de</strong><br />
última geração (símbolo <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> tecnológica) como se recorre a um curan<strong>de</strong>iro.<br />
Maurice Go<strong>de</strong>lier, em O Enigma <strong>da</strong> Dádiva, ao analisar a essência divina <strong>do</strong> Faraó (2000: 246),<br />
salienta que a religião oferece mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r aos homens. “A religião forneceu a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> relações<br />
hierárquicas, assimétricas, origem simultaneamente <strong>de</strong> obrigações recíprocas e <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> obediência<br />
situa<strong>da</strong>s para além <strong>de</strong> qualquer reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Não é preciso recuar tão longe para encontrar resquícios<br />
<strong>da</strong> legitimação teocrática <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Luís XIV, por exemplo, que pelo menos encontrou na fórmula<br />
<strong>de</strong> «divinização» <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> essa legitimação. Cfr. Eduar<strong>do</strong> Lourenço, O Esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Caos, (2002: 109).<br />
O jusnaturalismo jurídico também contém exemplos claros duma tentativa <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentação divina <strong>do</strong><br />
direito. Cfr. Wieacker, Franz, História <strong>do</strong> direito priva<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno (1980: 279 e ss.)<br />
Ain<strong>da</strong> recentemente na Guerra <strong>do</strong> Iraque, Sad<strong>da</strong>m Hussein, no seu discurso ao mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> 24/03/03,<br />
falava <strong>de</strong> Guerra Santa, na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> combater o Mal. Enquanto que o presi<strong>de</strong>nte George W. Buch<br />
invocava sempre a palavra Deus. A política instrumentaliza a religião. Balandier diz mesmo que o sagra<strong>do</strong><br />
“é uma <strong>da</strong>s dimensões <strong>do</strong> campo político; a religião po<strong>de</strong> ser um instrumento <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, uma garantia <strong>da</strong><br />
sua legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um <strong>do</strong>s meios utiliza<strong>do</strong> no quadro <strong>da</strong>s competições políticas... A estratégia <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>,<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
23
24<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Para MAPPA (que efectuou uma série <strong>de</strong> entrevistas a lí<strong>de</strong>res africanos),<br />
“os políticos entrevista<strong>do</strong>s não <strong>de</strong>stinguem o Esta<strong>do</strong> enquanto instituição<br />
e os homens que o ocupam” (1998: 169) (13) . Não existe uma administração<br />
burocrática. Ou seja “uma administração por força <strong>do</strong> saber: esse carácter<br />
fun<strong>da</strong>mental, especificamente racional” <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rno (Weber, in<br />
Cruz, 2001: 689). Não se observa uma <strong>do</strong>minação <strong>de</strong> carácter racional,<br />
a or<strong>de</strong>m não é impessoal, objectiva, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, abstracta, legalmente<br />
estatuí<strong>da</strong>, mas sim or<strong>de</strong>m pessoal e não há separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. O<br />
Esta<strong>do</strong> surge personaliza<strong>do</strong>. A sua não institucionalização relativamente<br />
à população não legitima uma efectiva representação política nacional.<br />
Em suma, não se po<strong>de</strong> afirmar uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira autonomia intencional <strong>do</strong><br />
próprio Esta<strong>do</strong>, dirigi<strong>da</strong> à realização <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais essenciais ao<br />
funcionamento <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> organiza<strong>da</strong>. O Esta<strong>do</strong> não se conseguiu<br />
afirmar como enti<strong>da</strong><strong>de</strong> abstracta, que afirma e prossegue finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s próprias<br />
e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>s razões individuais.<br />
Trata-se <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r é pessoal, on<strong>de</strong> as dicotomias<br />
Esta<strong>do</strong>/Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Civil, público/priva<strong>do</strong>, formal/informal, fun<strong>da</strong>mentos<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rno, não existem. A fronteira entre o social, o político<br />
e o económico é teórica. Na prática, assiste-se (transpon<strong>do</strong> a observação<br />
<strong>de</strong> Boaventura Sousa Santos <strong>do</strong> caso português para alguns países <strong>da</strong><br />
África subsariana) a “um processo «<strong>de</strong> Privatização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>» (recursos<br />
<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> com fins políticos, apresenta-se sob <strong>do</strong>is aspectos aparentemente contraditórios; po<strong>de</strong> ser<br />
posta ao serviço <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m social existente e <strong>da</strong>s posições adquiri<strong>da</strong>s, ou servir a ambição <strong>da</strong>queles que<br />
preten<strong>de</strong>m conquistar a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> e legitimá-la” (1987: 121, 122). A relação <strong>da</strong> política com o sagra<strong>do</strong><br />
é importante para compreen<strong>de</strong>rmos certos aspectos <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s foca<strong>da</strong>s nas obras<br />
literárias em análise, nomea<strong>da</strong>mente angolana e moçambicana. O po<strong>de</strong>r nunca é completamente <strong>de</strong>ssacraliza<strong>do</strong><br />
e, como constata Balandier, nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s ditas tradicionais essa relação impõe-se como uma<br />
espécie <strong>de</strong> evidência. “Discreto ou aparente, o sagra<strong>do</strong> está sempre presente no seio <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r” (1987: 48).<br />
Mesmo nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas laiciza<strong>da</strong>s continua aparente: “nelas o po<strong>de</strong>r nunca está inteiramente<br />
esvazia<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> religioso, que se mantém presente reduzi<strong>do</strong> e discreto. Se o Esta<strong>do</strong> e a Igreja<br />
«são um só» na origem, quan<strong>do</strong> a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil é instaura<strong>da</strong> – assim o constata Herbert Spencer nos seus<br />
Principles of Sociology -, o Esta<strong>do</strong> conserva sempre parcialmente um carácter <strong>de</strong> Igreja, mesmo quan<strong>do</strong> se<br />
situa no termo <strong>de</strong> um longo processo <strong>de</strong> laicização”(106).<br />
13 Este é um tema muitas vezes abor<strong>da</strong><strong>do</strong> na literatura. A obra O Ministro, <strong>de</strong> Uanhenga Xitu é paradigmática.<br />
Um bom ministro tem <strong>de</strong> ser corrupto. Tem <strong>de</strong> confundir o exercício <strong>do</strong> seu cargo e a persecução<br />
<strong>do</strong> interesse público com a realização <strong>do</strong>s seus próprios interesses pessoais. Tem <strong>de</strong> saber redistribuir<br />
pelos seus familiares e amigos. É esta a imagem que os políticos têm socialmente. “Quan<strong>do</strong> não sabes<br />
roubar como ministro é porque não apren<strong>de</strong>ste bem o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> ministro. Não serves, ouviste, hein,<br />
rapaz?” (1990: 112). “Cabrito come on<strong>de</strong> está agarra<strong>do</strong>”, provérbio africano, cita<strong>do</strong> em O Último Voo <strong>do</strong><br />
Flamingo, <strong>de</strong> Mia Couto, é também ilustrativo <strong>de</strong> um suposto beneplácito social.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
estatais postos ao serviço <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> indivíduos e para persecução <strong>do</strong>s<br />
seus interesses particulares) e que em perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mocráticos transforma<br />
os parti<strong>do</strong>s sobretu<strong>do</strong> o governante, em mecanismos privilegia<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> social” (1999: 62). José Diquissoned Tole <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, também,<br />
a mesma tese para o caso <strong>de</strong> Moçambique “o comportamento <strong>da</strong> classe-<br />
Esta<strong>do</strong> constitui uma <strong>da</strong>s explicações <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> crise em que o país<br />
se encontra”. A classe-Esta<strong>do</strong> utilizou os recursos em benefício próprio,<br />
em consumo ostentatório “manifesto na compra <strong>de</strong> automóveis <strong>de</strong> luxo,<br />
no consumo <strong>de</strong> bens importa<strong>do</strong>s, viagens, férias, reproduzin<strong>do</strong> as <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
sociais já existentes” (1995: 257). Mais curioso é o caso <strong>de</strong><br />
Angola, on<strong>de</strong> “o altamente personaliza<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>ncial” consegue<br />
promover “o seu próprio empreendimento filantrópico priva<strong>do</strong> em nome<br />
<strong>de</strong> causas sociais quan<strong>do</strong> o seu próprio Governo, a que presidiu durante<br />
mais <strong>de</strong> duas déca<strong>da</strong>s, falhou <strong>de</strong> forma tão lamentável” (Hodges, 2002:<br />
92). Tony Hodges refere-se à criação <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
Santos, concluin<strong>do</strong> que a criação <strong>da</strong> FESA tem como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro objectivo<br />
“promover a boa reputação pública <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma a<br />
garantir-lhe um crédito pessoal por acções que <strong>de</strong>viam ser, <strong>de</strong> facto financia<strong>da</strong>s<br />
e implementa<strong>da</strong>s através <strong>da</strong>s instituições e <strong>do</strong>s programas <strong>do</strong><br />
próprio governo. Para além <strong>de</strong> usar o nome <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte, o que cria<br />
uma aura <strong>de</strong> preocupação e generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nciais (aparentemente<br />
em contradição com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira origem <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s), a FESA abre uma<br />
nova via ao clientelismo, ao atrair para o seu ciclo ONG, intelectuais e<br />
outros que procuram garantir o seu próprio financiamento. Nas palavras<br />
<strong>de</strong> Messiant, a FESA coroa «o processo <strong>de</strong> privatização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>»”<br />
(2002: 92, 93). Será a FESA uma forma <strong>de</strong> “comprar” a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil?<br />
Carlos Pacheco fala <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> núcleo <strong>de</strong> pessoas pertencentes<br />
à classe burocrática que terá <strong>de</strong>svia<strong>do</strong> recursos para enriquecimento<br />
ilícito <strong>de</strong> elites entre 600 a 800 milhões <strong>de</strong> dólares. O historia<strong>do</strong>r<br />
angolano advoga que se assiste ao colapso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> “que apenas existe<br />
enquanto instrumento ao serviço <strong>de</strong>ssa classe pre<strong>da</strong><strong>do</strong>ra” (2000: 101,<br />
102). O farol que o norteia não aponta a realização <strong>do</strong> interesse público,<br />
a satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comunitárias básicas mas um mesquinho<br />
e encapuza<strong>do</strong> interesse priva<strong>do</strong>. O Esta<strong>do</strong> mol<strong>do</strong>u-se aos interesses <strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
25
26<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Em África, o Esta<strong>do</strong> está ao serviço <strong>da</strong> classe <strong>do</strong>minante e esta assegura<br />
o seu po<strong>de</strong>r através <strong>de</strong> relações verticais <strong>de</strong> clientelismo. O clientelismo<br />
altera a lógica <strong>de</strong> acção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Não se procura a <strong>de</strong>cisão mais<br />
racional, mais justa, mas aquela que melhor promove os interesses pessoais.<br />
A lógica é viver <strong>da</strong> política e não para a política. Como salientou<br />
Weber há <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> políticos os que vivem para ou <strong>da</strong> política (s.d.:<br />
20), e aqui são estes que pontificam.<br />
A caracterização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial (14) assenta na teoria neopatrimonialista,<br />
alicerça<strong>da</strong> na tradição weberiana. “O grau <strong>de</strong> patrimonialização<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u <strong>de</strong> factores como o investimento <strong>da</strong>s antigas<br />
metrópoles nos sectores económico e educacional e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>da</strong> presença<br />
ou ausência <strong>de</strong> matérias-primas ou formas <strong>de</strong> energia procura<strong>da</strong>s<br />
pela economia mundial” (Venâncio, 2002a: 26).<br />
Não importa tanto apurar as causas (divergentes), mas fazer o diagnóstico<br />
actual on<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as teorias convergem num ponto: a excessiva<br />
personalização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político e a monopolização burocrática <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
civil (Venâncio, 2000: 89-96) que apenas traz riqueza para os actores<br />
políticos. Segun<strong>do</strong> Chabal e Daloz, a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m actual é proveitosa para<br />
os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r (15) , que a souberam instrumentalizar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com a sua própria or<strong>de</strong>m racional.<br />
Em África, existe um Esta<strong>do</strong> (16) que serve para enriquecer a classe<br />
política, a qual tem legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> para o fazer <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que saiba redistribuir<br />
pelos seus clientes. O conceito <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> não po<strong>de</strong>, pois, ser<br />
encara<strong>do</strong> à luz <strong>da</strong> cultura oci<strong>de</strong>ntal, mas convoca a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> cultu-<br />
14 Curiosa é a comparação que o investiga<strong>do</strong>r e escritor angolano, Arlin<strong>do</strong> Barbeitos, faz a propósito<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Pós-colonial. No seu livro A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Civil, Esta<strong>do</strong>, Ci<strong>da</strong>dão, I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> em Angola, compara os<br />
regimes totalitários pós-coloniais à Alemanha nazi e escreve: “O paralelismo entre po<strong>de</strong>res e situações<br />
tão díspares quanto os <strong>da</strong> Alemanha facista e os <strong>da</strong> Angola pós-colonial per<strong>de</strong>rá a estranheza se olharmos<br />
para ca<strong>da</strong> constelação a partir <strong>do</strong> ângulo <strong>da</strong> arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong>s respectivas consequências<br />
sobre a vi<strong>da</strong> política e social <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países. Como a nossa experiência <strong>da</strong> pós-in<strong>de</strong>pendência sobejamente<br />
o <strong>de</strong>monstra, a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras menciona<strong>da</strong>s acima não se resume à Alemanha hitleriana”<br />
(2003: 6).<br />
15 Convém ter presente que o po<strong>de</strong>r em África é sempre o produto <strong>de</strong> um confronto entre facções rivais,<br />
o que tem também um peso significativo na instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> institucional <strong>do</strong> continente (Bayard, 1991:<br />
213-228).<br />
16 Não esquecer que, mesmo não estabelecen<strong>do</strong> um novo paradigma, Chabal, em The Power in Africa,<br />
abor<strong>da</strong> a natureza <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> este africanista, a natureza <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u<br />
após a in<strong>de</strong>pendência em três aspectos: 1) a noção <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; 2) a relação entre o indivíduo<br />
e o Esta<strong>do</strong> e 3) a relação entre recursos e a acção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (1994: 78-80).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
ral africana. Esta re<strong>de</strong> <strong>de</strong> redistribuição, ou a <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> redistribuição<br />
clientelar é justifica<strong>da</strong>, por alguns, como o retorno ao pré-colonialismo!<br />
Mas a crise estatal (17) , que é fun<strong>da</strong>mentalmente a causa <strong>da</strong> crise africana,<br />
<strong>de</strong>ve-se, em boa parte, segun<strong>do</strong> José Carlos Venâncio (2000: 95 e<br />
2002a: 22), ao Esta<strong>do</strong> colonial que não soube fun<strong>da</strong>mentar as estruturas<br />
necessárias à transição (18) , bem como à falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> ou incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>s governantes e <strong>da</strong>s elites africanas para alterar a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s coisas. O<br />
mesmo é <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> por Tony Hodges. A fraqueza <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> institucional<br />
e <strong>do</strong>s recursos humanos não é, no entanto, a principal causa <strong>do</strong>s<br />
problemas <strong>de</strong> Angola (2002: 259). Como veremos mais à frente, para<br />
este autor, o problema <strong>de</strong> Angola resi<strong>de</strong> na má gestão <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> pre<strong>da</strong><strong>do</strong>r,<br />
alimenta<strong>do</strong> pelos recursos petro-diamantíferos (2002: 17). Arlin<strong>do</strong><br />
Barbeitos corrobora esta i<strong>de</strong>ia ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que “os coloniza<strong>do</strong>res<br />
mesmo que guar<strong>de</strong>m uma responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica que quantas vezes<br />
saco<strong>de</strong>m <strong>de</strong> si obscenamente, não po<strong>de</strong>m continuar a abarcar bastante<br />
<strong>da</strong>s culturas que nos incubem entretanto. De facto, não fomos capazes<br />
– e não só nós, angolanos – <strong>de</strong> conceber uma alternativa à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial,<br />
autónoma, vira<strong>da</strong> para si, sem ser angolanocêntrica, aberta e viável,<br />
pois apenas pusemos <strong>do</strong> avesso ou arrumámos <strong>de</strong> esguelha o padrão<br />
social que antes havia torci<strong>do</strong> a alma e o corpo” (2003: 34, 35).<br />
Em Moçambique, o diagnóstico não é muito diferente. A déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
noventa, <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por José Diquissoned Tole<br />
“a era por excelência <strong>do</strong> clientelismo” (1995: 257). O Esta<strong>do</strong> moçambicano<br />
actual tem características <strong>de</strong> corrupção que, para o antropólogo<br />
João Pina Cabral, “estão a ser altamente <strong>de</strong>letérias para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”. As<br />
raízes <strong>do</strong>s problemas com que actualmente se <strong>de</strong>bate aquele país foram<br />
planta<strong>da</strong>s logo após a in<strong>de</strong>pendência quan<strong>do</strong> “não houve por parte <strong>do</strong>s<br />
governantes pós-in<strong>de</strong>pendência capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong>mocracia em Moçambique, isto é, <strong>de</strong> alargar o Esta<strong>do</strong> às populações<br />
que já tinham si<strong>do</strong> profun<strong>da</strong>mente marginaliza<strong>da</strong>s no Esta<strong>do</strong> Colonial,<br />
ou seja: to<strong>do</strong>s os que não estavam no sul” (Cabral, 2003).<br />
17 Ilídio <strong>do</strong> Amaral, já em 1985, observa que o problema <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Mo<strong>de</strong>rno africano resi<strong>de</strong> no facto<br />
<strong>de</strong> não ter surgi<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tradições africanas (1985:66).<br />
18 Neste senti<strong>do</strong>, Newitt (1997: 473, 474). Os acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Lusaca pecaram por não acautelarem o<br />
esvaziamento <strong>da</strong>s estruturas, conduzin<strong>do</strong> a uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira implosão <strong>da</strong> máquina administrativa. De um<br />
momento para o outro o Esta<strong>do</strong> ruiu e não foi substituí<strong>do</strong>.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
27
28<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Qualquer análise histórica, por mais superficial que seja, <strong>de</strong>monstra<br />
que a corrupção sempre existiu. É um mal endémico, que infecta o Esta<strong>do</strong>,<br />
corroen<strong>do</strong> as suas entranhas, em maior ou menor grau. A infecção jamais<br />
terminará. O perigo <strong>de</strong> recidiva estará sempre presente, mesmo que<br />
se utilizem fortes antibióticos e vacinas polivalentes. A corrupção não<br />
acabará. Erradicá-la é um lirismo. Seria necessário mu<strong>da</strong>r primeiro a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e, sobretu<strong>do</strong>, os interesses, a conduta e os anseios individuais.<br />
A <strong>do</strong>ença agrava-se (tornan<strong>do</strong>-se crónica e epidémica) quan<strong>do</strong>,<br />
como acontece em África, o Esta<strong>do</strong> é fraco, confundin<strong>do</strong>-se, muitas<br />
vezes, com as oligarquias <strong>do</strong>minantes. Nestes casos, a profilaxia e o tratamento<br />
<strong>da</strong> epi<strong>de</strong>mia pressupõem que o Esta<strong>do</strong> (19) se institucionalize,<br />
fortifique e abranja a globali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> território; que a activi<strong>da</strong><strong>de</strong> política<br />
encontre a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> necessária para o lançamento <strong>de</strong> programas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento sustenta<strong>do</strong>, a médio e a longo prazo; que os políticos<br />
aban<strong>do</strong>nem a miopia e a gestão egoísta e prossigam finalmente o almeja<strong>do</strong><br />
bem comum. Enfim: que se criem condições endógenas propícias ao<br />
investimento estrangeiro. Caso contrário, a corrupção continuará a ser<br />
um instrumento <strong>de</strong> enriquecimento <strong>do</strong>s lí<strong>de</strong>res políticos e o tão <strong>de</strong>seja<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento africano continuará a ser uma miragem. É, portanto,<br />
imprescindível que os políticos africanos a<strong>do</strong>ptem boas práticas governativas<br />
(20) . Só assim po<strong>de</strong>rão gozar <strong>de</strong> credibili<strong>da</strong><strong>de</strong> junto <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
internacional e, em consequência, obter os instrumentos financeiros ne-<br />
19 Em vez <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> “pre<strong>da</strong>tório e impotente” que não resolve os problemas e que em vez <strong>de</strong> criar<br />
e redistribuir riqueza a consome, terão <strong>de</strong> surgir formas <strong>de</strong> governo à escala nacional ou supra-nacional,<br />
capazes <strong>de</strong> superar a crise africana, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Chabal (1999, 67-84). No mesmo senti<strong>do</strong>, já se tinha<br />
pronuncia<strong>do</strong> Davidson (2000: 311-312). Talvez, a recém cria<strong>da</strong> União Africana possa constituir uma saí<strong>da</strong>,<br />
uma força africana contra a marginalização <strong>do</strong> continente. Os africanistas mostram-se optimistas,<br />
mas ao mesmo tempo <strong>de</strong>sconfia<strong>do</strong>s.<br />
20 Um bom exemplo <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong>ssas boas práticas governativas é o caso <strong>do</strong> Zimbabwe, “on<strong>de</strong> já<br />
são milhares os que aban<strong>do</strong>nam as suas casas em busca <strong>de</strong> comi<strong>da</strong> ... Roberto Mugabe continua obstina<strong>do</strong><br />
na sua paranóia <strong>de</strong> fazer uma pretensa reforma agrária à custa <strong>do</strong> futuro <strong>do</strong> seu próprio povo. Depois <strong>de</strong><br />
umas eleições vicia<strong>da</strong>s, on<strong>de</strong> reforçou o seu po<strong>de</strong>r autocrático, Mugabe <strong>de</strong>svia agora, com a prisão <strong>do</strong>s<br />
fazen<strong>de</strong>iros brancos que se recusam a entregar-lhe as terras, as atenções <strong>da</strong> catástrofe que há-<strong>de</strong> vir: Em<br />
Dezembro, a fome po<strong>de</strong>rá atingir o seu auge. A juntar à seca, a <strong>de</strong>sactivação e <strong>de</strong>smantelamento <strong>da</strong>s quintas<br />
(para uma <strong>de</strong>magógica entrega a pequenos agricultores negros) fará cair a pique a já <strong>de</strong>paupera<strong>da</strong><br />
produção agrícola ... o fim <strong>da</strong>s explorações agrícolas ain<strong>da</strong> em funcionamento (fenómeno para o qual<br />
alertaram, sem nenhum efeito, várias organizações humanitárias) po<strong>de</strong> lançar o país no <strong>de</strong>scalabro. Para<br />
Mugabe, porém, o que conta é a sobrevivência política por mais uns anos. Nem que para isso tenham <strong>de</strong><br />
morrer mais uns largos milhares <strong>de</strong> compatriotas seus”. Cfr. Pacheco (2002).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
cessários ao lançamento <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável. Os<br />
fluxos financeiros <strong>da</strong> cooperação, bilateral ou multilateral, não po<strong>de</strong>m<br />
continuar a alimentar a economia paralela, a clientela, a corrupção. O<br />
investimento tem que ser multiplica<strong>do</strong>r, reprodutivo e não pre<strong>da</strong>tório. O<br />
cansaço <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>, que caracterizou o final <strong>do</strong>s anos noventa, <strong>do</strong> século<br />
passa<strong>do</strong>, é um sintoma claro <strong>de</strong>ste circunstancialismo.<br />
A globalização, também, já chegou a África, mas parece ser mais<br />
um entrave ao <strong>de</strong>senvolvimento: quem ganha são as multinacionais e<br />
assiste-se a uma “recolonisation clan<strong>de</strong>stine et collective, mais cette fois<br />
sans conquête territoriale; ceci pour assurer son intégration plus complète à<br />
l’économie mondiale” (Diouf, 2002: 206). Uma recolonização que conta<br />
com a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s governantes e <strong>da</strong>s elites africanas, “<strong>do</strong>nt l’attitu<strong>de</strong><br />
est <strong>de</strong> considérer la mondialisation comme un phénomène tout à fait naturel,<br />
auquel il faut chercher à s’a<strong>da</strong>pter. Alors qu’elle est conçue <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s<br />
officines où les Africains ne sont pas conviés. Il tar<strong>de</strong> à se développer sur le<br />
continent <strong>de</strong>s mouvements d’observation et <strong>de</strong> résistance aux aspects négatifs<br />
<strong>de</strong> la mondialisation” (2002 : 207, 208).<br />
Os gran<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>res económicos transnacionais, resultantes ou<br />
maximiza<strong>do</strong>s pela globalização, são, eles próprios, muitas vezes, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras<br />
organizações criminosas, que vêem no lucro e na acumulação<br />
<strong>de</strong> riqueza a única regra <strong>de</strong> funcionamento. Uma nova forma <strong>de</strong> colonização<br />
invisível com efeitos ain<strong>da</strong> mais drásticos, seja porque os novos<br />
colonos não têm rosto, seja porque vêm disfarça<strong>do</strong>s <strong>de</strong> progresso, <strong>de</strong><br />
aju<strong>da</strong>, <strong>de</strong> cooperação, seja porque gozam <strong>do</strong> beneplácito <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res<br />
estabeleci<strong>do</strong>s. Muitas vezes “já não são os esta<strong>do</strong>s a pôr em concorrência<br />
as empresas, são estas que põem em concorrência os esta<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>cidin<strong>do</strong><br />
fazer investimentos nos países que, pelo seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> indigência<br />
ou pela corrupção <strong>da</strong>s elites dirigentes, estão dispostos a permitir impunemente<br />
<strong>de</strong>struições ambientais, <strong>da</strong>nos para a saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> população,<br />
exploração <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s recursos naturais, negação <strong>do</strong>s direitos<br />
e <strong>de</strong> garantias em matéria <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> ambiente” (Ferrajoli,<br />
2003: 11). Infelizmente, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é pródiga nesses exemplos. De<br />
forma superficial, muitas vezes, chama-se-lhes apenas: <strong>de</strong>slocalização.<br />
Localizam-se nos Esta<strong>do</strong>s on<strong>de</strong> esperam obter mais lucros e on<strong>de</strong> a perspectiva<br />
<strong>de</strong> impuni<strong>da</strong><strong>de</strong> é maior.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
29
30<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Uma globalização essencialmente económico-financeira, que procura<br />
explorar a mão-<strong>de</strong>-obra barata para maximizar os seus lucros, não<br />
po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ter reflexos negativos. A concorrência está, à parti<strong>da</strong>,<br />
vicia<strong>da</strong>. Os países <strong>do</strong> sul nunca po<strong>de</strong>rão competir com os países <strong>do</strong> norte.<br />
Os seus produtos acabam por não se impor nos merca<strong>do</strong>s internacionais<br />
ou vêem os seus preços arbitrariamente fixa<strong>do</strong>s, sem qualquer relação<br />
com os custos <strong>de</strong> produção (21) . O dumpping e a concorrência <strong>de</strong>sleal são<br />
factores <strong>de</strong>sta marginalização.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, “as regras <strong>do</strong> comércio mundial não estão a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s à<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pouco competitiva, <strong>do</strong>s países menos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s” (Fernan<strong>de</strong>s,<br />
2002: 15,16 ). Em suma, só uma globalização social po<strong>de</strong>rá ser o<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro factor <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. A mo<strong>de</strong>rnização terá <strong>de</strong> fazer-se<br />
à escala global e não excluin<strong>do</strong> as tradições, por forma a “alcançar um<br />
<strong>de</strong>stino especificamente humano” (Appiah, 1997: 150).<br />
1.1. A corrupção nos países africanos: os casos <strong>de</strong> Angola e <strong>de</strong><br />
moçambique<br />
Na era <strong>da</strong> globalização, os países africanos ain<strong>da</strong> não conseguiram<br />
encontrar uma saí<strong>da</strong> para o esta<strong>do</strong> a que foram vota<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong> póscolonial.<br />
Nem o Esta<strong>do</strong> Providência, nem o Esta<strong>do</strong> Minimalista, conseguiram<br />
ser o ambiciona<strong>do</strong> motor <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. O que ain<strong>da</strong> hoje<br />
persiste em África é um Esta<strong>do</strong> neo-patrimonial, on<strong>de</strong> o egoísmo, a injustiça<br />
e a corrupção acabaram por se tornar virtu<strong>de</strong>s (Eyene Mba, 2001:<br />
11). O Bem próprio está acima <strong>do</strong> Bem comum, constituin<strong>do</strong> um entrave<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento. O africano não consegue caracterizar-se como um<br />
ser com uma dimensão ética e jurídica. Para Eyene Mba “Cette errance<br />
(ou brisure) <strong>de</strong> la conscience éthique et juridique se manifeste à travers<br />
l’égoisme <strong>de</strong>s classes politique et <strong>de</strong> certains intelectuels...” (2001: 10).<br />
Se, por um la<strong>do</strong>, a crise africana tem contornos endógenos complexos,<br />
por outro la<strong>do</strong>, existem factores exógenos que asfixiam África. O<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento “oci<strong>de</strong>ntal” não se enraíza, seguin<strong>do</strong> aquele<br />
21 Daí o aparecimento <strong>da</strong>s Lojas <strong>de</strong> Preço Justo.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
continente um caminho muito próprio. Com a <strong>de</strong>sculpa <strong>da</strong> globalização,<br />
os países <strong>do</strong> norte criam, ain<strong>da</strong>, mais <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “Ce phénomene<br />
économique entrave le dévellopement <strong>de</strong>s pays du sud. Sous le vocable <strong>de</strong><br />
mondialisation se cache un système économique qui engendre d’énormes<br />
disparités entre nations” (2001: 179). Os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r criam fronteiras<br />
económicas para, simplesmente, reforçarem as suas economias.<br />
A total liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> não existe (22) , continuan<strong>do</strong> a verificar-se<br />
medi<strong>da</strong>s proteccionistas (23) , no que toca ao comércio internacional.<br />
A África subsariana atravessa “um processo <strong>de</strong> marginalização” (Venâncio,<br />
2002a: 21) e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez mais <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> político-económica<br />
<strong>do</strong>s países <strong>do</strong> norte (24) . E se antes os países africanos tinham dúvi<strong>da</strong>s<br />
agora têm dívi<strong>da</strong>s (25) .<br />
Para reduzir os efeitos perversos <strong>de</strong>sta globalização, António Custódio<br />
Gonçalves advoga que “é necessário e urgente a integração e a a<strong>de</strong>quação<br />
<strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> económica e <strong>da</strong> inovação tecnológica com a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, os sistemas normativos <strong>de</strong> valores africanos, numa<br />
22 Acresce que, apesar <strong>de</strong> alguns benefícios, o capitalismo neo-liberal “também quer abolir meticulosamente<br />
o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático, enfraquecen<strong>do</strong>-o, marginalizan<strong>do</strong>-o e substituin<strong>do</strong>-o por uma plutocracia<br />
que exerce o seu po<strong>de</strong>r em nome <strong>da</strong>quilo que alguns <strong>de</strong>signam por «monarquia <strong>do</strong> dinheiro».<br />
A plutocracia consi<strong>de</strong>ra-se legitima<strong>da</strong> por essa «mão» supostamente «invisível» que controla o merca<strong>do</strong>,<br />
pela concentração <strong>da</strong>s empresas que <strong>do</strong>mina e pela dimensão <strong>do</strong>s lucros obti<strong>do</strong>s através <strong>da</strong> especulação<br />
financeira” Barroso (2002). Não será, portanto, este mo<strong>de</strong>lo a chave para os problemas <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Bernard Founou-Tchuigoua “está ain<strong>da</strong> por inventar a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia que seja complementar<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento socio-económico em benefício <strong>da</strong>s classes populares e não apenas para<br />
sair <strong>do</strong> «quarto-mundismo»” (1997: 9).<br />
23 Não só as medi<strong>da</strong>s proteccionistas mas também o “dumpping” <strong>de</strong>ixa os países menos competitivos,<br />
sem capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> concorrencial.<br />
24 Acontecimentos recentes como o 11 <strong>de</strong> Setembro (2001) e agora o 11 <strong>de</strong> Março (2004) <strong>de</strong>vem<br />
contribuir para o repensar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a política/cooperação mundial. O terrorismo não se combate com<br />
armas, exércitos po<strong>de</strong>rosos, ou restrições ain<strong>da</strong> mais severas <strong>do</strong>s direitos fun<strong>da</strong>mentais, mas com a eliminação<br />
<strong>da</strong>s condições que propiciam o seu aparecimento. Da mesma forma, também, os fluxos migratórios<br />
<strong>de</strong>vem ser combati<strong>do</strong>s através <strong>da</strong> erradicação <strong>da</strong>s suas causas (por <strong>de</strong>mais conheci<strong>da</strong>s, como a pobreza e<br />
a exclusão social) e não mediante políticas repressivas, como, por exemplo, sanções, muros e arame farpa<strong>do</strong>.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, “ca<strong>da</strong> dólar e ca<strong>da</strong> euro aplica<strong>do</strong>s à criação <strong>de</strong> factores <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável<br />
em África, Ásia, ou América Latina, produzem mais resulta<strong>do</strong>s positivos, pela mobilização social pacífica<br />
que induzem, <strong>do</strong> que mil dólares ou euros gastos no combate militar directo ao terrorismo” (Marques,<br />
2002). Apesar disso, o 11 <strong>de</strong> Setembro conduziu à recente guerra <strong>do</strong> Iraque. Não vamos analisar as motivações,<br />
pois, o facto é complexo (ou nem tanto, podia resumir-se à ambição <strong>do</strong> homem pelo po<strong>de</strong>r), mas<br />
apenas constatar que está imposta uma nova or<strong>de</strong>m mundial.<br />
25 A conversão ao capitalismo selvagem não resolveu os problemas <strong>de</strong> África. De “socialistas aldra-<br />
bões” passaram a “capitalistas aldraba<strong>do</strong>s” (Couto, 2000: 98).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
31
32<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
interacção construcionista e complementa<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição e <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(2002a: 9). Não se po<strong>de</strong> continuar a alimentar “a subjugação <strong>da</strong>s<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>do</strong>s direitos humanos às leis <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>” (2002a: 9). As<br />
premissas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> económica e inovação tecnológica,<br />
não po<strong>de</strong>m estar só ao serviço <strong>do</strong> capitalismo, ou melhor, <strong>do</strong> ultraliberalismo<br />
(terminologia escolhi<strong>da</strong> por A<strong>de</strong>lino Torres para <strong>de</strong>nominar<br />
a era actual). A<strong>de</strong>lino Torres preconiza a morte <strong>do</strong> ultra-liberalismo que<br />
só conduz ao caos. “O tempo encarregou-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o carácter<br />
ilusório e apressa<strong>do</strong> <strong>do</strong> ultra-liberalismo mais extremo, o qual repousa<br />
sobre uma amálgama <strong>de</strong> correntes, contradições lógicas e postula<strong>do</strong>s não<br />
<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>s” (1998: 188). Provavelmente, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Boaventura<br />
Sousa Santos, será necessário uma nova utopia (1999: 278-279).<br />
Ca<strong>da</strong> vez mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong> Pública ao Desenvolvimento<br />
(APD), os países africanos teimam em não sair <strong>da</strong> crise. Uma profun<strong>da</strong><br />
crise caracteriza<strong>da</strong> por uma economia muito débil, por uma forte instabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
política e consequentemente pela marginalização na cena<br />
política internacional, on<strong>de</strong> a incerteza e a instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> constituem obstáculos<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento e criam um basto campo <strong>de</strong> manobra apetecível<br />
para aventureiros oportunistas e marginais. Alguns africanistas<br />
acreditam que para este diagnóstico não existe um receituário imediato.<br />
Depen<strong>de</strong> <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> política quer <strong>do</strong>s dirigentes africanos quer <strong>da</strong><br />
comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> internacional. “ O motor externo <strong>do</strong> crescimento <strong>de</strong> África<br />
está avaria<strong>do</strong> por muitos anos. Mas o <strong>de</strong>bate sobre o continente po<strong>de</strong><br />
fechar-se no economismo quan<strong>do</strong> ron<strong>da</strong> o caos? Nuns quarenta países<br />
<strong>da</strong> região subsariana, a crise económica e a política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> põem em<br />
perigo a própria noção <strong>de</strong> progresso” (Founou-Tchuigoua, 1997: 66).<br />
A in<strong>de</strong>pendência formal e os milhões investi<strong>do</strong>s não se traduziram<br />
em progresso, nem em quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> para os seus ci<strong>da</strong>dãos. O pseu<strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> Minimalista não permitiu a emancipação <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> sul,<br />
porque os actores políticos estiveram sempre mais preocupa<strong>do</strong>s com o<br />
enriquecimento pessoal <strong>do</strong> que com o bem comum (Eyene Mba, 2002: 9<br />
e ss). O Esta<strong>do</strong> é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, o primeiro obstáculo ao <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
e on<strong>de</strong> reinar a arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m (26) , a própria corrupção será<br />
26 Segun<strong>do</strong> Patrick Chabal e Jean Pascal Daloz, África vive o paradigma <strong>da</strong> instrumentalização política<br />
<strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Estes africanistas analisam o “<strong>de</strong>senvolvimento africano” à luz <strong>de</strong>ste paradigma na obra<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
o motor <strong>de</strong> funcionamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Como salienta o escritor angolano<br />
Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho, em Actas <strong>da</strong> Maianga, o Esta<strong>do</strong> é o factor maior<br />
<strong>da</strong> crise africana. “... a nossa crise, tal como a que assiste à gran<strong>de</strong> maioria<br />
<strong>do</strong>s países africanos, para não dizer <strong>do</strong> terceiro mun<strong>do</strong>, é um elemento<br />
concomitante à própria formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> país in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que<br />
passámos a ser porque é fun<strong>da</strong>mentalmente uma crise <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, quer<br />
dizer, o próprio Esta<strong>do</strong> é o cerne <strong>da</strong> crise, o factor maior <strong>da</strong> crise é o<br />
próprio Esta<strong>do</strong>” (2003: 141). A corrupção é ao mesmo tempo a causa e<br />
o efeito. Ela só existe porque as <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais são ca<strong>da</strong> vez mais<br />
fomenta<strong>da</strong>s pelos mecanismos económico-sociais.<br />
Em África, a corrupção (27) é o selo <strong>de</strong> muitas transações comerciais,<br />
ten<strong>do</strong> como remetentes e <strong>de</strong>stinatários os elementos <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
É o mun<strong>do</strong> informal que faz caminhar o formal. Para Christine Messiant<br />
a prática <strong>do</strong> informal e <strong>da</strong> corrupção reflectem a gestão administrativa<br />
<strong>da</strong> Política, que chega a estimular a economia informal como meio <strong>de</strong><br />
subsistência <strong>da</strong>queles que não têm acesso à corrupção, pratica<strong>da</strong> pelos<br />
funcionários <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Esta foi a solução encontra<strong>da</strong> para o Esta<strong>do</strong> solucionar<br />
alguns aspectos que não consegue resolver (1999: 78, 79). Mais<br />
uma vez, as classes dirigentes estão apenas preocupa<strong>da</strong>s com “o seu enriquecimento<br />
pessoal em transacções comerciais <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> duvi<strong>do</strong>so e<br />
em volumosas remessas <strong>de</strong> dinheiro para fora <strong>do</strong>s seus países... Angola é<br />
um exemplo prova<strong>do</strong> <strong>de</strong> corrupção <strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong>” (Pacheco, 2000: 100).<br />
Para alimentar o sector informal e por consequência, também, o<br />
mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> corrupção (sobretu<strong>do</strong> a gran<strong>de</strong> corrupção liga<strong>da</strong> aos negócios<br />
internacionais), tem <strong>de</strong> haver financia<strong>do</strong>res. Segun<strong>do</strong> George Moody-<br />
Stuart (para quem este tipo <strong>de</strong> corrupção é um <strong>do</strong>s factores que inci<strong>de</strong>m<br />
mais negativamente no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> terceiro mun<strong>do</strong>)<br />
os “paga<strong>do</strong>res” são os países <strong>do</strong> norte. Assim, a iniciativa <strong>de</strong> reduzir o<br />
fenómeno <strong>de</strong>veria partir <strong>de</strong>stes. Moody-Stuart constata que não existe<br />
Africa Camina – a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>n como instrumento político, Barcelona: Edicions Bellaterra (2001).<br />
27 A corrupção é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>, pela maioria <strong>do</strong>s especialistas, como um factor <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
económico e, logicamente, <strong>de</strong>mocrático, mesmo nos países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s. A mensagem <strong>da</strong><br />
Transparency Internacional começa por afirmar: “Corruption is present in almost any country, but has the<br />
most <strong>de</strong>vastating effects in <strong>de</strong>veloping economies, because it hin<strong>de</strong>rs any advance in economie growth<br />
and in <strong>de</strong>mocracy”, in Corruption Integrity Improvement Initiatives In Developing Countries, www.undp.<br />
org/dpa/publications/corruption/in<strong>de</strong>x.html (2002).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
33
34<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
vonta<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong>terminação para isso, caso contrário, em três anos conseguiriam<br />
resulta<strong>do</strong>s extraordinários, bastaria, apenas, seguir algumas<br />
<strong>da</strong>s soluções que aponta em La Gran Corrupción (28) (1994: 49 e ss). Só<br />
que a gran<strong>de</strong> corrupção, também, ultrapassa a fronteira africana. Des<strong>de</strong><br />
a Europa <strong>de</strong> Leste à America Latina, o fenómeno é uma teia complexa,<br />
impossível <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir e difícil <strong>de</strong> controlar.<br />
O conceito <strong>de</strong> corrupção, entendi<strong>do</strong> como no oci<strong>de</strong>nte, po<strong>de</strong> ser<br />
até socialmente legítimo em África, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as suas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais,<br />
“... en cual hay muy poca institucionalization significativa, la noción<br />
<strong>de</strong> corrupción, tal como se enten<strong>de</strong> habitualmente en las socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
occi<strong>de</strong>ntales, tiene pouco significa<strong>do</strong>” (Chabal e Daloz, 2001: 157). Em<br />
África, este tipo <strong>de</strong> crime não está confina<strong>do</strong> às elites políticas e económicas.<br />
“To<strong>do</strong> el mun<strong>do</strong>, en to<strong>da</strong>s partes, trata <strong>de</strong> obtener benefícios”<br />
(2001: 132), operan<strong>do</strong> essencialmente <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as relações verticais<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
“A produtivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> fracasso económico” é visível em África. Apesar<br />
<strong>de</strong> conter em si um para<strong>do</strong>xo, esta i<strong>de</strong>ia é <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> pelos autores <strong>de</strong><br />
Africa Camina, que advogam que os actores políticos e económicos estão<br />
a tirar parti<strong>do</strong> <strong>da</strong> crise. Instrumentalizaram a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong> corrupção<br />
a chave <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong>sse paradigma e são os únicos que<br />
tiram proveito disso. Preferem uma vi<strong>da</strong> luxuosa e contas no exterior,<br />
ou seja, o enriquecimento pessoal, <strong>do</strong> que o enriquecimento colectivo,<br />
contrariamente ao que suce<strong>de</strong> na Ásia “si la prosperi<strong>da</strong>d material há si<strong>do</strong><br />
sempre admira<strong>da</strong> en Asia, a menu<strong>do</strong> el exceso <strong>de</strong> opulencia se consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong><br />
mal gusto” (2001: 153). A visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> corrupção não constitui um<br />
problema sério para os africanos, <strong>da</strong>í que, em certa medi<strong>da</strong>, ela é legitima<strong>da</strong><br />
pela própria socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s beneficiem (29) .<br />
28 Uma <strong>da</strong>s soluções passaria, segun<strong>do</strong> este investiga<strong>do</strong>r, pela criação <strong>de</strong> um Código Voluntário,<br />
on<strong>de</strong> ficaria estabeleci<strong>da</strong> a percentagem a <strong>da</strong>r aos intermediários nos negócios. Mas, não seria isto, <strong>de</strong><br />
certa maneira, uma forma <strong>de</strong> legalizar este tipo <strong>de</strong> corrupção?<br />
29 Paradigmáticos são os casos verifica<strong>do</strong>s na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa, <strong>de</strong> Pimenta Macha<strong>do</strong> (presi<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong> Vitória <strong>de</strong> Guimarães) e <strong>de</strong> Fátima Felgueiras (presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Câmara <strong>de</strong> Felgueiras). Os alega<strong>do</strong>s<br />
corruptos são aplaudi<strong>do</strong>s pelo povo. Em regiões mais pequenas, on<strong>de</strong> supostamente existem ligações perigosas<br />
entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> futebol, <strong>da</strong> política e <strong>da</strong> economia (v.g. construção civil), o povo aplau<strong>de</strong> mesmo<br />
os que alega<strong>da</strong>mente cometeram actos ilícitos. Provavelmente, o receio <strong>de</strong> per<strong>de</strong>rem o emprego fá-los,<br />
a maioria <strong>da</strong>s vezes, ter estes comportamentos injustificáveis. O normal seria que esperassem o <strong>de</strong>sfecho<br />
<strong>do</strong> processo judicial para, então, vitoriarem, aplaudirem, ou con<strong>de</strong>narem os seus “í<strong>do</strong>los”.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Como foi referi<strong>do</strong> anteriormente, há africanistas que dizem tratar-se<br />
<strong>de</strong> um retorno ao perío<strong>do</strong> pré-colonial. Serão reminiscências <strong>da</strong> tradição?<br />
Será possível fazer alguma analogia com a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> chefe<br />
tradicional, figura <strong>de</strong> prestígio, referência social, que podia usufruir <strong>do</strong>s<br />
melhores bens, <strong>da</strong>s mais belas mulheres e a quem os membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>veriam oferecer as suas dádivas e o seu trabalho? O chefe, por<br />
sua vez, para <strong>de</strong>monstrar o seu po<strong>de</strong>r social e consequentemente para se<br />
fazer respeitar oferecia à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> festas abun<strong>da</strong>ntes? Não será uma<br />
forma <strong>de</strong> redistribuição para continuar a ter a sua plataforma <strong>de</strong> apoio<br />
social (30) ? Não estarão aqui presentes características <strong>do</strong> potlach <strong>de</strong> Marcel<br />
Mauss, assente no <strong>da</strong>r, receber e retribuir – o sistema <strong>de</strong> prestações<br />
totais? (Mauss: 2001).<br />
Os políticos têm <strong>de</strong> obter benefícios e alimentar os seus clientes.<br />
Não se trata <strong>de</strong> operar simplesmente no âmbito <strong>da</strong> economia paralela<br />
(31) , mas o que se procura atingir é a informalização <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os sectores<br />
económicos. Se estas práticas são compatíveis com o crescimento<br />
macro-económico, com o <strong>de</strong>senvolvimento, são questões para as quais<br />
Chabal e Daloz ain<strong>da</strong> não têm resposta. Hodges afirma que a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
90 revelou um claro aumento <strong>do</strong> fenómeno <strong>da</strong> corrupção e simultaneamente<br />
um progressivo diminuir <strong>do</strong> nível médio <strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
atiran<strong>do</strong> com as classes mais pobres para situações <strong>de</strong> pura sobrevivência.<br />
Curiosamente, Angola é um <strong>do</strong>s poucos países que apresentam “um<br />
contraste tão acentua<strong>do</strong> entre o potencial económico e a situação <strong>do</strong><br />
seu povo” (2002: 17). Hodges acrescenta que os motivos <strong>da</strong> luta pela<br />
manutenção ou conquista <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, que se arrastou durante quatro déca<strong>da</strong>s,<br />
foram o petróleo e os diamantes. Isto é confirma<strong>do</strong> na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
90, quan<strong>do</strong> se assiste a um vazio filosófico, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> “morte” <strong>do</strong> marxismo-leninismo.<br />
O factor económico é utiliza<strong>do</strong> como meio <strong>de</strong> construção<br />
<strong>de</strong> uma base <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e um exemplo pragmático é a Fun<strong>da</strong>ção<br />
José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos. O “etos <strong>do</strong> capitalismo selvagem criou formas<br />
extremas <strong>de</strong> venali<strong>da</strong><strong>de</strong> no seio <strong>da</strong> elite contribuin<strong>do</strong> para um forte<br />
30 Quan<strong>do</strong> o presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República Democrática <strong>de</strong> Angola, José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos, convi<strong>da</strong> três<br />
mil pessoas para o casamento <strong>da</strong> filha, não é uma forma <strong>de</strong> “alimentar” a sua base <strong>de</strong> apoio?<br />
31 O crescimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> paralelo é <strong>de</strong>sculpabiliza<strong>do</strong> por alguns escritores, como Uanhenga<br />
Xitu, pela incompetência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. “O merca<strong>do</strong> não era abasteci<strong>do</strong> pelas vias competentes há muitas<br />
semanas e meses. Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> na<strong>da</strong>. Passava-se fome” (1991: 210).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
35
36<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência moral ou <strong>de</strong> crise <strong>de</strong> valores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(Hog<strong>de</strong>s, 2002: 71). Em Angola, parece ser a corrupção que faz funcionar<br />
a administração pública, como observa Tony Hodges: “há quem<br />
diga que a prática <strong>de</strong> pagar gasosas “já se transformou num mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
vi<strong>da</strong> nacional, com o beneplácito <strong>da</strong>s próprias autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, embora a<br />
lei angolana sancione tal prática com <strong>do</strong>is a oito anos <strong>de</strong> prisão acresci<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> multa”. Os professores, por exemplo, cobram por vezes propinas<br />
ilegais para matricular os alunos nas escolas públicas... São comuns as<br />
práticas semelhantes no Serviço Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>... Os funcionários<br />
<strong>de</strong> outros organismos que têm contacto com a população tiram parti<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> que possuem para extorquir dinheiro pela emissão<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos como o Bilhete <strong>de</strong> I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, passaportes, cartas <strong>de</strong><br />
condução, registos <strong>de</strong> automóveis, alvarás e licenças <strong>de</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comerciais<br />
que sem uma “gasosa”, po<strong>de</strong>m levar meses, ou mais, a ser emiti<strong>do</strong>s.<br />
Um outro aspecto <strong>de</strong>ste esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas é a perseguição feita às<br />
pessoas pelos vários ramos <strong>da</strong> Polícia, cujos membros complementam<br />
o seus or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s miseráveis com a imposição <strong>de</strong> multas priva<strong>da</strong>s a motoristas,<br />
comerciantes e outros indivíduos que não possuem <strong>do</strong>cumentos<br />
necessários (32) ” (2002: 112). É a luta pela sobrevivência que leva ao<br />
crime <strong>de</strong> corrupção. Os baixos salários <strong>da</strong> função pública po<strong>de</strong>m até<br />
constituir um argumento, mas até quan<strong>do</strong>? Questiona o escritor angolano<br />
Uanhenga Xitu: “Mas até quan<strong>do</strong>? Quanto ganha um agente <strong>da</strong><br />
Polícia? E o enfermeiro? O médico quantas vezes <strong>de</strong>ram-nos com factos<br />
vergonhosos <strong>de</strong> ver médicos a an<strong>da</strong>rem a pé <strong>do</strong> Musseque <strong>do</strong> Cazenga<br />
ao Pren<strong>da</strong>, com sapatos sem sola e camisa a pedir <strong>de</strong>scanso, acontecen<strong>do</strong><br />
o mesmo com os professores que passam mal a ponto <strong>de</strong> se socorrerem<br />
<strong>de</strong> boleias <strong>do</strong>s alunos e <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s <strong>de</strong> notas <strong>do</strong>s exames? Quan<strong>do</strong><br />
é que se po<strong>de</strong> esperar <strong>da</strong>r uma boa justiça quan<strong>do</strong> os seus agentes nem<br />
têm para uma refeição nem casa para <strong>do</strong>rmir? Que prestígio se po<strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>r a um Juiz ou a um agente <strong>de</strong> Procura<strong>do</strong>r <strong>da</strong> República (33) ? Claro,<br />
tem <strong>de</strong> utilizar os méto<strong>do</strong>s que se ouve falar <strong>de</strong> alterar o equilíbrio <strong>da</strong><br />
32 To<strong>da</strong>s estas formas <strong>de</strong> corrupção são também <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>s em O Ministro, <strong>de</strong> Uanhenga Xitu.<br />
33 A corrupção invadiu também a própria Justiça. Em O Homem Quebra<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Jelloun, afirma-se até<br />
que a justiça está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rosos. “A justiça também não gosta <strong>do</strong>s pobres, o po<strong>de</strong>r não se encaixa<br />
nas pessoas honestas, e a Primavera quer lá saber <strong>da</strong>s an<strong>do</strong>rinhas. Já me vejo <strong>de</strong> algemas nos pulsos perante<br />
um <strong>da</strong>queles inspectores especializa<strong>do</strong>s em interrogatórios violentos...” (1995: 123).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
balança, receben<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse e <strong>da</strong>quele a gorjeta ou a afama<strong>da</strong> “squebra”;<br />
(1997: 109). O escritor que fora <strong>da</strong> ficção é Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Carvalho, <strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />
na Assembleia Nacional, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que é necessária uma reforma na<br />
Administração Pública que passa pela “autori<strong>da</strong><strong>de</strong> na gestão, controlo e<br />
fiscalização” (1997: 110).<br />
Mas não é só <strong>de</strong> pequena corrupção que vive a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana.<br />
Embora seja difícil <strong>de</strong> provar (34) e haja pouca informação <strong>do</strong>cumenta<strong>da</strong>,<br />
socialmente a gran<strong>de</strong> corrupção é <strong>da</strong><strong>da</strong> como certa, estan<strong>do</strong> “enraiza<strong>da</strong><br />
num sistema <strong>de</strong> Administração Pública caracteriza<strong>da</strong> pela arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e falta <strong>de</strong> transparência”. Hodges acrescenta, citan<strong>do</strong> Maier, que<br />
a “imagem corrupta <strong>do</strong> regime me foi espelha<strong>da</strong> por um dito popular<br />
durante as eleições <strong>de</strong> 1992, segun<strong>do</strong> o qual «o MPLA rouba, a UNITA<br />
mata»” (2002: 113). Angola faz parte <strong>da</strong> lista <strong>do</strong>s países mais corruptos<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Em 2000, a organização anti-corrupção Transparency International<br />
colocava Angola na sexta posição entre os noventa mais corruptos<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> incluí<strong>do</strong>s no seu índice anual relativo à corrupção. Em<br />
2003, Angola surge já na quinta posição.<br />
Embora nos seus discursos oficiais, o presi<strong>de</strong>nte se mostre preocupa<strong>do</strong><br />
com esta imagem e reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> país, o que é certo é que nunca concretizou<br />
as medi<strong>da</strong>s previstas na lei 10/96, <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1996, que institui<br />
a Alta Autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para a Corrupção. Em 2003, ain<strong>da</strong> não passa <strong>de</strong> mais<br />
uma intenção.<br />
Hodges não acredita que o fim <strong>da</strong> guerra venha alterar, por si só, o<br />
cenário. Os interesses associa<strong>do</strong>s ao acesso às receitas petrolíferas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
continuam a ser um obstáculo à reforma. Hodges advoga, no entanto,<br />
que estão cria<strong>da</strong>s condições para uma nova perspectiva <strong>de</strong> progresso.<br />
A guerra civil já não é mais um alibi para a má gestão e para a restrição<br />
<strong>da</strong>s liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas. “Por outro la<strong>do</strong>, (a paz) aumenta as expectativas<br />
<strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> melhor e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir os grilhões psicológicos <strong>do</strong><br />
fatalismo e <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Finalmente, torna possível a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> paisagem<br />
política, diminuin<strong>do</strong> a bipolarização <strong>da</strong> política angolana que, até agora,<br />
34 Como fenómeno criminal, passa<strong>do</strong> normalmente no <strong>do</strong>mínio restrito <strong>do</strong> corruptor e <strong>do</strong> corrompi<strong>do</strong>,<br />
a corrupção é difícil <strong>de</strong> provar. Ambos têm interesse no “negócio” e, por isso, nenhum <strong>do</strong>s intervenientes<br />
<strong>de</strong>nuncia. Falar seria assumir a culpa. O que, obviamente, não se quer. Daí a divergência gritante entre<br />
a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> real e a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>tecta<strong>da</strong>, investiga<strong>da</strong>, persegui<strong>da</strong> e puni<strong>da</strong>.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
37
38<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
barrou a emergência <strong>de</strong> uma oposição civil credível com uma agen<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
mu<strong>da</strong>nças progressivas” (2002: 267).<br />
Só o futuro po<strong>de</strong>rá confirmar ou <strong>de</strong>smentir o optimismo <strong>de</strong> Hodges.<br />
Em Moçambique, o terminus <strong>da</strong> guerra civil não trouxe, to<strong>da</strong>via,<br />
o fim <strong>do</strong> clientelismo, a transparência e legali<strong>da</strong><strong>de</strong> na Administração<br />
Pública, nem retirou aquele país <strong>da</strong>s listas <strong>do</strong>s mais corruptos e mais<br />
pobres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Como salienta José Diquissoned Tole, na sua tese<br />
<strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, a déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa só veio agravar o clientelismo e a<br />
formação <strong>da</strong> Classe-Esta<strong>do</strong> só veio contribuir para reforçar um Esta<strong>do</strong><br />
pre<strong>da</strong><strong>do</strong>r (1995: 257). O antropólogo João <strong>de</strong> Pina Cabral encara o futuro<br />
<strong>de</strong> Moçambique com pessimismo. Em entrevista ao jornal Público,<br />
<strong>de</strong> 17 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2003, salienta que se está a “assistir a uma repatrimonialização<br />
<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> com a constituição <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s fortunas e com<br />
a atribuição <strong>de</strong> enormes latifúndios, não só a figuras <strong>do</strong> regime como<br />
o Gebusa, Marcelino <strong>do</strong>s Santos, ou outros, mas a gran<strong>de</strong>s interesses<br />
financeiros nórdicos (35) ”.<br />
Certo é que a corrupção não tem <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> um papel liberta<strong>do</strong>r.<br />
A in<strong>de</strong>pendência formal não se materializa. A <strong>de</strong>pendência face aos<br />
países <strong>do</strong> norte é ca<strong>da</strong> vez maior. Há países estrangula<strong>do</strong>s pela dívi<strong>da</strong>.<br />
37 países são consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s casos insustentáveis, para os quais o Banco<br />
Mundial aprovou medi<strong>da</strong>s específicas.<br />
A <strong>de</strong>pendência externa, tal como a corrupção, seria à parti<strong>da</strong> um<br />
<strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s obstáculos ao <strong>de</strong>senvolvimento económico, mas esta também<br />
é produtiva, para os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e para os seu clientes. “Na<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, resulta claro que a <strong>de</strong>pendência é a condição estrutural <strong>do</strong>s<br />
países africanos e que se converte numa parte integrante <strong>do</strong> funcionamento<br />
<strong>do</strong>s sistemas económicos e políticos”, constituin<strong>do</strong> a <strong>de</strong>pendência<br />
uma restrição e um recurso. Uma restrição na medi<strong>da</strong> em que a Aju<strong>da</strong><br />
Internacional impõe condições (os chama<strong>do</strong>s condicionalismos políticos<br />
ou económicos, na maioria <strong>da</strong>s vezes não controla<strong>do</strong>s), e um recurso,<br />
porque <strong>do</strong>ta o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> meios financeiros que <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> não teria<br />
acesso. Os autores <strong>de</strong> África Camina alertam para a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
algumas elites africanas estarem a negociar internacionalmente a <strong>de</strong>-<br />
35 João Pina Cabral refere-se a países como a Noruega, a Suécia e os EUA, que diz ser quem realmente<br />
suporta o Esta<strong>do</strong> Moçambicano em troca <strong>da</strong> concretização <strong>de</strong> interesses económicos e geopolíticos.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
sor<strong>de</strong>m, o crime e a violência, como formas <strong>de</strong> sobrevivências política<br />
e mesmo pessoal. Luigi Ferrajoli, no seu artigo sobre Criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
Globalização, advoga que, actualmente: “as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras «classes perigosas»<br />
já não provêm <strong>do</strong>s estratos marginais, mas sim <strong>da</strong>s elites dirigentes,<br />
económicas e políticas” (2003: 11, 12).<br />
As activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ilícitas seriam a fonte <strong>de</strong> rendimentos necessários à<br />
sua manutenção política, até porque estes dirigentes têm poucas cartas<br />
políticas legítimas para esgrimir (Chabal e Daloz, 2001: 132). O Ajustamento<br />
Estrutural foi também instrumentaliza<strong>do</strong> pelas elites africanas<br />
e com êxito, pelo menos, em <strong>do</strong>is aspectos: primeiro, os dirigentes têm<br />
agora um bo<strong>de</strong> expiatório para o fracasso, o Banco Mundial; segun<strong>do</strong>,<br />
continuam a ter uma fonte <strong>de</strong> receita externa.<br />
O <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ssa receita é muitas vezes questiona<strong>do</strong>, <strong>da</strong><strong>do</strong> que os<br />
resulta<strong>do</strong>s práticos não são, como seria <strong>de</strong> esperar, visíveis. O povo angolano<br />
continua na miséria e o ano <strong>de</strong> 2003 registou o seu pior nível <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento humano <strong>do</strong>s últimos sete anos, apesar <strong>do</strong> fim <strong>da</strong> guerra<br />
e <strong>do</strong> renascer <strong>da</strong> esperança, em 2002.<br />
A Organização <strong>de</strong> direitos humanos Human Rigths Watch (HRW) (36)<br />
<strong>de</strong>nuncia que “mais <strong>de</strong> 4, 2 mil milhões <strong>de</strong> dólares – cerca <strong>de</strong> 3,1 milhões<br />
<strong>de</strong> euros – <strong>de</strong>sapareceram <strong>do</strong>s cofres <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Angolano entre 1997 e<br />
2002”. Numa investigação leva<strong>da</strong> a cabo por aquela organização são revela<strong>do</strong>s,<br />
curiosamente, <strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>do</strong> FMI – Fun<strong>do</strong> Monetário Internacional<br />
que eram confi<strong>de</strong>nciais (37) . A HRW acusa o governo angolano <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong><br />
eleva<strong>da</strong>s somas através <strong>da</strong> corrupção e má gestão.<br />
A falta <strong>de</strong> transparência, a má governação e a indisponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong><br />
para a realização <strong>de</strong> eleições livres, <strong>do</strong>is anos após a morte<br />
<strong>de</strong> Jonas Savimbi – antigo lí<strong>de</strong>r <strong>da</strong> Unita – constituem fortes entraves<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento sustenta<strong>do</strong>. A leitura <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong> HRW vai<br />
mais longe ao afirmar que “os responsáveis receiam que, pelo facto <strong>de</strong> o<br />
Governo não ter <strong>da</strong><strong>do</strong> respostas às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> população, não terão<br />
36 Conforme notícia <strong>do</strong> jornal Público, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2004, intitula<strong>da</strong> “As provas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sapare-<br />
cimento <strong>de</strong> 4 milhões <strong>de</strong> dólares <strong>da</strong>s contas <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>”.<br />
37 O FMI fala no <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 700 milhões <strong>de</strong> dólares por ano e “atribuiu esse <strong>de</strong>saparecimento<br />
a má gestão, à recusa <strong>do</strong> governo em disponibilizar informação exacta sobre as suas contas e<br />
à corrupção”. A falta <strong>de</strong> transparência <strong>do</strong> governo angolano é aponta<strong>da</strong> como um <strong>do</strong>s maiores obstáculos<br />
ao <strong>de</strong>senvolvimento humano (in jornal Público, 14 <strong>de</strong> Janeiro 2004).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
39
40<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
condições para manter o po<strong>de</strong>r, se os angolanos tivessem possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escolha (38) ”.<br />
Entre os aspectos <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s pela HRW, no seu relatório, escreve<br />
Ana Dias Cor<strong>de</strong>iro, “estão as ameaças <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> aos países on<strong>de</strong> foram<br />
inicia<strong>da</strong>s investigações sobre casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>s públicos em benefício<br />
priva<strong>do</strong>” (2004). A corrupção parece estar assim na origem <strong>do</strong><br />
extravio <strong>do</strong>s dinheiros públicos. Negócios pouco transparentes resultantes<br />
<strong>da</strong> exploração <strong>do</strong> petróleo.<br />
85% <strong>da</strong>s receitas públicas <strong>de</strong> Angola provêm <strong>do</strong> petróleo, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> 17,8 mil milhões <strong>de</strong> dólares o total <strong>de</strong> receitas regista<strong>da</strong>s entre 1997 e<br />
2002. Segun<strong>do</strong> o relatório <strong>da</strong> HRW, 4,22 mil milhões foi a falha <strong>de</strong>tecta<strong>da</strong><br />
pelo FMI entre as receitas petrolíferas e as contas apresenta<strong>da</strong>s pelo<br />
governo angolano. O relatório refere ain<strong>da</strong> que 970 milhões <strong>de</strong> dólares<br />
foram gastos na compra <strong>de</strong> armas.<br />
Alex Vines <strong>da</strong> HRW realçou que “nunca em nenhum país como agora<br />
em Angola se havia <strong>de</strong>tecta<strong>do</strong> uma tal magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> dinheiros <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>s,<br />
comparativamente a dimensão <strong>da</strong> população – 12 milhões <strong>de</strong> habitantes<br />
(39) ”. Resta saber se estamos no puro <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> especulação, <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> jornalística ou se estes relatórios e notícias têm uma base factual<br />
credível. Se assim não for, não se compreen<strong>de</strong> a irritante passivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong>s instituições internacionais.<br />
1.2. A literatura e a <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> corrupção.<br />
«A corrupção é um mal, um terrível mal, <strong>de</strong> que está infectan<strong>do</strong> o nosso Continente<br />
e que vai, pouco a pouco, minan<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>senvolvimento, pon<strong>do</strong> em causa mesmo<br />
a sua sobrevivência. O vírus <strong>da</strong> corrupção é uma <strong>do</strong>ença que tem cura, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
os <strong>Africanos</strong>, <strong>de</strong>finitivamente se <strong>de</strong>ci<strong>da</strong>m pela sua extirpação. Para tanto, é preciso<br />
instituir meios e instrumentos legais que a previnam e reprimam os respectivos praticantes,<br />
criar órgãos e instituições que funcionem e façam aplicar correctamente<br />
38 cfr. Público, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Janeiro 2004.<br />
39 Cfr. Público, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 2004. Recentemente a imprensa nacional e internacional tem divulga<strong>do</strong><br />
notícias compromete<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos. Segun<strong>do</strong> o jornal Expresso <strong>de</strong><br />
24/01/2004, o Luxemburgo confirmou à justiça helvética que o presi<strong>de</strong>nte angolano possui naquele país<br />
uma conta secreta <strong>de</strong> 53 milhões <strong>de</strong> dólares, que estaria relaciona<strong>da</strong> com as comissões sobre a renegociação<br />
<strong>da</strong> dívi<strong>da</strong> angolana à Rússia, on<strong>de</strong> o negociante <strong>de</strong> armas Pierre Falcone foi interveniente.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
to<strong>da</strong>s as leis e medi<strong>da</strong>s anti-corrupção, e sobretu<strong>do</strong>, que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil assuma o<br />
seu papel <strong>de</strong> “olho vivo” <strong>da</strong> nação, lutan<strong>do</strong> pela transparência <strong>da</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong> administrativa<br />
e pública, fiscalizan<strong>do</strong> as práticas <strong>do</strong>s agentes públicos e <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> os<br />
<strong>de</strong>svios e os actos <strong>de</strong> corrupção <strong>de</strong> que tome conhecimento.»<br />
— David Hopfer, “A corrupção – suas consequências” (40)<br />
A <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> corrupção é, hoje em dia, uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> imprescindível<br />
à manutenção <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong>mocráticos. Convictos <strong>de</strong> que a<br />
corrupção po<strong>de</strong>rá abalar os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> própria <strong>de</strong>mocracia (41) ,<br />
alguns políticos, jornalistas, escritores, intelectuais, entre outros, não<br />
a têm silencia<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua arte um importante instrumento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>núncia. Sem essa <strong>de</strong>núncia o sistema seria lentamente corroí<strong>do</strong> e<br />
os valores que o integram subverti<strong>do</strong>s e aniquila<strong>do</strong>s. A legali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
a transparência, a igual<strong>da</strong><strong>de</strong>, que <strong>de</strong>vem pautar o relacionamento<br />
com a Administração Pública, <strong>da</strong>riam lugar à peita, ao suborno, ao<br />
tráfico <strong>de</strong> influências e à extorsão. A igual<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
ficaria comprometi<strong>da</strong>. O direito, a razão, a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
económica per<strong>de</strong>riam o seu vigor, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> lugar a lógicas obscuras e<br />
incontroláveis. O Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>mocrático ficaria enfraqueci<strong>do</strong><br />
se não mesmo comprometi<strong>do</strong>.<br />
Ao longo <strong>do</strong>s tempos, encontramos muitos exemplos paradigmáticos<br />
<strong>da</strong> utilização <strong>da</strong> literatura como uma arma <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> corrupção. É o<br />
caso emblemático <strong>de</strong> O Homem Quebra<strong>do</strong>, <strong>de</strong> Tahar Bem Jelloun (42) , mas<br />
também <strong>de</strong> muitas obras em língua portuguesa, que <strong>de</strong> forma directa ou<br />
indirecta, a título principal ou acessório, focam o tema em questão.<br />
40 Comunicação apresenta<strong>da</strong> no “Fórum Sobre Transparência e Corrupção” organiza<strong>do</strong> a 8 e 9 <strong>de</strong><br />
Outubro pela Assembleia <strong>da</strong> República <strong>de</strong> Moçambique e pelo PNUD, nesse país, pelo ex-ministro <strong>da</strong><br />
Justiça <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong>.<br />
41 Cfr. o sociólogo suíço Jean Ziegler no seu famoso livro Os Senhores <strong>do</strong> Crime, As novas máfias contra<br />
a <strong>de</strong>mocracia (1999: 253 e ss), que teve eco entre nós, no artigo <strong>de</strong> Cunha Rodrigues (ex-Procura<strong>do</strong>r<br />
Geral <strong>da</strong> República e, portanto, testemunha idónea) também intitula<strong>do</strong> “Os Senhores <strong>do</strong> Crime” (1999).<br />
Segun<strong>do</strong> Ferrajoli, a “criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r” abrange uma “fenomenologia complexa e heterogénea.<br />
Há formas varia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> corrupção e <strong>de</strong> apropriação <strong>da</strong> coisa pública, que parecem ter-se torna<strong>do</strong> uma<br />
dimensão ordinária <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res públicos... É um sinal <strong>de</strong> patologia <strong>da</strong>s instituições e, precisamente <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
ao seu carácter secreto, a expressão mais <strong>de</strong>genera<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma crise <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito e <strong>da</strong> própria<br />
<strong>de</strong>mocracia” (2003: 11).<br />
42 Em bom rigor, como o autor adverte logo na introdução, o seu romance não é mais <strong>do</strong> que uma<br />
homenagem ao livro: A corrupção, <strong>de</strong> Pramoedya Ananta Toer, escritor in<strong>do</strong>nésio.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
41
42<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Mia Couto, testemunha privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> uma “nova<br />
nação”, insere-se nessa cultura <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia (43) , utilizan<strong>do</strong> a escrita para<br />
<strong>de</strong>smascarar a manipulação <strong>de</strong> Moçambique pela “outra raça” : “Mas, na<br />
minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia<br />
<strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> que esse tempo não terminara. Estava era sen<strong>do</strong> geri<strong>do</strong><br />
por pessoas <strong>de</strong> outra raça” (O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo: 114).<br />
Pepetela, em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, radiografa uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
corrupta até à mais alta esfera política. Optan<strong>do</strong>, aparentemente,<br />
por um género policial, <strong>de</strong>nuncia os efeitos <strong>da</strong> corrupção (<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
social, impuni<strong>da</strong><strong>de</strong>...). Mas <strong>de</strong>nuncia a quem, se a própria autori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
policial surge corrompi<strong>da</strong>? Aqueles que <strong>de</strong>viam combater o mal estão,<br />
afinal, irremediavelmente infecta<strong>do</strong>s. A impotência <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil<br />
e a ausência <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> combate e <strong>de</strong> controlo perante o fenómeno<br />
estão subjacentes ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> obra. A única esperança que resta,<br />
como veremos ao analisar o romance, é a escrita, ou seja, a <strong>de</strong>núncia.<br />
Mas, para isso, terá <strong>de</strong> existir uma comunicação social imparcial, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
que esteja <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> povo.<br />
A corrupção motivou, e motiva ain<strong>da</strong>, a produção <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong><br />
romances. Para além <strong>de</strong>stas duas obras, on<strong>de</strong> o tema é central, ambos<br />
os escritores noutros romances focam o flagelo. Mia Couto, no livro<br />
Cronican<strong>do</strong> <strong>de</strong>dica uma crónica exclusivamente à corrupção. “Carta<br />
entreaberta <strong>do</strong> corrupto nacional” é um texto irónico e <strong>de</strong> um humor<br />
surpreen<strong>de</strong>nte que <strong>de</strong>nuncia a corrupção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial em<br />
Moçambique, mas sobretu<strong>do</strong> aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> acusatório aos jornalistas,<br />
que <strong>de</strong> certa forma são cúmplices com a situação, <strong>da</strong><strong>do</strong> que não <strong>de</strong>nunciam,<br />
nem investigam! “Porque, em Moçambique, um corrupto mesmo<br />
po<strong>de</strong> <strong>de</strong>smoralizar. Uma pessoa entrega-se à sua vocação, aplica golpes<br />
por baixo <strong>do</strong> ventre nacional, rouba aos pobres para <strong>da</strong>r aos ricos,<br />
tu<strong>do</strong> isso para ser ignora<strong>do</strong>” (Cronican<strong>do</strong>: 177) (44) . O próprio corrupto<br />
sente-se ignora<strong>do</strong>, pelo que “a carta” termina com um apelo: “Por isso,<br />
eu apelo ao público em geral: investiguem-nos, <strong>de</strong>nunciem os nossos<br />
esquemas. Conce<strong>da</strong>m-nos a atenção e serie<strong>da</strong><strong>de</strong> que nos é <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>. Não<br />
43 Mia Couto, escritor moçambicano, é biólogo, mas foi director <strong>da</strong> Agência <strong>de</strong> Informação <strong>de</strong> Moçambique,<br />
<strong>da</strong> revista Tempo e <strong>do</strong> Jornal <strong>de</strong> Notícias <strong>de</strong> Maputo, seguin<strong>do</strong>, aliás, as pisa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> pai.<br />
44 Couto, Mia, Cronican<strong>do</strong>, Caminho, 6.ª edição, 1991.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
nos reservem o boato, que <strong>de</strong>ixa tu<strong>do</strong> igual ao que já foi” (177). Do<br />
outro la<strong>do</strong>, na África oci<strong>de</strong>ntal, também Pepetela apela aos seus colegas<br />
escritores para <strong>de</strong>nunciaram a falta <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão imposta<br />
pelo governo aos meios <strong>de</strong> comunicação social. Em 1999, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
entrega <strong>do</strong> Prémio holandês Prinz Claus, pelo conjunto <strong>da</strong> sua obra, Pepetela<br />
acusava a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s escritores angolanos que na<strong>da</strong> faziam<br />
contra “o actual clima <strong>de</strong> intimi<strong>da</strong>ção aos jornalistas por parte <strong>de</strong> alguns<br />
sectores caducos <strong>do</strong> país... Nós, escritores, ficamos, <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral,<br />
como<strong>da</strong>mente na retaguar<strong>da</strong>, esperan<strong>do</strong> para ver” (Chaves e Mace<strong>do</strong>,<br />
2002: 42, 43).<br />
Apesar <strong>de</strong>ssa alega<strong>da</strong> passivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, to<strong>da</strong>via, a corrupção é tema foca<strong>do</strong><br />
por um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> escritores angolanos e moçambicanos<br />
como, para referir só alguns, Manuel Rui, Sousa Jamba, Unhenga Xito,<br />
Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho, inun<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, assim, centenas <strong>de</strong> páginas literárias<br />
no final <strong>do</strong> século XX e inícios <strong>do</strong> século XXI (45) . A sua i<strong>de</strong>ntificação,<br />
inventariação, catalogação é mesmo uma tarefa quase inacabável.<br />
Mas ao mun<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> na literatura correspon<strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> real?<br />
Será o relato <strong>da</strong> corrupção uma mera enfabulação, um simples <strong>de</strong>vaneio<br />
criativo <strong>do</strong> autor ou correspon<strong>de</strong> ao propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar factos reais,<br />
com intuitos pe<strong>da</strong>gógicos e formativos?<br />
“Por não atentarem nos complexos procedimentos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização<br />
concretiza<strong>do</strong>s na narrativa literária é que certas análises ten<strong>de</strong>m a i<strong>de</strong>ntificar,<br />
linearmente, personagens, espaços e acontecimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
45 Manuel Rui, por exemplo, em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, “– Qual Instituto qual mer<strong>da</strong>, ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> corruptos<br />
que arranjam casas só pròs amigos. Eu sempre paguei ren<strong>da</strong>” (11). O próprio Direito, o garante <strong>da</strong><br />
Justiça, não está imune: “Tu<strong>do</strong> tachistas como esse requerimenteiro que apanhou boleia na revolução e<br />
agora é juíz. Eu ao menos não apanhei boleia nenhuma. Em casa <strong>de</strong>le passa ovos, <strong>de</strong>ndém, carne e ontem<br />
quatro “ramalho eanes”. Quan<strong>do</strong> era “morteiro” eu vi três caixas. Se ca<strong>da</strong> pessoa só tem direito a uma,<br />
como é que um juíz açambarca <strong>de</strong>ssa maneira?” (42). Aliás, Inocência Mata insere esta obra <strong>de</strong> Manuel<br />
Rui numa “escrita <strong>de</strong> figuração satírica <strong>do</strong> real” à semelhança <strong>de</strong> O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> Pepetela (Mata,<br />
1992: 37).<br />
Em Sousa Jamba, são <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s também os esquemas, e, sobretu<strong>do</strong>, o tráfico <strong>de</strong> diamantes: “Escuta,<br />
por favor! Um rapaz e um amigo fugiram ao serviço militar. Então <strong>de</strong>cidiram construir uma janga<strong>da</strong><br />
e fugir para Portugal. Bem já houve quem o fizesse, por isso acharam que também podiam fazer o mesmo.<br />
Depois <strong>de</strong> construírem a janga<strong>da</strong>, foram apanha<strong>do</strong>s. Um foi para a prisão; o outro, o Silva, conseguiu<br />
safar-se e há seis meses que an<strong>da</strong> escondi<strong>do</strong>. Nós queremos salvar o rapaz. Arranjou-se um passaporte<br />
falso para ele. Só tem <strong>de</strong> passar no aeroporto <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong> com os diamantes – nós sabemos como é que isso<br />
se consegue – e <strong>de</strong> os entregar <strong>de</strong>pois à tal Ma<strong>da</strong>me em Lisboa, e pronto. E também há <strong>de</strong> receber uma<br />
recompensa” (Patriotas: 278).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
43
44<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
possível <strong>da</strong> ficção com personagens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real”, alertam Carlos<br />
Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário <strong>de</strong> Narratologia (2000: 245). A<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s objectos só po<strong>de</strong> ser equaciona<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> possível<br />
cria<strong>do</strong> pelos processos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização artística. Indubitavelmente,<br />
“ca<strong>da</strong> texto narrativo literário constrói o seu próprio <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> referência,<br />
promoven<strong>do</strong> à existência um mun<strong>do</strong> possível ficcional. Os mun<strong>do</strong>s<br />
ficcionais mantêm sempre uma correlação semântica com o mun<strong>do</strong> real,<br />
correlação essa que oscila entre a representação mimética e a transfiguração<br />
<strong>de</strong>srealizante” (2000: 246).<br />
Embora não possa ser analisa<strong>do</strong> divorcia<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema semiótico que<br />
é a Literatura, o mun<strong>do</strong> textual mantém uma relação fun<strong>da</strong>mental com<br />
o mun<strong>do</strong> real. Mas essa relação não po<strong>de</strong> ser orienta<strong>da</strong> por uma concepção<br />
mimética, como bem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Ana Margari<strong>da</strong> Fonseca. “Dependência<br />
e autonomia articulam-se, pois, na caracterização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> possível<br />
narrativo. Por um la<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong> ficcional constituiu-se no e pelo texto,<br />
e apenas <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se, assim, os espaços «vazios» nele<br />
encerra<strong>do</strong>s, ou seja, a sua incompletu<strong>de</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vemos aten<strong>de</strong>r<br />
ao facto <strong>de</strong> o mun<strong>do</strong> textual ser uma macrouni<strong>da</strong><strong>de</strong> autónoma, ain<strong>da</strong> que<br />
tal não signifique a negação <strong>da</strong> relação estabeleci<strong>da</strong> com o mun<strong>do</strong> real.<br />
Pelo contrário, esta relação é fun<strong>da</strong>mental, mas não <strong>de</strong>verá ser confundi<strong>da</strong><br />
com uma orientação textual «especular», i<strong>de</strong>ntificável com as concepções<br />
miméticas” (2002: 39). A concepção mimética <strong>do</strong>minou a história <strong>da</strong><br />
literatura. Mas a mimese (46) é posta em causa pela teoria construtivista <strong>da</strong><br />
cognição, rejeitan<strong>do</strong> linearmente o apostola<strong>do</strong> <strong>de</strong> Platão e <strong>de</strong> Aristóteles.<br />
O Formalismo, por um la<strong>do</strong>, e as teorias <strong>da</strong> recepção e as teorias cognitivas,<br />
por outro, <strong>do</strong>minam os estu<strong>do</strong>s literários <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. O<br />
primeiro assume a obra <strong>de</strong> arte, neste caso literária, como um artefacto<br />
verbal autónomo, rejeitan<strong>do</strong> qualquer contexto extratextual. O segun<strong>do</strong><br />
não separa o texto literário <strong>do</strong> seu contexto produtivo e <strong>de</strong> recepção, nem<br />
<strong>da</strong> biografia <strong>do</strong> autor (<strong>da</strong><strong>do</strong> que o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
artístico assenta na experiência <strong>do</strong> quotidiano), pon<strong>do</strong>, assim, em causa<br />
o <strong>do</strong>gma <strong>da</strong> autotelici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> texto literário.<br />
46 Enten<strong>da</strong>-se mimese como representação literária <strong>do</strong> real. Para um estu<strong>do</strong> mais aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> recomen<strong>da</strong>-se<br />
a leitura <strong>da</strong> Poética <strong>de</strong> Aristóteles e <strong>da</strong> República <strong>de</strong> Platão, on<strong>de</strong> é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> a mimesis como<br />
«imitação» <strong>do</strong> real.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
As questões <strong>da</strong> referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> e representação voltam a ser essenciais<br />
nas reflexões sobre o literário. Pavel diz mesmo que se é possível<br />
abor<strong>da</strong>r a obra literária reduzin<strong>do</strong> a componente literária limita<strong>da</strong> a efeitos<br />
intratextuais subordina<strong>do</strong>s à estrutura narrativa, o contrário também<br />
é possível: “nous pouvons aussi bien partir <strong>de</strong> la primauté <strong>de</strong> la référence et<br />
<strong>de</strong> la répresentation, en leur subor<strong>do</strong>nnant les structures narratives et les<br />
techniques du discours” (apud Fonseca, 2002: 29).<br />
Para Césare Segre existe, inegavelmente, uma relação entre texto literário<br />
e mun<strong>do</strong> real. “A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que a literatura especialmente narrativa<br />
instituiu simulacros <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: mesmo se os factos que expõe não<br />
têm real consistência, não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser eles, porém isomorfos <strong>de</strong> factos<br />
ocorri<strong>do</strong>s ou possíveis” (1999: 11).<br />
Se se trata <strong>de</strong> simulacros ou <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s possíveis, é inegável que a<br />
obra literária “é o produto duma relação dialéctica entre o seu cria<strong>do</strong>r<br />
e a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele se insere” (Venâncio, 1990: 109) e os mun<strong>do</strong>s<br />
ficcionais não se constróem nem funcionam “fora <strong>de</strong> uma relação com<br />
o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> autor e leitores; pelo contrário, solicitam e<br />
evocam esta relação, tornan<strong>do</strong>-a inevitável no processo <strong>de</strong> comunicação<br />
narrativa” (Fonseca, 2002: 43). Para que haja comunicação narrativa,<br />
o leitor tem <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r <strong>do</strong> texto figurações que accionem as suas recor<strong>da</strong>ções.<br />
Francisco Soares, ao elaborar a Autobiografia Lírica <strong>de</strong> M.<br />
António, advoga que “um poema, por mais fantástico, nunca <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
funcionar precisamente porque é possível, a partir <strong>da</strong>s nossas recor<strong>da</strong>ções,<br />
acompanharmo-lo na composição <strong>da</strong>s suas referências em vez <strong>de</strong><br />
o imaginarmos a <strong>de</strong>screver-nos as experiências <strong>do</strong> autor” (1996: 53). “A<br />
presença <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> na poesia é sempre a presença <strong>do</strong> possível ou <strong>do</strong><br />
verosímil, em tal facto assentan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>pção suíça <strong>da</strong> teoria <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s<br />
possíveis <strong>de</strong> Leibniz – e a própria teoria leibniziana”, conclui Francisco<br />
Soares (1996: 53).<br />
De facto, já Fernan<strong>do</strong> Pessoa afirmava que “o poeta é um fingi<strong>do</strong>r”,<br />
pelo que não se <strong>de</strong>vem tomar as referências textuais como vivências <strong>do</strong><br />
autor. Elas são, no entanto, constituintes <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s possíveis, mol<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
através <strong>da</strong> percepção que o autor tem <strong>do</strong> real. Mas se isto é váli<strong>do</strong> no que<br />
diz respeito à poesia, on<strong>de</strong> a criação literária é ain<strong>da</strong> mais particular, na<br />
narrativa, concretamente no romance, não se po<strong>de</strong> cortar o cordão um-<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
45
46<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
bilical com o real. Os <strong>de</strong>fensores <strong>do</strong> realismo preconizavam mesmo que<br />
“sem experiência na<strong>da</strong> se faz em literatura. Na<strong>da</strong> se faz sem uma larga<br />
experiência resultante <strong>de</strong> um esforço <strong>de</strong>libera<strong>do</strong> <strong>de</strong> chegar à compreensão<br />
<strong>da</strong>s pessoas, as suas i<strong>de</strong>ias, emoções, razões <strong>de</strong> conduta” (Lima,<br />
apud Reis, 1981: 187).<br />
O escritor Teixeira <strong>de</strong> Sousa, em entrevista a José Carlos Venâncio<br />
(1992: 75), diz que as suas personagens têm uma relação directa com as<br />
pessoas que conheceu e interroga mesmo “Qual é o escritor que não cria<br />
as suas personagens a partir <strong>de</strong> pessoas conheci<strong>da</strong>s e muitas vezes, como<br />
é o meu caso, há personagens minhas que são cocktail <strong>de</strong> duas, três quatro<br />
pessoas conheci<strong>da</strong>s”. Observação importante é também aquela que<br />
Pepetela, ou melhor, o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> O Cão e Os Caluan<strong>da</strong>s faz ao referir-se<br />
ao dilema <strong>de</strong> um historia<strong>do</strong>r, neste caso historia<strong>do</strong>r/romancista,<br />
quan<strong>do</strong> diz: “... a sua versão po<strong>de</strong> estar completamente erra<strong>da</strong>, mas vai<br />
sempre influenciar no futuro qualquer análise sobre os acontecimentos<br />
que narra. Já o Heró<strong>do</strong>to o sabia ao enfiar as suas Kíbuas que até hoje<br />
continuamos a engolir” (1985: 94). Isto <strong>de</strong>monstra a importância que<br />
o mun<strong>do</strong> ficcional <strong>de</strong>tém ao contribuir para que o leitor construa a sua<br />
própria imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real. Po<strong>de</strong>ríamos concluir que o autor é influencia<strong>do</strong><br />
pela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e influencia o mun<strong>do</strong> real quan<strong>do</strong> cria o seu<br />
mun<strong>do</strong> ficcional.<br />
Na ficção pós-in<strong>de</strong>pendência, na opinião <strong>de</strong> Pires Laranjeira, “é<br />
muito difícil não existirem marcas referenciais que remetam para lugares,<br />
coisas, pessoas, linguagens, factos ou tempos concretos. Nesse jogo,<br />
entre a ilusão <strong>do</strong> real concreto e o concreto <strong>da</strong> ilusão ficcional a i<strong>de</strong>ologia<br />
<strong>do</strong> enraizamento, enquanto mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, crava no texto as suas<br />
garras” (1995: 164).<br />
Não se po<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r as questões <strong>de</strong> referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> texto literário<br />
sem focar o realismo – até porque as obras em análise neste trabalho,<br />
ou melhor, os seus autores (sobretu<strong>do</strong> numa primeira fase) são enquadra<strong>da</strong>s<br />
pela crítica literária no chama<strong>do</strong> realismo socialista. Aliás, o realismo<br />
na literatura africana contém um lugar incontornável na história<br />
<strong>da</strong>s in<strong>de</strong>pendências. No romance africano, o realismo tornou-se num<br />
meio para os africanistas corroborarem as suas teses <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
cultural: “Les africanistes attendirent <strong>de</strong>s écrivains noirs un «témoignage<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
du <strong>de</strong><strong>da</strong>ns», la peinture <strong>de</strong> l’aspect profond <strong>de</strong>s traditions et <strong>de</strong> l’esprit <strong>de</strong>s<br />
civilisations noirs. Ils cherchèrent <strong>da</strong>ns les oeuvres romanesques la corroboration<br />
<strong>de</strong> leurs thèses sur l’authenticité culturelle africaine, l’illustration<br />
<strong>de</strong>s possibilités d’évolution <strong>de</strong>s civilisations noires. Pour ce faire, le réalisme<br />
<strong>de</strong>vient un moyen” (Kane, 1982: 60).<br />
Na opinião <strong>de</strong> Kane, o exotismo foi substituí<strong>do</strong> pelo realismo social e<br />
este instituiu-se como uma tradição (1982: 61). No seu estu<strong>do</strong> sobre a tradição<br />
no romance africano, que se centrou sobretu<strong>do</strong> no espaço francófono,<br />
observa, ain<strong>da</strong>, que o realismo é uma herança tradicional e mo<strong>de</strong>rna,<br />
ao mesmo tempo, <strong>da</strong> qual os escritores africanos dificilmente conseguem<br />
fugir (1982: 79). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e como constata Pires Laranjeira, verificase,<br />
também, que na literatura pós-colonial lusófona “há uma corrente <strong>de</strong><br />
herança neo-realista, geralmente leva<strong>da</strong> a cabo por escritores com uma<br />
longa vivência <strong>do</strong> fascismo em Portugal, e <strong>do</strong> colonialismo, em África, e<br />
outras, menos neo e mais castiça ou costumbrista” (1995: 164).<br />
Apesar <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rnismo português, a partir <strong>do</strong>s anos 20, “ter reverberações<br />
nas colónias”, Hamilton também advoga que a influência <strong>do</strong><br />
neo-realismo foi “mais ampla e profun<strong>da</strong>” (1975: 44). Era uma corrente<br />
literária que combinava a consciência social com a reportagem estiliza<strong>da</strong>.<br />
De facto, serviria os propósitos <strong>do</strong> nacionalismo, <strong>da</strong> luta contra a<br />
opressão <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r. Os anos quarenta, em termos <strong>de</strong> estética literária,<br />
tiveram como suporte o neo-realismo.<br />
A função <strong>do</strong> realismo social nos países sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s – vulgo terceiro<br />
mun<strong>do</strong> – acaba por ser chamar atenção para os aspectos negativos<br />
<strong>da</strong> tradição, bem como <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, como pensamos po<strong>de</strong>r constatar<br />
com o corpus <strong>da</strong> nossa análise.<br />
Sem questionar o conceito, que se po<strong>de</strong>ria tratar sob duas perspectivas:<br />
por um la<strong>do</strong>, uma corrente literária verifica<strong>da</strong> em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />
época, ou por outro la<strong>do</strong>, num senti<strong>do</strong> mais abrangente, um termo que<br />
procuraria <strong>de</strong>screver uma atitu<strong>de</strong> geral <strong>de</strong> aproximação <strong>da</strong> obra literária<br />
ao mun<strong>do</strong> exterior – o que tem gera<strong>do</strong> mais imprecisões quanto à sua <strong>de</strong>finição<br />
(47) –, apenas <strong>de</strong>vemos salientar que enten<strong>de</strong>mos o realismo artís-<br />
47 O realismo não <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong> como uma simples <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> real. Como salienta Manuel<br />
Campos Lima, em Textos Teóricos <strong>do</strong> Neo-realismo Português, “na arte como na Literatura, a obra que se<br />
limite a «fotografar» a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> mais não faz <strong>do</strong> que produzir em pobreza <strong>de</strong> arte, riqueza <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. A<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
47
48<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
tico <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma perspectiva comunicacional. Como refere Ana Maria<br />
Fonseca em Projectos <strong>de</strong> Encostar Mun<strong>do</strong>s: “O que se apresenta como fun<strong>da</strong>mental<br />
será a integração <strong>do</strong>s textos num paradigma comunicacional,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> o realismo não é uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> intrínseca ao<br />
texto, mas antes uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> relação dialógica estabeleci<strong>da</strong><br />
entre autor e texto, texto e leitor, autor/leitor e mun<strong>do</strong>(s), texto e<br />
mun<strong>do</strong>(s)” (2002: 61).<br />
Já em 1952, João José Cochofel focava, na revista Vértice,a importância<br />
<strong>do</strong> leitor : “E se o público se alheia <strong>da</strong> arte, a<strong>de</strong>us comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
entre o artista e o público, e – consequentemente – a<strong>de</strong>us missão<br />
social <strong>do</strong> artista” (apud Reis, 1981: 193).<br />
Como se constata a relação <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> arte com o real é muito complexa.<br />
Tão complexa quanto o seu cria<strong>do</strong>r, o ser humano. Mas a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> triologia Autor – Obra – Leitor torna a Arte um fascínio – para<br />
quem analisa – e a literatura, em particular, numa aventura gratificante,<br />
mesmo que incompleta.<br />
Ao partirmos para a análise sociológica (48) <strong>da</strong>s obras literárias O Último<br />
Voo <strong>do</strong> Flamingo, <strong>de</strong> Mia Couto, e Jaime Bun<strong>da</strong> – Agente Secreto, <strong>de</strong><br />
Pepetela, pomos <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a obra como um “facto social”, para a tomarmos<br />
como uma fonte <strong>de</strong> informação. Neste caso, uma fonte que aju<strong>da</strong> a compreen<strong>de</strong>r<br />
o fenómeno <strong>da</strong> corrupção no Esta<strong>do</strong> pós-colonial, através <strong>da</strong><br />
visão <strong>de</strong> <strong>do</strong>is escritores <strong>de</strong> referência nas literaturas africanas <strong>de</strong> expressão<br />
portuguesa. Ao tomar a obra literária como uma fonte <strong>de</strong> informação<br />
pura imagem fotográfica, com efeito, esvazia a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> dinâmico e retransmite-a para<strong>da</strong>.<br />
Isto equivale a dizer que o conteú<strong>do</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ou a própria vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sapareceram e apenas fica uma forma<br />
sem conteú<strong>do</strong>” (1981: 75). No romance realista há um compromisso <strong>do</strong> escritor com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> exterior,<br />
mas “não é só observar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> exterior”. “O realismo humanista... toma contacto com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e age <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É acção pela arte. O que interessa ao realismo humanista não é a natureza<br />
isola<strong>da</strong>. É a natureza e o homem”, <strong>de</strong>fendia Mário Ramos em 1939 (apud Reis,1981: 49). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o<br />
realismo e o neo-realismo geraram alguma polémica no século XIX e na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX<br />
– sobretu<strong>do</strong> em Portugal. Se quisermos situar no tempo o realismo como corrente literária, a tarefa é,<br />
pois, relativamente fácil, mas na outra acepção – a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> texto com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> – “as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
surgi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>safiam a construção <strong>de</strong> uma teoria <strong>do</strong> realismo que, em gran<strong>de</strong> parte, permanece por<br />
realizar” (Fonseca, 2002: 48).<br />
48 Como não é objectivo <strong>de</strong>bruçarmo-nos sobre questões <strong>de</strong> teoria <strong>da</strong> literatura, no que diz respeito<br />
às questões <strong>de</strong> referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>, recomen<strong>da</strong>-se a leitura <strong>de</strong> A Autobiografia Lírica <strong>de</strong> M. António – Uma<br />
Estética e Uma Ética <strong>da</strong> Criouli<strong>da</strong><strong>de</strong> Angolana <strong>de</strong> Francisco Soares, bem como Projectos <strong>de</strong> Encostar Mun<strong>do</strong>s,<br />
<strong>de</strong> Ana Maria Fonseca. Esta última pela visão sintética e histórica <strong>da</strong> evolução <strong>do</strong>s <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> Literários<br />
neste <strong>do</strong>mínio.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
preten<strong>de</strong>-se não cair no erro <strong>de</strong> esquecer que essa informação não caracteriza<br />
o real, mas necessita <strong>de</strong> ser codifica<strong>da</strong>.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
49
50<br />
02.<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
A CORRUPÇÃO<br />
duas visões literárias<br />
2. A Corrupção nA litErAturA moçAmBiCAnA E<br />
AngolAnA pós-ColoniAl<br />
“A produção literária é acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o trabalho <strong>de</strong> artistas que procuram expressar-se<br />
numa forma literária. Mas se quisermos compreen<strong>de</strong>r, inteira e comparativamente,<br />
a evolução <strong>da</strong> literatura moçambicana, <strong>de</strong>vemos ser capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar, <strong>de</strong><br />
forma muito precisa, a influência <strong>de</strong>sse contexto histórico. Nesse aspecto, temos <strong>de</strong><br />
reconhecer que, em Moçambique, tal como em Angola, os factores políticos (nacionalismo<br />
e revolução) foram <strong>de</strong> extrema importância <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>do</strong>s anos 60 até<br />
um passa<strong>do</strong> muito recente.”<br />
— Chabal, Vozes Moçambicanas, Literatura e Nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> o paradigma <strong>do</strong> nacionalismo, que <strong>do</strong>minou as déca<strong>da</strong>s<br />
<strong>de</strong> 60, 70 e 80, <strong>do</strong> século XX, na África Lusófona, a literatura pós-colonial<br />
<strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, particularmente a <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90 e o início <strong>do</strong> presente<br />
século, tem como referentes outro tipo <strong>de</strong> preocupações.<br />
No perío<strong>do</strong> pós-colonial (49) , assiste-se à afirmação e, posteriormente,<br />
à consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s literaturas africanas. Como refere Patrick Chabal, em<br />
Vozes Moçambicanas – Literatura e Nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, “aqui o escritor africano<br />
já não está preocupa<strong>do</strong> com o exorcismo <strong>do</strong> imperialismo cultural,<br />
mas antes em <strong>de</strong>finir a sua posição nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s pós-coloniais em que<br />
vive. Alguns focam a vi<strong>da</strong> quotidiana; assim fazen<strong>do</strong>, fixam os olhos cri-<br />
49 Patrick Chabal consi<strong>de</strong>ra quatro fases na evolução <strong>da</strong> literatura africanas: assimilação, resistência,<br />
afirmação e consoli<strong>da</strong>ção (1992a: 24, 25). O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Chabal provavelmente a<strong>da</strong>pta-se à reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
moçambicana, o mesmo, porém, não se passa em Angola bem como noutros países africanos. Chabal<br />
obnubila a literatura oral e a presença <strong>de</strong>sta na literatura escrita.<br />
As condições sociais que condicionam a produção literária são diferentes. A este propósito ver O Facto<br />
Africano, Elementos Para Uma Sociologia <strong>de</strong> África, <strong>de</strong> José Carlos Venâncio (2000: 84 e ss, 128 e ss).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
ticamente nas falhas <strong>do</strong> seu país e consi<strong>de</strong>ram-se a si próprios como a<br />
voz <strong>da</strong> consciência e <strong>da</strong> morali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (1992a: 25).<br />
“Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> a questão <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> o referente mais importante<br />
<strong>do</strong> primeiro e segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>s (50) ”, o fim <strong>da</strong> Guerra Fria, o processo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mocratização e a vivência <strong>da</strong> globalização, enquanto paradigma neoliberal,<br />
na opinião <strong>de</strong> José Carlos Venâncio, provocaram uma ruptura<br />
com a produção literária anterior.<br />
A nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> que tinha an<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s com a resistência<br />
e com a luta pela in<strong>de</strong>pendência e que tinha toma<strong>do</strong> várias formas,<br />
começan<strong>do</strong> pelo movimento <strong>de</strong> «negritu<strong>de</strong>» (Chabal, 1992a: 24), para<br />
exaltar a força <strong>da</strong> África «Tradicional», vê-se confronta<strong>da</strong>, no paradigma<br />
neo-liberal, com novas preocupações “que são comuns às <strong>do</strong>s escritores<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro” (Chabal, 1992a: 25).<br />
A formação <strong>da</strong> literatura africana mo<strong>de</strong>rna é indissociável <strong>do</strong> fenómeno<br />
<strong>do</strong> colonialismo (51) (Venâncio, 1992: 11) e se num primeiro<br />
momento, a elite africana – que tinha tenta<strong>do</strong> imitar o coloniza<strong>do</strong>r, “absorven<strong>do</strong>”<br />
a sua cultura, mas que não conseguiu um tratamento igual<br />
aos que eram <strong>da</strong> metrópole – estava mais preocupa<strong>da</strong> com as questões<br />
<strong>de</strong> ín<strong>do</strong>le cultural (52) , num segun<strong>do</strong> momento, as preocupações políticas<br />
foram centrais na produção literária e continuaram a marcar <strong>de</strong> forma<br />
mais acentua<strong>da</strong> a literatura pós-in<strong>de</strong>pendência (1992: 13).<br />
A mesma opinião é também partilha<strong>da</strong> por Pepetela. Num artigo<br />
sobre a génese <strong>da</strong> literatura angolana, o escritor angolano salienta três<br />
características <strong>de</strong>ssa literatura, enraiza<strong>da</strong>s no passa<strong>do</strong> histórico: uma<br />
literatura essencialmente urbana (reflexo <strong>da</strong> vivência <strong>do</strong>s seus autores<br />
50 José Carlos Venâncio consi<strong>de</strong>ra <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s perío<strong>do</strong>s <strong>da</strong> literatura angolana. Inicialmente intitula<strong>do</strong>s<br />
colonialismo e pós-colonialismo (1992), após as transformações sociais <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa,<br />
reformulou a periodização, existin<strong>do</strong> novamente <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s perío<strong>do</strong>s. Primeiro: a época <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
que em termos históricos correspon<strong>de</strong>rá à luta pela in<strong>de</strong>pendência. Venâncio engloba aqui to<strong>da</strong> a<br />
produção literária produzi<strong>da</strong> sob o signo <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> como marco A Geração <strong>de</strong> Utopia (1992)<br />
<strong>de</strong> Pepetela. Segun<strong>do</strong>: o perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> “extraterritorali<strong>da</strong><strong>de</strong> simbólica”, “on<strong>de</strong> a motivação política está ausente<br />
ou, quan<strong>do</strong> muito, relega<strong>da</strong> para um segun<strong>do</strong> plano” (1999a).<br />
51 Já em 1980, Costa Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a “literatura angolana nasce no centro <strong>de</strong> uma dramática<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: o choque diário e violento <strong>de</strong> <strong>do</strong>is grupos profun<strong>da</strong>mente antagónicos: coloniza<strong>do</strong>s e coloniza<strong>do</strong>res”<br />
(1980: 39).<br />
52 O facto é extensível às literaturas africanas em geral. Como já foi anteriormente referi<strong>do</strong>, Kane<br />
advoga que num primeiro momento, sobretu<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> colonial, a literatura era o meio <strong>de</strong> afirmação<br />
<strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural (1982: 60).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
51
52<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
– a elite africana ou a dita socie<strong>da</strong><strong>de</strong> crioula), uma forte tendência <strong>de</strong><br />
intervenção político-social e ain<strong>da</strong> a <strong>do</strong>minância <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />
não por opção mas por <strong>de</strong>sconhecimento, por parte <strong>do</strong>s escritores <strong>da</strong>s<br />
línguas nacionais (1995: 151). A propósito <strong>do</strong> seu carácter essencialmente<br />
urbano, referin<strong>do</strong> que a literatura angolana nasceu em <strong>do</strong>is pólos<br />
importantes como Luan<strong>da</strong> e Benguela, Pepetela constata: “também as<br />
vivências no campo são pouco explora<strong>da</strong>s, embora haja tendência recente<br />
em ir buscar à tradição oral os temas e mesmo estruturas nela conti<strong>do</strong>s.<br />
No entanto, os valores que a mo<strong>de</strong>rna literatura expressa são os<br />
<strong>do</strong> ambiente citadino, impregna<strong>do</strong> duma cultura mistura<strong>da</strong>, que alguns<br />
chamam crioula, fazen<strong>do</strong> a ligação entre os mo<strong>de</strong>los <strong>da</strong> tradição africana<br />
e <strong>da</strong> civilização oci<strong>de</strong>ntal” (1995: 150).<br />
As preocupações <strong>de</strong> ín<strong>do</strong>le política começaram a surgir quan<strong>do</strong> se<br />
constatou a frustração <strong>de</strong> um sonho, <strong>de</strong> um projecto nacionalista-marxista<br />
que esbarrou contra a tradição. “Os regimes instituí<strong>do</strong>s na sen<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
nacionalismo, os processos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização então <strong>de</strong>spoleta<strong>do</strong>s, não<br />
correspon<strong>de</strong>ram às expectativas cria<strong>da</strong>s no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> pré-in<strong>de</strong>pendência.<br />
E é no seio <strong>da</strong>s elites que haviam pugna<strong>do</strong> pela in<strong>de</strong>pendência que<br />
nasce a frustração” (Venâncio, 1992: 13).<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a tradição ao serviço <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural<br />
capaz <strong>de</strong> fazer frente ao sistema colonial foi suplanta<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>bate<br />
político. “Pen<strong>da</strong>nt la pério<strong>de</strong> anticolonialiste, la tradition a servi d’aliment<br />
à la contestation, d’élement mobilisateur. Aujourd’hui, l’egagement du<br />
roman est tourné contre les régimes nés <strong>de</strong> l’indépen<strong>da</strong>nce” (Kane, 1982 :<br />
491). A tradição não só é coloca<strong>da</strong> em segun<strong>do</strong> plano, como é muitas<br />
vezes coloca<strong>da</strong> em causa, sen<strong>do</strong> objecto <strong>de</strong> representações negativas e<br />
vai posteriormente encontrar algumas barreiras impostas pela nova i<strong>de</strong>ologia.<br />
Uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> tradição africana – o patrimonialismo/<br />
redistribuição familiar – vai “promover” e “proteger”, como esperamos<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>monstrar, através <strong>do</strong> nosso objecto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, o fenómeno <strong>da</strong><br />
corrupção. A tradição consiste, neste campo, num ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro inimigo <strong>da</strong><br />
revolução. Kane ilustra bem este facto para<strong>do</strong>xal:<br />
“Ainsi, tous ces romanciers qui développent le thème du «retour et renouveau»<br />
– et qui se démarquent fort bien <strong>de</strong>s partisans d’ue conciliation<br />
fumeuse à force <strong>de</strong> bonnes intentions – ne gar<strong>de</strong> <strong>de</strong> la tradition que ses<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
structures communautaires qui cessent <strong>de</strong> ressortir à <strong>de</strong>s considérations réligieueses<br />
et passéistes pour ne plus relever que <strong>de</strong> motivations ayant trait<br />
à la recherce <strong>de</strong> l’efficacité. On se trouve ainsi à la frontière ou au point <strong>de</strong><br />
convergence <strong>de</strong> la tradition et du marxisme” (1982: 492).<br />
A Literatura continua a ser uma arma para <strong>de</strong>monstrar o <strong>de</strong>scontentamento<br />
provoca<strong>do</strong> pelas injustiças <strong>do</strong>s regimes pós-in<strong>de</strong>pendência.<br />
Mas em Angola com a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos escritores serem actores<br />
políticos. Já como <strong>de</strong>fendia Ana Mafal<strong>da</strong> Leite, em 1996, os escritores angolanos<br />
que <strong>de</strong>senvolvem um exercício crítico sobre a vi<strong>da</strong> sócio-política<br />
“are simultaneously judges and <strong>de</strong>fen<strong>da</strong>nts” (1996: 124). E embora alguns<br />
<strong>de</strong>sses críticos se afastem, mas continuan<strong>do</strong> directa ou indirectamente<br />
liga<strong>do</strong>s ao po<strong>de</strong>r – como é o caso, por exemplo, <strong>de</strong> Pepetela, Uanhenga<br />
Xitu – na opinião <strong>de</strong> José Carlos Venâncio, é nesse para<strong>do</strong>xo que resi<strong>de</strong><br />
a originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s literaturas africanas e acrescenta que “o olhar crítico<br />
<strong>do</strong>s seus autores tanto visa as instâncias mais eleva<strong>da</strong>s <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, como<br />
também o exercício burocrático, a corrupção <strong>do</strong>s executantes ou ain<strong>da</strong><br />
a corrupção <strong>da</strong> nova burguesia, incentiva<strong>da</strong> e tolera<strong>da</strong> pelos governantes”<br />
(1992: 13). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, este facto (a frustração, a crítica àqueles que<br />
quan<strong>do</strong> obtêm o po<strong>de</strong>r se tornam iguais aos coloniza<strong>do</strong>res) constata-se<br />
em obras como – para referir só algumas – A Parábola <strong>do</strong> Cága<strong>do</strong> Velho;<br />
O Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong>; O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s; A Geração <strong>da</strong> Utopia; Jaime<br />
Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto <strong>de</strong> Pepetela; O Ministro, <strong>de</strong> Uanhenga Xitu; O Último<br />
Voo <strong>do</strong> Flamingo e A Varan<strong>da</strong> <strong>do</strong> Frangipani <strong>de</strong> Mia Couto; Actas <strong>da</strong><br />
Maianga <strong>de</strong> Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho; 1 Morto & Os Vivos, <strong>de</strong> Manuel Rui.<br />
Se em relação à “reivindicação cultural como intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> textual<br />
primeira” po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> três pólos urbanos, nas literaturas africanas<br />
em língua portuguesa – Min<strong>de</strong>lo, Lisboa e Luan<strong>da</strong> –, em relação “à<br />
reivindicação política como intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> textual primeira”, é Luan<strong>da</strong><br />
que toma “a primazia quanto à produção <strong>do</strong>s primeiros textos literários<br />
com uma intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> política <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>” (Venâncio, 1992: 27).<br />
A evolução <strong>do</strong> texto intencionalmente político na literatura angolana<br />
antes <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência, segun<strong>do</strong> José Carlos Venâncio, “tem em Agostinho<br />
Neto, em Luandino Vieira e em Pepetela os impulsos mais marcantes.<br />
Como <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r comum nessa evolução <strong>de</strong>staca-se o messianismo, a<br />
<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma utopia, pela qual tem <strong>de</strong> passar a reivindicação <strong>da</strong> angola-<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
53
54<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
ni<strong>da</strong><strong>de</strong> e por on<strong>de</strong> passa o que a literatura angolana tem <strong>de</strong> mais original<br />
cumprin<strong>do</strong> o contexto <strong>do</strong> realismo africano” (1992: 32).<br />
Dez anos <strong>de</strong>pois, é que essa temática começa a ganhar terreno, nas<br />
outras colónias portuguesas, nomea<strong>da</strong>mente em Moçambique, com José<br />
Craveirinha. É a ele que se <strong>de</strong>ve, na opinião <strong>de</strong> J. C. Venâncio “o poema<br />
<strong>da</strong> literatura africana em língua portuguesa, <strong>de</strong> intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> política,<br />
esteticamente mais consegui<strong>do</strong>. Trata-se <strong>do</strong> «Grito Negro»...” (1992: 36)<br />
Até 1990, a guerra civil, curiosamente, manteve-se periférica na literatura<br />
quer em Moçambique quer em Angola. Este relativo silêncio <strong>da</strong><br />
literatura em relação à guerra civil, constata<strong>do</strong> até aos anos 90, “po<strong>de</strong>rá<br />
reflectir o facto <strong>de</strong> que é ain<strong>da</strong> muito <strong>do</strong>loroso o confronto com as implicações<br />
<strong>do</strong> conflito. Também po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao facto <strong>de</strong> a literatura ter<br />
dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> especial em li<strong>da</strong>r com algumas <strong>da</strong>s mais horrorosas experiências<br />
que o homem teve <strong>de</strong> suportar. Por agora, estes acontecimentos<br />
estão nas mentes <strong>da</strong>s suas vítimas” (Chabal, 1992a: 36).<br />
Só na última déca<strong>da</strong> <strong>do</strong> século XX, o tema passou <strong>da</strong> mente <strong>da</strong>s vítimas<br />
para o papel, assumin<strong>do</strong> centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> em algumas obras. Os argumentos<br />
<strong>de</strong> Patrick Chabal po<strong>de</strong>rão justificar o afastamento <strong>do</strong> tema<br />
<strong>do</strong> texto literário, no entanto, será alheio a tu<strong>do</strong> isto o facto <strong>de</strong> só nos<br />
inícios <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90 se verificarem os primeiros acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> paz (53) ?<br />
Os escritores que, eventualmente, po<strong>de</strong>riam ter senti<strong>do</strong> algum receio em<br />
falar <strong>do</strong> tema em pleno conflito sentir-se-iam agora mais legitima<strong>do</strong>s?<br />
Seriam cúmplices com uma <strong>da</strong>s partes? Ou não será, também, porque a<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90 confirmou a morte <strong>de</strong> um sonho? Nelson Saúte, ao fazer<br />
uma breve análise <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> literatura moçambicana pós-colonial,<br />
no prefácio <strong>da</strong> sua antologia <strong>do</strong> conto moçambicano – As Mãos <strong>do</strong>s Pretos<br />
– fala <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência <strong>da</strong> literatura numa época que<br />
viu morrer o sonho moçambicano: “nos anos noventa muita coisa ou<br />
quase tu<strong>do</strong> ruiu. Sobretu<strong>do</strong> no terreno <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais. Os alicerces <strong>do</strong> projecto<br />
que nos unia estão na base <strong>do</strong>s conflitos que fissuram a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. O<br />
sonho moçambicano ou aquilo que advinha <strong>da</strong> quimera que a revolução<br />
lhe tinha empresta<strong>do</strong> também não resistiu. O aluir <strong>da</strong>s ilusões colectivas<br />
53 Em Angola, os primeiros acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Paz foram assina<strong>do</strong>s em Maio <strong>de</strong> 1991, no Estoril. A guerra<br />
civil durou, no entanto, até ao final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90. Em Moçambique, em 1992, Joaquim Chissano e<br />
Afonso Dhlakama assinam os acor<strong>do</strong>s que põem fim a uma guerra sangrenta <strong>de</strong> quinze anos.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
e colectiviza<strong>do</strong>ras, que rasuravam <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong> as que po<strong>de</strong>riam expressar<br />
no contexto <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que a in<strong>de</strong>pendência instaurara<br />
arrastam-nos para a lama <strong>do</strong> <strong>de</strong>sespero. A literatura – a pouca literatura<br />
que ain<strong>da</strong> se faz – sobrevive neste contexto” (2001: 21).<br />
Se Patrick Chabal referia que ain<strong>da</strong> era ce<strong>do</strong> para saber qual o papel<br />
que estava reserva<strong>do</strong> à guerra civil na literatura, questionan<strong>do</strong> se o texto<br />
literário iria assimilar a experiência ou fazer o seu julgamento, agora<br />
constata-se que a literatura não abdicou <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar a ganância humana<br />
que levou a uma guerra entre irmãos (54) , tornan<strong>do</strong> milhões <strong>de</strong> inocentes<br />
em vítimas <strong>da</strong> loucura humana.<br />
Mia Couto estreia-se no tema <strong>da</strong> corrupção (apesar <strong>de</strong>ste não ser<br />
central, mas sim o tráfico <strong>de</strong> armamento), em 1991 (55) , com A Varan<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
Frangipani. Terra Sonâmbula, primeiro romance, <strong>de</strong> Mia Couto, edita<strong>do</strong><br />
em 1992, tem como tema central a guerra civil moçambicana. Em Angola,<br />
Sousa Jamba focaliza a guerra civil em Patriotas, em 1991, e Pepetela<br />
com O Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong>, em 1995, e Parábola <strong>do</strong> Cága<strong>do</strong> Velho, 1996, inicia<br />
um percurso on<strong>de</strong> a guerra e a corrupção no Esta<strong>do</strong> pós-colonial (56)<br />
marcam presença ain<strong>da</strong> no início <strong>do</strong> século XXI. Ain<strong>da</strong> em 1993, Manuel<br />
Rui, em 1 Morto & Os Vivos, abor<strong>da</strong> o tema <strong>da</strong> corrupção (57) .<br />
servação.<br />
54 Basta ler a Parábola <strong>do</strong> Cága<strong>do</strong> Velho, <strong>de</strong> Pepetela, edita<strong>do</strong> em 1996, para confirmarmos esta ob-<br />
55 Mia Couto faz parte <strong>da</strong> geração <strong>de</strong> escritores moçambicanos que surge nos anos oitenta e que<br />
vê a sua consagração como escritor na déca<strong>da</strong> seguinte. A déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> oitenta “assiste a uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />
explosão <strong>de</strong> talentos, alguns <strong>do</strong>s quais seriam confirma<strong>do</strong>s na déca<strong>da</strong> posterior” (Saúte, 2001: 16). No<br />
entanto, ao contrário <strong>do</strong> que seria <strong>de</strong> esperar, a última déca<strong>da</strong> <strong>do</strong> último milénio é marca<strong>da</strong>, na opinião <strong>de</strong><br />
Nelson Saúte, por um refluxo na literatura. Os escritores <strong>de</strong>têm um papel passivo face ao contexto social,<br />
económico e político em que vivem.<br />
56 Já em O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s, edita<strong>do</strong> em 1985, Pepetela retrata um mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> a corrupção faz<br />
funcionar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. “Ontem chegaram <strong>do</strong>is tractores prometi<strong>do</strong>s... Foram empresta<strong>do</strong>s pelo director<br />
<strong>de</strong> um organismo estatal qualquer, não liguei quan<strong>do</strong> o pai explicou à mãe. Parece que não é coisa legal,<br />
por isso o pai pediu silêncio absoluto sobre o assunto” (63). “Isso não prova na<strong>da</strong>. Eu sei que <strong>do</strong>is mais<br />
<strong>do</strong>is são quatro, pois é a conta que man<strong>do</strong> por semana com os camiões para a can<strong>do</strong>nga. Quatro camiões<br />
carrega<strong>do</strong>s. Dois <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>is <strong>de</strong> comi<strong>da</strong>. E nunca estive na escola” (74). “E quanto à comi<strong>da</strong>, lá<br />
podíamos arranjar-nos, pois o Arnal<strong>do</strong> era director <strong>de</strong> uma empresa estatal. Sempre havia os esquemas<br />
para um director!” (84).<br />
57 Embora não seja central, o assunto inva<strong>de</strong> as páginas <strong>do</strong> livro. É com humor e ironia que ouvimos<br />
<strong>da</strong> voz <strong>do</strong> <strong>de</strong>funto, por exemplo: “filho <strong>de</strong> um comboio <strong>de</strong> putas! É <strong>de</strong>mais. Um corrupto a fazer-me o elogio<br />
fúnebre. Eu conheço a conta bancária <strong>de</strong>le na Suíça. Só por isso renunciaria a ir para o céu. Encontrar<br />
esse cabrão no inferno, que é o lugar <strong>de</strong>le, e enfiar-lhe pela boca a<strong>de</strong>ntro uma acha <strong>de</strong> fogo <strong>de</strong>sabençoa<strong>da</strong><br />
pelo diabo. E vai passar na televisão à minha custa. Ele que se péla to<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> recebe telefonemas <strong>de</strong><br />
rosqueiras a dizerem que o viram na televisão. Este país está <strong>de</strong> rastos” (Rui, 1993: 49).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
55
56<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
As gran<strong>de</strong>s linhas orienta<strong>do</strong>ras <strong>da</strong> produção literária pós-colonial<br />
são, na opinião <strong>de</strong> José Carlos Venâncio três: a reconsi<strong>de</strong>ração <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />
colonial (58) , o impasse ou a vivência parcial <strong>da</strong> utopia face à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> presente e crítica aos <strong>de</strong>svios <strong>da</strong> utopia (59) (1992: 43). Na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não há uma ruptura temática após as in<strong>de</strong>pendências – embora<br />
se procurasse afirmar um novo paradigma literário –, constatan<strong>do</strong>-se<br />
que na produção literária pós-colonial, como bem salienta Ana Maria<br />
Martinho, “a literatura angolana acolheu sem sombra <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s tópicos<br />
<strong>do</strong> pensamento anti-colonial e anti-português, em face <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong><br />
um país renova<strong>do</strong> politicamente e que procurava encontrar paradigmas<br />
literários também novos. E muito embora se refira com insistência o contributo<br />
<strong>do</strong> grupo “Vamos <strong>de</strong>scobrir Angola!” para este processo, cremos<br />
que teve maior durabili<strong>da</strong><strong>de</strong> a filiação oitocentista, não necessariamente<br />
consciente <strong>de</strong> alguns autores” (2001: 163).<br />
A literatura é a arma <strong>do</strong>s que estão inconforma<strong>do</strong>s que tem como alvo<br />
a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> pós-colonial on<strong>de</strong> o fenómeno <strong>da</strong> corrupção é<br />
incontornável. A crítica social, política, esteve, aliás, sempre presente na<br />
literatura africana (60) . Nelson Saúte, escritor e investiga<strong>do</strong>r moçambica-<br />
58 José Carlos Venâncio <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, ain<strong>da</strong>, que a reconsi<strong>de</strong>ração histórica <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> verifica-se em<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturalmente dualistas, como é o caso <strong>de</strong> Angola e Moçambique (1992: 43). E esse passa<strong>do</strong><br />
é muito importante para se compreen<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, pois, como refere Maria Regina<br />
Arouca no prefácio <strong>do</strong> livro O Advoga<strong>do</strong> <strong>de</strong> Inhassunge, <strong>de</strong> Luís Loforte, “Daquele passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> que nunca<br />
po<strong>de</strong>remos abdicar, mesmo que o quiséssemos, se, <strong>de</strong> facto, estamos interessa<strong>do</strong>s em compreen<strong>de</strong>r to<strong>da</strong>s<br />
as facetas <strong>do</strong> tal conceito <strong>de</strong> moçambicani<strong>da</strong><strong>de</strong> que urge <strong>de</strong>finir com alguma clareza, mas sobretu<strong>do</strong>, com<br />
gran<strong>de</strong> honesti<strong>da</strong><strong>de</strong>” (2001:20).<br />
59 Opinião idêntica é partilha<strong>da</strong> por Ana Mafal<strong>da</strong> Leite. Ao referir-se à temática <strong>da</strong> literatura moçambicana<br />
(que cremos ajustar-se, também, à angolana) pós-in<strong>de</strong>pendência escreve ain<strong>da</strong>: “Outros temas<br />
recuperam aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moçambicana no imediatamente pós-in<strong>de</strong>pendência, ridicularizan<strong>do</strong><br />
e critican<strong>do</strong> certos aspectos <strong>da</strong> actuação política. A ambição e a corrupção encontram o seu lugar nestes<br />
cenários” (2003: 90).<br />
60 Ana Maria Martinho advoga, no entanto, que apesar <strong>de</strong> se ter verifica<strong>do</strong> um esforço literário i<strong>de</strong>ológico,<br />
não houve uma efectiva incorporação <strong>de</strong> um discurso partidário (2001: 167). Francisco Soares,<br />
pelo contrário, ao analisar as complexas relações entre Literatura e Política, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a Literatura<br />
Angolana num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento foi um instrumento partidário: “Mas aqui não houve como <strong>da</strong>ntes<br />
(com a Mensagem), uma programação partidária prévia” (2001: 106). A geração <strong>da</strong> Mensagem tinha um<br />
discurso partidário pré-<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, verifica-se a coexistência <strong>de</strong> uma literatura alhea<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
partidária. Francisco Soares exemplifica com o trabalho elabora<strong>do</strong> sobre o amor, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> oitenta,<br />
<strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, em Angola, pela primeira geração pós-in<strong>de</strong>pendência. O divórcio <strong>de</strong>sta geração com a<br />
vi<strong>da</strong> partidária “provocou <strong>de</strong>sconfiança inicialmente na “velha guar<strong>da</strong>” i<strong>de</strong>ológica e estética”. O investiga<strong>do</strong>r<br />
conclui que as relações entre Literatura e Política, po<strong>de</strong>m, assim, mu<strong>da</strong>r, numa mesma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
literária e artística: “po<strong>de</strong>mos assistir, em quarenta anos, à mu<strong>da</strong>nça completa nas relações entre literatu-<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
no, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que “<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial à época <strong>do</strong> pós-in<strong>de</strong>pendência, a<br />
literatura não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um libelo acusatório. Sempre. Através <strong>de</strong>la se<br />
<strong>de</strong>nuncia a intranquili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s muitos que estão inconforma<strong>do</strong>s, mais<br />
<strong>do</strong> que <strong>de</strong>sencanta<strong>do</strong>s diríamos, perante as incongruências que fazem o<br />
nosso <strong>de</strong>vir, individual e colectivo” (2001: 18).<br />
O projecto <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> não foi capaz <strong>de</strong> institucionalizar um Esta<strong>do</strong><br />
transparente e imparcial. Regressaram algumas <strong>da</strong>s características<br />
<strong>da</strong> África pré-colonial que puseram em causa a revolução. O clientelismo,<br />
a economia paralela, são alguns exemplos que invadiram to<strong>da</strong>s as classes.<br />
Por um la<strong>do</strong>, porque a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> não significou uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais<br />
justa,- o povo continuou ca<strong>da</strong> vez mais pobre -, por outro la<strong>do</strong>, levou à<br />
criação <strong>da</strong> classe-Esta<strong>do</strong> preocupa<strong>da</strong> simplesmente no enriquecimento<br />
pessoal, como bem ilustram as palavras <strong>de</strong> Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho:<br />
“Como aconteceu em to<strong>da</strong> a parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que as condições<br />
estruturais, <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e <strong>do</strong> presente, se assemelhavam às nossas,<br />
e para isso não foi tão importante assim que o se preten<strong>de</strong>sse marxista,<br />
liberal ou mesmo explicitamente parlamentar, o que o Esta<strong>do</strong><br />
produziu sobretu<strong>do</strong> foi uma dinâmica capaz <strong>de</strong> garantir a sua própria<br />
reprodução, resultan<strong>do</strong> <strong>da</strong>í a emergência <strong>de</strong> uma classe político-burocrática<br />
particularmente apta a recuperar sistemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência<br />
e <strong>de</strong> clientelismo familiar, <strong>de</strong> parentesco, étnico ou regional, factores<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação susceptíveis <strong>de</strong> servir to<strong>da</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> interesses,<br />
confessáveis ou não, e que, por via <strong>da</strong> sua própria natureza cultural,<br />
foram investi<strong>do</strong>s em processos capazes <strong>de</strong> garantir o acesso a estatutos,<br />
nomea<strong>da</strong>mente económicos e sociais, inalcansáveis por outras<br />
vias. Trata-se <strong>de</strong> matéria em que essa mesma classe se tem revela<strong>do</strong><br />
por to<strong>da</strong> a parte superlativamente eficiente, tenaz, exclusivista e ciosa<br />
<strong>do</strong> seu próprio po<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> seu estatuto <strong>de</strong> privilégio por vezes tão duramente,<br />
em termos <strong>de</strong> abdicação <strong>de</strong> princípios e <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, con-<br />
ra e política, a tal ponto que a literatura veio, sem projecto prévio, antecipar a política e experimentá-la.<br />
Na mesma época, ou seja, nos anos 80 e 90, pu<strong>de</strong>ram coexistir essa última forma <strong>de</strong> relação (criativa)<br />
e a primeira (comprometi<strong>da</strong>). Não po<strong>de</strong>mos então estu<strong>da</strong>r as ligações entre literatura e política se não<br />
reconhecermos que elas são diversas, não só <strong>de</strong> um perío<strong>do</strong> literário para o outro, mas também <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>da</strong> mesma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional” (2001a: 106). Em entrevista recente à revista Espaço África, o escritor<br />
Pepetela, corrobora esta última posição quan<strong>do</strong> afirma: “No passa<strong>do</strong> a nossa literatura estava <strong>de</strong>masia<strong>do</strong><br />
politiza<strong>da</strong> na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> certas posições. Hoje há maior análise <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s problemas <strong>do</strong> que na orientação<br />
política” (2004: 132).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
57
58<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
quista<strong>do</strong>. Também isso, pois, e como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, resultou<br />
espectacularmente entre nós, e subsiste, e joga um papel importante<br />
na cena actual” (1997: 153).<br />
No início <strong>do</strong> século XXI, é to<strong>do</strong> este cenário que começa a ser <strong>de</strong>smascara<strong>do</strong><br />
e posto em causa, procuran<strong>do</strong> os escritores soluções e respostas<br />
para um flagelo – o <strong>da</strong> corrupção – que parece não ter cura!<br />
Obras como Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, <strong>de</strong> Pepetela, e O Último Voo <strong>do</strong><br />
Flamingo, <strong>de</strong> Mia Couto, são neste campo paradigmáticas. Importante<br />
era questionar quem as lê e qual o impacto que têm nesses leitores. Será<br />
que o analfabetismo pre<strong>do</strong>minante impe<strong>de</strong> que elas cumpram a função<br />
para que, claramente, parecem ter si<strong>do</strong> cria<strong>da</strong>s? Será que não passam <strong>de</strong><br />
mais uma cartilha <strong>de</strong> intenções que ninguém observa? Em países on<strong>de</strong><br />
a sobrevivência quotidiana ain<strong>da</strong> é uma batalha ain<strong>da</strong> parece ser esse<br />
o seu <strong>de</strong>stino fatal. Da<strong>do</strong> que o mun<strong>do</strong> sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> não tem capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
financeira para adquirir bens culturais, a literatura, sobretu<strong>do</strong> o<br />
romance torna-se num produto <strong>de</strong> exportação. Os agentes culturais e<br />
escritores tentam ir ao encontro <strong>do</strong> gosto imposto pelo merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s país<br />
mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, com mais po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> aquisição. “Entre os cria<strong>do</strong>res<br />
culturais que assim proce<strong>de</strong>m encontram-se a par <strong>do</strong>s pintores e <strong>do</strong>s músicos<br />
e eventualmente <strong>do</strong>s produtores <strong>de</strong> artesanato, os romancistas. De<br />
tal forma este processo se tem aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> que não será seguramente<br />
exagero afirmar que hoje, neste mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> ou que se preten<strong>de</strong><br />
como tal, entre os bens (para não dizer merca<strong>do</strong>rias) exportáveis <strong>do</strong> Terceiro<br />
Mun<strong>do</strong>, os culturais (a música, a pintura, a pintura, o artesanato<br />
e o romance) ocupam um lugar significativo, se não mesmo <strong>de</strong> honra<br />
nalguns casos” (Venâncio, 1999a: 194 e 1999b: 94).<br />
2.1. O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo<br />
Pela voz <strong>de</strong> um tradutor/narra<strong>do</strong>r acutilante, conhecemos uma <strong>da</strong>s<br />
forças motrizes presente na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> moçambicana <strong>do</strong> pós-guerra. Ao<br />
longo <strong>de</strong> O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo (61) , <strong>de</strong> Mia Couto, <strong>de</strong>sfilam sob nossos<br />
61 To<strong>da</strong>s as referências à obra remetem para a 2.ª edição, Editorial Caminho, 2000.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
olhos “os negócios <strong>da</strong> guerra ou guerra <strong>do</strong>s negócios”, ou seja, a ganância<br />
humana, num tempo que se <strong>de</strong>sejava <strong>de</strong> paz: “Estávamos nos primeiros<br />
anos <strong>do</strong> pós-guerra e tu<strong>do</strong> parecia correr bem” (12). Mas sucessivas<br />
explosões <strong>de</strong> capacetes azuis fazem revelar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
E será que no início <strong>do</strong> século XXI ain<strong>da</strong> existem sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> Paz?<br />
Será a própria Paz <strong>de</strong>sinteressa<strong>da</strong>?<br />
2.1.1. O tradutor: um narra<strong>do</strong>r incriminatório<br />
“Coloquei tu<strong>do</strong> no papel<br />
por man<strong>do</strong> <strong>de</strong> minha consciência.”<br />
— (O tradutor <strong>de</strong> Tizangara, 11).<br />
To<strong>da</strong> a história vai ser conduzi<strong>da</strong> por um tradutor (que se apresenta<br />
logo no início <strong>do</strong> romance), que vai privilegiar a narração, o diálogo e<br />
o discurso indirecto livre. O intérprete introduz o discurso no pretérito<br />
perfeito, na primeira pessoa <strong>do</strong> singular: “Fui eu que transcrevi em português<br />
visível as falas que aqui se falam”. Acrescenta ain<strong>da</strong> o facto <strong>de</strong><br />
ter “presencia<strong>do</strong> tais sucedências”, indican<strong>do</strong> tratar-se <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r<br />
homodiegético. O narra<strong>do</strong>r informa, assim, que testemunhou os factos,<br />
tornan<strong>do</strong> mais real a ficção que se vai seguir. É, numa linguagem jurídica,<br />
uma testemunha ocular.<br />
A acção parte <strong>do</strong> inespera<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter “apareci<strong>do</strong> um pénis <strong>de</strong>cepa<strong>do</strong><br />
em plena estra<strong>da</strong> nacional”, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> mais tar<strong>de</strong> como sen<strong>do</strong> pertença<br />
<strong>de</strong> um capacete azul (Sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> Paz <strong>da</strong> ONU, também alcunha<strong>do</strong>s<br />
– diria Mia Couto – pela população local <strong>de</strong> gafanhotos (62) ). A explosão<br />
<strong>do</strong>s capacetes azuis constituiu o mote para a <strong>de</strong>núncia e para o <strong>de</strong>sfile<br />
<strong>de</strong> críticas torna<strong>da</strong>s públicas pelo tradutor, que em nome <strong>da</strong> consciência<br />
<strong>de</strong>cidiu registar tu<strong>do</strong> no papel.<br />
62 O valor simbólico <strong>do</strong> nome <strong>de</strong> gafanhoto é muito gran<strong>de</strong>. Como se sabe, esta espécie está associa<strong>da</strong><br />
à <strong>de</strong>struição. Muitas vezes, são eles próprios as causas <strong>da</strong> <strong>de</strong>struição (pragas), outras tantas são<br />
apanha<strong>do</strong>s pela própria <strong>de</strong>struição (vítimas). Em termos fisiológicos propiciam também duas imagens<br />
interessantes. Tal como os capacetes azuis, estão sempre a saltar <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> para o outro e têm uma<br />
espécie <strong>de</strong> carapaça que bem po<strong>de</strong> ser associa<strong>da</strong> a um capacete (provavelmente, sem ficar/resolver na<strong>da</strong><br />
em la<strong>do</strong> algum).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
59
60<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Para trás, fica a questão: será que os Sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> Paz foram mortos<br />
ou morreram? A utilização <strong>da</strong> voz passiva ou activa não é ingénua, pois,<br />
a opção por uma, ou por outra, seria <strong>de</strong> extrema importância. Assim,<br />
com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o leitor excluir a voz passiva, po<strong>de</strong>rá levar a questionar,<br />
ou mesmo a afirmar, que no final <strong>do</strong> século XX, inícios <strong>do</strong> século<br />
XXI, já não existem sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> paz. Isto é, já não haverá ninguém a<br />
quem a paz interesse ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente (será que alguma vez houve?),<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> que a guerra ren<strong>de</strong> muito mais?<br />
Centremo-nos, então, no nosso tradutor que alerta para o mistério<br />
que percorre as páginas <strong>do</strong> romance e avisa o leitor para não tentar<br />
compreen<strong>de</strong>r o que não tem entendimento: “Em Tizangara na<strong>da</strong> necessita<br />
<strong>de</strong> entendimento (63) ”.<br />
Temos um narra<strong>do</strong>r autocrítico, atento a to<strong>da</strong>s as circunstâncias que<br />
envolvem a intriga, preocupa<strong>do</strong> com a imagem que os seus conterrâneos<br />
teriam <strong>de</strong>le, ao estar ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, ao ter si<strong>do</strong> nomea<strong>do</strong> tradutor<br />
(remeten<strong>do</strong> para uma imagem negativa, pejorativa, <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r junto <strong>do</strong><br />
povo): “Uns se admiravam <strong>de</strong> me ver ali, entre os notáveis. Passara eu a<br />
partilhar <strong>da</strong> panela <strong>do</strong>s graú<strong>do</strong>s, a beneficiar <strong>do</strong> fogão <strong>de</strong>les?” (27).<br />
O senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor é também uma <strong>da</strong>s suas características, quan<strong>do</strong><br />
faz observações acerca <strong>da</strong>s personagens, em algumas metáforas utiliza<strong>da</strong>s,<br />
nas comparações (<strong>de</strong>stacam-se quase sempre as comparações entre<br />
o comportamento humano e o comportamento animal – por exemplo,<br />
feroz, quan<strong>do</strong> compara os governantes às hienas, no último capítulo).<br />
A par <strong>de</strong>stes recursos estilísticos são persistentes as interrogações retóricas.<br />
É, ain<strong>da</strong>, cúmplice com as suas personagens, em variadíssimas<br />
situações: com Massimo Risi quan<strong>do</strong> “conhece” Temporina; com o recepcionista<br />
<strong>da</strong> pensão, ou melhor, com as tradições, com o sobrenatural,<br />
pois, nunca ousa <strong>de</strong>smentir as afirmações/os saberes <strong>da</strong>quele. Mas<br />
63 Esta afirmação remete para as palavras <strong>de</strong> Lévi-Strauss que consi<strong>de</strong>ra que o pensamento <strong>do</strong>s povos<br />
sem escrita é diferente <strong>do</strong>s povos com escrita, porque “a sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong> é atingir, pelos meios mais<br />
diminutos e económicos, uma compreensão geral <strong>do</strong> Universo – e não só geral mas sim total” (apud Leite,<br />
2003). Ana Mafal<strong>da</strong> Leite conclui que se trata <strong>de</strong> “um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensar que parte <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> que se<br />
não se compreen<strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, não se po<strong>de</strong> explicar coisa alguma” (2003: 47). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, esse é o alerta efectua<strong>do</strong><br />
pelo narra<strong>do</strong>r / tradutor. Não vale a pena tentar compreen<strong>de</strong>r o que a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> não consegue<br />
explicar. E há coisas misteriosas que simplesmente acontecem. Curioso, o primeiro capítulo, intitula<strong>do</strong><br />
“Um sexo avulta<strong>do</strong> e avulso”, tem cola<strong>do</strong> a si um dito <strong>de</strong> Tizangara muito significativo: O mun<strong>do</strong> não é o<br />
que existe, mas o que acontece.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
nunca cúmplice quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>smascarar a corrupção, <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
testemunho <strong>do</strong> que presenciou entre Ana Deusqueira e Estêvão Jonas,<br />
no capítulo XIX, no qual é <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>do</strong>, ou melhor, confirma<strong>do</strong> quem é<br />
o autor <strong>do</strong>s crimes.<br />
O estatuto <strong>de</strong>ste narra<strong>do</strong>r homodiegético, omnisciente quanto à focalização,<br />
permite-lhe ser selectivo na informação forneci<strong>da</strong>, bem como<br />
efectuar juízos <strong>de</strong> valor, ten<strong>de</strong>ntes a constituir uma i<strong>de</strong>ologia. “Precauteloso,<br />
disso eu mantinha minhas dúvi<strong>da</strong>s. Os novos chefes pareciam<br />
pouco importa<strong>do</strong>s com a sorte <strong>do</strong>s outros... Mas na minha vila, havia<br />
agora tanta injustiça quan<strong>do</strong> no tempo colonial. Parecia <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong><br />
que esse tempo não terminara. Estava era sen<strong>do</strong> geri<strong>do</strong> por pessoas <strong>de</strong><br />
outra raça... A inveja era o seu maior man<strong>da</strong>mento. Mas a terra é um<br />
ser: carece <strong>de</strong> família, <strong>de</strong>sse tear <strong>de</strong> entreexistências a que chamamos<br />
ternura” (114). “Me retirei para a solidão <strong>do</strong> meu aposento. Fiquei um<br />
tempo acor<strong>da</strong><strong>do</strong> pensan<strong>do</strong> na presença <strong>de</strong>sse italiano. Porquê o nosso<br />
país carecia <strong>de</strong> inspectores <strong>de</strong> fora? O que tanto nos <strong>de</strong>sacreditara aos<br />
olhos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>?”. Um narra<strong>do</strong>r omnisciente, porque <strong>de</strong>mostra uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
ilimita<strong>da</strong> <strong>de</strong> transmitir informações, quer acerca <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
quer acerca <strong>da</strong>s personagens, entran<strong>do</strong> nas consciências <strong>de</strong>stas,<br />
sentin<strong>do</strong> as suas próprias emoções. Não obstante a existência <strong>de</strong> imensos<br />
exemplos para provar esta afirmação e <strong>de</strong> até haver alguns mais eluci<strong>da</strong>tivos,<br />
escolhemos o seguinte por se tratar <strong>de</strong> um momento, em bom<br />
rigor, que seria íntimo e por se tratar, ain<strong>da</strong>, <strong>de</strong> um sonho: “No sonho, o<br />
italiano fez amor com ela. Massimo Risi nunca tinha experimenta<strong>do</strong> tão<br />
gostosas carícias. Ele ro<strong>do</strong>u e rero<strong>do</strong>u nos lençóis, gemen<strong>do</strong> alto, esfregan<strong>do</strong>-se<br />
na almofa<strong>da</strong>”. E com uma certa ironia remata “Se era pesa<strong>de</strong>lo,<br />
ele muito se divertia”. Os próprios sentimentos e <strong>de</strong>sabafos <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
são <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s: “há bichos que vivem na cova e só saem <strong>da</strong> terra para<br />
morrer. Eu queria ser um <strong>de</strong>les. Sem luz, sem calendário solar. Sombra<strong>do</strong><br />
o tempo to<strong>do</strong>, boca e olhos encerra<strong>do</strong>s a poeiras. Quan<strong>do</strong> transitasse<br />
para além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eu já saberia morar <strong>de</strong>sse outro la<strong>do</strong>” (131); “Ele me<br />
olhou, parecen<strong>do</strong> me ler por <strong>de</strong>ntro, adivinhan<strong>do</strong> meus receios” (224).<br />
No capítulo IV, conta a sua história a Massimo Risi, que não a ouviu com<br />
atenção!, sen<strong>do</strong> neste capítulo um narra<strong>do</strong>r indubitavelmente autodiegético.<br />
Recor<strong>de</strong>-se que é <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r a história/len<strong>da</strong> <strong>do</strong>s fla-<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
61
62<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
mingos, e é precisamente o último voo <strong>do</strong> flamingo (64) a esperança para<br />
a reconstituição <strong>de</strong> um país.<br />
Não será, talvez, ousa<strong>do</strong> afirmar que ao longo <strong>do</strong> romance temos<br />
um narra<strong>do</strong>r homodiegético, que em alguns capítulos se coloca na pele<br />
<strong>de</strong> um autodiegético, porque, aí, o tradutor passa a ser a personagem<br />
principal. Arriscaríamos, ain<strong>da</strong>, adiantar que o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ste romance<br />
é exclusivamente autodiegético. Afinal, a história/acção <strong>de</strong>senrola-se<br />
à volta <strong>de</strong>sta personagem, que constitui o elo <strong>de</strong> ligação entre o<br />
nacional e o estrangeiro, e só é narra<strong>da</strong> graças à sobrevivência <strong>de</strong>ste.<br />
O tradutor é o único sobrevivente <strong>de</strong> um país que ficou sem terra, que<br />
está suspenso no ar, constituin<strong>do</strong> também, pese embora o facto <strong>de</strong> ser<br />
um estranho para os seus antepassa<strong>do</strong>s (pois não o reconheceram),<br />
um símbolo <strong>de</strong> esperança.<br />
“Ain<strong>da</strong> assim, me <strong>de</strong>ixei quieto, senta<strong>do</strong>.<br />
Na espera <strong>de</strong> um outro tempo.” (225)<br />
64 A escolha <strong>do</strong> flamingo não será ingénua, tanto mais que o autor é biólogo <strong>de</strong> formação. É uma ave<br />
pernalta, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, <strong>de</strong> plumagem geralmente rosa<strong>da</strong> nos adultos. Aliás, no romance é constante a<br />
comparação entre o comportamento humano e o comportamento animal. A ausência <strong>de</strong> valores morais<br />
e éticos, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ven<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma por dinheiro, o aumento <strong>da</strong> corrupção, reduziram o<br />
Homem a animal. Daí, a figuração animal <strong>da</strong>s personagens, constituin<strong>do</strong> a alegoria <strong>da</strong> pre<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> país.<br />
Exemplos: Sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> Paz: gafanhotos; Coloniza<strong>do</strong>res: leões; Estevão Jonas (novos-ricos): hienas; uma<br />
mulher escamosa: o epíteto remete para um peixe (curiosamente um peixe na terra, fora <strong>do</strong> seu habitat<br />
natural, o que suce<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente com a personagem que está “fora <strong>de</strong> tempo”). São também inúmeras<br />
expressões como as seguintes: “O passarinho na boca <strong>do</strong> crocodilo”, “O burro, na companhia <strong>do</strong><br />
leão, já não cumprimenta o cavalo”, “cabrito come on<strong>de</strong> está agarra<strong>do</strong>”, <strong>de</strong> que o narra<strong>do</strong>r se serve para<br />
caracterizar comportamentos humanos. Esta analogia não é nova. Já no século XVII, Padre António Vieira<br />
no seu famoso Sermão <strong>de</strong> Santo António aos Peixes, compara o comportamento humano ao animal. Curiosamente,<br />
num <strong>do</strong>s contos <strong>do</strong> seu mais recente livro (O Fio <strong>da</strong>s Missangas ), Mia Couto através <strong>de</strong> uma<br />
<strong>da</strong>s personagens apresente uma tese inversa: os animais é que adquiriram os <strong>de</strong>feitos humanos. “Pois,<br />
Jossinal<strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrira que havia si<strong>do</strong> o inverso: um certo peixe havia prega<strong>do</strong> aos homens e lhes espalhara<br />
a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as in<strong>de</strong>corosas ganâncias que eram <strong>da</strong> exclusiva<br />
competência humana. Adjectivavam a peixaria: os man<strong>da</strong>ntes <strong>do</strong> crime são chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> «tubarões». Os<br />
po<strong>de</strong>rosos <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência são «peixe graú<strong>do</strong>». Os po<strong>de</strong>rosos executantes são o «peixe miú<strong>do</strong>». E afinal,<br />
on<strong>de</strong> não há crime é lá <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s águas, lá é que há a tal <strong>de</strong> propala<strong>da</strong> transparência. Pois, quem pregava<br />
o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe <strong>do</strong> lago. Era ele o sermonista” (2004: 98).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
2.1.2. A corrupção em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo<br />
“Mas <strong>de</strong>pois, complicaram-me com essas manias<br />
<strong>de</strong> corrupção e acabei <strong>de</strong>volven<strong>do</strong> a ambulância.”<br />
(Estêvão Jonas, cap.VIII, 97)<br />
Em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, Mia Couto retrata a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> moçambicana<br />
pós-guerra civil. Uma guerra que durou 15 anos, “causan<strong>do</strong> quatro<br />
milhões <strong>de</strong> mortos e quatro milhões <strong>de</strong> refugia<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>s (65) ”<br />
(En<strong>de</strong>rs, 1994: 120). O tempo <strong>da</strong> acção são os anos imediatamente a<br />
seguir aos acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> paz em 1992. Os anos <strong>da</strong> tentativa <strong>da</strong> reconstrução<br />
<strong>de</strong> um país.<br />
A classe política dirigente aparece logo no primeiro capítulo caracteriza<strong>da</strong><br />
como corrupta. Uma primeira <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
emerge nas figuras <strong>de</strong> Estêvão Jonas, o administra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Tizangara, e<br />
Dona Ermelin<strong>da</strong>, sua esposa. “O administra<strong>do</strong>r Jonas tinha <strong>de</strong>svia<strong>do</strong> o<br />
gera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> hospital para os seus mais priva<strong>do</strong>s serviços. Dona Ermelin<strong>da</strong><br />
sua esposa tinha vaza<strong>do</strong> os equipamentos <strong>da</strong>s enfermarias...”. Um acto<br />
<strong>de</strong>sculpável pelo próprio administra<strong>do</strong>r com a frase: “cabrito come on<strong>de</strong><br />
está agarra<strong>do</strong>” (20). À luz <strong>do</strong> Direito Penal estão aqui <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s os<br />
primeiros crimes: crime <strong>de</strong> peculato e <strong>de</strong> abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
Estêvão Jonas, o <strong>de</strong>tentor <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, simboliza a nova governação <strong>do</strong><br />
país. Uma governação que não é imune à corrupção e que, bem pelo contrário,<br />
a fomenta, crian<strong>do</strong> uma economia paralela, informal, subversiva,<br />
e que exerce o tráfico <strong>de</strong> influências. “Estou agora a pedir a uns sul-africanos<br />
que querem instalar-se aqui para me <strong>da</strong>rem uma nova viatura. Eles<br />
entregam, eu facilito”. É o próprio que se <strong>de</strong>nuncia no segun<strong>do</strong> relatório<br />
envia<strong>do</strong> ao ministro responsável, on<strong>de</strong> mais uma vez se torna claro o tráfico<br />
<strong>de</strong> influências: “Parece que agora já não <strong>de</strong>ixam embarcar cabrito no<br />
avião. To<strong>da</strong>via para os dirigentes sempre se abre uma excepção” ( 95).<br />
Estêvão Jonas representa um esta<strong>do</strong> centralista, personaliza<strong>do</strong>,<br />
arbitrário, que não se institucionalizou com um projecto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>r-<br />
65 Num país que tem cerca <strong>de</strong> 19 milhões <strong>de</strong> habitantes, este <strong>da</strong><strong>do</strong> é preocupante e ao mesmo tempo<br />
revela as dimensões <strong>da</strong> catástrofe. Quase 20% <strong>da</strong> população <strong>de</strong>sapareceu com a guerra. O que para além<br />
<strong>da</strong> consequente per<strong>da</strong> <strong>do</strong> sistema produtivo é uma tragédia humana. Tanto mais que, para além <strong>da</strong>s vítimas,<br />
haverá por certo reflexos no seio <strong>do</strong>s sobreviventes.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
63
64<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
ni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Um Esta<strong>do</strong> que serve para enriquecer o político, o qual tem<br />
legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> para o fazer <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que saiba redistribuir pelos seus<br />
clientes. O conceito <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser encara<strong>do</strong> à luz <strong>da</strong><br />
cultura oci<strong>de</strong>ntal. Um governante, um chefe <strong>de</strong> parti<strong>do</strong> “est en realité<br />
un chef traditionel qui a l’obligation <strong>de</strong> prendre en charge ses «militants»<br />
qui atten<strong>de</strong>nt <strong>de</strong> lui satisfactions matérielles et protection... Pour avoir<br />
l’appui <strong>de</strong>s membres <strong>de</strong> son groupe ethnique le chef du parti est amené à<br />
satisfaire leurs besoins matériels: wisky, allumettes, sel, poisson séche (66) ”<br />
(Mappa, 1998: 171).<br />
Apesar <strong>de</strong> ter oficialmente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a i<strong>de</strong>ologia marxista, o Esta<strong>do</strong><br />
continua presente nos pontos nevrálgicos <strong>do</strong> sistema económicofinanceiro,<br />
asfixian<strong>do</strong> qualquer hipótese <strong>de</strong> uma iniciativa priva<strong>da</strong> forte<br />
e empreen<strong>de</strong><strong>do</strong>ra, enre<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-a numa teia burocrática asfixiante: “– A<br />
pensão é priva<strong>da</strong>, mas é <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>. Isto é, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (67) . E explicou: nacionalizaram,<br />
<strong>de</strong>pois ven<strong>de</strong>ram, retiraram a licença. Voltaram a ven<strong>de</strong>r.<br />
E outra vez: anularam a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> e, naquele preciso momento, se o<br />
estrangeiro assim o <strong>de</strong>sejasse, o hoteleiro até podia facilitar as papela<strong>da</strong>s<br />
para a nova aquisição. Falasse com o administra<strong>do</strong>r Jonas, que tinha<br />
man<strong>do</strong>s no negócio” (39).<br />
Nota-se também um certo <strong>de</strong>scontentamento <strong>da</strong> classe dirigente<br />
que, embora reconhecen<strong>do</strong> os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> – “fomos socialistas aldrabões”<br />
–, autocriticam-se agora <strong>de</strong> “capitalistas aldraba<strong>do</strong>s”. No en-<br />
66 Na obra O Ministro, <strong>de</strong> Uanhenga Xitu, isto é inquestionável. O ministro tem <strong>de</strong> alimentar os familiares<br />
e amigos. Caso contrário, não é reconheci<strong>do</strong> como ministro e mesmo que seja honesto é igualmente<br />
corrupto. “Perdão, ex-ministro, porque foi <strong>de</strong>miti<strong>do</strong> esta noite. Amanhã a perna <strong>de</strong> boi. Rouba como os<br />
outros... Estávamos à espera que fosses nomea<strong>do</strong> ministro <strong>do</strong> comércio interno (comi<strong>da</strong> buée), ou ministro<br />
<strong>do</strong>s carros (bolas, hoje teria <strong>do</strong>is camiões, <strong>do</strong>is turismos para a can<strong>do</strong>nga, ou ministro <strong>da</strong> agricultura,<br />
para ter comi<strong>da</strong> a granel, ou ministro <strong>da</strong>s pescas, vendia barcos no Zaire com peixe seco, rico, rico ficava,<br />
ó Maria!) ...Vamos voltar para o óbito e quan<strong>do</strong> chegar vou gritar e chorar o velho Van-Dunem <strong>de</strong> que<br />
estás <strong>de</strong>miti<strong>do</strong> por ignorância <strong>do</strong> cargo e não saber roubar; perdão, os ministros não roubam, tiram por<br />
inerência <strong>do</strong> cargo” (113).<br />
67 O regime monopartidário nasci<strong>do</strong> após a in<strong>de</strong>pendência fez com que o Esta<strong>do</strong> se confundisse<br />
com o Parti<strong>do</strong>. A crise africana é, sobretu<strong>do</strong>, uma crise estatal. O Esta<strong>do</strong> nunca se diferenciou estruturalmente<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong>í não se ter institucionaliza<strong>do</strong>. A crise <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> está a ser explora<strong>da</strong><br />
pelos <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Chabal e Daloz questionam: “pois, por que haveriam, as elites africanas, <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>smantelar um sistema político, que lhes resulta tão útil?” (40-41). Para eles, o Esta<strong>do</strong> fracassou porque<br />
não conseguiu tornar-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, nem emancipar-se <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que limitou as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> uma “boa governação”. Defen<strong>de</strong>m que a centralização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r é, portanto, uma condição necessária,<br />
mas não suficiente para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno, cujo atributo fun<strong>da</strong>mental é a emancipação<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
tanto, essa classe dirigente aproveitou a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> paradigma político,<br />
quer em Moçambique quer em Angola.<br />
A passagem <strong>do</strong> socialismo ao capitalismo foi utiliza<strong>da</strong> e instrumentaliza<strong>da</strong><br />
pelos actores políticos. Outrora marxistas convictos, foram-se<br />
aperceben<strong>do</strong> <strong>da</strong>s novas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s proporciona<strong>da</strong>s pelo novo arquétipo.<br />
Se já a anterior conjuntura tinha proporciona<strong>do</strong> a acumulação <strong>de</strong><br />
riqueza e <strong>de</strong> prestígio e possibilita<strong>do</strong> a colocação <strong>da</strong>s premissas para o<br />
enriquecimento <strong>da</strong> classe política <strong>de</strong>tentora <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>da</strong> sua clientela,<br />
agora o novo contexto político era mais propício ao excesso. Arlin<strong>do</strong><br />
Barbeitos critica ferozmente aqueles que mu<strong>da</strong>ram <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia para<br />
simples proveito pessoal. Não está em causa uma mutação consciente<br />
<strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais políticos, o reconhecimento <strong>do</strong> fracasso prático <strong>do</strong> marxismo<br />
mas uma oportunística e <strong>de</strong>spu<strong>do</strong>ra<strong>da</strong> utilização <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ologias emergentes<br />
para legitimar condutas ilícitas (68) . “Nesta an<strong>da</strong>nça, bastantes <strong>do</strong>s<br />
que apregoavam as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>do</strong> Marxismo <strong>de</strong> estilo soviético, <strong>de</strong>pressa<br />
invocavam sem pejo as virtu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> liberalismo que, <strong>de</strong> facto, os libertava<br />
<strong>da</strong>s responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s assumi<strong>da</strong>s pela <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A prevaricação<br />
até se achava premia<strong>da</strong>, pois mesmo o discurso e a prática oficiais e<br />
oficiosas incentivavam a iniciativa priva<strong>da</strong>, que agora condizia com os<br />
seus intentos. Se o esboroamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>da</strong> economia “socialista”,<br />
a “informalização” <strong>da</strong> nova e o enfraquecimento <strong>da</strong>s instituições convinham<br />
a um importante estrato social que já havia amontoa<strong>do</strong> capital e<br />
man<strong>do</strong> ou influência ansia<strong>do</strong>s, ele tangia to<strong>do</strong>s aqueles que a contingência<br />
transmu<strong>da</strong>ra em gente não rapi<strong>da</strong>mente rentável ou antes monetarizável”<br />
(2003: 23 e ss).<br />
Nem o socialismo esquemático nem a conversão ao capitalismo selvagem<br />
vieram, afinal, resolver os problemas. Os efeitos <strong>da</strong> globalização económica,<br />
a actuação pre<strong>da</strong>tória <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s multinacionais, as exigências<br />
68 Bem ilustrativa <strong>de</strong>sta reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a personagem Xavier Ramos <strong>do</strong> romance Patriotas, <strong>de</strong> Sousa<br />
Jamba. A própria personagem que tinha si<strong>do</strong> marxista convicto tornou-se num capitalista fun<strong>da</strong>mentalista,<br />
argumentan<strong>do</strong> que primeiro é preciso obter dinheiro para redistribuir. Assim, justifica o negócio ilegal<br />
que vai <strong>de</strong>senvolver o tráfico <strong>de</strong> diamantes. “Mas <strong>de</strong>sviámo-nos <strong>do</strong> motivo que me trouxe aqui – os feijões.<br />
Po<strong>de</strong>s suar e até morrer pelo país com este parti<strong>do</strong>, e mesmo assim nunca serás recompensa<strong>do</strong>, para além<br />
<strong>de</strong> seres menciona<strong>do</strong> <strong>de</strong> passagem num discurso político. Mas se tiveres dólares americanos terás o teu<br />
futuro assegura<strong>do</strong>” (274). A convicção i<strong>de</strong>ológica não passa mesmo <strong>de</strong> um argumento para atingir objectivos<br />
pessoais, Xavier Ramos diz mesmo que to<strong>do</strong>s são iguais mesmo os marxistas que “bebem champagne<br />
e comem caviar ao pequeno almoço” (274).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
65
66<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> FMI e os projectos <strong>de</strong> cooperação são uma espécie <strong>de</strong> neocolonialismo,<br />
que transformou as dúvi<strong>da</strong>s em dívi<strong>da</strong>s. Afinal, “o colonialismo não morreu<br />
com as in<strong>de</strong>pendências”. O escritor Mia Couto, numa crónica recentemente<br />
publica<strong>da</strong> na revista Espaço África, acrescenta que o colonialismo<br />
“Mu<strong>do</strong>u <strong>de</strong> turno e <strong>de</strong> executores. O actual colonialismo dispensa colonos<br />
e tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só não se naturalizou<br />
como passou a ser co-geri<strong>do</strong> numa parceria entre ex-coloniza<strong>do</strong>res e excoloniza<strong>do</strong>s”<br />
(Couto, 2003: 99). O escritor moçambicano afirma ain<strong>da</strong><br />
que “o passa<strong>do</strong> foi mal embala<strong>do</strong> e chega-nos <strong>de</strong>forma<strong>do</strong> carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
mitos e preconceitos. O presente vem vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> roupa empresta<strong>da</strong>. E o<br />
futuro foi encomen<strong>da</strong><strong>do</strong> por interesses que nos são alheios” (2003: 97).<br />
Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, os projectos <strong>de</strong> cooperação não são <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s (69) ,<br />
exigin<strong>do</strong> sempre contraparti<strong>da</strong>s: “O seu governo está a receber muito.<br />
Agora são vocês a <strong>da</strong>r qualquer coisa em troca” (<strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>da</strong>s Nações<br />
Uni<strong>da</strong>s, 32). Os recursos não são só <strong>de</strong>lapi<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo egoísmo <strong>do</strong>s dirigentes<br />
<strong>do</strong>s países beneficiários. O mal tem raízes mais profun<strong>da</strong>s e<br />
globais. Também no oci<strong>de</strong>nte germinam as suas sementes <strong>da</strong>ninhas.<br />
Muitos fun<strong>do</strong>s ficam pelo caminho, olean<strong>do</strong> uma máquina autofágica,<br />
sem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente cumprirem o fim a que se <strong>de</strong>stinam. De um la<strong>do</strong> e<br />
<strong>do</strong> outro são muitos os oportunistas os pre<strong>da</strong><strong>do</strong>res.<br />
Incapazes <strong>de</strong> resolver problemas <strong>de</strong> outra forma, os governos tornam-se<br />
pedintes profissionais, “num país <strong>de</strong> pedintes, é preciso arregaçar<br />
as feri<strong>da</strong>s, colocar à mostra os ossos salientes <strong>do</strong>s meninos. Foram<br />
essas palavras <strong>do</strong> seu discurso, até apontei no meu ca<strong>de</strong>rno manual. Essa<br />
é actual palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m: juntar os <strong>de</strong>stroços, facilitar visão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sastre.<br />
Estrangeiro <strong>de</strong> fora ou <strong>da</strong> capital <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r apreciar to<strong>da</strong> aquela<br />
coita<strong>de</strong>za, sem <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong>s suores. É por isso que os refugia<strong>do</strong>s<br />
vivem há meses acampa<strong>do</strong>s nas re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas <strong>da</strong> administração, <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
ares <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sgraça” (Estêvão Jonas, 77).<br />
Importava, pois, prolongar os projectos, à semelhança <strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sminagem,<br />
que consistia numa mina <strong>de</strong> ouro para quem coman<strong>da</strong>va<br />
que “engor<strong>da</strong>vam a espelhos vistos”. É o padre Muhan<strong>do</strong> quem explica:<br />
“Parte <strong>da</strong>s minas que se retiravam regressava, <strong>de</strong>pois ao mesmo chão.<br />
69 Neste senti<strong>do</strong> ver Venâncio (2000).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Em Tizangara tu<strong>do</strong> se misturava: a guerra <strong>do</strong>s negócios e os negócios <strong>da</strong><br />
guerra. No final <strong>da</strong> guerra restavam minas, sim. Umas tantas. To<strong>da</strong>via,<br />
não era coisa que fizesse prolongar tanto os projectos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sminagem.<br />
O dinheiro <strong>de</strong>svia<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses projectos era uma fonte <strong>de</strong> receita que os<br />
senhores locais não podiam dispensar. Foi o entea<strong>do</strong> <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r<br />
quem urdiu a i<strong>de</strong>ia: e se aldrabassem os números, inventassem infindáveis<br />
ameaças? Valia a pena. Plantavam-se e <strong>de</strong>splantavam-se minas.<br />
Umas mortes à mistura até calhavam, para <strong>da</strong>r mais crédito ao plano.<br />
Mas era gente anónima, no interior <strong>de</strong> uma nação africana que mal sustenta<br />
o seu nome no mun<strong>do</strong>”. O problema foi os capacetes azuis terem<br />
também explodi<strong>do</strong>. “O feitiço <strong>do</strong>s estrontea<strong>do</strong>s prejudicou a trapaça.<br />
Se atraíram atenções in<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s minas pedia provas <strong>de</strong><br />
sangue. Mas sangue nacional. Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> hemorragias transfronteiriças”<br />
(200). To<strong>da</strong> a trapaça é revela<strong>da</strong> pelo padre, uma personagem incómo<strong>da</strong><br />
para o regime, simbolizan<strong>do</strong> a Igreja. Esta instituição que tem ti<strong>do</strong>,<br />
em alguns casos (Timor, por exemplo), um papel prepon<strong>de</strong>rante na salvaguar<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong>s direitos humanos, na <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong>s injustiças (70) , mas na<br />
maior parte <strong>da</strong>s vezes é silencia<strong>da</strong> pelo regime. A instrumentalização<br />
<strong>da</strong> Aju<strong>da</strong> Internacional é, assim, <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>, insinuan<strong>do</strong> que os governantes<br />
africanos são simples mendigos profissionais. Existe um merca<strong>do</strong><br />
internacional <strong>de</strong> aju<strong>da</strong> que os africanos sabem aproveitar, que veio<br />
salvar o sistema patrimonial <strong>do</strong> fracasso (Chabal e Daloz, 2001: 181).<br />
Os governantes instrumentalizam, a maior parte <strong>da</strong>s vezes, a miséria,<br />
<strong>de</strong> que são, tantas vezes, os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros culpa<strong>do</strong>s, para obter fontes <strong>de</strong><br />
financiamento pessoal.<br />
A comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> internacional também é alvo <strong>de</strong> um rol <strong>de</strong> críticas. A<br />
começar pela figura <strong>de</strong> Ana Deusqueira: “Morreram milhares <strong>de</strong> moçambicanos,<br />
nunca vos vimos cá. Agora, <strong>de</strong>saparecem cinco estrangeiros e<br />
já é o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (34). Também o padre Muhan<strong>do</strong> aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> à<br />
ONU, pela impotência manifesta<strong>da</strong> na resolução <strong>do</strong>s problemas. Utilizan<strong>do</strong><br />
uma certa ironia respon<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>da</strong> ONU, quan<strong>do</strong> este questio-<br />
70 Em termos históricos, é o caso paradigmático <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s índios <strong>do</strong> Brasil, leva<strong>da</strong> a cabo pelo Padre<br />
António Vieira, que, aliás, lhe valeu um encontro, certamente não agradável, com o Tribunal <strong>do</strong> Santo<br />
Ofício. O que não significa que a Igreja sempre se tenha pauta<strong>do</strong> pela <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>sses valores. O reverso <strong>da</strong><br />
me<strong>da</strong>lha é, por exemplo, visível, na inquisição e nos atropelos por ela perpetra<strong>do</strong>s.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
67
68<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
na o “que fazemos agora”, “ O senhor não é <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s? O senhor<br />
é que <strong>de</strong>via salvar, senhor Massimo”. Esta crítica irónica é constante,<br />
embora os capacetes azuis (o povo na hierarquia <strong>da</strong> ONU), sejam salvaguar<strong>da</strong>s,<br />
<strong>de</strong>sculpáveis, por serem ingénuos: “Eles, coita<strong>do</strong>s, acreditavam<br />
ser <strong>do</strong>nos <strong>de</strong> fronteiras capazes <strong>de</strong> fabricar concórdias” (12). Fronteiras<br />
geometricamente traça<strong>da</strong>s, na Conferência <strong>de</strong> Berlim em 1885, que não<br />
respeitaram nem territórios, nem etnias, dificultan<strong>do</strong> o aparecimento<br />
<strong>do</strong>s novos esta<strong>do</strong>s africanos (71) . Esse traça<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong> pelo coloniza<strong>do</strong>res<br />
continua a ser um obstáculo à reconstrução <strong>do</strong>s países, on<strong>de</strong> os ambiciosos<br />
<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r não se enten<strong>de</strong>m. As fronteiras virtuais, (para utilizar<br />
uma linguagem mais mo<strong>de</strong>rna, são aponta<strong>da</strong>s como uma problemática a<br />
ter em conta, por antropólogos, sociólogos, políticos, contu<strong>do</strong>, ninguém<br />
ousa propor a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> fronteiras. Eventualmente, provocaria um<br />
problema maior.<br />
Nesses países é visível a impotência contra uma classe dirigente prepotente,<br />
que coman<strong>da</strong> to<strong>do</strong> o aparelho <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, exercen<strong>do</strong>-o para seu<br />
bem comum e <strong>do</strong>s seus e não para o bem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Dava o exemplo<br />
<strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. O entea<strong>do</strong> <strong>de</strong>le matara pessoas, vendia droga. Esse<br />
moço era o homem que chupava sangue <strong>do</strong> vampiro. To<strong>do</strong>s sabiam. O<br />
moço se mol<strong>da</strong>va à mãe. A Primeira Dama se arrumara <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res que<br />
nenhum po<strong>de</strong>r consente. Expulsara os camponeses <strong>do</strong> vale. As terras <strong>do</strong>s<br />
mais pobres verteram para bem <strong>de</strong>la. To<strong>do</strong>s sabiam. Mas ninguém podia<br />
fazer na<strong>da</strong> com esse saber” (129). Mesmo aqueles que queriam aju<strong>da</strong>r<br />
na reconstrução séria e honesta <strong>do</strong> país eram tritura<strong>do</strong>s pela máquina<br />
absoluta <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r como areias in<strong>de</strong>sejáveis. Até os ossos lhe levaram<br />
ao velho Sulplício, que ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> polícia no tempo <strong>da</strong> colonização, foi<br />
prateleira<strong>do</strong> aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> In<strong>de</strong>pendência. Mais grave, ain<strong>da</strong>, no exercício<br />
correcto e digno <strong>da</strong> sua profissão é apanha<strong>do</strong> na teias <strong>do</strong> abuso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r<br />
e vai preso: “Certa vez o meu velho apanhou m flagrante o entea<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
Jonas caçan<strong>do</strong> elefante. Fora <strong>de</strong> época. Pren<strong>de</strong>u-o. Foi seu erro...” (142).<br />
Acabou sen<strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> perseguição política e foi preso. Pune-se quem<br />
cumpre e <strong>de</strong>ixa-se impune quem prevarica.<br />
71 Neste senti<strong>do</strong> ver Ivo Carneiro <strong>de</strong> Sousa, “O esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na África Subsariana: <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong> teoria ao esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> investigação”, Lição <strong>de</strong> abertura <strong>do</strong> II curso <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> em <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, <strong>Porto</strong> (2000).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Optan<strong>do</strong> por mo<strong>de</strong>los oci<strong>de</strong>ntais, para tentar reconstruir o país, os<br />
novos governantes não apagaram os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Queren<strong>do</strong> imitar<br />
os senhores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, criam um novo sistema colonial, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> perplexos<br />
aqueles que acreditaram na ban<strong>de</strong>ira <strong>do</strong>s antigos luta<strong>do</strong>res <strong>da</strong><br />
in<strong>de</strong>pendência. Os jogos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> interesses são também <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s<br />
e levam a apeli<strong>da</strong>r os novos-ricos <strong>de</strong> trai<strong>do</strong>res: “São os novos-ricos<br />
... que falavam mal <strong>do</strong>s estrangeiros durante o dia. De noite, se ajoelhavam<br />
a seus pés, trocan<strong>do</strong> favores por migalhas. Queriam man<strong>da</strong>r, sem<br />
governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar” (115). No fun<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong><br />
Muhambo, tratou-se <strong>de</strong> uma simples mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> classe <strong>de</strong> opressores,<br />
on<strong>de</strong> antes estavam os coloniza<strong>do</strong>res europeus, estão agora os novosricos,<br />
senhores <strong>da</strong> terra liga<strong>do</strong>s ao aparelho <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
só mu<strong>da</strong>ram <strong>de</strong> patrão, no enten<strong>de</strong>r <strong>do</strong> velho Sulplício: “Mais difícil é<br />
matar o escravo que vive <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós. Agora, nem patrão nem escravo.<br />
Só mudámos <strong>de</strong> patrão” (141).<br />
Aquela conquista <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, <strong>da</strong> classe dirigente <strong>de</strong><br />
Tizangara é ilusória, pois, continuam a ser moleques aos olhos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
internacional e persegui<strong>do</strong>s pelas classes mais <strong>de</strong>sfavoreci<strong>da</strong>s:<br />
“Porque o povo não lhes per<strong>do</strong>a o facto <strong>de</strong> eles não repartirem riquezas (72) .<br />
A moral aqui é assim: enriquece, sim, mas nunca sozinho. São persegui<strong>do</strong>s<br />
pelos pobres e <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong>srespeita<strong>do</strong>s pelos ricos <strong>de</strong> fora. Tenho pena<br />
<strong>de</strong>les, coita<strong>do</strong>s, sempre moleques” (183). Esta afirmação reforça, uma<br />
vez mais, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma certa legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> corrupção nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
africanas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que to<strong>do</strong>s beneficiem. O político até po<strong>de</strong> ser corrupto<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que parta com o povo, ou melhor, com o seu suporte eleitoral.<br />
O fenómeno <strong>da</strong> corrupção e <strong>da</strong> <strong>de</strong>liquescência <strong>do</strong>s costumes atinge<br />
uma proporção tal que nem os antepassa<strong>do</strong>s ficam indiferentes. Estupefactos<br />
com a situação <strong>do</strong> país, inva<strong>de</strong>m os sonhos <strong>de</strong> Estêvão Jonas,<br />
levan<strong>do</strong>-o a <strong>de</strong>sabafar o seu pesa<strong>de</strong>lo (cap. XVI). Os antigos heróis regressavam<br />
e Estêvão Jonas solicita-lhes que afastem os opressores. Este<br />
fica admira<strong>do</strong> com a reacção, pois os heróis começam a expulsá-lo a ele<br />
72 Este facto é também notório em 1 Morto & Os Vivos, <strong>de</strong> Manuel Rui. “Se um gajo tem transporte<br />
individual, claro, não se importa com o transporte colectivo nem enten<strong>de</strong> que com o dinheiro <strong>de</strong> um décimo<br />
<strong>do</strong>s carros <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, comprava bons maximbombos para servir a to<strong>do</strong>s. As latas saem <strong>de</strong>ssas lojas<br />
<strong>de</strong> cabazes, fora o Jumbo, já se sabe. Cucas e nocais está tu<strong>do</strong> esquematiza<strong>do</strong>. Outro dia estive numa festa<br />
com cerveja a correr. De barril e garrafa. São as tais requisições. Nem os colonos”.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
69
70<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
e também ao <strong>de</strong>stinatário <strong>do</strong> relatório, o camara<strong>da</strong> excelência: “Os resistentes<br />
<strong>da</strong> nossa gloriosa História chutan<strong>do</strong>-nos fora <strong>da</strong> História?”. Os antigos<br />
heróis estão tão revolta<strong>do</strong>s que o sonho até se torna reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “....<br />
os heróis ameaçaram meu entea<strong>do</strong> Jonassane que se ele não <strong>de</strong>volvesse<br />
as terras que ocupava, eles o fariam <strong>de</strong>saparecer <strong>da</strong>li. E não é que, no dia<br />
seguinte, já fora <strong>do</strong> sonho, em plena vi<strong>da</strong> real, meu entea<strong>do</strong> não <strong>da</strong>va<br />
aparecimento? Parece, afinal, que o moço fugiu para vizinho. E pior:<br />
carregan<strong>do</strong> parte <strong>da</strong>s minhas economias. Isto é obra <strong>de</strong> forças inexplicáveis?”<br />
Para Estêvão Jonas, a culpa <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong> é o facto <strong>de</strong> terem an<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
“a gritar blasfémias contra os antepassa<strong>do</strong>s” (173). O administra<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
Tizangara acaba por fugir, juntan<strong>do</strong>-se ao seu entea<strong>do</strong>.<br />
Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scurar o limite entre o religioso e o temporal, a importância<br />
<strong>do</strong> religioso na noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, nem o vínculo entre os vivos<br />
e os mortos e a relevância <strong>do</strong> irracional para o conceito <strong>de</strong> casuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
O vínculo entre os mortos e os vivos é central nas crenças africanas.<br />
As religiões africanas não concebem a fronteira entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
vivos e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mortos. A ligação aos antepassa<strong>do</strong>s condiciona o<br />
comportamento <strong>do</strong>s africanos. Há um vínculo entre i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e locali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
A locali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s africanos é o lugar on<strong>de</strong> os antepassa<strong>do</strong>s estão<br />
enterra<strong>do</strong>s, normalmente a terra natal. Claro que é simbólico, pois, os<br />
africanos estão espalha<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong>, mas a vi<strong>da</strong> religiosa inclui um<br />
centro geográfico preciso. O africano po<strong>de</strong> ter várias residências mas<br />
casas só uma. Este aspecto importante <strong>da</strong> cultura africana é retoma<strong>do</strong><br />
novamente por Mia Couto, no livro Um Rio Chama<strong>do</strong> Tempo, Uma Casa<br />
Chama<strong>da</strong> Terra: “Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescenta<strong>do</strong>s<br />
pelo espírito <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong> Avô. E se confirma a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras <strong>do</strong><br />
velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única,<br />
indisputável” (2002: 29).<br />
Esta característica endógena <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas tem fortes implicações<br />
políticas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> local, até à influência mais complexa<br />
que po<strong>de</strong> exercer a relação entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vivos e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
mortos, no seio <strong>da</strong>s figuras políticas nacionais. O facto <strong>de</strong> estas investirem<br />
generosamente nas suas terras natal e <strong>de</strong> aí quererem ser enterra<strong>do</strong>s<br />
po<strong>de</strong> ser uma questão <strong>de</strong> convicção religiosa e não <strong>de</strong> ostentação pura.<br />
O facto <strong>de</strong> favorecerem os seus familiares po<strong>de</strong> ser também algo mais <strong>do</strong><br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
que a simples parciali<strong>da</strong><strong>de</strong> étnica. Da<strong>da</strong> a importância <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s,<br />
<strong>da</strong>s tradições e <strong>do</strong> sobrenatural, que têm um peso muito importante nas<br />
culturas africanas (73) , ao longo <strong>do</strong> romance os vivos e os mortos cruzamse,<br />
e só quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s se respeitarem nascerá a esperança para<br />
o emergir <strong>de</strong> um país diferente. Agora, os antepassa<strong>do</strong>s não reconhecem<br />
mais os seus filhos porque “uns semeavam minas no país. Eram esses <strong>de</strong><br />
fora. Outros, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, colocavam o país numa mina”. O velho Sulplício<br />
acrescenta que o pior “é que os nossos antepassa<strong>do</strong>s nos olham como<br />
estranhos (74) ”. Assim, o sonho <strong>do</strong> filho <strong>de</strong> Sulplício que no morro <strong>de</strong> muchém<br />
(75) se sentia sozinho, rejeita<strong>do</strong> pelos seus antepassa<strong>do</strong>s. A própria<br />
i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural foi esmaga<strong>da</strong>, primeiro pelos coloniza<strong>do</strong>res estrangeiros<br />
(os leões), <strong>de</strong>pois pelos novos-ricos, comparáveis às hienas (76) , que<br />
73 Não só nas culturas africanas, mas também sul-americanas ou melhor latino-americanas. A literatura<br />
aí produzi<strong>da</strong> corrobora esta afirmação. Des<strong>de</strong> Gabriel Garcia Marques a Isabel Allen<strong>de</strong>, são inúmeras<br />
as páginas on<strong>de</strong> se constata que o sobrenatural, a religião <strong>do</strong>mina e “controla” a vi<strong>da</strong> social. Em A Casa <strong>do</strong>s<br />
Espíritos, <strong>de</strong> Isabel Allen<strong>de</strong>, o político instrumentaliza a religião. Serve-se <strong>de</strong>la para atingir <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />
fins. A notorie<strong>da</strong><strong>de</strong> social e a sua aparente convicção religiosa contribuem para conquistar votos no seio<br />
<strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> facilmente influenciável. “Severo Del Valle era ateu e mação, mas tinha ambições<br />
políticas. Não podia por isso <strong>da</strong>r-se ao luxo <strong>de</strong> faltar à missa mais concorri<strong>da</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mingos e <strong>do</strong>s dias <strong>de</strong><br />
festa, para que to<strong>do</strong>s pu<strong>de</strong>ssem vê-lo” (12). Está patente a crítica à instrumentalização <strong>da</strong> religião por parte<br />
<strong>da</strong> política. A política, aliás, surge no romance <strong>de</strong> Allen<strong>de</strong>, quase sempre caracteriza<strong>da</strong> negativamente,<br />
com características que se encontram em qualquer outra socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, por exemplo, o distanciamento entre<br />
eleitores e eleito. “Foi um triunfo para ele quan<strong>do</strong> o convi<strong>da</strong>ram a apresentar-se como candi<strong>da</strong>to <strong>do</strong><br />
Parti<strong>do</strong> Liberal nas eleições parlamentares, em representação <strong>de</strong> uma província <strong>do</strong> Sul on<strong>de</strong> nunca tinha<br />
esta<strong>do</strong> e nem se encontrava facilmente no mapa” (29).<br />
74 Mais uma vez isso é <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> no livro Um Rio Chama<strong>do</strong> Tempo, Uma Casa Chama<strong>da</strong> Terra. Edita<strong>do</strong><br />
em 2002, o romance retoma o tema <strong>da</strong> crise <strong>de</strong> valores, <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> moribun<strong>da</strong>, corrumpi<strong>da</strong>,<br />
que não respeita os antepassa<strong>do</strong>s. Uma terra on<strong>de</strong> as mãos an<strong>da</strong>m sujas <strong>de</strong> crimes e on<strong>de</strong> o anjo mais puro<br />
se tornaria criminoso: “O Padre Nunes estava a par <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> e não se per<strong>do</strong>ava a si mesmo <strong>de</strong> absolver e<br />
reabsolver esse Lopes nas confissões <strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo. Como, entretanto, foi absolven<strong>do</strong> outras mais novas<br />
excelências cheias <strong>de</strong> poses e <strong>de</strong> posses mas <strong>de</strong> mãos sujas <strong>de</strong> crimes. Talvez fossem esses os cansaços que<br />
ele referira. A Avó remira os <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong>la entrelaça<strong>do</strong>s nos meus e vai falan<strong>do</strong> pausa<strong>da</strong>mente: (...) – Voulhe<br />
dizer meu neto: em Luar-<strong>do</strong>-Chão precisamos <strong>de</strong> um anjo muito mas muito puro. Mas o anjo que aqui<br />
permanecesse per<strong>de</strong>ria, no instante, to<strong>da</strong> a pureza”(107). Uma terra on<strong>de</strong> os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r ficam<br />
indiferentes face à miséria <strong>do</strong>s seus irmãos: “Não era tanto a pobreza que o <strong>de</strong>rrubava. Mais grave era a<br />
riqueza germina<strong>da</strong> sabe-se lá em que obscuros ninhos. E a indiferença <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rosos para com a miséria<br />
<strong>do</strong>s irmãos. Era esse o ódio que ele fermentava contra Ultímio” (118).<br />
75 É curioso este cenário <strong>de</strong> estar senta<strong>do</strong> no fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Também se encontra este tema na música.<br />
Assis sur le rebord du mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Francis Cabrel, fala <strong>da</strong> admiração que Deus sentiu quan<strong>do</strong> veio sentarse<br />
“sur le rebord du mon<strong>de</strong>” e viu o que o Homem fez <strong>do</strong> planeta terra.<br />
76 Curiosa esta comparação que o autor não terá feito em vão. O leão é o rei <strong>da</strong> selva, um ser nobre<br />
e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. A hiena, um animal escuro, com má reputação, com uma conotação muito negativa. A<br />
hiena come carne podre, o que resta <strong>da</strong>s presas <strong>do</strong>s outros. Assim, os novos-ricos, os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r,<br />
comem agora aquilo que os coloniza<strong>do</strong>res <strong>de</strong>ixaram, nem o esqueleto se salva. Aproveitam-se <strong>da</strong> miséria<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
71
72<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
não <strong>de</strong>ixavam nem o esqueleto: “O que fariam comigo era ven<strong>de</strong>r a minha<br />
carne aos leões vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fora. Elas, as hienas nacionais contentar-se-iam<br />
com o esqueleto...” (capítulo último). “Uma terra engoli<strong>da</strong> pela terra” é o<br />
título que encerra o livro, conten<strong>do</strong> uma carga simbólica enorme.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a própria terra que <strong>de</strong>strói a terra, ou melhor, o homem<br />
que <strong>de</strong>strói o homem. Como bem sintetiza Ana Mafal<strong>da</strong> Leite “o romance<br />
relata o fim <strong>de</strong> um país e <strong>de</strong> um tempo. Critica a ausência <strong>de</strong> valores<br />
éticos e morais, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong>, a corrupção mais<br />
ou menos generaliza<strong>da</strong>. Este roubo <strong>da</strong> alma, <strong>de</strong>samor pela terra e pelos<br />
valores colectivos, leva à figuração animal <strong>da</strong>s personagens, escolhi<strong>da</strong><br />
para alegoria <strong>da</strong> pre<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> país” (2003: 63).<br />
Os malefícios <strong>da</strong> colonização <strong>de</strong>ram lugar ao malefícios <strong>da</strong> globalização<br />
e Tizangara ficou sem terra. Apenas um único sobrevivente, o<br />
nosso tradutor, que não po<strong>de</strong>ria traduzir <strong>de</strong> forma mais clara e incisiva o<br />
mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> corrupção que tem várias cabeças como a Hidra (77) .<br />
O autor <strong>de</strong>ste romance faz <strong>de</strong>sfilar aos olhos <strong>do</strong> leitor uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
movi<strong>da</strong> pela corrupção, ten<strong>do</strong> como intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa a<br />
<strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> injusta, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> voz a personagens anónimas<br />
localiza<strong>da</strong>s numa terra anónima (78) , mas não abdican<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma função<br />
moraliza<strong>do</strong>ra. Exemplo disso, o facto <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> capítulo ser introduzi<strong>do</strong><br />
por um dito ou um provérbio, funcionan<strong>do</strong> muitas vezes como uma advertência<br />
(79) . Muitas vezes o dito é interrogativo. A interrogação retórica<br />
para ter algum benefício.<br />
77 A metáfora foi colhi<strong>da</strong> no livro <strong>de</strong> Jean Ziegler, Os senhores <strong>do</strong> crime (255). Não faltam, aliás,<br />
outros títulos bastante expressivos <strong>de</strong>sta reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É o caso <strong>da</strong> famosa série italiana, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> à mafia,<br />
e <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> La Piovra.<br />
78 Nas obras <strong>de</strong> Mia Couto, as personagens são, quase sempre, gente anónima marginaliza<strong>da</strong>, localiza<strong>da</strong><br />
em espaços rurais, como veremos no capítulo seguinte, fazen<strong>do</strong> analogia com o escritor angolano<br />
Pepetela. Uma excepção <strong>da</strong>s literaturas africanas que centraliza as suas personagens no mun<strong>do</strong> urbano.<br />
Salvato Trigo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que “as literaturas africanas mo<strong>de</strong>rnas, isto é, aquelas que se exprimem na língua<br />
<strong>da</strong> colonização, têm a sua emergência indubitavelmente liga<strong>da</strong> ao urbanismo, enquanto fenómeno semiótico<br />
que tem a ver com a organização social <strong>do</strong> espaço e que introduz, por isso mesmo, uma nova filosofia<br />
<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> tão diferente <strong>da</strong> <strong>do</strong> ruralismo característico <strong>da</strong> África pré-colonial” (1985: 545).<br />
79 Aliás, esta é uma <strong>da</strong>s funções <strong>do</strong> conto. Não pon<strong>do</strong> em causa o género literário atribuí<strong>do</strong> à obra<br />
<strong>de</strong> Mia Couto, somos tenta<strong>do</strong>s em afirmar que mesmo neste livro se sente a presença <strong>de</strong> um conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
contos, <strong>de</strong> pequenas histórias. “Mia Couto é, sobretu<strong>do</strong>, um conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> histórias”, como opinião expressa<br />
oralmente por Cristina Pacheco, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> apresentação <strong>do</strong> livro <strong>do</strong> mesmo autor O Gato e o Escuro<br />
(cfr. nota 105).<br />
Deve-se, aliás, ter presente a importância <strong>da</strong> literatura oral nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas, que conse-<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
é um recurso estilístico muito utiliza<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> romance, e quase<br />
sempre ao dispor <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r.<br />
Contu<strong>do</strong>, é inegável que o romance <strong>de</strong>ixa uma mensagem <strong>de</strong> esperança.<br />
O país, suspenso no ar, continua à “espera <strong>de</strong> outro tempo”. À<br />
espera <strong>do</strong> Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, também porque ain<strong>da</strong> há homens<br />
bons: “Lá <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o senhor vem também há os bons. E isso me basta<br />
para Ter esperança. Nem que seja só um. Unzinho que seja me basta.”<br />
(Ana Deusqueira, 183 – A própria esperança está, aliás, subjacente no<br />
nome <strong>da</strong> personagem, resultante <strong>da</strong> aglutinação <strong>de</strong> uma expressão:<br />
Deus queira).<br />
Como constatámos, o conceito <strong>de</strong> corrupção que Mia Couto nos traz<br />
não é um conceito jurídico, mas um conceito apriorístico, como seria <strong>de</strong><br />
esperar. O autor não o <strong>de</strong>purou, aproximan<strong>do</strong>-o muito <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que ao<br />
tema é atribuí<strong>do</strong> na linguagem comum, nomea<strong>da</strong>mente nos meios jornalísticos.<br />
Através <strong>da</strong> ficção visualizamos to<strong>do</strong> um mun<strong>do</strong> real, reconstruí<strong>do</strong><br />
através <strong>de</strong> personagens que corporizam estereótipos sociais. Os<br />
referentes estão lá to<strong>do</strong>s: o governa<strong>do</strong>r corrupto, o nepotismo, a peita,<br />
o tráfico <strong>de</strong> influências, os gran<strong>de</strong>s interesses internacionais. Muitos<br />
actos incrimináveis surgem aos nossos olhos, mas raras vezes surgem aos<br />
olhos <strong>do</strong>s juízes.<br />
quentemente <strong>de</strong>ixam marcar na literatura escrita. Mas, como advoga Ana Mafal<strong>da</strong> Leite, <strong>de</strong>vemos ter a<br />
noção <strong>de</strong> que “a pre<strong>do</strong>minância <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> em África é resultante <strong>de</strong> condições materiais e históricas<br />
e não uma resultante <strong>da</strong> «natureza africana»; mas muitas vezes este facto é confusamente analisa<strong>do</strong>, e<br />
muitos críticos partem <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> que há algo <strong>de</strong> ontologicamente oral em África, e que a escrita é um<br />
acontecimento disjuntivo e alienígena para os africanos... A questão trata-se <strong>de</strong> assinalar a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista outros aspectos, e saber como <strong>de</strong>screver o aci<strong>de</strong>ntal, o factual, sem o consi<strong>de</strong>rar<br />
como pertencen<strong>do</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s essências” (1998: 17, 18).<br />
As marcas <strong>de</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> inva<strong>de</strong>m a obra em análise, on<strong>de</strong> a utilização <strong>de</strong> um provérbio (ou um dito<br />
popular) a abrir ca<strong>da</strong> capítulo é significativo. Os provérbios que na opinião <strong>de</strong> Aguessy são “belos «resumos»<br />
<strong>de</strong> longas e amadureci<strong>da</strong>s reflexões, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> experiências mil vezes confirma<strong>da</strong>s” (1980:118)<br />
não têm, portanto, uma função meramente <strong>de</strong>corativa e a sua inclusão não acontece por mero acaso. “A<br />
função evocativa <strong>do</strong> provérbio, incorpora<strong>do</strong> no texto escrito, evocação <strong>de</strong> um sabor, transmite à escrita<br />
uma dimensão através <strong>do</strong> qual o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Verbo, <strong>da</strong> palavra cria<strong>do</strong>ra, é restituí<strong>do</strong> ao discurso. (...) O<br />
provérbio não tem, portanto, uma função meramente <strong>de</strong>corativa <strong>da</strong> escrita africana mo<strong>de</strong>rna, que o sentiria<br />
como uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se manter num ambiente <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> tradicional, <strong>de</strong> se mostrar conhece<strong>do</strong>ra<br />
e i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com uma sagesse, que chamaria a si a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> neutralizar a sagesse própria <strong>da</strong><br />
língua oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> que o escritor se serve” (Trigo, 1981: 175. Itálico no original). Nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s ditas<br />
tradicionais os provérbios funcionam eficazmente porque nessas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s “fala-se basicamente com<br />
pessoas a quem se conhece; to<strong>do</strong>s os pressupostos necessários para <strong>de</strong>cifrar um provérbio são compartilha<strong>do</strong>s.<br />
E, por serem partilha<strong>do</strong>s, a linguagem (ou intercâmbio oral) po<strong>de</strong> ser indicial, metafórica e<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> contexto” (Appiah, 1997: 187).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
73
74<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
O importante é, no entanto, a formação <strong>de</strong> uma nova consciência<br />
cultural (80) . O crime também se combate culturalmente. É necessário<br />
mu<strong>da</strong>r mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, formar seres humanos mais críticos, apostar na<br />
educação. O sucesso <strong>da</strong> Democracia (e, no futuro, a sua manutenção)<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>do</strong> combate à criminali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
económica (e altamente organiza<strong>da</strong>). Os escritores têm aí<br />
um papel relevante, mas difícil, já que poucos são os que têm acesso à<br />
leitura. O problema acentua-se ain<strong>da</strong> mais nos países africanos sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s<br />
(Venâncio, 2000: 130), como é o caso <strong>de</strong> Moçambique e <strong>de</strong><br />
Angola, on<strong>de</strong> a leitura é apenas um luxo para meia dúzia. Num país on<strong>de</strong><br />
a fome <strong>do</strong>mina as páginas <strong>do</strong>s jornais, a leitura não alimenta a mente <strong>do</strong><br />
povo. Nem po<strong>de</strong>ria alimentar visto tratar-se <strong>de</strong> um país on<strong>de</strong> a alfabetização<br />
tem ain<strong>da</strong> um processo muito longo a percorrer.<br />
Não obstante os baixos índices <strong>de</strong> leitura, o impacto <strong>da</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong><br />
corrupção pela literatura não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser importante. Aliás, o papel <strong>da</strong><br />
literatura em países como Moçambique ou Angola é imprescindível para<br />
se escrever a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história <strong>da</strong>queles, antes asfixia<strong>da</strong> pela visão<br />
colonialista.<br />
2.2. Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto<br />
“Agora eu pego na caneta para contar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> aos meus<br />
conterrâneos. Só a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> me interessa. É o nosso tempo.”<br />
Gégé, Epílogo: 312<br />
O homicídio <strong>de</strong> “uma menor”, cujo “corpo foi encontra<strong>do</strong> perto <strong>do</strong><br />
Morro <strong>do</strong>s Vea<strong>do</strong>s”, é o mote para o <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> acção <strong>do</strong> romance<br />
Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto (81) , edita<strong>do</strong> em 2001. O penúltimo livro <strong>de</strong><br />
Pepetela é um libelo acusatório contra a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Luan<strong>da</strong> contem-<br />
80 Para Arlin<strong>do</strong> Barbeitos, esta é também a solução aponta<strong>da</strong> para que Angola consiga sair <strong>da</strong> crise<br />
profun<strong>da</strong> ou melhor <strong>da</strong> mão <strong>do</strong>s pre<strong>da</strong><strong>do</strong>res. “... haveria a urgência <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma opinião pública<br />
política que assente em razão pública livre, saiba encetar o processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> opiniões e <strong>de</strong><br />
vonta<strong>de</strong>s ten<strong>de</strong>ntes à criação <strong>da</strong>s premissas indispensáveis a uma conciliação que consiga enquadrar a<br />
esperança <strong>de</strong> paz <strong>de</strong>mocrática e <strong>de</strong> bem-estar económico e social” (2003: 85, 86).<br />
81 To<strong>da</strong>s as referências à obra remetem para a 1.ª edição, Publicações D. Quixote, 2001.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
porânea, que po<strong>de</strong> muito bem ser extrapola<strong>do</strong> para outras socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
tornan<strong>do</strong>-se assim – mas não só por isso – também numa obra que configura<br />
um tema universal.<br />
A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse <strong>do</strong> início <strong>do</strong> terceiro milénio surge aos olhos<br />
<strong>do</strong> leitor caracteriza<strong>da</strong> como corrupta, injusta, incompetente, on<strong>de</strong> pre<strong>do</strong>minam<br />
os esquemas, os compadrios, as <strong>de</strong>sconfianças, a economia<br />
paralela, os sacos azuis... “Nós somos privilegia<strong>do</strong>s, não recebemos <strong>do</strong><br />
orçamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, recebemos <strong>do</strong>s sacos azuis, o circuito paralelo. O<br />
paralelo é que dá, seja o merca<strong>do</strong>, seja a polícia, seja a Igreja, sabe<strong>do</strong>ria<br />
<strong>do</strong> Bernar<strong>do</strong>. Por isso é que os polícias têm <strong>de</strong> pentear as pessoas, quer<br />
os pe<strong>de</strong>stres que ven<strong>de</strong>m merca<strong>do</strong>rias quer os circulantes que têm <strong>do</strong>cumentos<br />
certos e carros na perfeição, mas que mesmo assim têm <strong>de</strong> escorregar<br />
gasosas para os polícias, senão per<strong>de</strong>m a carta <strong>de</strong> condução. Mas<br />
vão fazer mais como, então os polícias também não têm mulher e filhos<br />
para sustentar? É melhor pedir que roubar e é melhor roubar que ser<br />
rouba<strong>do</strong>, não acha, chefe?” (20). Esta observação irónica <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong>,<br />
o motorista <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>, personagem principal, ilustra bem como<br />
funciona a corrupção e <strong>de</strong> que forma ela é legitima<strong>da</strong> em países on<strong>de</strong><br />
pre<strong>do</strong>mina a miséria, on<strong>de</strong> os salários estão <strong>de</strong>sajusta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (82)<br />
e, sobretu<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> o Esta<strong>do</strong> não logrou ain<strong>da</strong> institucionalizar-se e afirmar<br />
a sua própria intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A máquina administrativa não consegue<br />
impor-se e cumprir os seus <strong>de</strong>sígnios, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> origem à manutenção<br />
<strong>de</strong> uma economia informal. A <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> propicia <strong>de</strong>svios <strong>de</strong><br />
procedimentos, expedientes mais ou menos lícitos, normalmente utiliza<strong>do</strong>s<br />
para proveito pessoal. É patente também que a economia paralela<br />
e, por arrastamento, a corrupção inva<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as estruturas sociais: o<br />
merca<strong>do</strong>, ou seja, o sector priva<strong>do</strong>, a polícia, representan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong>, o<br />
sector público e a própria Igreja. A Igreja, que seria à parti<strong>da</strong> um <strong>do</strong>mí-<br />
82 Ain<strong>da</strong> numa recente entrevista à revista Espaço África, o escritor Pepetela salientava o facto <strong>da</strong> falta<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra mesmo no seio <strong>do</strong>s professores, grupo que tradicionalmente é visto já como privilegia<strong>do</strong>.<br />
Para estes a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> comprar um livro não é fácil. “O seu salário é só para comer. Ele comprará<br />
um livro se entrar no «esquema», se obrigar o aluno a pagar qualquer coisa, etc., etc., etc., Um livro aqui,<br />
no mínimo, custa 15 dólares e o salário <strong>de</strong> um professor será <strong>de</strong> 200 dólares. Uma família para comer<br />
precisa <strong>de</strong> 300, 400 dólares no mínimo <strong>do</strong>s mínimos. Isto acontece também aos livros que são feitos aqui.<br />
Neste momento, parece que os livros feitos cá são um pouco mais baratos <strong>do</strong> que os importa<strong>do</strong>s, mas a diferença<br />
ain<strong>da</strong> é pequena. Há uns tempos era mais caro editar em Angola. Portanto, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> comprar<br />
um livro tem <strong>de</strong> ser pon<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>. Isto passa-se também em Moçambique e outros países” (2004: 133).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
75
76<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
nio intocável, já que se trata <strong>do</strong> religioso, <strong>do</strong> espiritual, surge também<br />
contamina<strong>da</strong> pelo peca<strong>do</strong> e é alvo <strong>de</strong> crítica (83) .<br />
As críticas à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse vão surgin<strong>do</strong> através <strong>de</strong> várias personagens.<br />
Ao longo <strong>da</strong> acção, que irá <strong>de</strong>senrolar-se por diversos locais <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong><strong>de</strong> (e não só) <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, são <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>s personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s importantes:<br />
os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> jornalistas a críticos, ninguém escapa<br />
ao humor satírico <strong>de</strong> Pepetela). To<strong>do</strong>s os estratos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> são foca<strong>do</strong>s,<br />
mas curiosamente a corrupção é nesta obra <strong>de</strong> Pepetela <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong><br />
ao mais alto nível (84) , representa<strong>da</strong> pela Polícia <strong>da</strong>s Polícias – o SIG, Serviços<br />
<strong>de</strong> Informação Geral – e pelo próprio chefe <strong>do</strong> Bunker.<br />
A instituição que simboliza para o ci<strong>da</strong>dão o garante <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m pública,<br />
o cumprimento <strong>da</strong>s leis, a segurança individual, afinal não está<br />
imune. Os inconforma<strong>do</strong>s sentem-se impotentes (85) , sem motivação<br />
para <strong>de</strong>nunciar – já que o próprio Esta<strong>do</strong> surge corrompi<strong>do</strong> e assim a<br />
<strong>de</strong>núncia po<strong>de</strong> sair cara. Afinal, o que é possível fazer, <strong>de</strong>nunciar no<br />
mun<strong>do</strong> ficcional?<br />
A luta por uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa trava-se, agora, com a escrita. As<br />
armas que lutaram contra o colonialismo, as armas que lutaram contra o<br />
regime que nasceu com a in<strong>de</strong>pendência são substituí<strong>da</strong>s pela escrita. E é<br />
sobre ela que recai a esperança numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa. A caneta será<br />
a arma <strong>do</strong> futuro, mas é necessário, também, que a comunicação social<br />
seja in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res instituí<strong>do</strong>s e que surjam muitos “Gégés”:<br />
“um jornalista para pôr nos olhos e ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo que a<br />
população sempre marginaliza<strong>da</strong> sente e quer” (312).<br />
83 O facto não é novo em Pepetela, já em A Geração <strong>da</strong> Utopia, a Igreja surge associa<strong>da</strong> a negócios<br />
pouco lícitos. A religião é um instrumento <strong>da</strong> política e vice-versa (268-271).<br />
84 Do ponto <strong>de</strong> vista penal não existe uma distinção entre gran<strong>de</strong> ou pequena corrupção. O mais alto<br />
funcionário é trata<strong>do</strong> <strong>da</strong> mesma forma que um simples amanuense. Normalmente as distinções são entre<br />
corrupção activa e corrupção passiva e entre corrupção para acto lícito e corrupção para acto ilícito. O que<br />
está em causa é a natureza <strong>do</strong> crime e não o agente <strong>do</strong> crime. Em teoria, a justiça é igual para to<strong>do</strong>s.<br />
85 Sentem-se impotentes, por um la<strong>do</strong>, e com receio, por outro la<strong>do</strong>, face às retaliações/perseguições<br />
que po<strong>de</strong>rão sofrer por parte <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>rosos. O próprio autor <strong>do</strong> romance admite ele próprio ser um covar<strong>de</strong><br />
ao não i<strong>de</strong>ntificar a personagem T: “É tão po<strong>de</strong>roso, tão po<strong>de</strong>roso, que nem o nome <strong>de</strong>le ouso man<strong>da</strong>r<br />
escrever. Ficará pela minha covardia, apenas como senhor T ou simplesmente T” (63).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
2.2.1. Quatro narra<strong>do</strong>res: quatro testemunhas <strong>de</strong> acusação em Jaime<br />
Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto<br />
A primeira justificação <strong>do</strong> título passaria necessariamente por realçar<br />
o seu inquestionável carácter jurídico. To<strong>da</strong>s as histórias judiciais/<br />
policiais são compostas pelas vozes <strong>da</strong>s diversas testemunhas (tal como,<br />
no essencial, acontece no Processo Penal) que vão revelan<strong>do</strong> os seus conhecimentos<br />
até ao paroxismo final: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> judicial num<br />
caso, o <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r <strong>do</strong> romance no outro. O juiz, tal como o cego, é guia<strong>do</strong><br />
pelas vozes <strong>do</strong>s circunstantes, fazen<strong>do</strong> uma reconstituição mental <strong>de</strong><br />
um acontecimento passa<strong>do</strong>, que não viu e cuja ocorrência jamais po<strong>de</strong>rá<br />
comprovar recorren<strong>do</strong> ao méto<strong>do</strong> <strong>da</strong>s ciências experimentais.<br />
O leitor segue à procura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> através <strong>da</strong> visão <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, socorren<strong>do</strong>-se<br />
<strong>da</strong>s pistas que este aqui e ali lhe vai <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> adivinhar<br />
o caminho até ao <strong>de</strong>senlace final. Neste livro como num tribunal,<br />
seguimos, portanto, as pistas <strong>de</strong> quatro narra<strong>do</strong>res (86) . Quatro (87) perspectivas<br />
<strong>de</strong> analisar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse, parecen<strong>do</strong> o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong><br />
quatro testemunhas que presenciaram um facto. Esta estrutura externa,<br />
a divisão em quatro livros, leva o leitor por um labirinto misterioso.<br />
O homicídio <strong>da</strong> jovem menor vai tirar <strong>da</strong> inactivi<strong>da</strong><strong>de</strong> a personagem<br />
principal <strong>do</strong> romance. Jaime Bun<strong>da</strong> é um ambicioso <strong>de</strong>tective, ou melhor,<br />
como é apresenta<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> primeiro livro, um investiga<strong>do</strong>r<br />
intrigante. O narra<strong>do</strong>r heterodiegético explica que o alcunha <strong>de</strong> Bun<strong>da</strong><br />
“<strong>de</strong>rivava <strong>da</strong> sua avantaja<strong>da</strong> bun<strong>da</strong>, exagera<strong>da</strong> em relação ao corpo”.<br />
Era assim que era conheci<strong>do</strong> – Jaime Bun<strong>da</strong> – apesar <strong>de</strong> o seu nome ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
ser compri<strong>do</strong>, “unin<strong>do</strong> <strong>do</strong>is apeli<strong>do</strong>s ilustres no meio luan<strong>de</strong>nse”<br />
(13) e, <strong>de</strong> certa maneira, <strong>do</strong> <strong>de</strong> Angola.<br />
A personagem surge logo conota<strong>da</strong> negativamente e representativa<br />
<strong>da</strong>queles que obtêm emprego apenas porque têm um familiar bem posi-<br />
86 Às vezes interrompi<strong>do</strong>s pelo pensamento <strong>do</strong> autor, enti<strong>da</strong><strong>de</strong> que supervisiona os vários narra<strong>do</strong>res.<br />
Analisar o papel <strong>do</strong> autor e o seu relacionamento com os vários narra<strong>do</strong>res, ou seja o papel/ caracterização<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r seria um trabalho aliciante, mas não constitui o objecto <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>. Apenas faremos<br />
uma breve análise no último capítulo.<br />
87 A estrutura externa <strong>do</strong> romance – quatro livros, conten<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> um narra<strong>do</strong>r autónomo – é explica<strong>da</strong><br />
pelo próprio autor. “... mas em quatro partes, que é o mais sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s números, por ser o número<br />
<strong>de</strong> patas <strong>do</strong> cága<strong>do</strong>, sobre o qual assentam os po<strong>de</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (247).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
77
78<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
ciona<strong>do</strong>. Um <strong>do</strong>s males <strong>da</strong> Administração Pública é, assim, <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>:<br />
não é o mérito que conta para a obtenção e para progressão <strong>de</strong> uma carreira.<br />
O que importa é o cartão <strong>de</strong> militante <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> no po<strong>de</strong>r ou uma<br />
consanguini<strong>da</strong><strong>de</strong> sabiamente cultiva<strong>da</strong> ou a pertença a um grupo <strong>de</strong> status.<br />
E é, ain<strong>da</strong>, necessário que não se tenha sequer um irmão subversivo:<br />
“A<strong>de</strong>us futuras promoções, não ascen<strong>de</strong> a cargos mais altos quem tem<br />
um irmão subversivo que quer contar to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Como explicar<br />
a Gegé que há ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que incomo<strong>da</strong>m e por isso <strong>de</strong>vem ficar pudicamente<br />
sob sete véus?” (312).<br />
Além <strong>de</strong> ter consegui<strong>do</strong> o emprego, apenas, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao seu estatuto<br />
social, o nosso <strong>de</strong>tective <strong>do</strong>s Serviços <strong>de</strong> Investigação Local está inactivo<br />
há vinte meses, quase <strong>do</strong>is anos! “... atira<strong>do</strong> para uma <strong>da</strong>s ca<strong>de</strong>iras <strong>da</strong> sala<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives sem na<strong>da</strong> para fazer, só porque era «<strong>da</strong>s famílias»” (14).<br />
Não é em vão que a expressão “<strong>da</strong>s famílias” surge entre aspas. Sociólogo<br />
<strong>de</strong> formação, o autor <strong>do</strong> livro terá como intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> comunicativa<br />
evi<strong>de</strong>nciar a segregação social existente na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> luan<strong>de</strong>nse.<br />
“Das famílias” remete para um grupo <strong>de</strong> status. Um grupo <strong>do</strong>minante<br />
cuja coesão não é <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> à mesma condição bio-cultural, nem mesmo<br />
económica. Como salienta José Carlos Venâncio, em Colonialismo, Antropologia<br />
e Lusofonias, Angola tem as suas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais, e a<br />
coesão <strong>de</strong>sses grupos “é fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> a critérios <strong>de</strong> honra e<br />
prestígio, i. e., critérios <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social e cultural...” (1996: 28). Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
o estatuto social <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong> surge i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com um grupo<br />
<strong>de</strong> status. A personagem, embora conheci<strong>da</strong> pelo alcunha <strong>de</strong> Bun<strong>da</strong>, possui<br />
um sobrenome importante “unin<strong>do</strong> <strong>do</strong>is apeli<strong>do</strong>s <strong>de</strong> famílias ilustres<br />
nos meios luan<strong>de</strong>nses” (13), como já referimos anteriormente.<br />
O estatuto social dispensa-o <strong>da</strong>s “formali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> praxe. Depois <strong>de</strong><br />
admiti<strong>do</strong> faria os testes e os treinos, abaixo a burocracia que impe<strong>de</strong><br />
o combate eficaz ao crime...”. O seu superior hierárquico também era<br />
“<strong>da</strong>s famílias”. O Director Operativo protegia Jaime Bun<strong>da</strong> e, só por isso,<br />
coube-lhe a investigação <strong>do</strong> homicídio <strong>da</strong> jovem <strong>de</strong> catorze anos. Nunca<br />
tinha <strong>da</strong><strong>do</strong> provas <strong>da</strong> sua competência e como avisara o Chefe Chiquinho<br />
Vieira “só o mantinha no serviço porque recebia or<strong>de</strong>ns <strong>do</strong> D. O., o Director<br />
Operativo. Mas que não tivesse ilusões, por ele nunca passaria <strong>de</strong><br />
estagiário” (14).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Este grupo <strong>de</strong> status tem como preocupação manter o seu po<strong>de</strong>r, e<br />
para isso era necessário combater, também, os subversivos que conspiravam<br />
contra o regime. Curiosamente, Jaime Bun<strong>da</strong> tem um irmão<br />
subversivo (88) . Gegé, o irmão jornalista, que surge no final <strong>do</strong> romance<br />
como a esperança <strong>do</strong> povo angolano numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa. Está<br />
aqui subjacente uma solução aponta<strong>da</strong> pelo autor. É necessária uma<br />
nova revolução. Esta só é possível através <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil mais<br />
activa e esclareci<strong>da</strong> e ain<strong>da</strong> com a dissociação <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> status que<br />
constituem um entrave ao <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O narra<strong>do</strong>r fornece outros <strong>da</strong><strong>do</strong>s que aju<strong>da</strong>m a i<strong>de</strong>ntificar o estatuto<br />
privilegia<strong>do</strong> <strong>da</strong> personagem principal. Com um tio <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong><br />
“Esperteza <strong>do</strong> Povo”, “antigo guerrilheiro na luta contra o colonialismo<br />
e reconverti<strong>do</strong> para as fileiras policiais” leu e releu os clássicos<br />
policiais na esperança <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r “o novo ofício cuja ciência lhe escapava”.<br />
Uma família liga<strong>da</strong> à guerrilha, ao MPLA, que soube aproveitar<br />
os benefícios <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação i<strong>de</strong>ológica com o parti<strong>do</strong> único<br />
ou, simplesmente, uma questão <strong>de</strong> oportunismo, patente na atitu<strong>de</strong><br />
<strong>do</strong> tio Jeremias que ocupou uma casa aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> por um colono,<br />
ten<strong>do</strong>-se limita<strong>do</strong> a escrever “Ocupa<strong>do</strong> por camara<strong>da</strong> <strong>do</strong> MPLA”. Foi<br />
o suficiente para conseguir legalizar a ocupação, apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a burocracia<br />
(50). Depois “chamou Jaime para lá, era uma forma <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r<br />
a parte <strong>da</strong> família caí<strong>da</strong> na <strong>de</strong>sgraça”. E a razão <strong>de</strong> ter caí<strong>do</strong> na<br />
<strong>de</strong>sgraça é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao facto <strong>de</strong> o pai <strong>do</strong> nosso <strong>de</strong>tective não ter sabi<strong>do</strong><br />
utilizar melhor o nome <strong>da</strong> família “para subir na vi<strong>da</strong>, mas não tinha<br />
mesmo jeito para isso. Ele, Jeremias, tinha aproveita<strong>do</strong>, era chefe <strong>de</strong><br />
88 O que po<strong>de</strong>rá constituir um problema futuro. “Se às relações familiares <strong>de</strong>via a sua posição profissional,<br />
em nome <strong>da</strong>s mesmas era-lhe exigi<strong>da</strong> leal<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Venâncio, 2004: 7), com um irmão na oposição<br />
“ «Bun<strong>da</strong> já via o filme a seguir. Honório (seu colega) a dizer este teu irmão não tem juízo, olha quem ele<br />
acusa <strong>de</strong> roubar o povo. E o D. O. furioso, já nem a família se respeita, como irmão mais velho tens <strong>de</strong><br />
te impor (...) (p. 312)». Este pormenor torna-se tanto mais relevante, quanto o facto <strong>de</strong> muita <strong>da</strong> oposição<br />
política ao MPLA ser precisamente <strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong> pela imprensa. Diferentemente <strong>do</strong> que aconteceu<br />
noutros países africanos, nomea<strong>da</strong>mente naqueles cujo po<strong>de</strong>r foi exerci<strong>do</strong> por elites mestiças (Togo) ou<br />
crioulas (Libéria e Serra Leoa), a elite que assumiu o po<strong>de</strong>r em Angola após a in<strong>de</strong>pendência, filia<strong>da</strong> no<br />
MPLA, em muito i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com o estigma crioulo, foi expedita, ao longo <strong>da</strong> guerra civil, na negociação<br />
<strong>de</strong> alianças com outras elites, principalmente junto <strong>da</strong>s que dirigiam os movimentos <strong>de</strong> libertação inimigos,<br />
a FNLA (Frente Nacional <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Angola) e a UNITA (União Nacional para a In<strong>de</strong>pendência<br />
Total <strong>de</strong> Angola). Estas alianças assumem um senti<strong>do</strong> que, não faltan<strong>do</strong> muito à ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e recor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o<br />
mo<strong>de</strong>rnismo brasileiro, <strong>de</strong>signaria <strong>de</strong> «antropofágico»” (Venâncio, 2004: 7).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
79
80<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Departamento, tinha casa, comprou o carro no serviço quan<strong>do</strong> ao fim<br />
<strong>de</strong> alguns anos foi man<strong>da</strong><strong>do</strong> abater à carga, tinha alguns produtos que<br />
eram forneci<strong>do</strong>s pela repartição para a sua cozinha, um bom cabaz no<br />
fim <strong>do</strong> ano, enfim, poucas coisas que lhe melhoravam em muito o seu<br />
nível <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>” (50).<br />
O pai <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong> não tinha ti<strong>do</strong> a mesma ascensão social,<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> que era honesto e “tinha vergonha <strong>de</strong> dizer que era primo <strong>de</strong>ste<br />
ou <strong>da</strong>quele...”. Talvez não ingenuamente surge caracteriza<strong>do</strong> como um<br />
intelectual, mas um intelectual conforma<strong>do</strong>. “No fun<strong>do</strong> o teu pai era um<br />
intelectual... se contentava com o emprego sem futuro... quan<strong>do</strong> expulsámos<br />
os tugas, ficou conforma<strong>do</strong>, chupan<strong>do</strong> o cachimbo e len<strong>do</strong> os seus<br />
livros, será que ele escrevia (89) ?”.<br />
Do seu antepassa<strong>do</strong>, Jaime Bun<strong>da</strong> apenas her<strong>do</strong>u o gosto pela leitura,<br />
mas limitan<strong>do</strong>-se ao género policial, que o levou até à protecção <strong>do</strong><br />
Bunker, que representa a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> máxima, isto é, o próprio regime e<br />
bastava só pronunciar esse vocábulo para se sentir o temor estampa<strong>do</strong><br />
no rosto <strong>do</strong>s subordina<strong>do</strong>s.<br />
A inactivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vinte meses na sala <strong>de</strong> Serviços <strong>de</strong> Investigação<br />
Local “apenas lhe proporcionou distinguir to<strong>da</strong>s as moscas que entravam<br />
e saíam pelas janelas” (14,15). O espantoso humor <strong>de</strong>stas observações<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r é também coloca<strong>do</strong> na caracterização directa feita pelo personagem<br />
principal <strong>do</strong> seu colega <strong>de</strong> trabalho, Isidro.<br />
Jaime Bun<strong>da</strong> é, assim, apresenta<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> um parasita <strong>da</strong> Administração<br />
Pública, que critica a ostentação material e os “esquemas”<br />
<strong>de</strong> Isidro, aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a compor o cenário <strong>de</strong> uma Administração ineficiente,<br />
incompetente (90) , lenta e corrupta: “ Por isso ria para <strong>de</strong>ntro ao<br />
89 De novo a esperança na escrita. A nova revolução passa pela <strong>de</strong>núncia, pelo <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> consciência,<br />
pela formação urgente <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil esclareci<strong>da</strong>, interventiva/activa.<br />
90 E não se continue a argumentar que a causa é a falta <strong>de</strong> quadros qualifica<strong>do</strong>s! Um argumento que<br />
para o autor, no seu novo romance, Jaime Bun<strong>da</strong> e a morte <strong>do</strong> americano, já passou <strong>de</strong> mo<strong>da</strong>. “Que quer?<br />
Falta <strong>de</strong> quadros... Já tinha passa<strong>do</strong> um boca<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>da</strong> a <strong>de</strong>sculpa número um <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os governantes<br />
e responsáveis. Por isso Jaime Bun<strong>da</strong> sorriu ao ouvir o coman<strong>da</strong>nte invocar falta <strong>de</strong> quadros...” (248).<br />
Jaime Bun<strong>da</strong> e a morte <strong>do</strong> americano, é o último romance <strong>de</strong> Pepetela, edita<strong>do</strong> em Setembro <strong>de</strong> 2003, pela<br />
D. Quixote. A morte <strong>de</strong> um engenheiro americano em Benguela é o enre<strong>do</strong> para um manifesto anti-americano,<br />
anti novo imperialismo, alertan<strong>do</strong> para as consequência <strong>do</strong> novo império. Temas como a corrupção,<br />
o terrorismo, o tráfico <strong>de</strong> órgãos, a prostituição <strong>de</strong> menores, entre outros, abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s com o humor irónico<br />
<strong>de</strong> Pepetela, preenchem as páginas <strong>de</strong>ste segun<strong>do</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>, tornan<strong>do</strong>-o numa obra imprescindível.<br />
O peso <strong>da</strong> administração pública é também <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> na obra em análise. Há organismos a mais<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
ver o colega Isidro baten<strong>do</strong> no tecla<strong>do</strong> <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r, com os <strong>do</strong>is indica<strong>do</strong>res<br />
muito estica<strong>do</strong>s, a língua <strong>de</strong> fora, a qual se mexia ao rítimo <strong>da</strong><br />
bati<strong>da</strong> lenta. Os anéis <strong>de</strong> ouro que o investiga<strong>do</strong>r Isidro usava nos <strong>do</strong>is<br />
indica<strong>do</strong>res faiscavam... Só falta um Rolex <strong>de</strong> ouro. Parece um <strong>de</strong>sses<br />
novos-ricos que ultimamente engrossam por aí... Deve ser isso mesmo,<br />
quer passar por novo-rico (91) , ele que não tem on<strong>de</strong> cair morto. A menos<br />
que... Sabia <strong>de</strong> alguns esquemas <strong>do</strong> Isidro, mas talvez não <strong>de</strong>sse para<br />
enriquecer” (14).<br />
Isidro representa ain<strong>da</strong> uma autori<strong>da</strong><strong>de</strong> corrupta que só age em<br />
benefício próprio: “mais tar<strong>de</strong> Jaime veio a saber que Isidro tinha si<strong>do</strong><br />
sócio <strong>de</strong> Antero numas negociatas mas o outro passou-lhe a perna. Não<br />
voltaram a fazer revista ao apartamento nem aconteceu mais na<strong>da</strong>, portanto<br />
Antero <strong>de</strong>ve ter compreendi<strong>do</strong> o aviso e corrigi<strong>do</strong> o erro. Isidro<br />
comprou uma nova pulseira <strong>de</strong> ouro” (53). Os ostentivos bens materiais<br />
eram os benefícios <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> diamantes, aqui <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> através <strong>da</strong><br />
personagem Antero Lopes, empresário. A ilicitu<strong>de</strong> ou licitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> conduta<br />
(tráfico <strong>de</strong> diamantes) varia segun<strong>do</strong> as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s políticas <strong>do</strong><br />
governo, sen<strong>do</strong> ao observa<strong>do</strong>r – Jaime Bun<strong>da</strong> – impossível discernir as<br />
razões <strong>de</strong> tão bruscas mu<strong>da</strong>nças e os interesses que as possam sustentar.<br />
“Tráfico ilícito, pois claro, enquadra<strong>do</strong> no artigo tal <strong>do</strong> Código Penal.<br />
Em dias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual, o estagiário tinha <strong>de</strong> reconhecer<br />
que nem sabia se ain<strong>da</strong> era tráfico ilícito, pois tão generaliza<strong>do</strong><br />
que só servem para duplicar os postos <strong>de</strong> trabalho <strong>do</strong>s familiares e amigos. “... <strong>de</strong> haver organismos a<br />
mais, pois to<strong>do</strong>s tinham as suas réplicas e tréplicas, o que levava a diluir responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e multiplicar<br />
os nossos postos <strong>de</strong> trabalho. Para ca<strong>da</strong> organismo cria<strong>do</strong>, havia outro que o controlava e ain<strong>da</strong> outro<br />
para controlar este, numa perfeita paranóia <strong>de</strong> suspeição” (96). O jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r como um ciclo vicioso<br />
<strong>de</strong> benefícios.<br />
91 Porque os novos ricos, ou a neo-burguesia, têm saca<strong>do</strong> o erário público, o património <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />
“Normalmente por alguém que conseguiu uma posição a nível <strong>de</strong>sse mesmo Esta<strong>do</strong> ou que está liga<strong>do</strong><br />
familiarmente ou por clientelismo a alguém com po<strong>de</strong>r. E já existe uma classe <strong>de</strong> ricos, uma neo-burguesia<br />
para usar uma expressão mais correcta, proveniente <strong>da</strong> rapina <strong>da</strong>quilo que era <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s nós”. Jaime<br />
Bun<strong>da</strong> e a morte <strong>do</strong> americano (249). Mas já em A Geração <strong>da</strong> Utopia, o comportamento <strong>da</strong> neo-burguesia<br />
é critica<strong>do</strong> severamente: “O problema fun<strong>da</strong>mental é que o Malongo e o Vítor são os neo-burgueses, os<br />
que enriqueceram ou pensam enriquecer à sombra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e têm comportamento <strong>de</strong> novos-ricos, com<br />
tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> trágico e ridículo que essa palavra comporta. E há os lumpen-burgueses, os can<strong>do</strong>ngueiros <strong>de</strong><br />
to<strong>da</strong>s as espécies, os que começaram por pequenos negócios <strong>de</strong> rua e vão crescen<strong>do</strong>, sem cultura nem<br />
ética. Qual <strong>da</strong>s duas classes comerá a outra? São classes com origens sociais diferentes, mas <strong>de</strong> igual<br />
apetite insaciável. Chegarão a fazer uma aliança e a criar um novo empresaria<strong>do</strong>? Vão ven<strong>de</strong>r-se ao estrangeiro<br />
ou serão capazes <strong>de</strong> o assimilar? Seguirei com curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> esse combate que vai preencher o<br />
fim <strong>do</strong> século” (307).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
81
82<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
estava. Além <strong>do</strong> mais, a Kamanga era legaliza<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> convinha politicamente<br />
ao governo, por uma razão que lhe escapava, para logo a<br />
seguir voltar a ser criminaliza<strong>da</strong>, por outra razão ain<strong>da</strong> mais obscura”<br />
(51). Perante isto, a realização <strong>de</strong> um negócio ou perpetração <strong>de</strong> um<br />
crime misturam-se. Não se sabe bem quan<strong>do</strong> se realiza um ou quan<strong>do</strong> se<br />
comete o outro. A consciência <strong>da</strong> ilicitu<strong>de</strong> vai-se esbaten<strong>do</strong> e as fronteiras<br />
entre o legal e o ilegal <strong>de</strong>svanecem. O Direito Penal per<strong>de</strong> eficácia.<br />
Actos comunitariamente aceites ou vistos como pouco reprováveis não<br />
<strong>de</strong>vem ser por ele puni<strong>do</strong>s.<br />
O Direito Penal clássico comporta apenas comportamentos socialmente<br />
insuportáveis. Os bens jurídicos estão i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s e recorta<strong>do</strong>s,<br />
sen<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong>s pela generali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s ci<strong>da</strong>dãos (por<br />
exemplo, a vi<strong>da</strong>, o património, a honra...). O mesmo já não se passa<br />
no Direito Penal secundário, on<strong>de</strong> se engloba a generali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
económica. Os bens jurídicos são i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> uma apura<strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> lei (a especulação, a frau<strong>de</strong> sobre merca<strong>do</strong>rias).<br />
Até porque, muitas vezes, os seus autores são respeitáveis<br />
membros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. “White-Collar crime” na conheci<strong>da</strong> expressão<br />
<strong>de</strong> Sutherland (92) .<br />
Outra personagem que incorpora em si várias características <strong>do</strong><br />
homem mo<strong>de</strong>rno africano é o senhor T. Um homem tenebroso, po<strong>de</strong>roso,<br />
que o próprio autor recusou i<strong>de</strong>ntificar por covardia. “É tão po<strong>de</strong>roso,<br />
tão po<strong>de</strong>roso, que nem o nome <strong>de</strong>le ouso man<strong>da</strong>r escrever. Ficará<br />
pela minha covardia apenas como senhor T...” (63). Um militante muito<br />
<strong>de</strong>dica<strong>do</strong>, noutros tempos, ao socialismo, trabalhava agora no Bunker<br />
– um serviço secreto <strong>de</strong> informações, uma polícia secreta, uma espécie<br />
<strong>de</strong> SIS – Serviço <strong>de</strong> Informação e Segurança (em Portugal) – e era um<br />
homem temi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s. “Mas os responsáveis a quem ele pedia favores<br />
olhavam para aquela cara, o sorriso que mais parecia esgar <strong>de</strong> peixe<br />
seco, e tremiam. Nem precisava ameaçar, nem sugerir na<strong>da</strong> com a sua<br />
voz mansa. Bastava olhar para eles. E ministro gosta <strong>da</strong>queles ca<strong>de</strong>irões<br />
em que se senta, são confortáveis, porquê arriscar uma volta força<strong>da</strong><br />
para a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> tampo <strong>de</strong> pau?...” (65).<br />
92 Cfr. Santos, Cláudia (2001).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Mas actualmente as coisas não corriam bem para o senhor T, que<br />
se vê “obriga<strong>do</strong>” (93) a consultar um Kimban<strong>da</strong> (94) (adivinho/curan<strong>de</strong>iro).<br />
Esta personagem simboliza, assim, o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> homem mo<strong>de</strong>rno africano.<br />
O homem mo<strong>de</strong>rno não consegue <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se <strong>da</strong>s suas raízes.<br />
Continua preso às sua raízes. Usa o telemóvel ou o computa<strong>do</strong>r mas não<br />
consegue <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consultar o curan<strong>de</strong>iro.<br />
Observan<strong>do</strong> empiricamente alguns <strong>do</strong>s fenómenos que <strong>de</strong>correm<br />
em África, como a crescente importância <strong>da</strong> magia, <strong>da</strong>s religiões e a expansão<br />
<strong>da</strong>s activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s criminosas, somos tenta<strong>do</strong>s a afirmar que se verifica<br />
um retrocesso, uma vez que as expectativas <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnização não<br />
se concretizaram. Mas a esta análise superficial <strong>de</strong>ve-se acrescentar um<br />
estu<strong>do</strong> mais aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas. Importa,<br />
pois, analisar, tal como Chabal e Daloz, o indivíduo e as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
que constituem essa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a apurar as diferenças entre as<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntal e africana, os limites <strong>da</strong> política em África e as consequências<br />
<strong>de</strong>ssas diferenças.<br />
O que houve <strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s in<strong>de</strong>pendências foi a africanização (ajustamento<br />
<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los políticos importa<strong>do</strong>s às reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas) <strong>da</strong><br />
política e as chama<strong>da</strong>s transições <strong>de</strong>mocráticas estão a ser reinterpreta<strong>da</strong>s<br />
localmente.<br />
A mo<strong>de</strong>rnização <strong>da</strong>s formas africanas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e a administração<br />
<strong>do</strong>s sistemas políticos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte foram complexas, <strong>do</strong>lorosas<br />
e caóticas e produziram uma grave crise económica que traz consigo<br />
futuros condicionalismos políticos. “A consequência <strong>de</strong>ste processo foi<br />
a transformação <strong>da</strong>s formas tradicionais <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> em estratégias<br />
individuais e colectivas <strong>de</strong> manuseamento <strong>do</strong> cambio e <strong>da</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.<br />
93 Os actores políticos são influencia<strong>do</strong>s pelo irracional, pela religião e pela bruxaria, por isso, não<br />
se inibem <strong>de</strong> recorrer ao adivinho-curan<strong>de</strong>iro, embora em segre<strong>do</strong>.<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, nos países on<strong>de</strong> pre<strong>do</strong>mina a pobreza, a violência, e o <strong>de</strong>sespero, existe uma crescente<br />
procura <strong>da</strong> bruxaria. Esta <strong>de</strong>sempenha três papéis fun<strong>da</strong>mentais: cura, coesão social e nivelação social. A<br />
bruxaria contribui para manter a coesão social, na medi<strong>da</strong> em que po<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r a resolver problemas que<br />
po<strong>de</strong>riam levar a conflitos sociais ain<strong>da</strong> maiores.<br />
94 “O quimban<strong>da</strong> é o adivinho-curan<strong>de</strong>iro, o necromante, o exorcista. Trata as enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, diagnostican<strong>do</strong><br />
por adivinhação; <strong>de</strong>bela os azares, restabelece a harmonia conjugal ou provoca a inimiza<strong>de</strong>”<br />
(Ribas, 1989: 41). O quimban<strong>da</strong> não <strong>de</strong>ve ser confundi<strong>do</strong> com o feiticeiro. “O quimban<strong>da</strong>, note-se bem, é<br />
o médico tradicional, o homem que essencialmente tem por objectivo a promoção <strong>do</strong> bem, ao passo que<br />
o feiticeiro, em repelente natureza <strong>do</strong> seu carácter, exclusivamente se consagra à <strong>de</strong>struição <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
alheia” (Ribas, 1989: 52).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
83
84<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Os africanos já não se po<strong>de</strong>m apoiar nem no que tem a ver com as suas<br />
tradições <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro, nem nos tipos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> her<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />
experiência colonial ou adquiri<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois através <strong>da</strong> sua percepcão <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal pós-mo<strong>de</strong>rno. Projectam-se a si mesmos como homens<br />
<strong>de</strong> negócios porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> telemóveis, ao mesmo tempo que se mantêm<br />
em contacto com os espíritos <strong>da</strong> al<strong>de</strong>ia. Reinterpretam Rambo a partir <strong>da</strong><br />
lembrança <strong>da</strong>s cerimónias <strong>de</strong> iniciação (95) ” ( Chabal e Daloz, 2001: 87).<br />
O problema <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> é central para se compreen<strong>de</strong>r a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
africana. A análise política clássica assenta na noção <strong>de</strong> indivíduo como<br />
ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, in<strong>do</strong> ao encontro <strong>do</strong> vocábulo ci<strong>da</strong>dão, característico<br />
<strong>da</strong>s nações oci<strong>de</strong>ntais. No continente africano, a noção <strong>de</strong> indivíduo<br />
dilui-se, to<strong>da</strong>via, na noção <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. As i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas incorporam<br />
uma noção comunitária <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> (96) . O indivíduo, o individualismo<br />
é uma premissa <strong>do</strong> paradigma mo<strong>de</strong>rno.<br />
No mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal, ou melhor, nos países ditos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, a<br />
política rege-se pela or<strong>de</strong>m racional (97) . Isto é, segun<strong>do</strong> Daloz e Chabal,<br />
“y la práctica <strong>de</strong> la política se disocia progresivamente <strong>de</strong>l mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> las creencias<br />
religiosas” (2001: 101). As crenças religiosas, o irracional, a feitiçaria,<br />
o espiritual, não interagem na dinâmica social, mas restringem-se ao<br />
95 Erra<strong>do</strong> seria querer i<strong>de</strong>ntificar uma noção africana <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois as i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais<br />
“não são rígi<strong>da</strong>s nem imutáveis; elas são sempre processos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação em curso e constituem uma<br />
sucessão <strong>de</strong> configurações e representações que <strong>de</strong> época para época dão corpo e vi<strong>da</strong> a tais i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.<br />
Para António Custódio Gonçalves, é importante conhecer quem pergunta pela i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, em que contexto,<br />
com que objectivos, porque ao longo <strong>da</strong> história e ain<strong>da</strong> hoje a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> é explora<strong>da</strong>. Em nome<br />
<strong>da</strong>s etnias, manipulam-se eleições; em nome <strong>da</strong>s etnias, minimizam-se movimentos sociais <strong>de</strong> revolta;<br />
em nome <strong>da</strong>s etnias, criam-se conflitos entre irmãos. Enfim: “A etnici<strong>da</strong><strong>de</strong> em África é um fenómeno<br />
complexo, caracteriza<strong>do</strong> pelo etnocentrismo, pela consciência comum e pela i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(Gonçalves, 1999: 15).<br />
96 Assim, a noção <strong>de</strong> indivíduo permanece firmemente enraiza<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s re<strong>de</strong>s familiares, parentais<br />
e comunitárias, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>. No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Chabal e Daloz, quaisquer que tenham si<strong>do</strong> as mu<strong>da</strong>nças<br />
pós-coloniais, não tiveram como resulta<strong>do</strong> a separação <strong>do</strong> individual <strong>do</strong> comunitário. No entanto,<br />
embora para um oci<strong>de</strong>ntal seja difícil conceber a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> diferente <strong>da</strong> sua, isso não significa, que os<br />
africanos não possam, ao mesmo tempo, ser mo<strong>de</strong>rnos e não individualiza<strong>do</strong>s (89).<br />
Esta concepção <strong>da</strong> política, <strong>do</strong> indivíduo e <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão po<strong>de</strong> influenciar o problema chave,<br />
que é o <strong>de</strong> saber o que é ou não politicamente legítimo. O problema <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> é complexo. Para os<br />
autores <strong>de</strong> Africa camina, a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> que temos para perceber a política em África, resulta, em parte,<br />
<strong>da</strong> nossa pobre percepção <strong>do</strong> problema <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
97 Quan<strong>do</strong> falamos em racionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, estamos, à semelhança <strong>de</strong> Daloz e Chabal (2001: 101) a referir-nos<br />
a uma racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> “social”, que aju<strong>da</strong> as pessoas a compreen<strong>de</strong>r como <strong>de</strong>vem viver e interagir<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e não, exclusivamente, à racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, base <strong>do</strong> progresso<br />
tecnológico.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
campo meramente individual, circunscrevem-se ao <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>.<br />
Pelo contrário, nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas, Daloz e Chabal constatam que<br />
“hay pruebas abun<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong> que su comportamiento político es afecta<strong>do</strong><br />
por creencias religiosas que poseen un peso cultural abruma<strong>do</strong>r. De hecho,<br />
ahora parece claro – como se muestra quizá mejor en la mo<strong>de</strong>rna ficción<br />
africana – que el estar expuesto al pensamiento y la educación occo<strong>de</strong>ntales<br />
no reduce seriamente el gra<strong>do</strong> <strong>de</strong> aceptación que la elite africana ilustra<strong>da</strong><br />
otorga a la superposición <strong>de</strong> lo religioso e lo temporal” (2001: 103, 104).<br />
Os autores <strong>de</strong> África Camina – El <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>n como instrumento político<br />
vão ain<strong>da</strong> mais longe quan<strong>do</strong> sugerem que o facto <strong>de</strong> os políticos africanos<br />
favorecerem os seus familiares se <strong>de</strong>ve a essa dimensão religiosa<br />
<strong>do</strong> africano, concretamente à crença no po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s (98) e<br />
consequentemente <strong>do</strong>s seus espíritos, e não simplesmente à parciali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
étnica (105), ou ao nepotismo, como acontece entre nós.<br />
A observação <strong>de</strong> Chabal e Daloz não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser pertinente. Não<br />
advirá <strong>da</strong>í a legitimação social para alguns comportamentos ilegais,<br />
como os crimes <strong>de</strong> peculato, abuso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, tráfico <strong>de</strong> influências, entre<br />
outros, e por arrastamento o crime <strong>de</strong> corrupção? Des<strong>de</strong> que alimentem<br />
posteriormente a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> clientela familiar, esses actos são encara<strong>do</strong>s<br />
como naturais e até espera<strong>do</strong>s.<br />
O homem africano “oci<strong>de</strong>ntaliza<strong>do</strong>” não assume, no entanto, esse<br />
irracional, porque a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> é também uma premissa <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
Para se afirmar como homem mo<strong>de</strong>rno escon<strong>de</strong> as consultas ao<br />
kimban<strong>da</strong>, como ilustra a personagem T, <strong>do</strong> romance em análise. “Por<br />
isso resolveu ir consultar um Kimban<strong>da</strong> <strong>de</strong> que se falava muito nas altas<br />
esferas. Sugestões, alusões, nunca na<strong>da</strong> directo, pois nenhum político<br />
po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r a enten<strong>de</strong>r que é trata<strong>do</strong> por Kimban<strong>da</strong>, esses bantuísmos só<br />
dão para ignorantes fali<strong>do</strong>s, nunca para quem tem nome e carreira a preservar.<br />
Mas o Bunker tinha provas que muitos políticos iam receber conselhos<br />
e tratamentos numa casa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> <strong>de</strong> um muceque recente, lá<br />
para os la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> aeroporto... Bastava ter precauções especiais, usan<strong>do</strong> o<br />
carro <strong>de</strong> vidros fuma<strong>do</strong>s com uma matrícula <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> que ele mu<strong>da</strong>va<br />
sempre que queria, tinha várias na garagem <strong>de</strong> casa” (65).<br />
98 Esse po<strong>de</strong>r está também presente, como já constatámos, na obra O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
85
86<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
O adivinho-curan<strong>de</strong>iro atesta a interligação entre o mo<strong>de</strong>rno e o tradicional,<br />
mas surge também como personagem no romance <strong>de</strong> Pepetela<br />
para <strong>de</strong>nunciar o tráfico <strong>de</strong> influências, ou melhor <strong>do</strong> comércio <strong>de</strong> influências,<br />
embora o Kimban<strong>da</strong> não o admitisse: “Quanto ao pagamento <strong>da</strong><br />
consulta e tratamento, nem falamos disso, apenas quero a sua consi<strong>de</strong>ração<br />
e amiza<strong>de</strong>, quem sabe se um dia vou precisar <strong>da</strong> sua influência... Não,<br />
não se tratava <strong>de</strong> um comércio, era uma arte a que ele se <strong>de</strong>dicava com<br />
<strong>de</strong>voção ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente sacer<strong>do</strong>tal e que acabava por ser compensa<strong>da</strong><br />
pelos amigos, um dia, quan<strong>do</strong> precisava, quais generosos e <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s<br />
mecenas que apoiam o artista, limita<strong>do</strong> a um momento <strong>da</strong><strong>do</strong> por<br />
estúpi<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s materiais que o impediam <strong>de</strong> realizar a obra” (70,<br />
71). Não se trata, pois, <strong>de</strong> um Kimban<strong>da</strong> tradicional mas <strong>de</strong> um novo<br />
rico, ridiculariza<strong>do</strong> pela originali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um escritor que surpreen<strong>de</strong><br />
com um tratamento absur<strong>do</strong>: a so<strong>do</strong>mia era o medicamento para fechar<br />
to<strong>do</strong>s os males: “T <strong>de</strong>spiu as calças e as cuecas, viran<strong>do</strong>-se um pouco<br />
para ocultar o sexo. Depois pensou, parvoíce, ao médico se po<strong>de</strong> mostrar<br />
tu<strong>do</strong>, não há vergonhas. Afastou as pernas e inclinou-se para a frente,<br />
apoia<strong>do</strong> pelas duas mãos no braço <strong>da</strong> poltrona. O Kimban<strong>da</strong> então levantou,<br />
passou para trás <strong>de</strong>le. T ouviu o barulho <strong>de</strong> panos a serem manusea<strong>do</strong>s.<br />
Sentiu uma coisa tocan<strong>do</strong> no seu anus”. Já <strong>de</strong> regresso e refeito<br />
<strong>da</strong> humilhação T po<strong>de</strong> constatar: “– Por isso é que ninguém diz que veio<br />
consultar este gajo, ninguém sabe <strong>de</strong> na<strong>da</strong>, só há sorrisos dissimula<strong>do</strong>s.<br />
Deve ter enfia<strong>do</strong> a azagaia em muito cu” (71).<br />
E o homem protegi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Bunker regressa à normali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sempre<br />
persegui<strong>do</strong> por Jaime Bun<strong>da</strong>. Era “peixe graú<strong>do</strong>”, acima <strong>de</strong> qualquer<br />
suspeita. Por isso, o chefe Chiquinho Vieira or<strong>de</strong>nou ao <strong>de</strong>tective que as<br />
investigações seguissem outro rumo. Curiosamente, o nome <strong>do</strong> senhor T<br />
não representa na<strong>da</strong> para o nosso <strong>de</strong>tective. Jaime Bun<strong>da</strong>, ao investigar<br />
a morte <strong>da</strong> jovem, esbarra-se com o nome <strong>do</strong> temeroso, mas “o nome<br />
em si não lhe dizia na<strong>da</strong> (não é como a nós, que até nos faz tremer) e foi<br />
consultar ficheiros” (73). No entanto, a perseguição continua com o aval<br />
<strong>do</strong> Director <strong>de</strong> Operações, o parente <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>, que parece querer<br />
vingar-se <strong>de</strong> histórias antigas. Até as investigações se orientam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com interesses e jogos pessoais. Um princípio <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> policial<br />
sabiamente administra<strong>do</strong>. Em vez <strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong> na promoção e prosse-<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
cução processual, garante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito, a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> formal,<br />
gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> arbítrios e <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Só se persegue quem se quer (99) . A<br />
perseguição, leva<strong>da</strong> a cabo pelo nosso herói, Jaime Bun<strong>da</strong>, leva o leitor<br />
até ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> crime organiza<strong>do</strong>, ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> paralelo, <strong>da</strong><br />
corrupção, <strong>da</strong> <strong>de</strong>linquência...<br />
O crime e a violência preenchem as páginas <strong>do</strong> romance, e atestam<br />
a tese <strong>de</strong> Daloz e Chabal que não existe uma fronteira entre o legal e o<br />
ilegal, entre o lícito e o ilícito, o formal e o informal. Há como que uma<br />
fusão, conseguin<strong>do</strong> o ilegal alimentar o legal. O negócio <strong>de</strong> empresas <strong>de</strong><br />
segurança priva<strong>da</strong> prolifera aos olhos <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s (100) . Às portas <strong>do</strong> “maior<br />
merca<strong>do</strong> ao ar livre <strong>de</strong> África, <strong>de</strong> nome <strong>de</strong> novela brasileira (101) ” (83), a<br />
“«Confia – Agência <strong>de</strong> Segurança», proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antonino Das Corri<strong>da</strong>s<br />
– colega <strong>de</strong> infância <strong>do</strong> jovem Bun<strong>da</strong> – confirma o sucesso <strong>do</strong> negócio.<br />
Embora seja “muito ilegal mesmo apesar <strong>de</strong> letreiro e tu<strong>do</strong>” (90), o<br />
próprio Jaime Bun<strong>da</strong> compactua e contrata os serviços ilegais, para tratar<br />
<strong>de</strong> um assunto priva<strong>do</strong> <strong>de</strong> âmbito amoroso. Aliás, é através <strong>de</strong>ste promissor<br />
<strong>de</strong>tective que sabemos que o que era retrata<strong>do</strong> no cinema e na literatura<br />
é pura reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (102) : “Mas foi crescen<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> primeiro na<br />
literatura e no cinema, <strong>de</strong>pois na vi<strong>da</strong>, que havia polícias <strong>de</strong>linquentes,<br />
corruptos, sem se diferenciarem na<strong>da</strong> <strong>do</strong>s bandi<strong>do</strong>s. Agora li<strong>da</strong>va to<strong>do</strong> o<br />
tempo com esses e na<strong>da</strong> o admirava” (87). Antonino Das Corri<strong>da</strong>s chega<br />
a propor socie<strong>da</strong><strong>de</strong> ao jovem estagiário: “Te <strong>do</strong>u uma comissão por ca<strong>da</strong><br />
cliente que me arranjas – propôs Antonino, entusiasma<strong>do</strong>. Jaime Bun<strong>da</strong><br />
achou exagera<strong>do</strong> tanto entusiasmo, mas percebeu em segui<strong>da</strong>. – Deves<br />
99 O princípio <strong>de</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> (não se persegue o homicídio se ele confessar o crime) tão celebra<strong>do</strong><br />
ao nível interno nos E.U.A. ajusta-se agora também à sua política externa. Muitas vezes as investigações<br />
orientam-se segun<strong>do</strong> os interesses externos <strong>de</strong> uma nação, como é o caso no romance Jaime Bun<strong>da</strong> e a<br />
morte <strong>do</strong> americano. Em nome <strong>de</strong> uma suposta ameaça terrorista sacrificam-se inocentes. Os mais fracos<br />
obe<strong>de</strong>cem para não passarem para o la<strong>do</strong> inimigo!<br />
100 A violência organiza<strong>da</strong> prospera nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s pobres, on<strong>de</strong> a política está muito pouco institucionaliza<strong>da</strong>,<br />
on<strong>de</strong> a lei e a or<strong>de</strong>m são frágeis e on<strong>de</strong> a economia paralela é forte, e essa violência é<br />
instrumentaliza<strong>da</strong> constituin<strong>do</strong> um negócio.<br />
101 Trata-se <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> Roque Santeiro. Um mun<strong>do</strong> marginal, <strong>de</strong> <strong>de</strong>linquência... “Se calculava, cem<br />
mil pessoas estavam lá juntas na hora <strong>de</strong> maior afluência, quer dizer, ao meio-dia. E um milhão passava<br />
to<strong>do</strong>s os dias. Se dizia porque estatísticas, números, afirmações objectivas e verificáveis, isso na<strong>da</strong>” (83).<br />
102 Não haverá aqui uma intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> comunicativa por parte <strong>do</strong> autor? Ou seja, não estará a<br />
dizer ao leitor que tu<strong>do</strong> o que o autor, através <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, recriou no mun<strong>do</strong> ficcional, se trata na ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> real, no qual o próprio leitor vive?<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
87
88<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
arranjar bons clientes. To<strong>da</strong> a gente sabe, lá em cima vocês an<strong>da</strong>m to<strong>do</strong>s<br />
à porra<strong>da</strong> uns com os outros” (89).<br />
O mun<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> <strong>do</strong> ilegal versus legal volta a <strong>de</strong>sfilar aos olhos<br />
<strong>do</strong> leitor, através <strong>da</strong> personagem Said Bencherif. Um libanês que tinha<br />
si<strong>do</strong> expulso <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>: “Acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> diamantes, drogas e,<br />
se refilasse muito, também <strong>de</strong> armas para a rebelião. Assim ele contou,<br />
quan<strong>do</strong> me conheceu em Dakar” (135). Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos, regressa para<br />
espanto <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>, com sobrenome falso – Benselama –, e com a<br />
cobertura <strong>do</strong> to<strong>do</strong> po<strong>de</strong>roso senhor T, tinha entra<strong>do</strong> clan<strong>de</strong>stinamente no<br />
país: “para recuperar o que lhe tiraram <strong>da</strong> outra vez em que foi expulso,<br />
segun<strong>do</strong> ele para lhe ficarem com o negócio e fortuna” (135). E chegamos<br />
ao fim <strong>do</strong> livro <strong>do</strong> primeiro narra<strong>do</strong>r sem termos um polícia honesto.<br />
O autor <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r o estatuto <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. O narra<strong>do</strong>r heterodiegético<br />
dá lugar a um narra<strong>do</strong>r autodiegético, feminino, estrangeiro – <strong>da</strong><br />
Argélia. A narra<strong>do</strong>ra Malika, suposta mulher <strong>de</strong> Said Bencherif, é quem<br />
melhor conhece a personagem. É através <strong>de</strong>ste narra<strong>do</strong>r, num processo<br />
e caracterização directa, que ficamos a saber quase tu<strong>do</strong> sobre o mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s negócios ilícitos, sobre os esquemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> informal (103) que alimentam<br />
Said e os po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>.<br />
Com o pensamento <strong>de</strong>sta “simpática narra<strong>do</strong>ra”, vemos postos em<br />
causa alguns preceitos <strong>da</strong> cultura muçulmana – como o Ramadão, o<br />
papel subalterno <strong>da</strong> mulher, a poligamia –, bem como temos presente<br />
a <strong>de</strong>núncia <strong>do</strong> racismo hipócrita <strong>do</strong> povo francês: “Qual o argelino que<br />
duvi<strong>da</strong> <strong>do</strong> racismo, envergonha<strong>do</strong> para uns, hipócrita para outros, <strong>do</strong>s<br />
franceses tão diferente <strong>do</strong> <strong>de</strong> outros europeus que esses não o escon<strong>de</strong>m,<br />
muitas vezes até fazem gala <strong>de</strong> o exibir?”. O livro <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />
é no fun<strong>do</strong> uma história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> (ou <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>s!). A vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Malika que<br />
o autor <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> silenciar: “... mas tenho <strong>de</strong> a dispensar com a alma con<strong>do</strong>í<strong>da</strong>,<br />
<strong>de</strong>vo confessá-lo. A razão <strong>da</strong> minha atitu<strong>de</strong> é pon<strong>de</strong>rosa. Se continuamos<br />
com ela, vamos provavelmente entrar pelos fabulosos haréns<br />
<strong>de</strong> sultões e califas, digamos <strong>da</strong>s Mil e Uma Noites... Mas per<strong>de</strong>ríamos<br />
o espantoso Jaime Bun<strong>da</strong> e sua infatigável luta contra os horren<strong>do</strong>s cri-<br />
103 O peso <strong>da</strong> economia paralela, o mun<strong>do</strong> informal, consiste num obstáculo ao <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Ain<strong>da</strong> recentemente, um relatório resultante <strong>de</strong> uma auditoria apresentava a corrupção e a economia<br />
paralela como <strong>do</strong>s maiores entraves ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> Portugal.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
mes cometi<strong>do</strong>s em Luan<strong>da</strong>, razão <strong>do</strong>s nossos propósitos. Há momentos<br />
na vi<strong>da</strong> em que optar, por outras palavras exercer a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, é um acto<br />
<strong>do</strong>loroso (104) . Mas necessário” (167).<br />
O livro <strong>do</strong> terceiro narra<strong>do</strong>r (169) começa por visualizar a narrativa<br />
<strong>do</strong> segun<strong>do</strong>, que foi conta<strong>da</strong> pelo olhos <strong>de</strong> Malika (105) . Presenciamos as<br />
mesmas cenas, mas <strong>de</strong> um outro ângulo, como se fosse uma nova versão.<br />
A partir <strong>da</strong>í seguimos as investigações <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong> que culminam<br />
com a apreensão, em flagrante <strong>de</strong>lito, <strong>de</strong> uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> apreciável <strong>de</strong><br />
Kwanzas falsos, acaba<strong>do</strong>s <strong>de</strong> chegar ao país e <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a Kínguilas que<br />
os introduziriam no merca<strong>do</strong>, com grave risco <strong>de</strong> pressões inflacionárias.<br />
A acção <strong>de</strong>ste terceiro livro torna o estagiário <strong>de</strong>tective num ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
herói. Jaime Bun<strong>da</strong> ao conseguir apanhar os falsários, Said e Bubacar,<br />
confirma a importância <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, ambiciona<strong>do</strong> por qualquer ser<br />
humano, simboliza<strong>do</strong> pelo Bunker. O Bunker representa, aliás, a excessiva<br />
personalização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político. Quer queiramos, quer não, remetenos<br />
para a imagem <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte José Eduar<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Santos. Na opinião<br />
<strong>de</strong> José Carlos Venâncio, esse po<strong>de</strong>r era já “evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong><br />
in<strong>de</strong>pendência, conquanto Pepetela, pelas razões acima expostas, não o<br />
tenha revela<strong>do</strong>. Fá-lo agora com a figura <strong>do</strong> Bunker, que, sen<strong>do</strong> explícita<br />
em termos sociológicos, <strong>de</strong>nota (aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao significa<strong>do</strong> que me parece<br />
mais óbvio) um tratamento literário que está, por sua vez, aquém <strong>do</strong><br />
que o escritor nos habituou” (2004: 11).<br />
A excessiva personalização <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r surge, no entanto, prejudicial<br />
à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Implicitamente, o narra<strong>do</strong>r apresenta um chefe <strong>do</strong><br />
Bunker com comportamentos imorais, diríamos criminosos, pois <strong>de</strong>ixa<br />
no ar suspeitas <strong>de</strong> práticas pedófilas: “To<strong>da</strong> a gente sabia que o chefe<br />
<strong>do</strong> Bunker era candi<strong>da</strong>to a uma canonização pela Igreja, mal batesse as<br />
botas, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao seu amor in<strong>de</strong>fectível pelas criancinhas, especialmente<br />
meninas, as quais acariciava sempre muito e protegia <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os males,<br />
não falhan<strong>do</strong> uma missa na Igreja <strong>de</strong> Jesus, on<strong>de</strong> por vezes recebia a hóstia<br />
<strong>do</strong> próprio arcebispo. Curioso. Como podia o coman<strong>da</strong>nte ir sempre<br />
104 Será que o autor se refere ao facto <strong>de</strong> ele próprio procurar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, saben<strong>do</strong> que po<strong>de</strong>rá ser<br />
<strong>do</strong>loroso a sua <strong>de</strong>núncia e que os leitores prefeririam <strong>de</strong>leitarem-se nos haréns <strong>de</strong> Malika?!<br />
105 Este segun<strong>do</strong> livro trata-se <strong>do</strong> relatório que Malika teve <strong>de</strong> efectuar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> interroga<strong>da</strong> pelo<br />
D. O. – Director <strong>de</strong> Operações.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
89
90<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
à missa e à comunhão, embora em cultos especiais sem testemunhas, e<br />
ninguém saber como ele era, dizen<strong>do</strong>-se que estava sempre meti<strong>do</strong> no<br />
buraco? Contradição <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong> rua?” (208)<br />
O mistério à volta <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> Bunker é permanente ao longo <strong>do</strong> romance<br />
– aliás a sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> nunca chega a ser <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>da</strong> – bem como<br />
em relação à personagem T. A apresentação <strong>da</strong> biografia <strong>de</strong>ste, no início<br />
<strong>do</strong> terceiro livro, aju<strong>da</strong> a clarificar a sua ascensão ao po<strong>de</strong>r. E o narra<strong>do</strong>r<br />
põe a nu os próprios esquemas partidários, os jogos <strong>de</strong> interesses, a atribuição<br />
pouco transparente <strong>de</strong> verbas, o tráfico <strong>de</strong> influências, o abuso <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r, que faz <strong>de</strong> personagens (106) como T explora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Curiosamente,<br />
quan<strong>do</strong> alguns patriotas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Bunker se preparavam para<br />
o afastar “através <strong>da</strong>s práticas habituais neste género <strong>de</strong> Serviços, foram<br />
absolutamente surpreendi<strong>do</strong>s com a sua nomeação para conselheiro (107) ,<br />
o que na prática <strong>de</strong>sconhecemos que funções significam” (183).<br />
O, agora, conselheiro <strong>do</strong> Bunker continuou com os seus esquemas,<br />
ten<strong>do</strong>, até, mais po<strong>de</strong>r usan<strong>do</strong> o tráfico <strong>de</strong> influências para obtenção <strong>de</strong><br />
106 Po<strong>de</strong>remos consi<strong>de</strong>rar que se trata <strong>de</strong> uma personagem tipo. O facto <strong>de</strong> não ter i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong><br />
ser intencional, pois, remete para o plural. Não se trata <strong>de</strong> um indivíduo concreto, mas po<strong>de</strong> simbolizar<br />
um grupo social.<br />
107 A recente nomeação <strong>de</strong> Pierre Falcone para ministro conselheiro <strong>de</strong> Angola junto <strong>da</strong> UNESCO<br />
em Paris provocou um escân<strong>da</strong>lo entre as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s francesas e mal-estar em Luan<strong>da</strong>. Este comerciante<br />
esteve um ano em prisão preventiva no âmbito <strong>do</strong> inquérito <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> <strong>de</strong> armas a Luan<strong>da</strong> nos anos <strong>de</strong> 1993<br />
e 94, no valor <strong>de</strong> 500 mil dólares.<br />
A Justiça francesa imputa-lhe os crimes <strong>de</strong> comércio ilícito <strong>de</strong> armas, abuso <strong>de</strong> bens sociais, frau<strong>de</strong><br />
fiscal e tráfico <strong>de</strong> influências num processo on<strong>de</strong> estão incluí<strong>da</strong>s personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s francesas como Jean-<br />
Crhistophe Mitterrand ou Jacques Atalli. Valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> seu passaporte diplomático angolano e <strong>da</strong> carta<br />
<strong>de</strong> diplomata passa<strong>da</strong> pelo Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiro Francês, Pierre Falcone pô<strong>de</strong> sair legalmente<br />
<strong>de</strong> França. A imprensa francesa <strong>de</strong>signou o comportamento <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s angolanas como “a<br />
palhaça<strong>da</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>”. “Em Paris, o jornalista <strong>da</strong> rádio nacional France Inter Dominique Brombeerger<br />
perguntava: “Que este personagem duvi<strong>do</strong>so tenha procura<strong>do</strong> a protecção <strong>da</strong> imuni<strong>da</strong><strong>de</strong> diplomática,<br />
é perfeitamente lógico (...) É o governo angolano que <strong>de</strong>ve explicar o seu comportamento (...) Receia o<br />
Presi<strong>de</strong>nte Dos Santos que Falcone dê com a língua nos <strong>de</strong>ntes? Que ele diga, por exemplo, como se fazia<br />
a redistribuição <strong>do</strong> dinheiro pago pelo seu país por armas compra<strong>da</strong>s a Falcone por três e quatro vezes<br />
mais <strong>do</strong> que o preço real?”. Cf. Pedro (2003).<br />
Também ao nível interno, apesar <strong>da</strong> intransigência <strong>do</strong> governo angolano, não têm falta<strong>do</strong> vozes<br />
críticas àquela nomeação. Diversos parti<strong>do</strong>s, nomea<strong>da</strong>mente a UNITA, procuram discutir o assunto no<br />
Parlamento. No próprio MPLA o mal-estar é crescente, aprofun<strong>da</strong>n<strong>do</strong> um certo isolamento <strong>de</strong> José Eduar<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s Santos. Cf. Cor<strong>de</strong>iro (2003).<br />
Este exemplo, colhi<strong>do</strong> na imprensa, revela as relações menos claras entre o po<strong>de</strong>r político e a criminali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
económica <strong>de</strong> tal forma que aquele não se coíbe <strong>de</strong> nomear como seu embaixa<strong>do</strong>r um foragi<strong>do</strong><br />
às autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s francesas. No ar ficam as suspeitas, dúvi<strong>da</strong>s e mistérios... Estas relações perigosas e misteriosas<br />
estão sempre presente no romance em análise. Há personagens que estão sempre protegi<strong>da</strong>s por<br />
quem man<strong>da</strong>.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
benefícios próprio. “Entretanto começaram a surgir suspeitas <strong>de</strong> manobras<br />
<strong>de</strong> basti<strong>do</strong>res que o elemento terá utiliza<strong>do</strong> para pressionar <strong>do</strong>is<br />
ministros a aceitarem uma proposta escan<strong>da</strong>losa <strong>de</strong> compra <strong>de</strong> fechaduras<br />
enchen<strong>do</strong> <strong>de</strong>z contentores e que se <strong>de</strong>scobriu <strong>de</strong>pois não terem<br />
chave nem sítio on<strong>de</strong> a meter; i<strong>de</strong>m no caso <strong>do</strong> vinho falsifica<strong>do</strong>, feito<br />
a partir <strong>de</strong> borras <strong>de</strong> uvas e álcool industrial mistura<strong>do</strong> com água; i<strong>de</strong>m<br />
na privatização gratuita <strong>do</strong> centro <strong>de</strong> ultracongela<strong>do</strong>s que ficou para um<br />
amigo seu, ten<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> pago ain<strong>da</strong> um subsídio volumoso para pôr a<br />
funcionar o complexo, o qual sempre funcionara bem antes <strong>da</strong> privatização;<br />
i<strong>de</strong>m nos aviários <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> galinhas sem patas nem cabeça, as<br />
quais <strong>de</strong>sconseguiram <strong>de</strong> se reproduzir, apesar <strong>do</strong> enorme investimento<br />
feito pelo Esta<strong>do</strong>, não sei se por falta <strong>da</strong> cabeça ou por falta <strong>da</strong>s patas.<br />
Como indicam os anexos 24, 25 e 26, são inúmeras as suspeitas <strong>do</strong>s nossos<br />
homens sobre negócios ilícitos e sobretu<strong>do</strong> negócios ruinosos em que<br />
o elemento consegue fazer o Esta<strong>do</strong> participar, usan<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu tráfico <strong>de</strong><br />
influências. Na sequência <strong>de</strong>sta prática escan<strong>da</strong>losa apontam-se algumas<br />
proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s ao imprestável ci<strong>da</strong>dão, embora oficialmente estejam<br />
em nome <strong>de</strong> outras pessoas...” (184).<br />
A personagem T não sai <strong>da</strong> mira <strong>do</strong> Director <strong>de</strong> Operações, parente<br />
<strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>. O homicídio <strong>da</strong> jovem fica esqueci<strong>do</strong> para, em nome<br />
<strong>da</strong> manutenção <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, se <strong>de</strong>scobrir uma história incriminatória, nem<br />
que seja necessário inventá-la. “Vou ven<strong>de</strong>r essa história ao chefe. Po<strong>de</strong><br />
ser que a compre. Pelo menos vai per<strong>de</strong>r algum tempo a averiguar as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
ganhamos uns dias. E vocês vejam se resolvem rápi<strong>do</strong> este<br />
assunto” (220). Ao D. O. interessava incriminar a personagem T, já que<br />
corriam rumores <strong>de</strong> que este iria ser nomea<strong>do</strong> Director – Geral <strong>do</strong> SIG.<br />
Se isso acontecesse, o D. O. seria afasta<strong>do</strong> uma vez que eram inimigos<br />
<strong>de</strong> longa <strong>da</strong>ta. Assim, uma questão pessoal é que <strong>de</strong>termina o <strong>de</strong>senrolar<br />
<strong>do</strong> inquérito. Mas como se po<strong>de</strong> confirmar no livro <strong>do</strong> quarto narra<strong>do</strong>r<br />
– “on<strong>de</strong> se conclui a estória, provavelmente sem conclusão expressa...”<br />
(247) – não se encontram provas que levem à con<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> inimigo.<br />
Nem mesmo com técnicas policiais, que fariam erguer a voz a qualquer<br />
ONG – Organização Não Governamental. A preocupação com os Direitos<br />
Humanos é substituí<strong>da</strong> pela preocupação com os direitos pessoais instituí<strong>do</strong>s.<br />
“Said tinha a cara to<strong>da</strong> <strong>de</strong>forma<strong>da</strong> e sangrenta, com os lábios<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
91
92<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
rebenta<strong>do</strong>s, alguns <strong>de</strong>ntes a menos e os olhos fecha<strong>do</strong>s. Mas repetiu a<br />
sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ligação com T era a coisa mais inocente <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Continuou<br />
a sessão <strong>de</strong> tortura. Armandinho voltou a parar para recuperar<br />
o fôlego. (...) Silêncio. Mais porra<strong>da</strong>. Mais silêncio. Armandinho estava<br />
extenua<strong>do</strong>” (255, 256).<br />
Said e Bubacar são interroga<strong>do</strong>s individualmente e frente a frente,<br />
mas pouco mais adiantam aos factos conheci<strong>do</strong>s pelos investiga<strong>do</strong>res.<br />
Estes queriam saber quem lhes <strong>da</strong>va cobertura no país, forçan<strong>do</strong> para<br />
que a resposta fosse T, mas em vão. Said ain<strong>da</strong> acusou o seu antigo sócio<br />
<strong>de</strong> colaboração neste crime <strong>de</strong> falsificação <strong>de</strong> moe<strong>da</strong>. Meritório Ta<strong>de</strong>u<br />
foi interroga<strong>do</strong> e convi<strong>da</strong><strong>do</strong> a se <strong>de</strong>ixar fechar num quarto, <strong>de</strong>pois lhe<br />
explicaram que não estava preso, “apenas <strong>de</strong>ti<strong>do</strong> por alguns momentos,<br />
até porque era um conceitua<strong>do</strong> empresário <strong>da</strong> nossa praça (...). O D.O.<br />
lhe prometeu que ain<strong>da</strong> hoje, antes <strong>da</strong> noite, seria liberta<strong>do</strong> e leva<strong>do</strong><br />
para o escritório, mas precisava <strong>de</strong> o ter à mão para mais uma acareação”<br />
(285). A acareação com Said Bencherif não tinha si<strong>do</strong> lucrativa.<br />
Mas o Director <strong>de</strong> Operações acalentava ain<strong>da</strong> uma última esperança <strong>de</strong><br />
incriminar o “bagre fuma<strong>do</strong>”, a personagem T. “Vou à Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Alta pedir<br />
autorização ao chefe para interrogar o bagre fuma<strong>do</strong>. Explicar-lhe tu<strong>do</strong><br />
o que se passou, as nossas suspeitas, e garantir que num interrogatório<br />
ele vai escorregar, vai entrar em contradição com o Said e outros, vamos<br />
apanhar-lhe nalguma...” (286). Só que o chefe <strong>do</strong> Bunker não lhe <strong>de</strong>u<br />
autorização, pelo contrário, reforçou a confiança em T e man<strong>do</strong>u ain<strong>da</strong><br />
libertar Meritório Ta<strong>de</strong>u, com um pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpa. Apesar <strong>da</strong> frustração,<br />
conseguiu ganhar tempo e manter-se no po<strong>de</strong>r por mais algum<br />
tempo. “De qualquer mo<strong>do</strong>, ficou em banho-maria e por muito tempo a<br />
proposta <strong>do</strong> bagre para director-geral <strong>do</strong> SIG. Só isso ganhámos” (290).<br />
A Armandinho coube a tarefa <strong>de</strong> ir soltar Meritório Ta<strong>de</strong>u, e pedirlhe<br />
<strong>de</strong>sculpa. A estupefacção <strong>do</strong>s três agentes policiais era notória,<br />
perante a importância <strong>do</strong> empresário face ao chefe <strong>do</strong> Bunker. “De<br />
on<strong>de</strong> vinha o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste homem, facto que até espantara o parente,<br />
informa<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> por obrigação? Mistérios e mais mistérios, esta terra<br />
está cheia <strong>de</strong> mistérios, disse para si mesmo Jaime Bun<strong>da</strong>, a <strong>da</strong>r ao arranque.<br />
Provavelmente é casa<strong>do</strong> com uma filha <strong>da</strong> realeza, ou cunha<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> algum membro <strong>da</strong> corte. Ou sabe mujimbos explosivos sobre os<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
cortesãos e o seu silêncio convém comprar. De que é feito o po<strong>de</strong>r nesta<br />
terra? Mistérios, só mistérios...” (292). O mistério <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Meritório<br />
Ta<strong>de</strong>u fazem-no sair em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os limites <strong>da</strong> política são in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s<br />
e, normalmente, os homens po<strong>de</strong>rosos são ricos e os homens ricos<br />
são po<strong>de</strong>rosos. Po<strong>de</strong>r e riqueza são inseparáveis. A esfera <strong>da</strong> política<br />
mistura-se com to<strong>da</strong>s as outras, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a religião ao comércio. Esta é a<br />
primeira diferença com o Oci<strong>de</strong>nte, pois, no mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal, a esfera<br />
<strong>da</strong> política é diferencia<strong>da</strong> <strong>da</strong>s restantes.<br />
Malika sai também em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. A companheira <strong>de</strong> Said será agora<br />
a protegi<strong>da</strong> <strong>do</strong> Director <strong>de</strong> Operações que or<strong>de</strong>na a Jaime Bun<strong>da</strong> que a<br />
leve ao hotel. Nesta viagem a corrupção policial – agora ao mais baixo<br />
nível (aqueles que ganham salários miseráveis) – regressa às páginas<br />
<strong>do</strong> romance. “À entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Ilha, um polícia <strong>de</strong> trânsito man<strong>do</strong>u parar o<br />
carro, para ver os <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> viatura e carta <strong>de</strong> condução. Mais um<br />
a tentar melhorar o miserável salário, pensou Bun<strong>da</strong>, com benevolência,<br />
talvez por ter uma bel<strong>da</strong><strong>de</strong> ao la<strong>do</strong>. Era conheci<strong>do</strong> que os polícias nem<br />
viam os <strong>do</strong>cumentos se no meio <strong>de</strong>les estivesse uma nota boa <strong>de</strong> kwanza,<br />
a chama<strong>da</strong> gasosa. Saíam aos ban<strong>do</strong>s para a rua nos fins-<strong>de</strong>-semana,<br />
sobretu<strong>do</strong> na Ilha, que era o ponto <strong>de</strong> maior circulação por causa <strong>da</strong>s<br />
praias, para extorquirem os ci<strong>da</strong>dãos e particularmente os can<strong>do</strong>ngueiros,<br />
cujos carros teriam sempre qualquer coisa que justificava uma multa<br />
ou apreensão <strong>de</strong> veículo. Jaime mostrou o cartão <strong>do</strong> SIG e recebeu uma<br />
temerosa continência em troca. Sorriu e disse, con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte: – Vai<br />
<strong>de</strong>scansar, colega, já é tar<strong>de</strong>. O dia esteve fraco? O polícia não respon<strong>de</strong>u,<br />
medroso. Qualquer que fosse a resposta podia incriminá-lo, pois<br />
seria sempre admitir que se <strong>de</strong>ixava corromper. Jaime arrancou, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong><br />
o outro na dúvi<strong>da</strong> sobre o seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro estatuto, pois podia se tratar<br />
<strong>de</strong> um fiscal em ron<strong>da</strong> <strong>de</strong> inspecção. Quem não sabia que os SIG era a<br />
polícia <strong>do</strong>s polícias?” (296-297). A polícia <strong>do</strong>s polícias que, ela própria,<br />
não estava imune à corrupção, como se constatou ao longo <strong>da</strong> acção e se<br />
disse logo no início, representa<strong>da</strong> por quase to<strong>da</strong>s as personagens.<br />
O caso <strong>da</strong>s notas falsas estava quase encerra<strong>do</strong>. O D. O. apenas<br />
aguar<strong>da</strong>va informações <strong>da</strong> Interpol e <strong>da</strong> “bófia <strong>de</strong> Cronakry” sobre Diallo<br />
Keita, que Said acusara <strong>de</strong> ser o cérebro <strong>da</strong> operação. Mas “a bófia <strong>de</strong><br />
Cronakry e a Interpol, sempre cautelosas em afastar uma suspeição, pois<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
93
94<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
aplicavam sistematicamente o lema <strong>de</strong> que to<strong>do</strong> o ci<strong>da</strong>dão é culpa<strong>do</strong><br />
antes <strong>de</strong> provar a sua inocência, neste caso eram totalmente afirmativas,<br />
Diallo Keita estava a ser vítima <strong>de</strong> uma acusação ain<strong>da</strong> mais falsa <strong>de</strong><br />
que os kwanzas apreendi<strong>do</strong>s” (298). Mais complica<strong>da</strong>s estavam as coisas<br />
agora para o Director <strong>de</strong> Operações que apenas queria fechar o caso,<br />
mas gostaria <strong>de</strong> arranjar um cérebro fora <strong>do</strong> país, “mesmo que escapasse<br />
em segui<strong>da</strong> à justiça, para se provar ao mun<strong>do</strong> que mais uma vez tinha<br />
havi<strong>do</strong> uma conspiração internacional contra nós e fomos injustiça<strong>do</strong>s.<br />
Assim, temos como cérebro <strong>da</strong> operação apenas o Said, o que é pouco,<br />
pois os seus objectivos eram puramente <strong>de</strong> dinheiro e dificilmente po<strong>de</strong>remos<br />
apresentar o caso como político. E como o Said não vai falar,<br />
nem será mais interroga<strong>do</strong> para <strong>da</strong>r o nome <strong>do</strong> bagre fuma<strong>do</strong>, acabou,<br />
ficamos assim mesmo. Percebeste”. E assim mesmo foi apresenta<strong>do</strong> o<br />
caso em conferência <strong>de</strong> imprensa, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> “Said Benselama, aliás<br />
Bencherif” para “a História e Justiça como o responsável máximo <strong>da</strong> criminosa<br />
operação” (310).<br />
Para o final <strong>da</strong> conferência <strong>de</strong> imprensa estava reserva<strong>da</strong> uma surpresa.<br />
“Surpresa aterroriza<strong>do</strong>ra é preciso dizer. Felizmente para Jaime,<br />
estava ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Armandinho que o amparou, senão havia riscos <strong>de</strong> se ter<br />
estatela<strong>do</strong> no chão, tal a comoção e o me<strong>do</strong>. Pois a surpresa era T em pessoa.<br />
Veio cumprimentar to<strong>do</strong>s os agentes implica<strong>do</strong>s na exitosa operação<br />
trazen<strong>do</strong> os cumprimentos e congratulações <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> Bunker” (308).<br />
Ao ser cumprimenta<strong>do</strong>, Jaime Bun<strong>da</strong> treme <strong>de</strong> me<strong>do</strong> e lembrou-se<br />
<strong>de</strong> Dona Filó que lhe tinha dito, aquan<strong>do</strong> <strong>da</strong> investigação <strong>do</strong> homicídio<br />
<strong>da</strong> jovem, “quan<strong>do</strong> tiveres me<strong>do</strong> vais lembrar <strong>de</strong> mim. Com efeito, Dona<br />
Filó era feiticeira <strong>de</strong> respeito, sabia coisas” (309) O êxito <strong>da</strong> operação foi<br />
comemora<strong>do</strong> com champanhe.<br />
Para trás tinha fica<strong>do</strong> o homicídio <strong>da</strong> jovem. Jaime Bun<strong>da</strong> tomou<br />
conhecimento que o mistério já tinha si<strong>do</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>do</strong>. Kinanga, <strong>do</strong><br />
Ministério <strong>do</strong> interior, que tutelava as investigações informa-o que “o<br />
criminoso é filho <strong>de</strong> um <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>. Da banca<strong>da</strong> maioritária, ain<strong>da</strong> por<br />
cima. Se fosse <strong>da</strong> oposição não seria grave... Eu tenho sempre azar com<br />
estas coisas, sai-me ca<strong>da</strong> às na manga!” (304). Esta confidência revela a<br />
inexistência <strong>de</strong> uma separação material <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res. Apesar <strong>de</strong> formalmente<br />
<strong>de</strong>clara<strong>da</strong> a in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r judicial, não constitui uma<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. As pressões, as intimi<strong>da</strong>ções, a ausência <strong>de</strong> uma clara separação<br />
(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo a nível económico) criam condições para interferências<br />
intoleráveis num Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito.<br />
O jovem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pressiona<strong>do</strong> acabou por confessar o crime. E será<br />
acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> homicídio involuntário. “A violação não dá assim tantos anos<br />
<strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia. E ain<strong>da</strong> por cima <strong>de</strong> uma rapariga que não é <strong>de</strong> família importante.<br />
Com um bom advoga<strong>do</strong>, o rapaz safa-se relativamente bem.<br />
Convenceu-se <strong>de</strong> estar imune por ser filho <strong>de</strong> quem é e nem fez um gran<strong>de</strong><br />
esforço para escon<strong>de</strong>r indícios ou arranjar <strong>de</strong>sculpa. Se fosse menos<br />
arrogante nunca o teríamos apanha<strong>do</strong>. E, apesar <strong>de</strong> ter confessa<strong>do</strong>, não<br />
é certo que possamos resistir às pressões <strong>do</strong> pai e amigos. Que levamos<br />
para tribunal?” (305).<br />
Os saberes tradicionais seriam talvez mais úteis para esta polícia que<br />
não consegue distinguir a racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e que só por<br />
esta via consegue superar as suas incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como aliás já fazia o<br />
Tribunal <strong>de</strong> Santo Ofício. Com o que nos <strong>de</strong>paramos (tal como entre nós<br />
mas para pior) com uma justiça classista. Os po<strong>de</strong>rosos, os ricos po<strong>de</strong>m<br />
contratar advoga<strong>do</strong>s competentes, subverter provas, comprar testemunhas.<br />
Aos outros resta-lhes confiar no normal funcionamento <strong>da</strong> justiça<br />
e esperar. Até porque, no dizer <strong>de</strong> Kinanga, chefe <strong>da</strong> polícia local <strong>do</strong> Ministério<br />
<strong>do</strong> Interior: “O testemunho <strong>de</strong> Dona Filó nunca po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>.<br />
Como sabe, a nossa justiça rege-se pelos princípios europeus,<br />
racionalistas e cegos. Provavelmente o advoga<strong>do</strong> vai ensinar o criminoso<br />
a negar tu<strong>do</strong> e que confessou porque o pressionámos” (305).<br />
Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> encontra<strong>do</strong> o criminoso, Jaime Bun<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> duvi<strong>da</strong>va<br />
<strong>da</strong> inocência <strong>de</strong> T. “... tinha fixa<strong>do</strong> o pormenor relativo a Dona<br />
Filó. A velha lhe tinha dito que quan<strong>do</strong> estivesse perto <strong>do</strong> criminoso<br />
ele teria muito me<strong>do</strong>. Mas me<strong>do</strong> teve <strong>de</strong> facto quan<strong>do</strong> esteve perto <strong>de</strong><br />
T, aliás continuava a borrar-se <strong>de</strong> me<strong>do</strong> só ao pensar em enfrentar o<br />
sinistro personagem. A velha estaria a falar <strong>da</strong> mesma coisa? Parecia<br />
que os <strong>do</strong>is crimes se misturavam, o <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> e o atenta<strong>do</strong><br />
contra a economia nacional. Des<strong>de</strong> o princípio. Devia pôr em confronto<br />
o bagre fuma<strong>do</strong> e Dona Filó. Se não saísse fumo ele atirava a cabeça<br />
para baixo <strong>de</strong> um comboio. Mas Kinanga tinha venci<strong>do</strong> e queria levar a<br />
taça” (306).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
95
96<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Os casos estavam encerra<strong>do</strong>s mas pareciam envoltos em mistério.<br />
E na cabeça <strong>do</strong> <strong>de</strong>tective restaram as dúvi<strong>da</strong>s. Para acalmar só mesmo<br />
um uísque. Mas cortaram as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> representação. Or<strong>de</strong>ns <strong>do</strong> FMI<br />
– Fun<strong>do</strong> Monetário Internacional que, pelo menos, por algum tempo,<br />
punha fim no hábito <strong>de</strong> beber uísque a qualquer hora e sem limite. Aliás,<br />
a garrafa <strong>de</strong> uísque está sempre presente ao longo <strong>do</strong> romance, sinónimo<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> emancipação <strong>do</strong> homem africano.<br />
Tornou-se “mo<strong>de</strong>rno”. A presença <strong>da</strong> garrafa <strong>do</strong> uísque serve também<br />
para criticar os gastos excessivos e supérfluos <strong>do</strong>s governantes, com a<br />
agravante <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviarem dinheiro <strong>da</strong> cooperação internacional, neste<br />
caso através <strong>do</strong> FMI, incluso na rubrica <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> representação. A<br />
utilização in<strong>de</strong>vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s dinheiros <strong>da</strong> cooperação internacional é também<br />
<strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong>, como já foi referi<strong>do</strong>, em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, <strong>de</strong> Mia<br />
Couto. “O dinheiro <strong>de</strong>svia<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses projectos era uma fonte <strong>de</strong> receita<br />
que os senhores locais não podiam dispensar” (200).<br />
O diagnóstico sombrio não impe<strong>de</strong>, to<strong>da</strong>via, uma mensagem subliminar<br />
<strong>de</strong> esperança. Só o <strong>de</strong>senvolvimento, o crescer progressivo <strong>da</strong>s<br />
novas gerações ca<strong>da</strong> vez mais informa<strong>da</strong>s e o surgir <strong>de</strong> uma comunicação<br />
social imparcial e interventiva po<strong>de</strong>rão contribuir para mu<strong>da</strong>nça<br />
<strong>de</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
Gegé é a personagem que corporiza a esperança numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
mais justa. “... só vim para te avisar, agora vou rápi<strong>do</strong> contar lá no bairro<br />
que têm um jornalista para pôr nos olhos e ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo<br />
que a população sempre marginaliza<strong>da</strong> sente e quer” (312).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
3.1. duAs gErAçõEs: o ContExto<br />
“A actual literatura africana escrita em português une um conjunto <strong>de</strong> autores que<br />
partilham uma sinergia cultural a que correspon<strong>de</strong> uma longa história comum feita<br />
<strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros.”<br />
— Margari<strong>da</strong> Fernan<strong>de</strong>s, “Os textos e os Contextos, As Literaturas Africanas <strong>de</strong><br />
Língua Portuguesa entre a Ficção e a Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
“Pepetela juntou-se ao movimento revolucionário e pegou em armas, seguin<strong>do</strong> o<br />
apelo <strong>de</strong> libertação <strong>do</strong> seu país. Eu sei o quanto isso é difícil. Aqui, em Moçambique,<br />
sujeitos a um mesmo regime coloniza<strong>do</strong>r, custava-nos na carne essa entrega à mesma<br />
causa emancipa<strong>do</strong>ra... o quanto eu podia trocar <strong>de</strong> biografia com ele, o quanto<br />
ele podia usurpar minhas lembranças. Como se eu pu<strong>de</strong>sse ser natural <strong>de</strong> Benguela e<br />
ele se tivesse infancia<strong>do</strong> na Beira.”<br />
— Mia Couto, in Portanto... Pepetela<br />
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
mIA COUTO E PEPETElA<br />
.03<br />
enCOntrOs e DesenCOntrOs<br />
Depois <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> representação <strong>da</strong> corrupção, em <strong>do</strong>is escritores<br />
emblemáticos, urge verificar em que circunstâncias concretas se processa<br />
a sua criação literária, partin<strong>do</strong> <strong>da</strong>s suas experiências mais quotidianas.<br />
Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> analisar as obras objecto <strong>de</strong>ste trabalho sem levar<br />
em conta a geração e o contexto i<strong>de</strong>ológico <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores. Um estu<strong>do</strong><br />
asséptico, <strong>de</strong>spoja<strong>do</strong>, que procurasse separar a obra <strong>do</strong> seu cria<strong>do</strong>r e <strong>do</strong><br />
momento histórico em que se insere, para além <strong>de</strong> impossível, seria inútil.<br />
Só po<strong>de</strong>ria contribuir para gerar equívocos, incompreensões.<br />
É na linha <strong>de</strong> Pierre Bordieu que nos posicionamos e que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
que “não é possível tratar a or<strong>de</strong>m cultural, a epistéme, como um sistema<br />
totalmente autónomo: quan<strong>do</strong> mais não seja porque nos proibiríamos<br />
assim <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s transformações que sobrevêm nesse universo se-<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
97
98<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
para<strong>do</strong>, a menos que lhe concedêssemos uma propensão imanente para<br />
se transformar, como é o caso em Hegel, através <strong>de</strong> uma forma misteriosa<br />
<strong>de</strong> selbstewegung” (2001: 40).<br />
Mia Couto e Pepetela vão transpor uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para o mun<strong>do</strong> literário,<br />
ficcionan<strong>do</strong>-a condiciona<strong>do</strong>s pela visão i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, que<br />
é uma visão marxista <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. “O escritor é, pois, um cria<strong>do</strong>r, mas,<br />
ao mesmo tempo, a sua obra está, to<strong>da</strong> ela mergulha<strong>da</strong> no momento<br />
histórico que a originou” (Ricciardi, apud Fernan<strong>de</strong>s, 2001: 39). Sen<strong>do</strong><br />
o autor consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, pela antropologia, um actor social, as condições e<br />
as formas <strong>de</strong> produção literárias são importantes para a compreensão<br />
<strong>do</strong> texto ficcional. É necessário ter em conta o que Bordieu <strong>de</strong>nomina<br />
<strong>de</strong> microcosmos literário para se “aplicar o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> pensamento racional<br />
ao espaço social <strong>do</strong>s produtores: o microcosmos social no qual se<br />
reproduzem as obras culturais, campo literário, campo artístico, campo<br />
científico, etc., é um espaço <strong>de</strong> relações objectivas entre posições – a <strong>do</strong><br />
artista consagra<strong>do</strong> e a <strong>do</strong> artista maldito, por exemplo – e não po<strong>de</strong>mos<br />
compreen<strong>de</strong>r o que aí se passa a não ser situan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> agente ou ca<strong>da</strong><br />
instituição nas suas relações objectivas com to<strong>do</strong>s os outros”. Bordieu<br />
conclui que é no horizonte particular <strong>de</strong>ssas “relações específicas, e <strong>da</strong>s<br />
lutas visan<strong>do</strong> conservá-las ou transformá-las, que se engendram as estratégias<br />
<strong>do</strong>s produtores, a forma <strong>de</strong> arte que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m, as alianças que<br />
travam, as escolas que fun<strong>da</strong>m, e isto através <strong>do</strong>s interesses específicos<br />
que aí se <strong>de</strong>terminam” (2001: 42). A citação é extensa mas pertinente,<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> que aju<strong>da</strong> a compreen<strong>de</strong>r e a analisar a mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> posicionamento,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> espaço social, <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores, ao longo <strong>da</strong>s respectivas<br />
criações literárias.<br />
Dois autores que se situam no mesmo campo literário, encontran<strong>do</strong>-se<br />
e <strong>de</strong>sencontran<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com interesses específicos, quer<br />
no conteú<strong>do</strong> quer na forma, mas “os autores, as escolas, as revistas, etc.,<br />
existem apenas nas e pelas diferenças que os separam” salienta Bordieu<br />
relembran<strong>do</strong> a fórmula <strong>de</strong> Benveniste: “É a mesma coisa ser distintivo<br />
e ser significativo” (2001: 43). É na forma que estes <strong>do</strong>is escritores<br />
africanos mais se distanciam. Um, Pepetela elege o romance. Outro,<br />
Mia Couto privilegia o conto. Para além <strong>do</strong> género literário, há, ain<strong>da</strong>,<br />
a separá-los a forma como trabalham a Língua Portuguesa. Aliás, Mia<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Couto isola-se, no contexto <strong>do</strong>s escritores africanos, pela criação <strong>de</strong> um<br />
estilo próprio (108) .<br />
Como já se referiu, mesmo que a literatura não reflicta objectivamente<br />
o mun<strong>do</strong> real, ela é “uma forma <strong>de</strong> passar pontos <strong>de</strong> vista e <strong>de</strong><br />
fazer passar conteú<strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ológicos que – não sen<strong>do</strong> convergentes e<br />
opon<strong>do</strong>-se, por vezes, aos discursos <strong>do</strong>minantes – acabam por influenciar<br />
as formas <strong>de</strong> pensar, agir e sentir <strong>de</strong> importantes sectores <strong>da</strong> população”<br />
(Fernan<strong>de</strong>s, 2001: 42). Hamilton <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> também que “o escritor<br />
reflecte não apenas a sua experiência pessoal, mas também as atitu<strong>de</strong>s e<br />
i<strong>de</strong>ologias <strong>da</strong> sua classe e <strong>do</strong>s vários grupos a que pertence”. O <strong>de</strong>spertar<br />
<strong>de</strong> uma consciência <strong>de</strong> classe entre os escritores <strong>da</strong>s ex-colónias não era<br />
um acto isola<strong>do</strong> tinha pontos <strong>de</strong> contacto com o mesmo fenómeno em<br />
outras regiões <strong>do</strong> planeta. “A reivindicação <strong>da</strong> terra natal, as influências<br />
que acompanhavam a origem <strong>da</strong> literatura acultura<strong>da</strong> na África Lusófona<br />
vinham também <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong>s Américas. Por razões óbvias, Portugal<br />
e o Brasil exerciam uma influência significativa na literatura <strong>da</strong>s<br />
colónias lusófonas” (1975: 44). Os <strong>do</strong>is escritores alvo <strong>de</strong>ste trabalho<br />
também não fogem à regra, ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> ambos uma formação oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Mergulham aí as suas raízes mais profun<strong>da</strong>s.<br />
A 29 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1941, em Benguela, nasce Artur Carlos Maurício<br />
Pestana <strong>do</strong>s Santos, Pepetela. Hoje, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “um <strong>do</strong>s mais importantes<br />
narra<strong>do</strong>res angolanos e <strong>do</strong>s PALOP” (Laranjeira, 1995: 140).<br />
Pepetela faz parte <strong>da</strong> geração que fez a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Angola,<br />
que com a ban<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> nacionalismo lutou contra o colonialismo, ten<strong>do</strong><br />
parcialmente realiza<strong>do</strong> o seu projecto. A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa e mais<br />
livre, apoia<strong>da</strong> na i<strong>de</strong>ologia marxista ficou para trás “por razões várias<br />
(constantes interferências externas, <strong>de</strong>sunião interna e erros <strong>de</strong> governação,<br />
este objectivo não foi atingi<strong>do</strong> e hoje Angola ain<strong>da</strong> é um país que<br />
procura a paz e está <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>, economicamente <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong> e com<br />
uma população miserável, enquanto meia-dúzia <strong>de</strong> milionários esbanja<br />
e escon<strong>de</strong> fortunas no estrangeiros” (Pepetela, apud Chaves e Mace<strong>do</strong>,<br />
2002: 35). Um comentário tanto mais significativo quanto não se escon<strong>de</strong><br />
por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> nenhuma <strong>da</strong>s suas personagens. Nem sequer a liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> criação artística o protege. O libelo é directo, claro e conciso.<br />
108 Sobre este aspecto ver nota 117.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
99
100<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
Enquanto nacionalista e marxista, ao mesmo tempo, viu-se na contingência<br />
<strong>de</strong> legitimar uma revolução em nome <strong>da</strong> nação. “No caso <strong>de</strong><br />
uma revolução, quan<strong>do</strong> se sonha e ela está em plena acção, pensamos<br />
que tu<strong>do</strong> é fácil, que se vai conseguir. Mais tar<strong>de</strong> vê-se que nunca seria<br />
possível atingir o que havíamos programa<strong>do</strong>” (Pepetela, entrevista a J.<br />
C. Venâncio, 1992: 96).<br />
Em nome <strong>da</strong> nação, tinham <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o lega<strong>do</strong> tradicional, que era<br />
a base <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> anti-colonial. O movimento <strong>da</strong> negritu<strong>de</strong> é disso<br />
exemplificativo. Mas o diálogo entre a tradição e o mo<strong>de</strong>rno nem sempre<br />
foi fácil e isso reflecte-se também nos textos literários. Defen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o<br />
lega<strong>do</strong> tradicional, encontravam aí também várias características contra<br />
as quais estava a revolução: o espírito <strong>de</strong> família e o senti<strong>do</strong> patrimonial<br />
<strong>do</strong>s cargos estatais que sustentam largamente a corrupção <strong>de</strong> hoje, como<br />
constatámos nas obras literárias, objecto <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, no entanto, como já foi referi<strong>do</strong><br />
no capítulo anterior, que em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> o percurso histórico foi<br />
idêntico ao <strong>de</strong> Angola e Moçambique o projecto i<strong>de</strong>ológico não era o<br />
mais importante. O mais importante foi que o Esta<strong>do</strong> conseguiu produzir<br />
“uma dinâmica capaz <strong>de</strong> garantir a sua própria reprodução, resultan<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>í a emergência <strong>de</strong> uma classe político-burocrática particularmente<br />
apta a recuperar e a a<strong>da</strong>ptar sistemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> clientelismo<br />
familiar, <strong>de</strong> parentesco, étnico ou regional, factores <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação susceptíveis<br />
<strong>de</strong> servir to<strong>da</strong> a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> interesses, confessáveis ou não ...”<br />
(Carvalho, 1997: 157).<br />
Pepetela é um revolucionário por natureza e é assim que ele <strong>de</strong>fine<br />
o seu próprio acto <strong>de</strong> escrita, como bem salienta Cristina Pacheco (que<br />
não resistimos a transcrever), ao referir-se à obra Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente<br />
Secreto. “Pepetela, autobiograficamente, justificará o seu próprio acto<br />
<strong>de</strong> escrita como, mais uma vez, um acto revolucionário no senti<strong>do</strong> em<br />
que este <strong>de</strong>sempenha um importante papel no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma<br />
consciência social que <strong>de</strong>ve apostar na mu<strong>da</strong>nça. Por isso, estamos em<br />
crer que é <strong>de</strong> si mesmo que dá testemunho, <strong>do</strong> escritor angolano Pepetela,<br />
ex-guerrelheiro <strong>do</strong> mato, quan<strong>do</strong> põe na boca <strong>de</strong> Gegé estas palavras:<br />
“nos tempos <strong>do</strong> tio Esperteza <strong>do</strong> Povo os jovens iam para as matas<br />
para combater o colonialismo e sonhar criar uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> melhor, mais<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
justa. Esse tempo passou. Depois outros jovens foram para as matas, pegaram<br />
em armas, para combater o regime que o tio aju<strong>do</strong>u a criar. Esse tempo<br />
também passou. Agora eu pego na caneta para contar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> aos meus<br />
conterrâneos. Só a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> interessa. É o nosso tempo” (2001: 196, 197).<br />
Esta transcrição, embora extensa, é relevante porque traduz uma clara<br />
mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> estratégia na luta por uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa e <strong>de</strong>nota<br />
uma certa frustração <strong>da</strong> geração <strong>da</strong> utopia. A guerra pela in<strong>de</strong>pendência<br />
e a guerra pelo po<strong>de</strong>r – a guerra civil – começam a ser substituí<strong>da</strong>s por<br />
outra guerra: a <strong>da</strong>s palavras contra os burocratas, os homens <strong>do</strong> aparelho,<br />
os corruptos. Isto porque a luta através <strong>da</strong>s armas não culminou<br />
numa socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa. Quase trinta anos após a in<strong>de</strong>pendência formal,<br />
a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s povos angolano e moçambicano continua subjuga<strong>da</strong><br />
(coloniza<strong>da</strong>) pelo po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> dinheiro. O Esta<strong>do</strong>-nação não trouxe aos<br />
africanos um garante <strong>de</strong> progresso e <strong>de</strong>senvolvimento, mas foi apenas<br />
uma fonte <strong>de</strong> riqueza para uma classe pre<strong>da</strong><strong>do</strong>ra.<br />
Do outro la<strong>do</strong>, na África oriental, surge Mia Couto (António Emílio<br />
Leite Couto). O escritor moçambicano, que nasceu em 1955, não emerge<br />
<strong>da</strong> luta pela in<strong>de</strong>pendência (nasce como escritor, apenas nos anos oitenta)<br />
e “tem perante si, no momento <strong>da</strong> escrita, um universo social que<br />
sen<strong>do</strong> naturalmente diferente <strong>do</strong> Europeu, não tem a servir-lhe <strong>de</strong> plataforma<br />
intermediária a experiência histórica que se vive em Angola” (Venâncio,<br />
2000: 131), mas actualmente cruza-se com Pepetela na <strong>de</strong>fesa<br />
<strong>da</strong> Lusofonia, isto é, na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um bloco i<strong>de</strong>ntitário, uni<strong>do</strong> por vários<br />
laços culturais e históricos, reunin<strong>do</strong> um diálogo multicultural, para a<br />
reivindicação <strong>de</strong> um espaço próprio, neste mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> (109) .<br />
Mia Couto estreou-se em 1982, com um conjunto <strong>de</strong> poemas, Raíz<br />
<strong>de</strong> Orvalho. Essa estreia preten<strong>de</strong>u reagir contra a literatura militar, en<strong>do</strong>genamente<br />
política que até essa altura <strong>do</strong>minava a produção literária,<br />
fruto <strong>de</strong> circunstâncias históricas. “Eu pretendi que o livro fosse um<br />
pouco uma certa reacção contra esta única forma <strong>de</strong> escrever... Po<strong>de</strong>mos<br />
falar <strong>de</strong> revolução sem falar <strong>de</strong> política no senti<strong>do</strong> explícito <strong>do</strong> termo”<br />
(Mia Couto, entrevista a M. Laban, 1998: 999).<br />
109 Para melhor se perceber o conceito <strong>de</strong> Lusofonia ver Venâncio (2000: 107) e a revista <strong>do</strong> Instituto<br />
Camões, intitula<strong>da</strong> Camões, Revista <strong>de</strong> Letras e Culturas Lusófonas – Pontes Lusófonas, on<strong>de</strong> se traçam os<br />
<strong>de</strong>z passos para as pontes lusófonas (1998).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
101
102<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
A déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> oitenta via, assim, nascer uma nova atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação<br />
artística, num perío<strong>do</strong> que se caracterizava por uma consi<strong>de</strong>rável produção<br />
literária, ao contrário <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> seguinte que assiste à morte <strong>de</strong><br />
um sonho. O confronto entre a utopia e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que levou ao conformismo<br />
<strong>do</strong>s próprios escritores. Como salienta Nelson Saúte, no Prefácio<br />
<strong>da</strong> sua antologia <strong>do</strong> conto moçambicano, As Mãos <strong>do</strong>s Pretos, “A déca<strong>da</strong><br />
<strong>de</strong> 90 é uma déca<strong>da</strong> <strong>do</strong> nosso conformismo em relação aos ditames <strong>do</strong>s<br />
governa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> nosso <strong>de</strong>stino e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A literatura subscreve hoje<br />
o espaço terrível <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> equívoco que se chama Moçambique. Que se<br />
po<strong>de</strong> adiantar mais? Que, por absur<strong>do</strong> ou contraditório que pareça, os<br />
anos 90 não são capazes <strong>de</strong> rivalizar perante a pujança <strong>do</strong>s trágicos <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80, tempo atravessa<strong>do</strong> pelo sangue <strong>do</strong>s inocentes na gran<strong>de</strong><br />
arena <strong>da</strong> vergonha, on<strong>de</strong> nós – to<strong>do</strong>s! – participámos, quanto mais não<br />
seja pelo nosso silêncio?” (20).<br />
O próprio escritor, Mia Couto, reconhece que nos anos oitenta tinha<br />
uma visão ingénua <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma nova nação, esta<br />
emergente <strong>de</strong> um longo e duro perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> colonização. “Uma gran<strong>de</strong><br />
parte <strong>do</strong>s poemas não sobrevive: eram poemas <strong>de</strong> exaltação <strong>de</strong> uma<br />
causa, eram muito marca<strong>da</strong>mente <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico. Embora<br />
eu não renegue isso, hoje não os faria <strong>da</strong> mesma maneira. Hoje tenho<br />
uma outra visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> provavelmente não tão ingénua como nessa<br />
altura” (1998: 1001).<br />
A voz narrativa nos romances <strong>de</strong> Mia Couto, ou melhor, <strong>do</strong>s seus<br />
contos (110) , dá espaço a personagens marginais, mas o ambiente on<strong>de</strong> cir-<br />
110 Mia Couto é sobretu<strong>do</strong> um contista, como já foi referi<strong>do</strong>. Um conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> estórias, sentin<strong>do</strong>-se a<br />
presença <strong>de</strong>ste mesmo no romance O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, o que nos leva a afirmar tratar-se <strong>de</strong> contos<br />
agrega<strong>do</strong>s num romance. A própria situação inicial (tradutor a anunciar o que vai narrar) remete para a<br />
presença <strong>do</strong> habitual conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> contos, recorrente na vi<strong>da</strong> tradicional africana. Aqui na figura <strong>do</strong> tradutor.<br />
Uma nova figura para um mesmo papel: contar uma história.<br />
Não importa agora distinguir, exaustivamente, o romance <strong>de</strong> conto, mas relembrar apenas que o<br />
conto ten<strong>de</strong> à concentração <strong>de</strong> eventos. É o tempo que vai condicionar to<strong>da</strong>s as outras categorias <strong>da</strong> narrativa.<br />
“A acção <strong>do</strong> conto baseia precisamente nessa concentração e nessa lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> a sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> seduzir o receptor, sedução mais intensa e consegui<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> é um simples inci<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> quotidiano,<br />
que suporta o <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> acção” (Reis e Lopes, 2000: 80) Esse significa<strong>do</strong> quotidiano encontra-se na<br />
personagem <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a estrutura <strong>do</strong> conto. Segun<strong>do</strong> estes preceitos bastaria extrair <strong>do</strong>is ou três<br />
capítulos, <strong>da</strong> obra em estu<strong>do</strong>, para se <strong>de</strong>monstrar que Mia é principalmente um conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> contos. Um<br />
<strong>de</strong>sses capítulos po<strong>de</strong>ria ser “Uma mulher escamosa” ou “A apresentação <strong>do</strong> fala<strong>do</strong>r <strong>da</strong> história” ou ain<strong>da</strong>,<br />
mais eluci<strong>da</strong>tivo “O pai sonhan<strong>do</strong> frente ao rio”. O número <strong>de</strong> personagens é reduzi<strong>do</strong> (apenas três:<br />
o velho Sulplício, o filho (o tradutor) e Massimo Risi), bem como a acção, que <strong>de</strong>corre apenas durante<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
culam não é urbano. Aliás, muitas vezes, é um espaço irreal, só existe enquanto<br />
ficção. A escolha recai sobre um ambiente rural ao contrário <strong>do</strong><br />
urbano verifica<strong>do</strong> em Pepetela. Como salienta Chabal, os contos <strong>de</strong> Mia<br />
Couto focam a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> pessoas comuns, gente anónima, mas apesar <strong>de</strong><br />
inspira<strong>do</strong>s “in every<strong>da</strong>y life but they tap the Mozambican African collective<br />
unconscious” (Chabal, 1996: 78). Chabal acrescenta que em Mia Couto<br />
nota-se uma separação aparente entre os indivíduos e o mun<strong>do</strong> sócio-político<br />
que é arbitrariamente cria<strong>do</strong> à volta <strong>de</strong>les (1996: 80). Embora essa<br />
constatação seja váli<strong>da</strong> nas primeiras obras <strong>de</strong> Mia Couto, nos textos<br />
narrativos <strong>do</strong> final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa – como por exemplo a obra que<br />
analisamos e em A Varan<strong>da</strong> <strong>do</strong> Frangipani; Um Rio Chama<strong>do</strong> Tempo, Uma<br />
Casa Chama<strong>da</strong> Terra, entre outros – observa-se um vínculo mais explícito<br />
<strong>do</strong> indivíduo ao mun<strong>do</strong> que o ro<strong>de</strong>ia. Isto é, já não existe uma separação<br />
– apesar <strong>de</strong> Chabal a consi<strong>de</strong>rar equívoca, por que apenas aparente,<br />
como no início <strong>da</strong> sua produção artística – porque a conjuntura política<br />
uma noite, ou melhor, no final <strong>de</strong> um dia e início <strong>de</strong> outra, numa típica casa africana. A sedução inicia-se<br />
logo no princípio <strong>do</strong> capítulo com a afirmação: “Vou lá fora pendurar os ossos”. Uma situação insólita<br />
que pren<strong>de</strong> automaticamente o leitor à narrativa. Não é este um <strong>do</strong>s objectivos <strong>do</strong> conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> contos?<br />
Também presente no conto tradicional, inicia<strong>do</strong> com a célebre expressão “Era uma vez...” (embora aqui o<br />
conto tenha contornos ligeiramente diferentes <strong>do</strong> literário, no entanto, as funções lúdica e moraliza<strong>do</strong>ra<br />
estão presentes em ambos). A palavra oral e a palavra escrita cruzam-se, por vezes, fundin<strong>do</strong>-se, chegan<strong>do</strong><br />
mesmo a criar novos mun<strong>do</strong>s literários como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Ana Maria Martinho: “Quan<strong>do</strong> o escritor, letra<strong>do</strong>,<br />
cosmopolita, escreve <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> aproximação a essa anteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>, como são os casos<br />
<strong>de</strong> Arlin<strong>do</strong> Barbeitos e Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho por um la<strong>do</strong> e <strong>de</strong> Mia Couto por outro, fá-lo sempre por<br />
negação <strong>de</strong> um sigilo a que <strong>de</strong>veria estar obriga<strong>do</strong> e na construção <strong>de</strong>ssa fixação <strong>da</strong> palavra cai no limiar<br />
<strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que já não é o mesmo mas apenas globalmente aferente a ele” (2001b: 300).<br />
Acrescente-se, ain<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> a intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa, inician<strong>do</strong>-se com uma analepse. Tu<strong>do</strong> gira<br />
à volta <strong>de</strong> uma acção pretérita, não haven<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>s narrativas secundárias. A narrativa é quase linear.<br />
Ou seja, no romance, a maior parte <strong>da</strong>s vezes, a intriga é muito complexa, coexistin<strong>do</strong> várias narrativas<br />
secundárias. Po<strong>de</strong>ríamos mesmo afirmar que, por vezes, o leitor chega a <strong>de</strong>sconcentrar-se <strong>da</strong> narrativa<br />
principal. Ora, em Mia Couto, principalmente na obra em análise, a acção é única, cataliza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />
as outras. Assim, como no conto há apenas uma história, para on<strong>de</strong> convergem to<strong>da</strong>s as categorias <strong>da</strong><br />
narrativa. Embora tu<strong>do</strong> seja dito, pois, as palavras, as imagens, as metáforas, as comparações, são selecciona<strong>da</strong>s<br />
criteriosamente <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a serem <strong>da</strong><strong>da</strong>s apenas as informações essenciais, para a caracterização<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> pós-guerra. Há uma economia temporal ao serviço <strong>da</strong> acção. A salientar, há também o<br />
facto <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> capítulo ser introduzi<strong>do</strong> por um dito ou um provérbio, funcionan<strong>do</strong> muitas vezes como uma<br />
advertência, in<strong>do</strong> ao encontro <strong>da</strong> função moraliza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> conto. Po<strong>de</strong>ríamos, ain<strong>da</strong>, focar outros aspectos:<br />
o maravilhoso, o sobrenatural, presentes na maioria <strong>do</strong>s contos. Aliás, este é um tema pre<strong>do</strong>minante<br />
na obra <strong>de</strong> Mia Couto, não só pela capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> sedutora, mas também pela importância e pelo que <strong>de</strong><br />
sagra<strong>do</strong> comporta nas culturas africanas. Os mortos e os vivos, na obra literária <strong>de</strong>ste escritor, <strong>da</strong>ria um<br />
interessantíssimo trabalho <strong>de</strong> investigação. Eles cruzam-se, com to<strong>da</strong> a carga simbólica que <strong>da</strong>í advém,<br />
como se os vivos fossem os mortos e os mortos os vivos, neste mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s tentamos sobreviver.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
103
104<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
que serve <strong>de</strong> palco às personagens eleitas por Mia é posta em causa. A<br />
criação artística já não se encontra tão alhea<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real. O mun<strong>do</strong><br />
mo<strong>de</strong>liza<strong>do</strong> sócio-económico e político encontra referentes reais concretos.<br />
A instância autoral coloca em confronto as personagens com um mo<strong>de</strong>lo<br />
real coetâneo, que é satiricamente con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> literário,<br />
uma vez que age, modifica, o indivíduo. Isso é peremptório em O Último<br />
Voo <strong>do</strong> Flamingo, on<strong>de</strong> as personagens marginais, anónimas, oriun<strong>da</strong>s<br />
<strong>do</strong> povo, são vítimas <strong>de</strong> um sistema político nacional e internacional.<br />
Em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo surge-nos uma vila, baptiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> Tizangara,<br />
sem contextualização geográfica real, mas visualizamos um<br />
espaço social que nos remete para lugares bem reais. Em contraparti<strong>da</strong>,<br />
a acção <strong>do</strong> romance Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto remete para Luan<strong>da</strong>,<br />
capital <strong>de</strong> Angola. Um espaço real para um mun<strong>do</strong> fictício ou também<br />
ele real?<br />
Luan<strong>da</strong> e Benguela são os espaços sociais (111) privilegia<strong>do</strong>s que suportam<br />
a narrativa <strong>de</strong> Pepetela, que “acresci<strong>do</strong>s com os respectivos hinterlands,<br />
configuram ou provavelmente configuraram, aquilo que, fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong><br />
na interpenetração cultural, rácica e étnica aí verifica<strong>da</strong> e no<br />
conceito <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> societária <strong>de</strong> Parsons, <strong>de</strong>signei por «socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
crioula ou crioulizante»” (Venâncio, 2000: 131).<br />
Uma <strong>da</strong>s principais diferenças entre os <strong>do</strong>is escritores africanos é,<br />
pois, o espaço narrativo. Um, Mia Couto, privilegia o rural, outro, Pepetela,<br />
o urbano. Como bem observa Ana Margari<strong>da</strong> Fonseca, ao analisar<br />
Vozes Anoiteci<strong>da</strong>s, Mia Couto localiza “a acção <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> maioria<br />
<strong>do</strong>s seus contos em espaços rurais muitas vezes isola<strong>do</strong>s, «sítios on<strong>de</strong> o<br />
mun<strong>do</strong> pára e <strong>de</strong>scansa a sua rotação milenar». Nestes textos, as estruturas<br />
urbanas recuam perante a permanência <strong>de</strong> estruturas rurais, mas<br />
ain<strong>da</strong> assim,... as fronteiras não são, como nunca são estanques” (2002:<br />
107). Mia Couto constituiu uma excepção, ao privilegiar o espaço rural.<br />
As fronteiras entre o rural e o urbano – entre tradição e mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
– não são estanques, antes pelo contrário são flexíveis, não se apuran<strong>do</strong>,<br />
muitas vezes, on<strong>de</strong> acaba o tradicional e começa o mo<strong>de</strong>rno ou<br />
111 Espaço social <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong>, também, na dimensão que Bordieu lhe confere e não apenas<br />
uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> área geográfica: “...essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> invisível, que não se po<strong>de</strong> nem mostrar nem tocar<br />
com o <strong>de</strong><strong>do</strong>, e que organiza as práticas e as representações...” (2001: 10).<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
vice-versa. Daí, que espaços urbanos sejam invadi<strong>do</strong>s por características<br />
rurais, como acontece em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, <strong>do</strong> angolano Manuel<br />
Rui, ou na crónica <strong>de</strong> Mia Couto intitula<strong>da</strong> “Um pilão no nono an<strong>da</strong>r”,<br />
integra<strong>da</strong> no livro Cronican<strong>do</strong>. Em ambos os textos narrativos, as estruturas<br />
rurais sobrepõem-se, não se verifican<strong>do</strong> um choque entre os <strong>do</strong>is<br />
mun<strong>do</strong>s. De certa forma, verifica-se a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conciliação como<br />
constata Ana Margari<strong>da</strong> Fonseca: “Apesar <strong>do</strong>s aspectos anedóticos que<br />
esta história, como a <strong>de</strong> Manuel Rui, contém, uma leitura possível <strong>de</strong><br />
ambos os textos po<strong>de</strong>rá levar a consi<strong>de</strong>ração <strong>da</strong> força <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>da</strong> rurali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
em meios on<strong>de</strong>, à primeira vista, não encontrariam qualquer<br />
possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência” (2002: 109).<br />
Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e <strong>da</strong><strong>do</strong> que a literatura africana mo<strong>de</strong>rna emergiu no<br />
espaço urbano, liga<strong>da</strong> a uma pequena elite escolariza<strong>da</strong> e uma vez que<br />
continua ain<strong>da</strong> a realizar-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> grupos sociais urbanos, é natural<br />
a pre<strong>do</strong>minância <strong>de</strong> estruturas urbanas nos discursos narrativos. “A<br />
familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> escritor com os espaços urbanos reflecte-se na preferência<br />
por temas e ambientes citadinos na configuração <strong>do</strong> espaço narrativo.<br />
Nas áreas <strong>de</strong> Língua Portuguesa, e especialmente em Angola,<br />
Luan<strong>da</strong> aparece como um espaço privilegia<strong>do</strong> na narrativa quer antes<br />
<strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência (Luandino Vieira e a vivência <strong>do</strong>s musseques, por<br />
exemplo) quer após a libertação com autores como Pepetela, Boaventura<br />
Car<strong>do</strong>so e Manuel Rui a <strong>de</strong>senvolverem obras profun<strong>da</strong>mente liga<strong>da</strong>s às<br />
experiências <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> pequena e média burguesia luan<strong>de</strong>nses” (Fonseca,<br />
2002: 107). O espaço narrativo em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto,<br />
<strong>de</strong> Pepetela, fun<strong>da</strong>menta esta observação, on<strong>de</strong> a personagem principal<br />
– Jaime Bun<strong>da</strong> – integra um grupo <strong>de</strong> status, estan<strong>do</strong>, por isso, protegi<strong>do</strong><br />
pelo po<strong>de</strong>r.<br />
Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a opção por um ou outro espaço não é ingénua, nem<br />
arbitrária, radica na própria génese <strong>da</strong> literatura africana mo<strong>de</strong>rna e consequentemente<br />
na formação e experiências quotidianas <strong>do</strong> escritor, fortemente<br />
influencia<strong>do</strong> pela cultura oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a razões históricas.<br />
O Espaço narrativo está, também, ao serviço <strong>da</strong>s personagens, que<br />
são no mun<strong>do</strong> ficcional <strong>de</strong> Mia Couto gente anónima, <strong>do</strong> povo, enraiza<strong>da</strong><br />
na tradição, ain<strong>da</strong> pouco mol<strong>da</strong><strong>da</strong> pelas atracções <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />
O <strong>de</strong>staque é <strong>da</strong><strong>do</strong> a personagens comuns que se diluem na história<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
105
106<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
narrativa, que podia ser qualquer um – é um colectivo moçambicano. A<br />
gente <strong>do</strong> povo é também menos escolariza<strong>da</strong>, mais aberta às questões<br />
<strong>do</strong> sobrenatural (112) . Não é <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> conhecimentos científicos para<br />
explicar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fenómenos <strong>da</strong>í a explicação <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
recorren<strong>do</strong> ao sobrenatural; <strong>da</strong>í o recurso ao curan<strong>de</strong>iro em vez <strong>do</strong> médico;<br />
o peso <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s; o elo entre mortos e vivos (113) . Aspectos<br />
culturais que o homem mo<strong>de</strong>rno, oci<strong>de</strong>ntaliza<strong>do</strong>, que vive nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />
nega, critica, embora secretamente não afaste, como o caso <strong>da</strong> Personagem<br />
T, <strong>do</strong> romance Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto. Sem dúvi<strong>da</strong> que aqueles<br />
aspectos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> tradicional africana (obviamente inventa<strong>do</strong>s,<br />
recria<strong>do</strong>s, porque <strong>de</strong> ficção se trata) estão mais presentes na obra O Último<br />
Voo <strong>do</strong> Flamingo, <strong>do</strong> que no romance <strong>de</strong> Pepetela (embora, curiosamente,<br />
se recorra, também, a uma espécie <strong>de</strong> vi<strong>de</strong>nte para tentar saber<br />
o autor <strong>do</strong> crime). O espaço urbano <strong>de</strong>ste último nega certos aspectos <strong>da</strong><br />
tradição. Ser mo<strong>de</strong>rno, ser civiliza<strong>do</strong> é recusar o irracional, é invoca<strong>da</strong> a<br />
cultura <strong>do</strong> homem oci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong> preferência <strong>do</strong> americano (114) , como a<br />
personagem Jaime Bun<strong>da</strong> ao <strong>de</strong>monstrar os seus conhecimentos <strong>de</strong> literatura<br />
policial, muitas vezes erra<strong>do</strong>s.<br />
Apesar <strong>do</strong>s espaços narrativos serem diferentes nas duas obras em<br />
análise, constata-se que ambos, quer o espaço urbano quer o rural, estão<br />
contamina<strong>do</strong>s pelo flagelo <strong>da</strong> corrupção, ten<strong>do</strong> as mesmas causas e provocan<strong>do</strong><br />
as mesmas consequências, sobretu<strong>do</strong> injustiça e <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
112 Curiosa é a observação feita no livro A Casa <strong>do</strong>s Espíritos, <strong>de</strong> Isabel Allen<strong>de</strong>, por um <strong>do</strong>s colegas<br />
<strong>de</strong> parti<strong>do</strong>, o coronel Hurta<strong>do</strong>, ao respon<strong>de</strong>r a Esteban Trueba, para não recear a vitória <strong>do</strong> marxismo. “O<br />
marxismo não tem a mais pequena oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> na América Latina. Não vês que não contempla o la<strong>do</strong><br />
mágico <strong>da</strong>s coisas? É uma <strong>do</strong>utrina ateia, prática e funcional. Aqui não po<strong>de</strong> ter êxito” (254). Para além<br />
<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a separação entre os sistemas políticos e a irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou em senti<strong>do</strong> mais abrangente<br />
a Religião, <strong>do</strong> foro individual, é implícita também uma crítica à transposição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los exógenos que<br />
não respeitam as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s autóctones.<br />
113 O mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> fantástico, <strong>do</strong> maravilhoso, <strong>do</strong> sobrenatural marcam a obra <strong>de</strong> Mia Couto. O próprio<br />
acontecimento que serve <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para a narração <strong>do</strong> romance analisa<strong>do</strong> no presente<br />
trabalho é insólito: o aparecimento <strong>de</strong> um pénis <strong>de</strong>cepa<strong>do</strong> em plena Estra<strong>da</strong> Nacional, à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> vila<br />
<strong>de</strong> Tizangara.<br />
114 Claro que o autor critica a cultura americana. Em Jaime Bun<strong>da</strong> e a morte <strong>do</strong> americano, salienta a<br />
contribuição <strong>da</strong>quela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> para a cultura mundial, que não passou <strong>da</strong> globalização <strong>do</strong> Hambúrguer.<br />
O escritor Luís Sepúlve<strong>da</strong> diz também que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> americana é ignorante. Numa entrevista à<br />
revista Visão (n.º 548), em que o escritor refere que os E.U.A. são a nação terrorista por excelência, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
que “a maioria é ain<strong>da</strong> mais ignorante <strong>do</strong> que parece. Os E.U.A. são responsáveis por alguns <strong>do</strong>s mais<br />
perigosos retrocessos <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
social. E como se constatou o aprofun<strong>da</strong>r <strong>da</strong> crise. O Esta<strong>do</strong> em vez <strong>de</strong><br />
se institucionalizar, <strong>de</strong> ser transparente, <strong>de</strong> se impor pelo <strong>de</strong>sempenho<br />
<strong>da</strong>s tarefas que constitucionalmente lhe estão atribuí<strong>da</strong>s e são reclama<strong>da</strong>s<br />
socialmente, faz <strong>da</strong> corrupção uma norma tornan<strong>do</strong>-a “legal”, mas<br />
que só gera riqueza para quem tem cargos que facilitem a concretização<br />
<strong>de</strong>sse crime. Por isso, o povo continua e continuará na miséria à mercê<br />
<strong>do</strong>s inimigos <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mocracia.<br />
Curiosamente, os valores tradicionais são postos em causa mesmo no<br />
mun<strong>do</strong> rural. O fenómeno <strong>da</strong> corrupção e a <strong>de</strong>liquescência <strong>do</strong>s costumes<br />
atingiram também este meio, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> estupefactos os antepassa<strong>do</strong>s que<br />
inva<strong>de</strong>m os sonhos <strong>de</strong> Estevão Jonas (cap. XII, O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo).<br />
Implicitamente, aponta-se uma <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong> corrupção: a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />
a ambição pelo dinheiro, legitima<strong>da</strong> pela cultura africana que não<br />
enten<strong>de</strong> o Esta<strong>do</strong> como uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> abstracta e que afirma e prossegue<br />
finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s próprias, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong>s interesses priva<strong>do</strong>s.<br />
O socialismo esquemático (115) trouxe ao Administra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Tizangara o<br />
po<strong>de</strong>r, a influência, os clientes e o liberalismo possibilitou-lhe, ain<strong>da</strong>,<br />
com a dita globalização, a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um “imperdível” enriquecimento<br />
ilícito. Perspectivaram-se “bons negócios” com os sul-africanos,<br />
instrumentalizou-se a Aju<strong>da</strong>, exploran<strong>do</strong>-se a miséria social.<br />
Os <strong>do</strong>is paradigmas políticos que marcaram fortemente o século XX<br />
são postos em causa. Nem o comunismo nem o capitalismo conseguiram<br />
a construção <strong>de</strong> uma nação mais justa (116) . José Carlos Venâncio <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>,<br />
115 Como advoga José Carlos Venâncio: “As <strong>de</strong>núncias feitas pelo escritor através <strong>de</strong> romances como<br />
O cão e os caluan<strong>da</strong>s, inscrito na vertente <strong>de</strong> sátira social <strong>da</strong> literatura angolana, comprovam, embora procurem<br />
poupar a direcção política <strong>do</strong> país, que a opção pela via socialista pouco ou na<strong>da</strong> <strong>de</strong>terminou quanto<br />
à configuração <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial em Angola no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua neo-patrimonialização. O clientelismo<br />
e a corrupção enquanto figuras <strong>de</strong>terminantes fizeram na altura a sua apariação” (2004: 10).<br />
116 Obviamente que a corrupção, como afirmámos logo no início <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>, não conhece fronteiras<br />
geográficas nem históricas, e também não está adstrita a nenhum regime político. Ela existiu também<br />
no Esta<strong>do</strong> Colonial, como se po<strong>de</strong> constatar até em algumas obras <strong>do</strong>s autores que elegemos. Em Yaka,<br />
<strong>de</strong> Pepetela, por exemplo, temos presente uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial que não é isenta <strong>do</strong>s crimes <strong>de</strong>: tráfico<br />
<strong>de</strong> influências, tráfico <strong>de</strong> diamantes, corrupção... “Ninguém acreditou, mas não havia na<strong>da</strong> a fazer. E Alexandre<br />
não abriu a boca para relembrar a discussão no bar, a ameaça vela<strong>da</strong> e a saí<strong>da</strong> suspeita <strong>do</strong>s filhos<br />
<strong>de</strong> Sô Agripino <strong>de</strong> Sousa atrás <strong>de</strong>le. Outros também não tinham esqueci<strong>do</strong> e calaram. Sô Agripino tinha<br />
influências, não só em Benguela mas até em Luan<strong>da</strong>, não se atacava um homem <strong>de</strong>sses sem provas fortes”<br />
(155). “– O Orestes an<strong>da</strong> muito preocupa<strong>do</strong> e quis falar consigo sobre o seu genro. O Orestes pensa que é<br />
<strong>de</strong>mais. Tem esse espa<strong>da</strong>, já fala em comprar outro carro para o Heitor quan<strong>do</strong> fizer vinte e um anos, está<br />
a construir a maior viven<strong>da</strong> <strong>de</strong> Benguela. E o senhor é sócio e está na mesma. O Orestes acha que ele nos<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
107
108<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
aliás, que na configuração <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial no continente africano<br />
“a divisão entre países que seguiam a via socialista e os que seguiam a<br />
capitalista foi irrelevante para a natureza intrínseca <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong>. A<br />
especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> histórico – cultural <strong>do</strong> continente prevaleceu” (2004: 10).<br />
As déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> oitenta e noventa, <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, marca<strong>da</strong>s por<br />
aquelas duas conjunturas políticas, respectivamente, só serviram para<br />
os <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r angolano e moçambicano enriquecerem. Não<br />
conseguiram libertar o povo <strong>da</strong> miséria, nem <strong>da</strong>s consequências nefastas<br />
<strong>da</strong> globalização e praticamente trinta anos <strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s in<strong>de</strong>pendências<br />
formais aqueles <strong>do</strong>is países continuam mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s<br />
potências, com dívi<strong>da</strong>s externas astronómicas. A crise on<strong>de</strong> estão mergulha<strong>do</strong>s<br />
é ca<strong>da</strong> vez mais profun<strong>da</strong> e mais difícil <strong>de</strong> resolver. O escritor<br />
angolano Uanhenga Xitu aponta como principal problema <strong>de</strong> Angola a<br />
falta <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, controlo e fiscalização. “No nosso caso, como nalguns<br />
países <strong>de</strong> África, há uma falta <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> na gestão, controlo e<br />
fiscalização. O que Angola está a precisar em to<strong>do</strong>s os aspectos, mas em<br />
to<strong>do</strong>s os aspectos <strong>da</strong> Administração Pública e Priva<strong>da</strong> é <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(Cultos Especiais, 110). Mia Couto e Pepetela <strong>de</strong>nunciam, portanto, os<br />
<strong>do</strong>is sistemas políticos que apenas serviram para engor<strong>da</strong>r meia dúzia<br />
<strong>de</strong> governantes.<br />
Apesar <strong>do</strong>s crimes perpetra<strong>do</strong>s pelos actores políticos e apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfilarem<br />
aos nossos olhos personagens vítimas <strong>de</strong> injustiças, já anteriormente<br />
oprimi<strong>da</strong>s pelos coloniza<strong>do</strong>res, consta-se uma certa resignação.<br />
A resignação <strong>do</strong> povo moçambicano, em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo (117) é<br />
está a aldrabar com as contas, como é que ele enriquece e os her<strong>de</strong>iros não?... – Com essas exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
numa coisa, socie<strong>da</strong><strong>de</strong> nas outras, mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> dinheiro duma rubrica para outra, o Orestes pensa que<br />
aí é que ele o engana e a to<strong>do</strong>s nós” (296-297). “– Como se pu<strong>de</strong>ssem acusar-me <strong>de</strong> alguma coisa. Até<br />
recusei sempre ir para os sítios <strong>do</strong> café e diamantes, aí sim, enriqueciam em <strong>do</strong>is tempos, mas sabia que<br />
havia muita malandrice e nunca me quis meter” (331). Como se constata, o crime <strong>de</strong> corrupção invadia<br />
também o regime colonial e era já um tema abor<strong>da</strong><strong>do</strong> na literatura, embora nunca central. Limitámo-nos,<br />
contu<strong>do</strong>, ao perío<strong>do</strong> histórico que analisamos: o pós-colonial. É evi<strong>de</strong>nte que com a in<strong>de</strong>pendência e<br />
consequentemente o esvaziamento <strong>do</strong>s quadros <strong>da</strong> função pública, provoca<strong>do</strong> pelo regresso <strong>do</strong>s colonos,<br />
vão surgir oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego para os segui<strong>do</strong>res partidários que também viram na aquisição <strong>de</strong><br />
algum po<strong>de</strong>r um meio para enriquecer o seu salário.<br />
117 Apesar <strong>do</strong>s crimes, o romance não se caracteriza por conter uma história dramática. Não é o<br />
drama que atravessa o discurso narrativo, mas sim o humor. O romance é trespassa<strong>do</strong> por um humor e<br />
uma ironia contagiantes que, com a elaboração espectacular <strong>de</strong> algumas metáforas, conseguem remeter<br />
para segun<strong>do</strong> plano a história que se narra. Isto é, muitos <strong>do</strong>s aspectos formais <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Mia Couto, os<br />
neologismos, as alterações morfossintácticas, concorrem com o conteú<strong>do</strong> temático. Os diversos processos<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
evi<strong>de</strong>nte, como se aceitar o <strong>de</strong>stino fosse o único caminho possível. Será<br />
que a corrupção é um mal necessário e incontornável?<br />
Embora os textos não <strong>de</strong>notem propósitos políticos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, indirectamente<br />
está presente uma i<strong>de</strong>ologia. O propósito é a crítica aos comportamentos<br />
humanos que constituíram obstáculos à concretização <strong>da</strong><br />
utopia. “O espaço <strong>de</strong> harmonia social e política a alcançar” (Venâncio,<br />
1999b: 198) continua ain<strong>da</strong> à espera <strong>de</strong> um Tempo.<br />
Pertencentes a gerações diferentes – Pepetela “nasceu” com o nacionalismo,<br />
participou na guerrilha, enquanto Mia Couto surge só na<br />
déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> oitenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> (e como ele próprio referiu com<br />
uma visão ingénua <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> uma nova nação) – os <strong>do</strong>is escritores<br />
surgem no final <strong>do</strong> século XX com temáticas e consequentemente<br />
preocupações idênticas.<br />
A escrita <strong>de</strong> Pepetela é, no entanto, mais revolucionária, on<strong>de</strong> o comprometimento<br />
político e social (118) é mais notório. Des<strong>de</strong> o início didáctica<br />
e ética, tem por intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> alertar para os comportamentos<br />
humanos: fazer a revolução através <strong>da</strong> escrita, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />
O cunho didáctico que marca quase to<strong>da</strong> a sua obra está também patente<br />
em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, on<strong>de</strong> o humor chega a ser satírico.<br />
Embora este romance tenha gera<strong>do</strong> alguma perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> aos leitores<br />
habituais, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a “apresentar-se” como um romance policial (119) e ao<br />
<strong>de</strong> invenção estilística que ocorrem na sua obra e que visam a criação <strong>de</strong> um estilo próprio, conseguem<br />
fascinar e seduzir os leitores, através <strong>da</strong> “criação <strong>de</strong> um idiolecto”, ten<strong>do</strong> o autor consegui<strong>do</strong> “formar um<br />
universo <strong>de</strong> recepção constituí<strong>do</strong> por leitores fascina<strong>do</strong>s pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso a um código que gera<br />
simultaneamente estranheza, fascínio e surpresa pela facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scodificação uma vez estabeleci<strong>da</strong><br />
uma primeira relação comunicativa com os textos. O entendimento <strong>do</strong> que está em causa nos mun<strong>do</strong>s<br />
apresenta<strong>do</strong>s será visto como um sinal <strong>de</strong> pertença provisória a tais mun<strong>do</strong>s, o que exerce um efeito <strong>de</strong><br />
sedução sobre leitores que vêem legitima<strong>da</strong> a sua curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e ao mesmo tempo pacifica<strong>da</strong> a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
leitura exótica <strong>de</strong> tal experiência escrita.. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Mia Couto talvez seja o escritor africano <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que mais se aproxima <strong>da</strong> Europa: o “excesso” linguístico <strong>da</strong> sua obra leva a que ela se apresente<br />
como universo semiótico único, intencional e <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> fórmulas plenas <strong>de</strong> poetici<strong>da</strong><strong>de</strong> e que, como tal,<br />
seja tão significativo para os públicos português e europeu” (Martinho, 1998: 17).<br />
118 É inegável que <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> geral as literaturas africanas, em particular a angolana como refere<br />
Ana Margari<strong>da</strong> Fonseca, “vêem a sua emergência contemporânea liga<strong>da</strong> à afirmação <strong>de</strong> um forte conteú<strong>do</strong><br />
político e social, na prosa como na poesia, reconhecen<strong>do</strong>-se no «empenhamento» ou «militantismo»<br />
<strong>do</strong>s textos o principal factor cauciona<strong>do</strong>r <strong>da</strong> sua «autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>», bem como um critério essencial <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
para a integração no corpus <strong>da</strong> literatura africana” (2002).<br />
119 Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não se trata <strong>de</strong> um romance policial. Como o próprio autor afirma: “É uma história<br />
policial, on<strong>de</strong> o policial é só um pretexto para contar algumas coisas. Literalmente é isso” (Pepetela, 2004:<br />
132).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
109
110<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
facto <strong>de</strong> focar a contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana, não existe uma ruptura<br />
total com a obra <strong>do</strong> escritor. “Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, situa-se na<br />
continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>quilo a que po<strong>de</strong>ríamos chamar “uma outra linha” <strong>da</strong><br />
produção <strong>do</strong> escritor: a <strong>do</strong>s romances que ilustram certos aspectos actuais<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>, como já tinha aconteci<strong>do</strong> em O Cão e os<br />
Caluan<strong>da</strong>s e o Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong>” (Pacheco, 2001: 191).<br />
A intenção <strong>do</strong> autor, após diagnosticar os cancros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea<br />
<strong>de</strong> Angola, consiste em repudiar to<strong>do</strong> o universo <strong>de</strong> mentiras<br />
e corrupção ilustra<strong>do</strong> no romance. Após a elaboração <strong>de</strong> um retrato<br />
<strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> infecta<strong>da</strong> pelo vírus <strong>da</strong> corrupção, o escritor aponta<br />
também uma solução, para superar a profun<strong>da</strong> crise que vive a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
angolana. A revolução tem <strong>de</strong> ser, sem dúvi<strong>da</strong>, efectua<strong>da</strong>, através <strong>da</strong><br />
escrita, <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O narra<strong>do</strong>r alerta para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> uma mu<strong>da</strong>nça radical opera<strong>da</strong> na e pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> angolana. A<br />
solução não po<strong>de</strong> ser externa, não po<strong>de</strong> residir na transposição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />
<strong>de</strong> organização social e políticos externos, mas tem <strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong>,<br />
tem <strong>de</strong> emergir no seio <strong>do</strong> povo angolano.<br />
No epílogo, o autor insinua a urgência <strong>de</strong>ssa transformação social.<br />
Na nova socie<strong>da</strong><strong>de</strong> terá <strong>de</strong> prevalecer a paz, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a justiça, a honesti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e, sobretu<strong>do</strong>, a transparência <strong>da</strong> Administração Pública e <strong>do</strong>s<br />
seus agentes, garantes fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Democracia. É na personagem<br />
Gegé que parece residir a esperança. Conseguiu emprego num jornal<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e po<strong>de</strong> agora contribuir para a emergência <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
civil mais consciente. A sua arma será um jornalismo interventivo<br />
e criterioso. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não restam dúvi<strong>da</strong>s, que se trata <strong>de</strong> um registo<br />
autobiográfico que con<strong>de</strong>na veemente a guerra como forma para atingir<br />
a paz, na busca <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa, <strong>da</strong><strong>do</strong> que foram os meios<br />
utiliza<strong>do</strong>s anteriormente e falharam.<br />
O autor <strong>de</strong> O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, após ter elabora<strong>do</strong> o diagnóstico<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> moçambicana (idêntico ao <strong>da</strong> angolana), aponta,<br />
também, uma solução. “Ain<strong>da</strong> assim, me <strong>de</strong>ixei quieto, senta<strong>do</strong>. Na<br />
espera <strong>de</strong> um outro tempo” (225). O tradutor/narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> romance<br />
é o sobrevivente <strong>de</strong> um país que ficou sem terra, que está suspenso<br />
no ar e que aguar<strong>da</strong> um novo ciclo, que virá com o último voo <strong>de</strong> um<br />
flamingo.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Estaremos à espera <strong>de</strong> um outro Tempo que se seguirá a este, que <strong>de</strong>nominam<br />
<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que possibilitará a construção <strong>de</strong> uma<br />
socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa?<br />
Nos <strong>do</strong>is autores, os processos discursivos (como <strong>de</strong>senvolveremos<br />
mais à frente) bem como a escolha <strong>de</strong> temas e ambientes são diversos,<br />
mas convergem na preocupação e no compromisso social <strong>de</strong> alertar para<br />
a emergência <strong>de</strong> nova uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica<br />
é análoga aos respectivos textos literários que analisamos. Os mun<strong>do</strong>s<br />
por eles traça<strong>do</strong>s estão <strong>de</strong>gra<strong>da</strong><strong>do</strong>s pelo cancro <strong>da</strong> corrupção e nem uma<br />
única personagem é incorruptível. Atestam o dita<strong>do</strong> popular que to<strong>do</strong><br />
o ser humano tem o seu preço! Senão vejamos: em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente<br />
Secreto, a personagem principal é também seduzi<strong>da</strong> e protegi<strong>da</strong> pelo<br />
po<strong>de</strong>r, recorre a serviços ilegais para se vingar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> <strong>da</strong> amante.<br />
Ironicamente, a única personagem que po<strong>de</strong>ria servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo já tinha<br />
faleci<strong>do</strong>. O pai <strong>de</strong> Jaime Bun<strong>da</strong>, um intelectual que se manteve íntegro,<br />
porque conformista e curiosamente com o nome <strong>de</strong> “Esperteza” – tio Esperteza.<br />
Morreu pobre manteve a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> e isso, para alguns, ain<strong>da</strong><br />
vale mais <strong>do</strong> que to<strong>da</strong>s as riquezas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (120) . É lógico que existe uma<br />
intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa na introdução <strong>de</strong>sta personagem: alertar<br />
consciências, focalizan<strong>do</strong> o papel fun<strong>da</strong>mental <strong>do</strong> escritor para a transformação<br />
social necessária. O conformismo e a resignação não po<strong>de</strong>m<br />
ser uma solução. Em última instância, o Artista não po<strong>de</strong> alhear-se <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> que o ro<strong>de</strong>ia. À Arte compete problematizar o real, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
conceptualizar uma nova utopia.<br />
I<strong>de</strong>ologia análoga é transmiti<strong>da</strong> em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo. O<br />
narra<strong>do</strong>r/tradutor, que consi<strong>de</strong>ramos ser a personagem principal, não<br />
aparece também como um herói, um exemplo a seguir, uma vez que, aos<br />
olhos <strong>do</strong> povo, está feito como o po<strong>de</strong>r. Este <strong>de</strong>sabafo é feito pelo próprio<br />
logo no segun<strong>do</strong> capítulo: “E às centenas se aglomeraram <strong>de</strong> me ver ali,<br />
entre os notáveis. Passara eu a partilhar <strong>da</strong> panela <strong>do</strong>s graú<strong>do</strong>s, a benefi-<br />
120 A pobreza po<strong>de</strong> ser um argumento para <strong>de</strong>sculpar o crime <strong>de</strong> corrupção, mas ain<strong>da</strong> assim há<br />
quem prefira ser pobre, mas honesto. “A pobreza por vezes é má conselheira. Leva as pessoas a cometer<br />
<strong>de</strong>litos, a roubar, a vigarizar, a mentir. Ele nunca o fez. O orgulho fazia parte <strong>da</strong> sua digni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Homem<br />
pobre, mas trabalha<strong>do</strong>r, tenaz e digno... Ele dizia que não se po<strong>de</strong> enriquecer com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> quan<strong>do</strong><br />
se é honesto. Pagava os impostos a protestar porque não via para on<strong>de</strong> ia o dinheiro <strong>do</strong>s contribuintes”<br />
(Jelloun, 1995: 38-39).<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
111
112<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
ciar <strong>do</strong> fogão <strong>de</strong>les? Outros me acenavam com improvisa<strong>do</strong> respeito, não<br />
fosse eu um man<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>de</strong> chuva” (27).<br />
A intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> resi<strong>de</strong>, ain<strong>da</strong>, no facto <strong>de</strong> esta personagem ser,<br />
como o tio “Esperteza”, o veículo para <strong>de</strong>spertar consciências. Apesar<br />
<strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> o silenciarem, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> até con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>, o tradutor <strong>de</strong><br />
Tizangara não se conforma e busca a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Assisti a tu<strong>do</strong> o que aqui<br />
se divulga, ouvi confissões, li <strong>de</strong>poimentos. Coloquei tu<strong>do</strong> no papel por<br />
man<strong>do</strong> <strong>de</strong> minha consciência. Fui acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> mentir, falsear as provas<br />
<strong>do</strong> assassinato. Me con<strong>de</strong>naram”. É a mentira que a personagem não<br />
aceita e procura a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é o fim único <strong>da</strong> <strong>de</strong>núncia<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores. Em, Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, coloca-se a esperança,<br />
como já referimos, num futuro melhor em Gégé, jornalista, que<br />
vai trabalhar num jornal in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, a<br />
esperança resi<strong>de</strong> no sonho <strong>do</strong> tradutor, que aguar<strong>da</strong> a reconciliação <strong>da</strong><br />
natureza com os homens, simboliza<strong>da</strong> na espera <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> último voo<br />
<strong>do</strong> flamingo. Significativo o título e a esperança no regresso <strong>do</strong> flamingo,<br />
pois, haveria <strong>de</strong> empurrar o sol <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. “Até que<br />
escutei a canção <strong>de</strong> minha mãe, essa que ela entoava para que os flamingos<br />
empurrassem o sol <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (225). Implicitamente,<br />
a crítica ao outro mun<strong>do</strong> – o primeiro, o industrializa<strong>do</strong> – que votou ao<br />
esquecimento o terceiro. Está subentendi<strong>do</strong>, assim, o dita<strong>do</strong> popular,<br />
muito ao gosto <strong>de</strong> Mia Couto, “o sol quan<strong>do</strong> nasce é para to<strong>do</strong>s”. As leituras<br />
po<strong>de</strong>rão ser outras. Efectivamente, a “estória <strong>do</strong> Flamingo, que dá<br />
título ao romance, é o mito organiza<strong>do</strong>r <strong>da</strong> narrativa e veicula uma sabe<strong>do</strong>ria,<br />
<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se a ler com diferentes senti<strong>do</strong>s” (Leite, 2003: 66). O último<br />
voo po<strong>de</strong> ser a visão perdi<strong>da</strong> e encanta<strong>da</strong> <strong>de</strong> um fim. Aguar<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
um outro mun<strong>do</strong>. Um outro tempo.<br />
Se nas déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 50, 60 e 70, a literatura estava comprometi<strong>da</strong><br />
social e politicamente, constituin<strong>do</strong> um veículo <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia partidária,<br />
na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90, <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, a literatura continua a ser<br />
o meio eleito, mas <strong>de</strong>sta vez para transmitir uma i<strong>de</strong>ologia a-partidária,<br />
on<strong>de</strong> a ética e a moral pontificam, <strong>da</strong><strong>do</strong> a frustração <strong>do</strong>s anos oitenta<br />
perante o confronto entre o mun<strong>do</strong> reivindica<strong>do</strong> literariamente e o concretiza<strong>do</strong><br />
politicamente.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
3.2. Estrutura e estratégias a<strong>do</strong>pta<strong>da</strong>s<br />
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
O tema central <strong>da</strong>s duas obras fruto <strong>da</strong> análise <strong>de</strong>ste trabalho é, sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, a corrupção. Quer em O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, quer em Jaime<br />
Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, é esse o crime que faz mover to<strong>da</strong>s as personagens,<br />
que <strong>de</strong>sperta a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s leitores e que nos torna cúmplices<br />
<strong>da</strong>s vozes <strong>de</strong>preciativas <strong>do</strong>s vários narra<strong>do</strong>res. Ou, se calhar, é a nossa<br />
visão oci<strong>de</strong>ntal, extremamente crítica, relativamente à corrupção, que<br />
nos leva a vê-la, mesmo quan<strong>do</strong> ela ali não se encontra e foi outra a intenção<br />
<strong>do</strong> autor. O papel <strong>do</strong> leitor não po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser importante.<br />
Pepetela, que elegeu o romance como a sua arma revolucionária, é<br />
um escritor que nos surpreen<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, na forma como estrutura<br />
o seu discurso ficcional. Em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, isso, também,<br />
acontece. Constituí<strong>do</strong> por seis partes – prólogo, quatro livros e epílogo<br />
–, apenas a primeira e a última parte são atribuí<strong>da</strong>s ao autor. Ao próprio<br />
prólogo é cola<strong>do</strong> o subtítulo <strong>de</strong> “Voz <strong>do</strong> Autor”, sen<strong>do</strong> retoma<strong>da</strong> essa voz<br />
no epílogo. Ao restante <strong>do</strong> romance compete a criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> quatro<br />
narra<strong>do</strong>res, ou melhor, três, sen<strong>do</strong> que o <strong>do</strong> primeiro e <strong>do</strong> terceiro livro é<br />
o mesmo. Constata-se um esquema estrutural <strong>de</strong> vozes complexo, on<strong>de</strong><br />
o autor não abdica, contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> supervisionar, <strong>de</strong> interromper, <strong>de</strong> até<br />
silenciar, critican<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>sempenho. O autor é, assim, o supervisor<br />
<strong>do</strong>s narra<strong>do</strong>res, como se fosse o Juiz no palco <strong>de</strong> um tribunal a ouvir as<br />
testemunhas que presenciaram um crime. O autor chega até “a trocar<br />
impressões com os leitores, numa espécie <strong>de</strong> infinito e lúdico jogo <strong>de</strong><br />
máscaras” (Pacheco, 2001: 195). É o maestro que organiza a orquestra,<br />
impedin<strong>do</strong> que as suas vozes soem <strong>de</strong>safina<strong>da</strong>s. O resulta<strong>do</strong> é um uníssono<br />
brilhante.<br />
O autor que não quer assumir a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> directa pela enunciação<br />
narrativa convoca quatro narra<strong>do</strong>res e é a eles que o leitor <strong>de</strong>ve<br />
atribuir responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Como o próprio salienta:<br />
“– [Bem sei como alguns espíritos mais exigentes vão encontrar neste<br />
episódio um erro <strong>de</strong> técnica narrativa, <strong>de</strong> foco narrativo para ser mais<br />
preciso. Também me insurgi contra o responsável, mas resolvi <strong>de</strong>ixar que<br />
ele seguisse o caminho que escolheu. Há uma vantagem nisso: se muitas<br />
forem as críticas, po<strong>de</strong>rei argumentar que o culpa<strong>do</strong> é o narra<strong>do</strong>r, o qual<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
113
114<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ve ter a sua margem <strong>de</strong> autonomia. E ele próprio sempre po<strong>de</strong>rá dizer<br />
que mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong> Bun<strong>da</strong> terá <strong>de</strong> se cruzar com T e por isso escolheu<br />
este momento <strong>do</strong> relato para introduzir o sinistro personagem. Se<br />
tu<strong>do</strong> parecer muito força<strong>do</strong>, o narra<strong>do</strong>r até po<strong>de</strong>rá se resguar<strong>da</strong>r com a<br />
intuição <strong>do</strong> <strong>de</strong>tective estagiário, que lhe man<strong>do</strong>u ir atrás <strong>de</strong> T. No limite,<br />
o culpa<strong>do</strong> é sempre o personagem. Eu é que não tenho na<strong>da</strong> com isso,<br />
sou apenas <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s.]” (72)<br />
O autor auto-caracteriza-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>fensor <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong><strong>de</strong>s, no entanto,<br />
mostra algum arrependimento em <strong>da</strong>r voz a narra<strong>do</strong>res petulantes:<br />
“– [Que raio <strong>de</strong> narra<strong>do</strong>r petulante fui eu arranjar? Começo a estar<br />
arrependi<strong>do</strong>, mas sou <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> preguiçoso para o <strong>de</strong>mitir a meio <strong>do</strong><br />
jogo e ter <strong>de</strong> inventar outro.]” (113)<br />
Apesar <strong>de</strong> querer isentar-se <strong>de</strong> culpas, não quer <strong>de</strong>mitir-se <strong>do</strong> seu<br />
papel <strong>de</strong> supervisor e admite mesmo ser ele a controlar o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
narrativo. O <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> acção, os <strong>da</strong><strong>do</strong>s divulga<strong>do</strong>s são por ele<br />
controla<strong>do</strong>s:<br />
“– [Adiei. Adiei, travei ao máximo a apressa<strong>da</strong> mão <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r,<br />
mas chegou o temi<strong>do</strong> momento <strong>de</strong> ser apresenta<strong>do</strong> um personagem tenebroso.<br />
Ponham os pára-que<strong>da</strong>s ou apertem os cintos <strong>de</strong> segurança. E<br />
na<strong>da</strong> <strong>de</strong> preconceitos: um personagem tenebroso não é forçosamente o<br />
assassino <strong>da</strong> estória. É tão po<strong>de</strong>roso, tão po<strong>de</strong>roso, que nem o nome <strong>de</strong>le<br />
ouso man<strong>da</strong>r escrever. Ficará pela minha covardia, apenas como senhor<br />
T ou simplesmente T. Não é ministro nem membro <strong>de</strong> nenhum Comité<br />
Central, nem bispo, nem sequer <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> (121) . Mas a sua presença nos<br />
faz tremer. Apenas saberemos que é conselheiro no Bunker e isso vai bastar<br />
também aos leitores, que mais <strong>da</strong><strong>do</strong>s não <strong>de</strong>ixo revelar, pois ain<strong>da</strong> a<br />
pessoa em causa po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir que a ela me refiro. Dirão vocês: gente<br />
<strong>de</strong>ssa não lê literatura <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> categoria. Nem <strong>de</strong> terceira ou quarta.<br />
121 Curiosamente o autor fornece-nos a pirâmi<strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em Angola. Primeiro o governo, <strong>de</strong>pois o<br />
parti<strong>do</strong>, segui<strong>da</strong>mente a Igreja e, por último, o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>. Num sistema <strong>de</strong>mocrático, este último <strong>de</strong>veria<br />
ser o primeiro, uma vez que compete à Assembleia (em Angola <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> Nacional) controlar e fiscalizar<br />
o Governo, ten<strong>do</strong> também po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> o <strong>de</strong>mitir. Em última análise, o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>, eleito pelo povo,<br />
representaria a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
E <strong>da</strong> <strong>de</strong> primeira, ah, fogem <strong>de</strong>la como o Cristo <strong>da</strong> cruz (122) . Mas sempre<br />
há algum caxico que lê e lhes vai zangolar. Nem na morgue <strong>de</strong> Luan<strong>da</strong>,<br />
lugar tenebroso e mal cheiroso por excelência, bom para perigosíssimas<br />
conspirações, <strong>de</strong>ixo revelar <strong>da</strong><strong>do</strong>s sobre T, senão os estritamente necessários.]”<br />
(63)<br />
O leitor acaba por se sentir cúmplice <strong>do</strong> autor, mesmo que este se<br />
auto-<strong>de</strong>nomine <strong>de</strong> covar<strong>de</strong>, até porque o leitor (o narratário) é convoca<strong>do</strong><br />
para ser o confi<strong>de</strong>nte:<br />
“– [On<strong>de</strong> já se viu estória policial em que se afirma logo que o fantástico<br />
<strong>de</strong>tective <strong>de</strong>sconsegue <strong>de</strong> apanhar o horrível assassino? Ou será<br />
mesmo isso que <strong>de</strong>sperta o interesse <strong>do</strong> leitor que se diz, já agora quero<br />
saber como é que este escritor <strong>de</strong> meia-tigela vai evitar que eu comece a<br />
bocejar ao fim <strong>de</strong> duas páginas? Confesso que não sei e a minha ignorância<br />
excita-me, confissão <strong>de</strong> escritor.]” (61-62)<br />
“– [Repararam que obriguei o narra<strong>do</strong>r a fazer um comprimento à<br />
vossa inteligência? Foi apenas com o intuito <strong>de</strong> agra<strong>da</strong>r ao leitor e incitá-lo<br />
a recomen<strong>da</strong>r este livro aos amigos; longe <strong>de</strong> mim a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer<br />
qualquer alusão à suposta falta <strong>de</strong> operacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s nossos orgãos<br />
<strong>de</strong> segurança.]” (149)<br />
Estas intromissões <strong>do</strong> autor (que aparecem assinala<strong>da</strong>s tipograficamente<br />
com parêntesis rectos) envolvem dialogicamente o leitor, conferin<strong>do</strong><br />
ao romance um <strong>de</strong>licioso tom <strong>de</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> “como se, perante a voz <strong>do</strong><br />
«autor», nos tornássemos «ouvintes» em vez <strong>de</strong> «leitores» – uma técnica<br />
sobejamente utiliza<strong>da</strong> por diversos escritores africanos, aproximan<strong>do</strong>-nos<br />
e convocan<strong>do</strong>-nos para a «estória», à maneira <strong>do</strong>s tradicionais «griots»”<br />
(Pacheco, 2001: 196). É to<strong>da</strong> uma tradição <strong>de</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> velhos conta<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> histórias que emerge, como se fosse o papel a falar.<br />
122 O autor critica explicitamente a falta <strong>de</strong> cultura <strong>da</strong> elite política africana. E mais uma vez se confirma<br />
através <strong>da</strong>s suas próprias palavras que o <strong>de</strong>stinatário <strong>da</strong>s obras não são os visa<strong>do</strong>s, pois, estes não<br />
lêem. O mesmo se passa com o povo que é analfabeto e que vive na miséria. Difícil, <strong>de</strong>sta forma, alertar<br />
consciências ou mu<strong>da</strong>r comportamentos. Resta apenas <strong>de</strong>nunciar as atroci<strong>da</strong><strong>de</strong>s no restante mun<strong>do</strong> lusófono,<br />
com mais po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra como é o caso <strong>de</strong> Portugal e Brasil e nos países on<strong>de</strong> as obras quer <strong>de</strong> Mia<br />
Couto quer <strong>de</strong> Pepetela são traduzi<strong>da</strong>s. A elite política africana, diria Bordieu, é muito pobre em capital<br />
cultural, contu<strong>do</strong> situa-se no alto <strong>da</strong> hierarquia social.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
115
116<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
No romance O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, o escritor elege um único<br />
narra<strong>do</strong>r que tem a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser o tradutor <strong>da</strong> vila on<strong>de</strong> vai<br />
<strong>de</strong>correr to<strong>da</strong> a acção. A responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela enunciação narrativa, <strong>de</strong><br />
vinte e um capítulos, é apenas <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r que é também interveniente<br />
na acção narra<strong>da</strong>. Antes <strong>do</strong> romance, existe uma nota <strong>do</strong> tradutor,<br />
tornan<strong>do</strong> mais real a história que se vai contar.<br />
O narra<strong>do</strong>r/tradutor começa por afirmar na primeira pessoa <strong>do</strong> singular,<br />
no pretérito perfeito:<br />
“Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que <strong>da</strong>qui se<br />
seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua<br />
lembrança me surgisse não <strong>da</strong> memória, mas <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração”(11).<br />
O intérprete introduz, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, a história que vai relatar, como se<br />
<strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> memórias se tratasse. Adianta que colocou tu<strong>do</strong> no papel<br />
por man<strong>do</strong> <strong>da</strong> consciência e que foi acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong> mentir, <strong>de</strong> falsear provas<br />
e que foi con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>. O sujeito <strong>de</strong> enunciação não aceita que lhe atribuam<br />
o epíteto <strong>de</strong> mentiroso. “Que eu tenha menti<strong>do</strong>, isso eu não aceito”<br />
(11). Esta afirmação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r/tradutor e a inclusão <strong>de</strong>sta nota antes<br />
<strong>do</strong> romance propriamente dito, alia a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> à ficção. Esta aliança<br />
entre o real e o imaginário remete, logo, o leitor para a procura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
e esta estrutura invoca a leitura <strong>de</strong> uma sentença, ou melhor, a leitura<br />
<strong>de</strong> um processo penal. Cabe agora ao leitor ler os autos que levaram à<br />
con<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> tradutor <strong>de</strong> Tizangara! É o absur<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu próprio processo<br />
que está exposto: mais um grotesco erro judiciário!<br />
O narra<strong>do</strong>r que se apresenta como homodiegético, mas que é, na<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, autodiegético, é solidário com os dramas e experiências <strong>da</strong>s<br />
personagens, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> voz a gente anónima, marginaliza<strong>da</strong>, oprimi<strong>da</strong>,<br />
antes, pelos coloniza<strong>do</strong>res, agora, pelos novos <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. O<br />
narra<strong>do</strong>r não abdica <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar as injustiças a que assiste: “Mas, na<br />
minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia<br />
<strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong> que esse tempo não terminara. Estava era sen<strong>do</strong><br />
geri<strong>do</strong> por pessoas <strong>de</strong> outra raça” (114). Os novos coloniza<strong>do</strong>res são os<br />
seus compatriotas.<br />
Ao narra<strong>do</strong>r cabe o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, pois, é nesta personagem<br />
que a instância autoral transmite a sua i<strong>de</strong>ologia. Logo no primeiro capítulo,<br />
intitula<strong>do</strong> “Um sexo Avulta<strong>do</strong> e Avulso”, o tradutor <strong>de</strong> Tizangara<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
apresenta uma classe dirigente corrupta, na figura <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r<br />
Estêvão Jonas (18). Os governantes são também caracteriza<strong>do</strong>s negativamente<br />
por só se preocuparem em ostentar. A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
tradutor não é dita<strong>da</strong> pela dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong> um outro<br />
idioma, mas porque “qualquer governo prezável tem seus tradutores.<br />
Está a compreen<strong>de</strong>r?” (20).<br />
O sujeito <strong>de</strong> enunciação, como também já foi referi<strong>do</strong>, é cúmplice<br />
com a tradição. Ao longo <strong>da</strong> narrativa nunca ousa pôr em causa as crenças<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> está inseri<strong>do</strong>. O recurso a meios irracionais, para<br />
<strong>de</strong>scobrir o culpa<strong>do</strong> <strong>da</strong>s mortes <strong>do</strong>s capacetes azuis, nunca é critica<strong>do</strong>,<br />
tal como outros aspectos que o mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal não acredita e até con<strong>de</strong>na:<br />
a bruxaria, a crença no sobrenatural, o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s espíritos <strong>do</strong>s<br />
antepassa<strong>do</strong>s. O narra<strong>do</strong>r dá, assim, também voz às personagens anónimas<br />
e até mesmo marginaliza<strong>da</strong>s – como é o caso <strong>de</strong> Ana Deusqueira<br />
– e, curiosamente, estas nunca são caracteriza<strong>da</strong>s com traços negativos.<br />
É através <strong>de</strong>sta personagem que se <strong>de</strong>nuncia a hipocrisia <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
internacional: “morreram milhares <strong>de</strong> moçambicanos, nunca vos vimos<br />
cá. Agora <strong>de</strong>saparecem cinco estrangeiros e já é o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (34).<br />
Ao longo <strong>da</strong> acção narra<strong>da</strong>, o leitor é convoca<strong>do</strong> a partilhar os pensamentos,<br />
as reflexões <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, servin<strong>do</strong>-se muitas vezes <strong>da</strong> interrogação<br />
retórica: “Para que a arte se falta o artifício?” (30). “A <strong>de</strong>legação<br />
se interessa: seria zelo, simples curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>? E pediram-lhe <strong>do</strong>cumentos<br />
comprovativos <strong>da</strong> sua ro<strong>da</strong>gem: curriculum vitae, participação em projectos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, trabalho em ligação com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />
(31). “Um rio tem <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> nascimento? Em que dia exacto<br />
nascem os filhos?”<br />
As interpelações <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r aproximam o leitor <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong><br />
também o discurso indirecto livre e os diálogos. Um recurso estilístico,<br />
aliás, muito frequente, cruzan<strong>do</strong>-se na narrativa a orali<strong>da</strong><strong>de</strong> viva<br />
<strong>da</strong>s personagens com o labor <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong> tradutor. A aliança entre as<br />
estruturas orais e escritas convoca a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ficção, a visualização<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, duas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O sujeito <strong>de</strong> enunciação, sem<br />
nunca per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a história que preten<strong>de</strong> narrar, alterna o seu papel<br />
homodiegético com o autodiegético. A focagem narrativa ora recai sobre<br />
si, ora sobre o acontecimento principal, ao longo <strong>do</strong>s capítulos. Através<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
117
118<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sta técnica possuímos o bilhete <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> tradutor, que recorren<strong>do</strong><br />
sempre à memória reconstitui o seu passa<strong>do</strong>:<br />
“Eu nasci por <strong>de</strong>feito. Parte <strong>de</strong> mim ficou lá, grua<strong>da</strong> nas entranhas<br />
<strong>de</strong> minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava<br />
e não me enxergava” (47). “Apesar <strong>da</strong> nocturna tristeza <strong>de</strong> minha<br />
mãe, eu vivia com sossego <strong>de</strong> peixe em água para<strong>da</strong>. Naquele tempo,<br />
não havia antigamentes... Em fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, os flamingos cruzavam o<br />
céu. Minha mãe ficava cala<strong>da</strong>, contemplan<strong>do</strong> o voo. Enquanto não se<br />
extinguissem os longos pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu<br />
me podia mexer. Tu<strong>do</strong>, nesse momento, era sagra<strong>do</strong>. Já no <strong>de</strong>sfalecer<br />
<strong>da</strong> luz minha mãe entoava, quase em surdina, uma canção que ela tirava<br />
<strong>do</strong> seu invento. Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol<br />
para que o dia chegasse ao outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. – Este canto é para eles<br />
voltarem, amanhã mais outra vez!” (50).<br />
É o recurso ao passa<strong>do</strong>, através <strong>da</strong> memória <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, que traz alguma<br />
paz ao presente. A esperança <strong>de</strong> um futuro melhor está fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />
no passa<strong>do</strong>. Como já verificámos, é assim que termina o romance.<br />
O narra<strong>do</strong>r recor<strong>da</strong> a canção que sua mãe entoava e espera a vin<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />
último flamingo. Será a reconciliação <strong>do</strong> homem com a natureza que<br />
proporcionará um outro Tempo, um outro Mun<strong>do</strong>.<br />
As estratégias discursivas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores em análise, bem como o<br />
acontecimento que serviu <strong>de</strong> mote para a história narra<strong>da</strong>, são diversas,<br />
no entanto, entroncam num mesmo objectivo: pôr a nu a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong> final <strong>do</strong> século vinte, <strong>de</strong> forma a alertar as consciências para<br />
a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> procura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e, a partir <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, construir<br />
uma nova utopia.<br />
O diagnóstico literário está feito, falta agora a vonta<strong>de</strong> política <strong>do</strong>s<br />
dirigentes africanos e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> internacional para tornar o sonho,<br />
que marcou a luta anti-colonial, reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A in<strong>de</strong>pendência formal não<br />
servirá para na<strong>da</strong> se for só uma transferência <strong>de</strong> senhores, isto é, no<br />
fun<strong>do</strong>, apenas um rótulo que legitima novas usurpações.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
CONClUsÃO<br />
A corrupção é, sem dúvi<strong>da</strong>, um fenómeno tão velho como o pró-<br />
1<br />
prio Esta<strong>do</strong>. A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar (abusivamente) o po<strong>de</strong>r<br />
que o exercício <strong>de</strong> funções públicas confere para fins pessoais gera oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
imensas e permite, assim, o enriquecimento fácil. A tentação é<br />
gran<strong>de</strong>, quase que se po<strong>de</strong>ria dizer que é inerente à condição humana. O<br />
egoísmo, o materialismo, o he<strong>do</strong>nismo, a ambição, a ausência <strong>de</strong> valores<br />
e <strong>de</strong> escrúpulos, os apelos incessantes <strong>da</strong> actual socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo<br />
são factores que propiciam o seu <strong>de</strong>senvolvimento progressivo.<br />
Ao longo <strong>do</strong>s séculos, o fenómeno foi atingin<strong>do</strong> maior ou menor<br />
expressão, maior ou menor visibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nos últimos tempos tem, contu<strong>do</strong>,<br />
assumi<strong>do</strong> relevância crescente, seja porque as exigências <strong>de</strong> transparência<br />
no exercício <strong>de</strong> cargos públicos tornam-no mais evi<strong>de</strong>nte, seja<br />
porque atingiu um volume já consi<strong>de</strong>rável. Os números oficiais, que<br />
pecam quase sempre por <strong>de</strong>feito, são eluci<strong>da</strong>tivos e revelam uma dimensão<br />
preocupante. De tal forma que os fun<strong>da</strong>mentos <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> direito parecem ter si<strong>do</strong> afecta<strong>do</strong>s. Mesmo o sistema <strong>de</strong>mocrático<br />
po<strong>de</strong>rá estar em perigo. As raízes <strong>do</strong> mal, os seus tentáculos, as suas ramificações<br />
não conhecem fronteiras, mo<strong>de</strong>los políticos, estratos sociais.<br />
As suas metásteses parecem ter contamina<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o planeta. Surgiram<br />
fortes organizações, à escala global, que utilizam os benefícios e as facili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
resultantes <strong>da</strong> globalização para a prática <strong>do</strong> crime. A corrupção<br />
internacionalizou-se, escolhe os “merca<strong>do</strong>s” mais favoráveis, aqueles<br />
on<strong>de</strong> a esperança <strong>do</strong> lucro e a perspectiva <strong>de</strong> impuni<strong>da</strong><strong>de</strong> são maiores.<br />
Acresce que, normalmente, o inimigo já nem sequer tem uma face visível,<br />
reconhecível, por to<strong>do</strong>s, com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os criminosos já não são<br />
apenas simples «marginais» mas respeitáveis e insuspeitos senhores <strong>de</strong><br />
«colarinho branco».<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
119
120<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
O momentoso problema <strong>da</strong> corrupção é mais preocupante nas so-<br />
2 cie<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ain<strong>da</strong> não lograram uma clara institucionalização <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong>. A máquina administrativa não consegue esten<strong>de</strong>r-se a to<strong>do</strong> o território<br />
e afirmar-se como centro específico <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,<br />
crian<strong>do</strong> margens <strong>de</strong> actuação on<strong>de</strong> impera o arbítrio individual. Assim,<br />
a <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> propicia condições para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong><br />
corrupção. Torna-se um mal endémico. Uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira epi<strong>de</strong>mia que<br />
chega a confundir-se com o mo<strong>do</strong> normal <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> próprio<br />
Esta<strong>do</strong>. A sua autonomia intencional não se afirma, nem é reconheci<strong>da</strong>.<br />
As esferas pública e priva<strong>da</strong> misturam-se. Os <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r privatizam<br />
-no e utilizam-no para criar uma imensa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> clientes. A peita e<br />
o suborno funcionam como uma espécie <strong>de</strong> suplemento remuneratório,<br />
uma contribuição especial para a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> nacional.<br />
Nestes casos a situação ameaça mesmo tornar-se insustentável a<br />
muito curto prazo. O fosso entre os ricos (po<strong>de</strong>rosos) e os pobres (que<br />
apenas lutam pela sobrevivência) é ca<strong>da</strong> vez maior. Os políticos fechamse<br />
na sua cegueira egoísta, preocupan<strong>do</strong>-se apenas com a manutenção<br />
<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>do</strong>s seus benefícios, indiferentes ao sofrimento geral.<br />
Angola e Moçambique são <strong>do</strong>is bons exemplos <strong>de</strong>ste calamitoso es-<br />
3<br />
ta<strong>do</strong> <strong>da</strong>s coisas. A <strong>de</strong>scolonização não constituiu, ain<strong>da</strong>, o <strong>de</strong>seja<strong>do</strong><br />
motor <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Às guerras <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência seguiram-se duas<br />
guerras civis fratrici<strong>da</strong>s, que conduziram estes Esta<strong>do</strong>s, praticamente, à<br />
ruína. À <strong>de</strong>sgraça material juntou-se a <strong>de</strong>sgraça humana. Alguns anos <strong>de</strong>pois<br />
<strong>da</strong> paz ain<strong>da</strong> não foi possível levantar os escombros. A fome, a miséria,<br />
a economia paralela, a sobrevivência à custa <strong>de</strong> expedientes, a tibieza <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> e, ao mesmo tempo, a existência <strong>de</strong> importantes recursos naturais<br />
(sobretu<strong>do</strong> em Angola: ouro, petróleo e diamantes), são o solo fértil para<br />
o germinar fácil <strong>da</strong>s sementes <strong>da</strong> corrupção, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que ela vai contribuin<strong>do</strong><br />
para o aprofun<strong>da</strong>r <strong>da</strong> crise, que teima em persistir. O Esta<strong>do</strong> não<br />
consegue impor-se e, muito menos, afirmar uma intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> própria,<br />
diversa <strong>do</strong>s interesses particulares <strong>da</strong>queles que o servem. A racionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
administrativa, a transparência, a legali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a objectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, dão lugar a<br />
outras lógicas, obscuras e incontroláveis, mais interessantes <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong><br />
vista individual, mas insustentáveis <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista colectivo.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Só muito recentemente, a opinião pública tomou consciência <strong>da</strong><br />
4<br />
presença furtiva, insidiosa e fugidia <strong>da</strong> corrupção e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> a combater. Um pouco por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> assiste-se à sua <strong>de</strong>núncia. Os<br />
<strong>de</strong>latores vêm <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os quadrantes e reclamam experiências muito diferentes.<br />
Não faltam diagnósticos exaustivos nem panaceias milagrosas.<br />
O assunto constitui mesmo tema <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>. Para a formação e consoli<strong>da</strong>ção<br />
<strong>de</strong>sta consciência e para o avolumar crescente <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>bate foram,<br />
certamente, também importantes os contributos <strong>da</strong> literatura. O tema<br />
invadiu-a no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, assumin<strong>do</strong><br />
mesmo honras <strong>de</strong> centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> algumas obras. A tendência mantém-se<br />
neste século, como atestam as duas obras objecto <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>.<br />
O interesse <strong>da</strong> literatura pela corrupção tem, com certeza, subjacente<br />
preocupações sociais. Não será apenas mais um tema apetecível<br />
por <strong>de</strong>spertar a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o assentimento <strong>do</strong>s leitores ou uma simples<br />
exibição <strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> artística a que é indiferente a temática<br />
utiliza<strong>da</strong>. A sua escolha não é fruto <strong>de</strong> um mero e feliz acaso. Tem<br />
inerente uma intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> clara: contribuir para a formação <strong>de</strong><br />
uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mais justa. Embora se trate <strong>de</strong> ficção é inegável que<br />
a literatura transporta para o seu mun<strong>do</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vivencia<strong>da</strong><br />
pelas instâncias autorais e que consubstancia interesses próprios <strong>da</strong>quelas.<br />
A experiência <strong>de</strong> um quotidiano carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> exemplos, o<br />
conhecimento <strong>de</strong> casos concretos e <strong>da</strong>s suas consequências terríveis<br />
é, certamente, o motor <strong>de</strong> uma prodigiosa imaginação criativa, coloca<strong>da</strong>,<br />
neste caso, ao serviço <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia. Apenas um profun<strong>do</strong><br />
conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> permite a sua exposição <strong>de</strong> forma mais ou<br />
menos ficciona<strong>da</strong> ou adultera<strong>da</strong> e possibilita propostas <strong>de</strong> melhoria e<br />
<strong>de</strong> transformação.<br />
As duas obras analisa<strong>da</strong>s são bem prova disso e constituem importantes<br />
<strong>do</strong>cumentos sociológicos que contribuem para a compreensão <strong>da</strong><br />
dinâmica <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s angolana e moçambicana contemporâneas. A<br />
activi<strong>da</strong><strong>de</strong> política surge severamente critica<strong>da</strong>. A classe <strong>do</strong>s políticos,<br />
que <strong>de</strong>via ser a mais nobre, a mais reconheci<strong>da</strong>, a mais prestigia<strong>da</strong> é<br />
ridiculariza<strong>da</strong>. A crítica parece atingir as próprias chefias <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. A<br />
corrupção é critica<strong>da</strong> nos mais altos estratos sociais, olhan<strong>do</strong>-se com indulgência<br />
aqueles que a utilizam apenas para sobreviver. O Bunker, na<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
121
122<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
obra Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, representa, mesmo, o po<strong>de</strong>r excessivo<br />
concentra<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> República.<br />
A visão literária corrobora a visão académica, pois, po<strong>de</strong>remos afirmar<br />
que o objecto <strong>de</strong> trabalho em ambos os campos é o mesmo. A socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
observa<strong>da</strong> é trabalha<strong>da</strong>, <strong>de</strong> forma científica ou literária. A essência<br />
é a mesma. O que se procura é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que também os escritores<br />
preten<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>nunciar, expor e, enfim, melhorar.<br />
As opções <strong>de</strong> técnica literária utiliza<strong>da</strong>s são também significati-<br />
5 vas. A escolha <strong>de</strong> uma plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes, que constituem uma<br />
espécie <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>, um coro uníssono a clamar incessante contra<br />
a corrupção, confere mais credibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao discurso. Não é apenas uma<br />
voz isola<strong>da</strong>. São diversas testemunhas. Visões que se corroboram mutuamente<br />
e que não nos permitem duvi<strong>da</strong>r. Os relatos são fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>s,<br />
po<strong>de</strong>rosos e verosímeis. A sua razão <strong>de</strong> ciência consiste na participação,<br />
directa ou indirecta, nos próprios factos. Tal como no tribunal, somos<br />
conduzi<strong>do</strong>s para a constatação <strong>de</strong> que a corrupção, efectivamente, existe<br />
e a sua dimensão é preocupante.<br />
Este trabalho espera ser, apenas, mais uma voz nesse gran<strong>de</strong> coro.<br />
O conceito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> que sobressai <strong>da</strong>s obras em análise preenche<br />
6 o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> neo-patrimonial. A excessiva<br />
personalização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, o clientelismo e a corrupção, são as três gran<strong>de</strong>s<br />
características <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pós-colonial angolano e moçambicano que<br />
facilmente se <strong>de</strong>tectam nos <strong>do</strong>is textos literários analisa<strong>do</strong>s.<br />
As duas visões literárias <strong>da</strong> corrupção no Esta<strong>do</strong> pós-colonial con-<br />
7<br />
firmam que esta se institucionalizou, fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> quotidiano<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os estratos sociais. To<strong>da</strong>s as “classes” que integram o espaço<br />
social estão corrompi<strong>da</strong>s. Directa ou indirectamente to<strong>do</strong>s parecem beneficiar.<br />
Quanto mais eleva<strong>da</strong> é a posição na escala hierárquica <strong>do</strong> exercício<br />
<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r maiores são os montantes <strong>do</strong> suborno. O eleva<strong>do</strong> valor<br />
económico <strong>da</strong> <strong>de</strong>cisão aumenta o preço <strong>da</strong> sua adulteração. Na base <strong>da</strong><br />
pirâmi<strong>de</strong>, encontra-se, pelo contrário, uma multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> actos <strong>de</strong><br />
valor económico pouco significativo, numa perspectiva colectiva, mas,<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
porventura, muito importante <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista individual. É o exemplo<br />
quotidiano <strong>da</strong>s pequenas multas <strong>de</strong> trânsito. Em ambos os casos, gran<strong>de</strong><br />
corrupção e pequena corrupção, o acto é reprovável, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista<br />
<strong>da</strong> legali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É sempre um <strong>de</strong>svio à norma. No entanto, a sua <strong>da</strong>nosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
social é incomparavelmente maior no primeiro. Uma só <strong>de</strong>cisão adultera<strong>da</strong><br />
po<strong>de</strong> comprometer o futuro <strong>de</strong> muitos. Já, no segun<strong>do</strong> caso, num<br />
contexto <strong>de</strong> fome e <strong>de</strong> pobreza é, muitas vezes, vista como um suplemento<br />
remuneratório. Mesmo assim, apesar <strong>de</strong> haver uma <strong>de</strong>sculpa generaliza<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> pequena corrupção, começa a sentir-se um certo cansaço nessa<br />
argumentação. Os baixos salários, a miséria, não explicam tu<strong>do</strong>.<br />
Os escritores criticam os comportamentos <strong>de</strong>sviantes. A ausência<br />
8 <strong>de</strong> valores morais e éticos; o <strong>de</strong>srespeito pelos antepassa<strong>do</strong>s – significan<strong>do</strong><br />
também to<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> histórico –; a ambição pelo po<strong>de</strong>r e<br />
pelo dinheiro, reduziram, mesmo, o Homem à condição <strong>de</strong> animal. O<br />
Homem ven<strong>de</strong>u a alma. É necessário recuperá-la. O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo<br />
lança esse repto. Ao comparar o comportamento humano ao comportamento<br />
animal, Mia Couto traz-nos a morte <strong>de</strong> um país que necessita<br />
<strong>de</strong> renascer. Isso só acontecerá quan<strong>do</strong> se verificar a reconciliação com<br />
os antepassa<strong>do</strong>s e com a natureza. Será o alimento necessário para que<br />
o Flamingo volte a voar. O mesmo é <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> em Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente<br />
Secreto. As instituições <strong>de</strong>mocráticas são postas em causa. A polícia<br />
secreta que <strong>de</strong>veria ser insuspeita, impoluta, imparcial é directamente<br />
manobra<strong>da</strong>, instrumentaliza<strong>da</strong>, pela cúpula <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. Não existe, em<br />
bom rigor, uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.<br />
Os escritores relembram o passa<strong>do</strong> para não se cometerem os mesmo<br />
erros. A luta já não se faz com armas. A guerra já é outra e a escrita é<br />
uma arma importante. Já não se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> um sistema político, mas sim a<br />
urgência <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> civil activa, participativa e interventiva. Uma<br />
ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira “revolução cultural”.<br />
No início <strong>do</strong> século XXI, é to<strong>do</strong> este cenário que começa, assim,<br />
9<br />
a ser <strong>de</strong>smascara<strong>do</strong> e posto em causa, procuran<strong>do</strong> os escritores<br />
soluções e respostas para um flagelo – o <strong>da</strong> corrupção – que parece não<br />
ter cura! Decepciona<strong>do</strong>s com os novos <strong>de</strong>tentores <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, os escritores<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
123
124<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
parecem não estar mais dispostos a fechar os olhos a <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s situações.<br />
Obras como Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, <strong>de</strong> Pepetela, e O Último<br />
Voo <strong>do</strong> Flamingo, <strong>de</strong> Mia Couto, são neste campo emblemáticas.<br />
Fun<strong>da</strong>mental será perguntar quem as lê e qual o efeito que têm no<br />
receptor. Será que não passam <strong>de</strong> um simples conjunto <strong>de</strong> princípios que<br />
ninguém ousa observar. Em países on<strong>de</strong> a sobrevivência diária ain<strong>da</strong> é<br />
uma batalha árdua esse parece ser um <strong>de</strong>stino inevitável. On<strong>de</strong> a fome<br />
<strong>do</strong>mina as páginas <strong>do</strong>s jornais, a leitura não alimenta a mente <strong>do</strong> povo.<br />
Nem po<strong>de</strong>ria alimentar visto tratar-se <strong>de</strong> um país on<strong>de</strong> a alfabetização<br />
tem ain<strong>da</strong> um processo muito longo a percorrer.<br />
Não obstante os baixos índices <strong>de</strong> leitura, o impacto <strong>da</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong><br />
corrupção pela literatura não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser importante. O papel <strong>da</strong> literatura<br />
em países como Moçambique ou Angola é imprescindível para se escrever<br />
a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história, antes asfixia<strong>da</strong> pela visão colonialista.<br />
A Educação é, por isso, uma arma muito importante. Só <strong>de</strong>ssa forma<br />
será feita a “revolução cultural” que a moribun<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna<br />
necessita. O crime também se combate culturalmente. É necessário<br />
mu<strong>da</strong>r mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, formar seres humanos mais críticos, apostar no<br />
civismo. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira Democracia <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> eficácia <strong>do</strong> combate à criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> económica e altamente<br />
organiza<strong>da</strong>.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
ACtivA<br />
ALLENDE, Isabel<br />
1990 (1982), A Casa <strong>do</strong>s Espíritos, Lisboa: DIFEL.<br />
COUTO, Mia<br />
1987, Vozes Anoiteci<strong>da</strong>s, Lisboa: Caminho.<br />
1991, Cronican<strong>do</strong>, Lisboa: Caminho.<br />
1991, A Varan<strong>da</strong> <strong>do</strong> Frangipani, Lisboa: Caminho.<br />
1999, Raíz <strong>de</strong> Orvalho e Outros Poemas, Lisboa: Caminho.<br />
2000, Terra Sonâmbula, Lisboa: Caminho.<br />
2000, O Último Voo <strong>do</strong> Flamingo, Lisboa: Caminho.<br />
2002, Um Rio Chama<strong>do</strong> Tempo, Uma Casa Chama<strong>da</strong> Terra, Lisboa: Caminho.<br />
2004, O Fio Das Missangas, Lisboa: Caminho.<br />
JAMBA, Sousa<br />
1991, Patriotas, Lisboa: Cotovia.<br />
JELLOUN, Tahar Bem<br />
1995, O Homem Quebra<strong>do</strong>, Lisboa: Caminho.<br />
LOFORTE, Luís<br />
2001, O Advoga<strong>do</strong> <strong>de</strong> Inhassunge, Lisboa: Quetzal Editores.<br />
MARQUES, Gabriel Garcia<br />
1988, Cem Anos De Solidão, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
RUI, Manuel<br />
1991, Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, Lisboa: Cotovia.<br />
1999, 1 Morto & os Vivos, Lisboa: Cotovia.<br />
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
bIblIOgRAfIA<br />
SAÚTE, Nelson<br />
2001, As Mãos Dos Pretos, Antologia <strong>do</strong> Conto Moçambicano, Lisboa: Dom Quixote.<br />
PEPETELA<br />
1985, Yaka, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
1996, Parábola <strong>do</strong> Cága<strong>do</strong> Velho, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
125
126<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
1997 (1985), O Cão e os Caluan<strong>da</strong>s, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
2000 (1992), A Geração <strong>da</strong> Utopia, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
2001 (1995) O Desejo <strong>de</strong> Kian<strong>da</strong>, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
2001, Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
2003, Jaime Bun<strong>da</strong> e Morte <strong>do</strong> Americano, Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
XITU, Uanhenga<br />
1991, O Ministro, Luan<strong>da</strong>: União <strong>do</strong>s Escritores Angolanos.<br />
1997, Cultos Especiais, Luan<strong>da</strong>: PontoUm / Intergráfica.<br />
gErAl<br />
AGUESSY, Honorat<br />
1980 (1977), “Visões e percepções tradicionais”, Balogun, Ola et al., <strong>Introdução</strong> à Cultura<br />
Africana, Luan<strong>da</strong>: Instituto Nacional <strong>do</strong> Livro e <strong>do</strong> Disco, pp. 95-136.<br />
ALATAS, Hussein Syed<br />
1999, Corruption and the Destiny of Asia, Malásia: Simon & Schuster.<br />
AMARAL, Ilídio <strong>do</strong><br />
1985, Fronteiras, Esta<strong>do</strong> e Nação em África (Apontamentos <strong>de</strong> Geografia Política), in<br />
Memórias <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia <strong>da</strong>s Ciências <strong>de</strong> Lisboa.<br />
ANDRADE, Costa,<br />
1982, Literatura Angolana (Opiniões), Lisboa: Edições 70.<br />
APPIAH, Kwame Anthony<br />
1997 (1992), Na Casa <strong>de</strong> Meu Pai. A África na Filosofia <strong>da</strong> Cultura, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Contraponto.<br />
AROUCA, Maria Regina<br />
2001, in Prefácio <strong>do</strong> livro O Advoga<strong>do</strong> <strong>de</strong> Inhassunge, <strong>de</strong> Luís Loforte<br />
BALANDIER, Georges,<br />
1987, Antropologia Política, Lisboa: Editorial Presença.<br />
BARBEITOS, Arlin<strong>do</strong><br />
2003, A Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Civil, Esta<strong>do</strong> Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> em Angola, Lisboa: Novo<br />
Imbon<strong>de</strong>iro.<br />
BARROSO, Alfre<strong>do</strong><br />
2002, Na Vanguar<strong>da</strong> <strong>do</strong> Capitalismo, in Expresso, <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> Agosto.<br />
BAYARD, Jean-François<br />
1991, L’Etat, in COULON, Christian e MARTIN, Denis (orgs.), Les Afriques Politiques,<br />
Paris: La Découverte.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
BORDIEU, Pierre<br />
1996, As Regras <strong>da</strong> Arte, Génese e Estrutura <strong>do</strong> Campo Literário, Lisboa: Editorial<br />
Presença.<br />
2001, Razões Práticas, Sobre a Teoria <strong>da</strong> Acção, Oeiras: Celta.<br />
BRAGA DA CRUZ, M.<br />
2001, Teorias Sociológicas – Os Fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res e os Clássicos, V. I, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste<br />
Gulbenkian.<br />
CARVALHO, Ruy Duarte <strong>de</strong><br />
1997, A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita, Luan<strong>da</strong>: Instituto Nacional <strong>do</strong> Livro e <strong>do</strong><br />
Disco.<br />
2003, Actas <strong>da</strong> Maianga, Lisboa: Edições Cotovia.<br />
CABRAL, João Pina<br />
2003, in entrevista Público, <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> Julho.<br />
CHABAL, Patrick<br />
1992a, Vozes Moçambicanas, Literatura e Nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Lisboa: Vega.<br />
1992b, Power in Africa, An Essay in Political Interpretation, Lon<strong>do</strong>n: The MacMillan<br />
Press.<br />
1996, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa, Lon<strong>do</strong>n: Hurst & Company.<br />
1999, “Nós e a África: A Questão <strong>do</strong> Olhar”, in Africana Studia, n.º 1, <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong><br />
<strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>/Fun<strong>da</strong>ção Eng. António <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, pp.<br />
67-84.<br />
CHABAL, Patrick, e DALOZ, Jean-Pascal<br />
2001 (1999), África Camina – El Desor<strong>de</strong>n com Instrumento Político, Barcelona: Edicions<br />
Bellaterra.<br />
CHAVES, Rita e MACEDO, Tânia<br />
2002, Portanto...Pepetela, Lisboa: Edições Chá <strong>de</strong> Caxin<strong>de</strong>.<br />
CORDEIRO, Ana Dias<br />
2004, Corrupção na origem <strong>de</strong> extravios <strong>de</strong> dinheiro, in Público, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> Janeiro.<br />
COSTA, A. M. Almei<strong>da</strong><br />
2001, “Da Corrupção”, AA.VV., Comentário Conimbricense <strong>do</strong> Código Penal, Coimbra,<br />
Coimbra Editora, pp. 654 e ss..<br />
COUTO, Mia<br />
2003, “A Fronteira <strong>da</strong> Cultura”, in Espaço África, Ano VII, n.º 29, Setembro a Novembro,<br />
pp. 95-102.<br />
DAVIDSON, Basil<br />
2000, O Far<strong>do</strong> <strong>do</strong> Homem Negro, Os Efeitos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-nação em África, <strong>Porto</strong>: Campo<br />
<strong>da</strong>s Letras.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
127
128<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
DIOUF, Makhatar<br />
2002, L’AFrique Dans la Mondialisation, Paris: L’Harmattan.<br />
ENDERS, Armelle<br />
1994, História <strong>da</strong> África Lusófona, Mem Martins: Editorial Inquérito.<br />
EYENE MBA, Jean-Rodrigue-Elisée<br />
2001, Démocracie et Développement en Afrique Face au Liberalisme – Essai sur la Refondition<br />
Politique, Paris: L’Harmattam.<br />
FERNANDES, Ana Paula<br />
2002, “As diferentes abor<strong>da</strong>gens mundiais sobre Cooperação e Desenvolvimento”, in<br />
Forum DC, ano 1, n. º 1, Lisboa, Instituto Marques <strong>de</strong> Valle Flôr/Oikos, pp.15-19.<br />
FERNANDES, Margari<strong>da</strong><br />
2002, “Os textos e os Contextos, As Literaturas Africanas <strong>de</strong> Língua Portuguesa Entre<br />
a Ficção e a Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, in Multiculturalismo, Po<strong>de</strong>res e Etnici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na África Subsariana,<br />
<strong>Porto</strong>: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras/<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Porto</strong>, pp. 39-44.<br />
FERRAJOLI, Luigi<br />
2003, Criminali<strong>da</strong><strong>de</strong> e Globalização, in revista <strong>do</strong> “Ministério Público”, n.º 96, Lisboa:<br />
Editorial Minerva.<br />
FONSECA, Ana Margari<strong>da</strong><br />
2002, Projectos <strong>de</strong> Encostar Mun<strong>do</strong>s, MiraFlores: Difel, S. A.<br />
FOUNOU-TCHUIGOUA, Bernard<br />
1997, Crise Africana – Alternativas, Lisboa, Edições Dinossauro.<br />
GAZANO, Antoine<br />
2000, L’Essentiel <strong>de</strong>s Relations Internationales, Paris: Gualino Éditeur.<br />
GIDDENS, Anthony<br />
2002 (1992), As Consequências <strong>da</strong> Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, Oeiras: Celta.<br />
GONÇALVES, António Custódio<br />
1999, “Dinâmicas <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>safios actuais”, Africana Studia, n.º 1,<br />
<strong>Porto</strong>, <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>/Fun<strong>da</strong>ção Eng. António<br />
<strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, pp.1-15.<br />
2002a, “Prefácio”, Multiculturalismo, Po<strong>de</strong>res e Etnici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na África Subsariana,<br />
<strong>Porto</strong>: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras/<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>.<br />
2002b, “I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s e alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais: <strong>de</strong>safios às soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais e aos<br />
po<strong>de</strong>res políticos”, in GONÇALVES, António Custódio (Coord.), Multiculturalismo,<br />
Po<strong>de</strong>res e Etnici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na África Subsariana, <strong>Porto</strong>: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras/<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong><br />
<strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, pp.13-21.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
HAMILTON, Russel G.<br />
1975, Literatura Africana, Literatura Necessária, I – Angola, Lisboa: Edições 70.<br />
HENRI, Brigitte<br />
2002, La Corruption: un Mal En<strong>de</strong>mique, Lyon: L’Hermes.<br />
HODGES, Tony<br />
2002, Angola, Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Estoril: Principia.<br />
HOPFER, David<br />
2002, “A corrupção – Suas Consequências”, comunicação apresenta<strong>da</strong> Forum Sobre<br />
Transparência e Corrupção a 8 e 9 <strong>de</strong> Outubro – Maputo.<br />
KANE, Mohama<strong>do</strong>u<br />
1982, Roman Africain et Tradition, Dakar: Les Nouvelles Éditions Africaines.<br />
KI-ZERBO, Joseph<br />
1999 (1972), História <strong>da</strong> África Negra, 2 volumes, Mem Martins: Publicações<br />
Europa-América.<br />
LABAN, Michel<br />
1991, Angola, Encontro com Escritores, 2 volumes, <strong>Porto</strong>: Fun<strong>da</strong>ção Eng. António <strong>de</strong><br />
Almei<strong>da</strong>.<br />
1991, Moçambique, Encontro com Escritores, 3 volumes, <strong>Porto</strong>: Fun<strong>da</strong>ção António <strong>de</strong><br />
Almei<strong>da</strong>.<br />
LARANJEIRA, Pires<br />
1995, Literaturas Africanas <strong>de</strong> Expressão Portuguesa, Lisboa: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Aberta.<br />
LEITE, Ana Mafal<strong>da</strong><br />
1996, “Angola”, in Chabal, Patrick et al., The Postcolonial Literature of Lusophone Africa,<br />
Lon<strong>do</strong>n: Hurst & Company, pp.103-164.<br />
1998, Orali<strong>da</strong><strong>de</strong>s & Escritas, nas Literaturas Africanas, Lisboa: Colibri.<br />
2003, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa: Colibri.<br />
LOURENÇO, Eduar<strong>do</strong><br />
2002, O Esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Caos, Lisboa: Gradiva.<br />
MAPPA, Sophia<br />
1996, Puissance et Impuissance <strong>de</strong> L’État, Les Pouvoirs en Question au Nord et au Sud,<br />
Paris: Karthala.<br />
1998, Pouvoirs Traditionnels et Pouvoir d’État en Afrique, Paris: Karthala .<br />
MARQUES, Viriato Soromento<br />
2002, Conferência <strong>de</strong> Joanesburgo: SOS Terra, in Jornal <strong>de</strong> Letras, 22 <strong>de</strong> Julho.<br />
MAUSS, Marcel,<br />
1950, Ensaio Sobre a Dádiva, Lisboa: Edições 70.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
129
130<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
MARTINHO, Ana Maria<br />
1998, “Literatura e Língua Literária”, in Camões, Revista <strong>de</strong> Letras e Culturas Lusófonas,<br />
Lisboa: Instituto Camões.<br />
2001a, “A História Literária em Angola e Moçambique: reflexões sobre ocorrências<br />
paradigmáticas”, in Seruya, Teresa e Moniz, Maria Lin (coord.), Histórias Literárias<br />
Compara<strong>da</strong>s, Lisboa: Edições Colibri/<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> Literatura e Cultura Brasileira <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Católica Portuguesa, pp.155-566.<br />
2001b, Cânones Literários e Educação: Os Casos Angolano e Moçambicano, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção<br />
Calouste Gulbenkian/Fun<strong>da</strong>ção para a Ciência e a Tecnologia,<br />
MATA, Inocência<br />
1992, Pelos Trilhos <strong>da</strong> Literatura Africana em Língua Portuguesa, Pontevedra/Braga:<br />
Ca<strong>de</strong>rnos <strong>do</strong> Povo.<br />
MESSIANT, Christine,<br />
1999, “A propos <strong>de</strong>s «transitions démocratiques». Notes comparatives et préalables à<br />
l’analyse du cas angolais”, Africana Studia, n.º 1, <strong>Porto</strong>: <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong><br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>/Fun<strong>da</strong>ção Eng. António <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, pp. 61-95.<br />
MILLS, Alexandra,<br />
2002, “Strengthening Domestic Institutions Against Corruption: A Public Ethics Checklist”,<br />
in Corruption Integrity Improvement Initiatives in Developing Countries, p. 142,<br />
Relatório <strong>do</strong> PNUD (Programa <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para o Desenvolvimento) sobre a<br />
Corrupção, www.undp.org/dpa/publications/Corruption/ in<strong>de</strong>x.Htmc<br />
MOODY-STUART, George<br />
1994, La Gran Corrupcion, Madrid: Siddhartha Mehta Ediciones.<br />
NEWITT, Malin<br />
1997, História <strong>de</strong> Moçambique, Mem Martins: Publicações Europa-América.<br />
PACHECO, Carlos<br />
2002, Repensar Angola, Lisboa: Vega.<br />
PACHECO, Cristina<br />
2001, “Pepetela (2001), Jaime Bun<strong>da</strong>, Agente Secreto”, in Africana Studia, n.º 4,<br />
<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, pp.<br />
191-198.<br />
PACHECO, Nuno,<br />
2002, “O Espectro <strong>da</strong> Fome”, in Público, 19 <strong>de</strong> Agosto.<br />
PEDRO, Ana Navarro<br />
2003, “França po<strong>de</strong>rá emitir man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> captura <strong>de</strong> Pierre Falcone”, in Público, 10<br />
<strong>de</strong> Outubro.<br />
PEPETELA<br />
1995, “Contexto social <strong>da</strong> génese <strong>da</strong> literatura angolana”, in Quint, Anne Marie (dir),<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
Modèles et Innovations. Étu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Littératures Portugaises et Brésiliennes, Paris: Presses<br />
<strong>de</strong> La Sorbonne Nouvelle, pp. 141-151.<br />
2004, “Entrevista”, Espaço África, Ano VII, n.º 30, Dezembro <strong>de</strong> 2003 a Fevereiro <strong>de</strong><br />
2004, pp. 131-134.<br />
REIS, Carlos<br />
1981, Textos Teóricos <strong>do</strong> Neo-Realismo Português, Lisboa: Seara Nova.<br />
REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina Macário,<br />
2000 (1988), Dicionário <strong>de</strong> Narratologia, Coimbra: Almedina.<br />
RIBAS, Óscar<br />
1989, Ilundu, Espíritos e Ritos Angolanos, Luan<strong>da</strong>: União <strong>do</strong>s Escritores Angolanos.<br />
RODRIGUES, Cunha<br />
1999, “Os Senhores <strong>do</strong> Crime”, in Revista <strong>de</strong> Ciência Criminal, Tomo I, pp. 7-29.<br />
SANTOS, Boaventura <strong>de</strong> Sousa<br />
1999 (1994), Pela Mão <strong>de</strong> Alice, O Social e o Político na Pós-Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>Porto</strong>: Edições<br />
Afrontamento.<br />
SANTOS, Cláudia Maria Cruz<br />
2001, “O Crime De Colarinho Branco (Da Origem <strong>do</strong> Conceito e <strong>da</strong> Relevância Criminológica<br />
à Questão <strong>da</strong> <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> na Administração <strong>da</strong> Justiça Penal)”, Stvdia<br />
Ivridica 56, Boletim <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra: Coimbra<br />
Editora.<br />
SEGRE, Cesare<br />
1999, “Ficção”, Enciclopédia Einaudi: Literatura – Texto, vol. 17, Lisboa: Imprensa Nacional<br />
– Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, pp. 11-41.<br />
SEPÚLVEDA, Luís<br />
2003, “Entrevista”, revista Visão, n.º 548.<br />
SOARES, Francisco<br />
1996, Autobiografia Lírica <strong>de</strong> “M. António”: uma Estética e uma Ética <strong>da</strong> Criouli<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
Angolana, Évora: Pen<strong>do</strong>r.<br />
2001, “Literatura e Política”, in Africana Studia, n.º 4, <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong><br />
Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>, pp. 99-110.<br />
SOUSA, Ivo Carneiro<br />
2000, “O Esta<strong>do</strong> na África Subsariana: <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> Teoria ao Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> Nação”,<br />
Lição <strong>de</strong> Abertura <strong>do</strong> II Curso <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> em <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Porto</strong>, policopia<strong>do</strong>.<br />
TOLE, José Diquissone<br />
1995, Moçambique, Educação e Formação <strong>da</strong> Classe-Esta<strong>do</strong> – dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>,<br />
Lisboa: ISCTE.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
131
132<br />
Ana Maria Duarte Fra<strong>de</strong><br />
TORRES, A<strong>de</strong>lino<br />
1998, Horizontes <strong>do</strong> Desenvolvimento Africano, No Limiar <strong>do</strong> Século XXI, Lisboa:<br />
Vega.<br />
TRIGO, Salvato<br />
1981, Luandino Vieira, o Logoteta, <strong>Porto</strong>: Brasília Editora.<br />
1985,“L iteraturas africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa: um fenómeno <strong>do</strong> urbanismo”,<br />
in AA.VV., Les Littératures Africaines <strong>de</strong> Langue Portugaise. A la Recherce <strong>de</strong> l’I<strong>de</strong>ntité<br />
Individuelle et Nationale, Paris: Fon<strong>da</strong>tion Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais,<br />
pp. 545-552.<br />
VENÂNCIO, José Carlos<br />
1990, “Sociologia e Literatura: alguns problemas teórico-meto<strong>do</strong>lógicos”, in Anais<br />
Universitários, Série <strong>de</strong> Ciências Sociais e Humanas, 1, Covilhã: Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Beira<br />
Interior, pp. 109-121.<br />
1992, Literatura e Po<strong>de</strong>r na África Lusófona, Lisboa: Ministério <strong>da</strong> Educação/Instituto<br />
<strong>de</strong> Cultura e Língua Portuguesa.<br />
1996, Colonialismo, Antropologia e Lusofonias, Lisboa: Vega.<br />
1999a, “Globalização, <strong>de</strong>mocratização e facto literário em Angola. Aproximação a<br />
uma sociologia <strong>do</strong> romance angolano”, Africana Studia, n.º 1, <strong>Porto</strong>: <strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong><br />
<strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>/Fun<strong>da</strong>ção Eng. António <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, pp.<br />
193-204.<br />
1999b, “Terceiro Mun<strong>do</strong>, Globalização e Criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Artística, Algumas notas sobre<br />
a experiência africana”, in AAVV (org. e coord. Ana Maria Mão-<strong>de</strong>-Ferro Martinho),<br />
África: Investigações Multidisciplinares, Évora: Editorial Num.<br />
2000, O Facto Africano, Elementos para uma Sociologia <strong>de</strong> África, Lisboa: Vega.<br />
2002a, “A Encruzilha<strong>da</strong> Africana. Crise política e termo <strong>de</strong> Responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>”, in<br />
Communio, Revista International Católica, n.º 1, pp. 21-30.<br />
2002b, “Multiculturalismo e literatura nacional em Angola”, in GONÇALVES, António<br />
Custódio (Coord.), Multiculturalismo, Po<strong>de</strong>res e Etnici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na África Subsariana,<br />
<strong>Porto</strong>: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras/<strong>Centro</strong> <strong>de</strong> <strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Porto</strong>.<br />
2004, “Jaime Bun<strong>da</strong> versus Sem Me<strong>do</strong>. Nacionalismo e Esta<strong>do</strong> Pós-colonial em Angola<br />
no registo <strong>do</strong>s seus escritore”s, texto a ser publica<strong>do</strong> nas Actas <strong>do</strong> IV Congresso <strong>de</strong><br />
<strong>Estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>Africanos</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Ibérico (África Caminha), realiza<strong>do</strong> em Barcelona <strong>de</strong> 12<br />
a 15 <strong>de</strong> Janeiro.<br />
VILELA, Mário<br />
2002, Metáforas <strong>do</strong> Nosso Tempo, Coimbra: Almedina.<br />
ZIEGLER, Jean,<br />
1999, Os Senhores <strong>do</strong> Crime, As Novas Máfias Contra a Democracia, Lisboa: Terramar,<br />
pp.157-198<br />
WEBER, Max<br />
s.d., O Político e o Cientista, Lisboa: Editorial Presença.<br />
e-BOOK CEAUP 2007
A Corrupção no esta<strong>do</strong> pós-colonial em áfrica: duas visões literárias<br />
WIEACKER, Franz<br />
1980, História <strong>do</strong> Direito Priva<strong>do</strong>, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian.<br />
2007 e-BOOK CEAUP<br />
133