CONTEXTO - UFES - Universidade Federal do Espírito Santo
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C O N T E X T O<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>
Editora da UnivErsidadE FEdEral <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> santo<br />
Av.Fernan<strong>do</strong> Ferrari, 514 - CEP 29075-910 - Goiabeiras - Vitória - ES<br />
Tel: (27) 3335 7852 ediufes@yahoo.com.br - livrariaufes@npd.ufes.br<br />
UnivErsidadE FEdEral <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> santo<br />
Reitor: Rubens Sérgio Rasseli<br />
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação<br />
Pró-reitor: Francisco Guilherme Emmerich<br />
Centro de Ciências Humanas e Naturais<br />
Diretor: Edebrande Cavalieri<br />
Departamento de Línguas e Letras<br />
Chefe: Luís Eustáquio Soares<br />
Programa de Pós-Graduação em Letras<br />
Coordena<strong>do</strong>r: Marcelo Paiva de Souza<br />
ConsElho da EdUFEs:<br />
Cleonara Maria Schwartz, Fausto Edmun<strong>do</strong> Lima Pereira,<br />
João Luiz Calmon Nogueira da Gama,<br />
José Armínio Ferreira, Juçara Gorski Brittes,<br />
Maria Cristina C. Leandro Pereira,<br />
Marcio Paulo Czepack, Sandra Soares Della Fonte,<br />
Waldir Cintra de Jesus Junior e<br />
Wilberth Claython Ferreira Salgueiro<br />
ConsElho Editorial (PPGL / UFEs)<br />
Alexandre Moraes, Deneval Siqueira, Jorge Nascimento, Júlia<br />
Almeida, Lino Macha<strong>do</strong>, Luís Eustáquio Soares, Marcelo Paiva<br />
de Souza, Maria Fernanda Oliveira, Paulo Roberto Sodré,<br />
Pedro Bisch, Raimun<strong>do</strong> Carvalho, Reinal<strong>do</strong> <strong>Santo</strong>s Neves,<br />
Sérgio da Fonseca Amaral, Wilberth Salgueiro<br />
Conselho consultivo<br />
Bella Josef (UFRJ), Eneida Maria de Souza (UFMG), Flávio Carneiro (Uerj),<br />
Evan<strong>do</strong> Nascimento (UFJF), Gilda da Conceição <strong>Santo</strong>s (UFRJ), Italo Moriconi<br />
(Uerj), Jaime Ginzburg (USP), José Américo de Miranda Barros (UFMG),<br />
José Luiz Fiorin (USP), Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP), Márgara<br />
Averbach (Univ. Buenos Aires), Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC),<br />
Marília Rothier Car<strong>do</strong>so (PUC-RJ), Paolo Marcello Spedicato (Universita degli<br />
Studi di Pa<strong>do</strong>va, UP, Itália), Ronal<strong>do</strong> Lima Lins (UFRJ), Sérgio Luiz Pra<strong>do</strong><br />
Bellei (UFSC)<br />
Editores: Marcelo Paiva de Souza, Raimun<strong>do</strong> Carvalho e Wilberth<br />
Salgueiro
Revista <strong>do</strong> Programa de<br />
Pós-Graduação em Letras<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong><br />
C O N T E X T O Dossiê<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis & Guimarães Rosa<br />
Editora da Ufes<br />
Vitória - 2009
Projeto gráfico: Denise R. Pimenta<br />
Editoração eletrônica (miolo): Denise R. Pimenta<br />
Projeto gráfico e arte (capa): Denise R. Pimenta<br />
Catalogação: Ana Maria de Matos CRB 12/ES - 425<br />
Revisão: os autores<br />
Revista Contexto<br />
Programa de Pós-Graduação em Letras<br />
Departamento de Línguas e Letras<br />
Centro de Ciências Humanas e Naturais<br />
Telefone: (27) 33352515<br />
site: www.prppg.ufes.br/ppgl<br />
Contexto / <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, Programa<br />
de Pós-Graduação em Letras: Mestra<strong>do</strong> em Letras – N. 15 e 16<br />
(2008/2009) – Vitória: Ufes, PPGL-MEL, 1987-<br />
376 p.; 21,5 cm.<br />
Anual<br />
ISSN 1519-0544<br />
1. Literatura brasileira contemporânea – Crítica – Periódicos. 2.<br />
Crítica literária – Periódicos. 3. Literatura e Filosofia – Periódicos.<br />
I. <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, Centro de Ciências<br />
Humanas e Naturais, Departamento de Línguas e Letras, Programa<br />
de Pós-Graduação em Letras, Mestra<strong>do</strong> em Letras.
S U M Á R I O<br />
Editorial 9<br />
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS 11<br />
Paul Dixon<br />
Manobras <strong>do</strong> inverossímil: García Márquez e Macha<strong>do</strong> de Assis 13<br />
Marília Rothier Car<strong>do</strong>so<br />
Macha<strong>do</strong>, narra<strong>do</strong>r-crítico 25<br />
Lenival<strong>do</strong> Gomes de Almeida<br />
Esaú e Jacó e a transformação <strong>do</strong>s valores e costumes na época <strong>do</strong><br />
encilhamento 37<br />
Sérgio da Fonseca Amaral<br />
O corte e a corte <strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> 49<br />
Ricar<strong>do</strong> Ramos Costa<br />
A galeria machadiana 63<br />
Ruy Perini<br />
Loucura e paixão em Macha<strong>do</strong> de Assis 79<br />
Jorge Evandro Lemos Ribeiro<br />
“A cartomante” no plano <strong>do</strong> jogo indiciário 95<br />
Carla de Paula <strong>Santo</strong>s<br />
E mais uma vez ironia e dissimulação: transitan<strong>do</strong> pelo<br />
teatro machadiano – um olhar sobre “As forcas caudinas” 108<br />
Maria Helena Laureano<br />
A relação narra<strong>do</strong>r e leitor em Dom Casmurro 120<br />
Vitor Cei <strong>Santo</strong>s<br />
Brás Cubas e a solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano 136
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA 149<br />
Alexandre Moraes<br />
Terceiras margens, travessias misturadas (Guimarães Rosa e Nelson<br />
Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s: família e aban<strong>do</strong>no em <strong>do</strong>is olhares) 151<br />
Wilberth Salgueiro<br />
Grande sertão: veredas: romance e ensaio – par em par 163<br />
Andréia Delmaschio<br />
As razões <strong>do</strong> jogo em “Duelo” 171<br />
Erlon Jose Paschoal<br />
Uma recriação fiel: diálogos entre o autor e o seu tradutor 184<br />
Paulo Muniz da Silva<br />
A micrologia <strong>do</strong> cotidiano em Tutaméia: terceiras estórias 192<br />
Sara Novaes Rodrigues<br />
Em cárceres de preenchi<strong>do</strong> silêncio, vozes entrecruzadas: um estu<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> conto “Quadrinho de estória” de Guimarães Rosa 200<br />
Virgínia Cœli Passos de Albuquerque<br />
O sertão intertextual de Guimarães Rosa 207<br />
Carolina Paganine<br />
O neobarroco em Primeiras estórias de Guimarães Rosa 225<br />
Marcelo Luiz Cesar Mozzer<br />
Presença da Coluna Prestes nas veredas <strong>do</strong> Grande Sertão 246<br />
CLIPE 261<br />
Beny Ribeiro <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s<br />
Bernar<strong>do</strong> Carvalho: entre tramas e trampas 263<br />
Rafael Campos Queve<strong>do</strong><br />
Na fronteira das palavras: a teoria de Bakhtin e a poética<br />
de Ferreira Gullar como respostas ao problema <strong>do</strong> formalismo 275<br />
A<strong>do</strong>lfo Miranda Oleare<br />
A múmia 290
Alessandra Fabrícia Conde da Silva<br />
Um reca<strong>do</strong> à prima hermenêutica em Um assovio de Qorpo-<strong>Santo</strong> 302<br />
Rafaela Scardino<br />
Cartografias instáveis: percursos pela cidade de No país das últimas<br />
coisas, de Paul Auster 317<br />
Angela Regina Binda da Silva<br />
A agonia e o despertar de uma cidade em A peste, de Albert Camus 327<br />
Rodrigo Leite Caldeira<br />
Wal<strong>do</strong> Motta: poesia, crítica e problema 334<br />
TRADUÇÕES 347<br />
Alfred de Saint-Quentin / Álvaro Faleiros 349<br />
George Popescu / Marco Lucchesi 352<br />
Normas para publicação na revista Contexto 373
8 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
EDITORIAL<br />
Com dez artigos sobre a obra de Macha<strong>do</strong> de Assis<br />
e nove sobre a obra de Guimarães Rosa, esta Contexto<br />
vem contribuir para a vastíssima fortuna crítica de ambos<br />
os escritores, cânones de nossa cultura. Contos, peças,<br />
romances, crônicas e cartas de Macha<strong>do</strong> são estuda<strong>do</strong>s,<br />
em abordagens teóricas, intersemióticas e comparatistas.<br />
No caso de Rosa, deu-se ênfase à análise de contos,<br />
novelas e de Grande sertão: veredas, contan<strong>do</strong> ainda com<br />
reflexões envolven<strong>do</strong> o ato tradutório e a relação entre<br />
cinema e literatura.<br />
Os textos sobre os romancistas Albert Camus, Bernar<strong>do</strong><br />
Carvalho e Paul Auster, os poetas Ferreira Gullar e Wal<strong>do</strong><br />
Motta, o filósofo Nietzsche e o dramaturgo Qorpo-<strong>Santo</strong><br />
conferem ao volume um arco prismático instigante,<br />
provocan<strong>do</strong>, sem dúvida, a curiosidade <strong>do</strong> leitor não<br />
<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>.<br />
A tradução de poemas <strong>do</strong> guianense Alfred de Saint-<br />
Quentin e <strong>do</strong> romeno George Popescu revitaliza, mais<br />
ainda, a vontade de saber, que, imaginamos, guia mentes e<br />
corações que aqui aportaram.<br />
Para quem tem esta revista, qualquer revista, sob os<br />
olhos, pode parecer que a sua feitura, silenciosa, acontece<br />
num mar de rosas, pura calmaria de basti<strong>do</strong>res. Que<br />
pareça. Importa, agora, o presente, que é poder – porque<br />
queremos – atravessar todas as tempestades suspensos<br />
num livro. Sem cera nos ouvi<strong>do</strong>s, nem venda nos olhos.<br />
Sem tempo ruim, nem contexto adverso. Ótima leitura.<br />
Os editores.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 9
10 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
DOSSIÊ<br />
MACHADO DE ASSIS<br />
O leitor atento, verdadeiramente<br />
ruminante, tem quatro estômagos<br />
no cérebro, e por eles faz passar<br />
e repassar os atos e os fatos, até<br />
que deduz a verdade, que estava,<br />
ou parecia estar escondida. (Esaú<br />
e Jacó)<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 11
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
12 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
MANOBRAS DO INVEROSSÍMIL:<br />
GARCÍA MÁRQUEZ E MACHADO DE ASSIS<br />
Paul Dixon<br />
Purdue University, USA<br />
Resumo: Com o conto “Adão e Eva”, Macha<strong>do</strong> antecipa o<br />
desfecho inquietante <strong>do</strong> grande romance Cien años de soledad<br />
de Gabriel García Márquez. Nos <strong>do</strong>is casos há um espaço<br />
pareci<strong>do</strong> a um ventre, que abriga um embrião metafórico, uma<br />
substância cuja reprodução é projetada no futuro. No entanto,<br />
também nos <strong>do</strong>is casos há uma espécie de “aborto” que evita<br />
para sempre tal reprodução. Constata-se um equívoco enorme,<br />
devi<strong>do</strong> ao fato de que, fora daquele espaço encerra<strong>do</strong> <strong>do</strong> relato,<br />
a reprodução parece ter-se efetua<strong>do</strong>. Enquanto García Márquez<br />
não entra na questão da recepção desse discurso contraditório,<br />
Macha<strong>do</strong>, num nível extradiegético, explicita uma leitura <strong>do</strong><br />
mesmo, representan<strong>do</strong> um público primeiro bem confuso e,<br />
depois, consciente de ter si<strong>do</strong> “logra<strong>do</strong>” pelo narra<strong>do</strong>r. De<br />
uma forma curiosa e anacrônica, o conto de Macha<strong>do</strong> constitui<br />
uma leitura “póstuma” <strong>do</strong> enigmático romance colombiano.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. García Márquez. “Adão e<br />
Eva”. Cien años de soledad.<br />
Abstract: With the short story “Adam and Eve,” Macha<strong>do</strong><br />
de Assis anticipates the disorienting dénouement of the great<br />
novel Cien años de soledad by Gabriel García Márquez. In<br />
both texts, there is a womb-like space, nurturing a metaphoric<br />
embryo, a substance whose reproduction is projected in the<br />
future. However, in both cases there is a sort of “abortion”<br />
which destroys all possibility of such a reproduction. This<br />
situation creates an enormous confusion, when it is realized<br />
that outside that enclosed space of the immediate narrative,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 13
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
that reproduction appears to have taken place. While García<br />
Márquez <strong>do</strong>es not enter into the question of the reception of<br />
this confusing discourse, Macha<strong>do</strong> <strong>do</strong>es. On an extradiegetic<br />
level, the short story gives a reading, representing first an<br />
audience that is confused and later, one that understands it<br />
has been duped by the narrator. In a curious and anachronistic<br />
way, Macha<strong>do</strong>’s story offers a “posthumous” reading of the<br />
enigmatic Colombian novel.<br />
Keywords: Macha<strong>do</strong> de Assis. García Márquez. “Adão e Eva”.<br />
Cien años de soledad.<br />
Em termos estéticos, o desfecho de uma narrativa desempenha<br />
uma função de grande importância, pois cria no receptor<br />
um senti<strong>do</strong> de finalidade, a impressão de que as expectativas<br />
criadas pelo enre<strong>do</strong> foram cumpridas – enfim, a satisfação<br />
de uma experiência válida. O que Barbara Herrnstein Smith<br />
afirma sobre a importância <strong>do</strong> encerramento na poesia, aplicase<br />
igualmente a um texto narrativo: “Os recursos da conclusão<br />
muitas vezes têm seu efeito característico ao conceder ao<br />
poema uma qualidade percebida pelo leitor como uma validez<br />
notável, uma característica que o deixa com a impressão de que<br />
o enuncia<strong>do</strong> tem o ‘caráter conclusivo’, a finalidade assentada<br />
de uma verdade aparentemente auto-evidente” (152; tradução<br />
minha).<br />
No catálogo <strong>do</strong>s desfechos notáveis da literatura moderna,<br />
certamente o <strong>do</strong> romance Cien años de soledad (1967) <strong>do</strong><br />
colombiano Gabriel García Márquez deve figurar entre os<br />
mais importantes. Haveria um final mais decidi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
aquele vento, destrui<strong>do</strong>r de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s?<br />
Vários recursos conclusivos, analisa<strong>do</strong>s por Smith (158-95), são<br />
exemplifica<strong>do</strong>s no romance colombiano. A predeterminação<br />
ocorre quan<strong>do</strong> o desfecho apresenta um motivo cuja expectativa<br />
foi criada no início. No começo de Cien años, Úrsula resiste à<br />
relação sexual com seu esposo (e primo) porque teme que o<br />
primeiro filho nasça com um rabo de porco. A última criança a<br />
14 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
nascer no romance, muitas gerações depois, possui de fato um<br />
rabo de porco.<br />
O efeito de finalidade também pode ser cria<strong>do</strong> por meio de<br />
estruturas paralelas. O segmento posterior, assim, parece<br />
completar o segmento inicial e dá ao texto um senti<strong>do</strong> decisivo.<br />
A história de Macon<strong>do</strong> demonstra um paralelismo simétrico,<br />
em que primeiro há um processo de fundação e expansão, e<br />
depois há declínio e desintegração.<br />
O recurso da afirmação absoluta, segun<strong>do</strong> Smith, também cria<br />
um senti<strong>do</strong> de conclusão ao “fechar” o assunto, sem lugar para<br />
dúvida ou equívoco. O romance de García Márquez tem um<br />
final altíssono, enfático e bombástico, comparável ao de uma<br />
sinfonia de Beethoven. Tanto em seu conteú<strong>do</strong>, que anuncia<br />
uma finalidade irreversível, como em seu aspecto discursivo,<br />
onde há um tom de grandiloqüência profética, o último<br />
parágrafo <strong>do</strong> romance nos dá um remate <strong>do</strong>s mais decisivos,<br />
anuncian<strong>do</strong> que “la ciudad de los espejos (o los espejismos)<br />
sería arrasada por el viento y desterrada de la memória de los<br />
hombres [... ]. [T]o<strong>do</strong> [...] era irrepetible desde siempre y para<br />
siempre, porque las estirpes condenadas a cien años de soledad<br />
no tenían uma segunda oportunidad sobre la tierra” (351).<br />
No entanto, esta linguagem supostamente definitiva se<br />
torna equívoca quan<strong>do</strong> consideramos outros fatores no<br />
desfecho. Vou mostrar brevemente nesta comunicação que<br />
Cien años de soledad possui uma estrutura única em que um<br />
dénouement aparentemente forte e vociferante, por causa de<br />
fatos contraditórios e irredutivos, fica suspenso num clima de<br />
“second guessing” e confusão. Na realidade, esta é uma idéia<br />
secundária em meu argumento, já que faz parte de um trabalho<br />
meu que foi publica<strong>do</strong> há mais de vinte anos (Reversible, 89-<br />
124). Meu fim principal é mostrar que mais de oitenta anos antes<br />
da publicação de Cien años de soledad, o brasileiro Macha<strong>do</strong><br />
de Assis criou um relato cujo desfecho, em termos estruturais<br />
e funcionais, é igual ao de García Márquez. Já que tais jogos<br />
narrativos fazem parte da visão estética que muitos chamam<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 15
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
de “pós-modernismo”, com minha análise <strong>do</strong> conto “Adão<br />
e Eva” vou sugerir, como outros já sugeriram examinan<strong>do</strong><br />
outros textos (Gill, Douglass, Fitz), que Macha<strong>do</strong> de Assis,<br />
pelo menos em alguns aspectos, é um “pós-moderno” avant<br />
la lettre. 1<br />
Os fatores irreconciliáveis que formam o desfecho de Cien<br />
años de soledad são os seguintes:<br />
1. Um espaço “uterino”.<br />
2. Um “embrião” dentro deste espaço.<br />
3. Um evento que evita, para sempre, o “nascimento”<br />
<strong>do</strong> “embrião”.<br />
4. A existência, num espaço exterior, de uma reprodução<br />
<strong>do</strong> “embrião”.<br />
No caso de Cien años de soledad, podemos ver que a cidade de<br />
Macon<strong>do</strong> tem o aspecto de um mini-mun<strong>do</strong>. Embora haja um<br />
certo intercâmbio de personagens de outros lugares, Macon<strong>do</strong><br />
existe num esta<strong>do</strong> de isolação. Longe de criar condições<br />
infrutíferas, tal isolação parece contribuir para uma dinâmica<br />
de vitalidade. Existe uma forte criatividade e energia sexual (às<br />
vezes incestuosa) entre os personagens. Há uma abundância<br />
de chuva, calor, vegetação e vida animal. A combinação <strong>do</strong><br />
aspecto encerra<strong>do</strong> e <strong>do</strong> aspecto dinâmico sugere que Macon<strong>do</strong><br />
é, em termos metafóricos, um ventre.<br />
Um objeto de grande importância dentro deste espaço é<br />
o manuscrito <strong>do</strong> cigano Melquíades. O manuscrito é um<br />
“embrião” no senti<strong>do</strong> de ser um proto-discurso, cuja realização<br />
ainda não se efetuou. Em geral, o resulta<strong>do</strong> de um manuscrito<br />
consiste no livro publica<strong>do</strong>. No caso particular <strong>do</strong> de<br />
Melquíades, é preciso também que o manuscrito seja decifra<strong>do</strong>,<br />
já que foi elabora<strong>do</strong> num complica<strong>do</strong> código, só descoberto<br />
por Aureliano Babilonia no final <strong>do</strong> romance. Sen<strong>do</strong> uma<br />
história <strong>do</strong> povo de Macon<strong>do</strong>, o manuscrito serve como um<br />
1 Brian McHale discute Cien años de soledad como exemplo<br />
<strong>do</strong> jogo de mun<strong>do</strong>s paralelos ou alternativos (31-32), segun<strong>do</strong> ele<br />
recurso central da estética pós-moderna.<br />
16 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
tipo de semente cujo fruto será a vida (pelo menos em termos<br />
biográficos ou históricos) <strong>do</strong>s habitantes <strong>do</strong> microcosmo.<br />
Justamente na hora em que Aureliano Babilonia começa a<br />
compreender as chaves interpretativas <strong>do</strong> hermético manuscrito,<br />
surge um “huracán bíblico”, uma força devassa<strong>do</strong>ra que destrói<br />
tu<strong>do</strong>, absolutamente, converten<strong>do</strong> Macon<strong>do</strong> num “pavoroso<br />
remolino de polvo e escombros” (351). Metaforicamente, esta<br />
tempestade é um aborto, porque garante que o “embrião”<br />
<strong>do</strong> manuscrito, junto com o único homem capaz de decifrálo,<br />
sejam arrasa<strong>do</strong>s pelo vento, e desterra<strong>do</strong>s para sempre da<br />
memória <strong>do</strong>s homens.<br />
Os três fatores acima coexistem sem problema (sem violência<br />
para a lógica narrativa) no mun<strong>do</strong> de Macon<strong>do</strong>. Mas fora de<br />
Macon<strong>do</strong> (que aliás já foi destruí<strong>do</strong>) há um problema que cria<br />
perplexidade. É que em nossas mãos existe um livro, que nos<br />
detalhes mais minuciosos parece ser a tradução e a publicação<br />
<strong>do</strong> manuscrito <strong>do</strong> velho cigano. Se o germe foi apaga<strong>do</strong> pela<br />
tormenta, como pode existir uma reprodução <strong>do</strong> germe?<br />
A existência <strong>do</strong> livro, junto com a destruição <strong>do</strong> manuscrito, é<br />
um impasse lógico que criou grandes desafios para os leitores<br />
profissionais <strong>do</strong> romance. O registro crítico, no que diz respeito<br />
ao desfecho de Cien años de soledad, contém vários esforços<br />
para explicar um fenômeno que, ao meu ver, não pode ter uma<br />
explicação satisfatória 2 . O final <strong>do</strong> romance, com seu desvio<br />
2 Os comentários sobre o desfecho <strong>do</strong> romance não concordam<br />
quanto à identidade <strong>do</strong> texto. Para a maioria, o manuscrito de Melquíades é<br />
o protótipo <strong>do</strong> romance (Vargas Llosa 541; Rodríguez Monegal , “Novedad”<br />
18; Rodríguez Monegal, “Three” 484-89; Rolfe 261; Espinosa 201-27; Monleón<br />
19, Palencia-Roth 407). William L. Siemens, no entanto, declara que o<br />
manuscrito e o livro não podem ser equivalentes. Para Siemens, portanto,<br />
não há contradição lógica. Mas os outros têm dificuldade em explicar o final.<br />
Vargas Llosa se contradiz, dizen<strong>do</strong> que o romance muda de perspectiva (de<br />
uma terceira pessoa para o cigano), mas reconhece que o manuscrito em sua<br />
totalidade é <strong>do</strong> ponto de vista de Melquíades; assim, ele desdiz a afirmação<br />
da equivalência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is textos. Jerry Root, ao falar da “auto-destruição” (10,<br />
13, 20) <strong>do</strong> romance, não enfrenta o fato óbvio de que o romance existe. Clive<br />
Griffin opina que o mun<strong>do</strong> novelístico não existe depois que o leitor termina<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 17
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
lógico, desafia as convenções da verossimilhança narrativa.<br />
O motivo <strong>do</strong> manuscrito encontra<strong>do</strong>, que normalmente é<br />
considera<strong>do</strong> um gesto em favor <strong>do</strong> realismo, aqui o desfaz.<br />
Falta agora mostrar como os mesmos quatro fatores também<br />
fazem parte <strong>do</strong> jogo narrativo de “Adão e Eva,” publica<strong>do</strong><br />
originalmente na Gazeta de Notícias em 1885, e depois<br />
reproduzi<strong>do</strong> na coletânea Várias histórias, dez anos depois.<br />
Para iniciar, faço um breve resumo <strong>do</strong> conto. “Adão e Eva,”<br />
como tantos outros contos, contém um relato exterior<br />
(extradiegético) e um relato intercala<strong>do</strong> (diegético). O primeiro<br />
consiste num sarau na casa de uma senhora de engenho na<br />
Bahia. Quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s convivas quer saber mais sobre um<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ces servi<strong>do</strong>s, o assunto da conversa torna à questão da<br />
curiosidade. São os homens mais curiosos que as mulheres,<br />
ou vice-versa? E no caso da família humana, quem – Adão<br />
ou Eva – tem mais culpa pela expulsão <strong>do</strong> paraíso? To<strong>do</strong>s<br />
oferecem uma opinião, menos certo juiz de fora. Interroga<strong>do</strong><br />
pelos outros, este afirma que a pergunta não tem senti<strong>do</strong>,<br />
porque as coisas não se passaram no Éden como o registro<br />
sagra<strong>do</strong> indica. O homem então conta sua versão da história<br />
aos convivas curiosos. No final de seu relato, to<strong>do</strong>s ficam<br />
boquiabertos, perplexos, sem saber o que responder. Então o<br />
narra<strong>do</strong>r desfaz tu<strong>do</strong> o que contou, afirman<strong>do</strong> que “nada disso<br />
aconteceu” (528), e volta a perguntar sobre o <strong>do</strong>ce.<br />
A narrativa intercalada, então, é uma versão da velha história<br />
de Gênesis. Tem to<strong>do</strong>s os elementos da versão bíblica—o<br />
o livro (93), sem reconhecer que neste ponto Cien años de soledad não difere<br />
de qualquer romance. Vários críticos evitam o impasse lógico ao “transcender”<br />
o problema físico, passan<strong>do</strong> para uma leitura “metafísica”. Rodríguez<br />
Monegal resolve a contradição no espaço metaficcional, na “inmortalidad<br />
que confiere la palabra” (19). Doris Rolfe também percebe um desmascaramento<br />
da ilusão representada, “énfasis final e definitivo para expresar que la<br />
novela es ficción” (261). Michael Palencia-Roth transfere o texto para um espaço<br />
eterno e cósmico (410, 414), declaran<strong>do</strong> que o romance nunca termina<br />
(415). Susana Cordero de Espinosa (201-27) e Vargas Llosa (544-45) efetuam<br />
uma transição semelhante para o mo<strong>do</strong> da ficcionalidade. Uma “solução”<br />
menos popular é isentar o texto <strong>do</strong> furacão. Aleyda Roldán de Micolta afirma<br />
que a tempestade parece destruir tu<strong>do</strong> menos o manuscrito.<br />
18 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
jardim paradisíaco, a árvore cujo fruto é proibi<strong>do</strong>, a serpente<br />
(representante de Satanás) que promete um grande futuro<br />
como resulta<strong>do</strong> da ingestão da fruta, etc. Para Eva, a serpente<br />
prediz:<br />
[...] serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás<br />
Cleópatra, Di<strong>do</strong>, Semíramis; darás heróis <strong>do</strong> teu ventre,<br />
e serás Cornélia; ouvirás a voz <strong>do</strong> céu e serás Débora;<br />
cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à<br />
terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria<br />
de Nazaré. (527)<br />
Até agora, é a história conhecida. Mas no relato <strong>do</strong> juiz de<br />
fora, tanto Eva como Adão obedecem à proibição divina. Nem<br />
uma nem o outro cai na tentação de saborear o fruto da árvore<br />
da ciência <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal. E, em conseqüência dessa decisão,<br />
Deus entrega toda a terra ao diabo, mandan<strong>do</strong> o anjo Gabriel<br />
para recolhê-los:<br />
[...] então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três<br />
subiram até a estância eterna, onde miríades de anjos os<br />
esperavam, cantan<strong>do</strong>:<br />
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às<br />
obras <strong>do</strong> Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às<br />
plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida <strong>do</strong>s<br />
pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e<br />
morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta<br />
abominação a nota da esperança e da piedade. (528)<br />
Um transporte divino para o reino celestial, é claro, não é um<br />
furacão devassa<strong>do</strong>r. As matérias temáticas de Cien años de<br />
soledad e “Adão e Eva” são bem distintas. Mas, estruturalmente,<br />
as duas narrativas apresentam um paralelo completo. Podemos<br />
voltar à lista de fatores irreconciliáveis já mencionada, e mostrar<br />
que os mesmos elementos existem no conto de Macha<strong>do</strong>.<br />
Não será surpresa notar que o jardim de Éden, em senti<strong>do</strong><br />
metafórico, é um ventre. Contém, em abundância, os elementos<br />
da fertilidade. É um espaço isola<strong>do</strong> e fecha<strong>do</strong>. É o abrigo<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 19
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
cria<strong>do</strong> por Deus para a gestação da raça humana.<br />
O “embrião” implanta<strong>do</strong> neste espaço vital, é claro, é o primeiro<br />
casal. Adão e Eva, nesta altura, só representam o potencial para<br />
uma fecunda geração. Não ten<strong>do</strong> comi<strong>do</strong> <strong>do</strong> fruto, ainda são<br />
inocentes, estéreis e inadequa<strong>do</strong>s para a reprodução.<br />
Quanto ao evento que incapacita o “nascimento” <strong>do</strong> germe,<br />
a transferência de Eva e Adão para o eterno paraíso, no gozo<br />
celeste, constitui esta etapa. Na versão bíblica a expulsão <strong>do</strong><br />
primeiro casal é seu “nascimento” para o mun<strong>do</strong> mortal, o<br />
momento em que se tornam seres tanto vulneráveis como<br />
férteis. Mas no conto, na versão <strong>do</strong> juiz de fora, está claro que<br />
não há nem haverá nascimento, pois “nenhuma criatura” igual<br />
a eles andará sobre a terra.<br />
O quarto fator, a existência de uma reprodução <strong>do</strong> germe<br />
num espaço exterior, se trata de uma mudança de um plano<br />
para outro. Em Cien años de soledad, temos a sobrevivência <strong>do</strong><br />
livro, no espaço <strong>do</strong> leitor, depois de destruí<strong>do</strong> o manuscrito em<br />
Macon<strong>do</strong>. Em “Adão e Eva” o motivo equivalente consiste na<br />
existência de to<strong>do</strong>s os personagens no sarau daquela noite. Em<br />
ambos os casos a continuidade da palavra se envolve com a<br />
idéia da reprodução. O romance de García Márquez, impresso<br />
e distribuí<strong>do</strong>, contradiz o relato <strong>do</strong> manuscrito apaga<strong>do</strong>. A<br />
enunciação oral da história bíblica da criação, num grupo de<br />
pessoas de carne e osso, contradiz a idéia da eterna isolação <strong>do</strong><br />
casal primordial.<br />
A principal diferença entre as duas narrativas talvez resida no<br />
fato de que o efeito, ou seja, a recepção da estranha história é<br />
explícita em um caso, e implícita no outro. Cien años de soledad<br />
está cheio de leitores e de representações <strong>do</strong> ato interpretativo.<br />
Em muitas instâncias, sugere-se que a interpretação é equívoca<br />
ou até impossível. Mas a representação da recepção <strong>do</strong> desfecho<br />
<strong>do</strong> manuscrito de Melquíades não pode figurar no livro, pois<br />
está nas mãos <strong>do</strong> leitor real. A única caracterização escrita<br />
desta leitura está no registro crítico, já aqui resumi<strong>do</strong>. Um<br />
aspecto fascinante de “Adão e Eva” se encontra no fato de que<br />
20 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
a recepção <strong>do</strong> conto contraditório, essencialmente semelhante<br />
a Cien años de soledad, está narrada no próprio conto, na volta<br />
para o nível extradiegético depois <strong>do</strong> relato intercala<strong>do</strong>:<br />
... Ten<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong> de falar, o juiz-de-fora estendeu<br />
o prato a D. Leonor para que lhe desse mais <strong>do</strong>ce,<br />
enquanto os outros convivas olhavam uns para os<br />
outros, embasbaca<strong>do</strong>s; em vez de explicação, ouviam<br />
uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem senti<strong>do</strong><br />
aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:<br />
— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logran<strong>do</strong> a<br />
gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso<br />
aconteceu, não é, Frei Bento?<br />
— Lá o saberá o Sr. Juiz, respondeu o carmelita sorrin<strong>do</strong>.<br />
E o juiz-de-fora, levan<strong>do</strong> à boca uma colher de <strong>do</strong>ce:<br />
— Pensan<strong>do</strong> bem, creio que nada disso aconteceu; mas<br />
também, D. Leonor, se tivesse aconteci<strong>do</strong>, não estaríamos<br />
aqui saborean<strong>do</strong> este <strong>do</strong>ce, que está, na verdade, uma<br />
cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga <strong>do</strong>ceira de<br />
Itapagipe? (528)<br />
A “leitura” <strong>do</strong> relato está bem descrito. Primeiro, há uma atitude<br />
de estupefação, indicada pelo fato de que os ouvintes olham<br />
uns para os outros, “embasbaca<strong>do</strong>s”. Há o reconhecimento<br />
de que a narração é “enigmática” e “sem senti<strong>do</strong>”. Há uma<br />
proposta de resolução da mensagem problemática, na sugestão<br />
de que o narra<strong>do</strong>r “estava logran<strong>do</strong> a gente”. O transtorno<br />
desaparece se reconhecem que o mo<strong>do</strong> discursivo é o de uma<br />
broma. E, afinal, temos a confirmação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r de que a<br />
interpretação proposta é válida. O valor lógico da “leitura” <strong>do</strong>s<br />
presentes é aprova<strong>do</strong>, explicitamente, quan<strong>do</strong> o juiz de fora<br />
diz que “nada disso aconteceu” e que, “se tivesse aconteci<strong>do</strong>,<br />
não estaríamos aqui”. É reconhecida a atitude brincalhona,<br />
implicitamente, quan<strong>do</strong> o juiz deixa a narração e passa rápi<strong>do</strong><br />
para o assunto <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 21
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Dada a congruência impressionante da estrutura narrativa de<br />
“Adão e Eva” e Cien años de soledad, e reconheci<strong>do</strong> o fato de<br />
que somente “Adão e Eva” entra explicitamente na questão<br />
da recepção da narração problemática, quero, para terminar,<br />
propor uma hipótese anacrônica. Por que não pensar em<br />
termos de uma leitura machadiana das últimas páginas de<br />
Cien años de soledad – uma “Análise póstuma de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis”? O modelo desta leitura, é claro, está no desfecho<br />
de “Adão e Eva”. O primeiro elemento desta leitura seria o<br />
reconhecimento de que a confusão é apropriada, porque o<br />
relato é contraditório e carece de senti<strong>do</strong>. E o segun<strong>do</strong> seria a<br />
aceitação da idéia de que a solução mais acessível ao impasse<br />
lógico da narração é ver tu<strong>do</strong> em termos de uma enorme e<br />
cósmica brincadeira 3 .<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Obra completa. Vol. 2. Ed. Afrânio<br />
Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.<br />
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Chasqui 15.2-3 (1986): 15-22.<br />
DIXON, Paul B. Reversible Readings: Ambiguity in Four Modern<br />
Latin American Novels. University: U of Alabama P, 1985.<br />
DOUGLASS, Ellen H. “Macha<strong>do</strong> de Assis’s ‘A cartomante’:<br />
Modern Parody and the Making of a ‘Brazilian’ Text”. MLN<br />
113.5 (1998): 1036-55.<br />
ESPINOSA, Susana Cordero de. “Cien años de soledad: un<br />
asesinato del olvi<strong>do</strong>”. In Manuel Corrales Pascual, ed. Lectura<br />
de García Márquez: <strong>do</strong>ce estudios. Quito: Pontificia Universidad<br />
Católica del Ecua<strong>do</strong>r, 1975. 201-27.<br />
FITZ, Earl. “The Influence of Macha<strong>do</strong> de Assis on John<br />
Barth’s The Floating Opera”. The Comparatist 10 (1986): 56-66.<br />
3 Esta é a hipótese desenvolvida no meu ensaio “Joke Patterns in<br />
Cien años de soledad.”.<br />
22 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Buenos<br />
Aires: Sudamericana, 1971.<br />
GILL, Anne-Marie. “Dom Casmurro and Lolita: Macha<strong>do</strong><br />
among the Metafictionists”. Luso-Brazilian Review 24.1<br />
(1987): 17-26.<br />
GRIFFIN, Clive. “The Humor of One Hundred Years of<br />
Solitude”. In Gene H. Bell-Villada, ed. Gabriel García Márquez’s<br />
One Hundred Years of Solitude: A Casebook. New York:<br />
Oxford UP, 2002. 53-66.<br />
MCHALE, Brian. Constructing Postmodernism. Lon<strong>do</strong>n:<br />
Routledge, 1992.<br />
MICOLTA, Aleyda Roldán de. “Cien años de soledad: una novela<br />
construida sobre espejos”. Explicación de Textos Literarios 4,<br />
suplemento 1 (1975-76): 239-57.<br />
MONLEÓN, José. “Historia de una contradicción”. Maize<br />
3.3-4 (1980): 17-22.<br />
PALENCIA-ROTH, Michael. “Los pergaminos de Aureliano<br />
Babilonia”. Revista Iberoamericana 49.123-34 (1983): 403-17.<br />
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “Novedad y anacronismo<br />
en Cien años de soledad”. Revista Nacional de Cultura 29.185<br />
(1968): 3-21.<br />
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. “One Hundred Years of<br />
Solitude: The Last Three Pages”. Books Abroad 47 (1973): 484-<br />
89.<br />
ROLFE, Doris. “Tono y estructura en Cien años de soledad”,<br />
Explicación de Textos Literarios 4, suplemento 1 (1975-76): 259-<br />
82.<br />
ROOT, Jerry. “Never Ending the Ending: Strategies of<br />
Narrative Time in One Hundred Years of Solitude”. Rackham<br />
Journal of the Arts and Humanities, 1988. 1-25.<br />
SIEMENS, William L. “Tiempo, entropía y la estructura<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 23
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
de Cien años de soledad”. Explicación de Textos Literarios 4,<br />
suplemento 1 (1975-76): 359-71.<br />
SMITH, Barbara Herrnstein. Poetic Closure: A Study of How<br />
Poems End. Chicago: U of Chicago P, 1968.<br />
VARGAS LLOSA, Mario. García Márquez: historia de un<br />
deicidio. Barcelona: Monte Ávila, 1971.<br />
24 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 20/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
MACHADO, NARRADOR-CRÍTICO<br />
Marília Rothier Car<strong>do</strong>so<br />
PUC-Rio<br />
Resumo: Quan<strong>do</strong> um autor é homenagea<strong>do</strong> no topo <strong>do</strong><br />
cânone, é interessante revisar seus méto<strong>do</strong>s de construção da<br />
obra investigan<strong>do</strong> não sua obra prima mas crônicas e contos<br />
da juventude, textos publica<strong>do</strong>s na imprensa e nunca incluí<strong>do</strong>s<br />
em livros. Macha<strong>do</strong> de Assis colaborou regularmente nos<br />
jornais e os editores de revistas femininas freqüentemente<br />
exigiam estórias sedutoras. Assim ele escreveu muitos enre<strong>do</strong>s<br />
para o Jornal das Famílias que lhe serviram de laboratório<br />
literário. Tenta-se mostrar, aqui, que, mesmo nesses exercícios<br />
apressa<strong>do</strong>s, a escrita machadiana <strong>do</strong>brava a fantasia em reflexão.<br />
A sua era uma prosa especulativa, ávida de questionar o poder<br />
comunicativo <strong>do</strong> discurso revelan<strong>do</strong> sua margem impossível<br />
de decifração. Os comentários semanais leves e engraça<strong>do</strong>s e<br />
as estórias para entretenimento, aban<strong>do</strong>nadas nas coleções de<br />
jornais velhos, constituem um lega<strong>do</strong> que não se descarta, pois<br />
permanece como dádiva e desafio para os leitores de hoje.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. Conto. Estética e crítica.<br />
Abstract: When an author is celebrated at the top of the literary<br />
canon, it is interesting to review his methods of building up his<br />
work investigating not his masterpieces but rather chronicles<br />
and early short stories, texts he published in the press and<br />
never included in his books. Macha<strong>do</strong> de Assis was a regular<br />
contributor to newspapers and the editors of magazines for<br />
women often demanded exciting narratives. Thus he wrote<br />
many plots for Jornal das Famílias which certainly served<br />
him as a literary laboratory. We try to show, here, that even<br />
in those hurried exercises Macha<strong>do</strong>’s writing <strong>do</strong>ubled fantasy<br />
into reflection. His was a speculative prose eager to question<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 25
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
the communicative power of speech to reveal its margin<br />
impossible to decipher. The light and funny weekly comments<br />
and the entertainment stories left behind in the old collections<br />
of papers make up a legacy which should not be discarded. It<br />
remains a gift and a challenge for his contemporary readers.<br />
Keywords: Macha<strong>do</strong> de Assis. Short story. Aesthetics and<br />
criticism.<br />
Considera<strong>do</strong> um clássico – o clássico brasileiro, por excelência<br />
–, Macha<strong>do</strong> de Assis tornou-se uma espécie de acervo de<br />
comportamentos escriturais modelares de que se lança mão<br />
para fundamentar teorias <strong>do</strong> texto. O capítulo XLV, “Notas”,<br />
de Memórias póstumas de Brás Cubas exemplifica (pela via<br />
da paródia) a potência <strong>do</strong> fragmento, enquanto fórmula<br />
incompleta e condensada, capaz de tirar, desse para<strong>do</strong>xo,<br />
efeito poético e indagação questiona<strong>do</strong>ra. O “inventário”<br />
de anotações, substituin<strong>do</strong> o encadeamento narrativo, a<br />
justaposição de pequenos quadros de temática autônoma,<br />
os comentários breves <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r intrometi<strong>do</strong> são táticas<br />
de romancista em crise, ambicionan<strong>do</strong> – talvez como os<br />
românticos de Jena – abolir a distinção entre relato ficcional<br />
e “disciplinas crítico-filológicas” (Agamben, 2007, p. 9). Seus<br />
experimentos com a língua nunca ultrapassaram os limites <strong>do</strong><br />
“bom uso”, pela necessidade, na circunstância em que se fez<br />
escritor, de conservar e transmitir, enriqueci<strong>do</strong>, o patrimônio<br />
cultural que lhe coube (Cf. <strong>Santo</strong>s, 1999, p. 82, 83). No entanto,<br />
obediente à tradição <strong>do</strong> código, não preservou seu artefato <strong>do</strong>s<br />
embates com a algaravia das ruas, nem, muito menos, com os<br />
meios modernos de divulgação. Se persistiu no empenho de<br />
penetrar os cânones da língua portuguesa, fê-lo, quase sempre,<br />
no espaço público, entre notícias da política e <strong>do</strong> câmbio,<br />
nos jornais populares; entre receitas e moldes, nas revistas<br />
femininas. Se rompeu a lógica <strong>do</strong>s enre<strong>do</strong>s romanescos<br />
e <strong>do</strong>brou-os em dúvida filosófica, dirigiu-se, sempre, ao<br />
leitor comum. Quis ensinar à <strong>do</strong>na de casa a desconfiar <strong>do</strong>s<br />
narra<strong>do</strong>res, atrair o homem de negócios para a consideração<br />
26 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
<strong>do</strong> desequilíbrio social e, até mesmo, acolher o trabalha<strong>do</strong>r<br />
analfabeto – platéia <strong>do</strong>s folhetins, que se liam em voz alta – no<br />
espaço <strong>do</strong> debate de idéias e valores. Os textos machadianos<br />
que, como especialistas, queremos retomar, neste ano de<br />
comemorações, são os clássicos de uma cultura periférica,<br />
onde não se ultrapassam nem as incertezas, nem a violência<br />
<strong>do</strong>s conflitos.<br />
Os livros didáticos cristalizaram a informação de que Memórias<br />
póstumas é o marco da maturidade de Macha<strong>do</strong>, sua entrada<br />
efetiva na galeria <strong>do</strong>s imortais. Esse mo<strong>do</strong> de classificar uma<br />
trajetória intelectual e artística tem um la<strong>do</strong> de consistência<br />
produtiva e um la<strong>do</strong> de simplificação equivocada. Mas, mesmo<br />
relativiza<strong>do</strong> em seu papel de marco, o relato de Brás Cubas,<br />
com sua agressividade medida de contra-romancista, assume a<br />
tarefa útil de explicitar o espaço escolhi<strong>do</strong> para engendramento<br />
<strong>do</strong> discurso. Situan<strong>do</strong>-se “cá no outro mun<strong>do</strong>” para confrontar<br />
o leitor, o memorialista diz que escreveu a obra “com a pena<br />
da galhofa e a tinta da melancolia”. (Assis, 1962, p. 511, v. 1) O<br />
estatuto fantasmático e as referências contraditórias indicam<br />
a velha tradição ocidental daqueles que, com excesso de bile<br />
negra e regi<strong>do</strong>s por Saturno, entregam-se à contemplação e ao<br />
desejo de um objeto inalcançável, tornan<strong>do</strong>-se aptos à reflexão<br />
crítica, mesmo que sob o risco da apatia e da negatividade<br />
radical. No século XIX, quan<strong>do</strong> o pensamento europeu mais<br />
requinta<strong>do</strong> teria surgi<strong>do</strong> <strong>do</strong> spleen, o brasileiro Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis inventa sua assinatura autoral através <strong>do</strong> “defunto”<br />
Brás, descendente da “genealogia” falsificada <strong>do</strong>s Cubas. É<br />
um mo<strong>do</strong> de inserir-se numa tradição pelas bordas, desejan<strong>do</strong><br />
integrá-la e estranhá-la, ao mesmo tempo. A escrita, produzida<br />
desse lugar fronteiriço, não pode ser outra senão a <strong>do</strong> humor<br />
negro – inscrição para<strong>do</strong>xal: grotesca e fantástica, excessiva e<br />
elíptica, refinada e um tanto grosseira, movida pela cautela <strong>do</strong>s<br />
eruditos e pela ousadia <strong>do</strong>s arrivistas.<br />
A linhagem ambígua <strong>do</strong>s melancólicos – ou <strong>do</strong>s que parodiam<br />
certo banzo <strong>do</strong>s trópicos – expressa-se por alegorias. Dos<br />
romances retrabalha<strong>do</strong>s aos folhetins semanais e aos contos,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 27
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
redigi<strong>do</strong>s às dúzias para responder à demanda das empresas<br />
jornalísticas, a obra de Macha<strong>do</strong> explorou, quase à exaustão,<br />
o emblema <strong>do</strong> teatro. Servin<strong>do</strong>-se da popularidade dessa<br />
instituição, onde se concentrava a sociabilidade elegante, as<br />
intrigas – ou os resquícios de intriga – centram-se no teatro,<br />
mas a representação, que se desenrola no palco, está ausente<br />
<strong>do</strong> texto. Sua referência mantém-se, como um fantasma,<br />
assombran<strong>do</strong> o diálogo <strong>do</strong>s camarotes ou da ceia, após o<br />
espetáculo. É o espectro que desloca e subverte o significa<strong>do</strong><br />
das ações “reais”, desencadeadas nas casas e nas ruas. Na<br />
abertura de Dom Casmurro, um tenor, já velho e rouco, compara<br />
a vida a uma ópera e o narra<strong>do</strong>r considera que “há filósofos<br />
que são, em resumo, tenores desemprega<strong>do</strong>s” (Assis, 1962, p.<br />
817, v. 1). As memórias de Bento lêem-se, assim, como se cada<br />
protagonista tivesse seu papel predetermina<strong>do</strong>, pelo libreto<br />
da ordem social. Mas, ao contracenarem, um jamais consegue<br />
depreender as razões <strong>do</strong> texto <strong>do</strong> outro. E, como a ópera,<br />
descrita por Marcolini, o tenor aposenta<strong>do</strong>, tem co-autoria<br />
de Deus e <strong>do</strong> diabo, é bem possível que, na falta de sintonia<br />
entre música e versos, o senti<strong>do</strong> permaneça inalcançável. Para<br />
conhecer estágios desse percurso de decifração e ciframento de<br />
um saber sobre a sociedade <strong>do</strong>s homens, vale a pena examinar<br />
um par de contos, onde o emblema <strong>do</strong> teatro preside à trama<br />
e matiza o estilo.<br />
Nos anos de sua juventude e primeira maturidade, Macha<strong>do</strong><br />
de Assis pertenceu, simultânea ou sucessivamente, ao corpo<br />
de redatores de diversos jornais e revistas; nos primeiros,<br />
ocupava a coluna <strong>do</strong> folhetim-variedades; nestas, contribuía<br />
com contos e noveletas. Além dessas tarefas regulares, fazia<br />
poemas e era, às vezes, convida<strong>do</strong> para a empreitada mais<br />
longa de um romance em folhetins. Sua obra foi, assim, sen<strong>do</strong><br />
construída aos pedaços, guardan<strong>do</strong>, no entanto, a singularidade<br />
de certo humor sombrio mas conti<strong>do</strong>. Guardan<strong>do</strong>, também,<br />
insistente, o desejo de construir um pensamento inventivo<br />
e crítico. Como o espaço literário, que o fascinava e podia<br />
remunerá-lo, impedia-lhe a sistematicidade <strong>do</strong> discurso<br />
28 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
filosófico, sua contribuição para o acervo <strong>do</strong> saber fazia-se<br />
fragmentária. Combinava uma erudição clássica de autodidata<br />
com a experiência <strong>do</strong> jornalismo. Em seu conjunto irregular, os<br />
textos machadianos constituem, para o Brasil <strong>do</strong>s Oitocentos,<br />
um empreendimento de cultura homólogo aos Ensaios de<br />
Montaigne – ensaios de onde o ficcionista retirava não só<br />
ilustrações e epígrafes mas cuja forma, casual, incompleta e<br />
autocrítica, perseguia, em meio às atribulações de suas tarefas<br />
variadas no serviço público e na imprensa.<br />
“Curiosidade” (Assis, 1956b, p. 127-162), como dezenas<br />
de outras, foi uma narrativa, escrita, por certo, ao correr da<br />
pena, para uma elegante revista de modas, A Estação, em<br />
onze capítulos, publica<strong>do</strong>s entre 31 de janeiro e 30 de junho<br />
de 1879. Assinava-o apenas a inicial M. e não foi inseri<strong>do</strong><br />
em nenhum <strong>do</strong>s volumes de contos organiza<strong>do</strong>s pelo autor.<br />
(Cf. Assis, 1956b, p. 2), Para o estudioso, essas produções,<br />
consideradas circunstanciais e descartáveis, mostram-se<br />
preciosas, pois expõem, à maneira <strong>do</strong>s rascunhos, muitos<br />
aspectos da carpintaria escritural. O enre<strong>do</strong> na noveleta repete,<br />
sem nenhum esforço de mudança, o esquema romântico de<br />
tratar o casamento como confronto entre o interesse prático da<br />
família e a fantasia da moça bonita, entre o moralismo estreito<br />
da sociedade e o ideal libertário <strong>do</strong>s artistas, entre a falta de<br />
escrúpulos <strong>do</strong>s caça-<strong>do</strong>tes e o empenho ainda atabalhoa<strong>do</strong> de<br />
afirmação da autonomia feminina. Só o ceticismo bran<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
final feliz destoa um pouco da fórmula convencional eufórica,<br />
apropriada por Mace<strong>do</strong> e até por Alencar. De seu la<strong>do</strong>,<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis descuida <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> para dar destaque à<br />
moldura alegórica <strong>do</strong> mesmo. Se motivação, suspense, clímax,<br />
desfecho dramático e recomposição apressada <strong>do</strong> equilíbrio<br />
familiar deveram-se à “curiosidade” de Carlota, a moça<br />
bonita e estouvada, a significação – em termos de crítica <strong>do</strong>s<br />
sentimentos e da sociedade – só se tece no contraponto entre<br />
teatro e vida. Sua complexidade resulta <strong>do</strong> caráter ambíguo e<br />
intercambiável de ambos. A quebra da rotina, responsável pela<br />
trama, acontece porque Carlota, já noiva, deseja desvendar os<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 29
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> novo esta<strong>do</strong>, in<strong>do</strong> ao teatro assistir à estréia da<br />
peça (atribuída a Alencar) “O que é o casamento?”. Apesar<br />
<strong>do</strong>s protestos, os pais e o noivo levam Carlota ao teatro.<br />
No entanto, o narra<strong>do</strong>r nada diz sobre o assunto <strong>do</strong> drama,<br />
deixan<strong>do</strong> claro para o leitor que a ação <strong>do</strong> palco não desven<strong>do</strong>u,<br />
para a virgem, o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong> casamento. A própria interessada<br />
voltava os olhos, muito mais insistentemente, para a platéia,<br />
que se revela o espaço, por excelência, da representação. O<br />
triângulo <strong>do</strong>s desejos forma-se na platéia e é na rua e nas<br />
casas que se encena o drama das engo<strong>do</strong>s e falsas aparências.<br />
Se a fantasmagoria burguesa <strong>do</strong> espetáculo social impediu<br />
que Carlota lesse a escrita cifrada oferecida pela performance<br />
<strong>do</strong>s atores, a transformação, ainda que apressada e canhestra,<br />
dessa ilegibilidade em alegoria das relações afetivas foi uma<br />
experiência capital para o escritor. Este tratou de aperfeiçoá-la,<br />
servin<strong>do</strong>-se de sua curiosidade algo mórbida de melancólico<br />
para engendrar tábuas de ideogramas tão intrincadas quanto<br />
Dom Casmurro. (Cf. Benjamin, 1984, p. 191) Tão envolvi<strong>do</strong><br />
quanto Carlota pelo sonho burguês <strong>do</strong> futuro feliz e brilhante,<br />
Bentinho se destaca, para o leitor, por sua dubiedade complexa.<br />
A educação ambiciosa, que lhe deram, em casa, no seminário e<br />
na faculdade de Direito (cf. Santiago, 1978, p. 29-48), ensinou-o<br />
a ler demais, toman<strong>do</strong> qualquer aparência por cifra engana<strong>do</strong>ra<br />
a ser desmascarada. Assim, quan<strong>do</strong> foi ao teatro, assistir ao<br />
Otelo, em vez de dar-se conta de que a traição <strong>do</strong> palco era<br />
representada, tomou-a por revelação da verdade e traduziu-a<br />
literalmente na língua cotidiana de sua vida. E, mesmo velho<br />
e casmurro, quan<strong>do</strong> transpôs suas memórias para a narrativa<br />
continuou a justapor, voluntarioso e obsessivo, os atores da<br />
ópera e os fantasmas da vida. Legou para os pósteros não a<br />
denúncia, que pensava estar grafan<strong>do</strong>, mas a inscrição cifrada<br />
de várias camadas de possíveis equívocos.<br />
É evidente que Dom Casmurro resultou de um processo árduo<br />
de aprendizagem; árduo e cheio de idas e vindas. Só um enorme<br />
dispêndio de experimentos conduz a uma escrita alegórica cujo<br />
humor negro engendra o segre<strong>do</strong>, propõe a chave de decifração<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
desse saber fecha<strong>do</strong> e, ao mesmo tempo, <strong>do</strong>bra-se criticamente<br />
sobre a tarefa, indican<strong>do</strong> o estatuto lacunar e dúbio de qualquer<br />
chave. Bem antes de redigir “Curiosidade”, quan<strong>do</strong> ainda era<br />
contrata<strong>do</strong> pelo Jornal das Famílias, periódico popular da<br />
empresa Garnier, Macha<strong>do</strong> imaginou um relato experimental<br />
de maior ousadia: “O Capitão Men<strong>do</strong>nça” (Assis, 1956a, p.<br />
157-183) publica<strong>do</strong> em duas partes, durante o ano de 1870, e,<br />
embora assina<strong>do</strong>, também esqueci<strong>do</strong>, de propósito, nas páginas<br />
da revista. O narra<strong>do</strong>r deste conto é o próprio protagonista, o<br />
que já <strong>do</strong>ta a narração de maior sutileza. Nesse caso, o descarte<br />
<strong>do</strong> lugar de objetividade é sintomático da perspectiva crítica,<br />
pois a estória aproxima o artifício <strong>do</strong> teatro à positividade<br />
da ciência, numa composição, produtivamente, indecisa que<br />
mistura os parâmetros <strong>do</strong> fantástico e da verossimilhança. A<br />
abertura também conduz a personagem principal ao teatro e, se<br />
Carlota lá foi para matar a curiosidade, Amaral deixou-se levar<br />
pelo tédio. Ambos, moça e rapaz, no entanto, compartilham<br />
desventuras sentimentais e, enquanto ela se alheia <strong>do</strong> palco<br />
para fixar o <strong>do</strong>no de um pincenez, na platéia, ele nem se informa<br />
<strong>do</strong> título da peça, acomoda-se na cadeira, conversa com o<br />
vizinho e, quan<strong>do</strong> este se levanta, acaba fechan<strong>do</strong> os olhos.<br />
No clímax da intriga, quan<strong>do</strong> o nível de suspense chega ao<br />
grau máximo, intervém um desfecho em anti-clímax: Amaral é<br />
desperta<strong>do</strong>. O pano já havia desci<strong>do</strong>, ele perdera to<strong>do</strong> o drama.<br />
Ou não? Se esteve ausente da sala de espetáculo, foi porque<br />
sonhava ou por ter logra<strong>do</strong> transportar-se para outro espaço<br />
– o de um possível futuro ou o da fantasia? Para o leitor que<br />
busca compreender os mecanismos da produção de senti<strong>do</strong>, é<br />
obrigatório considerar to<strong>do</strong>s os planos – reais, representa<strong>do</strong>s,<br />
oníricos, fantásticos e alucina<strong>do</strong>s.<br />
Foi no teatro que Amaral encontrou o Capitão Men<strong>do</strong>nça,<br />
tipo estranho, que o chamou pelo nome, dizen<strong>do</strong>-se amigo<br />
de seu pai no passa<strong>do</strong>. Apesar de intriga<strong>do</strong> pelo vizinho de<br />
platéia, o rapaz se distrai e, enigmaticamente, vê-se atenden<strong>do</strong><br />
ao convite autoritário <strong>do</strong> outro para cear em sua casa. Se o<br />
convite é inespera<strong>do</strong> e inescapável, a visita apresenta uma série<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 31
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
de surpresas: <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r sinistro, que se atravessa, atinge-se<br />
uma sala confortável, uma refeição requintada e a conversa<br />
agradável com uma beldade, a filha <strong>do</strong> anfitrião exótico.<br />
Aliás, prazer e susto misturam-se, o tempo to<strong>do</strong>, nessa casa<br />
descrita como “purgatório” pelo próprio <strong>do</strong>no. Conforta<strong>do</strong><br />
pela beleza da moça, Amaral se desnorteia como o choque<br />
de sabê-la uma construção artificial, um clone, quan<strong>do</strong> recebe,<br />
nas mãos, os belos – e falsos – olhos de Augusta. Diante de<br />
sua “obra-prima”, o Capitão descreve as experiências químicas<br />
responsáveis pela produção daquele ente perfeito, revelan<strong>do</strong>se<br />
menos pai <strong>do</strong> que “autor”. Nos dias seguintes, disposto a<br />
enfrentar os riscos da convivência com o cientista-cria<strong>do</strong>r e<br />
tirar daí proveito prático e estético-afetivo, Amaral vai sen<strong>do</strong><br />
admiti<strong>do</strong> no laboratório e na família <strong>do</strong> velho, pois este aceita<br />
sua união com Augusta. Há apenas uma condição, submeterse<br />
à mais recente experiência <strong>do</strong> “sábio”, que planeja fazê-lo<br />
digno da filha, “introduzin<strong>do</strong>-lhe o gênio” (Assis, 1956a, p.<br />
179). O frasco de éter é prepara<strong>do</strong> para ser introduzi<strong>do</strong>, através<br />
de um pequeno corte em sua cabeça... É, nesse momento,<br />
quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, em volta, já assume “proporções descomunais e<br />
fantásticas”, que a cena – sonho ou pesadelo – é interrompida.<br />
Se, para atender às exigências da revista, o percurso da<br />
fabulação retorna à verossimilhança <strong>do</strong> começo, o próprio<br />
narra<strong>do</strong>r já havia salva<strong>do</strong>, num <strong>do</strong>s parágrafos <strong>do</strong> texto, a<br />
“alta potência” da falsidade dessa representação (Cf. Deleuze,<br />
1973, p. 116-118). Lembran<strong>do</strong> o “conto de Hoffmann em que<br />
um alquimista pretende ter alcança<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> de produzir<br />
criaturas humanas” (Assis, 1956a, p. 169), reafirma o valor<br />
inventivo e crítico de se resgatar a dimensão fantástica <strong>do</strong> real<br />
cotidiano.<br />
Com a referência ao conto sobre a experiência alquímica da<br />
criação, o sonha<strong>do</strong>r melancólico, que se faz especta<strong>do</strong>r distraí<strong>do</strong>,<br />
joga com o la<strong>do</strong> produtivo <strong>do</strong> perigo – o desejo insaciável de<br />
conhecer. E é o confronto da vida entediante com a mágica <strong>do</strong><br />
teatro que permite perscrutar o enigma preservan<strong>do</strong> sua força<br />
pela lógica rasa de uma (suposta) decifração. Não é preciso<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
remontar aos mitos gregos, nem mesmo à ficção romântica,<br />
para consultar o oráculo sem desqualificá-lo. Macha<strong>do</strong>, à<br />
medida que se profissionalizava, aprendia a buscar nos jornais<br />
– especialmente nos jornais já velhos – a voz da esfinge<br />
necessária a questionar o bom senso de seus contemporâneos.<br />
Na coluna das “Balas de estalo”, em 30 de julho de 1884,<br />
o cronista, fazen<strong>do</strong> o papel de cidadão comum, acalma o<br />
fantasma das ambições políticas que o assaltam e, à maneira <strong>do</strong><br />
“defunto” Brás Cubas, quan<strong>do</strong> “não f[o]i ministro de esta<strong>do</strong>”<br />
(Assis, 1962, p. 625, v. 1), considera filosoficamente a ordem<br />
social. Esse momento de lucidez reflexiva é proporciona<strong>do</strong><br />
pela leitura de uma notícia, já antiga de dez ou quinze dias,<br />
que reúne arte dramática e progresso tecnológico. Trata-se <strong>do</strong><br />
espetáculo onde, num momento preciso <strong>do</strong> 1º ato de A dama<br />
das camélias, a “sublime atriz (Emília Adelaide)” deve iluminar<br />
o palco, através da estrela de seu diadema, que “espargirá<br />
esplêndida luz elétrica” (Assis, 1956c, p. 86). Desconhecen<strong>do</strong><br />
o efeito produzi<strong>do</strong> no público por aquela promissora união<br />
da ciência com a arte (pois não encontrou os jornais <strong>do</strong>s dias<br />
subseqüentes), o cidadão-cronista retoma o mesmo jornal e<br />
passa a esquadrinhá-lo, como se fosse uma tábua de hieróglifos,<br />
cuja tarefa decifratória exigisse a combinação de signos<br />
esparsos. Encontra, então, em outra página, um anúncio-chave<br />
que desvenda as bases práticas <strong>do</strong> espetáculo. A mágica da<br />
razão científico-estética apóia-se no interesse da indústria e <strong>do</strong><br />
comércio. O proprietário da loja Campelo “é o colabora<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
Dumas”, ten<strong>do</strong> descoberto o uso da eletricidade no destaque<br />
das performances. Seu “gênio inventivo”, além de abrilhantar<br />
a cena teatral, transformou o brilho em lucro, anuncian<strong>do</strong> o<br />
espetáculo ao la<strong>do</strong> de seu estoque de “binóculos (...), plumas,<br />
penachos, leques, grampos atartaruga<strong>do</strong>s, etc.” (p. 87). O<br />
escritor, fascina<strong>do</strong> pelos emblemas da modernidade inscritos<br />
na ribalta e nos jornais, também se faz gênio inventivo, quan<strong>do</strong><br />
transforma sua arte tradutória em profissão. Mas, na contramão<br />
das quadrinhas publicitárias <strong>do</strong> Campelo, seus versos e seus<br />
contos não permitem uma contabilidade equilibrada entre<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 33
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
gastos e lucros. Como a estrela <strong>do</strong> palco, o brilho produzi<strong>do</strong><br />
por suas palavras é despesa excessiva (cf. Bataille, 1975, p. 33-<br />
36), que, em lugar de acumular, dispersa os bens culturais, para<br />
que perturbem o merca<strong>do</strong>, onde circulam. Em vez de levar<br />
o selo da patente, os fragmentos de saber literário divulgamse<br />
para serem apropria<strong>do</strong>s por outros e, assim, continuarem a<br />
circular e a transformar-se.<br />
Nessa crônica de 1884, como em várias outras das “Balas<br />
de Estalo”, o teatro é o espaço emblemático onde se fazem<br />
representar, para a interpretação, os signos da sociedade, da<br />
economia e da política da metrópole tropical. Tal a importância<br />
estratégica da figuração da arte dramática, que, nessa coluna<br />
coletiva, Macha<strong>do</strong> usa o pseudônimo de Lélio, personagem de<br />
Molière – então, freqüenta<strong>do</strong>r assíduo <strong>do</strong>s palcos da França<br />
e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Se o folhetinista é, sempre, uma persona, que<br />
tipifica a opinião pública -- ou uma voz dissonante <strong>do</strong> senso<br />
majoritário –, o destaque <strong>do</strong> teatro como alegoria caracteriza<br />
a assunção explícita <strong>do</strong> efeito falsifica<strong>do</strong>r para que o discurso<br />
investigue os caminhos da verdade. Por isso mesmo, a alegoria<br />
teatral permanece e se refina, nas crônicas da maturidade.<br />
Foi no espaço denomina<strong>do</strong> “A Semana”, manti<strong>do</strong> entre<br />
1892 e 1897, na edição <strong>do</strong>minical da Gazeta de Notícias, que<br />
surgiram os folhetins machadianos mais bem urdi<strong>do</strong>s, valen<strong>do</strong>,<br />
efetivamente, como ensaios críticos. Do conjunto desses<br />
textos, ressalta “A cena <strong>do</strong> cemitério”, de 3 de junho de 1894<br />
(Assis, 1962, p. 649-651, v.2), excepcionalmente resgata<strong>do</strong> pelo<br />
próprio autor para integrar suas Páginas recolhidas. Aliás, a<br />
situação excepcional deve explicar o comportamento também<br />
raro de dar título a folhetins. Aqui, a referência identifica<strong>do</strong>ra<br />
não vem de uma comédia popular qualquer. Macha<strong>do</strong> foi<br />
buscá-la no Hamlet, o modelo <strong>do</strong>s dramas alegóricos <strong>do</strong><br />
século XVII. Aproveitan<strong>do</strong> o clima tragicômico <strong>do</strong>s episódios<br />
shakespearianos, insiste-se no tom agressivo <strong>do</strong> humor negro,<br />
para tratar da morte e da crise financeira. Ao fragmento de<br />
cena clássica, sobrepõem-se as falas da angústia moderna<br />
diante da fugacidade <strong>do</strong>s capitais. O cronista, pressentin<strong>do</strong> o<br />
34 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
mau augúrio, considera que “essa mistura de poesia e cotação<br />
de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada<br />
bom; eram alhos com bugalhos.” (p. 649)<br />
No final <strong>do</strong>s Oitocentos, para atingir o imaginário burguês,<br />
centra<strong>do</strong> no indivíduo, a crônica volta a experimentar – agora,<br />
tiran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> efeito possível de sua força – a conjunção entre<br />
cena dramática e figuração onírica. A personagem cronista,<br />
na avidez de formar-se e informar-se, lê, na mesma noite, os<br />
jornais e a tragédia. Conseqüência anunciada: o sonho terrível<br />
em que se vê transforma<strong>do</strong> em Hamlet e, atravessan<strong>do</strong> a<br />
cidade, chega a um espaço, “metade cemitério, metade sala”<br />
(p. 649), onde os coveiros cantam a desvalorização <strong>do</strong>s títulos.<br />
São coveiros-corretores que cavam o solo, de onde surgem<br />
caveiras e “debêntures” – “uma fusão de aspectos, letras com<br />
buracos de olhos, dentes por assinaturas.” (p. 650) É a deixa<br />
para que Hamlet deplore a decadência <strong>do</strong> sistema financeiro,<br />
pressentin<strong>do</strong> que suas economias estão prestes a enterrar-se.<br />
Chega o cortejo fúnebre para o sepultamento de Ofélia e seu<br />
desespero cresce; salta dentro da cova e entra em luta com<br />
Laertes. Os conten<strong>do</strong>res se agridem; tu<strong>do</strong> se mancha de sangue.<br />
Só a voz <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, acordan<strong>do</strong>-o, pôde evitar o assassinato.<br />
O desenlace, repentino e desnorteante, não explica nada. O<br />
expediente verossimiliza<strong>do</strong>r não restabelece a tranqüilidade.<br />
Com o fim da crônica, permanece a apreensão <strong>do</strong> pesadelo.<br />
Nenhuma garantia para as notícias <strong>do</strong>s jornais; muito menos,<br />
para o pregão da Bolsa.<br />
O exame ligeiro desse mosaico, quase aleatório, de fragmentos<br />
<strong>do</strong> percurso escritural de Macha<strong>do</strong> de Assis, permite o rastreio<br />
de seu deslizamento pela fronteira entre o senso comum e o<br />
nonsense, a biblioteca clássica ou cosmopolita e as peculiaridades<br />
banais da cidade periférica, a vontade de saber e o aguilhão da<br />
dúvida. Depara-se com um exercício tenso de engendramento<br />
narrativo, que confronta a potência comunicável <strong>do</strong> discurso<br />
com sua necessária inacessibilidade, ofereci<strong>do</strong>, num esforço<br />
de pedagogia inusitada, ao público brasileiro em formação. O<br />
registro de tal esforço constitui o lega<strong>do</strong>, deixa<strong>do</strong> pelo escritor,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 35
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
como dádiva e desafio, para os leitores de hoje que desejem<br />
tornar-se seus herdeiros.<br />
Referências<br />
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias; a palavra e o fantasma na<br />
cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte:<br />
Ed. UFMG, 2007.<br />
ASSIS, J. M. Macha<strong>do</strong> de. Contos recolhi<strong>do</strong>s. Org. R. Magalhães<br />
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[a].<br />
ASSIS, J. M. Macha<strong>do</strong> de. Contos sem data. Org. R. Magalhães<br />
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[b].<br />
ASSIS, J. M. Macha<strong>do</strong> de. Crônicas de Lélio. Org. R. Magalhães<br />
Junior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956[c].<br />
ASSIS, J. M. Macha<strong>do</strong> de. Obra completa. Rio de Janeiro:<br />
Aguilar, 1962. 3 v.<br />
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: A parte maldita.<br />
Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975.<br />
BENJAMIN, Walter. Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão. Trad.<br />
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.<br />
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: P. U.F.,<br />
1973.<br />
SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: Uma<br />
literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.<br />
SANTOS, Roberto Corrêa <strong>do</strong>s. Mo<strong>do</strong>s de saber, mo<strong>do</strong>s de<br />
a<strong>do</strong>ecer. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.<br />
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Recebi<strong>do</strong> em 20/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 20/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ESAÚ E JACÓ E A TRANSFORMAÇÃO DOS<br />
VALORES E COSTUMES NA ÉPOCA DO<br />
ENCILHAMENTO<br />
Lenival<strong>do</strong> Gomes de Almeida<br />
PUC-Rio<br />
Resumo: Análise sócio-histórica <strong>do</strong> romance Esaú e Jacó<br />
(1904), de Macha<strong>do</strong> de Assis, a partir de personagens – <strong>Santo</strong>s,<br />
Batista, Nóbrega – que enriqueceram durante o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
encilhamento.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. Esaú e Jacó. Encilhamento.<br />
Narrativa brasileira.<br />
Abstract: Social-historical analysis of the novel Esaú e Jacó<br />
(1904), by Macha<strong>do</strong> de Assis, from the point of view of<br />
the characters – <strong>Santo</strong>s, Batista, Nóbrega – who became rich<br />
during the period of Encilhamento (a period of financial<br />
depression in Brazil).<br />
Keywords: Macha<strong>do</strong> de Assis. Encilhamento (a period of<br />
financial depression in Brazil). Brazilian narrative.<br />
PANO DE FUNDO<br />
Apesar de a República só ter si<strong>do</strong> proclamada em 1889, a<br />
especulação financeira, a busca desenfreada pelo lucro fácil<br />
e pelo enriquecimento a qualquer custo são anteriores a essa<br />
data e possivelmente foram inauguradas oficialmente com a<br />
“febre das ações” em 1855, ainda sob as barbas <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r.<br />
Como observa José Murilo de Carvalho em Os bestializa<strong>do</strong>s,<br />
a liberdade de ações especulativas e da jogatina oficializada<br />
na bolsa de valores, sem qualquer peia de valores éticos, foi<br />
estendida ao campo da moral e <strong>do</strong>s costumes: “[...] o que<br />
era antes era semiclandestino, sussurra<strong>do</strong>, adquiriu com a<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 37
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
República, se excetuarmos o governo Floriano, foros de<br />
legitimação pública.” (CARVALHO, 1987, P. 27).<br />
Em Esaú e Jacó, Macha<strong>do</strong> de Assis faz um painel <strong>do</strong>s últimos<br />
vinte anos da monarquia e <strong>do</strong>s primeiros anos <strong>do</strong> novo regime.<br />
Mesmo sen<strong>do</strong> o cenário político pano de fun<strong>do</strong> da narrativa<br />
(centrada na família <strong>Santo</strong>s, no conflito entre Pedro e Paulo e<br />
na angustiante indecisão de Flora entre os gêmeos), Macha<strong>do</strong><br />
compõe um excelente quadro da moral e <strong>do</strong>s costumes daquele<br />
perío<strong>do</strong> da incipiente República Brasileira. A família <strong>Santo</strong>s,<br />
a família Batista e o irmão das almas (mais tarde Nóbrega)<br />
são exemplos típicos de uma nova classe social que, sain<strong>do</strong><br />
da periferia <strong>do</strong> poder, concentram esforços em chegar ao<br />
centro decisório da sociedade. Cada um a seu mo<strong>do</strong>, <strong>Santo</strong>s<br />
pelo enobrecimento, Batista através da burocracia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />
Nóbrega pela ostentação – tem o mesmo objetivo, o poder. O<br />
que os diferencia é o grau de consciência e as estratégias que se<br />
utilizam para alcançar o objetivo.<br />
A visita de Natividade à cabocla <strong>do</strong> morro <strong>do</strong> Castelo; o furto<br />
<strong>do</strong> dinheiro das almas por quem o deveria guardar; a missa<br />
mandada rezar por <strong>Santo</strong>s – que, esvaziada <strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong><br />
litúrgico, lhe serve de espetáculo de ostentação – são atitudes<br />
típicas e delimita<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s códigos morais e <strong>do</strong>s costumes que<br />
serão nortea<strong>do</strong>res <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong>s personagens no<br />
decorrer da narrativa.<br />
A FÉ ESCALA MONTANHAS<br />
No primeiro capítulo, Natividade e Perpétua penitenciam-se<br />
no morro <strong>do</strong> Castelo: “o íngreme, o desigual, o mal calça<strong>do</strong><br />
da ladeira mortificavam os pés às duas pobres <strong>do</strong>nas.” (ASSIS,<br />
1988, P. 19).<br />
Para terem acesso ao mun<strong>do</strong> transcendente <strong>do</strong>s espíritos, as<br />
duas se <strong>do</strong>bram ao sacrifício e se lançam por um ambiente<br />
pobre e sombrio. Antes de alcançarem o espaço priva<strong>do</strong> da<br />
consulta, se expõem publicamente aos olhares <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
e passantes <strong>do</strong> local. Já na escada que as levará ao lugar da<br />
consulta, esbarram com <strong>do</strong>is homens que, como no coro das<br />
tragédias gregas, exteriorizam duas falas comuns na opinião<br />
pública e na consciência dialógica <strong>do</strong>s que recorrem à cabocla:<br />
— Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir<br />
disparate...<br />
— É mentira dele, emen<strong>do</strong>u o outro rin<strong>do</strong>; a cabocla<br />
sabe bem onde tem o nariz. (ASSIS, 1988, p. 20)<br />
A exemplo <strong>do</strong> que ocorre em um <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s contos<br />
<strong>do</strong> autor, “A cartomante”, Macha<strong>do</strong> nos descreve um jogo<br />
de linguagem, no qual a cabocla lança expressões genéricas,<br />
significantes vazios para que a consulente os preencha,<br />
acossada pela angústia da espera – Natividade está grávida –<br />
segun<strong>do</strong> seus desejos.<br />
Longe de revelar, o discurso dissimula. E, numa inversão da<br />
hierarquia social, a cabocla é quem manipula a palavra, se<br />
utilizan<strong>do</strong>, para isso, das mesmas estratégias retóricas usadas<br />
pelos padres com suas parábolas emprestadas à bíblia e pelos<br />
políticos com seus ideários copia<strong>do</strong>s aos filósofos ou aos<br />
poetas, segun<strong>do</strong> seus interesses.<br />
A cena da consulta é narrada como se fora um espetáculo de<br />
teatro. Macha<strong>do</strong> carrega na tinta, levan<strong>do</strong> o leitor a ver aquele<br />
ritual através de um olhar analítico e não emotivo, o olhar<br />
distancia<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r de terceira pessoa. Essa estratégia fica<br />
mais evidente se for considera<strong>do</strong> que é com esse acontecimento<br />
que tem início a narrativa, quan<strong>do</strong> ainda se desconhecem<br />
completamente as duas personagens, Natividade e Perpétua, e<br />
por elas o leitor não pode estabelecer nenhum tipo de relação<br />
de empatia.<br />
Do fato narra<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is aspectos são bastante significativos,<br />
consideran<strong>do</strong>-se a moral e os bons costumes da época. A<br />
quebra da hierarquia social: a cabocla é investida de um poder<br />
ao qual Natividade se submete; o nivelamento de duas crenças<br />
(ou religiões) que ocupam espaços diferencia<strong>do</strong>s na formação<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 39
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
da sociedade brasileira: o catolicismo, <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>res, e o<br />
espiritismo não-científico (sic), trazi<strong>do</strong> pelos negros vin<strong>do</strong>s<br />
da África. Esse nivelamento se apresenta discursivamente<br />
quan<strong>do</strong> a cabocla sugere o conflito entre os gêmeos, filhos<br />
de Natividade, o que reporta às imagens arquetípicas de<br />
Esaú e Jacó, que, por darem título ao livro, é uma nota que se<br />
reapresenta de imediato na mente <strong>do</strong> leitor.<br />
Encerrada a consulta, se estabelece imediatamente a finalidade<br />
comercial <strong>do</strong> encontro. Natividade gratifica com bens materiais<br />
(dez mil-réis) os bens simbólicos que acaba de receber: o sonho<br />
de um futuro glorioso para os filhos.<br />
O BANQUETE DAS ALMAS<br />
Se para Natividade não há entraves entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
bens simbólicos e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s bens materiais, posto que o<br />
segun<strong>do</strong> lhe assegura o primeiro, o mesmo não ocorre com o<br />
irmão das almas, ao qual Natividade confia <strong>do</strong>is mil-réis para<br />
que sejam emprega<strong>do</strong>s na missa das almas. Depositário de tão<br />
alta quantia e sem a tranqüilidade material de Natividade, o<br />
banqueiro das almas, responsável pela manutenção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
eterno, se vê momentaneamente afligi<strong>do</strong> com as questões<br />
éticas já tão enfraquecidas pela nova ordem econômica e<br />
social – o capitalismo e o surgimento de uma classe burguesa<br />
inescrupulosa.<br />
Claro é que essa lucidez não ocupa os pensamentos <strong>do</strong><br />
pobre pedinte. Sua questão é mais pragmática. Seu tempo é o<br />
presente. Seu mun<strong>do</strong>, o das necessidades imediatas. Portanto,<br />
seu conflito não dura mais <strong>do</strong> que o curto caminho que o<br />
leva à igreja, quan<strong>do</strong> se dá conta, pela esmolas miseráveis que<br />
recolhe no trajeto, que aquela era uma oportunidade única.<br />
Na polifonia de vozes da sua consciência, a vontade de viver<br />
se expressa com mais vigor, se sobrepon<strong>do</strong> aos outros seres,<br />
nesse conflito da vontade de viver consigo mesma, e fazen<strong>do</strong><br />
da representação apenas um instrumento para alcançar o seu<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
objetivo, como demonstrou Schopenhauer, no clássico O<br />
mun<strong>do</strong> como vontade e representação.<br />
[...] ouviu uma voz débil como de almas remotas que<br />
lhe perguntavam se os <strong>do</strong>us mil-réis... Os <strong>do</strong>us mil-réis,<br />
dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele,<br />
que, em primeiro lugar, também tinha alma... (ASSIS,<br />
1988, p. 26).<br />
No capítulo LXXV, “Provérbio erra<strong>do</strong>”, o narra<strong>do</strong>r, aludin<strong>do</strong><br />
a esse acontecimento, cita uma retificação feita por Aires a um<br />
conheci<strong>do</strong> adágio: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”,<br />
dan<strong>do</strong> um sopro de vida ao dita<strong>do</strong>: “A ocasião faz o ladrão”,<br />
palavras essas já tão desgastadas pelo uso.<br />
DE FIGURANTE A COADJUVANTE<br />
Esqueci<strong>do</strong> ao longo da narrativa, o irmão das almas ressurge<br />
à cena vinte anos depois desse episódio. É outro homem<br />
na aparência e ostenta uma riqueza que teve início nos <strong>do</strong>is<br />
mil-réis toma<strong>do</strong>s de empréstimo às almas. Deixou de ser um<br />
insignificante figurante, passan<strong>do</strong> a ser um coadjuvante com<br />
aspiração ao papel principal. O acesso ao mun<strong>do</strong> material<br />
trouxe-lhe a reboque o registro civil: Nóbrega, como o<br />
narra<strong>do</strong>r passa a nomeá-lo.<br />
ENFIM ATOR PRINCIPAL<br />
No teatro <strong>do</strong> círculo restrito <strong>do</strong>s eleitos, Nóbrega é a própria<br />
representação de uma pequena-burguesia. Deserda<strong>do</strong> de<br />
qualquer educação formal, imita caricatamente a burguesia<br />
local, a qual, por sua vez, busca o seu modelo nas praças da<br />
Europa. Cópia da cópia, protagoniza uma cena grotesca, que<br />
é descrita e comentada pelo personagem Aires no capítulo<br />
LXXIV: “Casos há – escrevia o nosso Aires – em que a<br />
impassibilidade <strong>do</strong> cocheiro na boléia contrasta com a agitação<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong>no no interior da carruagem, fazen<strong>do</strong> crer que é o patrão<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 41
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
que, por desfastio, trepou à boléia e leva o cocheiro a passear.”<br />
(ASSIS, 1988, p. 161)”<br />
O que se depreende da situação apresentada é a carnavalização<br />
(como a entendeu M. Bakhtin) das relações e <strong>do</strong>s valores<br />
estabeleci<strong>do</strong>s no regime monárquico. A inversão de valores e<br />
comportamento é própria de um mun<strong>do</strong> em crise. Naquele<br />
momento de transição da sociedade brasileira “a vida é<br />
desviada das sua ordem ‘habitual’, em certo senti<strong>do</strong> uma ‘vida<br />
às avessas’, um ‘mun<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong>’ (“monde à l’envers”)”.<br />
(BAKHTIN, 1981, p. 105).<br />
O RITUAL E O ESPETÁCULO<br />
No esquema de Macha<strong>do</strong> de Assis, em que duas ordens de<br />
valores se rivalizam em pé de igualdade, <strong>Santo</strong>s é o duplo de<br />
Nóbrega, numa outra escala social. Diferente deste, <strong>Santo</strong>s<br />
não é atormenta<strong>do</strong> por qualquer tipo de conflito ético. É ao<br />
mesmo tempo ator e diretor das cenas de fausto que costuma<br />
promover em público. Como pontos em comum, têm a origem<br />
humilde, sem tradição, e a ascensão através da especulação<br />
com o capital alheio.<br />
<strong>Santo</strong>s é um representante da classe burguesa de origem rural<br />
que enriqueceu com o jogo especulativo na bolsa de valores.<br />
Como não faz parte das oligarquias que giram em torno <strong>do</strong><br />
poder monárquico, se vê obriga<strong>do</strong> a fazer nomeada, repetin<strong>do</strong><br />
com pompa os espetáculos públicos habituais à aristocracia.<br />
É no quinto capítulo <strong>do</strong> romance, com a apresentação desse<br />
personagem, que Macha<strong>do</strong> de Assis delimita a ordem de<br />
valores que rege aquela sociedade. A missa <strong>do</strong> coupé parece<br />
sem propósito para Natividade, que, apesar de <strong>do</strong>minar o jogo<br />
da sedução, não compreende a importância da máscara no jogo<br />
social. Contu<strong>do</strong>, para <strong>Santo</strong>s, aquele espetáculo tem a função<br />
de marcar, como um ritual de passagem, a sua entrada numa<br />
outra posição social e se desligar <strong>do</strong> seu passa<strong>do</strong> na província<br />
de Maricá.<br />
42 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Para o espetáculo da missa, <strong>Santo</strong>s toma to<strong>do</strong>s os cuida<strong>do</strong>s<br />
necessários, a começar pela escolha da igreja que, nas palavras<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, “não era vistosa, nem buscada, mas velhota,<br />
sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo”.<br />
O anúncio da missa estava de acor<strong>do</strong> com os propósitos<br />
de <strong>Santo</strong>s, sem nome de quem mandara rezar, sem hora e<br />
convite, e o defunto, que era um mero detalhe em toda essa<br />
formalidade, tivera o nome reduzi<strong>do</strong> para João de Melo, e não<br />
João de Melo Barros.<br />
Na memória de Natividade as palavras misteriosas da cabocla<br />
vinham se juntar a esse ato quase indecifrável <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />
Longe <strong>do</strong>s seus pares, na periferia, <strong>Santo</strong>s repete, em meio<br />
àquela gente pobre, o cortejo imperial. A exemplo <strong>do</strong> que<br />
ocorria nas aparições públicas <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, a simples presença<br />
de <strong>Santo</strong>s e Natividade é suficiente para atrair atenção curiosa<br />
daquela platéia anônima. Esvazia<strong>do</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> ritual <strong>do</strong> poder<br />
monárquico, o ato se transforma em espetáculo. A missa em si,<br />
objeto da visita <strong>do</strong> casal à igreja, bem como o motivo da missa<br />
(o falecimento de um parente) são secundários. “A missa foi<br />
ouvida sem pêsames nem lágrimas.” E a importância da alma<br />
celebrada é mensurada pelos distintivos de riqueza material:<br />
o carro de luxo, a nota de dez mil-réis entregue como paga<br />
ao sacristão, apresenta<strong>do</strong>s pelo parente ilustre, patrocina<strong>do</strong>r<br />
da missa. Observe-se que a quantia ofertada ao sacristão é a<br />
mesma que Natividade pagou à cabocla, estabelecen<strong>do</strong> assim<br />
uma equivalência pelo valor de troca de atos simbolicamente<br />
distintos.<br />
O RITO DE INICIAÇÃO<br />
Macha<strong>do</strong> faz, em Esaú e Jacó, um retrospecto de quase vinte<br />
anos antes da proclamação da República. E nos mostra<br />
que sob o regime monárquico a nova classe dirigente vai se<br />
forman<strong>do</strong> e buscan<strong>do</strong> se parecer nos hábitos e costumes com<br />
aristocracia. “A condição para introduzir-se junto à aristocracia<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 43
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
era aristocratizar-se, isto é, elevar o ‘modus vivendi’ da família<br />
pela a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong>s costumes e <strong>do</strong>s valores europeus, exigência<br />
indispensável para se obter um título nobiliárquico.” (MURICY,<br />
1985, p. 53)<br />
Num trecho <strong>do</strong> capítulo sétimo, Macha<strong>do</strong> mostra esse<br />
aspecto de submissão de um comportamento mais expansivo<br />
e espontâneo, denotativo de uma classe social, a um outro<br />
comportamento mais sisu<strong>do</strong> e formal, preocupa<strong>do</strong> com a<br />
etiqueta das “almas bem nascidas” (ver a epígrafe <strong>do</strong> livro).<br />
No referi<strong>do</strong> capítulo, a passagem que se segue é exemplar<br />
<strong>do</strong> fenômeno aponta<strong>do</strong> acima: “Sem reparar no vexame da<br />
mulher, <strong>Santo</strong>s deu um abraço à cunhada, e ia dar-lhe um<br />
beijo também, se ela não recusasse [...]. <strong>Santo</strong>s conservara<br />
alguns gestos e mo<strong>do</strong>s de dizer <strong>do</strong>s primeiros anos, tais que o<br />
leitor não chamará propriamente familiares [...]. <strong>Santo</strong>s, meio<br />
arrependi<strong>do</strong> da expansão, fez-se sério [...].” (ASSIS, 1988, p.<br />
33)<br />
<strong>Santo</strong>s tem consciência deste rito de passagem, portanto faz da<br />
sua vida e da vida da família um espetáculo público, pois precisa<br />
<strong>do</strong> reconhecimento daqueles <strong>do</strong>s quais ele pretende ser par,<br />
poden<strong>do</strong> assim participar <strong>do</strong> círculo <strong>do</strong>s eleitos e conseguir um<br />
título de nobre. O que só virá a acontecer dez anos passa<strong>do</strong>s<br />
após “a missa <strong>do</strong> coupé”. “Natividade não sabia que fizesse;<br />
dava a mão aos filhos, ao mari<strong>do</strong>, e tornava ao jornal para ler e<br />
reler que no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José<br />
<strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s fora agracia<strong>do</strong> com o título de Barão de <strong>Santo</strong>s.”<br />
(ASSIS, 1988, p. 59/60).<br />
Esse acontecimento demonstra de forma cabal como o mun<strong>do</strong><br />
aristocrático, articula<strong>do</strong> por uma concepção essencialista, vai<br />
dan<strong>do</strong> lugar a um mun<strong>do</strong> articula<strong>do</strong> pela aparência. Se para<br />
<strong>Santo</strong>s a aquisição <strong>do</strong> título de barão é um indício de ascensão<br />
social, para a ordem aristocrática é um testamento da falência<br />
<strong>do</strong> regime de valores que sustentava a monarquia.<br />
44 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
O EL-DORADO, BRASIL<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
As fortunas de <strong>Santo</strong>s tanto quanto a de Nóbrega têm a<br />
mesma origem, a especulação e o roubo. Fato aponta<strong>do</strong> nos<br />
capítulos: III, quan<strong>do</strong> Nóbrega furta os <strong>do</strong>is mil-réis oferta<strong>do</strong>s<br />
às almas por Natividade; IV, quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r nos esclarece<br />
que <strong>Santo</strong>s, provinciano de Maricá, também era pobre e<br />
que enriqueceu por ocasião da “febre das ações” em 1855,<br />
ganhan<strong>do</strong> muito e fazen<strong>do</strong> a ruína de outros.<br />
Macha<strong>do</strong> era um grande conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s artifícios<br />
inescrupulosos <strong>do</strong> tempo de encilhamento e, como<br />
funcionário <strong>do</strong> governo republicano de Marechal Floriano<br />
Peixoto, se manifestou em 30 de maio de 1892, através da<br />
via administrativa, com uma ação acautela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> interesse<br />
público, pedin<strong>do</strong> a anulação da patente de uma “invenção” de<br />
um aventureiro americano chama<strong>do</strong> George Boynton.<br />
Sob o de “Relatório de Invenção” o postulante dissimulava<br />
uma vasta especulação por sorteio. Descoberta por Macha<strong>do</strong><br />
de Assis na sua leitura minuciosa <strong>do</strong> Diário Oficial, <strong>do</strong> dia<br />
30 de maio de 1892, este se manifestou prontamente no<br />
mesmo dia, fundamentan<strong>do</strong> seu pedi<strong>do</strong> para que a concessão<br />
da patente fosse anulada o mais breve possível. A patente,<br />
que fora concedida em 18 de fevereiro de 1892, depois de<br />
várias interpelações de Macha<strong>do</strong> de Assis, com despachos<br />
desfavoráveis, teve sua revogação oficializada em 08 de<br />
novembro de 1892. (MAGALHÃES JUNIOR, 1981, vol. O3,<br />
p. 200-211).<br />
Esse episódio, bem como muitos outros, inspirara o capítulo<br />
LXXII, “Um El-Dora<strong>do</strong>”, no qual Macha<strong>do</strong> volta à carga<br />
contra a especulação que tomou conta <strong>do</strong> Império nas suas<br />
últimas décadas e da República no seu início. No trecho a<br />
seguir pode-se ter uma idéia aproximada <strong>do</strong> escândalo que foi<br />
esse episódio na vida da incipiente nação brasileira: “Certo,<br />
não lhe esqueceste o nome, encilhamento [...]. Quem não<br />
viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de<br />
concessões rolavam to<strong>do</strong>s os dias, sonoras e vistosas para se<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 45
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares<br />
de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de<br />
réis.” (ASSIS, 1988, p. 159)<br />
Toda a situação narra<strong>do</strong> no capítulo, em que <strong>Santo</strong>s explica<br />
a Batista o seu novo empreendimento, é semelhante à <strong>do</strong><br />
aventureiro norte-americano que buscava a fortuna fácil, na<br />
terra que, no imaginário daquela época, se configurava como o<br />
lugar idílico, cheio de riquezas à disposição daqueles que aqui<br />
quisessem se aventurar.<br />
Sobre aquele perío<strong>do</strong> histórico de franca especulação, que teve<br />
início no ano de 1851 (quan<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> tinha apenas 12 anos),<br />
dirá Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes <strong>do</strong> Brasil: “A ânsia<br />
de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades<br />
de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das<br />
características notáveis desse perío<strong>do</strong> de ‘prosperidade’.”<br />
(HOLANDA, 1995, p. 77)<br />
Esaú e Jacó, romance <strong>do</strong>s mais complexos de Macha<strong>do</strong>, é<br />
também uma síntese <strong>do</strong> contexto histórico e da ambivalência das<br />
instituições brasileiras nos cinqüenta anos que compreendem<br />
as décadas finais da Monarquia e a primeira década <strong>do</strong> governo<br />
republicano no Brasil. É nesse ambiente de debilidade<br />
institucional, entre o final de um regime e o início de outro,<br />
que o “capitalismo predatório”, como o qualificou José Murilo<br />
de Carvalho, no seu livro Os bestializa<strong>do</strong>s, vai encontrar campo<br />
fértil na burguesia brasileira ascendente, sem a tradição política<br />
da aristocracia: “[...] se deu a vitória <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong> capitalismo<br />
desacompanhada da ética protestante.” (CARVALHO, 1987,<br />
p. 26).<br />
Pode-se dizer que o personagem <strong>Santo</strong>s e o retrato modelar<br />
dessa nova classe social que, na falta <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r, elege<br />
como heróis os grandes especula<strong>do</strong>res da bolsa, como afirma<br />
ainda José Murilo de Carvalho, que em outro trecho revela<br />
uma perversão da política econômica daquela época, que<br />
nos acompanha até os dias de hoje, sen<strong>do</strong> já um traço da<br />
cultura brasileira: “A confiança na sorte, no enriquecimento<br />
46 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
sem esforço em contrapartida ao ganho da vida pelo trabalho<br />
honesto parece ter si<strong>do</strong> incentiva<strong>do</strong> pelo surgimento <strong>do</strong> novo<br />
regime.” (Idem, p. 28)<br />
Essas análises demonstram que Macha<strong>do</strong> de Assis estava<br />
atento às questões da formação <strong>do</strong> imaginário da sociedade<br />
brasileira em sua época. Soube apontar com fina ironia as<br />
contradições da classe dirigente que chegou ao poder com<br />
a República. Pode-se afirmar que Esaú e Jacó traz em suas<br />
páginas, como pudemos ver, os tipos que se estabeleceram com<br />
o “encilhamento” e a extensão <strong>do</strong> liberalismo econômico aos<br />
costumes e valores da burguesia capitalista que se fartou com<br />
a política econômica da época. A ascensão da família <strong>Santo</strong>s,<br />
retrato fiel de uma burguesia brasileira, caricata e ignorante,<br />
demonstra o grotesco <strong>do</strong> processo de aristocratização de um<br />
grupo social que vislumbrou na mudança político-social, que<br />
então ocorria, uma oportunidade de fazer parte <strong>do</strong> reduzi<strong>do</strong><br />
grupo que governava o país.<br />
Não se deve esquecer que Macha<strong>do</strong> publicou Esaú e Jacó em<br />
junho de 1904, quase quinze anos após a proclamação da<br />
República, ten<strong>do</strong>, portanto, presencia<strong>do</strong> a gênese de to<strong>do</strong> o<br />
processo que culminou com a mudança de regime. Leitor<br />
atento de tu<strong>do</strong> que ocorria à sua volta, Macha<strong>do</strong> legou-nos,<br />
não apenas uma análise da alma humana (como sempre se<br />
afirma), mas um trata<strong>do</strong> de história e sociologia, no qual até<br />
hoje se pode debruçar para melhor entender como se constitui<br />
o imaginário, que orienta a vida da classe dirigente no Brasil.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Liv. Garnier,<br />
1988.<br />
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio<br />
de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.<br />
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializa<strong>do</strong>s: o Rio de Janeiro<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 47
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1987.<br />
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes <strong>do</strong> Brasil. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1995.<br />
MAGALHÃES JUNIOR, Raimun<strong>do</strong>. Vida e obra de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília,<br />
INL, 1981.<br />
MURICY, Kátia. A razão cética: Macha<strong>do</strong> de Assis e as questões<br />
<strong>do</strong> seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.<br />
48 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 20/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 20/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O CORTE E A CORTE DO MACHADO<br />
Sérgio da Fonseca Amaral<br />
Ufes<br />
Resumo: Apresentarei algumas das recepções de Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis realizadas ao longo de 100 anos, cria<strong>do</strong>ras e constituintes<br />
de uma obra permanente ante públicos diversos, movidas<br />
por interpretações de uma escrita provoca<strong>do</strong>ra de diferentes<br />
tomadas de posição crítica e ideológica frente à sociedade<br />
brasileira.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. História. Recepção.<br />
Abstract: Je présenterai une partie des réceptions critiques de<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis, effectuées pendant 100 ans, créatrices et<br />
constitutives d’une ouvre permanente devant pubblics divers,<br />
mis en mouviment grâce à les interprétations d’une écriture qui<br />
provoque différents positionnements critiques et idéologiques<br />
face à la societé brésilienne.<br />
Mots-clés: Macha<strong>do</strong> de Assis. Histoire. Réception.<br />
Comemorar 100 anos <strong>do</strong> desaparecimento de um escritor<br />
significa, antes de mais nada, que o autor não morreu. Contu<strong>do</strong>,<br />
neste ano de 2008, estamos volta<strong>do</strong>s para o centenário da<br />
morte de Macha<strong>do</strong> de Assis. Pensei, inicialmente, em fazer<br />
um trabalho comentan<strong>do</strong> o teatro machadiano. Mas, len<strong>do</strong><br />
as peças, resolvi aban<strong>do</strong>nar o projeto: primeiro, são trabalhos<br />
menores e a importância maior <strong>do</strong> autor reside em outras<br />
produções; segun<strong>do</strong>, diante da escolha de se fazer uma análise<br />
fechada <strong>do</strong>s textos ou de uma leitura comparativa com o<br />
teatro da época, renunciei às duas propostas, pois creio que<br />
o autor sairia perden<strong>do</strong>. Dessa forma, não cumpriria o papel<br />
espera<strong>do</strong> para este evento. Por outro la<strong>do</strong>, falar apenas da<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 49
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
biografia de Macha<strong>do</strong> de Assis, ou, por assim dizer, o que foi<br />
o homem, pouco acrescentaria aos costumeiros levantamentos<br />
retroativos para se tentar compreender a obra através da<br />
pessoa. Ora, homenagear um escritor requer falar <strong>do</strong> autor,<br />
por conseguinte, a marca Macha<strong>do</strong> de Assis representa mais<br />
<strong>do</strong> que a vida de um indivíduo, mas a de uma escrita. Dessa<br />
forma, ao retomar a biografia de um escritor pretende-se<br />
recuperar, e discutir, leituras constituintes da esfinge Macha<strong>do</strong>,<br />
provocadas, e evocadas, ao longo <strong>do</strong> tempo, consolidan<strong>do</strong>,<br />
mas também, por vezes, colocan<strong>do</strong> sob suspeita suas criações<br />
literárias, como veremos a seguir.<br />
Macha<strong>do</strong> notabilizou-se como ficcionista, além de ter si<strong>do</strong><br />
poeta, dramaturgo, cronista, crítico, epistológrafo e... letrista de<br />
música – portanto um polígrafo. Aqui, interessa o ficcionista,<br />
cujo largo espectro nos faz entender melhor o aspecto<br />
provocante de uma obra exposta às controvérsias críticas.<br />
Quan<strong>do</strong> falamos em Macha<strong>do</strong>, pensamos imediatamente<br />
na sua obra ficcional. Cada momento da recepção assinala<br />
um Macha<strong>do</strong> e um leitor, uma maneira de ler e uma maneira<br />
de ser Macha<strong>do</strong>. Talvez a dificuldade maior em entender<br />
qualquer autor esteja nesse ponto: ao procurar precisar uma<br />
leitura, pode-se ficar refém da exigência de lê-lo como ele<br />
pretensamente haveria escrito. Contu<strong>do</strong>, há maneiras difusas<br />
que se entrechocam em relação a qualquer escritor, pois as<br />
leituras são conflitantes exatamente porque não há leitores<br />
em abstrato, mas representativos de interesses particulares.<br />
Haverá tantos Macha<strong>do</strong>s quantas representações sociais de<br />
leitores existirem. Ou de interesses sociais motiva<strong>do</strong>s para<br />
haver uma determinada interpretação. Assim sen<strong>do</strong>, destaquei<br />
algumas leituras críticas sobre Macha<strong>do</strong> de Assis realizadas no<br />
aludi<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de 100 anos, que dirão bastante <strong>do</strong> porquê de<br />
estarmos aqui hoje, ouvin<strong>do</strong> e falan<strong>do</strong> sobre um escritor cuja<br />
reflexão ficcional parece conter e revelar o enigma de um país,<br />
constituin<strong>do</strong>-se, assim, ele próprio um enigma. Tais leituras por<br />
vezes foram contundentes, tanto para elogiá-lo, quanto para<br />
atacá-lo. Em síntese, é um escritor emblemático produzi<strong>do</strong><br />
50 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
pela cultura brasileira, além de representar uma contradição<br />
viva da sociedade que o gerou. Comemorar a sua morte revela<br />
o autor estar bem vivo e passar bem.<br />
As épocas lêem de acor<strong>do</strong> com seus juízos e seus esquemas de<br />
valores e circunscrevem uma dada maneira de viver teórica e<br />
praticamente. Logo, é lícito imaginar a recepção de um escritor<br />
como condicionada a tais variáveis temporais. Uma dada<br />
comunidade, num certo tempo e espaço, recebe, interpreta,<br />
avalia, julga, aceita ou repudia uma obra sob determina<strong>do</strong>s<br />
paradigmas de crenças. Os tão decanta<strong>do</strong>s valores imortais de<br />
uma obra ou autor dependem menos <strong>do</strong> texto <strong>do</strong> que de seus<br />
intérpretes. Um crítico, por princípio, deve ser um leitor mais<br />
aparelha<strong>do</strong>. A seu mo<strong>do</strong>, e aí reside a marca própria, traduz um<br />
juízo de um tempo sobre um escritor em questão. Legitima<strong>do</strong><br />
para cumprir um papel no contexto social de pensamento,<br />
portanto, desencadea<strong>do</strong>r de uma leitura que, necessariamente,<br />
exige <strong>do</strong> li<strong>do</strong> um direcionamento teórico e prático, tal<br />
abordagem, por isso mesmo, estará apta a representar um<br />
conjunto de idéias; não só as <strong>do</strong> crítico, mas também de uma<br />
parcela representativa da comunidade de leitores. Sintetiza as<br />
vozes e inquietações de um da<strong>do</strong> momento. Quanto a isso José<br />
Veríssimo já nos chamava a atenção, no início <strong>do</strong> século XX,<br />
na introdução de seu livro História da literatura brasileira, de<br />
1912:<br />
Parece um critério, não infalível mas seguro, de<br />
escolha, a mesma escolha feita pela opinião mais<br />
esclarecida <strong>do</strong>s contemporâneos, confirmada pelo<br />
juízo da posteridade. Raríssimo é que esta seleção,<br />
mesmo no Brasil, onde é lícito ter por menos alumiada<br />
a opinião pública, não seja ao cabo justa, e só os que<br />
lhe resistem são dignos da história literária. Não<br />
pode esta, a pretexto de opiniões pessoais de quem<br />
a escreve, desatender à seleção natural que o senso<br />
comum opera nas literaturas.<br />
Como se vê, o crítico reconhecia haver no seu trabalho uma<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 51
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
pregnância de seus contemporâneos. As leituras e interpretações<br />
sucedem-se e, por vezes, chocam-se, contradizem-se, ou, por<br />
outra, uma ponta se laça a outra em grandes saltos de tempo<br />
que se reencontrariam. Contu<strong>do</strong>, cada momento histórico e<br />
cada comunidade fazem uma leitura singular <strong>do</strong>s textos a lhes<br />
ser propícios receber. Dessa forma, enfeixan<strong>do</strong> algumas das<br />
leituras feitas sobre Macha<strong>do</strong>, pretende-se traçar e entender um<br />
percurso e uma imagem de um autor como uma singularidade<br />
constantemente criada, repensada, revalidada e legitimada<br />
socialmente.<br />
Partirei de um perfil público de Macha<strong>do</strong>, já famoso no final<br />
século XIX, <strong>do</strong> qual Silvio Romero (1851-1914), já destoante,<br />
nos dá notícias e sobre o qual procura analisar sob uma<br />
outra medida, num livro intitula<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> de Assis: estu<strong>do</strong><br />
comparativo de literatura brasileira, publica<strong>do</strong> em 1897. Com<br />
variantes, atenuantes e inversões, o pensamento crítico de Silvio<br />
Romero permanece até os dias de hoje. Primeiro, pretendia ele<br />
aparar as arestas <strong>do</strong> exagero <strong>do</strong>s elogios; segun<strong>do</strong>, tratava-se<br />
de avaliar a obra <strong>do</strong> ficcionista em relação ao universo social e<br />
político brasileiro; e, terceiro, dentro de uma lógica de combate,<br />
cobrar uma tomada de posição sobre as questões nacionais. Se,<br />
antes da morte de Joaquim Maria Macha<strong>do</strong> de Assis, a exigência,<br />
no calor da hora, era no senti<strong>do</strong> de atacar o ficcionista naquilo<br />
que representava, ideologicamente, a manutenção <strong>do</strong> atraso<br />
brasileiro ante a premência da modernização e <strong>do</strong> pensamento<br />
científico, futuramente, como topo <strong>do</strong> cânone, em nome de<br />
uma arte pensada como puro pensamento critica-se o autor<br />
por atenuar as desigualdades sociais dentro da representação<br />
ficcional, num crítico como Flávio Koethe, por exemplo, que<br />
veremos mais adiante. Mas, retornan<strong>do</strong>, é interessante observar<br />
a forma irritada, impaciente, impie<strong>do</strong>sa, mesmo, como Sílvio<br />
Romero aborda Macha<strong>do</strong> de Assis. No entanto, para o crítico<br />
elucidar aquilo que ele considera o verdadeiro escritor tem de<br />
atravessar a fama <strong>do</strong> autor já firmada pelo consenso da opinião<br />
pública e da crítica. Para isso, paga o tributo necessário,<br />
destacan<strong>do</strong>, inicialmente, as qualidades <strong>do</strong> autor e <strong>do</strong> seu<br />
52 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
talento. Aos poucos, porém, no desenrolar <strong>do</strong> ensaio, chega<br />
ao ponto de interseção cujo vértice é o contraponto entre um<br />
estu<strong>do</strong> sério, o seu, e as considerações elogiosas fáceis, para<br />
inglês ver. Não entran<strong>do</strong> no mérito da questão, essa é a senha<br />
para Silvio Romero demarcar a escrita de Macha<strong>do</strong> de Assis,<br />
compará-lo com escritores da Escola de Recife, de onde ele<br />
próprio era originário, e analisá-lo sob a ótica de uma crítica<br />
que se queria científica (evolucionista), procuran<strong>do</strong> situar na<br />
justa medida o homem, a obra e a sociedade. Tal entendimento<br />
era um esforço concentra<strong>do</strong> de, ao mesmo tempo, escapar<br />
da tradição retórica brasileira e de compreender racional e<br />
modernamente o papel, a contribuição, o valor e o poder de<br />
persuasão da obra <strong>do</strong> escritor Macha<strong>do</strong> de Assis na sociedade<br />
brasileira. Não estava em questão apenas uma apreciação<br />
estética, beletrista, de um autor. O exame de Macha<strong>do</strong> feito<br />
por Sílvio Romero passa pelo tripé: biografia, obra e meio<br />
social. Segun<strong>do</strong> a análise proposta, esse modelo interpretativo<br />
explicaria e colocaria o autor no devi<strong>do</strong> patamar <strong>do</strong> panteão<br />
<strong>do</strong>s escritores.<br />
Assim sen<strong>do</strong>, podemos destacar algumas categorias escolhidas<br />
pelo analista para compreender o ponto de vista de uma crítica<br />
fundada em “sóbrias observações solidamente racionais”<br />
e que hoje percebemos facilmente o quão frágil são os seus<br />
fundamentos. Na avaliação <strong>do</strong> crítico, pouca coisa fica de pé,<br />
pois a ficção <strong>do</strong> autor é medida, comparada, corrigida, reescrita<br />
segun<strong>do</strong> a necessidade de significar algo compromissa<strong>do</strong> de<br />
antemão. Portanto, existem modelos e conceitos a priori sobre<br />
o que a ficção deve obedecer. A escolha <strong>do</strong> crítico, para julgar<br />
a ficção <strong>do</strong> autor, recai em quatro tópicos: estilo, humor,<br />
pessimismo, tipo.<br />
Com os quatro elementos destaca<strong>do</strong>s acima, o crítico procura<br />
desancar o autor fluminense. Estabelece uma simetria entre a<br />
escrita <strong>do</strong> autor com a fala acometida de gagueira, como se<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 53
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
uma fosse reversível na outra 4 . No famoso humor machadiano,<br />
o crítico não vê graça nenhuma. Quanto ao pessimismo, seria<br />
esse de fancaria, copia<strong>do</strong> de ingleses e alemães com veleidades<br />
de profundidade. Sílvio Romero, no entanto, destaca Macha<strong>do</strong><br />
no que ele teria de cria<strong>do</strong>r de tipos e lamenta o autor não ter se<br />
dedica<strong>do</strong> mais a tal característica por impregnar os personagens<br />
de uma cor tipicamente local. Logo, vê o escritor como um<br />
legítimo narra<strong>do</strong>r em que o nacional (ou local) se afigura como<br />
um traço forte 5 , em detrimento <strong>do</strong> universalismo pontua<strong>do</strong><br />
por José Veríssimo (mais tarde aceito). Não na recorrência ao<br />
típico ou ao exótico, mas na captura <strong>do</strong> característico, porém<br />
abstrato, da gente brasileira. No sal<strong>do</strong>, Sílvio Romero coloca<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis abaixo da opinião geral, pois, para ele, o<br />
escritor andava em desacor<strong>do</strong> com, pelo menos, duas ordens: o<br />
projeto artístico era de menor monta <strong>do</strong> que se dizia, e as idéias<br />
<strong>do</strong> autor poderiam ser mais influentes na sociedade brasileira<br />
desde que permanecesse como pintor da alma nacional e não<br />
se metesse a copiar características alheias, como as filosofadas<br />
humorísticas e pessimísticas. Observe-se ainda o crítico não<br />
separar as já famosas duas fases <strong>do</strong> escritor como se fosse uma<br />
gritante ruptura, mas como uma continuidade natural de uma<br />
na outra.<br />
Como se vê, a crítica romeriana tinha um tom normativo<br />
ao vincular o trabalho <strong>do</strong> escritor ao papel da literatura na<br />
sociedade. Mesmo assim, ou apesar disso, a análise de Sílvio<br />
Romero, como to<strong>do</strong>s os críticos da época, ainda permanecia,<br />
4 “O estilo de Macha<strong>do</strong> de Assis, sem ter grande originalidade, sem<br />
ser nota<strong>do</strong> por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata de seu espírito,<br />
de sua ín<strong>do</strong>le psicológica indecisa. [...] Sente-se que o autor não dispõe profusamente,<br />
espontaneamente <strong>do</strong> vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa<br />
e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra.<br />
Sente-se o esforço, a luta. ‘Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como<br />
fazem outros na palavra falada’, disse-me uma vez não sei que desabusa<strong>do</strong><br />
num momento de expansão, sem reparar talvez que dava-me destarte uma<br />
verdadeira e admirável notação crítica.” Sílvio Romero. Macha<strong>do</strong> de Assis, p.<br />
122.<br />
5 Ver páginas 64, 65 e 66. Op. cit.<br />
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a despeito de se proclamar científica, desconhecen<strong>do</strong> a relação<br />
texto/contexto, mesclan<strong>do</strong> autor, obra e mun<strong>do</strong> social sob<br />
um mesmo padrão de interpretação. Ou, de outra maneira,<br />
associava-se, e ainda hoje se repete o mesmo preceito,<br />
imediatamente as disposições <strong>do</strong> escritor às linhas <strong>do</strong> texto.<br />
Em seguida, passo, de forma breve, ao crítico e historia<strong>do</strong>r<br />
da literatura José Veríssimo (1857-1916). Embora falan<strong>do</strong> de<br />
Macha<strong>do</strong> numa clave diferente, e até inversa à de Sílvio Romero,<br />
há pontos de contato entre esses <strong>do</strong>is analistas <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século<br />
XIX e início <strong>do</strong> XX. Enquanto Sílvio Romero desqualifica<br />
Macha<strong>do</strong>, José Veríssimo o aponta como o ápice da criação<br />
literária no Brasil. Romero, submeten<strong>do</strong> o escritor à rigidez<br />
<strong>do</strong> ponto de vista de que arte, meio social e, sobretu<strong>do</strong>, raça<br />
andam pari passu e são os fatores determinantes para explicar<br />
uma produção estética, entra em confronto com Veríssimo<br />
que julga um escritor a partir <strong>do</strong> olhar estilístico e beletrista.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, os torneios das frases e to<strong>do</strong> o arcabouço<br />
lingüístico gramatical figuram como importantes recursos<br />
para fazer da obra de Macha<strong>do</strong> uma grande obra de arte da<br />
literatura brasileira. Ou seja, o aspecto vernacular sobressai-se<br />
sobre o literário. Logo, Veríssimo encontra uma outra forma<br />
de explicar a arte literária para julgar positivamente Macha<strong>do</strong>.<br />
Passa também pelos critérios destaca<strong>do</strong>s por Romero, como<br />
estilo, humor, pessimismo, tipo. Porém, ao contrário daquele,<br />
esses se lhes afiguram como sobejamente realiza<strong>do</strong>s pelo<br />
nosso autor, como podemos deduzir <strong>do</strong> seguinte louvor:<br />
“Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto<br />
como ele, estranho a toda espécie de cabotinagem, de vaidade,<br />
de exibicionismo.” (História da literatura brasileira, p. 393).<br />
Dois representantes da crítica naturalista, apesar de partirem de<br />
vizinhas fontes teóricas e conceituais, terminam por desfechar<br />
considerações analíticas diferentes sobre Macha<strong>do</strong>. Crítica<br />
nascente, pretenden<strong>do</strong> assentar-se em bases científicas, traçou<br />
um perfil de Macha<strong>do</strong> de Assis que será revisto e revisa<strong>do</strong><br />
posteriormente. Contu<strong>do</strong>, ao final alavanca e propaga o nome<br />
<strong>do</strong> escritor para ser solicita<strong>do</strong> mais a frente pelos novos críticos<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 55
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
a vir.<br />
Um nome importante da crítica da primeira metade <strong>do</strong> século<br />
XX é o de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959). (Lúcia, também<br />
biógrafa e romancista, morre em 1959 num acidente de avião).<br />
Após a fase que podemos dizer inicial da crítica brasileira,<br />
Lúcia retoma Macha<strong>do</strong> sob outros parâmetros. De formação<br />
católica, ela entra em confronto com as críticas chamadas<br />
sociológicas e vai buscar no aspecto biográfico e psicológico as<br />
bases para se calçar e entender Macha<strong>do</strong> de Assis, o homem e<br />
a obra. Isso é feito num livro monumental intitula<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong><br />
de Assis, em 1936. Aí, pretende projetar um quadro psicológico<br />
por intermédio de da<strong>do</strong>s biográficos para interpretar a obra.<br />
Ou, quiçá, o contrário: a partir da obra falar <strong>do</strong> homem. Tal<br />
empreitada merece da autora um emaranhar-se em todas<br />
as fases da vida <strong>do</strong> escritor desde a infância até à velhice.<br />
Quan<strong>do</strong> há falta de <strong>do</strong>cumentos, o próprio texto ficcional de<br />
Macha<strong>do</strong> serve de base para se traçar o perfil; quan<strong>do</strong> há o<br />
testemunho <strong>do</strong>cumental este serve de apoio para se interpretar<br />
o texto ficcional. Como se pode ver, tal crítica, se não fun<strong>do</strong>u,<br />
pois já vem de antes, ganha na autora um sistema acaba<strong>do</strong><br />
de relacionar imediatamente psicologia, traço biográfico e<br />
ficção 6 . Que faz fortuna até os dias de hoje. Semelhante crítica<br />
também plantava um pé no discurso científico, dessa vez não<br />
mais no determinismo, positivismo ou evolucionismo <strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong> naturalista, mas na psicologia. Nesse senti<strong>do</strong>, Lúcia<br />
Miguel Pereira, juntamente com Augusto Meyer (1902-1970),<br />
proporcionará uma ruptura com a crítica anterior, libertan<strong>do</strong><br />
Macha<strong>do</strong> da concepção oficial da leitura voltada apenas para<br />
as articulações entre homem e meio. No caso de Meyer, há,<br />
além disso, uma clareza em relação à importância <strong>do</strong> leitor para<br />
a sobrevivência de um autor, pois como ele próprio afirma<br />
impossível imaginá-lo senão em andamento no tempo, avultan<strong>do</strong><br />
6 “Pelo que conhecemos da sua vida, Dom Casmurro – a sua única<br />
história de amor – deve ser aquela em que Macha<strong>do</strong> nada pôs de autobiográfico.<br />
Mas será mesmo? Essa única exceção numa obra tão grande, e quase<br />
sempre tirada de dentro <strong>do</strong> autor, será possível? Além dele, só Ressurreição<br />
não parece encerrar nenhuma confissão.” Macha<strong>do</strong> de Assis, p. 238.<br />
56 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ou decrescen<strong>do</strong> de importância, quase esqueci<strong>do</strong> às vezes, para<br />
ressurgir mais tarde, transfigura<strong>do</strong> à imagem de outras gerações.<br />
Essa nota dá o tom para a guinada da crítica que estava se<br />
operan<strong>do</strong>.<br />
Contu<strong>do</strong>, devemos não nos esquecer que as leituras de uma<br />
época se fazem em confrontos diretos, encontros e desencontros<br />
umas com as outras. Além disso, uma época posterior termina<br />
por se defrontar com as anteriores, corrigin<strong>do</strong>, revisan<strong>do</strong>,<br />
acrescentan<strong>do</strong> e suprimin<strong>do</strong>.<br />
Por isso, para melhor mapear algumas das principais leituras<br />
estabelecidas sobre Macha<strong>do</strong> nesses 100 anos, recorremos ao<br />
artigo “Esquema de Macha<strong>do</strong> de Assis”, de Antonio Candi<strong>do</strong>,<br />
publica<strong>do</strong> em Vários escritos em 1970. Segun<strong>do</strong> o crítico, podese<br />
rastrear um certo esquema de leitura da obra de Macha<strong>do</strong>.<br />
Além daquelas acima destacadas, ou seja, a ironia e o estilo<br />
como linguagem refinada; o pessimismo expresso por uma<br />
“filosofia” ácida, mas acessível a to<strong>do</strong>s; o da<strong>do</strong> biográfico da<br />
discrição, da reserva e da urbanidade, Antonio Candi<strong>do</strong> rastreia<br />
os seguintes assuntos levanta<strong>do</strong>s a partir da obra de Macha<strong>do</strong>:<br />
1 – o problema da identidade (quem sou eu? O que sou eu?<br />
Em que medida existo por meio <strong>do</strong>s outros? Haverá mais<br />
de um em mim?). Aí reside a questão <strong>do</strong> des<strong>do</strong>bramento da<br />
personalidade (“O espelho”) ou da loucura (“O alienista”);<br />
2 – a relação entre fato real e fato imagina<strong>do</strong>, em que o ciúme<br />
é o impulso central. Como exemplo, a leitura de D. Casmurro;<br />
3 – qual o senti<strong>do</strong> de um ato pratica<strong>do</strong>? Tema trata<strong>do</strong> em Esaú<br />
e Jacó;<br />
4 – a temática da perfeição, a aspiração ao ato completo. Um<br />
exemplo seria o conto “Um homem célebre”;<br />
5 – há diferença entre o bem e o mal, o certo e o erra<strong>do</strong>, o justo<br />
e o injusto? Ver Memórias póstumas de Brás Cubas;<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 57
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
6 – a transformação <strong>do</strong> homem em objeto <strong>do</strong> homem, ou<br />
seja a exploração econômica, social e espiritual. Tema caro ao<br />
próprio Antonio Candi<strong>do</strong> e tem na filosofia <strong>do</strong> Humanitismo<br />
o melhor exemplo.<br />
Como se percebe, há um andamento das leituras sobre<br />
Macha<strong>do</strong>. Claro está que tal esquema não significa um processo<br />
evolutivo em linha reta das interpretações feitas, mas ajuda a<br />
esclarecer como um escritor vai sen<strong>do</strong> “cria<strong>do</strong>” ao longo de<br />
um tempo, das épocas e das comunidades de leitores.<br />
Vin<strong>do</strong> um pouco mais para frente, podemos destacar três<br />
situações de leituras sobre Macha<strong>do</strong>. Uma tem como suporte<br />
meto<strong>do</strong>lógico a teoria <strong>do</strong> efeito estético. O maior representante<br />
no Brasil é Luiz Costa Lima. Uma outra filiada à tradição<br />
marxista, e a Antonio Candi<strong>do</strong>, pode ser chamada de crítica<br />
dialética, aqui representada por Roberto Schwarz. A terceira,<br />
também filiada à tradição marxista, pode ser apelidada, na<br />
falta de um termo melhor, de crítica radical ou de esquerdista,<br />
destaquei Flávio Koethe como o seu expoente.<br />
É interessante notar que as três críticas têm como mote<br />
a articulação entre mun<strong>do</strong> social e ficção, a diferença será<br />
acentuada pelo méto<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>. No primeiro caso, Costa<br />
Lima, embora não tenha dedica<strong>do</strong> nenhum livro específico ao<br />
autor, por outra escreveu alguns ensaios, analisan<strong>do</strong> algumas<br />
de suas produções ficcionais, inclusive o conto “O alienista”,<br />
a ser li<strong>do</strong> aqui hoje. Não deixa de avaliar um caminho<br />
antes percorri<strong>do</strong> pela crítico brasileira para balizar a sua<br />
interpretação. Costa Lima procura afastar de si duas vertentes<br />
opostas: a análise imanente e a transcendente <strong>do</strong> texto literário.<br />
Seus ataques mais contundentes vão contra o sociologismo, de<br />
marxistas ou não marxistas. Desse mo<strong>do</strong>, o conceito-chave de<br />
sua obra é o de mímesis, cuja reinterpretação vem perseguin<strong>do</strong><br />
ao longo da vida, na qual procura dessubstancializá-la. Isso<br />
significa dizer que, ao se deparar com um objeto de arte, o<br />
sujeito tanto encontra, quanto põe experiência estética. Nesse<br />
caso, nem o mun<strong>do</strong> é apenas representa<strong>do</strong>, negan<strong>do</strong> as análises<br />
58 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
sociológicas, ou a obra basta a si mesma como estilo, ou<br />
artefato lingüístico, rebaten<strong>do</strong> as considerações imanentistas.<br />
No livro Dispersa demanda, de 1981, há um capítulo dedica<strong>do</strong> a<br />
Macha<strong>do</strong> intitula<strong>do</strong> “Sob a face <strong>do</strong> bruxo” que dá um pequeno<br />
exemplo de tal prática de leitura. Usan<strong>do</strong> o conceito de alegoria,<br />
toma<strong>do</strong> de empréstimo a Benjamin, para estudar os romances<br />
<strong>do</strong> autor, demarca claramente a historicidade da obra de arte<br />
e, conseqüentemente, de Macha<strong>do</strong>. Ou, como afirma o crítico,<br />
[...] à medida que a consciência da historicidade da<br />
interpretação <strong>do</strong>s objetos literários constitui uma<br />
das bases da maioria das teorias contemporâneas<br />
da literatura, os escritores ‘alegóricos’ se tornam<br />
favoreci<strong>do</strong>s. O interesse que hoje Macha<strong>do</strong> desperta<br />
não é pois uma prova da perenidade da arte, mas<br />
apenas que sua poética [...] tornou-se para nós<br />
privilegiada. (p. 77).<br />
Portanto, a posição de Costa Lima toma como princípio<br />
nortea<strong>do</strong>r de leitura da obra de Macha<strong>do</strong> o seu lugar no<br />
tempo histórico, porém não como representação social, ou<br />
traços biográficos ou psicológicos, nem o estilo, nem apenas<br />
o aspecto intrínseco da obra, ou a forma, mas na articulação<br />
entre o fictício e a realidade histórica determinada.<br />
Com Roberto Schwarz, a crítica marxista dialética ganha um<br />
ponto alto na análise <strong>do</strong> texto literário e machadiano. Schwarz,<br />
em conformidade com o seu mestre Antonio Candi<strong>do</strong>, procura<br />
estabelecer o nexo preciso entre ficção e realidade, forma e<br />
conteú<strong>do</strong>, texto e contexto. Nessa dialética, num diálogo<br />
permanente, traça o perfil <strong>do</strong> autor e da sociedade de onde emana<br />
a obra. É o caso de citar os livros Ao vence<strong>do</strong>r as batatas (1977)<br />
e Um mestre na periferia <strong>do</strong> capitalismo (1990), cujas análises,<br />
respectivamente, <strong>do</strong>s primeiros romances machadianos e de<br />
Memórias póstumas demonstram tal articulação.<br />
Entretanto, para o interesse desta apresentação, é forçoso<br />
destacar que os <strong>do</strong>is críticos menciona<strong>do</strong>s partem tanto<br />
das teorias reconhecidas contemporaneamente, quanto de<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 59
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
uma tradição crítica existente no país para alçar novos vôos<br />
nas leituras de Macha<strong>do</strong>. Independente das diferenças e<br />
embates que uma tenha entra<strong>do</strong> com a outra, os <strong>do</strong>is críticos<br />
reconhecem um lugar maior de Macha<strong>do</strong>, e nisso seguem a<br />
corrente da tradição, no cânone da literatura nacional.<br />
O último a ser lista<strong>do</strong> aqui, Flávio Kothe, procura destoar<br />
daqueles que ele considera os críticos canonizantes. No seu<br />
livro, O cânone imperial (2000), precedi<strong>do</strong> por O cânone colonial,<br />
passa em revista os escritores da historiografia literária para<br />
atacar toda a construção da literatura nacional. A alegação é de<br />
que o critério utiliza<strong>do</strong> para isso foi a conveniência ideológica.<br />
Os escritores consagra<strong>do</strong>s, já por si uma marca ideológica,<br />
transformaram-se em tabus de par com as suas presenças nas<br />
antologias escolares. Por isso ele aponta para a desconstrução<br />
<strong>do</strong> cânone e da crítica. Seu critério de reavaliação pretende<br />
defender a literatura como arte. Vejamos se assim se procede.<br />
No livro há três capítulos dedica<strong>do</strong>s a Macha<strong>do</strong>. No primeiro,<br />
“Macha<strong>do</strong> e o negro”, as formulações sobre o autor baseiamse<br />
na clave biográfica, psicológica e sociológica da velha crítica.<br />
Numa torção histórica vislumbramos a sombra de Sílvio<br />
Romero. É interessante observar, lembran<strong>do</strong>-nos de Marx, de<br />
como a história retorna. Além, das mencionadas claves, há erros<br />
de informação, e uma deliberada anacronia nas “análises” <strong>do</strong>s<br />
textos machadianos. Como exemplo, tomemos o comentário<br />
<strong>do</strong> crítico sobre o capítulo XCII de Dom Casmurro durante<br />
uma conversa de Bento com Escobar sobre a fazenda da<br />
família de Bentinho:<br />
Aí se evidencia a riqueza de Bentinho, a sua posição<br />
de classe. E ele é também o narra<strong>do</strong>r. Sob a aparência<br />
de mostrar a cordial simpatia de Escobar, o narra<strong>do</strong>r<br />
quer demonstrar a intrínseca falsidade dele; sob a<br />
aparência de dar a palavra ao escravo, faz com que<br />
a sua fala mostre o seu espírito subalterno. Dá-se a<br />
fala para melhor calá-lo. É manifesto o conformismo<br />
<strong>do</strong> escravo com a sua humilde situação: quem assim<br />
“aceita” ser escravo, como que merece a escravidão.<br />
60 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Ele “é” porque “merece”, porque “quer”, porque<br />
nem pensa em outra situação: ele não é assim porque<br />
isso lhe foi imposto. Seria ingênuo esperar <strong>do</strong> preto que<br />
ele pudesse ser melhor <strong>do</strong> que o senhor branco que<br />
o explorava. Macha<strong>do</strong> procura provar que o senhor<br />
branco é melhor, sem ver em um o espelho <strong>do</strong> outro,<br />
o retrato avesso. [...] Dom Casmurro é, de mo<strong>do</strong> típico,<br />
escrito da perspectiva de um senhor de escravos<br />
e herdeiro da oligarquia latifundiária: não há um<br />
estranhamento quanto a isso. [...] O narra<strong>do</strong>r provém<br />
de uma família de latifundiários e <strong>do</strong>nos de escravos:<br />
automaticamente é o <strong>do</strong>no da palavra. [...] Ele é o<br />
senhor <strong>do</strong> dinheiro, <strong>do</strong>s destinos, <strong>do</strong> discurso. [...] Aí<br />
se mostra de mo<strong>do</strong> representativo o gesto semântico<br />
<strong>do</strong> cânone brasileiro, a sua coesa perspectiva senhorial.<br />
(Pp. 472-3. Grifos meus).<br />
Não me alongarei mais nas citações e considerações <strong>do</strong> crítico.<br />
Basta dizer que as seqüências de análise obedecem ao mesmo<br />
paradigma. Como se pode depreender, a crítica é radical. Mas,<br />
há um problema nela: estreitar demais as relações entre ficção e<br />
mun<strong>do</strong> social. Não basta dizer as palavras mágicas – narra<strong>do</strong>r,<br />
gesto semântico etc. – para que a análise faça a mediação<br />
necessária entre uma instância e outra. Koethe só leva em<br />
consideração as informações historiográficas sobre a situação<br />
social brasileira <strong>do</strong> séc. XIX, não se preocupa em interrogar<br />
mais de perto a trama ficcional. Tu<strong>do</strong> para justificar a defesa<br />
de uma tese. Nesse senti<strong>do</strong>, encontra-se com Sílvio Romero:<br />
para ajustar a teoria precedente ao objeto a análise perde seu<br />
rigor e direção e torna-se um julgamento a posteriori de quem<br />
se quer condenar. Ou seja, a ideologia <strong>do</strong> crítico se hipertrofia<br />
em relação ao objeto ficcional. Contu<strong>do</strong>, para encurtar,<br />
poderíamos fustigar o crítico e perguntar de onde pôde ele<br />
alimentar os ataques frontais. Pois, mesmo contra si mesmo,<br />
o texto machadiano oferece elementos para que se deitassem<br />
palavras sobre o escravo, percebesse a situação de classe <strong>do</strong><br />
narra<strong>do</strong>r e a situação desproporcional em tal relação de poder.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 61
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Finalizan<strong>do</strong>, estão aí, em linhas bem gerais, algumas das<br />
recepções de Macha<strong>do</strong> e de sua imagem paulatinamente<br />
construída ao longo desses 100 anos, o que prova o autor não<br />
estar morto.<br />
Espero ter deixa<strong>do</strong> claro como um autor situa-se além<br />
dele mesmo, em conjunto, primeiro com a rede social que<br />
estabelece a importância de um escritor, pois ao se privilegiar<br />
um em detrimento de outro entra em questão uma série de<br />
componentes, interesses históricos e valores sociais; segun<strong>do</strong>,<br />
de como a marca de um escritor Macha<strong>do</strong> de Assis, por exemplo,<br />
solicita um certo panorama de recepção por ser socialmente<br />
construída, fundan<strong>do</strong> expectativas de leituras dentro de um<br />
quadro ficcionalmente determina<strong>do</strong>.<br />
62 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 27/07/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 29/08/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
A GALERIA MACHADIANA<br />
Ricar<strong>do</strong> Ramos Costa<br />
Uerj<br />
A obra de arte é uma mensagem fundamentalmente<br />
ambígua, uma pluralidade de significa<strong>do</strong>s que<br />
convivem num só significante. Essa condição<br />
constitui característica de toda obra de arte.<br />
(Umberto Eco)<br />
Resumo: A proposta deste estu<strong>do</strong> é analisar a presença das<br />
Belas-artes na prosa machadiana. Para isso, buscamos investigar<br />
como as citações, as descrições, a fruição estética e outros<br />
contatos com obras artísticas são apresenta<strong>do</strong>s na obra <strong>do</strong><br />
escritor e compõem um espaço das artes visuais na literatura.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. Estética. História da Arte.<br />
Abstract: The purpose of this study is to analyse the presence<br />
of the Fine Arts in Machadian prose. In order to <strong>do</strong> so, we<br />
try to investigate how quotations, descriptions, the aesthetic<br />
use and other contacts with artistic works are presented in the<br />
writer’s work and make room for the visual arts in literature.<br />
Key words: Macha<strong>do</strong> de Assis. Aesthetic. History of Art.<br />
A vasta fortuna crítica que a obra de Macha<strong>do</strong> de Assis criou<br />
e tem motiva<strong>do</strong> durante as últimas décadas indicam, dentre<br />
várias faces desta imensa obra, a importância da biblioteca<br />
<strong>do</strong> escritor na formação de suas peças (romances, contos,<br />
poemas). O livro A Biblioteca de Macha<strong>do</strong> de Assis, organiza<strong>do</strong><br />
por José Luiz Jobim em parceria com outros pesquisa<strong>do</strong>res<br />
brasileiros e estrangeiros, explora através de vários ensaios a<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 63
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
biblioteca pessoal <strong>do</strong> escritor, buscan<strong>do</strong> encontrar as relações<br />
da mesma com as obras literárias de Macha<strong>do</strong>, através das<br />
citações diretas ou indiretas a autores que se encontram nesse<br />
rico mosaico de referências.<br />
De mo<strong>do</strong> análogo, propomos neste trabalho uma pequena<br />
exposição das referências artísticas (principalmente de vertente<br />
pictórica) na obra <strong>do</strong> autor em causa, pois consideramos que<br />
o seu “museu imaginário” é tão importante quanto a sua<br />
biblioteca. Para isto selecionamos alguns trechos de romances e<br />
contos <strong>do</strong> autor onde podemos constatar referências, citações,<br />
descrições de obras de arte e momentos de fruição estética.<br />
A galeria machadiana é composta quase que exclusivamente<br />
por obras acadêmicas, ou seja, por obras que fazem parte de<br />
alguma corrente estilística, que foram produzidas por artistas<br />
forma<strong>do</strong>s dentro de uma tradição artística (proeminentemente<br />
de vertente européia) e que possuem um conjunto de preceitos<br />
técnico-formais e ideológicos, e que foram aceitas como<br />
produtos artísticos genuínos dentro <strong>do</strong> contexto histórico em<br />
que foram criadas.<br />
No livro Quincas Borba temos a seguinte menção à presença<br />
de obras pictóricas e escultóricas na residência de Rubião:<br />
O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia<br />
a principal figura a secretária, e sobre ela os <strong>do</strong>us bustos<br />
de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este<br />
último, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura<br />
ou litografia representan<strong>do</strong> a “Batalha de Solferino”, e<br />
um retrato da imperatriz Eugênia. (ASSIS, 1971, p. 766)<br />
E o próprio barbeiro francês, Lucien, comenta sobre as<br />
esculturas: “Ah! O impera<strong>do</strong>r! Bonito busto, em verdade. Obra<br />
fina. O senhor comprou isso aqui ou man<strong>do</strong>u vir de Paris? São<br />
magníficos. [...]” (ASSIS, 1971, p. 766). Rubião tem especial<br />
interesse pela imagem de Napoleão, nesta passagem de<br />
Quincas Borba pede ao barbeiro que dê ao seu rosto as formas<br />
da “pêra” e <strong>do</strong>s bigodes <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r francês.<br />
64 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
(Batalha de Solferino, Autor desconheci<strong>do</strong>, 1859-1860) 7<br />
O quadro Batalha de Solferino representa o combate que opôs<br />
os exércitos alia<strong>do</strong>s da Sardenha e da França ao exército da<br />
Áustria-Hungria, durante a segunda guerra da independência<br />
italiana; o exército francês saiu vitorioso deste combate,<br />
lidera<strong>do</strong> por Napoleão. A outra gravura de que trata a citação,<br />
a imperatriz Eugênia, foi esposa de Napoleão III com quem<br />
se casou em 1853. Esta pintura insere-se nas características <strong>do</strong><br />
Romantismo, principalmente pela forte dramaticidade em que<br />
representa esta cena histórica.<br />
Numa outra obra, o conto “Uma excursão milagrosa”, temos<br />
a seguinte descrição <strong>do</strong> personagem Tito:<br />
Possuin<strong>do</strong> um semblante angélico, uns olhos meigos<br />
e profun<strong>do</strong>s, o nariz descendente legítimo e direto <strong>do</strong><br />
de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o<br />
verdadeiro trono <strong>do</strong> pensamento, Tito pode servir de<br />
modelo à pintura e de objeto ama<strong>do</strong> aos corações de<br />
quinze e mesmo de vinte anos. (ASSIS, 1971, p. 760:<br />
destaques nossos)<br />
7 Disponível em: . Acesso em: 05 nov.<br />
2008.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 65
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Neste trecho a figura de Tito é comparada a de Alcibíades,<br />
rapaz de rara beleza e de família da elite ateniense que viveu<br />
entre os anos 450 e 404 a.C. Foi discípulo de Sócrates; <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><br />
de brilhantes qualidades, cometeu inúmeros desvios por<br />
causa de sua personalidade extravagante. Representações de<br />
temática da história e da mitologia grega fazem parte <strong>do</strong> estilo<br />
Neoclássico na pintura, como podemos observar na seguinte<br />
obra de Jean-Léon Gérôme:<br />
(Sócrates ao encontro de Alcibiades na casa de Aspásia, Jean-<br />
Léon Gérôme, 1861) 8<br />
Esta pintura faz parte de uma seleção de obras conhecidas nos<br />
meios intelectuais e pela aristocracia brasileira <strong>do</strong> século XIX.<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis explora este repertório visual na descrição<br />
de seus personagens. Acreditamos que os leitores de seu<br />
tempo, em sua maior parte, conheciam as várias referências<br />
apresentadas (inclusive as de obras de arte), como podemos<br />
notar ainda no livro Ressurreição, onde o personagem Luis<br />
Batista descreve um capricho de sua amante e a semelhança<br />
desta com outra gravura:<br />
8 Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
66 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Pela conversa adiante falou-me duas ou três vezes numa<br />
gravura que vira na Rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r, e que o <strong>do</strong>no<br />
vendera quan<strong>do</strong> ela lá voltou, disposta a comprá-la. O<br />
assunto era o mais orto<strong>do</strong>xo possível: a Israelita Betsabé<br />
no banho e o rei Davi a espreitá-la <strong>do</strong> seu eira<strong>do</strong>. [...]<br />
A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso,<br />
um merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que<br />
a figura de Betsabé era a cópia exata das suas feições.<br />
(ASSIS, 1971, p. 182: destaques nossos)<br />
(Betsabé com a carta <strong>do</strong> rei David, 1654, Rembrandt<br />
Harmenszoon van Rijn) 9<br />
A pintura que selecionamos para ilustrar essa passagem é a célebre<br />
“Betsabé com a carta <strong>do</strong> rei David” de Rembrandt. Notamos<br />
9 Disponível em: .<br />
Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 67
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
que Macha<strong>do</strong> de Assis usa a expressão “gravura” reiteradas vezes<br />
para se referir na verdade à reproduções de trabalhos de pintura.<br />
Na sociedade aristocrática brasileira <strong>do</strong> século XIX, assim como<br />
a descrita pelo escritor em várias obras, era comum a compra<br />
de cópias de quadros de pintores famosos, em sua maioria<br />
provenientes da Europa, como sugere ainda o personagem Luis<br />
Batista em Ressurreição: “[...] eu deveria aproveitar o paquete que<br />
partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. [...]” (ASSIS, 1971,<br />
p. 183). Estas reproduções eram chamadas de “gravuras”, embora<br />
devemos lembrar que a gravura é uma técnica artística distinta<br />
(com as variantes litogravura, xilogravura e gravura em metal), com<br />
procedimentos e resulta<strong>do</strong>s diferentes da pintura.<br />
(Luís XVI da França, [s.d.], A. F. Callet) 10<br />
10 Disponível em:
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Em Esaú e Jacó temos mais uma referência à “gravura” no<br />
constante embate entre os irmãos Pedro e Paulo: “Logo depois,<br />
Pedro viu pendura<strong>do</strong> um retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o<br />
por oitocentos réis; era uma simples gravura atada ao mostra<strong>do</strong>r<br />
por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas<br />
opiniões, e descobriu um Robespierre” (ASSIS, 1971, p. 978).<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis explora estas referências pictóricas para sugerir<br />
o perfil de personalidade de seus personagens. Há certa relação de<br />
espelhamento entre o perfil sugeri<strong>do</strong> <strong>do</strong>s personagens com as pinturas<br />
apresentadas, ou pelo menos os personagens buscam certa identificação<br />
com as figuras retratadas. Rubião com Napoleão, Pedro com Luís XVI<br />
e Paulo com Robespierre. Podemos notar que as figuras das pinturas<br />
são sempre personalidades importantes da história, admiradas por seus<br />
grandes feitos: Impera<strong>do</strong>res, Reis e Revolucionários.<br />
(Robespierre, Anônimo, 1790) 11<br />
XVI_av_Frankrike_portr%C3%A4tterad_av_AF_Callet.jpg>. Acesso em: 05 nov.<br />
2008.<br />
11 Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 69
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
É particularmente curiosa a alusão a Luís XVI e Maximilien<br />
Robespierre (referentes a Pedro e Paulo respectivamente), pois<br />
se tratam de <strong>do</strong>is rivais na história da França. Robespierre (1758-<br />
1794) foi um <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s líderes da Revolução Francesa,<br />
e Luís XVI (1754-1793) foi deposto e decapita<strong>do</strong> pela Revolução<br />
Francesa. Esta evidência acentua a relação conflituosa entre os<br />
personagens irmãos (rei versus revolucionário – Pedro versus Paulo).<br />
No início <strong>do</strong> conto “As bodas de Luís Duarte” a decoração da casa<br />
com novas “gravuras” cria uma situação controversa entre José<br />
Lemos e a esposa:<br />
O respeitável <strong>do</strong>no da casa, trepa<strong>do</strong> num banco, tratava<br />
de pregar à parede duas gravuras compradas na véspera,<br />
em casa <strong>do</strong> Bernasconi; uma representava a “Morte de<br />
Sardanapalo”; outra, a “Execução de Maria Stuart”. Houve<br />
alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da<br />
primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um<br />
grupo de homens abraça<strong>do</strong> com tantas mulheres. Além<br />
disso, não lhe pareciam próprios <strong>do</strong>is quadros fúnebres<br />
em dia de festa. José Lemos, que tinha si<strong>do</strong> membro de<br />
uma sociedade literária, quan<strong>do</strong> era rapaz, respondeu<br />
triunfantemente que os <strong>do</strong>is quadros eram históricos. E que<br />
a história está bem em todas as famílias. (ASSIS, 1971, p.<br />
192)<br />
70 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Na página anterior (A Morte de Sardanapalo, 1827-28, Eugène<br />
Delacroix) 12<br />
(A execução de Maria, rainha da Escócia, 1867, Robert<br />
Herdman) 13<br />
Nesta passagem <strong>do</strong> conto, entram em cena duas importantes<br />
pinturas de fatos históricos. A primeira representa a história<br />
de Sardanapalo – suposto rei da Assíria de 836 a 617 a.C. –,<br />
que prestes a ser aprisiona<strong>do</strong> na Babilônia man<strong>do</strong>u fazer uma<br />
12<br />
Disponível em: .<br />
Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
13<br />
Disponível em: .<br />
Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
fogueira no pátio <strong>do</strong> palácio e nela se atirou, com todas as suas<br />
mulheres e tesouros. O quadro é de Eugène Delacroix, pinta<strong>do</strong><br />
em 1827 e hoje exposto no Museu <strong>do</strong> Louvre. Delacroix<br />
(1798-1863) é um importante pintor francês <strong>do</strong> romantismo;<br />
dentre suas obras mais conhecidas está “A liberdade guian<strong>do</strong> o<br />
povo”. A segunda pintura retrata a execução de Maria Stuart,<br />
rainha da Escócia (1548-1587). Maria Stuart pretendeu o trono<br />
inglês, mas foi presa por ordem de sua prima Elizabeth I<br />
(1533-1603), que, depois de mantê-la em cativeiro por 18 anos,<br />
man<strong>do</strong>u decapitá-la. Na época em que se passa o conto há<br />
várias representações deste fato, porém a que se tornou mais<br />
conhecida é a pintura de Robert Herdman “The Execution of<br />
Mary, Queen of Scots” pertencente à Glasgow Art Gallery.<br />
O conflito de opiniões entre José Lemos e D. Beatriz revela,<br />
também, os diferentes mo<strong>do</strong>s de fruição gera<strong>do</strong>s pelas obras<br />
de artes. D. Beatriz preocupa-se com o aspecto descritivo das<br />
obras em questão, suas aparências imediatas, sem compreender<br />
o contexto em que as obras surgiram e de que tratam. Já José<br />
Lemos tem maior conhecimento das obras colocadas à sala,<br />
porém a exposição <strong>do</strong>s quadros indica mais uma tentativa de<br />
afirmar uma condição social elevada (ou almejada), onde a<br />
apreciação artística é algo valoriza<strong>do</strong> como <strong>do</strong>te de cultura.<br />
Ainda no conto “As bodas de Luís Duarte” notamos que<br />
alguns personagens manifestam interesse pela arte de forma<br />
dissimulada, apenas para apresentarem-se como pessoas<br />
“finas” e de bom gosto, isto expressa estratégias que alguns<br />
personagens empregam para melhor aceitação ou ascensão a<br />
um grupo social aristocrático na obra. É o que podemos notar<br />
na passagem a seguir onde Calisto Valadares revela a sua falsa<br />
opinião sobre o quadro “A morte de Sardanapalo”:<br />
Soltou um grande suspiro e começou a contemplar as<br />
gravuras compradas na véspera.<br />
— Que magnífico é isso! exclamou ele diante <strong>do</strong><br />
72 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
“Sardanapalo”, quadro que achava detestável.<br />
— Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a<br />
primeira palavra que pronunciou desde que entrou na<br />
sala.<br />
— Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei<br />
se conhecem o assunto <strong>do</strong> quadro...<br />
— O assunto é “Sardanapalo”, disse afoitamente<br />
Rodrigo.<br />
— Bem sei, retrucou Calisto, estiman<strong>do</strong> que a conversa<br />
pegasse; mas pergunto se...<br />
Não pode acabar; soaram os primeiros compassos.<br />
(ASSIS, 1971, p. 197: destaques nossos)<br />
Em outro conto, “Habili<strong>do</strong>so”, Macha<strong>do</strong> de Assis apresenta a<br />
personagem D. Inácia <strong>do</strong>s Anjos como uma pessoa de pouco<br />
conhecimento sobre a arte:<br />
E seja dito isto em honra <strong>do</strong>s seus sentimentos filiais,<br />
porque a mãe, D. Inácia <strong>do</strong>s Anjos, tinha tão pouca<br />
lição de arte, que não lhe consentiu nunca pôr na sala<br />
uma gravura, cópia de Hamon, que ele comprara na<br />
Rua da Carioca, por pouco mais de três mil-réis. A cena<br />
representada era a de uma família grega, antiga, um rapaz<br />
que volta com um pássaro apanha<strong>do</strong>, e uma criança que<br />
esconde com a camisa a irmã mais velha, para dizer que<br />
ela não está em casa. O rapaz, ainda imberbe, traz nuas<br />
as suas belas pernas gregas.<br />
— Não quero aqui estas francesas sem vergonha! bra<strong>do</strong>u<br />
D. Inácia; e o filho não teve remédio senão encafuar a<br />
gravura no quartinho em que <strong>do</strong>rmia, [...]. (ASSIS, 1971,<br />
p. 1051-1052)<br />
Por ter poucas lições de arte, D. Inácia não aprovava a<br />
exposição <strong>do</strong> quadro em sua casa. O autor explora esta falta<br />
de afinidade da personagem com as artes como uma marca<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 73
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
distintiva de sua condição social inferior. Cria-se mais uma<br />
vez uma situação conflituosa – como metáfora das complexas<br />
relações sociais no Brasil –, entre mãe e o filho João Maria – o<br />
“habili<strong>do</strong>so”; pois este, embora estivesse na mesma condição<br />
social de D. Inácia, tinha na arte (crian<strong>do</strong> pinturas, ainda que<br />
de forma rudimentar) esperança de fama e consequentemente<br />
de mudança de vida, pois ele acreditava ter um gênio de artista.<br />
Pela descrição da pintura na citação anterior, trata-se muito<br />
provavelmente de uma reprodução da tela “Ma souer n’y est<br />
pas”, de 1853, comprada pela Imperatriz Eugênia, mulher de<br />
Napoleão III, para a coleção imperial, que rendeu ao grego<br />
Jean-Louis Hamon (1821-1874) um enorme sucesso popular.<br />
Hamon cria em suas pinturas composições graciosas e<br />
delicadas, exploran<strong>do</strong> principalmente representações de cenas<br />
infantis, características que podemos notar na pintura a seguir:<br />
74 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
(Aurora, 1864, Jean-Louis Hamon) 14<br />
14 Disponível em:
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
A presença das Belas-artes na obra machadiana revela um<br />
“gosto” artístico comprometi<strong>do</strong> com a aristocracia brasileira<br />
<strong>do</strong> século XIX e com os meios intelectuais liga<strong>do</strong>s a ela.<br />
Embora o escritor mulato seja celebra<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s mais<br />
importantes da literatura brasileira, as obras da maturidade <strong>do</strong><br />
autor, denominadas de “realismo machadiano”, não apresentam<br />
as manifestações artísticas ligadas às classes populares e aos<br />
negros. A arte é exaltada a partir de um cânon eurocêntrico –<br />
que na maioria das vezes reflete a estagnação das classes sociais<br />
brasileiras –, herança <strong>do</strong> colonialismo no Brasil. A apropriação<br />
da arte torna-se mormente atributo de distinção de classe.<br />
Mais uma vez em Quincas Borba, temos a referência a pintura<br />
na obra machadiana. Nesta citação podemos tomar as obras de<br />
arte como as últimas recordações de um passa<strong>do</strong> próspero <strong>do</strong><br />
Major Siqueira e sua filha, agora em situação precária:<br />
Certo, a casa dizia a pobreza da família, poucas cadeiras,<br />
uma mesa re<strong>do</strong>nda velha, um canapé gasto; nas paredes<br />
duas litografias encaixilhadas e em pinho pinta<strong>do</strong> de<br />
preto, uma era um retrato <strong>do</strong> major em 1857, a outra<br />
representava o “Veronês em Veneza”, compra<strong>do</strong> na Rua<br />
<strong>do</strong> Senhor <strong>do</strong>s Passos. (ASSIS, 1971, p. 757)<br />
O texto sugere que o “Veronês em Veneza” seja o título de um<br />
quadro, o que levaria a supor que se trata de um auto-retrato<br />
de Paolo Cagliari, conheci<strong>do</strong> como “Il Veronese” (1528-1588),<br />
importante pintor italiano <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> maneirista, que, nasci<strong>do</strong><br />
em Verona, estabeleceu-se em Veneza por volta de 1552; mas<br />
pode tratar-se também de um retrato de Veronese, pinta<strong>do</strong> por<br />
outro artista. Sua produção e vida artística desenvolveram-se<br />
em Veneza onde incorpora ao estilo aprendi<strong>do</strong> o Maneirismo,<br />
com suas complexas perspectivas, as posturas forçadas <strong>do</strong>s<br />
modelos, o ponto de vista particular e a marca individual <strong>do</strong><br />
artista, características que podemos notar em outra obra <strong>do</strong><br />
artista:<br />
arch/Search_Repeat.aspx?searchtype=IMAGES&artist=9000982>. Acesso<br />
em: 05 nov. 2008.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 75
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
(Alegoria sabe<strong>do</strong>ria e força, 1580, Paolo Veronese) 15<br />
As referências artísticas estendem-se a outras obras como os<br />
contos “Frei Simão”, “A mulher de preto”, “A chave”, “Um<br />
erradio”, “Miss Dollar”, “A linha reta e a linha curta”, e em<br />
livros como Memorial de Aires (com interessante referência à<br />
música de Schumanns), alusão à escultura ainda em Quincas<br />
Borba, e outros livros. Percorrer toda esta galeria machadiana<br />
requer uma pesquisa mais e detalhada da obra de Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis.<br />
Notamos pelo mo<strong>do</strong> que o autor explora estas referências<br />
15 Disponível em: .<br />
Acesso em: 05 nov. 2008.<br />
76 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
artísticas que elas eram conhecidas <strong>do</strong>s leitores de seu tempo<br />
(embora entendemos este grupo de leitores como uma parcela<br />
da sociedade). Macha<strong>do</strong> de Assis articula uma seleção de<br />
imagens em sintonia com seus contemporâneos. Hoje o nosso<br />
distanciamento histórico dificulta o estabelecimento destas<br />
relações, principalmente quan<strong>do</strong> desconhecemos os quadros<br />
referi<strong>do</strong>s em sua prosa. A proposta deste trabalho é sinalizar<br />
para a presença deste campo de referência dentro da obra <strong>do</strong><br />
autor, e em parte, diminuir esta distância entre literatura e arte<br />
no universo de Macha<strong>do</strong> de Assis, assim como sugere o conto<br />
“Linha reta e linha curva”:<br />
Viu a sombra de Dante nas ruas de Florença; viu as almas<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ges pairan<strong>do</strong> sau<strong>do</strong>sas sobre as águas viúvas <strong>do</strong><br />
mar Adriático; a terra de Rafael, de Virgílio e Miguel<br />
Ângelo foi para ele uma fonte de viva de recordações<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e de impressões para o futuro. (ASSIS, 1971,<br />
p. 128)<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,<br />
1971, v. 1.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar,<br />
1971, v. 2.<br />
JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Macha<strong>do</strong> de Assis. Rio<br />
de Janeiro: Topbooks, 2007.<br />
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Teoria da ficção:<br />
indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: Ed. UERJ,<br />
1999.<br />
UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER, Jane<br />
Gaston. História mundial da arte III: O Renascimento. Trad.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 77
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário Gonçalves. São Paulo:<br />
DIFEL, 1975.<br />
UPJOHN, Everard M.; WINGERT, Paul S.; MAHLER,<br />
Jane Gaston. História mundial da arte IV: <strong>do</strong> Barroco ao<br />
Romantismo. Trad. Maria Teresa Tendeiro e Rui Mário<br />
Gonçalves. São Paulo: DIFEL, 1975.<br />
SITE: http://pt.wikipedia.org<br />
78 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 17/07/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 19/08/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
LOUCURA E PAIXÃO EM<br />
MACHADO DE ASSIS<br />
Ruy Perini<br />
Ufes<br />
A loucura, muitas vezes, não é outra coisa <strong>do</strong><br />
que a razão apresentada de forma diferente.<br />
(Goethe)<br />
Resumo: O artigo traça um perfil da virada que Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis promove no estilo e no conteú<strong>do</strong> da sua obra a partir<br />
da publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e de “O<br />
alienista” no início da década de 1880. Aborda os temas da<br />
loucura e da paixão na obra ficcional, nas crônicas e no teatro<br />
<strong>do</strong> autor, mostran<strong>do</strong> como esta mudança na obra machadiana<br />
pode ser inserida numa linhagem de autores identifica<strong>do</strong>s com<br />
a chamada sátira menipéia.<br />
Palavras-chave: Macha<strong>do</strong> de Assis. Loucura. Paixão.<br />
Abstract: The article draws a profile of the turnover that<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis promotes in the style and content of his<br />
work from the publication of “Memórias Póstumas de Brás<br />
Cubas” and “O Alienista” in the early 1880s. It brings up the<br />
theme of madness and passion in the author’s work, including<br />
fiction, chronics and the theatrical work. It shows how this<br />
change in the Machadian work can be inserted in a line of<br />
author identified with the known “Menipeia” satire (from the<br />
philosopher Menipo de Gadara).<br />
Keywords: Macha<strong>do</strong> de Assis. Madness. Passion.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 79
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
LOUCURA E PAIXÃO<br />
Loucura e paixão, duas coisas perigosas; só que<br />
a loucura não mata, mas a paixão pode matar.<br />
(Clarinda Ferrari)<br />
O tema central da minha apresentação é o tema <strong>do</strong> meu livro<br />
“Não há remédio certo” – Loucura e paixão na obra de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis, que, por sua vez, é um desenvolvimento da minha<br />
dissertação de mestra<strong>do</strong> onde abordei o tema da loucura em<br />
Macha<strong>do</strong>. Como a paixão tem tu<strong>do</strong> a ver com a loucura –<br />
paixão e patologia têm a mesma etimologia – resolvi trazer<br />
esta característica tão presente nos personagens machadianos<br />
para o meu livro que pretende sair <strong>do</strong> âmbito acadêmico das<br />
dissertações, para atingir um público maior e mais diversifica<strong>do</strong>.<br />
O ponto de partida, obviamente, foi o conto “O alienista”, mas<br />
como são assuntos sempre recorrentes na obra de Macha<strong>do</strong>,<br />
estendi-me por outros contos, romances, crônicas e peças <strong>do</strong><br />
“bruxo”.<br />
A frase em epígrafe, dita espontaneamente e em tom de<br />
reflexão ao observar a capa <strong>do</strong> meu livro, é de uma senhora<br />
divertida, bem humorada e muito sábia, embora com pouca<br />
instrução formal. Macha<strong>do</strong>, provavelmente, babaria com a<br />
frase e ficaria encanta<strong>do</strong> com a autora.<br />
O estu<strong>do</strong> da obra de Macha<strong>do</strong> não deixa dúvida, embora<br />
haja algumas opiniões discordantes, sobre as duas fases bem<br />
distintas, quais sejam, antes e depois da publicação de Memórias<br />
póstumas de Brás Cubas, no início da década de 1880. Não por<br />
simples coincidência a publicação de “O alienista” é <strong>do</strong> mesmo<br />
perío<strong>do</strong>. Vários fatores costumam ser considera<strong>do</strong>s para a<br />
mudança de rumo na obra de Macha<strong>do</strong>, como o sério problema<br />
de saúde que quase o levou à cegueira, ou pelo menos o que<br />
era o seu temor na época. Não podemos deixar de aventar<br />
para esta ameaça a hipótese de uma cegueira simbólica, o que<br />
representaria uma tomada de consciência <strong>do</strong> autor quanto<br />
à necessidade de rever o seu estilo. O fato é que o que há a<br />
considerar mesmo é o desprendimento da forma acadêmica<br />
80 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
com que, até então, buscava a aceitação pública, dentro de uma<br />
estética romântica, embora com uma proposta realista. Na<br />
verdade, todas estas classificações em escolas sempre foram<br />
rejeitadas pelo autor. Macha<strong>do</strong> não comungava com a forma<br />
romântica de urdir os ambientes e personagens da sua ficção,<br />
mas também rejeitava com veemência o Real-naturalismo,<br />
que engessava a fantasia, crian<strong>do</strong> romances “científicos”,<br />
comprometi<strong>do</strong>s com a realidade, mas, por isso mesmo, pouco<br />
comprometi<strong>do</strong>s com a realidade psíquica. Numa crítica ao<br />
Primo Basílio, de Eça de Queiroz, foi contundente:<br />
Não peço, decerto, os estafa<strong>do</strong>s retratos <strong>do</strong> Romantismo<br />
decadente; pelo contrário, alguma coisa há no Realismo<br />
que pode ser colhi<strong>do</strong> em proveito da imaginação e da<br />
arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não<br />
é regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. [...]<br />
Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o<br />
Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.<br />
(Assis, 1994a:912)<br />
Esse desprendimento formal e estrutural é atribuí<strong>do</strong> por<br />
Enylton de Sá Rego em O calundu e a panacéia: Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica, principalmente<br />
à influência das leituras de Luciano de Samósata, de quem<br />
Macha<strong>do</strong> tinha a obra completa numa edição francesa de<br />
1874. Essa “tradição luciânica” teria origem em uma linhagem<br />
iniciada em Menipo de Gadara, passan<strong>do</strong> por Varrão, Sêneca,<br />
Luciano, Erasmo de Roterdam, Robert Burton e Laurence<br />
Sterne. Logicamente vários autores poderiam ser incluí<strong>do</strong>s<br />
nessa linhagem, consideran<strong>do</strong> a vasta galeria citada por<br />
Macha<strong>do</strong>. Para se ter uma idéia da modificação no estilo<br />
machadiano, basta lembrar que a forma tão elegantemente<br />
formal encontrada nos seus quatro primeiros romances dá<br />
lugar àquela chamada sátira menipéia em Memórias Póstumas<br />
de Brás Cubas e Quincas Borba. Os três últimos romances –<br />
Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires – aban<strong>do</strong>nam o<br />
tom explicitamente satírico, mas mantém a ironia sutil – e meio<br />
sardônica – que dá o tom da prosa machadiana a partir dessas<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 81
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
mudanças, longe <strong>do</strong> formalismo <strong>do</strong>s primeiros romances,<br />
antes de 1880.<br />
Dante Alighieri, autor muito cita<strong>do</strong> por Macha<strong>do</strong>, inspirou-se<br />
na Descida de Menipo ao Inferno de Luciano para escrever a sua<br />
Comédia. Dante registrou a comédia para distinguir da tragédia<br />
que tem um “princípio ‘admirável e calmo’ e um desenlace<br />
‘féti<strong>do</strong> e cruel’, como corresponde à etimologia ‘canto <strong>do</strong><br />
bode’ e segun<strong>do</strong> se vê nas tragédias de Sêneca. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
a comédia principia ‘áspera’ e termina feliz -, veja-se Terêncio”<br />
(Curtius, 1996: 441).<br />
Menipo representa a maior influência na tradição satírica da<br />
literatura helênica, sen<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> por Capistrano de Abreu<br />
como o gato de Alice no país das maravilhas, que “desapareceu<br />
deixan<strong>do</strong> apenas um sorriso” (apud Rego, 1989:31). Para<br />
ilustrar melhor a influência dessa linhagem em Macha<strong>do</strong>, cito<br />
a seguinte passagem de Memórias póstumas: “[...] Suetônio deunos<br />
um Cláudio que era um simplório, – ou ‘uma abóbora’,<br />
como lhe chamou Sêneca, e um Tito que mereceu ser as delícias<br />
de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de<br />
demonstrar que <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is césares, o delicioso, o verdadeiro<br />
delicioso, foi o ‘abóbora’ de Sêneca” (Assis, 1994b: 516). A<br />
sátira de Sêneca a que se refere Macha<strong>do</strong> é marginal na obra <strong>do</strong><br />
escritor, composta em geral de textos mais “sérios”, e trata da<br />
deificação <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r Cláudio, decretada pelo Sena<strong>do</strong>, após<br />
a sua morte. O título – Apokolokyntosis – forma<strong>do</strong> de apotheosis<br />
(deificação) e kolokinte (abóbora) dá uma idéia da ironia <strong>do</strong><br />
autor ao tratar de leis estapafúrdias. Sêneca transforma Cláudio<br />
em abóbora, mas a deformação é tamanha que a sua suposta<br />
chegada ao céu causa enorme reboliço na tentativa de se<br />
identificar o que seria o novo “mora<strong>do</strong>r”. Hércules, chama<strong>do</strong><br />
a ajudar, espanta-se e pensa: “Não acabei: eis o meu décimo<br />
terceiro trabalho!” (Sêneca, 1988: 253).<br />
A técnica de observar o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> alto, com um olhar<br />
distancia<strong>do</strong> – kataskopos –, faz parte desta tradição grega<br />
luciânica, seguida por Macha<strong>do</strong>, geran<strong>do</strong> duas formas de se<br />
82 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
reagir conforme retoma<strong>do</strong> por Montaigne nos Ensaios:<br />
Demócrito e Heráclito foram <strong>do</strong>is filósofos, <strong>do</strong>s quais<br />
o primeiro, com uma face zombeteira e sorridente:<br />
Heráclito, ten<strong>do</strong> piedade e compaixão desta mesma<br />
condição nossa, levava sempre uma face continuamente<br />
entristecida, e os olhos mareja<strong>do</strong>s de lágrimas.<br />
Gosto mais <strong>do</strong> primeiro humor [...]. (apud Rego, 1989:<br />
127)<br />
UM ANTIPSIQUIATRA AVANT-LA LETTRE<br />
A primeira leitura de “O alienista” deixa clara a posição de<br />
crítica à medicina psiquiátrica da época. Como outros campos<br />
científicos, a medicina, embora ainda praticada de forma muito<br />
empírica, estava imbuída em achar os fundamentos científicos<br />
para a sua prática. No conto o Dr. Simão Bacamarte torna-se<br />
risível pelo rigor científico e não pela inépcia com que lida com<br />
a loucura. Os erros cometi<strong>do</strong>s ao diagnosticar e trancafiar toda<br />
a população no seu hospício estão na falta de maleabilidade<br />
em enxergar a relatividade da condição humana, dessa loucura<br />
como uma infinidade de esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser, como queriam os<br />
surrealistas.<br />
Porém, uma leitura mais atenta <strong>do</strong> conto mostra que a crítica<br />
é muito mais abrangente implican<strong>do</strong> toda a estrutura social<br />
que serve de cenário para a ficção machadiana. O positivismo<br />
inspira<strong>do</strong>r <strong>do</strong> golpe militar que instalou a república brasileira<br />
também primava pelo cientificismo. O lema “Ordem e<br />
Progresso” não admite o status que foge aos princípios<br />
<strong>do</strong>s meios de produção e boa conduta, deixan<strong>do</strong> assim na<br />
marginalidade os loucos e os que “sofrem” de alguma forma<br />
de paixão, por serem desviantes dessa ordem.<br />
A importância da linguagem no processo cultural pode ser<br />
detectada na literatura de Macha<strong>do</strong>. No conto “O anel de<br />
Polícrates”, que relata as peripécias <strong>do</strong> eufórico e verborrágico<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 83
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Xavier, podemos encontrar, sem nenhuma pretensão de<br />
teorização lingüística, um exemplo da função da linguagem,<br />
mostran<strong>do</strong> e encobrin<strong>do</strong> a realidade interna <strong>do</strong> sujeito. Numa<br />
sacada genial, digna da melhor literatura psicanalítica, mostra o<br />
valor terapêutico da palavra, “diagnostican<strong>do</strong>” e esclarecen<strong>do</strong><br />
a “terapêutica” para o caso: “Se não tivesse o verbo fluente,<br />
morreria de congestão mental; a palavra era um derivativo”<br />
(Assis, 1994c:330).<br />
O homem civil vive um mun<strong>do</strong> de representações, muito<br />
diferente <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> instintivo <strong>do</strong> homem natural, ou que espécie<br />
de hominídeo teria representa<strong>do</strong> o elo entre o esta<strong>do</strong> selvagem<br />
e o esta<strong>do</strong> civil. A impressão é que a espécie humana atual surge<br />
já neste esta<strong>do</strong> de civilidade, ou seja, o homem falante, o que<br />
tornou viável a sua sobrevivência, mas também o condenou à<br />
condição de presa de convenções e transgressões recíprocas.<br />
O artista tem a função de “antena da raça”, segun<strong>do</strong> a expressão<br />
de Ezra Pound, ou a função de não deixar o homem morrer<br />
da verdade, segun<strong>do</strong> Nietzsche. Macha<strong>do</strong> em crônica de 19 de<br />
novembro de 1893 disse: “Quan<strong>do</strong> a gente não pode imitar<br />
os grandes homens, imite ao menos as grandes ficções”. No<br />
capítulo LXXXVII de Memórias póstumas de Brás Cubas,<br />
denomina<strong>do</strong> “Geologia”, o protagonista compara a dignidade e<br />
a probidade humanas a uma camada de rocha, sob “as camadas<br />
de cima, terra solta e areia”. Cita um encontro com o amigo, Jacó<br />
Tavares, que era “a probidade em pessoa”, mas que para tentar<br />
evitar uma visita desagradável mente quatro vezes. Quan<strong>do</strong> Brás<br />
Cubas observa isso ao amigo, este “desculpou-se dizen<strong>do</strong> que<br />
a veracidade absoluta era incompatível com um esta<strong>do</strong> social<br />
adianta<strong>do</strong>, e que a paz das cidades só se podia obter à custa<br />
de embaçadelas recíprocas [...]” (Assis, 1994b: 595-6). O que<br />
quero demonstrar é que estes e outros conceitos valoriza<strong>do</strong>s<br />
pela antipsiquiatria – movimento surgi<strong>do</strong> na Europa em fins da<br />
década de 1960 e logo a seguir no Brasil – estão presentes em<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis quase um século antes. Macha<strong>do</strong> subverte<br />
a certeza das ciências humanas que costumam ser cegas aos<br />
fatores não perceptíveis à visão objetiva cartesiana. Isso<br />
84 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
mostra como a literatura antecipa formulações teóricas de<br />
várias disciplinas, entre elas a psiquiatria.<br />
A LOUCURA NO TEATRO DE MACHADO DE ASSIS<br />
A passagem de Macha<strong>do</strong> de Assis pelo teatro deu-se de<br />
múltiplas formas. Como especta<strong>do</strong>r, crítico e estudioso de<br />
textos teatrais, trouxe muita influência para os seus escritos.<br />
Como censor teve o seu envolvimento mais polêmico com o<br />
teatro. Chegou a criticar a atuação <strong>do</strong> Conservatório Dramático<br />
Brasileiro por este condenar textos ofensivos ao governo e<br />
apenas aconselhar o autor que pecasse “contra a castidade<br />
da língua e aquela parte relativa à ortoepia”. Depois chegou<br />
a exercer a função de censor no Conservatório, por defender<br />
uma seleção de textos fundamentada no “mérito puramente<br />
literário, no pensamento cria<strong>do</strong>r, na construção cênica, no<br />
desenho <strong>do</strong>s caracteres, na disposição das figuras, no jogo da<br />
língua” (Pontes, 1968:7).<br />
Como autor de peças teatrais não emplacou uma produção<br />
significativa, pois os seus textos eram muito eruditos para o<br />
gosto <strong>do</strong> público que freqüentava o teatro. A linguagem teatral,<br />
mesmo para um público mais culto, exige uma comunicação<br />
mais rápida, em linguagem mais coloquial para ter uma boa<br />
aceitação, o que não se dava com os textos de Macha<strong>do</strong>. Pelo<br />
menos essa é a visão <strong>do</strong> crítico e amigo <strong>do</strong> autor, Quintino<br />
Bocaiúva.<br />
Com referência ao nosso tema, quero citar a peça “Não<br />
consulte médico”. O título é basea<strong>do</strong> num suposto provérbio<br />
grego: “Não consultes médico, consulte alguém que tenha<br />
esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente”. O que chama a atenção na peça estudada é<br />
a abordagem pretensamente técnica, colocan<strong>do</strong> em xeque<br />
preceitos terapêuticos da medicina, que muitas vezes é cega<br />
aos vários fatores predisponentes <strong>do</strong> a<strong>do</strong>ecer, principalmente<br />
quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong> a<strong>do</strong>ecer psíquico, ou “<strong>do</strong>enças morais”<br />
como são chamadas no texto, seguin<strong>do</strong> uma tendência da<br />
época. O termo remete ao “tratamento moral” de Philippe<br />
Pinel. Dona Leocádia intitula-se “médico” e tem a mania de<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 85
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
curar “<strong>do</strong>enças morais” entre os familiares e amigos. À filha<br />
Adelaide, por exemplo, proíbe tomar os remédios prescritos<br />
pelo verdadeiro médico: “o médico receitava-lhe pílulas,<br />
cápsulas, uma porção de tolices que ela não tomava, porque<br />
eu não deixava; o médico devia ser eu”. Ao que Adelaide anui:<br />
“Foi uma felicidade. Que é que se ganha em engolir pílulas?<br />
[...]. Apanham-se moléstias, responde D. Leocádia” (Assis,<br />
1994d: 1158). Cavalcante, deprimi<strong>do</strong> pelo fim <strong>do</strong> noiva<strong>do</strong>, é o<br />
novo “paciente” de Dona Leocádia. Seduzi<strong>do</strong> pela perspicácia<br />
<strong>do</strong> “médico”, solta a frase: “Seu mari<strong>do</strong> era, talvez, um erudito.<br />
Minha senhora, não se aprende amor nos livros velhos, mas<br />
nos olhos bonitos; por isso, estou certo de que ele a<strong>do</strong>rava a V.<br />
Excia” (Id.:1164). Mas o “médico” está atento. Parece conhecer<br />
por experiência a transferência de antigos sentimentos <strong>do</strong><br />
paciente e que são atualiza<strong>do</strong>s e direciona<strong>do</strong>s ao médico. A<br />
transferência é necessária para o vínculo terapêutico, mas<br />
serve também de resistência para a continuidade <strong>do</strong> mesmo.<br />
Dona Leocádia é rápida e eficaz: “Ah! Ah! Já o <strong>do</strong>ente começa<br />
a adular o médico. Não, senhor, há de ir à China. Lá há<br />
mais livros velhos que olhos bonitos. Ou não tem confiança<br />
em mim?” (Ib.). Confiança, Suposto Saber, Abstinência – o<br />
manejo da transferência em Freud provavelmente não seria<br />
muito diferente.<br />
A PAIXÃO E O CIÚME DE BENTINHO<br />
Na garimpagem por novas revelações na obra de Macha<strong>do</strong>,<br />
gostaria de trazer uma questão relativa ao ciúme de Bentinho,<br />
que, julgo, poderá enriquecer a fortuna crítica <strong>do</strong> autor. Freud<br />
propõe três causas para o sentimento de ciúme experimenta<strong>do</strong><br />
pelo homem:<br />
1º - o ciúme normal: é o sentimento de pesar e ferida narcísica<br />
pela perda <strong>do</strong> objeto ama<strong>do</strong> e a autocrítica que procura<br />
responsabilizar o próprio ego pela perda. Freud não situa este<br />
sentimento de perda “normal” como elaboração puramente<br />
consciente, mas enraiza<strong>do</strong> no inconsciente, por ser uma<br />
86 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
continuação das primeiras manifestações da vida emocional da<br />
criança e originar-se <strong>do</strong> complexo de Édipo.<br />
2º - o ciúme projeta<strong>do</strong>: deriva-se da própria infidelidade, seja<br />
concreta da vida real ou de impulsos nesse senti<strong>do</strong> que são<br />
reprimi<strong>do</strong>s pela convenção <strong>do</strong> matrimônio.<br />
3º - o ciúme delirante: este também tem origem em impulsos<br />
reprimi<strong>do</strong>s no senti<strong>do</strong> da infidelidade, mas o objeto, nesses<br />
casos, é <strong>do</strong> mesmo sexo <strong>do</strong> sujeito. No caso <strong>do</strong> homem a<br />
fórmula defensiva seria: Não sou eu que o amo; é ela que o<br />
ama.<br />
Não é novidade questionar-se uma possível homossexualidade<br />
entre Bentinho e Ezequiel Escobar. Não insinuo uma atração<br />
homoerótica em nível de homossexualismo, mesmo que<br />
latente, mas não parece haver dúvida de que o amigo é o<br />
principal objeto de interesse por parte <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. A hipótese<br />
que sugiro é da existência de uma demanda por insígnias<br />
mais potentes – e mais patentes – <strong>do</strong> que as que portava o<br />
protagonista. A sua posição frente ao amigo é sempre mais<br />
passiva. Já no seminário, o encanto de Bentinho pelo amigo<br />
três anos mais velho é explícito. Mais <strong>do</strong> que uma amizade,<br />
há uma grande admiração, e um abraço afetuoso, durante um<br />
recreio no pátio <strong>do</strong> seminário, gerou uma crítica <strong>do</strong>s colegas,<br />
uma reprimenda <strong>do</strong>s padres e o início de uma cumplicidade<br />
amorosa <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is amigos. Compara a alma humana com uma<br />
casa que pode ser aberta com janelas para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, ou<br />
fechada e escura. Confessa que a sua é <strong>do</strong> primeiro tipo, “com<br />
as portas sem chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e<br />
Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou”<br />
(Assis, 1994e:868). Grande parte <strong>do</strong> romance dedica-se à fase<br />
da a<strong>do</strong>lescência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is protagonistas. É aí que irrompem a<br />
sexualidade e os conflitos resultantes da formação <strong>do</strong> caráter<br />
<strong>do</strong>s mesmos. Na velhice, Bentinho faz reconstruir a casa da<br />
sua a<strong>do</strong>lescência, decisão cujo “fim evidente era atar as duas<br />
pontas da vida, e restaurar na velhice a a<strong>do</strong>lescência. [...] não<br />
consegui recompor o que foi nem o que fui. [...] Se só me<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 87
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos<br />
das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é<br />
tu<strong>do</strong>” (Id:810).<br />
Ao querer driblar o tempo atan<strong>do</strong> as duas pontas da vida parece<br />
querer desvendar as dúvidas que o angustiam. Com esta tarefa<br />
Bentinho parece repetir Sísifo – o esperto herói grego que<br />
por enganar Tânatos, adian<strong>do</strong> a própria morte, é condena<strong>do</strong> a<br />
arrastar uma grande pedra montanha acima, tarefa que nunca<br />
finda, pois ao chegar no topo a pedra sempre rola montanha<br />
abaixo. A eterna dúvida e o conflito entre o ciúme da mulher e<br />
a atração que sente pelo rival, com quem se identifica, seriam<br />
a sua penitência.<br />
Frente ao possível triângulo amoroso Bento supõe ser objeto<br />
de sedução por parte de Sancha, mulher de Escobar. Na<br />
ocasião o amigo comunica que vai nadar no mar em ressaca<br />
(como os olhos de Capitu), vanglorian<strong>do</strong>-se de ter braços<br />
fortes, convidan<strong>do</strong>-o a apalpá-los. Bentinho os apalpa “como<br />
se fossem os de Sancha, mesmo que lhe custe esta confissão”<br />
(Id:924). Teríamos assim, um outro triângulo entre ele, Escobar<br />
e a mulher, triângulo mais edipiano, pois chegou-se a cogitar o<br />
casamento da mãe de Bento, viúva, com Escobar, o que reforça<br />
a função paterna deste. Assim, a homossexualidade prendese<br />
ao desejo de um modelo masculino identificatório mais<br />
potente <strong>do</strong> que o que tinha em casa. Capitu – o nome já sugere<br />
a condição de “cabeça <strong>do</strong> casal” – é forte e decidida, enquanto<br />
Bento sujeita-se à vontade da mãe que o quer no seminário<br />
para ser padre. O pai morreu quan<strong>do</strong> ele ainda era muito novo.<br />
As outras pessoas da casa são tia Justina – outra ironia, pois a<br />
sua única “justiça” é espicaçar to<strong>do</strong>s com fofocas –, o tio Cosme,<br />
que, viúvo, vai morar com a irmã e “[...] forma<strong>do</strong> para as serenas<br />
funções <strong>do</strong> capitalismo, [...] os anos levaram-lhe o mais <strong>do</strong> ar<strong>do</strong>r<br />
político e sexual” (Id:815-6), e o agrega<strong>do</strong> José Dias, assexua<strong>do</strong><br />
e sem qualquer expressão masculina que aceita qualquer papel<br />
em troca de casa e comida. Bento chega a reconhecer, após o<br />
primeiro beijo força<strong>do</strong> por Capitu, que é homem e os homens<br />
não são padres, mas acaba ceden<strong>do</strong> e in<strong>do</strong> para o seminário, de<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
onde só consegue sair com a intervenção <strong>do</strong> amigo.<br />
Na primeira visita de Escobar à família de Bentinho, ao se<br />
despedirem há o seguinte relato de Bentinho: “Separamo-nos<br />
com muito afeto: ele de dentro <strong>do</strong> ônibus, ainda me disse adeus,<br />
com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda<br />
olharia para trás, mas não olhou” (Id:883). Segue uma cena de<br />
ciúme de Capitu que assistira, escondida, à cena de despedida:<br />
“Que amigo é esse tamanho?” (Ib.), pergunta. Fica notória a<br />
dependência ao amigo criada por Bentinho a partir dessa visita.<br />
Quan<strong>do</strong> ele anuncia a visita, diz: “Nunca me visitara até ali, nem<br />
as nossas relações estavam já tão estreitas” (Id:882). Na descrição<br />
<strong>do</strong> protagonista, Escobar era muito poli<strong>do</strong>, mas encanta a to<strong>do</strong>s<br />
com a sua maneira educada, mas expansiva.<br />
O ciúme projetivo e delirante de Bentinho teria, então, a<br />
seguinte fórmula: “Eu não o amo, é ela, minha mulher que<br />
o ama”. É principalmente a partir da morte de Escobar que<br />
Bento desencadeia a corrente de ciúme que o leva afinal a<br />
rejeitar a mulher e o filho Ezequiel e exilá-los na Suíça.<br />
É possível fazer um cotejamento entre a atitude vacilante<br />
de Bentinho com a de Hamlet. Ambos, talvez movi<strong>do</strong>s por<br />
fortes sentimentos éticos, não podem levar a termo a vingança,<br />
sempre adian<strong>do</strong> o ato final. Porém, além da ética, o que está em<br />
jogo é muito mais a própria condição <strong>do</strong> desejo humano, que é<br />
sempre o desejo de outro desejo. Mesmo quan<strong>do</strong> se deseja um<br />
objeto, deseja-se na medida em que esse constitui o objeto <strong>do</strong><br />
desejo de outros homens. Tanto Hamlet como Bentinho, após<br />
muitas vacilações, conseguem afinal vingarem-se, mas de uma<br />
forma canhestra, causan<strong>do</strong> estragos à sua volta e a si mesmos.<br />
Ambos querem e podem vingar-se, o que não conseguem é<br />
formular o próprio desejo; não podem querer o que seria o<br />
reconhecimento <strong>do</strong> próprio desejo inconfesso. Dentro de uma<br />
leitura psicanalítica, pela via <strong>do</strong> complexo de Édipo, Hamlet<br />
tem convicção da sua obrigação de vingar o pai, mas não pode<br />
matar o tio, usurpa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> trono e assassino <strong>do</strong> pai, pois com<br />
ele se identifica ao compartilhar o próprio desejo, que só o<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 89
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
tio consegue realizar. Bentinho, também impotente, não pode<br />
explicitar a sua dúvida e resolver a pendência com a mulher.<br />
Para Lacan, Hamlet compara o seu pai a Hiperion, aquele que<br />
os deuses marcaram com to<strong>do</strong>s os seus selos. Bentinho elege<br />
Escobar também para este lugar de potência (para interferir<br />
junto à mãe e livrá-lo da promessa de se tornar padre e para<br />
seduzir a sua mulher e lhe fazer um filho, mesmo que este fato<br />
seja apenas na imaginação <strong>do</strong> protagonista). O amigo é muito<br />
mais <strong>do</strong> que um possível amante da mulher e pai <strong>do</strong> seu filho;<br />
representa toda a sua vontade de potência. Morto o amigo,<br />
Bentinho fica impotente, decidin<strong>do</strong>-se então pelo suicídio.<br />
Chega a pôr veneno no café, mas, mais uma vez, protela a<br />
ação. Espera que Capitu e o filho saiam de casa, depois resolve<br />
tomar o café logo e está prestes a ingeri-lo quan<strong>do</strong> o filho entra<br />
no seu escritório. A interrupção o faz desistir e ele resolve dar<br />
o café ao filho, mas desiste na hora de colocar a bebida na boca<br />
<strong>do</strong> menino. Fala então para o filho que não é seu pai. Capitu<br />
não ouve o diálogo, mas percebe a tensão e obriga Bentinho<br />
a revelar o que se passara, fican<strong>do</strong> estupefata e indignada<br />
com a revelação. Bentinho, com a atitude da mulher, chega a<br />
duvidar da infidelidade, mas não pode voltar atrás e decide pela<br />
separação, que é disfarçada na viagem de Capitu e Ezequiel<br />
para a Suíça.<br />
OS SONHOS EM MACHADO DE ASSIS – O CRONISTA<br />
GALHOFEIRO<br />
Um tema muito caro a Macha<strong>do</strong> é o sonho versus a realidade.<br />
Fácil entender esta tendência num autor que privilegiava a<br />
realidade psíquica no lugar da realidade natural e científica.<br />
É digna de nota a percepção <strong>do</strong> sonho como formação<br />
inconsciente e realização de desejo, no melhor estilo freudiano.<br />
E essa complexidade <strong>do</strong> pensamento de Macha<strong>do</strong> aparece<br />
muito frequentemente nas crônicas, onde nunca se sabe com<br />
certeza o que tem de real e de ficção. É nessa literatura que<br />
ele exerce com toda a força a sua ironia e sarcasmo, um estilo<br />
90 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
semelhante com o de Millôr Fernandes, um século depois. Cito<br />
um exemplo de sonho como realização de desejo na crônica de<br />
16 de julho de 1893:<br />
Deixem-me sonhar, se é sonho. A realidade é o luto <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, o sonho é a gala. Desde que a pena me trouxe<br />
até aqui, sinto-me rei e grande rei. Já uma vez fui santo e<br />
fiz milagres. Já fui dragão, íbis, tamanduá. Mas de todas<br />
as cousas que tenho si<strong>do</strong>, em sonhos, a que maior prazer<br />
me deu, foi panarício. Questão de amores. Eu suspirava<br />
por uma moça, que fugia aos meus suspiros. Uma noite,<br />
como lhe apertasse os de<strong>do</strong>s, interrogativamente, ela<br />
puxou a mão e deitou-me um olhar de desprezo, que<br />
me tonteou. Vaguei até tarde, jurei matá-la, recolhi-me,<br />
e fui <strong>do</strong>rmir. Dormin<strong>do</strong>, sonhei que, sob a forma de<br />
panarício, nascia e crescia no de<strong>do</strong> da moça. O gosto<br />
que tive, não se descreve, nem se imagina. É preciso ter<br />
si<strong>do</strong> ou ser panarício, para entender esse gozo único<br />
de <strong>do</strong>er em uma carne odiosa. Ela gemia, mordia os<br />
beiços, chorava, perdia o sono. E eu <strong>do</strong>ía-lhe cada vez<br />
mais. Doen<strong>do</strong>, falava; dizia-lhe que o meu gesto de afeto<br />
não merecia o seu desprezo, e que era em vingança <strong>do</strong><br />
que me fez, que eu lhe dava agora aquela imensa <strong>do</strong>r.<br />
Ela prometia a Nossa Senhora, sua madrinha, um de<strong>do</strong><br />
de cera, se a <strong>do</strong>r acabasse; mas eu ria-me e ia <strong>do</strong>en<strong>do</strong>.<br />
Nunca senti regalo semelhante ao meu despeito de<br />
tumor (Assis, 1937a:327-8, grifos meus).<br />
Na última crônica assinada por Macha<strong>do</strong>, em 11 de novembro<br />
de 1900, ele começa: “Eu gosto de catar o mínimo e o<br />
escondi<strong>do</strong>. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a<br />
curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto” (Assis,<br />
1937b:435). O seguinte trecho deixa claro o estilo <strong>do</strong> autor:<br />
Deixei taxas e mortes e fui à casa de um leiloeiro,<br />
que ia vender objetos empenha<strong>do</strong>s e não resgata<strong>do</strong>s.<br />
Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no<br />
prego. Não é lá muito engraça<strong>do</strong>, mas é natural, exato<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 91
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
e evangélico. Está autoriza<strong>do</strong> por Jesus Cristo: ‘Tu es<br />
Petrus etc’. Mal comparan<strong>do</strong>, o meu ainda é melhor. O<br />
da Escritura está um pouco força<strong>do</strong>, a passo que o meu<br />
– o martelo baten<strong>do</strong> no prego – é tão natural que nem<br />
se concebe dizer de outro mo<strong>do</strong>. Portanto, edificarei<br />
a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo<br />
(Id:436).<br />
Na crônica de 15 de janeiro de 1877, no limiar da época em<br />
que Macha<strong>do</strong> faria a grande virada no seu estilo, há o seguinte<br />
trecho: “Eu e to<strong>do</strong> este povo andávamos tristes, sem motivo<br />
nem consciência; andávamos sorumbáticos, caquéticos,<br />
raquíticos, misantrópicos e calundúticos”(Assis, 1937c:169).<br />
Na mesma crônica o autor, comparan<strong>do</strong> várias especialidades<br />
farmacêuticas, sugere que Rocambole, o diverti<strong>do</strong> herói de<br />
Ponson du Terrail, seria o melhor remédio para restaurar o<br />
bom humor. Traça uma linha que liga os heróis Aquiles, Enéas,<br />
Dom Quixote e Rocambole para mostrar o charlatanismo em<br />
de um tal Vindimilla que criou uma panacéia digestiva capaz<br />
de digerir qualquer alimento independentemente <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em<br />
que se encontrasse o estômago <strong>do</strong> usuário. Sugere então que o<br />
avançar da ciência trará um “vinho reflexivo”, que nos dará um<br />
meio de pensar sem cérebro.<br />
Da mesma forma, em “O alienista” o humor, meio irônico<br />
meio escracha<strong>do</strong>, dá-se não pela inépcia, mas pelo rigor<br />
acadêmico <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Simão Bacamarte. Embora a data <strong>do</strong><br />
enre<strong>do</strong> deste conto não esteja bem estabelecida e pode sugerir<br />
a época colonial, os da<strong>do</strong>s são contemporâneos de Macha<strong>do</strong>,<br />
época em que os ideais das ciências médicas destinadas ao<br />
tratamento das <strong>do</strong>enças mentais limitavam-se à internação<br />
com o fim de classificar as “<strong>do</strong>enças” à procura de uma<br />
terapêutica. Entretanto, tais práticas propiciavam a segregação<br />
<strong>do</strong>s loucos e inspirou o higienismo, fonte de tendências mais<br />
nocivas como o modelo da psiquiatria alemã que pregava a<br />
esterilização e mesmo a eliminação de to<strong>do</strong> sujeito desviante<br />
<strong>do</strong>s padrões <strong>do</strong>s modelos produtivos essenciais para a ordem<br />
e o progresso da sociedade. A medicina, em sua essência,<br />
92 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
identifica-se com os ideais progressistas da ciência e da<br />
democracia, possibilitan<strong>do</strong> ao grande público o acesso aos<br />
seus benefícios conquista<strong>do</strong>s. Entretanto, nem sempre<br />
estes ideais são cumpri<strong>do</strong>s e Macha<strong>do</strong> denuncia sempre<br />
com precisão estes desvios, usan<strong>do</strong> o sarcasmo cruel da sua<br />
pena. Não condena o curandeirismo, embora lhe condene os<br />
excessos, e propõe ironicamente os recursos médicos para<br />
solucionar vários problemas, como a falta de uma escola<br />
dramática na capital <strong>do</strong> império, brincan<strong>do</strong> com a etimologia<br />
da palavra medicina:<br />
A etimologia de medicina é, como acontece com outras<br />
palavras, uma lenda. Conta-se que no tempo <strong>do</strong> rei<br />
Numa, o corpo médico era composto unicamente de<br />
coveiros, regi<strong>do</strong>s por um coveiro-mor, chama<strong>do</strong> Cina.<br />
A<strong>do</strong>ecia um romano iam os coveiros à casa <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente<br />
medir-lhe o corpo para abrir a sepultura.<br />
— Mediste, Caio? Perguntava o chefe.<br />
— Medi, Cina. Respondia o coveiro oficial. (Assis,<br />
1937c:44)<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Crítica. In: Obra completa. Rio de Janeiro:<br />
Nova Aguilar, 1994a. v. 3.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Memórias póstumas de Brás Cubas. In:<br />
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994b. v. 1.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. O anel de Polícrates. In: Obra completa.<br />
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994c. v. 2.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Não consultes médico. In: Obra completa.<br />
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994d. v. 2.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Dom Casmurro. In: Obra completa. Rio<br />
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994e. v. 1.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 93
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. A semana. In: Obras completas de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937a. v. 24.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. A semana. In: Obras completas de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937b. v. 26.<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Crônicas. In: Obras completas de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1937c. v. 22.<br />
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e idade média<br />
latina. Tradução de Teo<strong>do</strong>ro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo:<br />
Hucitec/EDUSP, 1996.<br />
PONTES, Joel. Apresentação, comentários e bibliografia.<br />
In: ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Teatro. Rio de janeiro: Agir, 1968.<br />
[Coleção Nossos clássicos].<br />
REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia: Macha<strong>do</strong> de<br />
Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro:<br />
Forense Universitária, 1989.<br />
SÊNECA, Lúcio Aneu. Apocoloquintose <strong>do</strong> divino Cláudio.<br />
Tradução e notas de Giulio Davide Leoni. São Paulo: Nova<br />
Cultural, 1988. [Coleção “Os pensa<strong>do</strong>res”].<br />
94 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 19/06/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 17/07/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
“A CARTOMANTE” NO PLANO DO<br />
JOGO INDICIÁRIO<br />
Jorge Evandro Lemos Ribeiro<br />
Ufes<br />
Resumo: Este trabalho se dedicará a analisar o conto “A<br />
cartomante” de Macha<strong>do</strong> de Assis a partir da tradução de<br />
sinais segun<strong>do</strong> Carlo Ginzburg. Por isso, antes de chegarmos<br />
ao objeto principal, vamos discorrer ainda sobre <strong>do</strong>is textos<br />
literários que nos servirão como base ilustrativa ao falarmos<br />
<strong>do</strong> leitor indiciário. Um deles trata-se de uma narrativa judaica<br />
cujo personagem principal é um hassid, o outro é a respeito <strong>do</strong><br />
personagem Zadig cria<strong>do</strong> por Voltaire.<br />
Palavras-chave: Leitor. Indício. Jogo.<br />
Abstract: This work is an analysis of the short story “A<br />
cartomante” (The Fortuneteller) by Macha<strong>do</strong> de Assis, from<br />
the translation of sign language according to Carlo Ginzburg.<br />
Thus, before we get to the main object, we analyze two<br />
literary texts which work as an illustration when we talk about<br />
the reader. One of them is a Jewish narrative whose main<br />
character is a hassid; the other is about Zaig, a character created<br />
by Voltaire.<br />
Keywords: Reader. Index. Game.<br />
A partir da tríade Morelli-Freud-Conan Doyle, Carlo Ginzburg<br />
discute, em seu texto “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”,<br />
como uma vertente da ciência traça seu caminho basea<strong>do</strong> no<br />
paradigma indiciário. O autor vai dizer que o homem por<br />
milênios foi um caça<strong>do</strong>r que desenvolveu a capacidade de<br />
“reconstituir as formas e movimentos das presas invisíveis<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 95
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
pelas pegadas na lama, ramos quebra<strong>do</strong>s, bolotas de esterco,<br />
tufos de pêlos, plumas emaranhadas, o<strong>do</strong>res estagna<strong>do</strong>s”<br />
(GINZBURG, 1999, p. 151). Assim, o homem aprendeu com<br />
o tempo a perceber em pistas infinitesimais os motivos para<br />
novas interpretações, bases para classificações, fundamentos<br />
para registros que contribuíram no decorrer <strong>do</strong>s anos para o<br />
enriquecimento <strong>do</strong> patrimônio cognoscitivo da humanidade. A<br />
psicanálise de Freud, por exemplo, se apóia nos sinais, ou mais<br />
apropriadamente, em sintomas demonstra<strong>do</strong>s por alguém,<br />
para assim tirar conclusões a respeito até <strong>do</strong> inconsciente<br />
deste indivíduo. Não obstante, como Carlo Ginzburg trata até<br />
certo ponto não só da ciência da psicanálise, mas de outras<br />
também, como a medicina; em certo momento ele diz que irá<br />
desarticular o paradigma indiciário até então trata<strong>do</strong> em seu<br />
senti<strong>do</strong> lato. É quan<strong>do</strong> o autor vai dizer que “uma coisa é<br />
analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros,<br />
córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra<br />
é analisar escritas, pinturas ou discursos” (GINZBURG, 1999,<br />
p. 171). Distinguin<strong>do</strong> assim a natureza da cultura, que é mais<br />
mutável e superficial, é possível, então, por meio da análise <strong>do</strong>s<br />
“traços mínimos e involuntários”, se aperceber da noção de<br />
indivíduo. Mas, para perceber esses traços, faz-se necessário o<br />
que Ginzburg chamará de baixa intuição. Trata-se de intuição<br />
na medida em que, segun<strong>do</strong> ele, “ninguém aprende o ofício de<br />
conhece<strong>do</strong>r ou de diagnostica<strong>do</strong>r limitan<strong>do</strong>-se a pôr em prática<br />
regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em<br />
jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro,<br />
golpe de vista, intuição” (GINZBURG, 1999, p. 179). Esta<br />
baixa intuição não é aquela intuição supra-sensível, como disse<br />
Ginzburg, mas a que “está arraigada nos senti<strong>do</strong>s (mesmo<br />
superan<strong>do</strong>-os)” (GINZBURG, op. cit.) e é por isso mesmo<br />
privilégio de poucos.<br />
Antes mesmo de chegar ao conto “A Cartomante”, objeto<br />
principal de nosso estu<strong>do</strong>, gostaria de passar brevemente por<br />
<strong>do</strong>is contos ainda. O primeiro trata-se de uma narrativa judaica<br />
cuja história se desenvolve em uma aldeia polonesa de nome<br />
96 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Shebreschin. Lá vivia com a mulher um hassid que se sustentava<br />
a partir <strong>do</strong> leite de cabra que ele vendia na cidade. Um dia a<br />
sua mulher não encontrou as cabras. Ela se desesperou. Mas o<br />
mari<strong>do</strong>, bran<strong>do</strong>, dizia que tu<strong>do</strong> viria <strong>do</strong> Alto. No final da tarde<br />
as cabras regressaram e então se tornou rotina: os animais<br />
sumiam durante o dia e retornavam ao entardecer. O mais<br />
curioso, no entanto, não era isso, mas o fato de o leite delas<br />
agora ser abençoa<strong>do</strong> porque curava as <strong>do</strong>enças de quem o<br />
bebia. O hassid, no sétimo dia, decidiu então ir atrás das cabras.<br />
No meio da floresta, elas entraram em uma caverna. Hassid<br />
seguiu-as. Ele podia ver ao longe um facho de luz. E o hassid<br />
correu atrás delas. Entre diabos, pedras cain<strong>do</strong> e mulheres<br />
nuas, hassid continua seu trajeto guia<strong>do</strong> pela fé.<br />
O hassid havia encontra<strong>do</strong> o paraíso. Depois de ele ter beija<strong>do</strong><br />
muito o chão, o hassid decide enviar uma carta para os judeus<br />
de Schebresquin escrita em uma folha de figueira que uma<br />
cabra levaria de volta. Mas a mulher não vê a carta, acha que o<br />
mari<strong>do</strong> havia si<strong>do</strong> assassina<strong>do</strong> por ladrões na floresta e resolve<br />
depois de um tempo abater as cabras e vender a carne. Só<br />
depois de abatê-las é que encontraram a carta. O rabino toma<br />
conhecimento <strong>do</strong> caso, lê a carta, e então “o rabino decidiu<br />
que os judeus de Shebreschin não deviam comer nem beber,<br />
durante três dias; deveriam rezar. Provavelmente, por causa de<br />
suas más ações, a carta não fora encontrada a tempo e eles<br />
não poderiam chegar à Terra Santa.” (NOY, Dov (org.), 1966,<br />
p. 15). Percebe-se claramente que a fé sustentou uma firme<br />
posição <strong>do</strong> personagem hassid. A sua leitura de mun<strong>do</strong> é a que<br />
se baseia na fé, portanto. Este teve a sua recompensa. Mas<br />
agora preciso contar um pequeno trecho da história de Zadig,<br />
um herói de Voltaire que será mais tarde compara<strong>do</strong> ao que foi<br />
agora menciona<strong>do</strong>.<br />
Dizia Zadig que “ninguém pode ser mais feliz <strong>do</strong> que um<br />
filósofo que lê nesse grande livro coloca<strong>do</strong> por Deus diante<br />
<strong>do</strong>s nossos olhos” (VOLTAIRE, 1972, p. 14). Acrescenta ele<br />
que esse homem capaz desta leitura seria “<strong>do</strong>no da verdade<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 97
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
que descobre; alimenta e eleva a alma; vive sossega<strong>do</strong>”, e<br />
outras coisas a mais que, lógico, vin<strong>do</strong> de Voltaire, não poderia<br />
passar de ironia, o que adiante constataremos. Zadig, certa vez,<br />
passean<strong>do</strong> pelo bosque, chega para ele um eunuco e pergunta<br />
desorienta<strong>do</strong> e inquieto se não viu um cachorro por ali que<br />
pertenceria à rainha. Primeiro o Zadig responde dizen<strong>do</strong> que<br />
não é um cão, mas uma cadela, depois afirma ainda que a<br />
cadela é caça<strong>do</strong>ra, é pequena, e que deu cria não fazia muito<br />
tempo e, além disso, se não bastasse o já dito, afirmou que a<br />
cachorra mancava da pata dianteira esquerda e tinha orelhas<br />
cumpridas. A conclusão aparentemente óbvia foi a mesma que<br />
teve o eunuco: “Então você a viu?” – Perguntou ele. Zadig,<br />
no entanto, responde que nunca em sua vida a tinha visto. Por<br />
coincidência, havia também escapa<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei o melhor cavalo<br />
de sua coleção e o monteiro-mor estava atrás dele quan<strong>do</strong> vê<br />
Zadig e o pergunta se não tinha visto o animal por ali. Zadig<br />
descreve o cavalo em detalhes.<br />
O monteiro-mor não teve dúvida de que o homem que passeava<br />
pelo bosque sabia onde estava o cavalo. Mas a resposta de Zadig<br />
foi negativa. Concluíram o eunuco e o monteiro-mor que Zadig<br />
não só sabia onde estava o cavalo e a cadela como teria rouba<strong>do</strong><br />
ambos. Levaram-no então para uma assembléia. Depois de<br />
ser condena<strong>do</strong> ao exílio na Sibéria, encontraram o cavalo e<br />
a cadela. Reformularam a sentença, com a condição de que<br />
Zadig deveria agora pagar 400 onças por ter nega<strong>do</strong> ver aquilo<br />
que viu. Só depois de pagar a multa, teve o perspicaz herói a<br />
chance de se defender na assembléia. Afirma ele que realmente<br />
não viu os animais e esclarece como chegou a tais conclusões<br />
a respeito <strong>do</strong> animal analisan<strong>do</strong> os indícios, como a impressão<br />
das pegadas das patas, tetas que arrastavam pela areia, e até<br />
das orelhas cumpridas. Quanto ao cavalo, Zadig descobriu, por<br />
exemplo, o seu tamanho a partir das folhas recém-caídas das<br />
árvores. Enfim, to<strong>do</strong>s pasmaram com tão eloqüente explicação<br />
de como ele deduziu caracteres <strong>do</strong>s animais procura<strong>do</strong>s. Mas<br />
essa reação não livrou Zadig totalmente da pena. O rei até que<br />
ordenou que lhe restituíssem as 400 onças, mas “retiveram<br />
98 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
somente 398 para as custas <strong>do</strong> processo, e os seus ajudantes<br />
reclamaram gratificação” (VOLTAIRE, 1972, p. 17). O herói<br />
de Voltaire conclui que é perigoso ser sábio. Prometeu a si<br />
mesmo que não testemunharia mais. Entretanto, em outro dia,<br />
um prisioneiro foge, ele não depõe, mas provam que Zadig<br />
olhou pela janela de sua casa, logo teria visto o preso. Foi<br />
multa<strong>do</strong> por 500 onças de ouro.<br />
Ao contrário de hassid, o protagonista <strong>do</strong> conto anterior, o<br />
herói de Voltaire, ironicamente, é multa<strong>do</strong> pela sua procura<br />
da verdade. Zadig lê o mun<strong>do</strong> de uma maneira diferente se<br />
compara<strong>do</strong> ao protagonista de Shebreschin. Ele, como um<br />
herói típico <strong>do</strong> Iluminismo, percebe suas pistas com a dedução<br />
<strong>do</strong> raciocínio. Distintamente <strong>do</strong> hassid que, como já vimos, lê os<br />
sinais com os olhos da fé. Esses <strong>do</strong>is personagens nos servirão<br />
como base para, agora sim, analisar o conto “A Cartomante”<br />
de Macha<strong>do</strong> de Assis. É importante que tenhamos em mente<br />
este <strong>do</strong>is protótipos de leitores ao ler o conto, – o leitor hassid<br />
e o leitor Zadig.<br />
O conto de Macha<strong>do</strong> de Assis em si já começa com um<br />
desses leitores acima menciona<strong>do</strong>s se manifestan<strong>do</strong>. Há uma<br />
antecipação de um episódio. É quan<strong>do</strong> Rita fala para Camilo<br />
sobre a cartomante que fica na Rua da Guarda Velha. Camilo<br />
ria de Rita. Esta defendia, com outros termos, a mesma idéia<br />
de Hamlet que dizia: “há mais cousas no céu e na terra <strong>do</strong><br />
que sonha a nossa filosofia”. Camilo, que pousava de cético,<br />
ria com deboches. É mais importante notar, no entanto, que<br />
a cartomante impressionou Rita ao se antecipar dizen<strong>do</strong> que<br />
esta gostava de uma pessoa. Observe que essa informação é<br />
generalizante. Tanto seria fácil deduzir o motivo pelo qual Rita<br />
estaria ali, que o próprio Camilo repreende-a dizen<strong>do</strong> que é<br />
imprudência aparecer nesses lugares na medida em que Vilela, o<br />
mari<strong>do</strong>, poderia tomar conhecimento disso, o que seria motivo<br />
de levantar suspeitas da traição. O fato é que Rita foi consultarse<br />
e saiu de lá aliviada de suas dúvidas. Às vezes, o narra<strong>do</strong>r<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 99
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
lança um discurso indireto livre, o que dá ao texto um certo<br />
tom eloqüente e engana<strong>do</strong>r, isto é, o leitor que não percebe<br />
de que discurso se trata, se convence daquilo que na verdade<br />
é ironia: “Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a<br />
cartomante adivinhara tu<strong>do</strong>. Que mais? A prova é que ela agora<br />
estava tranqüila e satisfeita“ [grifo nosso] (ASSIS, 2003, p. 38).<br />
Observe também que a prova para veracidade <strong>do</strong> que disse a<br />
cartomante é a satisfação da cliente. É obvio que essa lógica não<br />
é exatamente a <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que quer com astúcia levar o leitor<br />
para outros meandros da leitura, mas é o raciocínio conivente<br />
da personagem, que carece de um anestésico para suas dúvidas<br />
amorosas. Já Camilo, informa o narra<strong>do</strong>r, já fora supersticioso<br />
e perdeu as crendices <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> materno aos vinte anos. Com<br />
o tempo, passou a negar tu<strong>do</strong>. Não sabia dizer por quê, mas<br />
negava. Não obstante, sentia-se lisonjea<strong>do</strong> por ver Rita se<br />
arriscan<strong>do</strong> por ele. Em suma, percebe-se neste episódio um<br />
jogo de conivências: to<strong>do</strong>s saíram felizes com a cartomante,<br />
inclusive ela mesma. Porém, a “leitora de cartas” – antes leitora<br />
‘indiciária’ – é a responsável pela própria satisfação de garantir<br />
seu sustento. Já os <strong>do</strong>is amantes, cuja satisfação está em um<br />
capricho amoroso, não passam de passivos na própria alegria.<br />
O narra<strong>do</strong>r então retorna no tempo e diz como os três se<br />
conheceram. Vilela e Camilo eram amigos de infância: “Eram<br />
amigos deveras” – diz o narra<strong>do</strong>r com ironia. Vilela tinha um<br />
ar de maturidade, “enquanto Camilo era um ingênuo na vida<br />
moral e prática” (ASSIS, 2003, p. 39). Acrescenta que Camilo<br />
não tinha nem experiência, nem intuição. Isso se mostrará por<br />
meio de fatos mais tarde no desenrolar <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. O tempo<br />
proporcionou a Camilo e Rita intimidade, daí ela passa a ser<br />
quase uma irmã, e o seria se não fosse mulher e bonita. Um dia<br />
Camilo ganha de presente de aniversário uma “rica bengala” de<br />
Vilela, “e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento<br />
a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não<br />
conseguia arrancar os olhos <strong>do</strong> bilhetinho” (ASSIS, 2003, p.<br />
40). Como o próprio texto diz, o que seria comum, vulgar, se<br />
100 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
tornou sublime. Observe que a expressão usada no texto, “ler<br />
no coração”, já denota a presença marcante da subjetividade de<br />
Camilo. O leitor, por sua vez, estrategicamente, não tem acesso<br />
ao que estava escrito no bilhete, mas ele fica saben<strong>do</strong> ao menos<br />
que o bilhete fez Camilo se deleitar. Sem se ater muito aos<br />
acontecimentos em si, mas sim às narrativas psicológicas <strong>do</strong>s<br />
personagens, é típico <strong>do</strong> Bruxo <strong>do</strong> Cosme Velho fazer uso de<br />
metáforas que organizam e conciliam os fatos e as confusões<br />
<strong>do</strong>s sentimentos humanos. É o que acontece quan<strong>do</strong> o<br />
narra<strong>do</strong>r comenta a respeito da tentativa de Camilo resistir<br />
ao ataque de Rita que, “como uma serpente, foi-se acercan<strong>do</strong><br />
dele, envolveu-o to<strong>do</strong>, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e<br />
pingou-lhe o veneno na boca” (ASSIS, 2003, p. 40).<br />
Uma carta anônima chega a Camilo dizen<strong>do</strong> que o caso é <strong>do</strong><br />
conhecimento de to<strong>do</strong>s. Não só a origem dessa carta é negada<br />
ao leitor como também o mo<strong>do</strong> como souberam da aventura de<br />
Camilo e Rita. Fica para o leitor, portanto, a chance de especular<br />
as razões mais vulgares. Além disso, é estratégico que o leitor<br />
saiba até o ponto que sabe Camilo sobre as coisas, para, assim,<br />
garantir o suspense por que passará Camilo e, por conseguinte,<br />
também o leitor. O amante, por me<strong>do</strong>, evita ir à casa de Vilela.<br />
Este percebe a ausência e cobra <strong>do</strong> amigo uma explicação.<br />
Assim como o leitor em relação à procedência das cartas, Vilela<br />
tem um indício que lhe sugere apenas uma introdução, mas<br />
não fornece uma justificativa que lhe complemente o “texto”.<br />
“Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de<br />
rapaz”. Com essa resposta, o amante de Rita ironicamente dá<br />
uma falsa pista para uma equivocada leitura, ao mesmo tempo<br />
em que diz de certa maneira a verdadeira razão pela qual tem<br />
rarea<strong>do</strong> suas visitas. “Candura gerou astúcia”, diz o narra<strong>do</strong>r.<br />
Foi neste tempo que Rita recorre à cartomante para saber por<br />
que motivo Camilo estaria tão ausente. Não ten<strong>do</strong> o texto num<br />
to<strong>do</strong>, ela recorre a “leitora de cartas” para que lhe complete<br />
sua leitura de mo<strong>do</strong> que a alivie o incômo<strong>do</strong> da ânsia de fazer<br />
senti<strong>do</strong>. Como não se vê capaz de ler com a mesma perspicácia<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 101
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
que Zadig, recorre à maneira de ler <strong>do</strong> hassid. Camilo não pára<br />
de receber cartas. São mais umas três delas. Rita vê interesse<br />
nas cartas. O ciúme lhe induz a arquitetar um pensamento: “a<br />
virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só<br />
o interesse é ativo e pródigo” (ASSIS, 2003, p. 41). Se ela tem<br />
razão de fato ou não, o leitor nunca poderá ter certeza. Mas seja<br />
quem for que estivesse escreven<strong>do</strong> as cartas, o fato é que Vilela<br />
agora parece também saber da traição. Ele começa a mostrarse<br />
sombrio e é de falar pouco. Neste momento, Rita e Camilo<br />
reage cada qual segun<strong>do</strong> o seu temperamento: um com astúcia<br />
e o outro com receio. Rita quer que Camilo volte a freqüentar<br />
a sua casa para ver se não tira alguma confidência de Vilela;<br />
já Camilo não acha prudente aparecer depois de tanto tempo<br />
ausente. Enquanto a primeira quer ler o comportamento <strong>do</strong><br />
mari<strong>do</strong>, o segun<strong>do</strong> não quer cometer algum deslize dan<strong>do</strong>-lhe<br />
mais um sinal da aleivosia.<br />
A última carta agora é de Vilela. Um bilhete, na verdade. Dizia:<br />
“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Camilo<br />
logo combinou as outras cartas com esta última. Fez delas um<br />
só texto. A letra lhe parecia trêmula. Estan<strong>do</strong> ela trêmula ou não,<br />
este era um sinal resultante de sua aflição, aflição de Camilo. E<br />
é partir dela ainda que ele constrói um texto que será, em boa<br />
parte, o desfecho da história: “Imaginariamente, viu a ponta<br />
da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela<br />
indigna<strong>do</strong>, pegan<strong>do</strong> a pena e escreven<strong>do</strong> o bilhete, certo de<br />
que acudiria, e esperan<strong>do</strong>-o para matá-lo” (ASSIS, 2003, p. 42).<br />
E é o mesmo Camilo que supõe uma possível leitura de Vilela:<br />
“A mesma suspensão de suas visitas, sem motivo aparente,<br />
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto” (ASSIS,<br />
2003, p. 42). No caminho para casa de Vilela, Camilo “não<br />
relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante <strong>do</strong>s<br />
olhos, fixas”. Enquanto o personagem lê imaginariamente o<br />
bilhete, o leitor lê a aflição <strong>do</strong> personagem apoia<strong>do</strong> no ombro<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r.<br />
A caminho da casa de Vilela, o tílburi teve que parar por conta<br />
102 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
de uma carroça que estava ali atravancada. Com o tempo,<br />
Camilo repara que estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da casa da cartomante. Neste<br />
instante, o cético rapaz sente-se tenta<strong>do</strong> por antigas crendices<br />
que deixou para traz há muito tempo. Passava por sua cabeça<br />
a idéia de ir ter com a cartomante, mas logo fazia um gesto<br />
incrédulo. Mas como era, em verdade, de caráter mais volta<strong>do</strong><br />
às vontades subjetivas, mesmo que pretensiosamente cético,<br />
quan<strong>do</strong> menos se espera, já lá estava ele subin<strong>do</strong> as escadas<br />
da cartomante. Na dúvida, até o que os homens gritavam ao<br />
tentar levantar a carroça parecia ser palavras de incentivo para<br />
Camilo que carecia acalmar as ansiedades: “— Anda! agora!<br />
empurra! vá! vá!”. Os acontecimentos em volta contribuem<br />
para a composição <strong>do</strong> texto para os olhos e ouvi<strong>do</strong>s de<br />
Camilo. Quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong> texto de hassid, as concatenações<br />
tornam-se mais fáceis de tecerem-se. “Ele via as contorções <strong>do</strong><br />
drama e tremia. A casa olhava para ele” (ASSIS, 2003, p. 43).<br />
Enquanto Camilo lia o que era quase óbvio – o fim trágico –,<br />
a casa da cartomante estava ali parecen<strong>do</strong> lhe chamar. Por isso,<br />
todas as histórias que a sua mãe lhe contava quan<strong>do</strong> criança<br />
colaboravam para a composição deste novo texto. Quan<strong>do</strong><br />
se dá conta, já está subin<strong>do</strong> as escadas. O ambiente sombrio<br />
e pobre participa para aumentar o prestígio, diz o narra<strong>do</strong>r.<br />
Logo, o ambiente também participa para uma leitura. “A<br />
cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se <strong>do</strong> la<strong>do</strong><br />
oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz<br />
de fora batia em cheio no rosto de Camilo” (ASSIS, 2003, p.<br />
44). O rosto de Camilo se torna ilumina<strong>do</strong> para a cartomante<br />
poder lê-lo. Ela o olhava por baixo <strong>do</strong>s óculos, como quem<br />
perscruta, analisa, deduz. O narra<strong>do</strong>r confirma a sagacidade da<br />
cartomante quan<strong>do</strong> diz que ela tinha “olhos sonsos e agu<strong>do</strong>s”.<br />
Fica fácil então deduzir por alto o que está fazen<strong>do</strong> lá um<br />
homem distinto quan<strong>do</strong> este está com me<strong>do</strong> de um desfecho<br />
trágico de sua aventura. Que outra aparência poderia ter este<br />
homem senão o de assusta<strong>do</strong>? E foi o que a cartomante disse:<br />
“Vejamos primeiro o que o traz aqui. O senhor tem um grande<br />
susto...” (ASSIS, 2003, p. 44). Isso impressiona Camilo. Além<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 103
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
de astuta leitora de sinais, a cartomante sabe ainda muito bem,<br />
ao mesmo tempo, dissimular bem um texto que lhe convém.<br />
De maneira ainda generalizante, ela diz que ele quer saber se<br />
lhe acontecerá alguma coisa ou não. Ele, ingênuo, envolvi<strong>do</strong><br />
pelo espanto <strong>do</strong> mistério (hassid), entrega o mote à cartomante<br />
dizen<strong>do</strong>: “A mim e a ela”. O narra<strong>do</strong>r, curiosamente, diz que a<br />
cartomante não sorriu. Ora, e por que haveria de sorrir senão<br />
pelo fato de agora ter toda uma introdução de uma história<br />
para dar apenas o remate da suposta clarividência? Então ela<br />
declara uma leva de “conselhos” que servem para a maioria das<br />
circunstâncias parecida com a de Camilo. Ela diz para ele que<br />
não precisa temer a nada e que um amor bonito como o <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is causaria despeito de outros.<br />
Como Rita anteriormente, Camilo é que agora está alivia<strong>do</strong><br />
de uma angústia. Ele acaba por submeter-se à lógica de hassid.<br />
Tamanho entusiasmo observa-se no fato de ele ter da<strong>do</strong> à<br />
cartomante dez mil-réis quan<strong>do</strong> o preço era apenas <strong>do</strong>is milréis.<br />
Ela não perde a chance de ler e propor leituras coniventes a<br />
Camilo: “Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem;<br />
ela gosta muito <strong>do</strong> senhor. Vá, vá, tranqüilo” (ASSIS, 2003,<br />
p. 45). Tão tranqüilo foi ele para a casa de Vilela que agora<br />
até a natureza e as pessoas pareciam participar <strong>do</strong> contexto de<br />
seu entusiasmo: “o céu estava límpi<strong>do</strong> e as caras joviais”. Acha<br />
agora pueril o próprio receio. Antes a letra aparentemente<br />
estava trêmula demonstran<strong>do</strong> nervosismo por parte de quem<br />
a escreveu, mas agora o tom da carta é íntimo e familiar. A<br />
cartomante desfez o teci<strong>do</strong> indeseja<strong>do</strong> para oferecer a Camilo<br />
uma substituição mais aprazível, confortável, tanto que não<br />
são mais as palavras de Vilela que lhe repercute na cabeça, mas<br />
as da cartomante. “(...) reboavam-lhe na alma as palavras da<br />
cartomante”. E como Rita, também ele elabora um sofisma<br />
para garantir para si a veracidade das palavras da “sibila”:<br />
“Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o esta<strong>do</strong><br />
dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o<br />
resto?” (ASSIS, 2003, p. 46). Isso é dito não pela voz direta <strong>do</strong><br />
104 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
personagem, mas pelo narra<strong>do</strong>r. Com esse recurso <strong>do</strong> discurso<br />
indireto livre, como já se disse aqui, o narra<strong>do</strong>r dá outra vez<br />
sinais “falsos” para o leitor. Neste instante de leitura, quem<br />
lê é desprepara<strong>do</strong> para o final que está por vir, o que garante<br />
a surpresa antecipada <strong>do</strong> desfecho. Digo antecipada porque<br />
Camilo já havia pensa<strong>do</strong> neste final trágico. Mas agora, como<br />
fez a cartomante com Camilo, faz o narra<strong>do</strong>r com o leitor: tece<br />
um outro panorama de leitura mais otimista... ingênuo, porém<br />
otimista. Agora tem Camilo “uma fé nova e vivaz”. Ele olha<br />
para o horizonte e tem “assim uma sensação de futuro, longo,<br />
longo, interminável”. Como o hassid de Shebreschin in<strong>do</strong> ao<br />
encontro <strong>do</strong> paraíso, Camilo vai em direção à casa de Vilela.<br />
Contamina<strong>do</strong> pelo otimismo, Camilo não vê que, ao chegar e<br />
bater na porta de Vilela, este “tinha as feições descompostas”.<br />
“Entran<strong>do</strong>, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: —<br />
ao fun<strong>do</strong> sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada.<br />
Vilela pegou-o pela gola, e, com <strong>do</strong>is tiros de revólver, estirou-o<br />
morto no chão” (ASSIS, 2003, p. 47). Como se vê, Camilo não<br />
teve, no entanto, a mesma sorte que hassid.<br />
É possível entrever no conto “A Cartomante”, portanto, <strong>do</strong>is<br />
planos de um jogo de leituras e sinais. Um aspecto desse jogo<br />
‘indiciário’ se estabelece entre os quatro personagens, um<br />
outro aspecto se estabelece entre o narra<strong>do</strong>r e o leitor. Entre<br />
os personagens há uma relação de olhares, gestos, insinuações<br />
que contribuem para a dádiva de uns sinais e dissimulação<br />
de outros, travan<strong>do</strong> assim uma batalha em que vence aquele<br />
que lê melhor. É interessante notar que uma peça <strong>do</strong> jogo<br />
movimentada vale às vezes por duas ou mais jogadas, como<br />
foi o caso, por exemplo, da cartomante quan<strong>do</strong> falou para<br />
Camilo que ele estava com algum susto: ao mesmo tempo<br />
em que leu um sinal, lançou um outro – a adivinhação – e<br />
ainda soltou uma deixa para ele “dá as cartas”, assim ela supôs<br />
o contexto de sua aflição. A cartomante é a que melhor lê e<br />
mais sabe dá as pistas. Pistas estas que motivam outros sinais<br />
que lhe servirão para outras leituras. Depois há a Rita que<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 105
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
mais dissimula indícios que propriamente os lê. Já Camilo e<br />
Vilela, pouco ou quase nada sabem jogar o jogo ‘indiciário’.<br />
Se o fazem, é ainda coxa a maneira que jogam. No caso de<br />
Camilo, sua inocência e subjetividade pre<strong>do</strong>minante não o<br />
deixam lê com clareza. Como diz o narra<strong>do</strong>r, ele não tem nem<br />
experiência nem intuição. Camilo não passa então <strong>do</strong> “caricato”<br />
personagem machadiano que joga mais com a aparência, e<br />
muitas vezes o aparecer contrasta com aquilo que realmente<br />
é. Digo “caricato” porque esse tema se repete em outras de<br />
suas obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, nos contos<br />
como “Noite de Almirante”, “Teoria <strong>do</strong> Medalhão”, etc. Um<br />
outro aspecto <strong>do</strong> jogo indiciário, como já se disse, é entre o<br />
narra<strong>do</strong>r e o leitor. Neste plano, no entanto, um está em parcial<br />
desvantagem: o leitor, que é passivo diante <strong>do</strong> que o narra<strong>do</strong>r<br />
diz. Se ele não é passivo, pelo menos então paga uma multa<br />
por tentar ler como Zadig. Carece de uma leitura minuciosa,<br />
que desvenda sinais para que o texto se revele pleno, ou quase<br />
pleno diante de seus olhos. A multa é que o leitor sai em débito<br />
com essa plenitude e sabe disso – ao menos deveria saber. É<br />
claro que não estou falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> leitor indiciário que pretende<br />
ler como hassid. Este leitor hassid apenas se deleita com o<br />
paraíso e não questiona “o que vem <strong>do</strong> Alto”. Neste plano de<br />
jogo, o narra<strong>do</strong>r dribla as informações para desviar a atenção<br />
<strong>do</strong> leitor. O narra<strong>do</strong>r faz isso sem, entretanto, passar por<br />
falsário, “mentiroso”, uma vez que, como já observamos, faz<br />
uso de recursos textuais que mescla a voz <strong>do</strong> personagem com<br />
a sua voz, a <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Estes <strong>do</strong>is planos <strong>do</strong> jogo indiciário –<br />
personagem/personagem e narra<strong>do</strong>r/leitor –, não se excluem,<br />
mas, ao contrário, se complementam. Exemplo disso está no<br />
episódio em que Camilo lê na letra trêmula um indício de um<br />
drama trágico, enquanto o leitor, pelo ombro <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r lê<br />
na leitura <strong>do</strong> personagem sua aflição, além de imaginar junto<br />
com Camilo a possibilidade <strong>do</strong> desfecho fatal. Assim, o leitor é<br />
cativa<strong>do</strong> pelo jogo <strong>do</strong>s sinais estabeleci<strong>do</strong> entre os personagens<br />
e o narra<strong>do</strong>r. Mesmo que ele pague a sua multa, há algo de<br />
deleitoso neste jogo da ficção na qual se ganha na medida em<br />
106 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
que se descobre perde<strong>do</strong>r. O fato é que, desse jogo indiciário,<br />
nenhum leitor poderá sair incólume.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. “A cartomante”. In: Contos consagra<strong>do</strong>s.<br />
São Paulo: Ediouro, 2003.<br />
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo:<br />
Companhia das letras, 1999.<br />
NOY, Dov (org.). Contos da dispersão.<br />
Tradução: Elena Moritz, J. Guinsburg et al.<br />
São Paulo: Perspectiva, 1966.<br />
VOLTAIRE, François M. Arouet. Contos. Tradução: Mário<br />
Quintana. Porto Alegre: Abril Cultural. 1972.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 20/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 107
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
E MAIS UMA VEZ IRONIA E DISSIMULAÇÃO:<br />
TRANSITANDO PELO TEATRO MACHADIANO<br />
– UM OLHAR SOBRE “AS FORCAS CAUDINAS”<br />
Carla de Paula <strong>Santo</strong>s<br />
Ufes<br />
Eu gosto de catar o mínimo e o escondi<strong>do</strong>. Onde<br />
ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a<br />
curiosidade estreita e aguda que descobre o<br />
encoberto.<br />
Coisas miúdas, coisas que escapam ao maior<br />
número, coisas de míope. A vantagem <strong>do</strong>s<br />
míopes é enxergar onde as grandes vistas não<br />
pegam. (Macha<strong>do</strong> de Assis)<br />
Resumo: A ironia e a dissimulação, elementos presentes<br />
nos romances e contos de Macha<strong>do</strong>, também transbordam<br />
<strong>do</strong> caráter das personagens teatrais. É visan<strong>do</strong> destacar esse<br />
comportamento, tão comum nas obras consagradas desse<br />
escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As<br />
forcas caudinas.<br />
Palavras-chave: Teatro machadiano. Ironia. Dissimulação.<br />
Abstract: Irony and concealing are present elements in the<br />
novels and stories by Macha<strong>do</strong>. Those elements also overflow<br />
of the character of theatrical characters. It is aiming to highlight<br />
this behavior, so common in Macha<strong>do</strong>’s works, that we make a<br />
brief analysis on the play As forcas caudinas”.<br />
Key words: Machadiano theater. Irony. Concealing.<br />
Contrário aos demais dramaturgos brasileiros, as comédias de<br />
108 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis não apresentam estapafúrdios teatrais. O<br />
que se sobressai é um riso <strong>do</strong>miciliar pauta<strong>do</strong> em situações<br />
cotidianas. Aliás, como afirma Sábato Magaldi (2004, p.<br />
125), “é forçoso concluir: as peças de Macha<strong>do</strong> de Assis não<br />
apresentam grandes qualidades em si. Tivesse o autor cultiva<strong>do</strong><br />
apenas o teatro, seu nome seria absolutamente secundário na<br />
Literatura Brasileira”.<br />
Rompen<strong>do</strong> o tradicional, Macha<strong>do</strong> frustra seu público teatral.<br />
Por mais estranho que possa parecer, nosso grande escritor não<br />
alcançou sucesso como dramaturgo. Suas comédias possuem<br />
intrigas simplórias e uma trama linear, ausência de peripécias<br />
complicadas e escassez de assuntos. As virtudes prendem-se<br />
a negações: não apresentam mau gosto, não se entregam a<br />
exageros, não admitem melodramaticidade. São peças curtas<br />
(às vezes com um só ato), cuja preocupação figura, quase<br />
sempre, em episódios relativos ao matrimônio, aos amuos <strong>do</strong><br />
casal ou as primícias <strong>do</strong> amor.<br />
O teatro machadiano é conheci<strong>do</strong> como o teatro da brevidade.<br />
E nesse quesito, Macha<strong>do</strong> é ti<strong>do</strong> como o dramaturgo da<br />
limpeza, da economia. O que sustenta o andamento da peça<br />
não é a ação, propriamente dita, mas os sofistica<strong>do</strong>s diálogos<br />
proferi<strong>do</strong>s pelos seus personagens; uma linguagem fina e<br />
requintada. Para saber se determina<strong>do</strong> personagem ama outro<br />
é necessário que esse o diga, pois o especta<strong>do</strong>r não o percebe,<br />
não o sente.<br />
Quan<strong>do</strong> é necessária a ausência de uma personagem<br />
no palco, as escusas menos elaboradas socorrem o<br />
andamento da trama: faz-se que um leque caia das mãos<br />
para o jardim; que alguém esteja a esperar o interlocutor<br />
em casa; que este saia para deixar um cartão de visita<br />
na propriedade vizinha: ou que simplesmente se recolha<br />
aos aposentos, para logo depois voltar. É verdade que é<br />
esse o estilo <strong>do</strong> cotidiano, forma<strong>do</strong> mais <strong>do</strong>s pequenos<br />
hábitos <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s gestos excepcionais. O leitor sente-se<br />
contrafeito, porém, com a pobreza <strong>do</strong> poder inventivo,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 109
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
acanhamento de meios que acaba por depauperar o<br />
resulta<strong>do</strong> (LOYOLA, 1998, p194).<br />
Entretanto, a ironia e a dissimulação, elementos presentes<br />
nos romances e contos de Macha<strong>do</strong>, também transbordam<br />
<strong>do</strong> caráter das personagens teatrais. É visan<strong>do</strong> destacar esse<br />
comportamento, tão comum nas obras consagradas desse<br />
escritor, que procuraremos fazer uma breve análise da peça As<br />
forcas caudinas.<br />
Comédia realista, escrita entre 1863 e 1865, não apresenta<br />
a figura <strong>do</strong> resoneur. O público retrata<strong>do</strong> é a elite carioca; o<br />
ambiente, familiar. É uma peça em <strong>do</strong>is atos com um núcleo<br />
reduzi<strong>do</strong>: o casal Margarida e Seabra, recém-casa<strong>do</strong>s; o amigo<br />
ausente que retorna, Tito; a amiga íntima <strong>do</strong> casal, Emília, e o<br />
coronel Aleixo Cupi<strong>do</strong> V, enamora<strong>do</strong> desta.<br />
Apesar de se tratar de uma peça breve, As forcas caudinas<br />
apresentam to<strong>do</strong>s os elementos característicos da comédia.<br />
Os personagens aparecem como peças dispostas sobre um<br />
tabuleiro de xadrez, prontos para proferirem audaciosos<br />
diálogos. A comicidade pauta-se na linha <strong>do</strong> seguinte provérbio<br />
popular “o feitiço que cai contra o feiticeiro”; idéia espirituosa<br />
com feitio moral comum nas peças de Macha<strong>do</strong>. Aquele que<br />
procura enganar e simular, acaba sen<strong>do</strong> o engana<strong>do</strong>.<br />
Aliás, as primeiras peças machadianas seguem o modelo <strong>do</strong>s<br />
provérbios franceses, observação feita por Quintino Bocaiúva:<br />
“As tuas comédias são para serem lidas e não representadas”<br />
(MAGALDI, 2004, p. 125). Uma e outra coisa lembram o<br />
teatro de Musset, o teatro para ser aprecia<strong>do</strong> numa poltrona,<br />
não num palco. Entretanto, sobressaem das peças machadianas<br />
diálogos cobertos de uma polidez impecável. Uma sofisticação<br />
encanta<strong>do</strong>ra.<br />
O título da peça já nos põe frente à marca registrada desse<br />
escritor. Constitui-se de uma expressão idiomática rebuscada:<br />
passar pelas forcas caudinas é como render-se, dar-se por<br />
venci<strong>do</strong>. É uma metáfora referente à guerra; nesse caso, uma<br />
110 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
guerra sentimental, uma luta entre <strong>do</strong>is seres apaixona<strong>do</strong>s e<br />
egoístas, reféns da vingança: Tito e Emília.<br />
Quanto ao ambiente sob a qual a peça é montada, percebemos<br />
que se trata de um espaço <strong>do</strong>méstico: ora o recanto de amor<br />
de Margarida e Seabra, ora a casa de Emília. Diremos, ainda,<br />
que se trata de um “campo de batalha”: de um la<strong>do</strong> o feliz casal<br />
em clima de lua-de-mel, gozan<strong>do</strong> das delícias <strong>do</strong> amor; uma<br />
espécie de “casamento perfeito”.<br />
Seabra (fechan<strong>do</strong> o livro): É melhor. As coisas boas não<br />
se gozam de uma assentada Guardemos um boca<strong>do</strong><br />
para a noite. Demais era já tempo que eu passasse <strong>do</strong><br />
idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.<br />
Margarida: Jesus! Parece que começamos a lua-de-mel.<br />
Seabra: Parece e é. E se o casamento não fosse<br />
eternamente isto o que poderia ser? A ligação de duas<br />
existências para meditar discretamente na melhor<br />
maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor<br />
de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um eterno<br />
namoro. Não pensas como eu?<br />
Margarida: Sinto...<br />
Seabra: Sentes, é quanto basta (ASSIS, 2003, p. 01).<br />
Vale destacarmos que por mais romântica que possa parecer a<br />
cena, há certo exagero amoroso nas palavras de Seabra. Este<br />
profere to<strong>do</strong> um “discurso filosófico” sobre as faces <strong>do</strong> amor,<br />
os nuances <strong>do</strong> casamento e as alegrias que este proporciona;<br />
entretanto, ao finalizar, encaminha o especta<strong>do</strong>r/leitor para o<br />
cômico, causan<strong>do</strong> certo lisonjeio na platéia que, talvez, esperava<br />
que o discurso terminasse deixan<strong>do</strong> uma aura romântica: “A<br />
ligação de duas existências para meditar discretamente na<br />
melhor maneira de comer o maxixe e o repolho?”. Afinal,<br />
que ligação haveria entre o amor e a gastronomia? Artifícios<br />
machadianos.<br />
Se Seabra e Margarida desfrutam da felicidade conjugal,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 111
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
em posição de defesa, no la<strong>do</strong> adversário há o amigo Tito;<br />
totalmente alheio ao casamento, incisivo e irônico com relação<br />
ao amor.<br />
Margarida: Tem horror ao casamento?<br />
Tito: Não tenho vocação. É puramente um caso de<br />
vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder<br />
o tempo e o sossego. Desde muito estou convenci<strong>do</strong><br />
disto.<br />
(...)<br />
Tito: [...] Entre um amor que se oferece e... uma partida<br />
de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete (ASSIS,<br />
2003, p. 05-06).<br />
É importante atentarmos para a figura de Tito que é o<br />
personagem nortea<strong>do</strong>r da ação, é ele quem motiva a “guerra”<br />
que se desencadeia na peça. Ao entrar em cena, interrompen<strong>do</strong><br />
o diálogo íntimo entre Margarida e Seabra, dá início ao<br />
intrigante jogo de dissimulações que se desenrolará. A paz<br />
reinante e o clima romântico é interrompi<strong>do</strong> pela chegada<br />
inesperada deste.<br />
Também contrastan<strong>do</strong> com a perfeição <strong>do</strong> amor conjugal,<br />
temos a figura de Emília, que entra em campo com um único<br />
objetivo: derrotar Tito e fazê-lo passar pelas “forcas caudinas”;<br />
e, assim, lógico, enaltecer o seu ego feminino. Aliás, Emília nos<br />
parece, de certo mo<strong>do</strong>, a figura incisivamente mais dissimulada<br />
desta peça, fican<strong>do</strong> a ironia machadiana, aqui, muito bem<br />
representada por Tito.<br />
Além de ser uma jovem viúva (vinte e cinco anos) e ter segun<strong>do</strong><br />
Tito “exporta<strong>do</strong> <strong>do</strong>is mari<strong>do</strong>s para o outro mun<strong>do</strong>, estan<strong>do</strong> à<br />
espera de exportar o terceiro”, tu<strong>do</strong> isso em menos de <strong>do</strong>is<br />
anos, é Emília quem demonstra entender mais de amores e<br />
relacionamentos em toda a peça. Personagem complexa,<br />
revela o prazer que sente em subjugar o sexo oposto aos seus<br />
caprichos e, posteriormente, desprezá-los.<br />
112 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Emília: Lembra-me um <strong>do</strong> mesmo gênero que este...<br />
Foi já há tempos, andava sempre a gabar-se da sua<br />
isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos<br />
da China: admirava-as e nada mais. Coita<strong>do</strong>! Caiu em<br />
menos de um mês. Margarida, vi-o beijar-me a ponta<br />
<strong>do</strong>s sapatos... depois <strong>do</strong> que desprezei-o.<br />
Margarida: Que fizeste?<br />
Emília: Ah! Não sei o que fiz. Fiz o que todas fazemos.<br />
Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o<br />
sexo e abati o orgulhoso (ASSIS, 2003, p. 13).<br />
É com esse pensamento, “Vinguei o sexo e abati o orgulhoso”,<br />
que Emília trava com Tito um intrigante combate. A partir daí<br />
desenrola-se to<strong>do</strong> um jogo de dissimulações com relação ao<br />
seu comportamento. O que ela não sabe é que seu fingimento<br />
é, na verdade, reflexo da sua alma.<br />
Os personagens presentes na peça em questão são modelos<br />
machadianos. Segun<strong>do</strong> Magaldi (2004, p. 129) “Os tipos são<br />
simples, defini<strong>do</strong>s numa ação linear, distantes das paixões mais<br />
ar<strong>do</strong>rosas que poderiam abrir-lhes perspectivas amplas, e ainda<br />
assim, desenham-se, no mais das vezes, com sutileza que faz<br />
supor lutas íntimas”.<br />
É importante atentarmos para o mo<strong>do</strong> como é disseca<strong>do</strong> o<br />
caráter de Emília. Para Seabra, apesar de ser uma “boa senhora”<br />
falava demais.<br />
Seabra: A Emília faz um grande cavalo de batalha da sua<br />
isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está<br />
ainda nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e<br />
casar-se menos (ASSIS, 2003, p. 02).<br />
Para Tito, uma mulher audaciosa, galantea<strong>do</strong>ra, caprichosa e<br />
“sem raríssimas qualidades”.<br />
Tito: Não sei... ela é uma boa senhora, um pouco<br />
secantezinha...muito dada à poesia...ora eu sou to<strong>do</strong><br />
prosa...(baten<strong>do</strong> no estômago). Há prosa? (ASSIS, 2003,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 113
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
p. 24)<br />
Observemos, ainda, o descaso de Tito, na verdade, certo<br />
despeito; como se a presença de Emília não lhe causasse<br />
nenhuma comoção: ela é dada a sentimentos, galanteios,<br />
preocupada com as palavras; ele, preocupa<strong>do</strong> com a razão,<br />
com os sentimentos físicos, a fome, nesse caso.<br />
De acor<strong>do</strong> com Margarida, Emília era a amiga de todas as horas,<br />
mas “perigosa” e vingativa. O que, entretanto, não a impede de<br />
compactuar com o joguinho de conquista e vingança. Talvez,<br />
fosse justamente esse poder de dissimulação presente no<br />
comportamento da amiga o que a intrigava e a seduzia.<br />
Margarida: Dissimulada!<br />
Emília (rin<strong>do</strong>): Por que dizes isso?<br />
Margarida: Por que já te vejo tentada a uma vingança<br />
nova.<br />
Emília: Eu? Ora, qual!<br />
Margarida: Que tem? Não é crime...<br />
Emília: Não é, decerto; mas...Veremos!<br />
Margarida: Ah! Serás capaz?<br />
Emília (com um olhar de orgulho): Capaz?<br />
Margarida: Beijar-te-á ele a ponta <strong>do</strong>s sapatos?<br />
Emília (apontan<strong>do</strong> com o leque para o pé): E hão de ser<br />
estes... (ASSIS, 2003, p. 14-15).<br />
Em As forcas caudinas as relações entre as personagens são<br />
enredadas e enigmáticas. A peça constitui-se de um grande<br />
jogo de vaidade e dissimulações, fortemente marcada pelo<br />
tom <strong>do</strong>s diálogos, tonalidade característica das conversas de<br />
salão. A linguagem de meios tons apresenta falas insinuantes e<br />
estudadas; as personagens parecem pesar o que dizem. E em<br />
alguns momentos, os diálogos apresentam uma escala que vai<br />
da ironia ao sarcasmo.<br />
114 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Como em toda comédia há sempre uma personagem<br />
ridicularizada, o grotesco é, aqui, muito bem representa<strong>do</strong><br />
na figura estapafúrdia <strong>do</strong> Coronel Aleixo Cupi<strong>do</strong> V. Nome,<br />
por sua vez, bem sugestivo para uma figura de alta patente<br />
no exército. Se sua posição social impõe certo respeito, seu<br />
comportamento é <strong>do</strong>s mais intrigantes e cômicos. Se para<br />
Aristóteles, a ação cômica deve ser absurda (BENDER, 1996,<br />
p. 22), o coronel faz jus ao papel.<br />
Alvo das ironias de Tito e das zombarias de Emília, o coronel<br />
é na verdade um parvo. Primeiro: “Namora a Emília, sem ser<br />
namora<strong>do</strong>” (ASSIS, 2003, p. 08). Segun<strong>do</strong>: é capaz de tu<strong>do</strong><br />
para conquistar a amada. Aliás, o presente encomenda<strong>do</strong> para<br />
Emília é bastante cômico, chegan<strong>do</strong> a transformar o coronel<br />
numa figura inimaginável.<br />
Emília: Sabem que o Sr. Coronel vai fazer-me um<br />
presente?<br />
Seabra: Ah!...<br />
Margarida: O que é?<br />
Coronel: É uma insignificância, não vale a pena.<br />
Emília: Então, não acertam? É um urso branco.<br />
Seabra e Margarida: Um urso!<br />
Emília: Está para chegar, mas só ontem é que me deu<br />
notícia...<br />
Tito (baixo a Seabra): Com ele faz um par.<br />
Margarida: Ora, um urso!<br />
Coronel: Não vale a pena. Contu<strong>do</strong> mandei dizer que<br />
desejava <strong>do</strong>s mais belos. Ah! Não fazem idéia <strong>do</strong> que é<br />
um urso branco! Imaginem que é to<strong>do</strong> branco!<br />
Tito: Ah!...<br />
Coronel: É um animal admirável.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 115
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Tito: Eu acho que sim. (a Seabra) Ora vê tu, um urso<br />
branco que é to<strong>do</strong> branco! (ASSIS, 2003, p. 07-08)<br />
Além da insensatez <strong>do</strong> presente, não podemos deixar de<br />
destacar a estupidez de Aleixo Cupi<strong>do</strong>; bem como a ironia nas<br />
palavras de Tito, ditas a meia voz para Seabra. Quan<strong>do</strong> Emília<br />
diz que ganhará um urso <strong>do</strong> coronel, Tito responde: ”Com ele<br />
faz um par”; ou seja, ambos gor<strong>do</strong>s, sonsos, inúteis e parvos.<br />
A redução da tonalidade de voz, representada na peça pelo uso<br />
<strong>do</strong>s parênteses, revela o sarcasmo íntimo e o veneno destila<strong>do</strong><br />
pelas personagens. Esse jogo de afinações da linguagem<br />
representa recursos polifônicos emprega<strong>do</strong>s por Macha<strong>do</strong><br />
para proporcionar o riso <strong>do</strong> leitor; e são usa<strong>do</strong>s, ainda, para<br />
medir o grau de ironia <strong>do</strong>s diálogos.<br />
Vale destacarmos, também, o uso de “conversas e<br />
desconversas”, utiliza<strong>do</strong> aqui como mecanismo cômico: ao<br />
mesmo tempo em que Tito conversa com o Coronel, fala deste<br />
para Seabra. Esses recursos representam o contraste entre os<br />
senti<strong>do</strong>s manifestos e os senti<strong>do</strong>s ocultos, o que se diz e o que<br />
realmente se queria dizer.<br />
Quanto à figura <strong>do</strong> coronel, apesar da estupidez de sua pessoa,<br />
este “serve” para suprir as vaidades de Emília; mesmo que<br />
o tempo to<strong>do</strong>, ela passe tentan<strong>do</strong> se livrar de sua presença<br />
inoportuna.<br />
Emília: Eu sei lá! Mas afinal de contas, não é mau<br />
homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas<br />
as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.<br />
Margarida: Enfim, se não passa da declaração semanal!...<br />
Emília: Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro<br />
infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de<br />
casa[...] (ASSIS, 2003, p. 12)<br />
Com relação a Tito, não podemos deixar de realçar características<br />
de seu caráter, que o faz um “joga<strong>do</strong>r” à altura de Emília. Se<br />
para Seabra ele é o amigo que sofreu uma desilusão amorosa, e<br />
116 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
por isso, alheio ao casamento; para Margarida e Emília Tito é uma<br />
espécie de “coisa”, um “homem incapaz de amar”, um vai<strong>do</strong>so e<br />
orgulhoso, um dissimula<strong>do</strong> que merece ser corrigi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>.<br />
O comportamento de Tito com Emília revela-nos, também, um<br />
homem frio e calculista; disposto a irritá-la e desprezá-la como<br />
mulher. Há uma passagem de destaque na peça, em que fica bem<br />
latente o descaso <strong>do</strong> personagem e a falta de sentimentos levan<strong>do</strong><br />
o leitor/especta<strong>do</strong>r a rir e, até mesmo, a sentir certa “pena” de<br />
Emília. A ironia nas palavras de Tito chega a ser gritante.<br />
Tito (folhean<strong>do</strong> o livro): Oh! Essa... está salva!<br />
Emília (depois de uma pausa) Está admiran<strong>do</strong> a beleza <strong>do</strong>s<br />
versos?<br />
Tito: Não senhora; estou admiran<strong>do</strong> a beleza da impressão.<br />
Já se imprime bem no Rio de Janeiro. Aqui há anos era uma<br />
desgraça. V. Exa. há de conservar ainda alguns livros de<br />
impressão antiga...<br />
Emília: Não, senhor; eu nasci depois que se começou a<br />
imprimir bem.<br />
Tito (com a maior frieza): Ah! (deixa o livro)<br />
(...)<br />
Emília: [...] Em que medita? No amor? Sonha com os anjos?<br />
(ameigan<strong>do</strong> a voz) A vida <strong>do</strong> amor é a vida <strong>do</strong>s anjos... é a<br />
vida <strong>do</strong> céu...(ven<strong>do</strong>-o com os olhos fecha<strong>do</strong>s) Dorme!...<br />
Dorme!...<br />
Tito (despertan<strong>do</strong>, com espanto): Dorme?... Quem? Eu?...<br />
Ah! o cansaço...(levanta-se) desculpe...é o cansaço...cochilei...<br />
também Homero cochilava...Que há? (ASSIS, 2003, p. 21-<br />
22)<br />
Na cena nove <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ato, ocorre a queda das máscaras<br />
das personagens Quan<strong>do</strong> Emília e Tito encontram-se só, ela<br />
lhe confessa o amor, deixan<strong>do</strong>-o perturba<strong>do</strong>. Nem mesmo<br />
o descaso recebi<strong>do</strong> e as ironias investidas, fazem Emília se<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 117
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
calar. Como ela mesma afirma para Margarida: “Quis fazer<br />
fogo e queimei-me nas mesmas chamas! (ASSIS, 2003, 41).”<br />
Assim, esse jogo de relações de poder entre Tito e Emília, acaba<br />
ten<strong>do</strong> um final inespera<strong>do</strong>. Emília propõe o duelo e Tito vence<br />
sem precisar lutar. É ela quem, na verdade, acaba passan<strong>do</strong> pelas<br />
“forcas caudinas”. Ao tentar seduzir para depois desprezar, acaba<br />
se apaixona<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong> correspondida. Tito, lógico, se rende, mas<br />
com certa categoria, não perden<strong>do</strong> a oportunidade de se mostrar<br />
incisivo e superior com relação ao amor, levan<strong>do</strong> Emília a confessar<br />
a derrota.<br />
Tito: (a Emília) Aceita a minha mão? (estende-lhe a mão)<br />
Emília (alegremente): Oh! Sim! (dá-lhe a mão)<br />
Margarida: Bravo!<br />
Tito: Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu<br />
devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um<br />
tanto original e gosto de fazer inversão em tu<strong>do</strong>.<br />
Emília: Pois, sim; mas de um ou de outro mo<strong>do</strong> sou feliz.<br />
Contu<strong>do</strong>, um remorso me surge na consciência. Dou-lhe<br />
uma felicidade tão completa como a recebo?<br />
Tito: Remorso, se é sujeita aos remorsos, deve ter um, mas<br />
por motivo diverso. Minha senhora, V. Exa. está passan<strong>do</strong><br />
neste momento pelas forcas caudinas (ASSIS, 2003, 42.)<br />
Após o “final <strong>do</strong> jogo”, como artifício machadiano, a peça não<br />
poderia apenas terminar com a promessa de casamento entre<br />
Emília e Tito. Era necessário, ainda, que o cômico desse suas caras<br />
pela última vez. Entra em cena, assim, Aleixo Cupi<strong>do</strong>, para fechar<br />
“com chave de ouro” tal comédia.<br />
E, mais uma vez, Macha<strong>do</strong> lança mão da ironia para conquistar<br />
seus leitores/especta<strong>do</strong>res.<br />
Coronel: Tenho esta<strong>do</strong> à espera de dar uma boa notícia.<br />
Recebi uma carta que me dá parte de que o urso está na<br />
alfândega.<br />
118 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Emília: Pois vá fazer-lhe companhia<br />
Coronel: O quê?<br />
Tito: D. Emília só precisa agora de um urso: sou eu<br />
(ASSIS, 2003, 44).<br />
Desse mo<strong>do</strong>, fica para nós leitores críticos a seguinte questão:<br />
será mesmo o teatro machadiano um teatro de poltrona? E<br />
suas peças, não apresentam qualidade? Não são para o palco?<br />
Bom, que o nosso amigo Quintino de Bocaiúva continue<br />
esperan<strong>do</strong> compreender Macha<strong>do</strong> apenas de sua poltrona. Ah!<br />
E que lhe faça companhia um certo urso branco que, por sinal,<br />
é to<strong>do</strong> branco!<br />
REFERÊNCIAS<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Teatro de Macha<strong>do</strong> de Assis. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2003, p. 01. Textos literários em meio<br />
eletrônico. Disponível em http:// www.<strong>do</strong>miniopublico.gov.<br />
br. Acesso em 08 de outubro de 2008.<br />
BENDER, Ivo. Comédia e riso: uma poética <strong>do</strong> teatro cômico.<br />
Porto Alegre: Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> Rio Grande<br />
<strong>do</strong> Sul, 1996.<br />
LOYOLA, Cecília. O teatro de Macha<strong>do</strong> de Assis: lega<strong>do</strong><br />
póstumo. In: SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José<br />
Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e (Org.).<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998,<br />
p. 191-204.<br />
MAGALDI, Sábato. Panorama <strong>do</strong> teatro brasileiro. São Paulo:<br />
Global, 2004.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 14/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 21/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 119
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR EM DOM<br />
CASMURRO<br />
Maria Helena Laureano<br />
Ufes<br />
Resumo: Nos romances <strong>do</strong> século XIX, narra<strong>do</strong>s em primeira<br />
pessoa, como Dom Casmurro, há uma pré-seleção de fatos e<br />
idéias com a possibilidade ou não de confirmação desses fatos.<br />
Isso ocorre porque o narra<strong>do</strong>r é o tradutor de sua história, o<br />
autor é o tradutor de seu tempo (de sua visão sobre o mun<strong>do</strong>),<br />
o leitor é o tradutor da história contada pelo narra<strong>do</strong>r no tempo<br />
real da leitura: hoje. Por isso, a relação narra<strong>do</strong>r e leitor desse<br />
romance deve ser analisada levan<strong>do</strong> em conta as interferências<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na fala <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> presente na interpretação<br />
<strong>do</strong> leitor.<br />
Palavras-chave: Narra<strong>do</strong>r. Leitor. Tradução.<br />
Abstract: In the novels of the nineteenth century, narrated in<br />
first person, as Sun Casmurro, there is a pre-selection of facts<br />
and ideas with the possibility of confirmation or otherwise of<br />
these facts. This is because the narrator is the translator of its<br />
history, the author is the translator of his time (of his vision on<br />
the world), the reader is the translator of the story told by the<br />
narrator in real time of reading today. Therefore, the reader<br />
and narrator of this novel should be considered taking into<br />
account the interference of the narrator speaks in the past and<br />
the present in the interpretation of the reader.<br />
Keywords: Narrator. Reader. Translation.<br />
DA NARRATIVA<br />
Dom Casmurro: uma narrativa que, logo no início, ainda no<br />
título, se apresenta como um romance autobiográfico, pois<br />
120 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
utiliza como título o nome <strong>do</strong> personagem principal e, como<br />
deixa claro nos primeiros capítulos, vai narrar em primeira<br />
pessoa fatos de sua vida. Logo, trata-se de uma autobiografia<br />
escrita e narrada em vida por um narra<strong>do</strong>r-personagem.<br />
Comecemos por aí: narra<strong>do</strong>r personagem? Romance<br />
autobiográfico? Dom Casmurro? Ora, já temos vários<br />
indícios de que não se trata de um romance tradicional, pois<br />
o personagem principal, que também é o autor e narra<strong>do</strong>r da<br />
história, vai contar sua vida estan<strong>do</strong> ainda vivo (ao contrário<br />
de Brás Cubas <strong>do</strong> mesmo autor), mas ele próprio é uma ficção,<br />
sua vida é uma história inventada. Talvez até por isso, nos <strong>do</strong>is<br />
primeiros capítulos, uma narrativa introspectiva e altamente<br />
psicológica dá o “pontapé” inicial no romance, traçan<strong>do</strong> seu<br />
perfil na tentativa de se auto-afirmar como real para a ficção,<br />
confirman<strong>do</strong> também a veracidade <strong>do</strong> que vai contar. (Dar seu<br />
próprio nome à história, explicar o porquê (DO TÍTULO, p.<br />
15-16)) e expor os motivos que o levaram a essa empreitada<br />
é apenas o início de uma tentativa de se apresentar para o<br />
leitor, numa entrega total, falar de seu drama pessoal: “O meu<br />
fim era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a<br />
a<strong>do</strong>lescência.” (DO LIVRO, p. 17). Em seguida, com um ar<br />
de melancolia, herança <strong>do</strong> Romantismo que ainda impregnava<br />
as obras daquela época, denuncia-se a si mesmo morto por<br />
dentro, feito só de aparências, um “vivo-morto”:<br />
[...] Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem<br />
o que fui. Em tu<strong>do</strong>, se o rosto é igual, a fisionomia é<br />
diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem<br />
consola-se mais ou menos das pessoas que perde;<br />
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tu<strong>do</strong>. O que aqui<br />
está é, mal comparan<strong>do</strong>, semelhante à pintura que se<br />
põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o<br />
hábito externo, como se diz nas autópsias; o inferno<br />
não agüenta tinta. Uma certidão que desse vinte anos<br />
de idade poderia enganar os estranhos, como to<strong>do</strong>s os<br />
<strong>do</strong>cumentos falsos, mas não a mim [...].<br />
Nesse trecho, distancia-se de si mesmo, <strong>do</strong> que fora, para<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 121
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
recompor sua história; surge, agora, o narra<strong>do</strong>r onisciente<br />
e onipresente, mas que precisa afastar-se <strong>do</strong> que viveu<br />
como experiência própria para deixar o personagem “Dom<br />
Casmurro” revivê-la.<br />
O Dom Casmurro narra<strong>do</strong>r faz parte da realidade da ficção<br />
e cria um Dom Casmurro personagem que irá reviver os<br />
acontecimentos na ficção da ficção – ficção crian<strong>do</strong> ficção.<br />
Como já foi dito anteriormente e poderemos perceber no<br />
decorrer desta argumentação, não é uma narrativa tradicional,<br />
pois não tem nenhuma intenção de ensinamento, apenas cria<br />
tensões e não as resolve, gera conflitos, desorienta e não decide<br />
nada. Não pretende resolver tensões e sim instaurá-las. Para<br />
isso, o narra<strong>do</strong>r recorre somente às suas memórias e à de mais<br />
ninguém; uma memória romancista, individual, mas que reflete<br />
o universal ao representar a vida <strong>do</strong> homem moderno com<br />
os ranços da aristocracia decadente no Brasil <strong>do</strong> século XIX.<br />
Uma narrativa que tem um fim em si mesma é, ou quase é,<br />
um solilóquio, fechada como um “casmurro”, que segun<strong>do</strong><br />
o narra<strong>do</strong>r, significa “cala<strong>do</strong>, meti<strong>do</strong> consigo mesmo”. (DO<br />
TÍTULO, P. 15).<br />
No entanto, embora seja típico <strong>do</strong>s romances <strong>do</strong> século XIX,<br />
narra<strong>do</strong>s em primeira pessoa, essa pré-seleção de fatos e idéias<br />
com a possibilidade ou não de confirmação no decorrer <strong>do</strong><br />
texto, em Dom Casmurro é o desencadeamento de diversas<br />
“traduções” que vão interferir e direcionar os rumos da<br />
história. Tradução, aqui, não no senti<strong>do</strong> interlingüístico, mas<br />
no senti<strong>do</strong> intralingüístico, onde quem lê faz a tradução para<br />
si mesmo, levan<strong>do</strong> em conta sua competência para leituras<br />
previsíveis (paráfrases) e leituras possíveis (polissêmicas). Em<br />
Dom Casmurro o narra<strong>do</strong>r é o tradutor de sua história; o autor<br />
é o tradutor de seu tempo, de sua visão sobre o mun<strong>do</strong>; e o<br />
leitor é o tradutor da história contada pelo narra<strong>do</strong>r no tempo<br />
real da leitura: hoje.<br />
Portanto, para analisar a relação existente entre narra<strong>do</strong>r e leitor<br />
em Dom Casmurro, é preciso “entrar no jogo <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r”,<br />
122 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
passar a fazer parte da história, por mais fechada que ela seja.<br />
Só assim o leitor e analista conseguirá entender a história:<br />
viven<strong>do</strong> a narrativa, sentin<strong>do</strong>-a com a mesma profundidade<br />
que o narra<strong>do</strong>r narra, tornan<strong>do</strong>-se um tradutor <strong>do</strong> que o<br />
narra<strong>do</strong>r conta, traduzin<strong>do</strong> para si mesmo.<br />
Até certo ponto, podemos dizer que o leitor projeta em seu<br />
cérebro os sentimentos e pensamentos <strong>do</strong> outro (o narra<strong>do</strong>r)<br />
e faz o mesmo percurso <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r para compreendê-lo,<br />
identifica-se com ele e insere-se nesse ciclo que envolve narra<strong>do</strong>r,<br />
leitor e personagem, como numa teia, e passa a ser responsável<br />
pelo texto, porque cria significa<strong>do</strong>s. Aí está o limite dessa<br />
relação: por mais que o leitor se deixe levar passivamente pela<br />
narrativa, os significa<strong>do</strong>s de leitura que ele cria se darão a partir<br />
de suas próprias experiências. Nesse processo de tradução ele<br />
passa a ser responsável pelo texto que recria, porque interfere<br />
nele. Torna-se um leitor-autor, porque traz a ficção para a sua<br />
realidade, compon<strong>do</strong> seu próprio significa<strong>do</strong>. Por mais fechada<br />
que seja a narrativa, o leitor sempre encontrará orifícios pelos<br />
quais fará sua intervenção no texto.<br />
A RELAÇÃO NARRADOR E LEITOR DE DOM<br />
CASMURRO: PASSIVIDADE OU INTERAÇÃO?<br />
O narra<strong>do</strong>r de Dom Casmurro inaugura sua história com um ar<br />
de pessimismo, de descrença com o mun<strong>do</strong>, com seu meio, um<br />
niilismo próprio <strong>do</strong>s românticos:<br />
Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos,<br />
outras de menos, e quase todas crêem na mocidade.<br />
Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua<br />
que falam obrigam muita vez a consultar os dicionários,<br />
e tal freqüência é cansativa.<br />
[...] Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações<br />
raras. O mais <strong>do</strong> tempo é gasto em hortar, jardinar e ler;<br />
como bem e não durmo mal (DOLIVRO, p. 17).<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 123
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
Mas, apesar de deixar transparecer tanta desesperança e<br />
melancolia, to<strong>do</strong> esse niilismo denuncia uma relação artificial<br />
<strong>do</strong> personagem com o meio; um niilismo que o próprio ato da<br />
escrita contradiz:<br />
[...] Foi então que os bustos pinta<strong>do</strong>s nas paredes<br />
entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles<br />
não alcançavam reconstituir-me os tempos i<strong>do</strong>s, pegasse<br />
da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a<br />
ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao<br />
poeta, não o <strong>do</strong> trem, mas o Fausto: Aí vindes outra vez,<br />
inquietas sombras...? (DO LIVRO, p. 18, grifo <strong>do</strong> autor).<br />
Queria reviver na escrita seu passa<strong>do</strong>, suas memórias; ainda<br />
que fossem momentos sofri<strong>do</strong>s e dignos de esquecimento,<br />
queria revivê-los. E escrever era a melhor forma de eternizar.<br />
Até que ponto é possível escrever suas próprias experiências<br />
com imparcialidade, sem reconstruí-las de outro mo<strong>do</strong>, a seu<br />
mo<strong>do</strong>, de um mo<strong>do</strong> que justifique seus atos e a si mesmo?...<br />
Ninguém está imune às interferências <strong>do</strong> tempo e espaço em<br />
que vive. Nesse senti<strong>do</strong>, uma autobiografia nunca é trazer de<br />
volta o passa<strong>do</strong> tal qual ele fora, pois, estan<strong>do</strong> em um outro<br />
tempo, o presente, essa escrita vai sofrer as influências desse<br />
tempo, será uma escrita ideal. Quem escreve já é um outro ser<br />
porque, no momento da escrita, já foi afeta<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong><br />
pelas experiências que vai contar. Quem escreve não é o mesmo<br />
que viveu. Por isso, precisamos suspeitar da intencionalidade<br />
de Dom Casmurro em relação ao leitor para quem ele escreve,<br />
e questionar, o tempo to<strong>do</strong>, seu tom filosofante e seu ar de<br />
vitima<strong>do</strong>.<br />
Através da pena convincente de Macha<strong>do</strong> de Assis, Dom<br />
Casmurro recria-se, duplica-se, pois cria uma outra ficção<br />
para um texto que já é ficcional, levan<strong>do</strong> o leitor a sentir-se<br />
penaliza<strong>do</strong> com o sofrimento <strong>do</strong> personagem, tornan<strong>do</strong>-se seu<br />
defensor, seu advoga<strong>do</strong> e, de certo mo<strong>do</strong>, seu cúmplice.<br />
Apesar de uma aparente linearidade, Dom Casmurro é toda<br />
124 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
feita de digressões e, poderíamos dizer que, o personagem<br />
é duplo e bipolar, pois, quem escreve é Dom Casmurro,<br />
quem vive a escrita é Bentinho. Dom Casmurro é, então, um<br />
autor-narra<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong> escreve suas memórias, e narra<strong>do</strong>rpersonagem<br />
quan<strong>do</strong> vive o que narra como Bentinho. Bentinho<br />
é o personagem principal da ficção criada por Dom Casmurro;<br />
mas Dom Casmurro é o personagem principal da ficção criada<br />
por Macha<strong>do</strong> de Assis. Uma ficção dupla, uma dentro da outra,<br />
que gera um personagem também duplo.<br />
Se pudermos utilizar o termo “morte <strong>do</strong> autor” num senti<strong>do</strong><br />
amplo e poético da palavra é nesse caso, pois o autor cria uma<br />
ficção para um texto que já é ficcional e, nem assume, nem<br />
nega sua autoria, porque Dom Casmurro assume o papel de<br />
autor. Se o leitor não ficar atento, esquece tais aspectos e se<br />
perde (ou se encontra) na leitura.<br />
NA SEQÜÊNCIA DA HISTÓRIA: DO TÍTULO. DO<br />
LIVRO. A DENÚNCIA...<br />
Apesar da aparente linearidade, talvez fosse mais correto afirmar<br />
que se trata de uma circularidade: “O meu fim evidente era atar<br />
as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a a<strong>do</strong>lescência.<br />
[...]” ( DO LIVRO, p. 17). Feito. Embora não tenha consegui<strong>do</strong><br />
ligar as duas pontas da vida, ligou as da narrativa. Narra <strong>do</strong><br />
presente, dá certo corte, ou seja, interrompe o tempo para<br />
voltar ao passa<strong>do</strong>. A história dele começa, realmente, ali, com<br />
“A Denúncia”. A partir daí desenvolve-se linearmente no<br />
tempo até chegar novamente ao ponto de partida, o presente.<br />
Atan<strong>do</strong> as duas pontas da linha <strong>do</strong> tempo só pode resultar em<br />
um círculo que, no final, volta ao começo.<br />
Mas, esta não é a finalidade deste capítulo, antes, sua finalidade<br />
é observar, na seqüência da história, pontos relevantes para o<br />
entendimento da relação entre narra<strong>do</strong>r e leitor. Comecemos,<br />
pois, <strong>do</strong> que julgamos ser o começo: “Denúncia”. O narra<strong>do</strong>r<br />
apresenta-nos Bentinho já sob os olhares atentos da família e<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 125
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
despertan<strong>do</strong> para o amor de Capitu. Analisa, em “Um dever<br />
Amaríssimo”, to<strong>do</strong>s os traços <strong>do</strong> perfil físico e psicológico de<br />
José Dias, seu denunciante e “O agrega<strong>do</strong>” da família. Não por<br />
acaso o primeiro personagem secundário a ser apresenta<strong>do</strong> foi<br />
José Dias, autor da denúncia, antes mesmo de nos apresentar<br />
o núcleo genealógico da família no capítulo “D. Glória”.<br />
O agrega<strong>do</strong> foi o primeiro a perceber que os olhares entre<br />
Bentinho e Capitu não eram mais olhares pueris. A denúncia foi<br />
a semente daquele amor que, jogada em terra fértil, germinou.<br />
E Bentinho disse para si mesmo: “É Tempo”<br />
No capítulo seguinte, “A Ópera”, o narra<strong>do</strong>r faz uma<br />
regressão ao presente da ficção “[...] Vinha aqui jantar comigo<br />
algumas vezes [...]”, para explicar a comparação que fazia um<br />
amigo tenor entre a vida e a ópera. Comparações aceitas e<br />
reformuladas por Dom Casmurro ten<strong>do</strong> como a ópera sua<br />
própria vida, iniciam-se as justificativas em favor de Bentinho<br />
e os contatos diretos com o leitor.<br />
Eu, leitor amigo, aceito a teoria <strong>do</strong> meu velho Marcolini,<br />
não só pela verossimilhança, que é muita vez toda<br />
a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à<br />
definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,<br />
depois um quatuor... Mas, não adiantemos; vamos à<br />
primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava,<br />
porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada<br />
principalmente a mim. A mim é que ela me denunciou.<br />
Entre os detalhes de sua criação e educação e os projetos para<br />
o futuro de Bentinho, o narra<strong>do</strong>r tece a história capturan<strong>do</strong> o<br />
leitor para ser sua testemunha. Já que to<strong>do</strong>s morreram, ele quer<br />
o leitor como seu grande jura<strong>do</strong>. Vai construin<strong>do</strong> sua Verdade,<br />
justifican<strong>do</strong>-se o tempo to<strong>do</strong>:<br />
Tu<strong>do</strong> isto me era agora apresenta<strong>do</strong> pela boca de<br />
José Dias, que denunciara a mim mesmo, e a quem eu<br />
per<strong>do</strong>ava tu<strong>do</strong>, o mal que dissera, o mal que fizera, e<br />
o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante,<br />
a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a<br />
126 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu<br />
amava Capitu! “Capitu amava-me” E as minhas pernas<br />
andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de<br />
abarcar o mun<strong>do</strong>. Esse primeiro palpitar da seiva, essa<br />
revelação da consciência a si própria, nunca mais me<br />
esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer<br />
outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser<br />
minha. Naturalmente por ser a primeira.<br />
Mesmo quan<strong>do</strong> Capitu dá o primeiro passo para a<br />
concretização daquele romance, escreven<strong>do</strong> seu nome junto<br />
ao dele, no muro, o narra<strong>do</strong>r defende Bentinho. Uma defesa de<br />
coisa alguma, pois nada havia aconteci<strong>do</strong> ainda. Talvez apenas<br />
para ir confirman<strong>do</strong> a inocência, a ausência de culpa por parte<br />
dele de qualquer coisa que viesse acontecer: “[...] Confissão<br />
de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero<br />
ser poupa<strong>do</strong> [...]”; “[...] Conhecia as regras <strong>do</strong> escrever, sem<br />
suspeitar as <strong>do</strong> amar; tinha orgias <strong>do</strong> latim e era virgem de<br />
mulheres. [...]”. (BENTO/CAPTOLINA, p. 38).<br />
Nos muitos capítulos que se seguem é notável o esforço <strong>do</strong><br />
narra<strong>do</strong>r para convencer o leitor da ingenuidade de Bentinho<br />
e da astúcia de Capitu, como se ela fosse desde sempre, quem<br />
direcionava e manipulava toda a situação com propósitos<br />
escusos e pré-concebi<strong>do</strong>s. Claros ficam tais propósitos na<br />
narração de uma explosão nervosa de Capitu ao saber da<br />
intenção da mãe de Bentinho de mandá-lo para o seminário:<br />
Fiquei aturdi<strong>do</strong>. Capitu gostava tanto de minha mãe, e<br />
minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha<br />
explosão. È verdade que também gostava de mim, e<br />
naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa<br />
bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça<br />
da separação; mas os impropérios, como entender que<br />
lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para<br />
deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que<br />
ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe<br />
é que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um<br />
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DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
rosário, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis<br />
defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a<br />
chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive me<strong>do</strong><br />
fosse ouvida <strong>do</strong>s pais. Nunca a vi tão irritada como<br />
então; parecia disposta a dizer tu<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s. Cerrava os<br />
dentes, abanava a cabeça... Eu, assusta<strong>do</strong>, não sabia que<br />
fizesse; [...] (UM PLANO, p. 45, grifo <strong>do</strong> autor).<br />
Quan<strong>do</strong> passou a explosão “Capitu refletia. A reflexão não era<br />
coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo aperta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
olhos [...]”; “[...] Capitu deixou-se ir rin<strong>do</strong>; depois a conversa<br />
entrou a cochilar e a <strong>do</strong>rmir [...]” (UM PLANO, p. 46). Depois<br />
da reflexão, a conclusão: “-Se eu fosse rica, você fugia, metiase<br />
no parque e ia para a Europa.”; “Como vês, Capitu, aos<br />
quatorze anos, já tinha idéias atrevidas, muito menos que<br />
outras que lhe vieram depois, mas eram só atrevidas em si, na<br />
prática, faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim<br />
proposto, não de salto, mas aos saltinhos, não sei se me explico<br />
bem [...]” (UM PLANO, p. 47).<br />
Neste momento, já está plantada no leitor uma semente<br />
de desconfiança por Capitu e uma árvore, já crescida, de<br />
cumplicidade com Bentinho – ou Dom Casmurro. Sim,<br />
porque é no momento em que o narra<strong>do</strong>r começa a apresentar<br />
Bentinho como “o manipulável e passível de traição” da<br />
história, que Dom Casmurro ganha vida para a narrativa.<br />
Antes, Bentinho era o a<strong>do</strong>lescente que vivia um grande amor<br />
correspondi<strong>do</strong>. Vários outros pontos da narrativa nos mostram<br />
que Capitu era astuciosa, apesar da pouca idade. De forma que<br />
fica difícil não crer em sua traição no final. Mas o leitor, aqui<br />
representa<strong>do</strong> por quem analisa esta relação, é capaz de levantar<br />
outras hipóteses. Tracemos, então, o perfil <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, Dom<br />
Casmurro.<br />
REFLEXÕES DE LEITOR<br />
O PERFIL DO NARRADOR<br />
Dom Casmurro era advoga<strong>do</strong>, aristocrata, composto bem à<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
figura <strong>do</strong>s proprietários escravagistas <strong>do</strong> século XIX, rico por<br />
herança, um homem relativamente comum, mas de caráter<br />
ilustre socialmente, melancólico e bom representante <strong>do</strong><br />
egocentrismo romântico. Entretanto, o tema que ele narra<br />
se dá no tocante a uma questão que atinge a qualquer ser<br />
humano que, sen<strong>do</strong> rico ou pobre, <strong>do</strong> século XIX ou XXI, está<br />
predisposto, de alguma forma: a traição. Sua filosofia de vida –<br />
a busca incansável pela Verdade – o faz transitar sempre entre<br />
as fronteiras da Certeza e da Suspeita, da Mentira e da Verdade,<br />
fronteiras vulneráveis e que, em determina<strong>do</strong>s momentos, não<br />
são opostas, mas constituem apenas pontos de vista diferentes:<br />
“[...] Os olhos de Capitu, quan<strong>do</strong> recebeu o mimo, não se<br />
descrevem; não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos,<br />
claros, lúci<strong>do</strong>s [...]” (UM MEIO-TERMO, p. 103).<br />
O PERFIL DO LEITOR<br />
Eis a questão: qual o leitor? O <strong>do</strong> século XIX, contemporâneo<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, com um perfil bem pareci<strong>do</strong> com o dele por<br />
fazer parte da mesma sociedade, ou o leitor <strong>do</strong> século XXI?<br />
Certamente, naquela época, os leitores desta ficção, homens<br />
e mulheres reais, apedrejariam (ou apedrejaram) mentalmente<br />
Capitu. Nada poderia ser feito em sua defesa, pois as provas<br />
apresentadas por Dom Casmurro seriam suficientes para<br />
sua condenação. Mas, o leitor de hoje lhe daria, no mínimo,<br />
o benefício da dúvida. Embora o narra<strong>do</strong>r tenha o firme<br />
propósito de convencer o leitor de sua Verdade, as fronteiras<br />
que separam a realidade da ficção são, hoje, bastante tênues,<br />
vulneráveis. Fica impossível não fazer uma aproximação entre<br />
a ficção e a realidade, para entender o texto com profundidade.<br />
Nessa aproximação e comparação é que acontece o julgamento<br />
<strong>do</strong> leitor e uma leitura competente se constitui. Como numa<br />
interação entre as linguagens <strong>do</strong> século XIX e XXI, o leitor<br />
refaz, reinventa a história num processo de tradução interna<br />
<strong>do</strong> que lê. Afinal, ninguém e nada está imune às influências e<br />
transformações deste eterno girar universal.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 129
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
O PERFIL DE BENTINHO<br />
Jovem, ingênuo, homem sem determinação.Vive das denúncias<br />
de José Dias: “Juro! Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha me<br />
lembra<strong>do</strong> a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana<br />
oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas<br />
dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim [...]”<br />
(OLHOS DE RESSACA, p. 71); Vivia dependente também<br />
da determinação de Capitu, algo que ela trazia estampa<strong>do</strong> nos<br />
“olhos de ressaca” e nos gestos. Mais tarde, também passa a<br />
viver de outras denúncias, como a de Otelo, personagem de<br />
Shakespeare numa peça de teatro: “Nem eu, nem tu, nem ela,<br />
nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder<br />
mais, tão certo é que o destino, como to<strong>do</strong>s os dramaturgos, não<br />
anuncia as peripécias nem o desfecho [...]” (UMA REFORMA<br />
DRAMÁTICA, p. 141). Até as imitações <strong>do</strong> filho Ezequiel lhe<br />
servem como denúncias, como indícios de uma traição: “[...]<br />
já lhe achei até um jeito <strong>do</strong>s pés de Escobar e <strong>do</strong>s olhos...”<br />
(AS IMITAÇÕES DE EZEQUIEL, p. 201); “[...] Alguns <strong>do</strong>s<br />
gestos já lhe iam fican<strong>do</strong> mais repeti<strong>do</strong>s, como os das mãos e<br />
pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o mo<strong>do</strong> de voltar<br />
da cabeça deste, quan<strong>do</strong> falava, e o de deixá-la cair , quan<strong>do</strong> ria<br />
[...]” (FILHO DO HOMEM, p. 208).<br />
Assim, vai construin<strong>do</strong> a traição da esposa e <strong>do</strong> amigo sobre<br />
os gestos de Ezequiel, embora ele mesmo admitisse, eram só<br />
imitações: “Escobar concor<strong>do</strong>u comigo e insinuou que alguma<br />
vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecen<strong>do</strong>-se<br />
umas com as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas<br />
matérias que eu não sabia bem nem mal. Tu<strong>do</strong> podia se [...]”<br />
(AMIGOS PRÓXIMOS, p. 210).<br />
O LEITOR, ADVOGADO DO DIABO<br />
Após traçar o perfil <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e situá-lo no tempo e espaço<br />
em que a obra foi escrita, e situar o leitor como sen<strong>do</strong> o <strong>do</strong>s<br />
dias atuais, consideran<strong>do</strong> todas as referências tecnológicas que<br />
130 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
a contemporaneidade nos oferece, é possível confirmar que o<br />
leitor de hoje, ao ler Dom Casmurro, torna-se também autor<br />
da obra, pois recria, compõe uma nova realidade para a ficção.<br />
Dessa forma, é impossível não analisarmos a narração de Dom<br />
Casmurro sem dar voz e vez aos outros personagens. Como se<br />
trata de uma narração onde apenas o narra<strong>do</strong>r fala, até mesmo<br />
quan<strong>do</strong> as falas e pensamentos são <strong>do</strong>s outros personagens é o<br />
narra<strong>do</strong>r quem os transmite, moldan<strong>do</strong>-os e interpretan<strong>do</strong>-os<br />
a seu mo<strong>do</strong>, para convencer o leitor.<br />
No entanto, em várias passagens o próprio narra<strong>do</strong>r se<br />
contradiz e demonstra suas dúvidas frente à Verdade, que<br />
parecia já incontestável: “A viúva era realmente amantíssima.<br />
Assim se desvaneceu de to<strong>do</strong> a ilusão da minha vaidade. Não<br />
seria o mesmo caso de Capitu?” (CISMANDO, p. 220).<br />
O narra<strong>do</strong>r também se trai ao escrever uma passagem onde<br />
expressa uma ingenuidade incomum em Capitu, até então:<br />
“-Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão<br />
esquisita? Perguntou-me Capitu. Só vi duas pessoas assim, um<br />
amigo de papai e o defunto Escobar [...]” (ANTERIOR AO<br />
ANTERIOR, p. 225). Também deixa transparecer o quanto<br />
Capitu se submeteu às suas vontades e tentou desviá-lo <strong>do</strong><br />
verme <strong>do</strong> ciúme que o corroía: “[...] Dali em diante foi cada vez<br />
mais <strong>do</strong>ce comigo; não me ia esperar à janela para não espertarme<br />
os ciúmes [...]” (DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS, p. 206);<br />
“[...] E, sem se lhe dar das visitas, nem repara se havia algum<br />
cria<strong>do</strong>, abraçou-me e disse-me que, se quisesse pensar nela, era<br />
preciso pensar primeiro na minha vida. [...]” ( PUNHADO<br />
DE SUCESSOS, p. 222); “As minhas cessaram logo. Fiquei a<br />
ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhan<strong>do</strong> a furto para a<br />
gente que estava na sala [...]” (OLHOS DE RESSACA, p. 216).<br />
AO VERME QUE CORRÓI O HOMEM, O CIÚME<br />
Naquela busca incansável pela Verdade, ela se tornou idéia<br />
fixa; havia algo de insano nesta busca, incomum para o leitor<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 131
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
de hoje talvez, mas muito compreensível para um narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />
século XIX, melancólico, introspectivo, que queria a qualquer<br />
custo encontrar justificativa para sua “casmurrice”. Construiu<br />
sua “casmurrice” com bases bem sólidas, seu alicerce foi o<br />
ciúme. Bentinho foi se transforman<strong>do</strong> em Dom Casmurro aos<br />
poucos, à medida que seu ciúme crescia. Tinha ciúme de tu<strong>do</strong>;<br />
<strong>do</strong> cavaleiro que passasse à rua, <strong>do</strong>s braços de Capitu e até <strong>do</strong><br />
mar:<br />
[...] O cavaleiro não se contentou de ir andan<strong>do</strong>, mas<br />
voltou a cabeça para o nosso la<strong>do</strong>, o la<strong>do</strong> de Capitu, e<br />
olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava,<br />
a cabeça <strong>do</strong> homem deixava-se ir voltan<strong>do</strong> para trás.<br />
Tal foi o segun<strong>do</strong> dente de ciúme que me mordeu. [...]<br />
(O CONTRA-REGRA, p. 143); Escapei ao agrega<strong>do</strong>,<br />
escapei a minha mãe não in<strong>do</strong> ao quarto dela, mas não<br />
escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás<br />
de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à<br />
cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços<br />
com a ponta <strong>do</strong> lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela<br />
tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez.<br />
[...] (O DESESPERO, p. 144); [...] Eram os mais belos<br />
da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento.<br />
Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los,<br />
por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas<br />
alheias. Já não foi assim no segun<strong>do</strong> baile; nesse, quan<strong>do</strong><br />
vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de<br />
os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles, as<br />
mangas pretas, fiquei vexa<strong>do</strong> e aborreci<strong>do</strong>. Ao terceiro<br />
não fui [...]. (OS BRAÇOS, p. 188-189); [...] Uma noite<br />
perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração,<br />
que me deu ciúmes (DEZ LIBRAS ESTERLINAS, p.<br />
189-190).<br />
Por fim, então, passou a ter ciúme de Escobar: “[...] saí, mas<br />
voltei no fim <strong>do</strong> primeiro ato. Encontrei Escobar à porta <strong>do</strong><br />
corre<strong>do</strong>r”. (EMBARGOS DE TERCEIROS, p. 202); e até <strong>do</strong><br />
cadáver de Escobar: “[...] Capitu olhou alguns instantes para<br />
132 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira<br />
lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (OLHOS<br />
DE RESSACA, p. 217). Com o ciúme, cresce também a<br />
desconfiança; e junto aos <strong>do</strong>is cresce Ezequiel:<br />
Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o<br />
corpo, a pessoa inteira, iam se apuran<strong>do</strong> com o tempo.<br />
[...] Escobar vinha assim surgin<strong>do</strong> da sepultura, <strong>do</strong><br />
seminário e <strong>do</strong> Flamengo para sentar-se comigo à mesa,<br />
receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã,<br />
ou pedir-me à noite a bênção de costume. Todas essas<br />
ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para<br />
não me descobrir a mim mesmo e ao mun<strong>do</strong> [...] (O<br />
DEBUXO E O COLORIDO, p. 227).<br />
O capítulo cita<strong>do</strong> anteriormente mais parece um descrever<br />
de um narra<strong>do</strong>r personagem no limiar da sanidade para a<br />
loucura. E Otelo determina sua própria desgraça e a de<br />
outros, que está a caminho. Bentinho encontra na peça de<br />
teatro a gota que faltava para seu devaneio total: “Jantei<br />
fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente<br />
Otelo, que não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto<br />
e estimei a coincidência [...]”; “[...] O último ato mostroume<br />
que não eu, mas Capitu devia morrer. [...]” (OTELO,<br />
p. 231-232). Na época de Otelo, “um lenço bastou para<br />
acender os ciúmes”; na época de Bentinho, ou Dom<br />
Casmurro, “alguma vez há em que nem lençóis há, e valem<br />
só as camisas” (p. 231), e hoje, para o leitor? O que seria<br />
necessário para comprovar a traição de Capitu? A aparência<br />
de Ezequiel seria suficiente?<br />
Certo é que Dom Casmurro, o narra<strong>do</strong>r, criou essa Capitu<br />
infiel pelo seu ciúme, ou melhor seria dizer, pelo ciúme de<br />
Bentinho: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória<br />
já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada<br />
naquela por efeito de algum caso incidente.[...]”<br />
Mas, nem mesmo ele acredita tanto assim nessa Verdade:<br />
“[...] Jesus, filho de Sirach, se soubesse <strong>do</strong>s meus primeiros<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 133
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: ‘Não<br />
tenhais ciúme de tua mulher para que ela não se meta a<br />
enganar-te com a malícia que aprender de ti’[...]”.<br />
Por isso, precisa <strong>do</strong> leitor como seu cúmplice, como um<br />
jura<strong>do</strong> seu: “[...] Mas eu creio que não, e tu concordarás<br />
comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de<br />
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta<br />
dentro da casca”.<br />
Para a ficção, a traição de Capitu e Escobar é fato<br />
comprova<strong>do</strong>. O narra<strong>do</strong>r garante isso:<br />
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica,<br />
e é a suma das sumas, ou o resto <strong>do</strong>s restos, a saber,<br />
que a minha primeira amiga e o meu maior amigo,<br />
tão extremosos ambos e tão queri<strong>do</strong>s também, quis<br />
o destino que acabassem juntan<strong>do</strong>-se e enganan<strong>do</strong>me...<br />
A terra lhes seja leve![...] (E BEM, E O RESTO,<br />
p. 250).<br />
Para o leitor, a conclusão vai depender da relação<br />
estabelecida por ele com o narra<strong>do</strong>r: se foi de passividade<br />
ou dialética. Macha<strong>do</strong> que nos per<strong>do</strong>e, a nós leitores mais<br />
abusa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XXI, mas se o leitor se constitui no ato<br />
da leitura e é como leitura que um texto ganha senti<strong>do</strong>, novas<br />
interpretações surgem e vão surgir sempre, e precisam ser<br />
consideradas. É assim que a literatura renova-se a cada dia<br />
e um texto literário mantém-se vivo através <strong>do</strong>s séculos.<br />
Afinal, “a obra em si mesma é tu<strong>do</strong>”.<br />
134 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
REFERÊNCIAS<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick<br />
editora/O Globo, 1997.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 14/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 21/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 135
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
BRÁS CUBAS E A SOLIDARIEDADE DO<br />
ABORRECIMENTO HUMANO<br />
Vitor Cei <strong>Santo</strong>s<br />
Ufes<br />
Resumo: Seguin<strong>do</strong> a máxima <strong>do</strong> personagem-narra<strong>do</strong>r de<br />
que “a obra em si mesma é tu<strong>do</strong>”, o artigo visa ler o romance<br />
Memórias Póstumas de Brás Cubas a partir <strong>do</strong>s recursos<br />
ofereci<strong>do</strong>s pelo próprio texto. Nesse senti<strong>do</strong>, pensamos uma<br />
questão intrínseca à narrativa, a saber: o que é a solidariedade<br />
<strong>do</strong> aborrecimento humano e qual a sua relação com galhofa e<br />
melancolia, disposições que perpassam e impulsionam toda a<br />
obra. A questão é pensada a partir de uma análise <strong>do</strong> capítulo<br />
XLII, “Que escapou a Aristóteles”, em comparação com<br />
outros trechos da obra.<br />
Palavras-chave: Galhofa. Melancolia. Páthos.<br />
Abstract: Following the maxim of the character-narrator that<br />
“the work itself is everything”, the article aims to read the<br />
book Memórias Póstumas de Brás Cubas from the resources<br />
offered by the own text. Thus, an intrinsic question on the<br />
narrative is thought: what solidarity of human annoyance is,<br />
and what is its relation with mockery and melancholy, passions<br />
that permeates and drives the entire book. This question is<br />
analyzed from a reading of the chapter XLII, “Que escapou a<br />
Aristóteles”, in comparison with other passages of the book.<br />
Keywords: Mockery. Melancholy. Páthos.<br />
O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Macha<strong>do</strong><br />
de Assis, que foi lança<strong>do</strong> em folhetim na Revista Brasileira em<br />
1880 e publica<strong>do</strong> em livro em 1881, é uma das obras mais<br />
estudadas <strong>do</strong> escritor com maior fortuna crítica da literatura<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
brasileira. Seguin<strong>do</strong> os acenos ofereci<strong>do</strong>s pelos professores<br />
Bernar<strong>do</strong> Barros Coelho de Oliveira e Fernan<strong>do</strong> Mendes<br />
Pessoa durante o curso “A obra em si mesma é tu<strong>do</strong>”: Leituras de<br />
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, ministra<strong>do</strong><br />
no segun<strong>do</strong> semestre de 2007 no Programa de Pós-Graduação<br />
em Letras da <strong>UFES</strong>, nossa proposta é ler a narrativa de Brás<br />
Cubas a partir <strong>do</strong>s recursos ofereci<strong>do</strong>s pelo próprio texto<br />
ficcional, sem intermediação da fortuna crítica.<br />
Nesse empreendimento de duplo risco, por seguir uma<br />
orientação de narra<strong>do</strong>r tão suspeito como Brás e por abrir mão<br />
<strong>do</strong> auxílio proporciona<strong>do</strong> pela secular tradição de leitores e<br />
pesquisa<strong>do</strong>res machadianos, buscaremos pensar uma questão<br />
intrínseca à estrutura narrativa da obra, a saber: o que é a<br />
solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano e qual a sua relação<br />
com galhofa e melancolia, disposições que perpassam e<br />
impulsionam toda a obra. Esta questão será pensada a partir<br />
de uma análise <strong>do</strong> capítulo XLII, “Que escapou a Aristóteles”<br />
em comparação com outros trechos da obra.<br />
Tratan<strong>do</strong>-se de memórias, refresquemos a nossa. Segue a<br />
transcrição integral <strong>do</strong> sucinto capítulo XLII:<br />
Outra coisa que também me parece metafísica é isto:<br />
Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola<br />
esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso,<br />
e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou.<br />
Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela,<br />
- é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; - a<br />
terceira, Virgília. Temos que Marcela, receben<strong>do</strong> um<br />
piparote <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> rolou até tocar em Brás Cubas, - o<br />
qual, ceden<strong>do</strong> à força impulsiva, entrou a rolar também<br />
até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a<br />
primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de<br />
uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece<br />
uma coisa que poderemos chamar - solidariedade <strong>do</strong><br />
aborrecimento humano. Como é que este capítulo<br />
escapou a Aristóteles? (ASSIS, 1999, p. 114).<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 137
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
O narra<strong>do</strong>r, galhofeiramente, apresenta um “conceito” que<br />
teria escapa<strong>do</strong> ao filósofo Aristóteles: a solidariedade <strong>do</strong><br />
aborrecimento humano. De metafísica, só há casca, verniz<br />
intelectual e galhofa. A metafísica de Brás pode ser lida como<br />
uma pilhéria com os medalhões, aqueles pseu<strong>do</strong>-intelectuais<br />
apresenta<strong>do</strong>s por Macha<strong>do</strong> no conto “Teoria <strong>do</strong> Medalhão”<br />
(ASSIS, 2002).<br />
Mas não apenas os medalhões são vítimas da pena da galhofa<br />
de Brás Cubas, os grandes pensa<strong>do</strong>res também são. O capítulo<br />
XLII não é o único da obra em que o narra<strong>do</strong>r zomba de<br />
grandes personagens da história. A obra, que o defunto autor<br />
caracteriza como “[...] supinamente filosófica, de uma filosofia<br />
desigual, agora austera, logo brincalhona [...]” (ASSIS, 1999,<br />
p. 37), se encaminha em ritmo digressivo e desconcertante,<br />
conforme o capricho de Brás, desrespeitan<strong>do</strong> qualquer norma<br />
ou convenção de estilo, atacan<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong>s.<br />
No capítulo I, ele se compara a Moisés e afirma que sua obra<br />
é mais galante que o Pentateuco; no VII, ele se transforma na<br />
Summa theologica de Tomás de Aquino; no XXVII, a teoria<br />
das edições humanas de Brás discorda de Pascal: o homem<br />
não seria um caniço pensante, mas sim uma errata pensante.<br />
Em toda a obra encontramos galhofas em relação à Filosofia<br />
e à racionalidade, na forma de reflexões, teorias, categorias e<br />
alegorias.<br />
Em diversos capítulos a filosofia ocupa a função de verniz<br />
intelectual, sen<strong>do</strong> um recurso para conceder aparência de<br />
veracidade e erudição à narrativa <strong>do</strong> defunto autor. Os seguintes<br />
títulos são exemplares: “A idéia fixa” (IV), “Razão contra<br />
sandice” (VIII), “O filósofo” (CIX), “Filosofia das folhas<br />
velhas” (CXVI), “O Humanitismo” (CXVII) e “Filosofia <strong>do</strong>s<br />
Epitáfios” (CLI).<br />
Galhofas à parte, a noção de solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento<br />
humano, que se encontra no cerne <strong>do</strong> capítulo XLII, aparece<br />
como fundamental para a compreensão da narrativa de Brás.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, o assunto que nos convida e reúne a pensar é a<br />
138 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano em sua relação com a<br />
galhofa e a melancolia.<br />
A solidariedade, segun<strong>do</strong> o dicionário Houaiss (2006),<br />
é uma ligação mútua entre duas ou muitas pessoas que,<br />
dependentes umas das outras, dividem igualmente entre<br />
si as responsabilidades de uma ação, de uma empresa ou<br />
negócio, responden<strong>do</strong> todas por uma e cada uma por todas.<br />
Aborrecimento, por sua vez, é um sentimento provoca<strong>do</strong><br />
por situação, coisa ou pessoa desagradável, que oscila entre a<br />
aversão e o horror, a lassidão e o tédio.<br />
A solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano é, pois, a reunião<br />
<strong>do</strong>s personagens e da humanidade como um to<strong>do</strong> em torno<br />
<strong>do</strong> aborrecimento. Tal disposição perpassa e impulsiona toda<br />
a obra, sob diversas metáforas e metonímias: melancolia,<br />
volúpia <strong>do</strong> aborrecimento, rabugens de pessimismo, flor da<br />
hipocondria, flor amarela, borboleta preta, enxurro da vida,<br />
baba de Caim, pão da <strong>do</strong>r e vinho da miséria. No início da obra,<br />
em prólogo intitula<strong>do</strong> “Ao leitor”, o defunto autor resume a<br />
natureza da obra em questão: “[...] não sei se lhe meti algumas<br />
rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de fina<strong>do</strong>. Escrevi-a<br />
com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil<br />
antever o que sairá desse conúbio” (ASSIS, 1999, p. 29).<br />
Nossa hipótese é que a galhofa e a melancolia são os princípios<br />
de composição ficcional da narrativa das Memórias Póstumas<br />
de Brás Cubas. O páthos da melancolia é a tinta a partir <strong>do</strong><br />
qual o memorialista Brás Cubas escreve, enquanto a galhofa<br />
é a estratégia narrativa, a pena que conduz a tinta ao papel.<br />
Do conúbio entre ambas, como veremos, surge a idéia de<br />
solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano.<br />
Podemos pensar que não foi por mero capricho que o defunto<br />
autor mencionou Aristóteles. O filósofo grego analisa o páthos,<br />
a paixão, no segun<strong>do</strong> livro da Retórica (ARISTÓTELES, 2000),<br />
sen<strong>do</strong> o suposto autor <strong>do</strong> Problema XXX, 1 (ARISTÓTELES,<br />
1998), texto dedica<strong>do</strong> à melancolia. A retórica, téchne que se<br />
dedica ao <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> discurso em to<strong>do</strong>s os seus níveis, ten<strong>do</strong><br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 139
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
em vista obter a maximização <strong>do</strong>s seus efeitos sobre o público,<br />
pode dispor o receptor em determina<strong>do</strong>s páthos. Neste senti<strong>do</strong>,<br />
a retórica intenta compreender e explicar como o discurso se<br />
torna eficaz para persuadir o público.<br />
Na Retórica, o filósofo afirma: “As paixões são to<strong>do</strong>s aqueles<br />
sentimentos que, causan<strong>do</strong> mudanças nas pessoas, fazem variar<br />
seus julgamentos, e são segui<strong>do</strong>s de tristeza e prazer, como a<br />
cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas,<br />
assim como seus contrários” (ARISTÓTELES, 2000, p. 5).<br />
Páthos, palavra grega que pode ser traduzida por paixão ou<br />
disposição, remonta ao verbo páskhein, sofrer, suportar,<br />
agüentar, indican<strong>do</strong> um humor que nos afeta e arrebata,<br />
dispon<strong>do</strong>-nos em um mo<strong>do</strong> de ser e estar a partir <strong>do</strong> qual<br />
interpretamos a realidade. As paixões, inseparáveis <strong>do</strong> prazer<br />
ou <strong>do</strong> sofrimento, embaçam ou aguçam nosso olhar, fazen<strong>do</strong><br />
variar nossos julgamentos e nossas ações. De acor<strong>do</strong> com<br />
Aristóteles:<br />
[...] com efeito, para as pessoas que amam, as coisas não<br />
parecem ser a mesma que para aquelas que odeiam, nem,<br />
para os <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela cólera, as mesmas que para os<br />
tranqüilos, mas elas são ou totalmente diferentes ou de<br />
importância diferente; aquele que ama tem por certo<br />
que a pessoa sob julgamento ou não pratica ato injusto<br />
ou comete delitos de pouca importância, e aquele que<br />
odeia tem por certo o contrário [...] (ARISTÓTELES,<br />
2000, p. 03).<br />
O páthos da melancolia dispõe a pessoa em um esta<strong>do</strong> afetivo<br />
caracteriza<strong>do</strong> por profunda tristeza e desencanto geral, vaga e<br />
<strong>do</strong>ce tristeza, prostração e depressão. Aristóteles, ao mesmo<br />
tempo em que partia de uma concepção ética da virtude (areté)<br />
que coloca o melancólico como um homem de gênio, alguém<br />
excepcional, tinha como referência a concepção médica grega,<br />
na qual a melancolia é um tipo natural de temperamento.<br />
Etimologicamente, a palavra melancolia apresenta o senti<strong>do</strong> de<br />
140 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
“condição de ter bile negra”, pois a medicina grega, ratificada<br />
por Aristóteles, acreditava que o excesso <strong>do</strong> flui<strong>do</strong> corporal<br />
conheci<strong>do</strong> como bile (kholé) negra (mélaina) provocava<br />
torpor, terror, desânimo profun<strong>do</strong>, derramamento de sangue<br />
no interior de um órgão, acesso de loucura e outros males<br />
(ARISTÓTELES, 1998).<br />
Por que Brás é melancólico? Ele afirma, no segun<strong>do</strong> capítulo,<br />
que a humanidade é melancólica. Não se trataria, portanto, de<br />
um sentimento subjetivo, mas sim de um páthos constituí<strong>do</strong><br />
historicamente enquanto estrutura de relações de senti<strong>do</strong> no<br />
qual habita(va) a humanidade (<strong>do</strong> século XIX). A tinta da<br />
melancolia que marca a narrativa <strong>do</strong> defunto autor, mesmo<br />
que seja própria <strong>do</strong> ser humano, ganhou sua cor ao longo<br />
da formação de Brás Cubas enquanto homem (personagem)<br />
situa<strong>do</strong> em espaço e tempo defini<strong>do</strong>s (pela narrativa).<br />
O personagem Brás Cubas (1805-1869), que nasceu no Rio de<br />
Janeiro três anos antes da chegada da família real portuguesa<br />
ao Brasil, viveu durante o Primeiro Reina<strong>do</strong>, a Regência e<br />
três décadas <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, época de consolidação <strong>do</strong><br />
sistema escravista-patriarcal e <strong>do</strong> parlamentarismo oligárquico.<br />
Enquanto tipo histórico ele é uma caricatura, pois possui em<br />
grau exagera<strong>do</strong> - e deforma<strong>do</strong>, jocoso - os caracteres distintivos<br />
<strong>do</strong>s homens de sua época. De mo<strong>do</strong> restrito, ele é caricatura<br />
da elite brasileira que vivia na Corte no século XIX. De mo<strong>do</strong><br />
mais amplo, ele é caricatura <strong>do</strong> homem ocidental moderno.<br />
O homem moderno, com sua prática desenvolvimentista, agin<strong>do</strong><br />
como um torvelinho em perpétua desintegração e renovação,<br />
converten<strong>do</strong> o tempo em dinheiro, provocou a constante<br />
sublevação e renovação de to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s de vida pessoal<br />
e social, profanan<strong>do</strong> e dissolven<strong>do</strong> os valores anteriormente<br />
estabeleci<strong>do</strong>s. Instaurou-se, assim, no mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong>, uma<br />
racionalidade discursiva, abstrata, instrumental, burocrática e<br />
opressora.<br />
Livre para buscar o apoderamento <strong>do</strong> planeta, o homem<br />
moderno loteou e estatizou ou privatizou as terras, oceanos e<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 141
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
céus, escravizan<strong>do</strong> e subjugan<strong>do</strong> os povos ditos “primitivos”.<br />
O homem ocidental passou a impor seu mo<strong>do</strong> de vida a to<strong>do</strong><br />
o planeta, tornan<strong>do</strong>-se “senhor da terra”, para usarmos uma<br />
expressão de René Descartes empregada por Brás Cubas<br />
no capítulo XXVII (ASSIS, 1999, p. 94). Uma das poucas<br />
conquistas que a modernidade não conseguiu alcançar foi a<br />
imortalidade, que dinheiro nenhum pode comprar e exército<br />
algum pode conquistar. A morte, a finitude da vida, justamente<br />
aquilo que Brás Cubas, enquanto vivo, tanto temia.<br />
No Brasil, aconteceu um fenômeno de hipertrofia da<br />
modernidade, acrescida de uma <strong>do</strong>se de arcaísmo, visto que<br />
o escravismo, abominação nacional, era uma empreitada<br />
capitalista, abominação internacional. Se, como ensina Fredric<br />
Jameson (2005), é impossível traçar uma história universal <strong>do</strong><br />
sistema capitalista, pois to<strong>do</strong>s os caminhos para o capitalismo<br />
são únicos e excepcionais, contingentes e determina<strong>do</strong>s por<br />
uma situação nacional singular, Macha<strong>do</strong> de Assis já buscava<br />
compreender as especificidades no papel <strong>do</strong> capital na<br />
formação social brasileira.<br />
Ao contrário da moderna burguesia ocidental, a escravocrata<br />
aristocracia brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial, acostumada às<br />
práticas de man<strong>do</strong>nismo e paternalismo, em que triunfam as<br />
vontades e os caprichos individuais, não precisava trabalhar e<br />
desprezava os que tinham que ganhar o pão com o suor <strong>do</strong><br />
próprio corpo. Nesse senti<strong>do</strong>, a elite brasileira reinventou o<br />
capitalismo em um mo<strong>do</strong> mais eficiente <strong>do</strong> que o original no<br />
que se refere à acumulação de capital a partir de extração de<br />
riquezas materiais e exploração de mão de obra. Dessa terra e<br />
desse estrume nasceu Brás Cubas.<br />
Rentista que vive da fortuna paterna, Brás retrata seus pares<br />
como um conjunto de indivíduos vorazes, lascivos, egoístas<br />
e genocidas, que perseguem, num ritual de aparências e<br />
hipocrisia, os próprios interesses e prazeres. Os valores que lhe<br />
foram inculca<strong>do</strong>s em sua formação familiar foram resumi<strong>do</strong>s<br />
no capítulo “O menino é o pai <strong>do</strong> homem”:<br />
142 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha<br />
educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral<br />
viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. [...] O que<br />
importa é a expressão geral <strong>do</strong> meio <strong>do</strong>méstico, e essa<br />
aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das<br />
aparências rutilantes, <strong>do</strong> arruí<strong>do</strong>, frouxidão da vontade,<br />
<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> capricho, e o mais. Dessa terra e desse<br />
estrume é que nasceu esta flor (ASSIS, 1999, p. 55-57).<br />
Para uma classe em que, sob o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> capricho, triunfa<br />
a vontade individual, o único limite que não pode ser<br />
ultrapassa<strong>do</strong> é a morte. Esta é mais forte que a vontade. Por<br />
isso, hipocondria, melancolia. Por sinal, a morte da mãe de<br />
Brás é uma das poucas passagens <strong>do</strong> livro sem galhofa. Após<br />
a morte da mãe, ele afirma: “Renunciei tu<strong>do</strong>; tinha o espírito<br />
atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em<br />
mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de<br />
um cheiro inebriante e sutil” (ASSIS, 1999, p. 89).<br />
Até ali, o voluntarioso Brás Cubas, desmedi<strong>do</strong>, egoísta, defensor<br />
de um individualismo extremista, buscava desmedidamente a<br />
satisfação de seus caprichos, encontran<strong>do</strong> poucos limites que o<br />
aborrecessem. O maior de to<strong>do</strong>s os limites que encontrou até<br />
então foi a finitude da vida. Se diante da sociedade ele podia<br />
tu<strong>do</strong>, por ter dinheiro e poder, diante da morte ele não podia<br />
nada. A morte da mãe é um momento crucial na formação <strong>do</strong><br />
personagem-narra<strong>do</strong>r, que o leva ao páthos da melancolia.<br />
Como contraponto à tinta da melancolia, Brás escreve suas<br />
memórias com a pena da galhofa. A galhofa, no capítulo XLII e<br />
em toda a obra, é um estratagema narrativo de auto-afirmação,<br />
sen<strong>do</strong> um mo<strong>do</strong> de sobrepujar a melancólica decadência da<br />
vida. Assim, o narra<strong>do</strong>r visa purificar suas memórias <strong>do</strong> cheiro<br />
da flor amarela. Neste senti<strong>do</strong>, também visa criar complacência,<br />
angarian<strong>do</strong> cumplicidade e simpatia <strong>do</strong> leitor. Por isso, o chiste<br />
com Aristóteles, Marcela e Virgília.<br />
Dessa pena e dessa tinta, da interpenetração de melancolia<br />
e galhofa, nasce a idéia de solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 143
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
humano apresentada no capítulo XLII. Para alcançarmos<br />
nosso objetivo de compreender esta idéia, precisamos analisar o<br />
movimento das três bolas: Marcela, Brás e Virgília.<br />
Marcela, a primeira bola, cortesã espanhola que dá título ao capítulo<br />
XV, foi a primeira paixão <strong>do</strong> jovem Brás. Típica personagem<br />
feminina machadiana, ambiciosa e dissimulada, ela submete os<br />
homens apaixona<strong>do</strong>s aos seus interesses materiais. O jovem Brás,<br />
seduzi<strong>do</strong>, tornou-se cliente <strong>do</strong> comércio <strong>do</strong>s corações e endivi<strong>do</strong>use,<br />
gastan<strong>do</strong> a herança paterna, que ele devia crer ilimitada, para<br />
poder presentear a cortesã. A relação de Brás e Marcela, que durou<br />
quinze meses e onze contos de reis, faz parte da lógica interna da<br />
obra, por revelar, de mo<strong>do</strong> dissimula<strong>do</strong>, os valores <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r.<br />
O relacionamento entre Brás e Marcela é coerente com o meio<br />
<strong>do</strong>méstico em que ele foi cria<strong>do</strong>. Entretanto, Bento Cubas, o pai,<br />
sobressalta<strong>do</strong> com a desmedida <strong>do</strong> filho, aproveitou a ocasião<br />
como pretexto para enviar Brás para estudar na <strong>Universidade</strong> de<br />
Coimbra, destino previsível, visto que esta instituição era uma das<br />
mais procuradas pela elite brasileira <strong>do</strong>s séculos XVIII e XIX.<br />
Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r José Murilo de Carvalho (2004, p. 23):<br />
“Os brasileiros que quisessem, e pudessem, seguir curso superior<br />
tinham que viajar a Portugal, sobretu<strong>do</strong> a Coimbra. Entre 1772<br />
e 1872 passaram pela <strong>Universidade</strong> de Coimbra 1242 estudantes<br />
brasileiros”.<br />
Para um rentista da Corte que ganhou de berço fortuna, certo<br />
poder e o título de “<strong>do</strong>utor”, o diploma de bacharel era mera<br />
insígnia social. O estu<strong>do</strong> universitário era váli<strong>do</strong> por seu caráter<br />
ornamental, pois, numa nação de analfabetos, propiciava insígnias<br />
de poder e nomeada: o título de <strong>do</strong>utor ou bacharel, o diploma e o<br />
anel de grau. Este caráter é confirma<strong>do</strong> por Brás:<br />
Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a<br />
<strong>Universidade</strong> me não tivesse ensina<strong>do</strong> alguma; mas eu<br />
decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto.<br />
Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio,<br />
<strong>do</strong>us de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas,<br />
para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei<br />
144 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a<br />
fraseologia, a casca, a ornamentação... (ASSIS, 1999, p. 87).<br />
Bacharel não se sabe em que área, pois o narra<strong>do</strong>r não diz, o que<br />
não faz diferença, pois a <strong>Universidade</strong> lhe atestou em pergaminho<br />
uma ciência que “estava longe de trazer arraigada no cérebro”<br />
(ASSIS, 1999, p. 81), Brás Cubas formou-se mesmo em “Teoria <strong>do</strong><br />
Medalhão”, na mesma escola de Janjão:<br />
Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocar<strong>do</strong>s<br />
jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os<br />
discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento.<br />
[...] Melhor <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> isso, porém, que afinal não passa de<br />
mero a<strong>do</strong>rno, são as frases feitas, as locuções convencionais,<br />
as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória<br />
individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não<br />
obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono<br />
agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício<br />
te irá ensinan<strong>do</strong> os elementos dessa arte difícil de pensar o<br />
pensa<strong>do</strong> (ASSIS, 2002, p. 37).<br />
Após o retorno da Europa, o pai de Brás tentou arranjar o<br />
casamento <strong>do</strong> filho bacharel com a filha de uma influência política<br />
da Corte, a fim de impulsionar a carreira política <strong>do</strong> jovem bacharel.<br />
“Demais, a noiva e o parlamento são a mesma cousa...”, afirmou<br />
Bento Cubas (ASSIS, 1999, p. 95). A eleita foi Virgília, filha <strong>do</strong><br />
Conselheiro Dutra. Já no primeiro encontro entre os Cubas e<br />
Dutra (cap. XXXVII), este afirmou que a candidatura de Brás era<br />
legítima – legitimidade da hipocrisia.<br />
Virgília, a terceira bola, no capítulo XXVII recebe um retrato<br />
moral <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: atrevida, por se julgar melhor que a maioria e<br />
não se submeter facilmente; voluntariosa, por seguir seus próprios<br />
caprichos, sem reflexão; faceira, pela extrema vaidade; ignorantona,<br />
por ser pretensiosa e ignorante; devota, por ser religiosa e temente<br />
ao pai e a Deus.<br />
No capítulo XXXVIII, “A quarta edição”, o narra<strong>do</strong>r relata<br />
um encontro inespera<strong>do</strong> com Marcela, num dia em que fora<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 145
DOSSIÊ MACHADO DE ASSIS<br />
convida<strong>do</strong> para jantar na casa <strong>do</strong> Dutra. Brás, com o vidro <strong>do</strong><br />
relógio quebra<strong>do</strong>, entra numa ourivesaria pensan<strong>do</strong> tratar-se de<br />
uma relojoaria. Lá encontrou Marcela, proprietária <strong>do</strong> local. De<br />
início não a reconheceu, pois seu rosto estava amarelo e cheio<br />
de lesões cutâneas provocadas por bexiga (varíola). Porém, em<br />
seus olhos ainda ardia a flama da cobiça. A paixão <strong>do</strong> lucro<br />
era o verme roe<strong>do</strong>r de sua existência. Os sinais de decrepitude<br />
chocaram o olhar de Brás.<br />
Na ocasião, o sentimento <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r por sua antiga paixão era de<br />
repulsa. Em seu coração bateu o <strong>do</strong>bre de fina<strong>do</strong>s, soar <strong>do</strong> sino<br />
que dá volta sobre o eixo a fim de anunciar a morte de alguém. A<br />
antiga cortesã, página virada na vida de Brás, teria que se contentar<br />
com o amor de uma menina de quatro anos. Maricota, a menina,<br />
vizinha de Marcela, amiga e admira<strong>do</strong>ra da atual comerciante, sente<br />
tanto carinho pela mulher que a chamou de “Santa Marcela”. O<br />
protagonista, incapaz de emocionar-se ou compadecer-se com a<br />
<strong>do</strong>r alheia, não consegue compreender o carinho que a menina<br />
sente por Marcela.<br />
Brás, ao sair da ourivesaria, meteu-se apressa<strong>do</strong> na carruagem que<br />
o levaria para a residência de Dutra. O atraso fez com que Virgília<br />
o recebesse com mau humor e desdém. Este acontecimento foi o<br />
início da ruína <strong>do</strong>s planos de Bento Cubas. O arranjo se desfez, de<br />
fato, com a chegada <strong>do</strong> impetuoso Lobo Neves que, em poucas<br />
semanas, arrebatou Virgília e a candidatura (capítulo XLI).<br />
No capítulo XLII, inconforma<strong>do</strong> com os limites que a vida impõe,<br />
Brás estava mergulha<strong>do</strong> em aborrecimento e melancolia: em luto<br />
pela mãe, enoja<strong>do</strong> com o esta<strong>do</strong> decrépito de Marcela, ameaça<strong>do</strong><br />
de perder a noiva e o cargo de deputa<strong>do</strong>, perdas que se concretizam<br />
no capítulo seguinte. Por isso, a noção de uma solidariedade <strong>do</strong><br />
aborrecimento humano que toca os extremos sociais: Marcela,<br />
Brás e Virgília.<br />
A solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano é, portanto, a ligação<br />
mútua entre Marcela, Brás e Virgília, personagens que dividem<br />
entre si as conseqüências de certas ações e acontecimentos<br />
desagradáveis. Esse enlace provoca em Brás a oscilação entre a<br />
146 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
aversão e o horror, a lassidão e o tédio, culminan<strong>do</strong> no capítulo<br />
CLX, “Das Negativas”, em ele nos relata tu<strong>do</strong> o que não foi e não<br />
fez, gaban<strong>do</strong>-se de não haver transmiti<strong>do</strong> “a nenhuma criatura o<br />
lega<strong>do</strong> de nossa miséria” (ASSIS, 1999, p. 251).<br />
Para compreendermos o movimento das três bolas também é<br />
fundamental termos em mente uma passagem <strong>do</strong> capítulo “O<br />
recluso” (XLVII): “Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir<br />
to<strong>do</strong>s os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem<br />
mais <strong>do</strong> que mo<strong>do</strong>s de ser da minha afeição interior” (ASSIS, 1999,<br />
p. 120). Brás, que como é sabi<strong>do</strong> cultiva de mo<strong>do</strong> exagera<strong>do</strong> a sua<br />
vontade individual, pensa apenas nos próprios valores e interesses,<br />
a despeito <strong>do</strong>s de outrem. Compreenden<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong><br />
ponto de vista exclusivo de seu próprio interesse, o narra<strong>do</strong>r vê<br />
Marcela e Virgília apenas como formas de seu próprio mo<strong>do</strong> de<br />
ser.<br />
Esse mo<strong>do</strong> de ser dá a entrever uma vida marcada pela inação típica<br />
<strong>do</strong>s melancólicos. Os páthos <strong>do</strong> aborrecimento, da melancolia e da<br />
hipocondria, perpassam e impulsionam toda a narrativa <strong>do</strong> defunto<br />
autor, constituin<strong>do</strong> a tinta negra com a qual a pena da galhofa<br />
escreve a obra. Se o páthos da melancolia mostra-se determinante<br />
para a configuração <strong>do</strong> Brás Cubas narra<strong>do</strong>r, a galhofa também<br />
serve de fio condutor a toda sua narrativa, com toda a ambigüidade<br />
que isso implica.<br />
A galhofa, princípio formal da narrativa, tem o intuito de romper<br />
com a gravidade das mortes relatadas, que aparecem aos montes<br />
durante o livro. São muitos os falecimentos de personagens<br />
e as mortes simbólicas, dentre as quais os fracassos de Brás em<br />
casar com Virgília, em conseguir uma cadeira no Parlamento, em<br />
alcançar a celebridade e em trazer a público o seu emplasto antihipocondríaco,<br />
destina<strong>do</strong> a aliviar a nossa melancólica humanidade.<br />
Enquanto recurso narrativo, a galhofa não apenas oferece leveza ao<br />
peso de gravidade <strong>do</strong> me<strong>do</strong> da morte, mas também faz gracejo com<br />
as ações imorais <strong>do</strong> brejeiro Cubas, justifican<strong>do</strong> ou dissimulan<strong>do</strong><br />
seus inúmeros atos perversos e corruptos, proporcionan<strong>do</strong>-lhe<br />
ainda ares de superioridade, negacean<strong>do</strong> seu inconformismo<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 147
diante da finitude.<br />
A noção de solidariedade <strong>do</strong> aborrecimento humano, apresentada<br />
no capítulo XLII, é uma digressão ácida que ratifica o conúbio<br />
entre galhofa e melancolia, pois na medida em que a galhofa corrói<br />
toda esperança – herança de Pan<strong>do</strong>ra, mãe e inimiga - acaba por<br />
intensificar os traços da tinta da melancolia. Para o melancólico<br />
Brás Cubas, se to<strong>do</strong>s nós vamos morrer, não há esperança. Mas,<br />
por melancólica sede de nomeada, como não alcançou fama em<br />
vida, tornou-se defunto autor para fazer galhofa da vida e da morte.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema<br />
XXX, 1. Trad. Jackie Pigeaud/Alexei Bueno. Rio de Janeiro:<br />
Lacerda Editores, 1998.<br />
ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Trad. Isis B. B. da<br />
Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />
ASSIS, Joaquim Maria Macha<strong>do</strong> de. Memórias Póstumas de Brás<br />
Cubas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.<br />
ASSIS, Joaquim Maria Macha<strong>do</strong> de.Teoria <strong>do</strong> Medalhão. In:<br />
Contos escolhi<strong>do</strong>s. São Paulo: Martin Claret, 2002.<br />
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo<br />
caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.<br />
HOUAISS, Antonio et al. Dicionário eletrônico Houaiss da<br />
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 01 CD-ROM.<br />
JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a<br />
ontologia <strong>do</strong> presente. Trad. Roberto Franco Valente. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 31/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 18/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
DOSSIÊ<br />
GUIMARÃES ROSA<br />
Tem uma verdade que se carece<br />
de aprender, <strong>do</strong> encoberto, e que<br />
ninguém não ensina: o beco para<br />
a liberdade se fazer. (Grande<br />
sertão: veredas)<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 149
150 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
TERCEIRAS MARGENS, TRAVESSIAS<br />
MISTURADAS (GUIMARÃES ROSA E<br />
NELSON PEREIRA DOS SANTOS: FAMÍLIA E<br />
ABANDONO EM DOIS OLHARES)<br />
Alexandre Moraes<br />
Ufes<br />
As pontes são inúteis, a menos que nos cubram<br />
totalmente a distância entre as margens – mas<br />
no “viver juntos” a outra margem está envolta<br />
numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém<br />
deseja dissolver nem tenta afastar. Não há como<br />
saber o que se vai ver quan<strong>do</strong> (se) a névoa se<br />
dispersar – nem se de fato existe alguma coisa<br />
encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou<br />
será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão<br />
criada pela neblina, uma fantasia da imaginação<br />
que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que<br />
passam? (Zygmunt Bauman, Amor líqui<strong>do</strong>)<br />
Resumo: Analisan<strong>do</strong> o texto “A terceira margem <strong>do</strong> rio”, de<br />
João Guimarães Rosa e também o filme homônimo, de Nelson<br />
Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s, vamos discutir a noção de pai e de amigo<br />
bem como sua quebra a partir das transformações psicológicas<br />
e sociais com início em finais <strong>do</strong>s anos 1960. Verifica-se como<br />
a noção de pai, tornada líquida, cria o aban<strong>do</strong>no e a deriva<br />
presentes na obra rosiana, como se exemplifica também em<br />
diversos autores literatura da América Latina.<br />
Palavras-chave: Pai. Amigo. Estrutura familiar. Modernidade<br />
líquida. Aban<strong>do</strong>no.<br />
Abstract: Analyzing the text “A terceira margem <strong>do</strong> rio”,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 151
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
by João Guimarães Rosa and also the movie with the same<br />
name, by Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s, we discuss the notion of<br />
father as well as the notion of friend and the its break since<br />
psychological and social changes in the beginning of the<br />
sixties. We study and check how the notion of father when<br />
made liquid creates aban<strong>do</strong>n in Rosa’s work, as we exemplify<br />
and also in many authors of Latin American literature.<br />
Keywords: Father. Friend. Family structure. Liquid modernity.<br />
Aban<strong>do</strong>n.<br />
152 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
1<br />
Discutir, ainda que de forma muito breve, “A terceira margem<br />
<strong>do</strong> rio” constitui uma temeridade e um conforto em navegação<br />
discursiva carregada de névoa, de paragens deslocadas, de<br />
repetições e de possíveis miragens críticas. Todas, assim bem<br />
ao gosto borgeano, mais ou menos incompletas e, quan<strong>do</strong><br />
não, equivocadas. A ousadia de discutir texto tão fartamente<br />
estuda<strong>do</strong> da literatura brasileira, aliás, texto considera<strong>do</strong> um “<strong>do</strong>s<br />
melhores contos” de nossa literatura, pode trazer os costumeiros<br />
resulta<strong>do</strong>s, quer dizer, ordenamos o já dito nas investigações<br />
críticas que cada autor canônico tem acrescentadas à sua<br />
obra. Ainda assim, as águas turvas da ousadia nos trazem um<br />
conforto: podemos nos amparar nas coisas ditas, imagens<br />
críticas de uma verdade que pede para ser esmiuçada, estudada,<br />
recolocada, como se essa possível verdade pudesse submeterse<br />
a ordem e estrutura de um <strong>do</strong>gma.<br />
Sobre a “A terceira margem <strong>do</strong> rio” e sobre Guimarães Rosa,<br />
já sabemos, temos de passar quase que obrigatoriamente pela<br />
“linguagem”, pela “loucura”, “pelo lugar “metafísico” <strong>do</strong><br />
discurso e <strong>do</strong> texto. Como diria Derrida, “um texto só é um<br />
texto se ele esconde, ao primeiro olhar, ao primeiro que aparece,<br />
a lei de sua concepção e a regra de seu jogo” 1 . Ora, nesta linha,<br />
os textos roseanos são legitimamente textos para uma infinita<br />
1 Cf. SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro:<br />
Francisco Alves, 1976, p. 93.
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
discussão (aí sim, o infinito é um lugar palpável), e vivem de<br />
esconder, revivem na tarefa de negar e ofertar, refazem aos<br />
olhos segun<strong>do</strong>s e terceiros um jogo que esconde marcas,<br />
regras, degraus de construção, diversidade de possibilidades,<br />
enfim, em “A terceira margem <strong>do</strong> Rio”, o texto se refaz e, se<br />
não necessariamente discordamos da crítica quan<strong>do</strong> parece<br />
reafirmar a cada estu<strong>do</strong>, “a linguagem, a loucura, a metafísica”<br />
e questões sociais ambíguas, também não podemos deixar de<br />
assinalar que muitas e variadíssimas margens ainda não foram<br />
visitadas e, quan<strong>do</strong> parecem ter si<strong>do</strong>, essas margens outras<br />
ficam deslocadas sob o manto avassala<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre<br />
a linguagem e seus sistemas e, desta forma, o texto se esconde<br />
mais uma vez. O que tentamos aqui é surpreender o texto<br />
na sua impossibilidade de desvelamento, nos sistemas que se<br />
fecham e se abrem a teorizações, quer dizer, etimologicamente,<br />
a visões que se sobrepõem, se repetem, se desdizem e se<br />
refazem também ao sabor de uma turva navegação em neblinas.<br />
Com Bauman, perguntamos: essa “terceira margem” <strong>do</strong> título<br />
<strong>do</strong> conto e <strong>do</strong> filme é mais uma armadilha? Em outras palavras,<br />
existe lá onde parece estar? Existe lá na quebra <strong>do</strong> jogo dual, das<br />
duas margens, essa terceira, essa outra margem a que desejamos<br />
compreender? Existe realmente uma margem terceira fora das<br />
margens que o texto coloca? Quan<strong>do</strong> pensamos no cinema<br />
de Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s, a pergunta ainda se faz mais<br />
urgente.<br />
Se no filme há, como dizem os teóricos <strong>do</strong> cinema, “um mo<strong>do</strong><br />
de endereçamento <strong>do</strong> texto fílmico”, ou seja, uma forma aberta<br />
de perguntar e conceituar “quem este filme pensa que você é” 2 ,<br />
podemos afirmar que os textos, de um mo<strong>do</strong> geral, perguntam<br />
sobre seus possíveis consumi<strong>do</strong>res, a quem são endereça<strong>do</strong>s<br />
e se interpelam de formas diversas nas mais variadas épocas.<br />
O destinatário <strong>do</strong> texto, já se pode observar, como nos dizem<br />
2 ELLSWORTH, Elizabeth. Mo<strong>do</strong>s de endereçamento: uma coisa<br />
de cinema; uma coisa de educação. In: SILVA, Thomaz Tadeu da (org). Nunca<br />
fomos humanos. Nos rastros <strong>do</strong> sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.<br />
25 e sg.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 153
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
os estu<strong>do</strong>s sobre cinema e literatura, na feitura <strong>do</strong> texto (não<br />
apenas o fílmico), sobretu<strong>do</strong> na estrutura mesma com que o<br />
texto vai se apresentan<strong>do</strong> à leitura de cada época. O “mo<strong>do</strong><br />
de endereçamento de um texto” ou “destinatário”, o “lector<br />
in fábula” de um texto é um conceito que se apresenta como<br />
leitura social de um texto. Dessa forma, o que Guimarães<br />
Rosa e Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s se perguntaram quan<strong>do</strong><br />
construíram seus textos? A que “terceiras margens” e a que<br />
leitores endereçavam seus trabalhos?<br />
Nesse ponto vamos dividir nossa discussão em duas partes.<br />
Na primeira, vamos nos perguntar sobre a “terceira margem”<br />
e possíveis significa<strong>do</strong>s, nos afastan<strong>do</strong> tanto de estu<strong>do</strong>s sobre<br />
a linguagem quanto de estu<strong>do</strong>s sobre a loucura e, ainda assim,<br />
nos perguntaremos sobre o mal-estar da modernidade e da<br />
família coloca<strong>do</strong>s e dissemina<strong>do</strong>s pelo filme e pelo conto.<br />
Na segunda parte, vamos tentar discutir uma questão que<br />
nos parece central, o aban<strong>do</strong>no nos <strong>do</strong>is textos, o fílmico e o<br />
literário.<br />
154 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
2<br />
Se há, como pensava Freud 3 e, depois de maneira diversa,<br />
Bauman, uma espécie de “mal-estar” da civilização moderna e da<br />
assim chamada “modernidade líquida” 4 ou “pós-modernidade”<br />
que perpassa a estrutura e comportamento social 5 e, também,<br />
o que vai sen<strong>do</strong> descrito e encena<strong>do</strong> nos textos aqui discuti<strong>do</strong>s,<br />
um da<strong>do</strong> logo sobressai aos olhos no filme e no conto: um<br />
enorme mal-estar pela via <strong>do</strong> esfacelamento de conceitos,<br />
impulsos e formas de ação cobre os textos com seu manto de<br />
3<br />
FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. Rio de Janeiro:<br />
Imago, 1986.<br />
4<br />
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar, 1998.<br />
5<br />
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Ja-<br />
neiro: Jorge Zahar, 1998.
estranhamento e de problemas.<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Um pai inseguro de seu lugar com uma “resposta suspensa” 6 ,<br />
antes assenta<strong>do</strong> num rigoroso lugar de família, num momento<br />
em que a família produtiva, com terras, emprega<strong>do</strong>s, uma<br />
mulher “por trás” que se fazia importante no lugar <strong>do</strong>méstico<br />
de decisões, ou seja, um modelo de família em que ter filhos era<br />
muito lucrativo, resolve aban<strong>do</strong>nar, toda a estrutura patriarcal,<br />
sem deixar de lançar um olhar de compreensão ao filho que, a)<br />
num momento primeiro gostaria de ficar com este pai e seguir<br />
o seu caminho e, b) depois, ficar no seu lugar e, ainda, c) ao<br />
final, recusa este lugar impossível da figura paterna. Esse lugar<br />
inseguro <strong>do</strong> pai, aliás, o lugar de pai, com toda a genealogia<br />
já conhecida <strong>do</strong> conceito social no ocidente, passan<strong>do</strong> por<br />
diversas legislações, algumas que nos parecem francamente<br />
cômicas hoje — lembremos da legislação que estabelecia a<br />
figura <strong>do</strong> pai na Roma imperial — é um lugar antes de qualquer<br />
outra afirmação possível, inseguro. Insegurança de per si e<br />
estrutural. O lugar <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> conceito de pai no ocidente<br />
moderno tem si<strong>do</strong> de trepidação e deslizamento.<br />
A figura <strong>do</strong> Pai tem si<strong>do</strong> a daquele que goza e possui esse<br />
lugar violento <strong>do</strong> gozo e a da formulação de suas regras e <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>mínio ameaça<strong>do</strong> por outro, o filho, e para<strong>do</strong>xalmente, a<br />
continuidade da figura de pai e a “alegria” desse tipo de pai<br />
estão justamente nesse <strong>do</strong>mínio violento. O pai roseano que<br />
nos aparece, no dizer <strong>do</strong> texto, “sem alegria e sem cuida<strong>do</strong>”,<br />
é o pai cujo lugar fracassa<strong>do</strong> não mais impulsiona um devir<br />
estrutural <strong>do</strong> movimento de formação e que não se sustenta<br />
mais como figura paterna.<br />
Guimarães Rosa tematizou em muitos de seus textos esse pai<br />
fracassa<strong>do</strong>. Lembremos, a título de exemplo, de “Conversa<br />
de bois”, em Sagarana, em que encontramos um pai sem<br />
lugar, sem alegria, semimorto, ou natimorto. O pai, também<br />
6 ROSA, João Guimarães. A terceira margem <strong>do</strong> rio. In: Primeiras<br />
estórias. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962, p. 32. “Nosso pai suspendeu<br />
a resposta.”<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 155
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
lá, “cumpri<strong>do</strong>r”, mas que se impossibilita de continuar<br />
cumprin<strong>do</strong> os desígnios <strong>do</strong> lugar que precisa com urgência<br />
ocupar. A “decisão <strong>do</strong> adeus”, em “A terceira margem <strong>do</strong> rio”,<br />
quer dizer, a saída desse pai rosiano da estrutura latifundiária<br />
e familiar da modernidade agrária brasileira, não apenas indica<br />
uma mudança maior e geral que se iniciava nos anos finais da<br />
modernidade, quan<strong>do</strong> os textos roseanos foram escritos, bem<br />
como evidencia o lugar de fragilidade <strong>do</strong> conceito de pai nesse<br />
momento de mudança também capta<strong>do</strong> por Nelson Pereira<br />
<strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s de forma instigante no filme em que aparecem os<br />
objetos da modernidade chegan<strong>do</strong> ao latifúndio isolan<strong>do</strong> e<br />
tornan<strong>do</strong> obsoletas figuras e conceitos tradicionais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
agrário e social brasileiro.<br />
O pai de “A terceira margem <strong>do</strong> rio” é pai desse menino ou<br />
passa, num primeiro momento, de pai a amigo e, depois, num<br />
segun<strong>do</strong> segmento, de amigo a pai novamente até perder<br />
qualquer configuração tanto de amigo quanto de pai? Por outras<br />
palavras: se a autoridade <strong>do</strong> amigo é vivida na sua distância e<br />
dispersão, ou seja, o amigo se faz autoridade quan<strong>do</strong> introjeta<br />
algo <strong>do</strong> mesmo que há no outro e essa introjeção é consentida,<br />
o pai desse menino-narra<strong>do</strong>r, tanto no texto rosiano quanto<br />
no filme de Nelson, é também amigo, não mais violentan<strong>do</strong>,<br />
mas fazen<strong>do</strong>-se disperso e deseja<strong>do</strong> e não mais concorrente<br />
na seqüência da continuidade sistêmica. A perda da autoridade<br />
faz iniciar a quebra da noção de pai como autoridade imposta,<br />
<strong>do</strong>minante, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra e patriarcalista. O pai que vai à busca<br />
de uma possível “terceira margem” é um antes-pai, um anti-pai<br />
e um proto-amigo. A autoridade se desfaz para se dispersar<br />
no desejo. Se o pai é o motivo <strong>do</strong> desejo <strong>do</strong> filho, o lugar<br />
inseguro <strong>do</strong> pai determina um lugar ainda mais frágil de filho.<br />
O pai rosiano de “A terceira margem <strong>do</strong> rio” não consegue<br />
continuar o pai nem latifundiário, nem “o <strong>do</strong>no das mulheres”,<br />
como diria Lévi-Strauss, nem tampouco consegue manter os<br />
vestígios de sua autoridade.<br />
Nem loucura nem um efeito de linguagem; uma margem<br />
terceira, alternativa: é a margem <strong>do</strong> amigo possível, num da<strong>do</strong><br />
156 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
momento <strong>do</strong> texto. O filho cujo frágil lugar é coloca<strong>do</strong> em<br />
tensão, também perde seu lugar de filho. A tensão que se instala<br />
não é a da loucura, tampouco a da <strong>do</strong>ença estigmatizada ou<br />
mortal, mas a da perda <strong>do</strong>s lugares de pai e de filho: ambos vêem<br />
seus lugares desfazen<strong>do</strong>-se no mal-estar <strong>do</strong>minante em que as<br />
estruturas familiares começam por não mais responderem a<br />
ações e impulsos de um sujeito que não cabe em seus limites<br />
rígi<strong>do</strong>s e modernos. Guimarães Rosa aponta a mudança (ou a<br />
falência) da noção de pai inserida nos finais da modernidade<br />
brasileira e, também, no latifúndio e nas comunidades rurais.<br />
Nem campo nem cidade, loucura ou uma margem distante das<br />
margens estabelecidas pela família e seus lugares muito rígi<strong>do</strong>s.<br />
Essa terceira margem que nos faz voltar a Guimarães Rosa e<br />
ao cinema de Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s é aquela que estava<br />
se colocan<strong>do</strong> com a transformação das relações familiares nos<br />
finais da modernidade. A tensão dessa margem, não menos<br />
insegura, como poderia nos lembrar Bauman 7 uma vez mais,<br />
isto é, aquela da dissolução da família lucrativa, da figura <strong>do</strong> pai<br />
totêmico, encontra-se dispersa em to<strong>do</strong> o texto de Guimarães<br />
Rosa e no filme de Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s. O movimento<br />
imposto — se é que podemos usar o verbo impor no caso —<br />
ao filho pelo pai é a única marca ou vestígio último de sua<br />
“autoridade” paterna e esse movimento, não se pode esquecer,<br />
dá-se como recusa de autoridade, como refutação de um estarsen<strong>do</strong><br />
pai e pela sua saída <strong>do</strong> lugar de pai e <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s<br />
negócios agrários da família e da formação e continuidade<br />
familiares. Muito menos que “infinito”, esse “eu, rio abaixo, rio<br />
a fora, rio a dentro — o rio” circunscreve, sobretu<strong>do</strong>, fluxos<br />
descontínuos de uma autoridade que se perde e de um desejo<br />
que persiste, delimitações de um filho que não mais se coloca<br />
e que também perdeu uma quase possível figura de amigo 8 .<br />
7 BAUMAN, Zygmunt. Amor líqui<strong>do</strong>. Sobre a fragilidade <strong>do</strong>s laços<br />
humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.<br />
8 VINCENT-BAUFFAULT, Anne. Da amizade. Uma história <strong>do</strong><br />
exercício da amizade nos séculos XVIII e XIX. Trad. Maria Luiz Borges. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 1996.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 157
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Esse “rio”, que parece infinito com suas margens tantas e<br />
todas inscritas num teci<strong>do</strong> social que se desfazia nos limites <strong>do</strong><br />
latifúndio e da natureza, coloca um sujeito inerte, sem futuro<br />
desenha<strong>do</strong> ou com um desenho trágico nas mãos.<br />
O pai fraco e aquele forte que se opõem em Grande sertão:<br />
veredas, por exemplo, já anunciavam a discussão ficcional de<br />
Rosa dessa “figura metafórica” (no senti<strong>do</strong> aristotélico, quer<br />
dizer, “algo que indica uma coisa que é outra”) <strong>do</strong> pai 9 . A<br />
figura <strong>do</strong> pai — sempre inserida nos discursos freudianos e<br />
lacanianos — nos textos de Rosa, parece indicar tanto um<br />
impulso originário, como controvertidamente queria Freud,<br />
quanto uma situação social em que os atores e os conceitos<br />
a que são submeti<strong>do</strong>s estes atores na dramaturgia social estão<br />
em movimento.<br />
Para ficarmos com apenas três exemplos na obra rosiana,<br />
vejamos a figura <strong>do</strong> pai de Dia<strong>do</strong>rim, em Grande sertão: veredas.<br />
Este pai nos aparece, ainda quan<strong>do</strong> morto, sobrevoan<strong>do</strong> a<br />
ação e o impulso de ação da personagem que se mimetiza para<br />
dar vazão histérica ao desejo de pai e <strong>do</strong> pai. O Pai <strong>do</strong> menino<br />
Tiãozinho, em “Conversa de bois”, de Sagarana, ao contrário,<br />
é um pai fraco, venci<strong>do</strong>, mas eternamente presente, mesmo<br />
quan<strong>do</strong> já morto. Diferentemente destes <strong>do</strong>is pais, a figura<br />
de pai e <strong>do</strong> pai de “A terceira margem <strong>do</strong> rio” é este pai que<br />
sobrevoa, também, os impulsos forma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> personagemnarra<strong>do</strong>r-filho<br />
bem como as ações (histéricas, diriam muitos)<br />
desse filho enfraqueci<strong>do</strong> sem a figura enorme <strong>do</strong> pai que se<br />
esvazia enquanto pai dan<strong>do</strong> lugar a algo como um “amigo”,<br />
um igual que se vai e que só volta a ser pai no momento final<br />
<strong>do</strong> filme e <strong>do</strong> conto.<br />
Neste momento final <strong>do</strong>s textos (o filme e o conto), o filhonarra<strong>do</strong>r,<br />
perde definitivamente esta figura de pai em um <strong>do</strong>s<br />
momentos em que o para<strong>do</strong>xo mais e melhor se coloca no texto.<br />
Em “A terceira margem <strong>do</strong> rio”, a recusa <strong>do</strong> pai ausente, mas<br />
9 AZEVEDO, Ana Vicentini. A metáfora paterna na psicanálise e na<br />
literatura. Brasília: Edunb/São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.<br />
158 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
evoca<strong>do</strong>, de conhecer o neto, reven<strong>do</strong> assim a continuidade da<br />
família, não apenas desaponta o filho-narra<strong>do</strong>r, mas também<br />
o faz perceber algo muito complexo e que na ficção rosiana<br />
parece um movimento a mais.<br />
O filho-narra<strong>do</strong>r que anteriormente desejou ir com o pai<br />
para esta terceira e desconhecida margem e, simultaneamente,<br />
ainda anseia o lugar <strong>do</strong> pai na canoa e no rio neste momento<br />
final, percebe que não poderia ter i<strong>do</strong> com o pai, já que este<br />
pai se afigurava como amigo, um “igual <strong>do</strong> igual da gente”,<br />
no dizer rosiano de Riobal<strong>do</strong> e, por outro la<strong>do</strong>, também não<br />
pode ocupar o possível lugar <strong>do</strong> e de pai, uma vez que não<br />
existe pai para ser substituí<strong>do</strong> nem tampouco figura para<br />
ser colocada como totêmica em introjeção e perpetuação de<br />
autoridade. Desaparece, desse mo<strong>do</strong>, a figura <strong>do</strong> pai como<br />
impulso (possivelmente originário, diria Freud) de uma forma<br />
social e de uma psiquê desenvolvidas em torno e à sombra de<br />
uma figura que, forte ou fraca, estaria ali naquela região de<br />
turbulências onde se formam as relações e as figurações da<br />
ação e <strong>do</strong> impulso. O impulso e ação em torno da figura de pai,<br />
portanto, desaparecem.<br />
A possível concordância <strong>do</strong> pai em aceitá-lo na canoa, fora<br />
afastada pelo temor e ansiedade <strong>do</strong> filho, quer dizer, esse filhonarra<strong>do</strong>r<br />
que perde o amigo e também a figura <strong>do</strong> pai passa<br />
a duvidar de sua humanidade depois de seu enorme fracasso.<br />
Pergunta-se o fracassa<strong>do</strong> filho depois de todas as perdas:<br />
“Sou homem, depois desse falimento?” A pergunta <strong>do</strong> filhonarra<strong>do</strong>r<br />
aponta a própria falência e o desejo de morte que<br />
instala, no movimento social da formação da figura de pai, a<br />
descontinuidade feita única no seu senti<strong>do</strong> de pessoa passan<strong>do</strong>,<br />
então, a conferir a este si-mesmo um ethos não mais de filho<br />
tampouco de amigo e muito menos de pai ou de figuração<br />
de pai, daí a perda <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> de humanidade e de pessoa<br />
inscritos após sua constatação de perdas múltiplas. O instinto<br />
de destruição não mais se volta no senti<strong>do</strong> de dar continuidade<br />
a uma figura e de ocupação de lugares e posições, mas volta-se<br />
contra um si-mesmo, crian<strong>do</strong> uma ética da perda e da destruição<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 159
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
da noção de pessoa: “sou homem (...)?”.<br />
160 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
3<br />
Quan<strong>do</strong> no filme homônimo <strong>do</strong> texto de Guimarães<br />
Rosa, Nelson Pereira <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s ao introduzir os objetos<br />
da industrialização (tratores, marcas de multinacionais,<br />
movimentação de operários, transformação <strong>do</strong> ambiente<br />
ecológico etc.) toda a violência que subjaz inscrita no teci<strong>do</strong><br />
narrativo rosiano, são também percebidas em “A terceira<br />
margem <strong>do</strong> rio”, de Rosa, os anúncios nada tími<strong>do</strong>s de um tipo<br />
claro de transformações nas formas sociais. Nelson enfatiza a<br />
mudança que se processa na noção de pai, mas vê isto como<br />
fruto da estrutura social forma<strong>do</strong>ra de noções, de um ethos e de<br />
uma pragmática inscritas no texto. Se no filme, vários contos e<br />
seus segmentos de eventos são mistura<strong>do</strong>s, um da<strong>do</strong> não passa<br />
despercebi<strong>do</strong>: a mudança que já apontava Guimarães Rosa nas<br />
formas sociais e o surgimento de um tipo de personagem não<br />
pouco comum na América Latina: a personagem itinerante,<br />
sem rumo, sem destino, que vaga, sem pai, talvez em desespero<br />
em um espaço sem delimitação, alternativo, terceiro. Veja-se a<br />
título de lembrança a personagem Larsen, em “El astillero”,<br />
narrativa <strong>do</strong> uruguaio Juan Carlos Onetti ou Oliveira e Traveller,<br />
na Rayuela, de Julio Cortázar, mais contemporaneamente, as<br />
personagens de Chico Buarque de Holanda em seus romances<br />
e de João Gilberto Noll, para ficarmos com alguns poucos<br />
exemplos na América Latina em <strong>do</strong>is tempos.<br />
To<strong>do</strong>s esses personagens vagam e perambulam de um<br />
la<strong>do</strong> para outro indican<strong>do</strong> formas anteriores e ainda não<br />
solidificadas aqui de um mun<strong>do</strong> que se desfaz em algumas<br />
de suas importantes formações e vai se tornan<strong>do</strong> “líqui<strong>do</strong>”.<br />
Personagens aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s ao destino de um descaminho que se<br />
dá como única saída de caminho. Vagar e seguir sem seguir, estar<br />
na mais completa ausência, desejar o que não se pode desejar,<br />
tornan<strong>do</strong> o desejo mais impossível <strong>do</strong> que poderia imaginar<br />
Lacan, quer dizer, tornan<strong>do</strong> o desejo sua própria ficção.
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O Pai de “A terceira margem <strong>do</strong> rio” só poderia vagar.<br />
Aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> uma estrutura que não mais suportava, indigente<br />
de si mesmo numa ordem opressiva e substituída por outra não<br />
menos opressora, “insatisfeito com as margens” 10 , só lhe resta<br />
como caminho o descaminho que também trilha, na cidade, a<br />
personagem Estorvalino, de Chico Buarque, em Estorvo, para<br />
não esquecermos de nosso exemplo atrás coloca<strong>do</strong>.<br />
O mun<strong>do</strong> passa a não ser mais uma intuição e prosseguimento<br />
da experiência que, também esta, não mais pode ser transmitida,<br />
ou seja, é este mun<strong>do</strong> de experiências impossivelmente<br />
transmitidas que faz deslizar a noção de pai inscrita nos textos<br />
de Rosa e Nelson. A errância desse pai é também a forma mais<br />
sólida <strong>do</strong> que se esvaneceu e, tornan<strong>do</strong>-se “líqui<strong>do</strong>”, passa a ser<br />
a configuração <strong>do</strong> e de pai, num país, bom lembrarmos, em que<br />
ser pai é uma problemática não pouco expressiva e em que o<br />
aban<strong>do</strong>no e as perdas <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong> filho estão inscritas, inclusive,<br />
nos folhetins populares como angústia remanescente de um<br />
tempo em que a família nuclear lucrativa ainda poderia dar-se<br />
como instituição mantene<strong>do</strong>ra da transmissão da experiência.<br />
O que este pai rosiano de “A terceira margem <strong>do</strong> rio”<br />
experimenta é sensação de aban<strong>do</strong>no inscrita como matriz<br />
de outras formas, ainda “líquidas”, muito <strong>do</strong>lorosas e<br />
colocadas nas mudanças estruturais <strong>do</strong> capitalismo que vem se<br />
desenhan<strong>do</strong> desde os anos sessenta em que o texto foi escrito.<br />
O aban<strong>do</strong>no liquefaz a experiência tornan<strong>do</strong>-a ora impossível,<br />
ora outra forma ainda não inteiramente dada no momento<br />
narra<strong>do</strong> da quebra e transformação. A terceira margem rosiana<br />
se afigura muito mais uma “terceira perna” problemática,<br />
onde se vê a errância, a ausência de transmissão da experiência<br />
nunca passada como um da<strong>do</strong> constituinte e que se efetiva<br />
como recusa ou impossibilidade.<br />
“A terceira margem <strong>do</strong> rio” está ali, à frente, líquida,<br />
10 GOULART, Audemaro Taranto. A insatisfação com as margens.<br />
In: DUARTE, Lélia et alii. Outras margens. Estu<strong>do</strong>s da obra de Guimarães<br />
Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 75.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 161
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
dissolvida e dissolven<strong>do</strong> uma forma social de pai e de mun<strong>do</strong>,<br />
deslocan<strong>do</strong> figuras e afastan<strong>do</strong> os desejos ainda para mais<br />
longe da “idealidade intensiva” de to<strong>do</strong> desejo. O filhonarra<strong>do</strong>r,<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo pai que se aban<strong>do</strong>na e também é<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, duvida de sua experiência humana, não possui<br />
o outro como experiência sensível, mas somente a perda da<br />
noção deste outro como experiência. O aban<strong>do</strong>no é a perda<br />
da noção de outro como experiência dada e concretizada e a<br />
errância <strong>do</strong> pai (também presente no desejo <strong>do</strong> filho), dá-se no<br />
momento da quebra de um mun<strong>do</strong> social, de sua formação e<br />
das mudanças que seriam feitas e estavam se dan<strong>do</strong>.<br />
Rosa insere um personagem itinerante como marca de um<br />
mun<strong>do</strong> novo e trágico em que a experiência pode ser o silêncio,<br />
ou seja, um mun<strong>do</strong> que se dá e está se ofertan<strong>do</strong> assim, como<br />
nos diz o filho-narra<strong>do</strong>r, “no que num engano”. Esse pai que<br />
não foi “a parte nenhuma”, mas que “não voltou”, constrói na<br />
errância a sua possibilidade de experiência e tem no aban<strong>do</strong>no<br />
sua falência e sua novidade.<br />
O para<strong>do</strong>xo, como medida de mun<strong>do</strong>s novos e margens<br />
outras e terceiras inscritas ali num teci<strong>do</strong> social de figuras e<br />
figurações que se desintegravam, como vemos no filme de<br />
Nelson e no texto de Rosa; a família se inscreven<strong>do</strong> num<br />
“mun<strong>do</strong> líqui<strong>do</strong>”, no qual mergulhar e viver, antes de significar<br />
aban<strong>do</strong>nar-se e aban<strong>do</strong>nar simplesmente pode ser, sobretu<strong>do</strong>,<br />
não ter “i<strong>do</strong> a nenhuma parte” e, por outro la<strong>do</strong>, não indicar<br />
“loucura” ou “um lugar metafísico”; ao contrário, indica antes<br />
transformação e quebra, margem terceira que se faz diante das<br />
novas proposições ao humano e seu vir a ser.<br />
162 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 16/06/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 15/07/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
GRANDE SERTÃO: VEREDAS: ROMANCE E<br />
ENSAIO – PAR EM PAR<br />
Wilberth Salgueiro<br />
Ufes<br />
O senhor espere o meu conta<strong>do</strong>. Não convém<br />
a gente levantar escândalo de começo, só aos<br />
poucos é que o escuro é claro. (Riobal<strong>do</strong>)<br />
Resumo: Leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,<br />
consideran<strong>do</strong> certos pares suplementares: deus e demo, fala<br />
e escrita, totalidade e ambigüidade, amor e amizade, ficção e<br />
vida etc.<br />
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.<br />
Amor. Amizade.<br />
Abstract: Analyze of Grande sertão: veredas, by Guimarães<br />
Rosa, considering certain suplemental pairs: god and demon,<br />
speak and written, totality and ambiguity; love and friendship,<br />
fiction and life etc.<br />
Keywords: Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Love.<br />
Fiendship.<br />
A certa altura de seu ensaio “Jagunços mineiros de Cláudio<br />
a Guimarães Rosa”, Antonio Candi<strong>do</strong> afirma: “(...) to<strong>do</strong>s<br />
nós somos Riobal<strong>do</strong>, que transcende o cunho particular <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>cumento para encarnar os problemas comuns da nossa<br />
humanidade, num sertão que é também o nosso espaço de<br />
vida. Se ‘o sertão é o mun<strong>do</strong>’, não é menos certo que o jagunço<br />
somos nós” (Candi<strong>do</strong>, 1995, p. 168).<br />
Mas o que será ser – sen<strong>do</strong> Riobal<strong>do</strong>? O que é, quem é<br />
Riobal<strong>do</strong>, esse que, segun<strong>do</strong> o ensaísta, somos nós? Ser<br />
Riobal<strong>do</strong> pertence a to<strong>do</strong>s, ou a poucos? Pode-se escolher<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 163
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
não ser Riobal<strong>do</strong>, ou tal acontecimento é inexorável? Se é<br />
Riobal<strong>do</strong> sempre ou só às vezes? Como, sen<strong>do</strong> sangue, podese<br />
ser a experiência de ser um outro ser de papel, personagem<br />
que se materializa graficamente na página e dela escapa,<br />
virtualizan<strong>do</strong>-se em nosso pensamento, imaginário, corpo? Se<br />
Bovary – em outro contexto, decerto – vinha das entranhas de<br />
Flaubert, o que estou dizen<strong>do</strong> ao dizer “Riobal<strong>do</strong> c’est moi”?<br />
Ainda: Dia<strong>do</strong>rim c’est moi? Mais: Hermógenes c’est moi?<br />
Afinal, quem é esse eu-Riobal<strong>do</strong>?<br />
Em Roland Barthes por Roland Barthes, Roland Barthes fazse<br />
passar por Roland Barthes, inscreven<strong>do</strong> esse outro no<br />
punctum da escrita, entre a reminiscência memorialística, a<br />
reflexão teórico-crítica e o gesto ficcional, declaran<strong>do</strong>, por<br />
vezes, não saber, nem querer saber, quan<strong>do</strong> um desses atos<br />
prevalece sobre outro, fundan<strong>do</strong> uma hierarquia. “A intrusão,<br />
no discurso <strong>do</strong> ensaio, de uma terceira pessoa que não remete<br />
entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade<br />
de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um<br />
romance: um romance sem nomes próprios” (Barthes, 1977,<br />
129).<br />
Torcen<strong>do</strong> a frase de Barthes, sugiro, para inaugurar nova<br />
lógica, que Grande sertão confesse ser quase um ensaio: um<br />
ensaio com nomes ficcionais. E o que Guimarães Rosa ensaia<br />
ali, por meio de seu alter ego (Barthes por Barthes, Rosa por<br />
Riobal<strong>do</strong>), a ponto de considerá-lo, no surra<strong>do</strong> diálogo com<br />
Günter Lorenz, “meu irmão”? Posso, então, com imodesto<br />
orgulho, se sou Riobal<strong>do</strong>, declarar-me também irmão de<br />
Guimarães Rosa? O que nos uniria aos três? Diria, por nós:<br />
interesses e afetos. (Por isso, não posso ser, eu, Dia<strong>do</strong>rim, nem<br />
Hermógenes, nem Sô Candelário, nem Quelemém: interesses<br />
e afetos outros, que me escapam.)<br />
Interesses e afetos que se dão – digo sem temor: sempre –<br />
em movimentos (como a vida, o mun<strong>do</strong>, o tempo, o sertão,<br />
a narrativa, a subjetividade é movimento). Rosa, Riobal<strong>do</strong>,<br />
eu, nós somos migração, superposição, transformação;<br />
164 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
somos passagem, acréscimo, mudança de forma; somos<br />
passagem-migração de fluxos, somos acréscimo-superposição<br />
de máscaras, somos mudança de forma-transformação de<br />
desejos. Interesses e afetos que se dão, portanto, sempre em<br />
movimento: no fluir <strong>do</strong> fluxo, no contínuo mascarar-se, nos<br />
desejos renasci<strong>do</strong>s (o quereres).<br />
O que se ensaia num romance são movimentos. Sabemos,<br />
desde os primeiros passos, que qualquer movimento altera a<br />
relação entre (entre peças, personagens, atitudes, perspectivas<br />
etc.). Nesse devir louco, é tão-somente impossível algum tipo<br />
de reflexão “parada”, que pare o jogo para o pensamento<br />
se pôr em ação. Eis um para<strong>do</strong>xo insolúvel, posto que to<strong>do</strong><br />
pensamento é movimento e, por princípio, irredutível ao<br />
congelamento de qualquer ordem sígnica.<br />
Estamos assim: posso ser Riobal<strong>do</strong> porque, por uma torção<br />
no sistema de gênero, tomei o romance de Rosa como ensaio<br />
que pensa o movimento <strong>do</strong>s interesses e afetos <strong>do</strong>s fluxos,<br />
das máscaras e <strong>do</strong>s quereres <strong>do</strong> personagem – máquina com<br />
que me identifico no ato mesmo da incorporação que dele<br />
faço. Experimento-me Riobal<strong>do</strong>, seres de papel e sangue em<br />
convulsão. E tu<strong>do</strong> que flui, acresce, muda supõe lugares. Não<br />
de um lugar a outro, como aban<strong>do</strong>no, mas de um lugar e outro,<br />
como suplemento. O movimento é já suplemento.<br />
Por estratégia de exposição, e para enganar o para<strong>do</strong>xo <strong>do</strong><br />
“pensamento para<strong>do</strong>”, elejo alguns pares (lugares), para<br />
tornar visível o movimento que fazemos, Riobal<strong>do</strong> e eu, nós.<br />
“Sen<strong>do</strong> a figura da oposição a forma exasperada <strong>do</strong> binarismo,<br />
a Antítese é o próprio espetáculo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>” (Barthes, 1977,<br />
p. 148). Em linguagem de em dia-de-semana, os pares que<br />
veremos a seguir – para verificar o movimento que Riobal<strong>do</strong><br />
faz comigo quan<strong>do</strong> nele me finjo – devem funcionar numa<br />
relação suavizada, como uma ponte que vai e vem, não numa<br />
relação unívoca, como uma pista de mão única.<br />
Um alerta: a fortuna crítica sobre a obra de Rosa, em<br />
particular Grande sertão: veredas, a cada vez que devasta uma<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 165
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
área, outra renasce, qual fênix, enquanto aquela descansa para,<br />
oportunamente, revigorar-se. Mesmo a crítica, vê-se, compõese<br />
de movimentos (com alguns incêndios criminosos). Isso a<br />
torna – a obra literária – clássica, porque, com Calvino, “Um<br />
clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem<br />
de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele<br />
para longe” (Calvino, 1993, p. 12).<br />
Não há novidade nos pares que proponho, a não ser se<br />
pensa<strong>do</strong>s em conjunto e no trânsito entre aquilo que posso<br />
entender acontecer com Riobal<strong>do</strong> e comigo, seu irmão.<br />
Trazen<strong>do</strong> para minha vida alguns <strong>do</strong>s impasses daquele que<br />
– por um intrinca<strong>do</strong> processo de contigüidade entre ficção<br />
e realidade, e entre personagem e pessoa – elegi meu par,<br />
testo a eficácia de seu efeito em mim, testo a atualidade de<br />
seus dilemas, testo até onde pode ir minha imaginação,<br />
testo a hipótese de poder me fingir ser ele, testo um tipo<br />
de saber pouco usual nos trâmites acadêmicos: “O saber<br />
instável é o que participa da atividade das significações, é<br />
aquele que se move, percorren<strong>do</strong> outros lugares e superfícies,<br />
aproximan<strong>do</strong> paisagens díspares, acionan<strong>do</strong>-as. Encontra-se<br />
menos próximo da ideologia – pois esta, reflexológica, acata<br />
a representação – que da escritura, indecidível ela mesma.<br />
O saber instável da escritura consiste numa prática que tem<br />
como valor a produção prazerosa” (<strong>Santo</strong>s, 1989, p. 27). Dirá<br />
Roberto Corrêa à frente: “A instabilidade vem <strong>do</strong> rompimento<br />
<strong>do</strong> contrato, <strong>do</strong> rompimento <strong>do</strong> contrato da transmissão e da<br />
recepção tradicionais” (p. 37).<br />
O espetáculo <strong>do</strong>s pares apresenta-se ao meu bel-prazer. Serão<br />
14 pares escolhi<strong>do</strong>s quase que ao léu. Vamos a eles, Riobal<strong>do</strong><br />
e eu, saben<strong>do</strong>-nos, pela força das circunstâncias e <strong>do</strong>s<br />
propósitos, inevitavelmente aforismáticos e, às vezes, mesmo<br />
epigramáticos:<br />
1. Deus e demo: Riobal<strong>do</strong> revive, de cabo a rabo, essa dúvida<br />
arcana: “(...) o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma...<br />
(...) A quem vendi? Me<strong>do</strong> meu é este, meu senhor: então, a<br />
166 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
alma, a gente vende, só, é sem nenhum compra<strong>do</strong>r...” (ROSA,<br />
1994, p. 308) 11 . Problema menos de fé que de cultura, faço<br />
minha a “intuição esclarecida” de Riobal<strong>do</strong>, seres perpassa<strong>do</strong>s<br />
por mitos ancestrais num mun<strong>do</strong> desencanta<strong>do</strong>.<br />
2. Senhor e leitor: a existência de Riobal<strong>do</strong> se dá na medida em<br />
que há um silencioso feed-back, marca<strong>do</strong> por insinuações de<br />
caráter fático. O ouvinte de Riobal<strong>do</strong> age como age um leitor<br />
diante de um livro: vivo. Ora há reticente desconfiança – “O<br />
senhor ri certas risadas...” (p. 11), ora deferência – “O senhor<br />
pode rir: seu riso tem siso.” (p. 112), deferência que retorna<br />
– “Vejo que o senhor não riu, mesmo em ten<strong>do</strong> vontade.” (p.<br />
262). Este senhor sem nome que nos lê, despega<strong>do</strong> de toda<br />
baixa direção religiosa, “é homem de pensar o <strong>do</strong>s outros como<br />
sen<strong>do</strong> o seu” (p. 67), sem imposição, mas sem subserviência.<br />
É nessa troca de falas e silêncios que se pode aferir, entregar,<br />
pedir: “O senhor escute meu coração, pegue o meu pulso.” (p.<br />
371) A felicidade necessariamente clandestina da confiança.<br />
3. Prosa e poesia: Riobal<strong>do</strong> é narra<strong>do</strong>r e poeta. Isto, por si,<br />
justifica o seqüestro <strong>do</strong>s gêneros. “Revirei meu frasea<strong>do</strong>. Quis<br />
falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o<br />
que eu sincero queria – como em fala de livros, o senhor sabe:<br />
de bel-ver, bel-fazer, e bel-amar.” (p. 127) Riobal<strong>do</strong>, como eu,<br />
gosta da rosa no Rosa; como Barthes, tem uma <strong>do</strong>ença: “vê a<br />
linguagem” (Barthes, 1977, p. 171).<br />
4. Folhetim e romance: peça única, não desfiada, o romance<br />
to<strong>do</strong> perfaz uma vida. Uma vida, como o romance, se compõe<br />
de pequenas histórias. Quantas Marias Mutemas passaram<br />
ao nosso la<strong>do</strong> sem que percebêssemos? E a quantas demos<br />
ouvi<strong>do</strong>s?<br />
5. Sertão e cidade: Willi Bolle (1994) já mostrou a cidade no<br />
sertão rosiano, pela figura media<strong>do</strong>ra e impressionante de Zé<br />
Bebelo. Desmantela-se assim esse abismo que certa crítica<br />
quis, um dia, entre o regional (leia-se o pitoresco, o roceiro, o<br />
11 Nas citações seguintes <strong>do</strong> romance, indicar-se-á no corpo <strong>do</strong> texto<br />
apenas o número da página entre parênteses.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 167
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
interiorano) e o universal (leia-se o urbano, moderno, civiliza<strong>do</strong>).<br />
A diferença nunca esteve na exterioridade <strong>do</strong> local, mas no<br />
preconceito mal disfarça<strong>do</strong> <strong>do</strong> paternalismo, coisa que o romance,<br />
com o bom senso costumeiro, refuta: “(...) cidade acaba com o<br />
sertão. Acaba?”. (p. 111)<br />
6. Sistema e fragmento: “Um sistema é um conjunto de conceitos.<br />
Um sistema é aberto quan<strong>do</strong> os conceitos são relaciona<strong>do</strong>s a<br />
circunstâncias, e não mais a essências.” (Deleuze, 1992, p. 45).<br />
Escapan<strong>do</strong> às fronteiras duras <strong>do</strong>s sistemas fecha<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tipo<br />
hegeliano, uma obra, tal como uma vida, não se perde pelo<br />
fragmento: “escrever por fragmentos: os fragmentos são então<br />
pedras sobre o contorno <strong>do</strong> círculo: espalho-me à roda: to<strong>do</strong> o<br />
meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (Barthes,<br />
1977, 101) O fragmento, o estilhaço, é, a seu mo<strong>do</strong>, um peculiar<br />
sistema. “Só aos poucos é que o escuro é claro”, declara Riobal<strong>do</strong>.<br />
7. Saber e não-saber: a arte de não-saber é pura sabe<strong>do</strong>ria. O amor,<br />
por exemplo. Foge. Fulge. Ele: “Dia<strong>do</strong>rim me veio, de meu nãosaber<br />
e querer. Dia<strong>do</strong>rim – eu adivinhava.” (p. 200) Ela: “Riobal<strong>do</strong>,<br />
hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber<br />
o que sabia...” (p. 339) Saber muito até atrapalha.<br />
8. Mandar e obedecer: ser inquieto, com freqüência vem-lhe a<br />
sensação de que não deve obedecer, ignorar a hierarquia (<strong>do</strong> chefe,<br />
<strong>do</strong> amigo, <strong>do</strong> ama<strong>do</strong>, <strong>do</strong> demo, de deus); noutras vezes, tomalhe<br />
o corpo a recusa em mandar. Porque, a mandar e a obedecer,<br />
sempre há um outro. E o ser só que é o homem, que é Riobal<strong>do</strong>,<br />
que somos nós, não quer o prévio. Quer o lance, a aposta, o<br />
acontecimento: aí, sim, mandar e obedecer se naturalizam, como<br />
o vôo de uma borboleta – sem ordens.<br />
9. Jagunço e letra<strong>do</strong>: “Inda hoje, apreceio um bom livro,<br />
despaça<strong>do</strong>.” (p. 15) Em “A fala agônica”, Hansen analisa esse<br />
fração de frase, mostran<strong>do</strong> como na enunciação a palavra, circular,<br />
“roda em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, deslocan<strong>do</strong> o que diz enquanto fixa,<br />
fixan<strong>do</strong> o que desloca enquanto diz” (Hansen, 2000, p. 52). Um<br />
leitor inapto, que não entenda isso, será ele o “ser jagunço”, inepto,<br />
que atribui ao personagem.<br />
168 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
10. Totalidade e ambigüidade: há quase que por unânime uma<br />
decisão entre os exegetas de Grande sertão: é obra calcada na<br />
ambigüidade, para o que não falta a deliciosa, redundante e<br />
intransitiva frase: “Tu<strong>do</strong> é e não é...” (p. 13) Nesse senti<strong>do</strong>, porém,<br />
menos que ambíguo, tu<strong>do</strong> tende para o total, porque inclui, soma,<br />
suplementa – é da ordem <strong>do</strong> mais (“e”), não da dúvida (“talvez”).<br />
Deus e Demo! “Viven<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong> e narran<strong>do</strong> o vivi<strong>do</strong>”! (Galvão,<br />
1986, p. 111) Reinal<strong>do</strong> e Dia<strong>do</strong>rim!<br />
11. Infinito e finitude: entre o travessão inicial, “—”, nascimento<br />
de “nonada”, e o infinito que perpetua a “travessia”, "∞”, está o<br />
real. “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe<br />
para a gente é no meio da travessia.” (p. 46) O real não está nem<br />
aí pra gente. Por isso se diz, com fun<strong>do</strong> coercivo, “cair na real”,<br />
abrevian<strong>do</strong>-se a intangível palavra realidade. Riobal<strong>do</strong> sabe: “No<br />
real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.<br />
Melhor assim.” (p. 59)<br />
12. Presente e passa<strong>do</strong>: atar as pontas da vida, bentinhos que somos<br />
queren<strong>do</strong> entender nosso passa<strong>do</strong>-capitu. “São tantas horas de<br />
pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tu<strong>do</strong> miú<strong>do</strong> recruza<strong>do</strong>.”<br />
(p. 121) Passam os personagens a morar na retentiva, aumentan<strong>do</strong><br />
a população fantasmática de nossas retinas tão fatigadas.<br />
13. Amor e amizade: “quem há de negar que esta lhe é superior?”<br />
Riobal<strong>do</strong>, eu. Não há mais nem menos, porque “amor é a gente<br />
queren<strong>do</strong> achar o que é da gente”. (p. 234) E amigo “é que a<br />
gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é”. (p. 119).<br />
Quan<strong>do</strong> se encontram, “Amizade de amor surpreende uns sinais<br />
da alma da gente, a qual é arraial escondi<strong>do</strong> por detrás de sete<br />
serras?” (298) Amizade é ética, amor é descoberta.<br />
14. Ficção e vida: Como to<strong>do</strong>s os pares, vida e ficção se querem e se<br />
mascaram – por se quererem. Decididamente indecidível quan<strong>do</strong><br />
uma e quan<strong>do</strong> outra. O romance, a memória, o ensaio de Rosa, de<br />
Riobal<strong>do</strong>, <strong>do</strong> senhor e desse leitor: quem poderá decantar?<br />
Riobal<strong>do</strong> faz com o demônio o chama<strong>do</strong> pacto nu, sem contrato<br />
escrito – bastaram as impressões. Por mim, chego ao fim não<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 169
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
saben<strong>do</strong> o que sabia: Riobal<strong>do</strong> c’est moi? Não. Riobal<strong>do</strong> c’est nous,<br />
como queria Candi<strong>do</strong>? Também não. Riobal<strong>do</strong> é, sim: como cada<br />
um de nós é, irrepetível em sua existência ficcional, tanto quanto<br />
somos, ele também, ímpares nesse acontecimento que se chama –<br />
que se chama a vida.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução:<br />
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977.<br />
BOLLE, Willi. Grande sertão: cidades. In: IV Congresso ABRALIC.<br />
Literatura e diferença. São Paulo; ABRALIC, 1994, p. 1065-80.<br />
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.<br />
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades,<br />
1977.<br />
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução: Peter Pál<br />
Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.<br />
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas <strong>do</strong> falso: um estu<strong>do</strong> sobre a<br />
ambigüidade no Grande sertão: veredas. 2 ed. São Paulo: Perspectiva,<br />
1986. (Debates, 51)<br />
HANSEN, João A<strong>do</strong>lfo. O O: a ficção da literatura em Grande<br />
sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000.<br />
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Ficção completa,<br />
2 v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Biblioteca luso-brasileira.<br />
Série brasileira)<br />
SANTOS, Roberto Corrêa <strong>do</strong>s. Para uma teoria da interpretação:<br />
semiologia, literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense<br />
Universitária, 1989.<br />
170 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/09/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 10/10/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
AS RAZÕES DO JOGO EM “DUELO”<br />
Andréia Delmaschio<br />
UFRJ / IFES<br />
Resumo: No conto “Duelo”, a partir de uma vendeta mortal<br />
cometida por engano, inicia-se uma nova contenda, esta entre<br />
<strong>do</strong>is duelistas que nunca se encontram, distraí<strong>do</strong>s da sua<br />
trilha bélica e lúdica, ora pelos achaques de saúde, ora pelas<br />
pistas falsas que espalham e que acabam funcionan<strong>do</strong> como<br />
auto-engano. Acompanhamos a ironia dessas pistas e rastros,<br />
constituintes de um jogo de duplo engo<strong>do</strong> que perverte a<br />
lógica cartesiana simples, e cujo paroxismo consiste no fato<br />
de os rivais se cruzarem pelo caminho sem que o percebam,<br />
crian<strong>do</strong>-se assim uma atmosfera complexa, eivada de uma<br />
lógica suplementar e para<strong>do</strong>xal – um jogo de morte que acaba se<br />
revelan<strong>do</strong> como a razão de vida <strong>do</strong>s adversários.<br />
Palavras-chave: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo.<br />
Abstract: In the short story “Duel”, from a mortal vengeance<br />
committed by mistake, it starts a new dispute, this one between<br />
two duelers who had never met each other, distracted from<br />
their war and playful affair, either by the health ailments or by<br />
the false clues that are spread and end up working as a selfmistake.<br />
We follow the irony of these clues and traces, that<br />
constitute a game of <strong>do</strong>uble lure which perverts the simple<br />
cartesian logic, and whose paroxysm consists of the fact that<br />
the rivals meet through the path without realizing that, creating<br />
a complex atmosphere, contaminated by a supplemental and<br />
para<strong>do</strong>x logic – a death game which ends up revealing itself as<br />
the opponents’ reason of life.<br />
Keywords: Guimarães Rosa. Sagarana. Duelo.<br />
De acor<strong>do</strong> com o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 171
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
palavra “duelo” designaria qualquer tipo de luta ou oposição<br />
entre duas partes. Consideran<strong>do</strong>-se essa definição, o conto<br />
de Guimarães Rosa intitula<strong>do</strong> “Duelo”, <strong>do</strong> livro Sagarana, de<br />
1946, des<strong>do</strong>bra, a partir <strong>do</strong> título, uma ponta de ironia, já que a<br />
narrativa se desenvolverá, até o final, em torno <strong>do</strong>s primórdios<br />
e na preparação sempre frustrada <strong>do</strong> encontro, sem que as<br />
personagens envolvidas se enfrentem para a verdadeira luta,<br />
in<strong>do</strong> chegar a termo por meio de outros elementos, estranhos<br />
ao combate, as vidas de ambos os conten<strong>do</strong>res.<br />
O enre<strong>do</strong> daquelas duas vivências (os “duelistas” são Turíbio<br />
To<strong>do</strong> e Cassiano Gomes) se dá a partir de um ponto de contato<br />
que é D. Silivana, a mulher de “grandes olhos bonitos, de cabra<br />
tonta” (ROSA, 1884, p. 160) 12 . Turíbio, seu companheiro, é um<br />
fabricante de selas furta<strong>do</strong> ao trabalho pela crescente abertura<br />
de estradas de ferro e de rodagem na região onde nascera, às<br />
margens <strong>do</strong> Rio Borrachu<strong>do</strong>, no qual ainda pesca, na ocasião<br />
em que tem início seu desentendimento com Cassiano.<br />
Vejamos como ele é descrito na abertura <strong>do</strong> texto:<br />
Turíbio To<strong>do</strong>, nasci<strong>do</strong> à beira <strong>do</strong> Borrachu<strong>do</strong>, era<br />
seleiro de profissão, tinha pêlos compri<strong>do</strong>s nas narinas,<br />
e chorava sem fazer caretas; palavra por palavra: papu<strong>do</strong>,<br />
vagabun<strong>do</strong>, vingativo e mau. Mas, no começo desta<br />
estória, ele estava com a razão. Aliás, os capiaus afirmam<br />
isto assim peremptório, mas bem que no caso havia<br />
lugar para atenuantes. Impossível negar a existência<br />
<strong>do</strong> papo; mas papo pequeno, discreto, biloba<strong>do</strong> e<br />
pouco móvel – para cima, para baixo, para os la<strong>do</strong>s – e<br />
não o escandaloso ‘papo de mola, quan<strong>do</strong> anda pede<br />
esmola’... Além <strong>do</strong> mais, ninguém nasce papu<strong>do</strong> nem<br />
arranja papo por gosto: ele resulta das tentativas que o<br />
grande percevejo <strong>do</strong> mato faz para se tornar um animal<br />
<strong>do</strong>méstico nas cafuas de beira-rio, onde há, também<br />
cúmplices, camaradas <strong>do</strong> barbeiro, cinco espécies, mais<br />
12 A partir desta, as citações que vierem sem referência bibliográfica<br />
no corpo <strong>do</strong> texto foram retiradas <strong>do</strong> conto “Duelo”. Conferir: ROSA, João<br />
Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />
172 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ou menos, de tatus. E, tão modesto papúsculo, incapaz<br />
de tentar o bisturi de um opera<strong>do</strong>r, não enfeava o seu<br />
proprietário: Turíbio To<strong>do</strong> era até simpático: força<strong>do</strong><br />
a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo<br />
elegante. Não tinha, porém, confiança nesses <strong>do</strong>tes,<br />
e daí ser bastante misantropo, e dali ter queri<strong>do</strong> ser<br />
seleiro, para poder trabalhar em casa e ser menos visto.<br />
(...) Agora, quanto às vibrissas e ao choro sem visagens<br />
podia ser que indicassem gosto punitivo e maldade, mas<br />
com regra, o quanto necessário, não em excesso. 13<br />
Cassiano Gomes, o seu rival, é ex-solda<strong>do</strong>, afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> serviço<br />
militar por ser porta<strong>do</strong>r de problemas cardíacos. E é no leito<br />
de D. Silivana que seus destinos se cruzam. Vamos à ocasião<br />
<strong>do</strong> encontro:<br />
Mas, por essa altura, Turíbio To<strong>do</strong> teria direito de queixarse<br />
tão-só da sua falta de saber-viver; porque avisara à<br />
mulher que não viria <strong>do</strong>rmir em casa, tencionan<strong>do</strong> chegar<br />
até ao pesqueiro das Quatorze-Cruzes e pernoitar em<br />
casa <strong>do</strong> primo Lucrécio, no Dêcàmão. Mudara de idéia,<br />
sem contra-aviso à esposa; bem feito!: veio encontrála<br />
em pleno (com perdão da palavra, mas é verídica a<br />
narrativa) em pleno adultério, no mais <strong>do</strong>ce, da<strong>do</strong> e<br />
descui<strong>do</strong>so, <strong>do</strong>s idílios fraudulentos. 14<br />
Assim, retornan<strong>do</strong> mais ce<strong>do</strong> da pescaria, Turíbio, um homem<br />
de hábitos silenciosos e previsíveis, vê, sem ser visto, sua mulher<br />
na cama com o solda<strong>do</strong>. Vê, silencia e espera o momento certo<br />
para a vingança. Alguns dias depois, moralmente apoia<strong>do</strong> nos<br />
códigos de honra da localidade, que pregam a morte <strong>do</strong> trai<strong>do</strong>r<br />
por parte <strong>do</strong> traí<strong>do</strong>, dirige-se, devidamente arma<strong>do</strong>, à casa de<br />
Cassiano Gomes, onde, graças a enorme semelhança, acerta<br />
pelas costas o irmão <strong>do</strong> solda<strong>do</strong>, com um tiro na nuca. Tem<br />
início, então, o duelo irrealizável entre os <strong>do</strong>is.<br />
13 ROSA, 1984, p. 157.<br />
14 ROSA, 1984, p. 158.<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Esse “duelo”, cujo desfecho jamais se dará, vemo-lo aqui como<br />
um complexo jogo em que, perseguin<strong>do</strong>-se mutuamente a cavalo<br />
pelo sertão, cada um lança pistas que o outro irá interpretar.<br />
As pistas, rastros e sinais anuncia<strong>do</strong>s oralmente a pessoas que<br />
passam pelas estradas formam uma longa estratégia mutável e<br />
são por vezes falsos, com o intuito de desviar o inimigo; por<br />
outras são verdadeiros, e lança<strong>do</strong>s no afã de que o rival, ao<br />
tomar conhecimento deles, interprete-os como sen<strong>do</strong> falsos,<br />
num jogo de duplo engo<strong>do</strong> que terá resulta<strong>do</strong>s imprevisíveis,<br />
conduzin<strong>do</strong> o conflito ao paroxismo mesmo de os rivais se<br />
cruzarem pelo caminho sem que o percebam:<br />
Mas, nesse depois, deu que um dia Cassiano, surgin<strong>do</strong><br />
nas Traíras, escutou conversa de que o outro estava<br />
na Vista Alegre, aonde viera ter, aquerencia<strong>do</strong>, com<br />
saudades da mulher. Cassiano Gomes tirou suas<br />
deduções e tocou riba-rio, sempre beiran<strong>do</strong> o Guaicuí<br />
(...) isso enquanto Turíbio To<strong>do</strong>, um pouco além<br />
norte, fazia uma entrada triunfal em <strong>Santo</strong> Antônio<br />
da Canoa, onde ainda ousou assistir, muito ancho, às<br />
festas <strong>do</strong> Rosário, com teatrinho e leilão. Dançan<strong>do</strong><br />
de raiva, Cassiano fez meia-volta e destorceu caminho,<br />
varejan<strong>do</strong> cerradões, baten<strong>do</strong> trilhos de ga<strong>do</strong>, abrin<strong>do</strong><br />
o arama<strong>do</strong> das cercas <strong>do</strong>s pastos, para cair, sem aviso,<br />
no meio <strong>do</strong>s povoa<strong>do</strong>s tranqüilos <strong>do</strong>s grotões. Mas<br />
eram péssimos os voluntários <strong>do</strong> serviço de informes,<br />
e, perto <strong>do</strong> Saco-<strong>do</strong>s-Cochos, eles cruzaram, passan<strong>do</strong><br />
a menos de quilômetro um <strong>do</strong> outro, arma<strong>do</strong>s em<br />
guerra e esgana<strong>do</strong>s por vingança. (...) e, se parassem<br />
e pensassem no começo da história, talvez cada um<br />
desse muito <strong>do</strong> seu dinheiro, a fim de escapar dessa<br />
engronga, mas coisa isso que não era crível nem<br />
possível mais. 15<br />
No jogo intrinca<strong>do</strong> de perseguição, chega mesmo o momento<br />
15 ROSA, 1984, pp. 163-164.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
em que, no afã de enganar Turíbio To<strong>do</strong>, Cassiano Gomes<br />
engana a si próprio, espalhan<strong>do</strong> aos que encontra pelo caminho<br />
uma pista falsa que acaba por se mostrar, no fun<strong>do</strong>, verdadeira.<br />
Depois de muito campear atrás <strong>do</strong> inimigo, o solda<strong>do</strong> anuncia<br />
que irá se recolher, esperan<strong>do</strong> que assim Turíbio baixe guarda<br />
e possa ser pego de surpresa. Ele segue, dizen<strong>do</strong> àqueles que<br />
encontra: “- É... Deste jeito eu não arranjo nada, e fico me<br />
acaban<strong>do</strong> à toa... É melhor eu voltar p’ra casa e deixar passar<br />
uns tempos, até que ele sossegue e pegue a relaxar...” 16 . O<br />
narra<strong>do</strong>r esclarece: “E Cassiano Gomes estava enganan<strong>do</strong><br />
a si próprio, pois na realidade se sentia de repente cansa<strong>do</strong>,<br />
porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício<br />
cardíaco começara a dar sinal de si.” 17<br />
O conjunto dessas estratégias põe em xeque, entre<br />
outras, questões como a <strong>do</strong> valor de verdade. Inexistin<strong>do</strong><br />
aprioristicamente, ela apenas se perfaz como tal a cada nuance<br />
<strong>do</strong>s movimentos <strong>do</strong>s duelistas, dependente da intenção<br />
que os move, de sua interpretação das pistas deixadas e <strong>do</strong><br />
ponto de vista que então os guia. No desenrolar desse jogo<br />
a imprevisibilidade <strong>do</strong>s atos funciona como uma metáfora<br />
da vida, enquanto a morte, como única certeza, coroa o seu<br />
desfecho vin<strong>do</strong> de onde menos é esperada.<br />
Num jogo de morte de tal mo<strong>do</strong> imbrica<strong>do</strong> exclui-se já de<br />
início uma lógica cartesiana simples, multiplican<strong>do</strong>-se, por<br />
detrás de certa aparência de simplicidade, diversos elementos<br />
complica<strong>do</strong>res. O narra<strong>do</strong>r anunciara essa atmosfera complexa<br />
ao substituir a lógica excludente de relações de causa e<br />
conseqüência, praticada pelos capiaus, por uma outra inclusiva,<br />
relativa, suplementar e para<strong>do</strong>xal. Vejamos:<br />
E, ainda assim, saibamos to<strong>do</strong>s, os capiaus gostam<br />
muito de relações de efeito e causa, leviana e<br />
<strong>do</strong>gmaticamente inferidas: Manuel Timborna, por<br />
exemplo, há três ou quatro anos vive discutin<strong>do</strong> com<br />
16 ROSA, 1984, p. 171.<br />
17 ROSA, 1984, p. 171.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 175
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
um canoeiro <strong>do</strong> Rio das Velhas, que afirma que o<br />
jacaré-<strong>do</strong>-papo-amarelo tem o pescoço cor de enxofre<br />
por ser mais bravo de que os jacarés outros, ao que<br />
contrapõe Timborna que ele só é mais feroz porque<br />
tem a base <strong>do</strong> queixo pintada de limão maduro e<br />
açafrão. E é até um trabalho enorme, para a gente<br />
sensata, poder dar razão aos <strong>do</strong>is, quan<strong>do</strong> estão<br />
juntos. 18<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong> que é impossível chegar a uma conclusão, no<br />
caso <strong>do</strong>s jacarés, escolhen<strong>do</strong> uma das assertivas e apontan<strong>do</strong>-a<br />
como causa (é bravo porque tem o papo amarelo ou tem o<br />
papo amarelo porque é bravo?), também no caso desse outro<br />
papu<strong>do</strong> (Turíbio To<strong>do</strong>) a busca de uma razão simples para suas<br />
atitudes impossibilita a opção. Ele é “vingativo e mau” (palavras<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r) porque fora traí<strong>do</strong>? Ou será o oposto? Ou ainda<br />
– pois não é de se desprezar a relação entre “papu<strong>do</strong>s” que o<br />
texto oferece: É da existência <strong>do</strong> papo que lhe vem o mal estar<br />
com o entorno ou será o defeito físico antes um sintoma da<br />
sua inadaptação? Note-se a descrição <strong>do</strong> dia da pescaria:<br />
Tinha si<strong>do</strong> para ele um dia de nhaca: saíra ce<strong>do</strong> para<br />
pescar, e faltara-lhe à beira <strong>do</strong> córrego o fumo-de-rolo,<br />
ten<strong>do</strong>, em coice e queda, de sofrer com os mosquitos;<br />
dera uma topada num toco, danifican<strong>do</strong> os artelhos<br />
<strong>do</strong> pé direito; perdera o anzol grande, engastalha<strong>do</strong><br />
na coivara; e, voltan<strong>do</strong> para casa, vinha desconsola<strong>do</strong>,<br />
trazen<strong>do</strong> apenas <strong>do</strong>is timburés no cambão. Claro que<br />
tu<strong>do</strong> isso, sobrevin<strong>do</strong> assim em série, estava a exigir<br />
desgraça maior, que não faltou. 19<br />
Nesse começo, antes mesmo de descoberto o envolvimento<br />
da companheira com Cassiano, já está instalada a idéia da ação<br />
violenta dirigida, no caso, contra uma totalidade negativa <strong>do</strong><br />
entorno. Impossível portanto querer achar causa simples para<br />
o seu trajeto vingativo apenas no fato de encontrar Cassiano<br />
18 ROSA, 1984, p. 158.<br />
19 ROSA, 1984, p. 158.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
na cama com D. Silivana. Se se for em busca de uma causa ou<br />
origem para os acontecimentos, caminhar-se-á a cada vez um<br />
passo atrás, encontran<strong>do</strong>-se lá, na suposta origem, sempre uma<br />
outra origem, que é antes conseqüência de uma outra.<br />
A humilhação longa e silenciosamente curtida por ele pelas<br />
desvantagens físicas de que é porta<strong>do</strong>r, a clareza com que o<br />
contato com Cassiano Gomes traz à tona esses e outros traços<br />
seus, o ócio a que se entrega contra vontade, por ausência<br />
de trabalho (a abertura das estradas de rodagem reduzem a<br />
demanda de selas, produto <strong>do</strong> seu trabalho), a má-consciência<br />
pela sua suspeitada falta de “saber-viver”, no dizer <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r,<br />
e os próprios acontecimentos desagradáveis que o contemplam<br />
naquele dia são to<strong>do</strong>s determinantes para o que sucederá e se<br />
substituem numa linha de suplementaridade.<br />
O fato de ser Cassiano e não um outro o trai<strong>do</strong>r de Turíbio<br />
serve ainda para enfatizar a condição miserável <strong>do</strong> seleiro, já que<br />
o outro é um militar (o que denota respeito, naquele contexto)<br />
um homem bonito e que, afinal, lhe conquista a companheira.<br />
Na cena em que Turíbio os avista na cama, a descrição que faz<br />
<strong>do</strong> arsenal de que se cerca para ele a imagem de Cassiano, em<br />
comparação com seu parco armamento, que se resume a uma<br />
“faquinha de picar fumo e tirar bicho-de-pé” 20 bem mostra a<br />
humilhação a que é submeti<strong>do</strong>. O contraste entre a situação<br />
social <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is terá grande participação no fomento <strong>do</strong> ódio<br />
já crescente <strong>do</strong> seleiro pelo ex-militar: “(...) o outro era o<br />
Cassiano Gomes, ex-anspeçada <strong>do</strong> 1º pelotão da 2ª companhia<br />
<strong>do</strong> 5º Batalhão de Infantaria da Força Pública, onde as gentes<br />
aprendiam a manejar, por música, o ZB tchecoslovaco e até<br />
as metralha<strong>do</strong>ras pesadas Hotchkiss; e era, portanto, muito<br />
homem para lhe acertar um balaço na testa, mesmo estan<strong>do</strong><br />
em sumaríssima indumentária (...)” 21 .<br />
Lógica e razão são termos que, por vezes sinônimos, têm ali<br />
aplicações que fogem diligentemente ao uso comum. A palavra<br />
20 ROSA, 1984, p. 159.<br />
21 ROSA, 1984, p. 159.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 177
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
“razão”, por exemplo, desliza, no texto, entre diferentes<br />
acepções: há a “razão” inicial de Turíbio To<strong>do</strong> para sentir-se<br />
humilha<strong>do</strong> e aquela que lhe é agregada socialmente para vingarse<br />
perante a ofensa moral sofrida, “razão” que o leva a desviarse<br />
e, num erro, eliminar o irmão <strong>do</strong> verdadeiro “deve<strong>do</strong>r”. Há,<br />
em contrapartida, as “razões” que permitem a Cassiano Gomes<br />
revidar a morte indevida <strong>do</strong> irmão. Há também as “razões” de<br />
adaptação e luta que justificam, a princípio, tanto a conduta de<br />
Turíbio quanto a de Cassiano, e que depõem contra a idéia de<br />
uma razão una e mesmo de uma apriorística da razão, que teria<br />
de se basear na idéia de uma lei também una e a priori posta.<br />
Há ainda a tal “razão” das mulheres, que o narra<strong>do</strong>r defende,<br />
ironicamente, como deven<strong>do</strong> primar sobre as demais (notese<br />
ainda que é <strong>do</strong> contato com D. Silivana que provêm as<br />
“razões” da contenda, justificativas para a morte, e que acabarão<br />
se mostran<strong>do</strong>, positivamente, como a “razão” de vida <strong>do</strong>s<br />
adversários). As diferentes acepções <strong>do</strong> termo se misturam no<br />
texto. A ausência de uma razão apriorística ou transcendental<br />
amplia indefinidamente o jogo e seu campo de atuação. Por<br />
isso não há uma verdade ou lógica simples a defender ou<br />
interpretar. Nada para além das regras <strong>do</strong> jogo.<br />
Cassiano Gomes, aquele que “primeiramente” é marca<strong>do</strong> para<br />
morrer (e que traz a lembrança da caça, foneticamente, no<br />
nome), carrega em si o gérmen da morte, latente na <strong>do</strong>ença que<br />
o persegue, e representa, por meio desse traço, toda a categoria<br />
humana, incluí<strong>do</strong> aí também o seu algoz ou caça<strong>do</strong>r. Eles<br />
seguem no seu jogo letal, como numa roleta russa, adian<strong>do</strong> e<br />
adiantan<strong>do</strong> a morte, fugin<strong>do</strong> dela e para ela, que ce<strong>do</strong> ou tarde<br />
se mostrará, se não como resulta<strong>do</strong> específico <strong>do</strong> combate,<br />
provin<strong>do</strong> de algo exógeno a ele ou de dentro de cada um deles.<br />
Apesar da série de contrastes que a priori delegariam a Turíbio<br />
uma condição irremediavelmente inferior com relação a<br />
Cassiano, o texto, pela visada altamente reversível que propõe,<br />
irá recuperar e transformar uma certa predestinação que muitas<br />
vezes as preconceituações fazem supor e mantêm. É através de<br />
178 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
um traça<strong>do</strong> que reconhece o poder como algo que se exerce<br />
antes que se possui que o conto de Rosa o faz.<br />
Esse conceito de poder, formula<strong>do</strong> pelo pensa<strong>do</strong>r francês<br />
Michel Foucault, é trazi<strong>do</strong> aqui para o acompanhamento <strong>do</strong><br />
trajeto <strong>do</strong>s personagens por considerarmos que as diferentes<br />
estratégias por eles desenvolvidas durante o seu “duelo” não<br />
cristalizam o poder num centro emana<strong>do</strong>r, nem distribuem<br />
em escalas hierárquicas os “poderosos” e os “sem-poder”,<br />
estabelecen<strong>do</strong> sim jogos de poder e não lugares de poder,<br />
algo que os joga<strong>do</strong>res bem intuem. Daí que a desconfiança<br />
de cada um sobre as pistas deixadas pelo inimigo se amplie<br />
até quase passarem para<strong>do</strong>xalmente a considerar, de forma<br />
consciente, nos atos de defesa, a importância <strong>do</strong> acaso. Uma<br />
verdadeira aporia: as regras <strong>do</strong> jogo são inescapáveis, ou seja,<br />
tu<strong>do</strong> se dá sempre e somente dentro de uma certa ordem de<br />
jogo; no entanto é tamanha a imprevisibilidade das normas<br />
que o governam, criadas sempre no devir <strong>do</strong> próprio jogo<br />
pelos duelistas, que o conjunto de regras tangencia o acaso e<br />
mesmo ameaça com a completa dispensabilidade das normas,<br />
anulan<strong>do</strong> assim o sistema. Somente desse mo<strong>do</strong> se explicam<br />
situações como aquela em que os joga<strong>do</strong>res se buscam até que<br />
se encontrem, e então, de forma surpreendente, não se vêem.<br />
Assim sen<strong>do</strong>, se uma grande diferença de situação social<br />
separa Turíbio de Cassiano, a partir <strong>do</strong> momento em que seus<br />
destinos se cruzam, arma-se um outro contexto, em que de<br />
alguma forma eles se igualam, porque são outras as regras que<br />
norteiam agora essa vida dentro da vida, que os une no seu<br />
quase-duelo e, para nós, no texto. Pode-se pensar mesmo que o<br />
verdadeiro “acerto de contas” já se dera, de forma para<strong>do</strong>xal,<br />
no erro cometi<strong>do</strong> por Turíbio ao matar o irmão de Cassiano,<br />
erro que afinal deixa o solda<strong>do</strong> livre para a vida, o que nesse<br />
caso significa a possibilidade de lutar até a morte, e “de igual<br />
para igual”. Somente a partir desse engano inaugural é que se<br />
inicia de fato a perseguição entre eles, contraditoriamente.<br />
Desde então, Turíbio e Cassiano passam a ser, de certo mo<strong>do</strong>,<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 179
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
um personagem <strong>do</strong> outro, nesse teatro mortal, e a se guiarem<br />
por pistas que, de muito voláteis e armadas sobre tantos<br />
artifícios, resultam quase tão pouco úteis ao persegui<strong>do</strong> e ao<br />
persegui<strong>do</strong>r quanto crer no puro acaso. A um tempo em que<br />
o narra<strong>do</strong>r apresenta ao leitor os personagens, no contexto<br />
interno à narrativa, cada um <strong>do</strong>s protagonistas faz <strong>do</strong> outro<br />
uma espécie de criação sua, pelo mo<strong>do</strong> como tece comentários<br />
injuriosos acerca <strong>do</strong> rival junto aos transeuntes nas estradas<br />
em que segue à sua procura. Assim o percurso de cada um é<br />
traça<strong>do</strong>, de certo mo<strong>do</strong>, pelo inimigo, nas pistas – verdadeiras<br />
ou falsas – que lhe deixa, pistas às quais a criatura tenta, apoiada<br />
em suas interpretações, escapar. Por fim, o fato de cada um<br />
perseguir, no/<strong>do</strong> outro, a própria vida, faz com que assuma<br />
mais plenamente a função de cria<strong>do</strong>r/destrui<strong>do</strong>r.<br />
No desfecho, cada um se revela, enfim, o personagem prófugo<br />
<strong>do</strong> outro, escapan<strong>do</strong>-lhe quase que completamente ao traça<strong>do</strong>,<br />
para viver sua própria vida - e sua morte: Cassiano morre de<br />
“causa natural”, burlan<strong>do</strong> o desfecho lúdico, e o outro, no meio<br />
<strong>do</strong> jogo - e da narrativa -, parte para São Paulo, in<strong>do</strong> morrer, ao<br />
retornar, pelas mãos de um terceiro. Vejamos o momento em<br />
que Turíbio To<strong>do</strong> resolve aban<strong>do</strong>nar a luta:<br />
Depois, uma turma de sujeitos alegres o interpelou.<br />
Iam para o sul, para as lavouras de café. Baianos sãopauleiros.<br />
E um deles: -Eh, mano veélho! Baâmo<br />
pro São Paulo, tchente!... Ganhá munto denheêro...<br />
Tchente! Lá tchove denhêro no tchão!... Sentiu<br />
saudades da mulher. Mas, era só por uns tempos.<br />
Mandava buscá-la, depois. Foi também. 22<br />
Para o leitor que acompanhara até então cada lance da<br />
perseguição mútua, é surpreendente a atitude de Turíbio,<br />
de partir com uma tropa que encontra no caminho, ten<strong>do</strong><br />
troca<strong>do</strong> com seus componentes apenas algumas palavras e<br />
deixan<strong>do</strong> pelo meio a contenda com Cassiano. No entanto<br />
o fato não é incompreensível, já que, de forma não de to<strong>do</strong><br />
22 ROSA, 1984, p. 175.<br />
180 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
consciente, o que ele procurava mesmo era uma razão para a<br />
vida. Considere-se também que nesse ponto o jogo já vinha se<br />
tornan<strong>do</strong> ora monótono, ora arrisca<strong>do</strong> demais, segun<strong>do</strong> sua<br />
própria avaliação, o que poria em perigo seu motivo maior até<br />
então: a busca para<strong>do</strong>xal de uma mudança para a vida, ainda<br />
que por meio da morte, sua e/ou de outrem.<br />
Nesse ínterim, e quan<strong>do</strong> o embate entre os <strong>do</strong>is ainda<br />
prosseguia, é que o sistema estabeleci<strong>do</strong> com a perseguição<br />
perde verdadeiramente qualquer possível centro: Turíbio segue<br />
para São Paulo e Cassiano chega a esquecer por completo o<br />
motivo que conduzia seu ódio contra Turíbio, ou seja, a morte<br />
<strong>do</strong> irmão. Apenas quan<strong>do</strong> já bastante debilita<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>ença é<br />
que, certo dia, Cassiano Gomes se lembra <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong>: “E ficava<br />
cala<strong>do</strong>, recontan<strong>do</strong> os caibros, negros de picumã, e espian<strong>do</strong><br />
a mexida das aranhas, que jogavam fios-a-prumo para subir e<br />
descer. E, pela primeira vez nesses meses, se lembrou <strong>do</strong> irmão<br />
assassina<strong>do</strong>, realizan<strong>do</strong> ser por causa da morte <strong>do</strong> mesmo que<br />
ele andara em busca de Turíbio To<strong>do</strong>”. 23<br />
Turíbio, ao retornar de São Paulo, chega transforma<strong>do</strong>. Nas<br />
palavras <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: “Saltou <strong>do</strong> trem com uma piteira, um<br />
relógio de pulseira, boas roupas e uma nova concepção <strong>do</strong><br />
universo” 24 . Retorna com saudades da mulher, disposto a tu<strong>do</strong><br />
esquecer e portan<strong>do</strong> mesmo um discurso pacifista. E é aí, no<br />
hiato <strong>do</strong> ódio, razão desarrazoada que insuflava o seu viver,<br />
que ele é pego de surpresa e, desarma<strong>do</strong>, recebe a morte pelas<br />
mãos de um capiau franzino em cuja companhia perfizera<br />
parte <strong>do</strong> caminho e a quem já então se afeiçoara bastante.<br />
Esse capiau, chama<strong>do</strong> Vinte-e-Um, que se apresentara como<br />
compadre <strong>do</strong> faleci<strong>do</strong> Cassiano Gomes, fora ajuda<strong>do</strong> pelo<br />
solda<strong>do</strong> já moribun<strong>do</strong>, ocasião em que lhe prometera, como<br />
último desejo, vingar a morte <strong>do</strong> irmão, dan<strong>do</strong> fim ao tal<br />
Turíbio To<strong>do</strong>.<br />
23 ROSA, 1984, p. 180.<br />
24 ROSA, 1984, p. 182.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 181
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Na narrativa, Vinte-e-Um é a prova maior <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong>s<br />
lances daquele jogo e da sua perda de centro: jogada a primeira<br />
pedra, impossível conceber que seu raio de ação permaneça<br />
no entorno <strong>do</strong>s principais joga<strong>do</strong>res sem contaminar outros<br />
elementos, que serão envoltos também nessa rede ao mesmo<br />
tempo lúdica e bélica. O próprio nome <strong>do</strong> personagem Vintee-Um,<br />
que designa também um jogo de cartas, reforça a<br />
relação com o jogo e faz retornar a imagem <strong>do</strong> baralho, que<br />
aparece mais de uma vez no conto para ilustrar a contenda<br />
entre Turíbio e Cassiano: “- Tem tempo... - disse. E continuou<br />
a batida, confia<strong>do</strong> tão só na inspiração <strong>do</strong> momento, porquanto<br />
o baralho fora rebaralha<strong>do</strong> e agora tinham ambos outros<br />
naipes a jogar.” 25<br />
Mais uma vez, apenas o devir-estória e a observação aproximada<br />
das partes é que pode criar, para os acontecimentos, alguma<br />
realidade, dan<strong>do</strong> mostras de que ali é improvável poder se<br />
fiar, para agir, em uma razão plena, única ou previamente<br />
considerada. Assim como na estória <strong>do</strong>s jacarés, que abre a<br />
narrativa, observa<strong>do</strong>s de perto os duelistas é preciso dar-lhes, a<br />
ambos, as suas “razões”, agora plurais.<br />
Ao invés de reconhecer-se levianamente uma razão que<br />
governe a totalidade <strong>do</strong>s acontecimentos, o que se nota é uma<br />
determinada lógica de poder presente na fala de Cassiano<br />
Gomes. Diz ele, referin<strong>do</strong>-se a Turíbio To<strong>do</strong>: “- Ele vai como<br />
vea<strong>do</strong> acocha<strong>do</strong>, mas volta como cangussu... No meio <strong>do</strong><br />
caminho a gente topa, e quem puder mais é que vai ter razão...” 26 .<br />
A “razão” que se reconhece então é a da força, a <strong>do</strong> poder <strong>do</strong><br />
mais forte no momento <strong>do</strong> encontro, em pleno caminhar, e<br />
aparece como uma nova “razão”, suplementar às apresentadas<br />
anteriormente. Daí a importância de se acompanhar os lances<br />
lúdicos e bélicos em que os personagens se revezam e a<br />
alternância de papéis que vem expor a não-fixidez das relações<br />
e das razões que as regem, revolven<strong>do</strong> valores e verdades<br />
25 ROSA, 1984, p. 162.<br />
26 ROSA, 1984, p. 161.<br />
182 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
comumente aceitos. Esse entranhamento radical de diferentes<br />
posições e pontos de vista lança a necessidade de uma revisão<br />
de construções que se baseiam na lógica cartesiana de causa e<br />
conseqüência e de concepções como a de razão, mantene<strong>do</strong>ra,<br />
no pensamento ocidental, de toda suposta verdade e,<br />
juntamente, de muito engano. O para<strong>do</strong>xo e a ambivalência<br />
são respostas sempre provisórias aos enigmas incorpora<strong>do</strong>s<br />
pelos protagonistas nessa história de vingança e morte, e de<br />
luta pelo poder, perante a efemeridade de to<strong>do</strong>s os seres.<br />
REFERÊNCIAS<br />
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução: Maria<br />
Beatriz M. Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam<br />
Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,<br />
1973.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário<br />
Aurélio de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,<br />
1994.<br />
FOUCAULT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder. Tradução: Roberto<br />
Macha<strong>do</strong>. Rio de Janeiro: Graal, 1982.<br />
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução: Raquel<br />
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 1984.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/07/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 16/08/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 183
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
UMA RECRIAÇÃO FIEL: DIÁLOGOS ENTRE O<br />
AUTOR E O SEU TRADUTOR<br />
Erlon José Paschoal<br />
USP<br />
Resumo: A correspondência entre Curt Meyer-Clason, um<br />
<strong>do</strong>s tradutores de literatura brasileira em língua alemã mais<br />
premia<strong>do</strong>s em nosso país, e João Guimarães Rosa lança<br />
luz sobre os aspectos <strong>do</strong> ofício e da missão <strong>do</strong> tradutor, no<br />
qual “cada palavra está por fio”. Nessa convivência intensa<br />
debatem-se as possibilidades e impossibilidades da tradução,<br />
sempre com muito paixão pela arte literária e zelo pelo leitor.<br />
Palavras-chave: Tradução. Tradutor. Convivência.<br />
Abstract: The correspondence between Curt Meyer-Clason,<br />
one of the translators of Brazilian literature in German<br />
language more rewarded in our country, and João Guimarães<br />
Rosa, throw light on the aspects of the craft and the mission<br />
of the translator, in which each word hung by a thin thread. In<br />
this intense relationship the possibilities and impossibilities of<br />
the translation are struggled, always with much passion for the<br />
literary art and zeal for the reader.<br />
Keywords: Translation. Translator. Relationship.<br />
Em um seminário realiza<strong>do</strong> em Berlim em Setembro de<br />
2007 para comemorar os dez anos de existência <strong>do</strong> Deutscher<br />
Übersetzerfonds (Fun<strong>do</strong> Alemão para a Tradução) alguns<br />
pontos relevantes sobre a tarefa <strong>do</strong> tradutor foram discuti<strong>do</strong>s<br />
e valeria a pena mencioná-los 27 : que concepção lingüística<br />
orienta as nossas traduções? Até que ponto é realmente<br />
possível traduzir? Como variou ao longo <strong>do</strong> tempo o conceito<br />
de tradução? Existem critérios para uma boa tradução? Quais<br />
27 Revista Humboldt, nº 96, 2008, pág. 84.<br />
184 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
seriam eles?<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
As palavras rotulam coisas. Assim as palavras seriam como<br />
etiquetas de coisas que se reconhece sem a língua. Esse<br />
raciocínio está fundamenta<strong>do</strong> no Crátilo de Platão. Para ele a<br />
língua atrapalha a compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e só existe como<br />
meio de comunicação entre os homens. Nesse caso traduzir<br />
seria fácil. Bastaria substituir uma palavra associada a uma<br />
coisa, a um conceito, na língua de partida à palavra equivalente<br />
na língua de chegada.<br />
Quase <strong>do</strong>is mil anos depois, Wilhelm von Humboldt assumiu<br />
a posição oposta. Segun<strong>do</strong> ele, as palavras não são apenas sons<br />
e sim a combinação da dimensão material com a dimensão<br />
espiritual. Só a partir das palavras é possível compreender o<br />
mun<strong>do</strong> e são elas que determinam a nossa visão de mun<strong>do</strong>.<br />
Como cada palavra é única em sua qualidade sonora e<br />
significativa, o acesso ao mun<strong>do</strong> depende da língua utilizada.<br />
Aceitan<strong>do</strong>-se esse fato, traduzir seria impossível ou, no mínimo,<br />
extremamente difícil. Schleiermacher chegou a afirmar que<br />
cada tradução deveria deixar transparecer que é uma tentativa<br />
impossível.<br />
Em resumo, o conceito de tradução se modificou através <strong>do</strong>s<br />
séculos, mas sempre oscilan<strong>do</strong> entre <strong>do</strong>is pólos: o da fidelidade<br />
ao texto e o da interpretação <strong>do</strong> tradutor. São conceitos<br />
curiosos, bem semelhantes aos de uma relação afetiva: ou você<br />
é fiel ou comete traição, train<strong>do</strong> o autor ao se envolver com<br />
outras palavras. Daí que a falsidade, a traição e a infidelidade<br />
sejam até hoje os piores crimes <strong>do</strong> tradutor.<br />
Para muitos o tradutor não passa de um simples decodifica<strong>do</strong>r<br />
passivo, que deve se submeter ao autor em função de um<br />
conceito de obra original, como uma aura quase sagrada. Vale<br />
lembrar que o conceito de autoria e o de originalidade literária<br />
são por si só temas complexos e relativamente recentes,<br />
remontan<strong>do</strong> fundamentalmente ao século XIX. Nesse contexto<br />
é importante ressaltar que o tradutor literário também é um<br />
autor, o autor de sua própria tradução, uma autoria garantida<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 185
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
pela lei de propriedade intelectual.<br />
A verdade provavelmente está no meio termo porque to<strong>do</strong><br />
tradutor oscila sempre entre <strong>do</strong>is pólos: a modéstia própria de<br />
sua posição de servi<strong>do</strong>r, de submisso, e o orgulho produzi<strong>do</strong><br />
pela consciência instintiva de sua condição de cria<strong>do</strong>r. Mantém<br />
assim um equilíbrio sempre instável entre esses <strong>do</strong>is extremos;<br />
é esse o maior desafio <strong>do</strong> tradutor. Como afirmou certa vez<br />
Ezra Pound, existem tradutores que fracassam mais por falta<br />
de caráter <strong>do</strong> que por falta de inteligência.<br />
O tradutor espanhol Miguel Saenz, ironizan<strong>do</strong> essa situação,<br />
sugeriu que no caso <strong>do</strong>s primeiros tradutores da Bíblia havia<br />
entre autor e tradutor uma relação monacal 28 . O tradutor, como<br />
um monge beneditino, estaria liga<strong>do</strong> ao texto por votos não<br />
expressamente formula<strong>do</strong>s de castidade, pobreza e obediência.<br />
Castidade, porque está proibi<strong>do</strong> de manter com o texto original<br />
relações que não sejam puramente platônicas e formais. Além<br />
disso, o tradutor deveria praticar uma espécie de celibato<br />
intelectual e enfrentaria dificuldades sempre que pretendesse<br />
afirmar-se como escritor original. A pobreza não se devia tanto<br />
à baixa remuneração, mas a sua voluntária anulação frente ao<br />
autor: só muito recentemente, por exemplo, conseguiu-se que<br />
o seu nome aparecesse na obra traduzida.<br />
Deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> os exageros de tais comparações, é curioso<br />
assinalar como essa relação entre autor e tradutor foi alvo de<br />
interesse de grandes escritores. Ao longo <strong>do</strong>s últimos séculos<br />
a postura <strong>do</strong> autor frente ao tradutor vai <strong>do</strong> desprezo altivo à<br />
amizade mais estreita.<br />
O escritor austríaco Thomas Bernhard, por exemplo, <strong>do</strong> qual<br />
tive o prazer de traduzir a obra teatral Ludwig e suas irmãs,<br />
afirmou em sua obra Der Weltverbesserer 29 que to<strong>do</strong> livro<br />
traduzi<strong>do</strong> “é como um cadáver destroça<strong>do</strong> por um automóvel<br />
28<br />
Eizie, www.eizie.org/es/Argitalpenak/Senez/19930701/Saenz ,<br />
julho de 1983, Autor y Traductor.<br />
29<br />
Der Weltverbesserer (O conserta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>), de Thomas Bernhard,<br />
em Die Stücke, Editora Suhrkamp, 1983, págs. 103 e 104.<br />
186 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
até se tornar irreconhecível”. Para ele, um livro traduzi<strong>do</strong><br />
não tem nada a ver com o original e precisamente por isso<br />
reconhece que a sua autoria pertence ao tradutor. E leva adiante<br />
o seu raciocínio: “os tradutores desfiguram os originais”; “o<br />
material traduzi<strong>do</strong> chega ao merca<strong>do</strong> como deformação”; “são<br />
o diletantismo e o desleixo <strong>do</strong> tradutor que tornam a tradução<br />
tão repulsiva”; “o texto traduzi<strong>do</strong> é sempre asqueroso”.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, para muitos autores a relação com o tradutor<br />
era uma verdadeira história de amor. Milan Kundera, por<br />
exemplo, cuida e se ocupa intensamente das traduções de suas<br />
obras, e declarou que elas representam o que o mun<strong>do</strong> conhece<br />
dele. Günter Grass, por sua vez, não somente lê, analisa e<br />
acompanha as traduções de cada um de seus livros, como<br />
também recebe os tradutores em casa, convive com eles e<br />
certa feita fez uma afirmação favorável aos tradutores: quan<strong>do</strong><br />
pensou na possibilidade de não conseguir escrever, deu-se<br />
conta de que não poderia mais se reunir com seus tradutores<br />
e por isso decidiu continuar escreven<strong>do</strong>. Jorge Luiz Borges<br />
e Ezra Pound chegaram a recomendar aos seus tradutores<br />
que traduzissem não o que escreveram, mas o que tiveram a<br />
intenção de escrever. Miguel Saenz cita também o exemplo<br />
<strong>do</strong> escritor espanhol Javier Tomeo que chegou a propor a sua<br />
tradutora alemã, Elke Wehr, um plano para quan<strong>do</strong> acabasse<br />
a sua inspiração para escrever. Ele traduziria de volta para o<br />
espanhol a sua última obra traduzida para ao alemão, que seria<br />
novamente traduzida para ao alemão pela tradutora, que seria<br />
novamente traduzida para o espanhol, e assim por diante.<br />
Guimarães Rosa definiu a tradução como convivência: “traduzir<br />
é conviver” 30 . Ele é um <strong>do</strong>s exemplos mais notáveis de uma<br />
grande amizade surgida entre autor e tradutor, chegan<strong>do</strong><br />
algumas vezes a uma verdadeira simbiose. Em relação ao<br />
seu tradutor italiano, E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri, Rosa afirmou: “com<br />
você não tenho me<strong>do</strong> de nada!” 31 Numa das últimas edições<br />
30 Revista Humboldt, nº 16, 1968.<br />
31 João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor italiano<br />
E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri, Ed. Nova Fronteira/UFMG, 3º edição, 2003, pág. 51.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 187
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
de Grande Sertão: Veredas, ele exigiu que se publicasse em fac<br />
simile a primeira página da tradução italiana.<br />
Segun<strong>do</strong> Guimarães Rosa, a tradução de Curt Meyer-Clason<br />
para o alemão era “magistral e definitiva” 32 . Quan<strong>do</strong> da<br />
publicação de suas obras em alemão, afirmou em uma de<br />
suas cartas que a língua alemã seria mais apta que o português<br />
para captar o universo sertanejo: “a tradução e a publicação<br />
em alemão me entusiasma, por sua lata significação cultural, e<br />
porque julgo esse idioma o mais apto a captar e a refletir todas<br />
as nuanças da língua e <strong>do</strong> pensamento em que tentei vazar os<br />
meus livros” 33 .<br />
Essa relação entre autor e tradutor expressa-se de maneira<br />
eloqüente nas cartas trocadas entre ambos no perío<strong>do</strong> de<br />
janeiro de 1958 a agosto de 1967. Elas tratam da tradução para<br />
o alemão das principais obras de Guimarães Rosa – Grande<br />
Sertão: Veredas, Corpo de Baile, Primeiras estórias e Sagarana<br />
(Grande Sertão, Corps de Ballet, Das dritte Ufes des Flusses, Mein<br />
Onkel der Jaguar e Sagarana) - e revelam muito da intimidade<br />
entre duas pessoas sensíveis de mun<strong>do</strong>s e línguas distintas e <strong>do</strong>s<br />
meandros <strong>do</strong> trabalho de um tradutor empenha<strong>do</strong> em obter o<br />
melhor resulta<strong>do</strong> das criações lingüísticas de Guimarães Rosa<br />
em sua própria língua. Uma missão de vida na qual cada palavra<br />
está por fio, pois está recheada com os respectivos tesouros<br />
de seu país e só deixa entrever a sua verdadeira importância<br />
quan<strong>do</strong> “pesada pelo intermediário na balança de seu coração<br />
e transformada em moeda corrente em seu país”. 34<br />
As cartas tratam pormenorizadamente das possíveis traduções<br />
para palavras e expressões utilizadas e criadas pelo autor e<br />
endereçadas a um leitor que não possuía nenhuma referência<br />
<strong>do</strong> universo por onde circulavam os personagens. O autor<br />
32 João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão<br />
Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003,<br />
pg.43.<br />
33 Idem, pág. 25.<br />
34 Idem, pág. 110.<br />
188 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
participa então ativamente da tradução, dan<strong>do</strong> sugestões,<br />
fazen<strong>do</strong> esclarecimentos e comentários e, muitas vezes,<br />
propon<strong>do</strong> soluções, em função <strong>do</strong> seu vasto conhecimento<br />
lingüístico, que incluía o alemão. Essa relação de amizade, na<br />
qual ambos compartilhavam objetivos comuns – Guimarães<br />
Rosa considera a tradução para o alemão a mais importante<br />
–, visa não somente à tradução das palavras, mas também<br />
<strong>do</strong> ambiente, da musicalidade e da linguagem poética que<br />
compõem a obra. Em tese, ninguém melhor que o autor para<br />
explicar as suas próprias intenções, decifrar o texto e ressaltar<br />
o que merece destaque. Essa forte amizade fazia Guimarães<br />
Rosa se referir a Curt Meyer-Clason como o melhor <strong>do</strong>s seus<br />
tradutores e o melhor tradutor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, “um diabo de<br />
homem, um gênio da tradução” 35 .<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, a tradução perfeita poderia ser talvez aquela<br />
feita pelo próprio autor. Não temos na história muitos<br />
exemplos. O melhor seria, sem dúvida, o de Samuel Beckett,<br />
que na realidade escreveu a sua obra em duas línguas – o<br />
francês e o inglês. Para muitos são obras que não foram de<br />
fato traduzidas, mas escritas em duas versões, a ponto de<br />
não se saber qual é a original. O autor e o tradutor chegam<br />
ao resulta<strong>do</strong> por caminhos diferentes. O tradutor parte de um<br />
texto previamente da<strong>do</strong> e a to<strong>do</strong> momento precisa assumir<br />
posições, fazer escolhas e tomar decisões. O autor tem em<br />
princípio uma liberdade absoluta. Poderíamos até deduzir daí<br />
que traduzir uma obra é mais difícil <strong>do</strong> que escrevê-la, o que<br />
naturalmente seria bastante discutível.<br />
O tradutor tem, por outro la<strong>do</strong>, o distanciamento necessário, e<br />
o contato com o autor pode aumentar as possibilidades de se<br />
atingir o melhor resulta<strong>do</strong>. Numa entrevista dada ao escritor e<br />
jornalista alemão Günter Lorenz, em 1965, Guimarães Rosa<br />
afirmou: “Confesso com muito prazer que Curt Meyer-Clason<br />
me convenceu de que uma passagem de meu romance era mais<br />
convincente em alemão que em meu original. É claro que aceito<br />
35 Idem, pág. 14.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 189
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
isso, e em uma nova edição brasileira preten<strong>do</strong> adaptar esta<br />
passagem à versão que Meyer-Clason encontrou em alemão. A<br />
isto eu chamo cooperação, co-pensamento.” 36 .<br />
Para Meyer-Clason, a linguagem <strong>do</strong> sertanejo presente na obra<br />
de Guimarães Rosa é muito difícil de ser traduzida. Afirmou<br />
ele: “Se tentasse criar uma língua de, digamos, ‘caboclos<br />
alemães’, das várias províncias alemãs, teria si<strong>do</strong> um erro grave,<br />
já que o leitor alemão teria si<strong>do</strong> tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> ambiente brasileiro.<br />
Inventei então uma língua nova. Uma linguagem que não fosse<br />
da cidade, uma linguagem diferente que pudesse acompanhar o<br />
tom e a música da língua brasileira. O alemão <strong>do</strong> Grande Sertão<br />
é facilmente compreendi<strong>do</strong> pelo leitor. Ele apenas percebe que<br />
não é uma linguagem usual. Criei uma ilusão para expressar<br />
as intenções <strong>do</strong> gênio sertanejo. Como vivi no Brasil quan<strong>do</strong><br />
jovem, tinha alguma intuição <strong>do</strong> sentir <strong>do</strong> brasileiro. E por isso<br />
creio que minha tradução conseguiu reativar, imitar, recriar um<br />
pouco o âmbito, o sentir <strong>do</strong> homem brasileiro <strong>do</strong> interior. Essa<br />
era minha ambição mais alta e o Guimarães Rosa, se bem me<br />
lembro, com sua intuição de grande artista, sentiu que o tom e<br />
o som da minha fala tinham uma qualidade igual” 37 .<br />
Guimarães Rosa assim se manifestou no tocante à recriação<br />
<strong>do</strong> universo singular de sua obra: “Naturalmente, eu mesmo<br />
reconheço que muitas das ‘ousadias’ expressionais têm de ser<br />
perdidas, em qualquer tradução. O mais importante, no livro,<br />
o verdadeiramente essencial, é o conteú<strong>do</strong>. A tentativa de<br />
reproduzir tu<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong>, tom a tom, faísca a faísca, golpe a golpe,<br />
o monólogo sertanejo exacerba<strong>do</strong>, seria empreendimento<br />
gigantesco e chinesamente minuciosíssimo, obra de árdua<br />
recriação, custosa, temerária e aleatória. Sei que nem o editor,<br />
nem o tradutor, nem o autor, podemos correr tamanho risco.<br />
E pensan<strong>do</strong> assim, reconheço também que temos de fazer<br />
36 Idem, pág. 12/13, entrevista a Günter Lorenz em 1965 reproduzida<br />
no Correio da Manhã de 3 de junho de 1971.<br />
37 O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, Caderno 2, 27 de Maio de 2006.<br />
190 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
sacrifícios” 38 .<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Pode-se concluir dizen<strong>do</strong> que as traduções de Meyer-Clason<br />
contribuíram enormemente para o enriquecimento <strong>do</strong> idioma<br />
alemão e para o alargamento <strong>do</strong>s horizontes de sua literatura.<br />
As obras traduzidas acabam fazen<strong>do</strong> parte da literatura <strong>do</strong> país<br />
para o qual elas foram traduzidas.<br />
Afinal, ao incorporar Guimarães Rosa, a língua alemã teve de<br />
fazer malabarismos profun<strong>do</strong>s, o que a obrigou a se flexibilizar,<br />
o que significa se desenvolver e fortalecer-se. Colocan<strong>do</strong> em<br />
prática o princípio estabeleci<strong>do</strong> por Walter Benjamin, o alemão<br />
se aportuguesou através da literatura de Guimarães Rosa<br />
por intermédio da tradução de Curt Meyer-Clason. Ou, nas<br />
palavras <strong>do</strong> escritor mineiro “a gente morre é para provar que<br />
viveu” 39 .<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/09/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 25/09/2008<br />
38 João Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor alemão<br />
Curt Meyer-Clason, Ed. Nova Fronteira/UFMG/ABL, 1º edição, 2003, pág.<br />
113.<br />
39 Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 15<br />
de novembro de 1967.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 191
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
A MICROLOGIA DO COTIDIANO EM<br />
TUTAMÉIA: TERCEIRAS ESTÓRIAS<br />
Paulo Muniz da Silva<br />
Ufes<br />
Resumo: Breves apontamentos sobre o cômico e o riso na<br />
linguagem de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa.<br />
Palavras-chave: Literatura. Humor. Riso.<br />
Resumé: Brèves notes sur le comique et le rire dans la langage<br />
de Tutaméia: terceiras estórias, de Guimarães Rosa.<br />
Mots-clés: Littérature. Humeur. Rire.<br />
Apresentação<br />
[...] balizan<strong>do</strong> a posição-limite da irrealidade<br />
existencial ou de estática angústia [...] será aquela<br />
<strong>do</strong> cidadão que viajava de bonde, passageiro<br />
único, em dia de chuva, e, como estivesse justo<br />
senta<strong>do</strong> debaixo de goteira, perguntou-lhe o<br />
condutor por que não trocava de lugar. Ao<br />
que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: –<br />
“Trocar... Com quem?” (ROSA, 1985, p. 8).<br />
Como anuncia essa epígrafe, propomos breves apontamentos<br />
sobre a comicidade e o humor na linguagem de Tutaméia<br />
(terceiras estórias), em três contos: “Antiperipléia”, “Como<br />
ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”. Nossa base teórica para enfrentar<br />
os textos será o primeiro prefácio “Aletria e hermenêutica”,<br />
associa<strong>do</strong> a Vladímir Propp e Henri Bergson.<br />
192 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Se partirmos de uma poética construída com a linguagem que<br />
se assemelha àquelas que circulam na micrologia <strong>do</strong> cotidiano 40 ,<br />
poderemos ouvir, nas terceiras estórias, vozes que se movem,<br />
como num fugato musical, produzin<strong>do</strong> intervalos em que se<br />
pode saltar <strong>do</strong> cômico ao sublime. O discurso micrológico, de<br />
conteú<strong>do</strong> aparentemente inexpressivo, afina-se com o diapasão<br />
semântico da palavra “tuta-e-meia”, ou seja, ninharia, quase<br />
nada, para concertar, scherzan<strong>do</strong>, 41 com o prefácio “Aletria e<br />
hermenêutica”, as narrativas polifônicas, às vezes, em tom<br />
menor, mas divertidíssimas.<br />
Há passagens, nos contos, em que os intervalos estreitos de um<br />
acorde diminuto, evocariam a melancolia em face da morte,<br />
por exemplo, no conto “Antiperipléia”. Mas até aí o clima é<br />
de comédia. A possibilidade <strong>do</strong> riso diante da precariedade da<br />
linguagem <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r dissipa a tristeza. Dita<strong>do</strong>s populares e<br />
ane<strong>do</strong>tas de extração oral insuflam a poesia contra a lógica,<br />
tornan<strong>do</strong>-se instrumentos de questionamento das fronteiras<br />
que separariam o ridículo <strong>do</strong> sublime.<br />
Micrologia e tuta-e-meia<br />
A partir <strong>do</strong> sintagma micrologia <strong>do</strong> cotidiano, intentamos,<br />
inspira<strong>do</strong> por Paulo Rónai, fazer um contato com o título<br />
Tutaméia, passan<strong>do</strong> pela palavra “tuta-e-meia”, que, no<br />
dicionário <strong>do</strong> Aurélio (FERREIRA, 1986), de língua<br />
40 Aproprio-me de termo dicionariza<strong>do</strong>. MICROLOGIA. In: FER-<br />
REIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da língua portuguesa.<br />
2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1729.<br />
41 Refiro-me aqui ao scherzo: tipo de canção profana, viva e alegre,<br />
executada a várias vozes, que Beethoven inseriu definitivamente nas grandes<br />
formas da sonata, da sinfonia e <strong>do</strong> quarteto, substituin<strong>do</strong> o minueto.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 193
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
portuguesa, se circunscreve às expressões “ninharia, quase<br />
nada, preço vil, pouco dinheiro”. A palavra “micrologia”<br />
registra-se como discurso frouxo, de conteú<strong>do</strong> inexpressivo.<br />
Assim, com “micrologia” e Tutaméia sugerimos que as<br />
terceiras estórias podem referir-se à obra de arte literária como<br />
um lugar fugidio; um corpo discursivo que se movimenta na<br />
reta de colisão com o para<strong>do</strong>xo, ou seja, com aquilo que pode<br />
ser ou apenas parecer um contra-senso, um absur<strong>do</strong> (SILVA,<br />
1994, p. 11).<br />
Podemos chegar às estórias por meio das vias sinuosas <strong>do</strong><br />
humor, indicadas pelas ane<strong>do</strong>tas que se lêem no prefácio<br />
“Aletria e Hermenêutica”. Nas palavras de Benedito Nunes, “o<br />
clima geral de Tutaméia, mesmo quan<strong>do</strong> se mata ou se morre,<br />
é o clima da comédia” (NUNES, 1976, p. 204). A comédia,<br />
explica Nunes, imprime um “ritmo dramático”, em prol da<br />
vida e da restauração de suas forças. Esse ritmo determina,<br />
nos contos, a solução das contradições da ação, a interrupção<br />
<strong>do</strong> sofrimento e o restabelecimento espontâneo <strong>do</strong> equilíbrio,<br />
para que se dê prosseguimento à existência.<br />
Aqui já se põe uma armadilha. Se o discurso for chistoso,<br />
micrológico, a literatura que dele se constitui valerá mesmo<br />
uma tuta-e-meia? Não. E o próprio Guimarães Rosa o<br />
justifica. “Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque<br />
escancha os planos da lógica, propon<strong>do</strong>-nos realidade superior<br />
e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento.”<br />
(ROSA, 1985, p. 7)<br />
Diante <strong>do</strong> discurso anedótico, a “hermenêutica” não trará para<br />
as “aletrias” apenas a interpretação <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>. Poderá ater-se à<br />
reciclagem e à constante atualização semântica das construções<br />
de linguagem que perdem o ineditismo em que consistiria um<br />
final inespera<strong>do</strong> ou contrário ao espera<strong>do</strong> de uma estória. Aí,<br />
na reiteração desse final, estaria o drolático (que provoca o riso,<br />
que diverte), responden<strong>do</strong> a uma operação mental necessária<br />
para a fruição das “ane<strong>do</strong>tas de abstração” e das estórias<br />
propostas por Tutaméia. As “ane<strong>do</strong>tas de abstração” seriam<br />
194 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
aquelas que, tangen<strong>do</strong> o não-senso, refletiriam “por um triz<br />
a coerência geral, que nos envolve e nos cria.” (Ibid., p. 8). 42<br />
Assim, reformulan<strong>do</strong> locuções e provérbios que tendem a<br />
representar a sabe<strong>do</strong>ria consagrada e popular, Guimarães Rosa<br />
propõe, a partir da reciclagem desses pequenos discursos orais,<br />
a mobilização <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s aloja<strong>do</strong>s nas <strong>do</strong>bras <strong>do</strong> não-senso.<br />
No primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”, a abstração<br />
de tais ane<strong>do</strong>tas, na linguagem de Tutaméia, ora nos eleva<br />
ao universal abstrato, ora nos baixa ao concreto, à terra <strong>do</strong><br />
cotidiano, ao chão, para que aspiremos o húmus, o suor da<br />
realidade circunstante por meio de temas como, a mendicância<br />
e a dignidade, no conto “Antiperipléia”; o desprezo e a<br />
admiração, no conto “Como ataca a sucuri”; a violência, a<br />
homoafetividade viril e a fidelidade, no conto “– Uai, eu?”.<br />
Mas muito outros temas lhe captam também, esses foram os<br />
que elegemos para pontuar brevemente aqui.<br />
Nesses contos, não se escamoteiam os efeitos desagrega<strong>do</strong>res<br />
da pobreza, grassan<strong>do</strong>, sem piedade, sobre as gentes que<br />
vegetam por esses brasis de infindáveis transumâncias e,<br />
porque não, catrumâncias: cangaços, romarias, sertões,<br />
cidades, lupanares e linguagens. Entretanto, não se fazem da<br />
apreciação dessas paisagens sociais reivindicações populistas,<br />
porque os personagens aí atuan<strong>do</strong> emitem, sobre si e outrem,<br />
opiniões compactas e sem espírito de conciliação com o<br />
mun<strong>do</strong> que os cerca. Por isso, o riso torna-se possível até aí<br />
onde, aparentemente, a piedade <strong>do</strong>minaria. Talvez, como<br />
queria Freud, até o riso como uma atitude defensiva contra a<br />
possibilidade <strong>do</strong> sofrimento.<br />
A partir daqui, apontaremos breves possibilidades <strong>do</strong> riso na<br />
linguagem micrológica <strong>do</strong>s contos “Antiperipléia”, “Como<br />
ataca a sucuri” e “– Uai, eu?”, aproximan<strong>do</strong>-os de Vladímir<br />
Propp, pelas vias <strong>do</strong> humor. Tomaremos o humor como<br />
uma predisposição mental com capacidade para perceber<br />
42 Quan<strong>do</strong> me referir mais de uma vez a este livro de Guimarães<br />
Rosa, de forma consecutiva, indicarei apenas o número das páginas citadas.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 195
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
o cômico e o risível, no momento em que ocorrem, e para<br />
desvelar, inesperadamente, um la<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong> da realidade<br />
aparente, que a visão habitual não apreende. Nos três contos,<br />
a comicidade pode repousar também “nas fraquezas e nas<br />
misérias humanas” (HARTMANN apud PROPP, 1992, p. 44).<br />
Em “Antiperipléia”, pode-se rir da e com a comicidade <strong>do</strong><br />
picaresco Prudencinhano, personagem-narra<strong>do</strong>r da estória.<br />
Ali, ele está posto sob suspeita de ter causa<strong>do</strong> a morte de “sêo<br />
Tomé”, o cego galã que ele guiava. Em suas palavras dirigidas<br />
ao narratário, “Sêo Desconheci<strong>do</strong>”, elogia o cego, que lhe<br />
superava no quesito objeto de desejo das mulheres, e depreciase,<br />
expressan<strong>do</strong>-se por meio da reutilização de vários dita<strong>do</strong>s<br />
populares, entre os quais um que autoriza explicitamente o<br />
riso: “o roto só pode mesmo rir é <strong>do</strong> esfarrapa<strong>do</strong>.” (ROSA,<br />
1985, p. 19).<br />
Circunscreve-se ao caricatural o efeito humorístico obti<strong>do</strong><br />
pela configuração física e psicológica <strong>do</strong> ébrio Prudencinhano.<br />
Em suas palavras, ele era “[...] assim calunga<strong>do</strong>, corcunda<strong>do</strong><br />
cabeçudão” (p. 19). A possibilidade de se compadecer de<br />
seu aspecto físico deforma<strong>do</strong> atenua-se, no entanto, com a<br />
comicidade suscitada pela aparente embriaguez de raciocínio<br />
que seu discurso indica. Ele organiza sua fala num discurso<br />
fugidio, frouxo, micrológico, e possibilita o cômico na<br />
formulação de para<strong>do</strong>xos involuntários e nos alogismos<br />
implícitos. Segun<strong>do</strong> Propp, os alogismos se produzem na vida<br />
e na arte literária. Na vida, pela realização de ações insensatas;<br />
na literatura, pela expressão de coisas absurdas (PROPP, 1992).<br />
Vejamos um trecho de “Antiperipléia” em que a concentração<br />
não-convencional das formas que expressam o absur<strong>do</strong> pode<br />
provocar o riso na fala desse personagem, que nega ter mata<strong>do</strong><br />
o patrão cego: “Me prendam! Me larguem! A mulher esteja<br />
quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não<br />
enxerga mais... A culpa cai sempre é no guia<strong>do</strong>r?” (p. 21). Isso<br />
nos remete a Vladímir Propp que, estudan<strong>do</strong> a comicidade<br />
e o riso, aponta como possibilidades <strong>do</strong> cômico, os defeitos<br />
196 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
físicos, “mas somente aqueles cuja existência e aspecto não<br />
nos ofendam e nos revoltem, e ao mesmo tempo não suscitem<br />
piedade e compaixão. Desse mo<strong>do</strong>, um corcunda só provoca o<br />
riso numa pessoa moralmente imatura” (PROPP, 1992, p. 60).<br />
Os contos “Como ataca a sucuri” e “– Uai, eu?” tendem a<br />
desviar nossa atenção <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> discurso, para as formas<br />
exteriores de sua expressão. Aí, nessas formas, pode-se cercar<br />
drolático. O narra<strong>do</strong>r de “Como ataca a sucuri” medeia a<br />
possibilidade de atritos quase letais entre <strong>do</strong>is personagens:<br />
Drepes, um tipo de pesca<strong>do</strong>r-caça<strong>do</strong>r moderno, e Pajão, um<br />
personagem de compleições físicas disformes e humanidade<br />
tosca; um “catrumano” habitua<strong>do</strong> aos “cenários ermos e<br />
rústicos, intoca<strong>do</strong>s pelo progresso” (RÓNAI, 1985, p. 220).<br />
Nessa mediação de choques culturais, o narra<strong>do</strong>r gravita entre<br />
a ironia de um e a rispidez <strong>do</strong> outro. No trecho que ora cito,<br />
destacam-se, nas palavras de Pajão, a solidariedade ríspida e a<br />
alteridade áspera median<strong>do</strong> as relações entre os <strong>do</strong>is homens<br />
no terreno <strong>do</strong> conhecimento que cada um teria acerca <strong>do</strong> que<br />
se fala e <strong>do</strong> que se pode constatar sobre a periculosidade da<br />
cobra sucuri:<br />
“Pega homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar<br />
os carretéis daquele relógio cego. Saía, aventa<strong>do</strong>, no<br />
outro dia, para o <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> poço <strong>do</strong> marimbu, hum, com<br />
receio nenhum, seguro de tu<strong>do</strong>. Sozinho, xê. Delatava<br />
a ele o caminho uma caixeta re<strong>do</strong>nda que tinha, boceta<br />
de herege. Zanzava, mexia, vai ver não voltava! “Sucruiú<br />
come homem?” Deus queren<strong>do</strong> come. (ROSA, 1985, p.<br />
39: itálicos e aspas <strong>do</strong> autor).<br />
No conto “– Uai, eu?”, Jimirulino, detento, condena<strong>do</strong> por<br />
três assassinatos, destaca, em primeira pessoa, as qualidades <strong>do</strong><br />
Doutor Mimoso, seu ex-patrão, com uma admiração que beira<br />
as inclinações homoeróticas. Quan<strong>do</strong> o descreve, o personagem<br />
investe nas multiplicidades de um mun<strong>do</strong> de sensações<br />
associadas ao amor, que não o conectam afetivamente ao expatrão,<br />
mas o rodeiam, evocan<strong>do</strong> possibilidades de experiências<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 197
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
prazerosas circunscritas ao espaço <strong>do</strong>méstico: a cama e a mesa.<br />
Ah, que saudades que eu não tenha... Ah, meus bons<br />
maus-tempos! Eu trabalhava para um senhor Doutor<br />
Mimoso. Sururjão, não; é solorgião. Inteiro na fama<br />
– olh’alegre, justo inteligentu<strong>do</strong> – calibre de quilate<br />
de caráter. Bom até-onde-que, bom como cobertor,<br />
lençol e colcha, bom mesmo quan<strong>do</strong> com <strong>do</strong>r de<br />
cabeça: bom, feito mingau a<strong>do</strong>ça<strong>do</strong>. (p. 197).<br />
Moven<strong>do</strong>-se nas <strong>do</strong>bras da linguagem com uma liberdade<br />
limitada por uma aparente pobreza vocabular, Jimirulino toca<br />
os limites de seu lugar de origem como se fosse também desse<br />
lugar prisioneiro. A sugerida espontaneidade de seu discurso<br />
provoca o riso, porque também nos conduz ao deslocamento<br />
<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> para as formas exteriores de sua expressão. Ele<br />
fala de sua afeição pelo Doutor Mimoso por meio de figuras<br />
semelhantes à catacrese, crian<strong>do</strong> configurações especiais de<br />
uma arbitrariedade necessária, a fim de ligar o signo lingüístico<br />
às construções de suas lembranças.<br />
Jimirulino passeia sem preconceitos e, às vezes, sem princípios,<br />
entre o kitsch e o sublime, entre sacrifícios sublimes e baixarias,<br />
talvez, a fim de justificar sua homoafetividade viril e pacificar as<br />
tensões que intermedeiam suas “saudades”. Se, com o sublime,<br />
tentará explicar sua afetividade, com a lembrança das baixarias<br />
(<strong>do</strong>s três assassinatos) não justificará sua virilidade nem<br />
pacificará as inquietudes que o ligam a “um certo Doutor”.<br />
Com esses excertos de Tutaméia, destacamos na linguagem<br />
que marcaria o intervalo entre o concreto e abstrato, entre o<br />
cômico e o excelso, o questionamento da eficácia das palavras,<br />
no mun<strong>do</strong> de signos que nos cerca. Pode-se saltar <strong>do</strong> discurso<br />
micrológico ao poético-filosófico, sem passar pelos a<strong>do</strong>rnos<br />
da retórica. Pode-se zombar <strong>do</strong> convencional que baliza os<br />
deslocamentos das palavras para as coisas e vice-versa, nas<br />
interações mediadas pela linguagem no dia-a-dia: poética e<br />
anedótica. Essa possibilidade mobiliza, no signo verbal, a<br />
multiplicidade <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s que o precedem e o sucedem<br />
198 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ad infinitum. Retornamos às palavras de Benedito Nunes:<br />
“Tutaméias não existem por si. São episódios de divina e<br />
altíssima comédia, mito em que nos compreendemos sem nada<br />
compreender” (NUNES, 1976, p. 210).<br />
REFERÊNCIAS<br />
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação <strong>do</strong><br />
cômico. 2. ed. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de<br />
Janeiro: Editora Guanabara, 1987. 105 p.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da<br />
língua portuguesa. 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1986.<br />
NUNES, Benedito. Tutaméia. In: NUNES, Benedito. O <strong>do</strong>rso<br />
<strong>do</strong> tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 203-210.<br />
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora<br />
Fornoni Bernardini e Homero F. de Andrade. São Paulo: Ática,<br />
1992. 215 p.<br />
ROSA, João Guimarães. Tutaméia (terceiras estórias). 7. ed.<br />
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 227 p.<br />
SILVA, Paulo Muniz da. A micrologia <strong>do</strong> cotidiano em Tutaméia.<br />
1994. 27 f. Monografia (Graduação em Letras-Português) –<br />
Departamento de Línguas e Letras, <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, Vitória, 1994.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 02/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 10/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 199
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
EM CÁRCERES DE PREENCHIDO SILÊNCIO,<br />
VOZES ENTRECRUZADAS: UM ESTUDO DO<br />
CONTO “QUADRINHO DE ESTÓRIA” DE<br />
GUIMARÃES ROSA<br />
Sara Novaes Rodrigues<br />
Ufes<br />
Resumo: A leitura <strong>do</strong> conto “Quadrinho de estória”, de<br />
Guimarães Rosa, traz um personagem múltiplas vezes<br />
encarcera<strong>do</strong> e totalmente imerso em recordações <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Que ecos ressoam dentro <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> conto? Este trabalho<br />
propõe uma análise <strong>do</strong> texto em questão, em busca de respostas<br />
que dêem conta dessas e outras indagações suscitadas pelo<br />
próprio texto e seu personagem central.<br />
Palavras-chave: Personagem. Vozes. Diálogo. Cárcere. Leitura.<br />
Abstract: The short story “Quadrinho de estória”, by<br />
Guimarães Rosa, has a character who is incarcerated and lives<br />
totally immersed in memories of the past. What echoes sound<br />
within the limits of his cell and the story? This paper analyses<br />
the text in search for answers to this and other question that<br />
might arise from the reading.<br />
Keywords: Character. Voices. Dialogue. Reading.<br />
Discutir Guimarães Rosa é sempre um prazer, só suplanta<strong>do</strong><br />
por outro: o da leitura de suas obras. Escolher um de seus<br />
textos para estu<strong>do</strong>, porém, é mais <strong>do</strong> que difícil: é um desafio.<br />
Na verdade, ler Rosa é vivenciar um jogo especial da linguagem,<br />
cria<strong>do</strong> por um mestre na arte de narrar. Esta leitura se justifica,<br />
no entanto, na esperança de que o atalho seleciona<strong>do</strong> para as<br />
reflexões propostas não se afaste de teorias e/ou interpretações<br />
de outros estudiosos, ou que, mais ambiciosamente, traga<br />
200 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
novas possibilidades à cena.<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Feita a seleção <strong>do</strong> conto, “Quadrinho de estória” 431 (ROSA,1985,<br />
p. 138-141), busco, inicialmente, algumas considerações sobre<br />
o gênero narrativo em questão e destaco, de início, um trecho<br />
<strong>do</strong> pensamento de Júlio Cortázar (CORTÁZAR, 1974, p. 151-<br />
2), que diz ver o conto, em sua forma fechada, como uma<br />
esfera em que “a situação narrativa em si deve nascer e dar-se<br />
(...) como se o narra<strong>do</strong>r, submeti<strong>do</strong> pela forma que assume, se<br />
movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão.”<br />
Em “Quadrinho de estória”, a tensão nasce <strong>do</strong> não dito, daquilo<br />
que o autor apenas sugere, deixan<strong>do</strong> ao leitor a oportunidade<br />
de criar sua própria narrativa. É oportuno, também, destacar<br />
a noção de demarcação de limites, que se revela crucial para a<br />
análise proposta.<br />
A sensação de cárceres múltiplos, de espaços cerca<strong>do</strong>s, é<br />
sugerida pelo próprio título <strong>do</strong> conto, que já insinua a idéia<br />
de moldura e seqüência de imagens. A leitura atenta capta<br />
termos que remetem a desenho, quadros e fotografias. Junto<br />
com alusões ao teatro, esses termos se combinam na formação<br />
<strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, que vai aqui resumi<strong>do</strong>: um encarcera<strong>do</strong> se debate<br />
entre recordações <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ao ver, “de seu caixilho de pedra<br />
e ferro”, a imagem de uma “qualquer mulher que agora vem<br />
e está passan<strong>do</strong> é uma de vesti<strong>do</strong> azul, por exemplo, nova, no<br />
meio <strong>do</strong> meio-dia, no foco da praça.” Por trás das grades, ele a<br />
observa sob os efeitos da lembrança de outra mulher, uma que<br />
se vestia de vermelho. Num poste em frente, uma aranha verde<br />
tece uma teia na lâmpada.<br />
Segun<strong>do</strong> Arlin<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> (MACHADO, op. cit., p. 45),<br />
“(...) seja qual for o referente que a motiva, [a fotografia] é<br />
sempre um retângulo que corta o visível.” Em “Quadrinho<br />
de estória”, somos guia<strong>do</strong>s pelo autor como se alguém nos<br />
mostrasse fotografias ou como se obedecêssemos às rubricas<br />
de um diretor que, sem deixar que o especta<strong>do</strong>r perceba a<br />
43 1 As citações não acompanhadas de referências são frases <strong>do</strong> con-<br />
to em estu<strong>do</strong> (conf. bibliografia).<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 201
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
sua presença, organiza um palco para obtenção <strong>do</strong> melhor<br />
efeito. Desses recortes entrevistos, desses detalhes que vão<br />
sen<strong>do</strong> acrescenta<strong>do</strong>s ao desenho, então, é que surgem as<br />
possibilidades de senti<strong>do</strong>, ou seja, as interpretações.<br />
Que imagens formam narrativas (LOOMIS, 2003, p. 8), prova-o<br />
bem o texto de Guimarães Rosa. De quadro em quadro, a<br />
estória flui através da sintaxe e <strong>do</strong>s vocábulos característicos <strong>do</strong><br />
mestre mineiro. O foco principal não aban<strong>do</strong>na o personagem<br />
central, mesmo quan<strong>do</strong> luzes secundárias destacam este ou<br />
aquele detalhe, confirman<strong>do</strong> o que se lê em Arlin<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong><br />
(op. cit., p. 29):<br />
[t]oda visão pictórica, mesmo a mais ‘realista’ ou a<br />
mais ingênua, é sempre um processo classificatório,<br />
que joga nas trevas da invisibilidade extra-quadro tu<strong>do</strong><br />
aquilo que não convém aos interesses da enunciação e<br />
que, inversamente, traz à luz da cena o detalhe que se<br />
quer privilegiar.<br />
O “início de uma narrativa é sempre arbitrário” (LOOMIS, p.<br />
10) e Rosa escolhe iniciar seu relato ao meio-dia. Tarde, noite<br />
e amanhecer, completam o círculo temporal da estória, fada<strong>do</strong><br />
a se repetir a cada leitura. Os quadros, feitos de fragmentos<br />
de “realidade” e lembranças, unem-se, então, na elaboração<br />
<strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. Contrapon<strong>do</strong> o confinamento <strong>do</strong> homem à vida<br />
fora <strong>do</strong>s muros da prisão, o autor constrói um ambiente<br />
repleto de reflexões psicológicas e filosóficas tais como: “A<br />
vida, sem escapatória, de parte contra parte”; “(...) nem pode<br />
sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro<br />
abominável”; “Viver seja talvez somente guardar o lugar de<br />
outrem, ainda diferente, ausente”, “Sejam quais o sol e céu,<br />
a palavra horizonte é escura” ou, ainda, a frase que conclui o<br />
conto: “A liberdade só pode ser um esta<strong>do</strong> diferente, e acima.<br />
A noite, o mun<strong>do</strong>, rodam com precisão legítima de aparelho.”<br />
Silencioso, o personagem ocupa um centro de limites bem<br />
demarca<strong>do</strong>s: autor, forma e enre<strong>do</strong> se sobrepõem e o cercam.<br />
O primeiro, demiurgo, cria-o já julga<strong>do</strong> e culpa<strong>do</strong>, condena<strong>do</strong><br />
202 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ao silêncio a ao turbilhão da memória. A segunda, a forma<br />
narrativa, localiza-o no centro de um conto. Cárcere de<br />
tamanho variável, o conto é recorte, é um contorno a mais ao<br />
re<strong>do</strong>r de um flagrante especial da vida (GOTLIB, 1998, p. 82).<br />
O enre<strong>do</strong>, por sua vez, fornece-lhe apenas um pedaço dessa<br />
existência. Do antes e depois, sabe-o mais o leitor, que infere,<br />
preenchen<strong>do</strong> os vazios, de acor<strong>do</strong> com seu próprio momento.<br />
Mikhail Bakhtin (2000, p. 32-3) nos lembra que o autor é o<br />
“depositário <strong>do</strong> to<strong>do</strong> <strong>do</strong> herói e o to<strong>do</strong> da obra.” Ele é<br />
a consciência de uma consciência que engloba e acaba<br />
a consciência <strong>do</strong> herói e <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong> (...). Ele vê e<br />
sabe tu<strong>do</strong> quanto vê e sabe o herói em particular e<br />
to<strong>do</strong>s os heróis em conjunto, mas também vê e sabe<br />
mais <strong>do</strong> que eles, ven<strong>do</strong> e saben<strong>do</strong> até o que é por<br />
princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse<br />
excedente, sempre determina<strong>do</strong> e constante de que se<br />
beneficia a visão e o saber <strong>do</strong> autor, em comparação<br />
com cada um <strong>do</strong>s heróis, que fornece o princípio<br />
de acabamento de um to<strong>do</strong> – o <strong>do</strong>s heróis e o <strong>do</strong><br />
acontecimento da existência deles, isto é, o to<strong>do</strong> da<br />
obra.<br />
Ao optar pelo conto, o autor sabe da exigüidade de tempo e<br />
espaço à sua disposição. E mais, sabe que é preciso condensar<br />
ali a linguagem exata, justa, mágica, que transcenda seus<br />
próprios limites a fim de libertar-se nas <strong>do</strong>bras reflexivas das<br />
entrelinhas.<br />
Fixa<strong>do</strong> num tempo priva<strong>do</strong> de esperança, o encarcera<strong>do</strong> se vê<br />
agrilhoa<strong>do</strong> a um momento de sua história. Vê-se em Bakhtin<br />
(p. 33) que “[o] interesse (ético-cognitivo) que o acontecimento<br />
apresenta para a vida <strong>do</strong> [personagem] é engloba<strong>do</strong> pelo<br />
interesse que ele apresenta para a atividade artística <strong>do</strong> autor.”<br />
Assim, ao selecionar os acontecimentos que servem de cenário<br />
ao conto, Guimarães Rosa desenha mais um círculo ao re<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> prisioneiro, dan<strong>do</strong>-lhe apenas memórias despertadas pela<br />
visão de uma mulher vestida de azul. Diferente da passante<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 203
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
baudelairiana, que faz o poeta viver uma grande história de<br />
amor, a mulher na rua traz , além de tu<strong>do</strong>, a recordação <strong>do</strong> ato<br />
que o colocou ali, entre quatro paredes.<br />
É também Bakhtin (op. cit., p. 33) quem lembra que o<br />
texto é muito mais <strong>do</strong> que se vê; que há, entre suas linhas,<br />
um cruzamento de vozes que transcende forma e enre<strong>do</strong>, e<br />
o enriquece infinitamente. No ambiente <strong>do</strong> conto rosiano, o<br />
silêncio pre<strong>do</strong>mina. Sons, só os que vêm <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lá fora<br />
e da voz maquinal de um carcereiro que não completa suas<br />
frases. Diálogos, porém, realizam-se no interior <strong>do</strong> texto. Em<br />
primeiro lugar, pode-se reafirmar o <strong>do</strong> próprio autor com a<br />
fotografia e com o desenho. Rosa já o aponta no início <strong>do</strong><br />
conto quan<strong>do</strong> usa termos que remetem ao senti<strong>do</strong> da visão<br />
em frases <strong>do</strong> tipo “foco”, “apreende”, “demarcada”, “pessoa<br />
sozinha numa página”, “encentrada, em moldura”, “A figura<br />
no tetrágono” e tais expressões continuam aparecen<strong>do</strong> ao<br />
longo <strong>do</strong> texto: “descontornada”, “perímetro de sua visão”,<br />
“retrato em branco”, “A pequena fenda na parede seqüestra<br />
uma extensão, afunda-a, como um óculo: alvéolo.”, “o vão<br />
por onde vê, recorta pedaço de céu”, “Seu cluso é uma caixa,<br />
com ângulos e faces” ou, ainda, “O sol (...) invade a quadrada<br />
abertura por onde ele é avista<strong>do</strong>, e vê, fenestreca.”<br />
Diante de fotografias, diz Arlin<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong> (p. 52), esquecemonos<br />
que “apenas simbolicamente penetramos o espaço da<br />
imagem.” O nosso olhar é o de quem vê <strong>do</strong> exterior, quem<br />
só pode julgar a partir de suas próprias experiências. A grande<br />
diferença, porém, é que ao leitor só é da<strong>do</strong> a ver aquilo que o<br />
autor julga essencial para aquela narrativa. O diálogo leitor/<br />
texto, assim, é sempre media<strong>do</strong> pela criação e realiza<strong>do</strong> pela<br />
interpretação.<br />
Vale apontar, também, a interação entre o próprio personagem<br />
com suas lembranças. Nesse espaço, tecem-se considerações<br />
em que se filtram idéias sobre a vida – às vezes em forma de<br />
aforismos – como nas frases: “uma cadeia é o contrário de um<br />
pombal; recorde, aos despreocupa<strong>do</strong>s, em rigor, a verdade”; “A<br />
204 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
liberdade só pode ser um esta<strong>do</strong> diferente, e acima”, ou ainda:<br />
“(...) chorar seria como presenciar-se morrer.” É preciso não<br />
se esquecer da interface com a sabe<strong>do</strong>ria popular representada<br />
por provérbios que o autor modifica: “mãos vazias e pássaro<br />
voan<strong>do</strong>”, “Seja tu<strong>do</strong> pelo amor de viver”, “O sol morre para<br />
to<strong>do</strong>s”.<br />
Ainda outros diálogos podem ser encontra<strong>do</strong>s à medida que a<br />
leitura prossegue. O teatro, como já foi dito, revela-se tanto pela<br />
maneira como o narra<strong>do</strong>r arruma as cenas da estória, quanto<br />
em frases como: “o plano por onde as pessoas desaparecem,<br />
imediatas”, “descortina<strong>do</strong>”, “o to<strong>do</strong> teatro”. Nesse espaço,<br />
também ressoam alusões a Nelson Rodrigues: no próprio<br />
enre<strong>do</strong> – um homem recorda uma mulher que pode ter si<strong>do</strong><br />
assassinada num ato apaixona<strong>do</strong> – e na frase “A vida como não<br />
a temos”, em que ecoa uma referência aos contos rodrigueanos<br />
publica<strong>do</strong>s em sua coluna “A vida como ela é”, publicada<br />
pelo jornal carioca “Última Hora”, entre 1951 e 1961. Nesses<br />
contos, as histórias passionais pre<strong>do</strong>minavam. Vê-se, ainda, a<br />
possibilidade de se apontar a intertextualidade com a tragédia<br />
shakespeariana, Othelo, em que, num arroubo extremo de<br />
ciúme, o personagem mata a sua mulher, Desdêmona.<br />
Retoman<strong>do</strong> um atalho já delinea<strong>do</strong> anteriormente, volto ao<br />
diálogo com Charles Baudelaire (1821–1867) que, segun<strong>do</strong><br />
Walter Benjamin (1975), foi um grande observa<strong>do</strong>r das<br />
multidões nas ruas. Também o personagem de Rosa observa<br />
os que passam em frente à sua janela. Destacam-se, como<br />
exemplo, as frases: “Surgin<strong>do</strong> e sumin<strong>do</strong>-se rua andantes<br />
vultos, reiterantes”, “menino, valete, rei; pernas, braços<br />
balançantes, roupas; um que fulanamente por acaso se parece;<br />
o que recorda não se sabe quan<strong>do</strong> e onde; o homem com o<br />
pacote de papel cor-de-rosa. Ora – ainda uma mulher. A figura<br />
<strong>do</strong> tetrágono.”<br />
A lista <strong>do</strong>s diálogos/interfaces/polifonias poderia se estender<br />
ainda mais se fossem trazidas ao quadro as ideologias, as<br />
instituições sociais, as tensões entre os gêneros feminino/<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 205
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
masculino, entre outros. A exigüidade de tempo e espaço,<br />
entretanto, também recorta e limita o estu<strong>do</strong>. O que se conclui é<br />
que, ao colocar todas essas questões no interior de suas molduras,<br />
Guimarães Rosa se revela grande fotógrafo, ou desenhista, ou<br />
diretor. Sua pena é sua tecnologia e sua escritura é sua voz. Sob seus<br />
traços, letras ganham vida, palavras ganham movimento, textos<br />
extrapolam os contornos das páginas, crian<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s que, uma<br />
vez grafa<strong>do</strong>s, aguardam a chance de libertação através da leitura.<br />
Referências<br />
BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3 a ed. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2000. 421 p.<br />
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro:<br />
Tempo Brasileiro, 1975. p.<br />
CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva,<br />
1974. 255 p.<br />
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria <strong>do</strong> conto. 8 a ed. São Paulo: Ática,<br />
1998. 95 p.<br />
LOOMIS, Burdett. “Collecting and Collections: Interdisciplinary<br />
Perspectives”. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no Humanities Colloquium,<br />
Hall Center, em16 de outubro de 2003. 27 p.<br />
MACHADO, Arlin<strong>do</strong>. A ilusão especular. Uma introdução à<br />
fotografia. 2 a ed. São Paulo, 1988. 121 p.<br />
ROSA, João Guimarães. “Quadrinho de Estória” in ROSA,<br />
João Guimarães. Tutaméia. 11 a impressão Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 1985, p. 138-141.<br />
SHAKESPEARE, William. The Library Shakespeare. Londres:<br />
Trident Press International, 1999. 476 p.<br />
206 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 12/07/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 10/08/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O SERTÃO INTERTEXTUAL DE<br />
GUIMARÃES ROSA<br />
Virgínia Cœli Passos de Albuquerque<br />
Ufes<br />
Resumo: João Guimarães Rosa, em carta escrita ao tradutor<br />
italiano E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri, afirma que a novela regionalista<br />
“Dão-lalalão” foi a única vez em que recorreu a processos<br />
intertextuais. Neste artigo, propõe-se analisar as referências<br />
indicadas pelo escritor, com a hipótese de que os personagens<br />
Soropita e Doralda constituem-se precisamente por meio<br />
<strong>do</strong> diálogo entre textos, na perspectiva bakhtiniana da<br />
“carnavalização”.<br />
Palavras-chave: Carnavalização. Sagra<strong>do</strong>. Profano.<br />
Abstract: João Guimarães Rosa, in a letter written to the<br />
Italian translator E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri, says that in the regional<br />
novel “Dão-Lalalão” it was the only time he made use of<br />
intertextuality. This article aims to analyze the references<br />
mentioned by the writer, having in mind the hypothesis of<br />
what the characters Soropita and Doralda turn themselves in<br />
what they are exactly through the dialog between texts, in the<br />
perspective bakhtinian of “camivalization”.<br />
Keywords: Carnivalization. Sacred. Profane.<br />
A novela “Dão-Lalalão”, de Guimarães Rosa, possui estrutura<br />
narrativa básica e linear: no sertão de Minas Gerais, Soropita<br />
e Doralda vivem uma história de amor. Os personagens,<br />
vivifica<strong>do</strong>s pela linguagem peculiar desse lugar quase-sagra<strong>do</strong><br />
que é o sertão de Guimarães, resvalam para algo mais. Talvez<br />
o leitor nem perceba o palimpsesto que é “Dão-Lalalão”.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 207
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
O escritor, generoso, deixou pistas, a começar pelo título,<br />
lembran<strong>do</strong> a parlenda brasileira Bão-balalão / Senhor capitão<br />
/ Espada na cinta / Ginete na mão. O curioso é que na sexta<br />
edição de Corpo de baile, publicada pela Editora José Olympio,<br />
a novela também aparece sob a denominação de Lão-dalalão.<br />
Variações sobre um mesmo tema? Erro gráfico? Ou deslize<br />
(diria Lacan, deslocamento <strong>do</strong> significante)?<br />
A resposta vem <strong>do</strong> próprio Guimarães, que assim instrui seu<br />
tradutor italiano, E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri, em correspondência por<br />
eles trocada, sobre “Dão-Lalalão”: Diluídas, aliás, nas páginas<br />
537/540, perpassa uma espécie de paráfrase <strong>do</strong> “Cântico <strong>do</strong>s<br />
Cânticos” (BIZZARRI, 1973). Essa informação preciosa <strong>do</strong><br />
novelista permite desenvolver a perspectiva aqui proposta, sem<br />
muito esforço para comprovação: ver o sertão como espaço<br />
intertextual em que se configuram as relações amorosas entre<br />
os personagens Doralda e Soropita. Doralda – ex-prostituta<br />
– e Soropita – ex-mata<strong>do</strong>r – vivem um história de amor que<br />
sublima o passa<strong>do</strong> escabroso de ambos. Nessa sublimação, que<br />
redime o que é profano em seus personagens, o escritor opera<br />
com a tradição cultural <strong>do</strong> Ocidente por meio de grandes<br />
obras: a Bíblia, a Divina Comédia e as novelas de cavalaria.<br />
Aqui interessam a descrição de Doralda, com a apropriação<br />
de imagens bíblicas, e a composição <strong>do</strong> cavaleiro apocalíptico<br />
Soropita, com seu cavalo Caboclim, torna<strong>do</strong> Apouco, quan<strong>do</strong><br />
a transfiguração provocada pelo ciúme diante <strong>do</strong> suposto rival<br />
o aproxima também <strong>do</strong> cavaleiro medieval. Por causa dessa<br />
convergência de textos apropria<strong>do</strong>s, o sertão se carnavaliza.<br />
O tema é eterno, entretanto em “Dão-Lalalão” o ambiente é o<br />
sertão, mun<strong>do</strong> representa<strong>do</strong> pelo narra<strong>do</strong>r, dialogan<strong>do</strong> também<br />
com a tradição <strong>do</strong> código de honra <strong>do</strong> cavaleiro medieval,<br />
presente nas novelas de cavalaria de origem portuguesa,<br />
gênero com que a novela rosiana também dialoga. A desonra,<br />
em “Dão-Lalalão”, pode surgir a qualquer momento da<br />
memória, daquele tempo quan<strong>do</strong> Doralda recebia homens, na<br />
casa de onde Soropita a tirou para ser sua amada pelas bandas<br />
<strong>do</strong> Andrequicé. O epílogo retoma o tema <strong>do</strong> ciúme, quan<strong>do</strong><br />
208 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Soropita vence as trevas para submeter a besta e per<strong>do</strong>ar o<br />
negro Eládio. Merece um artigo à parte a relação textual entre<br />
A divina comédia e o inferno interior vivi<strong>do</strong> pelo personagem.<br />
A DESCRIÇÃO DE DORALDA E O CÂNTICO DOS<br />
CÂNTICOS<br />
Mas Doralda estava ali, substância formosa -<br />
a beleza que tem cheiro, suor e calor. (D, 85)<br />
Doralda é a mulher sempre presente na vida de Soropita,<br />
mesmo na ausência. Sucena, Dadã ou Garanhã – seus outros<br />
nomes são ora esqueci<strong>do</strong>s, ora lembra<strong>do</strong>s no reino interior<br />
de Soropita. Ele e o narra<strong>do</strong>r de sua história vêem, cheiram e<br />
materializam a beleza de Doralda. A preferência de Soropita<br />
pelo nome Doralda pode se justificar pelo anagrama <strong>do</strong>urada<br />
aí conti<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> ele a conheceu, davam-lhe o nome de<br />
Sucena. Açucena – poesias desmanchadas no passa<strong>do</strong> – é a outra,<br />
a <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Eu sou o narciso de Naron,<br />
o lírio <strong>do</strong>s vales.<br />
Sim, como lírio entre espinhos<br />
é, entre as jovens, a minha amada. (CC 2, 1-2) 44*<br />
Sucena é uma clara alusão ao Cântico <strong>do</strong>s Cânticos, em que a<br />
amada se compara a uma tenra flor, dan<strong>do</strong> ocasião ao ama<strong>do</strong><br />
de elogiá-la. O Cântico, apócrifo, de autoria desconhecida, às<br />
vezes erroneamente atribuí<strong>do</strong> a Salomão, é considera<strong>do</strong> pelos<br />
teólogos como um poema lírico, compreenden<strong>do</strong> cantigas<br />
de amor dialogadas e descrições líricas. As comparações<br />
são pitorescas e sugestivas. Traçam-se caminhos sensoriais<br />
por campos, jardins e pomares, sob ar primaveril, onde<br />
44 * Doravante as citações <strong>do</strong> Cântico <strong>do</strong>s Cânticos serão acompanhadas<br />
pelas iniciais maiúsculas e pelo número <strong>do</strong> capítulo separa<strong>do</strong> por vírgula<br />
<strong>do</strong>(s) número(s) <strong>do</strong>(s) versículo(s). As citações de “Dão-Lalalão” serão seguidas<br />
pela inicial maiúscula e pelo número da página.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 209
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
proliferam árvores e plantas exóticas; aspira-se o perfume das<br />
flores, ouve-se o arrulho das pombas junto aos rios; vêem-se<br />
gazelas saltan<strong>do</strong> pelos campos ou pastan<strong>do</strong> entre lírios, cabras<br />
esparraman<strong>do</strong>-se pelo monte Galaad.<br />
O ambiente erótico-amoroso <strong>do</strong> Cântico é transposto para<br />
“Dão-Lalalão” com essa perspectiva: Soropita ama Doralda a<br />
tal ponto que seus sentimentos cheiram a brilho e brilham a<br />
cheiro. Transformam-se em senti<strong>do</strong>s:<br />
Do cheiro mesmo, de Doralda, ele gostava por demais,<br />
um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa<br />
mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava,<br />
só assim, no lençol, no cabeção, no vesti<strong>do</strong>, nos<br />
travesseiros. (D, 17)<br />
Soropita capta sons e cheiros pelo apura<strong>do</strong> olfato e refinada<br />
audição. Os cinco senti<strong>do</strong>s entrelaçam-se para apreender o<br />
fulgor da imagem amada.<br />
Doralda lá, esperan<strong>do</strong> queren<strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong> chegar,<br />
apear e entrar. Ao que era, um pássaro que ele tivesse,<br />
de viável desejo, sem estar engaiola<strong>do</strong>, pássaros de<br />
muitos brilhos, muitas cores, cantan<strong>do</strong> alegre, estalável,<br />
de <strong>do</strong>brar. (D, 25)<br />
Os cheiros vegetais constituem-se mais que o próprio ambiente;<br />
funcionam mesmo como uma espécie de osmose, as forças da<br />
terra estenden<strong>do</strong>-se ao corpo ama<strong>do</strong>.<br />
A presença de Doralda – como o cheiro <strong>do</strong> pau-debreu,<br />
que chega de extenso <strong>do</strong> cerra<strong>do</strong> em fortes ondas,<br />
vagan<strong>do</strong> de muito longe, perfuman<strong>do</strong> os campos, com<br />
seu gosto de cravo. (D, 87)<br />
Cheiro <strong>do</strong> pau-de-breu e perfume com gosto de cravo: essa imagem<br />
sinestésica realiza poeticamente o telurismo presente nesses<br />
personagens, ambienta<strong>do</strong>s na região rural. Nas pequenas<br />
banalidades, Soropita absorve Doralda, ao transformar as<br />
atitudes corteses em carícias eróticas à amada. Como cavaleiro<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
cortês, o homem, talvez pelo intenso relacionamento com<br />
mulheres da comédia, mantivesse o voto de castidade quanto<br />
ao beijo.<br />
— “Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha<br />
escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de to<strong>do</strong> o<br />
jeito?” Asco nenhum. O cuspe dela ao beijar, tinha<br />
pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho<br />
de bezerro, de horta, cheiro como cresce re<strong>do</strong>nda a<br />
erva-cidreira. Antes nem depois. Soropita nunca tinha<br />
beija<strong>do</strong> em boca outra mulher nenhuma. Nem comer<br />
comida babujada. Voltar para a casa, as horas corren<strong>do</strong><br />
bem, era o melhor que havia. (D, 18)<br />
Esse final <strong>do</strong> décimo primeiro parágrafo de “Dão-Lalalão” trata<br />
da importância <strong>do</strong> olfato e <strong>do</strong> gosto para Soropita perceber<br />
Doralda. Aprecia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s bons cheiros silvestres, ele é capaz de<br />
distinguir os aromas, sen<strong>do</strong> o de Doralda o mais impregnável.<br />
O cuspe da mulher ganha estatuto de seiva – animal e vegetal<br />
– confirman<strong>do</strong> o telurismo <strong>do</strong>s personagens. Essa imagem<br />
remete ao beijo <strong>do</strong>s noivos bíblicos: Teus lábios, minha noiva,<br />
destilam / néctar; / em tua língua há mel e leite. / Tuas vestes têm<br />
a fragrância <strong>do</strong> / Líbano. (CC 4, 11).<br />
Soropita absorve o cuspe de Doralda como mel e leite – tinha<br />
pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro.<br />
Mel tem pepego e o focinho de bezerro cheira a leite.<br />
À força lírica <strong>do</strong> Cântico opõe-se o terror da babilônica besta,<br />
a grande prostituta. No desenrolar <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, há uma cena em<br />
que Soropita e Doralda hospedam Dalberto. A mulher volta<br />
arrumada para a sala após o jantar. Fumam e bebem. Soropita<br />
podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de<br />
pé, no meio da sala, era uma visão: Doralda vestida de<br />
vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta de muitas<br />
jóias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão,<br />
copo de vinhos e ela como se esmiasse e latisse, anéis<br />
de ouro naquelas especiosas mãos, por tantos sugiladas<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 211
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se<br />
sentar nua na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela<br />
estava bêbada; e em volta aqueles sujeitos valentões,<br />
to<strong>do</strong>s mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria<br />
ver... (D, 18)<br />
Essas imagens sobrepostas da mulher amada, ora ornamentada,<br />
ora nua, ora zooformizada, comprovam a dimensão profana,<br />
babilônica, da prostituta – montada numa mula vermelha,<br />
se sentar nua na beira das águas. A prostituta <strong>do</strong> Apocalipse<br />
também aqui produz efeitos carnavaliza<strong>do</strong>s, nessa paródia <strong>do</strong><br />
Cântico. A inserção <strong>do</strong> profano no poema bíblico deve-se a<br />
esse contexto imagético, em que a mulher aparece divinizada<br />
na expressão amorosa <strong>do</strong> Cântico e diabólica na sua relação<br />
com Babilônia, a Grande Prostituta <strong>do</strong> Apocalipse, cercada de<br />
corpos que Soropita não queria ver.<br />
Embora Doralda saiba comportar-se e fazer-se respeitar, não<br />
perde a faceirice de sua época de Sucena. Também no Cântico<br />
vê-se a alusão à mulher perdida, adequada para o personagem.<br />
Mas, Bem, aqueles logo vieram... Aí eu era muito<br />
freguesada, Bem, era uma das que eles apreciavam<br />
mais... Ah, uma pode errar de boiada, por ir-se atrás de<br />
boiadeiro... (D, 75)<br />
Ora, Doralda aban<strong>do</strong>na sua vida desgarrada para ir atrás <strong>do</strong><br />
boiadeiro – seu Bem. No Cântico <strong>do</strong>s Cânticos, a noiva quer<br />
saber onde está o noivo, para não parecer mulher perdida. A<br />
relação entre os <strong>do</strong>is textos aponta uma pequena diferença:<br />
no contexto bíblico, a mulher não quer parecer prostituta; no<br />
contexto narrativo, a mulher deixa de ser prostituta. As duas,<br />
no entanto, carecem <strong>do</strong> ama<strong>do</strong>. A amada assim se dirige ao<br />
ama<strong>do</strong>: Indica-me, amor de minha alma, / onde pastoreias? /<br />
Onde fazes repousar teu rebanho ao / meio-dia? / Para eu não<br />
parecer uma mulher / perdida, / seguin<strong>do</strong> os rebanhos de teus /<br />
companheiros. (CC 1, 7)<br />
A tensão entre o texto bíblico e o narrativo se sustenta à<br />
212 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
medida que, como mulher perdida – a profana –, Doralda<br />
é exaltada por Soropita da mesma forma que o homem<br />
louva a amada no Cântico. Para melhor compreensão da<br />
paródia <strong>do</strong> texto sagra<strong>do</strong>, necessário se faz indicar nos <strong>do</strong>is<br />
textos as semelhanças (Quadro 1). Essas intertextualidades,<br />
divisória contemporânea entre a univocidade (monologismo)<br />
e a multiplicidade de vozes de um texto (dialogismo), tornase<br />
um fenômeno visto dentro <strong>do</strong> conceito de carnavalização.<br />
Segun<strong>do</strong> Bakhtin, a carnavalização da literatura é a transposição<br />
<strong>do</strong> carnaval para a linguagem da literatura. Para o mesmo autor,<br />
o carnaval é uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual,<br />
muito complexa, variada. (...) criou toda uma linguagem de<br />
formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas<br />
ações de massas e gestos carnavalescos. (BAKHTIN, 1981)<br />
E mais:<br />
Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor<br />
grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal,<br />
especialmente para a linguagem <strong>do</strong>s conceitos abstratos;<br />
no entanto é suscetível de certa transposição para<br />
a linguagem cognata, por caráter concretamente<br />
sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a<br />
linguagem da literatura. [Grifo meu] (BAKHTIN, op.<br />
cit.)<br />
No texto rosiano, além das imagens sinestésicas que descrevem<br />
Doralda – as formas concreto-sensoriais simbólicas –, a paródia <strong>do</strong><br />
texto sagra<strong>do</strong> corresponde a uma categoria da carnavalização<br />
a que Bakhtin denomina profanação: sacrilégios, indecências<br />
carnavalescas, relacionadas com as forças produtoras <strong>do</strong> corpo e da<br />
terra, pelas paródias carnavalescas <strong>do</strong>s textos sagra<strong>do</strong>s e sentenças<br />
bíblicas. (BAKHTIN, op. cit.).<br />
Doralda – égua, vaquinha, veada – inscreve-se assim como<br />
personagem. Representa o par santa/prostituta, já estuda<strong>do</strong> por<br />
Affonso Romano de Sant’Anna na poesia de Manuel Bandeira.<br />
Em “Dão-Lalalão”, a descrição da mulher se estrutura <strong>do</strong><br />
ponto de vista <strong>do</strong> ama<strong>do</strong>, não obstante ser dividi<strong>do</strong> porque<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
ela reúne as características <strong>do</strong> eterno feminino, a Grande Mãe<br />
cindida entre o céu e a terra. A propósito, o leitor só conhece<br />
Doralda pelo olhar de Soropita e pelos diálogos trava<strong>do</strong>s<br />
entre os <strong>do</strong>is; em nenhum momento o narra<strong>do</strong>r representa os<br />
pensamentos femininos.<br />
Mesmo assim, o amor de Doralda se revela tão intenso quanto<br />
o de Soropita e essa reciprocidade retoma o mito <strong>do</strong> andrógino,<br />
da eterna procura <strong>do</strong> ser humano pela continuidade no outro.<br />
Ou então, aquilo que Doralda tinha fala<strong>do</strong>, mais de<br />
uma vez, muito falava: – “Bem, eu acho que só ficava<br />
sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse estar<br />
grudada em você, de carne, calor e sangue, costura<strong>do</strong>s<br />
nós <strong>do</strong>is juntos...” (D, 80)<br />
Segun<strong>do</strong> Mircea Eliade, ao analisar os mitos andróginos em<br />
várias religiões, desde as mais complexas e evoluídas até as<br />
presentes nos povos de cultura arcaica, a androginia era, por<br />
excelência, a forma da totalidade. Platão, Filon de Alexandria,<br />
os teósofos neoplatônicos e neopitagóricos, os hermetistas ou<br />
os inúmeros gnósticos cristãos concebiam a perfeição humana<br />
como unidade sem fissuras. Esta, aliás, não passava de um reflexo<br />
da perfeição divina, <strong>do</strong> To<strong>do</strong>-Um (ELIADE, 1991).<br />
Na perspectiva dessa concepção, interessa a idéia de totalidade,<br />
uma vez que a imagem de Doralda comporta essa coincidentia<br />
oppositorum, a reunião <strong>do</strong>s contrários, a totalização <strong>do</strong>s<br />
fragmentos. Doralda reúne em si Deus e o Diabo, a santa<br />
e a prostituta, o céu e a terra, o vale e o abismo. Por fim,<br />
também quer formar um só corpo com Soropita, nesse ideal<br />
andrógino de totalidade, semelhante às primitivas concepções<br />
cosmogônicas. A androginia é aqui referida pelo ideal de<br />
retorno à totalidade primordial, antes da separação entre Caos<br />
e Cosmos, terra e céu, luz e trevas.<br />
214 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O CAVALEIRO MEDIEVAL E SUA ARTICULAÇÃO<br />
COM O APOCALIPSE EM “DÃO-LALALÃO”<br />
“P’ra o certo e o duvi<strong>do</strong>so...” Soropita - o rei<br />
nas armas. (D, 73)<br />
Já foi observada, em outros estu<strong>do</strong>s, a semelhança entre o<br />
jagunço e o cavaleiro medieval europeu. Grosso mo<strong>do</strong>, Leonar<strong>do</strong><br />
Arroyo aponta algumas características dessa semelhança:<br />
ignorância da origem; exaltação da paixão amorosa; estilo<br />
sentencioso; castidade (ARROYO, 1984).<br />
A saga de heróis de cavalaria apresenta traços comuns, desde<br />
Tristão, Lançarote e Galaaz até Amadis de Gaula, segun<strong>do</strong><br />
o princípio de que a cavalaria nasceu de <strong>do</strong>is ideais opostos: a<br />
caridade <strong>do</strong> cristão e a força <strong>do</strong> guerreiro, resultan<strong>do</strong>, portanto,<br />
<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> entre as duas categorias - a <strong>do</strong> guerreiro com o cristão<br />
(ARROYO, op. cit.).<br />
Alguns traços medievais podem ser identifica<strong>do</strong>s na história<br />
de Soropita – rei nas armas. Do passa<strong>do</strong> de Soropita, sabese<br />
da boa pontaria e constante belicosidade, das mortes,<br />
das mulheres. De sua família nada se sabe. Além disso, ao<br />
encontrar o amor, deixa-se levar pela paixão, travan<strong>do</strong> no seu<br />
interior uma batalha entre o bem e o mal, entre a confiança e<br />
os ciúmes. Soropita, além disso, é capaz de matar aquele que<br />
ousar desrespeitar sua amada.<br />
Há outro acontecimento que auxilia na composição <strong>do</strong><br />
ambiente: a forma de transmissão oral funciona como miseen-abîme.<br />
A novela dentro da novela reproduz a temática <strong>do</strong><br />
amor. É hábito entre os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Ão ouvir o relato da<br />
novela reconta<strong>do</strong> por Soropita.<br />
A novela: ... o pai não consentia no casamento, a moça<br />
e o moço padeciam. To<strong>do</strong>s os <strong>do</strong> Ão desaprovavam. O<br />
Erém tinha lágrimas nos olhos. (D, 56)<br />
As novelas de cavalaria também eram relatos populares,<br />
conserva<strong>do</strong>s pela memória coletiva. Isso também se dá<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
na narrativa em questão: Soropita, Doralda, Dalberto, os<br />
demais personagens, o narra<strong>do</strong>r, to<strong>do</strong>s guardam as marcas<br />
da oralidade, chegan<strong>do</strong> mesmo a tanger no gênero épico,<br />
como na literatura de cordel. Com o advento <strong>do</strong>s modernos<br />
meios mecânicos, a tradição oral foi substituída por capítulos<br />
para milhões de telespecta<strong>do</strong>res. O gosto por telenovela<br />
provavelmente decorre dessa prática primitiva de transmissão<br />
cultural. Em “Dão-Lalalão”, a maior parte <strong>do</strong>s preceitos morais<br />
também se transmitem pelas leis consuetudinárias, amplian<strong>do</strong><br />
a importância da tradição oral no sertão mineiro.<br />
Mas a influência das novelas de cavalaria torna-se mais<br />
evidente na composição <strong>do</strong> caráter de Soropita. Soropita é<br />
o cavaleiro andante <strong>do</strong> sertão. É-lhe aprazível andar entre o<br />
Ão e o Andrequicé toda a semana, para compensar sua vida<br />
agora enraizada ao la<strong>do</strong> de Doralda. Além disso, pensa, de vez<br />
em quan<strong>do</strong>, manter abstinência sexual, caracterizan<strong>do</strong> o voto<br />
de castidade <strong>do</strong> guerreiro medieval. A fidelidade a Doralda,<br />
outro traço <strong>do</strong> personagem, também é herdada <strong>do</strong> cavaleiro<br />
andante. Por fim, acrescente-se a consagração da força,<br />
como o patamar em que se imbricam o jagunço e o cavaleiro,<br />
ressoan<strong>do</strong> o código da cavalaria. Segun<strong>do</strong> Teófilo Braga,<br />
foi característica fundamental da Cavalaria alta inspiração de<br />
justiça misturada com os ímpetos individuais da arbitrariedade<br />
(ARROYO, op. cit.). Soropita congrega essa concepção de<br />
justiça e arbitrariedade. Mesmo os homens que mata não<br />
são chora<strong>do</strong>s pela comunidade da região, apesar da reação<br />
impetuosa e violenta <strong>do</strong> executor.<br />
Essa imagem de Soropita se intensifica quan<strong>do</strong> ele sai em busca<br />
<strong>do</strong> negro, a fim de matá-lo. E aí surge um “outro” sertão – o<br />
místico, o medieval –, no que concerne à magia <strong>do</strong>s números. O<br />
número dezenove pode ser considera<strong>do</strong> cabalístico, porta<strong>do</strong>r<br />
de magia e superstição:<br />
Seus olhos viam fogo de chama. E calcou mais na<br />
cabeça seu chapéu-de-couro, chapéu com nove letras -<br />
dezenove, nove - tapatrava. (D, 86)<br />
216 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O próprio escritor indica a E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong> Bizzarri:<br />
Em to<strong>do</strong> caso: no sertão, onde, como Você está<br />
sentin<strong>do</strong> e ven<strong>do</strong>, a magia é inseparável de to<strong>do</strong>s os<br />
aspectos da vida, os valentões costumam às vezes trazer<br />
letras, cabalísticas escritas, digo, gravadas, no chapéude-couro,<br />
ou em papeizinhos enfia<strong>do</strong>s no respectivo<br />
forro; para virtudes várias, proteção perante o destino.<br />
No caso <strong>do</strong> Soropita: o “dezenove, nove” é alusão<br />
“apocalíptica’, a trecho <strong>do</strong> próprio Apocalipse. (BIZZARRI,<br />
op. cit.)<br />
Então, lê-se no Apocalipse, no capítulo 19, que descreve a<br />
queda da Babilônia pelo Cordeiro de Deus:<br />
Seus olhos são como chamas de fogo, traz na cabeça<br />
muitos diademas e tem um nome escrito que ninguém<br />
conhece, só ele mesmo. (Ap 19, 12)<br />
A palavra trapatava adquire, nessa perspectiva, uma dimensão<br />
misteriosa, cabalística, a respeito da qual nem mesmo o nosso<br />
Soropita quererá explicar nada (BIZZARRI, op. cit.). Essa<br />
palavra mágica, portanto, é a chave para entrar-se no nível<br />
em que o Apocalipse e as novelas de cavalaria se encontram.<br />
O sincretismo religioso – carnavaliza<strong>do</strong> – se apresenta nessa<br />
junção, aliás o mesmo que caracteriza o cavaleiro andante.<br />
O ideal de castidade <strong>do</strong> cavaleiro medieval conjuga-se ao ideal<br />
de divinização <strong>do</strong> par humano, já visto na análise paralela<br />
ao Cântico <strong>do</strong>s Cânticos. Novamente, com o apoio <strong>do</strong> texto<br />
apocalíptico (Quadro 2), a figura <strong>do</strong> herói transfigura-se em<br />
rei, em senhor, rei <strong>do</strong>s reis. As duas forças antagônicas se<br />
confrontam: o bem e o mal, o rei e a besta, o deus e o diabo,<br />
o branco e o preto, o amor e o ódio, o fidalgo e o plebeu.<br />
Enfim, esse binarismo de origem cristã promove a tensão <strong>do</strong><br />
texto narrativo: as novelas de cavalaria, com sua herança de<br />
heróis guerreiros, de um la<strong>do</strong>; de outro, o texto apocalíptico<br />
para avivar ainda mais esse conflito.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 217
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Há outro índice da ética medieval presente no texto em<br />
questão: o perdão. Soropita que, sai à procura de Iládio para<br />
perpetrar seu ato de vingança, ouve a súplica <strong>do</strong> negro: - Tou<br />
morto, tou morto, patrão Surrupita, mas peço não me mate, pelo<br />
ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não<br />
fiz nada!... Tomo bênção... Tomo bênção... (D, 87)<br />
Ao suplicar por sua vida, o negro Iládio recorre ao código da<br />
cavalaria: quem mercê pede, mercê alcança. Mais <strong>do</strong> que vencer<br />
uma luta, Soropita vence as trevas. Coração da gente - o escuro,<br />
escuros.<br />
Portanto, a carnavalização presente no texto narrativo é<br />
garantida por essa mistura de códigos e gêneros. O aspecto<br />
profano <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is personagens dialoga sempre com a dimensão<br />
sagrada <strong>do</strong>s textos parodia<strong>do</strong>s, elevan<strong>do</strong> as categorias <strong>do</strong>s<br />
personagens dentro <strong>do</strong> ambiente carnavalesco: a prostituta e o<br />
mata<strong>do</strong>r são agora diviniza<strong>do</strong>s.<br />
O SERTÃO DE DORALDA E SOROPITA<br />
Guimarães Rosa, na correspondência com Bizzarri, utiliza os<br />
seguintes termos: paráfrase, alusão, projeção, impregnação,<br />
inoculação, ressonância; usou termos diferentes para explicar<br />
a câmara de ecos de que resultou “Dão-Lalalão”. Neste artigo,<br />
a<strong>do</strong>tou-se o uso <strong>do</strong> termo paródia no senti<strong>do</strong> da<strong>do</strong> por Bakhtin,<br />
em que textos sagra<strong>do</strong>s são dessacraliza<strong>do</strong>s. Sem querer forçar<br />
o enquadramento de uma análise textual a partir de um modelo<br />
pré-concebi<strong>do</strong>, preferiu-se verificar como o texto se compôs<br />
dentro das categorias da carnavalização. A diluição <strong>do</strong>s limites<br />
entre vulgar e sublime, presente na carnavalização, repete-se na<br />
diluição <strong>do</strong>s limites entre os gêneros. Aristóteles, em sua Poética,<br />
atribuiu a origem da paródia, como arte, a Hegemon de Thaso<br />
(séc. 5 a. C.), porque ele usou o estilo épico para representar os<br />
homens não como superiores, mas como inferiores (SANT’ANNA,<br />
1985).<br />
Portanto, é no senti<strong>do</strong> de dessacralização – profanação –<br />
218 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
que “Dão-Lalalão” se estrutura como paródia. As epígrafes<br />
remetem a Plotino, de onde se extraem duas anotações<br />
filosóficas: a vida como teatro, a vida como dança. Por aí<br />
começa a carnavalização. A novela passa a ser poema, to<strong>do</strong><br />
enfeita<strong>do</strong> com as marcas da tradição.<br />
A carnavalização de gêneros possibilitou, além da profanação <strong>do</strong><br />
texto bíblico, a mésalliance (o casamento de uma prostituta com<br />
um valentão, proibi<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>xa), na criação <strong>do</strong>s personagens.<br />
A forma como Soropita vê a amada – a mulher amada <strong>do</strong><br />
Cântico e a Babilônia <strong>do</strong> Apocalipse – reflete essa duplicidade:<br />
nua, sobre animal vermelho, sempre à deriva, cercada de jóias<br />
e mortes. Portanto, excêntrica com relação a qualquer norma<br />
social.<br />
Também com relação a Soropita dá-se o mesmo. Conjugan<strong>do</strong><br />
o guerreiro e o religioso, ele age com ímpeto de arbitrariedade<br />
quan<strong>do</strong> decide matar Iládio. Ao mesmo tempo, “impregna<strong>do</strong>”<br />
pela descrição <strong>do</strong> anjo apocalíptico, Soropita eleva-se à<br />
condição de um deus, de Rei <strong>do</strong>s reis, para representar a nobreza<br />
<strong>do</strong> jagunço. Aí a paródia também se configura.<br />
Como última citação, o comentário de Guimarães Rosa:<br />
Voltan<strong>do</strong> ao “Dão-Lalalão”, isto é, aos curtos trechos<br />
em que assinalei as “alusões” dantescas, apocalípticas<br />
e cântico-<strong>do</strong>s-canticáveis. (ALIÁS, é apenas nessa<br />
novela (“Dão-Lalalão”) que o autor recorreu a isso.)<br />
Como Você vê, foi intencional tentativa de evocação,<br />
daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros<br />
acumula<strong>do</strong>res ou baterias, quanto aos temas eternos<br />
(BIZZARRI, op. cit.)<br />
Mais adiante, acrescenta: E para funcionar, apenas, em passagens<br />
de ligação, como coloração <strong>do</strong> pano-de-fun<strong>do</strong> (BIZZARRI, op.<br />
cit.). O escritor mostra intertextualmente que o amor entre<br />
um bandi<strong>do</strong> e uma prostituta é o mesmo amor entre um rei<br />
e uma rainha, entre um nobre e uma dama, que se buscam<br />
com o mesmo fim: encontrar a continuidade perdida, aquela<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 219
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
de quan<strong>do</strong> o universo não fazia diferença entre céu e terra, luz<br />
e trevas, bem e mal.<br />
Guimarães Rosa, nessa narrativa de “Dão-Lalalão”, ilumina o<br />
leitor e, conscientemente, envia-o para os textos canônicos de<br />
nossa cultura. Quase envergonha<strong>do</strong>, “confessa” as apropriações<br />
a seu tradutor, mas consegue disfarçar o roubo nos entremeios<br />
de sua criatividade lingüística, ou, porque não dizer, da alma<br />
carnavalizada <strong>do</strong> brasileiro.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ARROYO, Leonar<strong>do</strong>. A cultura popular em Grande sertão:<br />
veredas: filiações e sobrevivências tradicionais, algumas vezes<br />
eruditas. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1984.<br />
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad.<br />
Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.<br />
BÍBLIA sagrada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.<br />
BIZZARRI, E<strong>do</strong>ar<strong>do</strong>. J. Guimarães Rosa: correspondência. São<br />
Paulo: Ed. Pedagógica Universitária, 1973.<br />
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1991.<br />
ROSA, João Guimarães. “Dão-Lalalão”. In: Noites <strong>do</strong> sertão.<br />
12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.<br />
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia.<br />
2.ed. São Paulo: Ática, 1985.<br />
SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Manuel Bandeira: <strong>do</strong><br />
amor místico e perverso pela santa e a prostituta à família<br />
mítica permissiva e incestuosa.” In: O canibalismo amoroso: o<br />
desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio<br />
de Janeiro: Rocco, 1993.<br />
220 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
“dão-lalalão” CântiCo <strong>do</strong>s CântiCos<br />
- Até o nome de Doralda, parece<br />
que dá um prazo de perfume!...<br />
Roda das flores - da flor de<br />
toda cor... Você podia cantar, você<br />
dançava, no meio das meninas...<br />
p. 75<br />
Os dentes, brancura de<br />
carneirinhos. p. 76<br />
‘Tu é bela!...” O vôo e o arrulho<br />
<strong>do</strong>s olhos. p. 76<br />
O cabelo, cabriol. A como as<br />
boiadas fogem no chapadão,<br />
nas chapadas. p. 76<br />
A boca - traço que tem a cor<br />
como as flores. p. 76<br />
Quadro 1<br />
E mais aromático que teus<br />
perfumes<br />
é teu nome, mais que perfume<br />
derrama<strong>do</strong>. 1, 3<br />
Teus dentes são como um<br />
rebanho de ovelhas<br />
tosquiadas. 4, 1<br />
Como és formosa, minha<br />
amada!<br />
Como és formosa, com teus<br />
olhos de pomba. 4, 1<br />
Teus cabelos são como<br />
rebanho de cabras,<br />
esparraman<strong>do</strong>-se pelas<br />
encostas <strong>do</strong> monte Galaad.<br />
4, 1<br />
Teus lábios são fitas de<br />
púrpura, de fala maviosa. 4, 3<br />
Donde a romã das faces. p. 76 Tuas faces são metades de<br />
romã, na transparência <strong>do</strong><br />
véu. 4, 3<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
O pescoço, no colar, para se<br />
querer, com sinos e altos, de se<br />
variar de ver. p. 76<br />
Os <strong>do</strong>ces, da voz, quan<strong>do</strong> ela<br />
falava, o cuspe. p. 76<br />
É! Tu é a melhor, a mais<br />
merecida de todas... p. 77<br />
Bem, eu estou a<strong>do</strong>ecida de<br />
amor. p. 85<br />
222 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Teu pescoço é como a torre de<br />
Davi,<br />
construída com parapeitos,<br />
da qual pendem mil escu<strong>do</strong>s<br />
e armaduras de to<strong>do</strong>s os<br />
heróis. 4, 4<br />
Porque tua voz é <strong>do</strong>ce, gracioso<br />
o teu semblante. 2, 14<br />
Uma só, porém, é a minha<br />
pomba, o meu primor. 6, 9<br />
Conjuro-vos, ó filhas de<br />
Jerusalém:<br />
se encontrardes o meu ama<strong>do</strong>,<br />
anunciai-lhe que desfaleço de<br />
amor! 5, 8
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
“dão-lalalão” apoCalipsE<br />
Tremia nas cascas <strong>do</strong>s joelhos,<br />
mas escutava que tinha de ir feito<br />
bramassem <strong>do</strong> escancara<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
céu: a voz grande <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. De<br />
um pulo estava em cima <strong>do</strong><br />
cavalo alvo, éguo de um grande<br />
cavalo, para paz e guerra, o<br />
cavalo Apouco, que sacudia a<br />
cabeça, sabia <strong>do</strong> que vinha em riba<br />
dele, tinha confiança – e escarnia:<br />
cavalo capaz de morder caras...<br />
– “Bronzes! Com minha justiça,<br />
brigo, brigo...” p. 86<br />
Seus olhos viam fogo de chama.<br />
p. 86<br />
O preto o matava, seu paletó ia<br />
estar molha<strong>do</strong> de sangue. p. 86<br />
Olhou para trás: <strong>do</strong>s baixos <strong>do</strong><br />
riacho <strong>do</strong> o, só uma neblina,<br />
pura de branca, limpas por<br />
cima as nuvens brancas,<br />
também uma cavalhada. p. 86<br />
Seus dentes estalavam em ferro,<br />
podiam cortar como uma faca<br />
de <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, naquela cachaça,<br />
meter verga de ferro no negro. p.<br />
86<br />
Quadro 2<br />
Vi o céu aberto e eis um<br />
cavalo branco. Quem o<br />
montava chamava-se Fiel e<br />
Verdadeiro e é com justiça que<br />
julga e faz guerra. 19, 11<br />
Seus olhos são como chamas de<br />
fogo, (...). 19, 12<br />
Está vesti<strong>do</strong> com um manto<br />
tinto de sangue e seu nome é<br />
Verbo de Deus. 19, 13<br />
Seguem-no os exércitos<br />
celestes em cavalos brancos,<br />
vesti<strong>do</strong>s de linho branco<br />
puro. 19, 14<br />
De sua boca sai uma espada<br />
afiada para ferir as nações.<br />
Deverá governá-las com cetro<br />
de ferro e pisar o lagar <strong>do</strong><br />
vinho com o furor da cólera de<br />
Deus To<strong>do</strong>-poderoso. 19, 15<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 223
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
E dava um murro na polpa da<br />
coxa, coxa de cavaleiro <strong>do</strong>no de<br />
<strong>do</strong>no, seu senhor! p. 86<br />
No céu, o sol dava contra ele<br />
– por cima <strong>do</strong> sol, podia ir<br />
sua sombra, dele, Soropita, de<br />
braços abertos e aprumo, e aos<br />
gritos: - “Ajunta, povo, venham<br />
ver carnes rasgadas!...” p. 86<br />
O preto Iládio, belzebu, seu<br />
enxofre, poderoso amontoa<strong>do</strong><br />
na besta preta. Ah, negro, vai<br />
tapar os caldeirões <strong>do</strong> inferno.<br />
p. 86<br />
Igual a um pensamento mau, o<br />
preto se sumia, por mil anos. p.<br />
87<br />
224 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Sobre o manto e sobre a coxa<br />
está escrito seu nome: Rei <strong>do</strong>s<br />
reis, Senhor <strong>do</strong>s Senhores.<br />
19, 16<br />
Vi então um anjo de pé<br />
sobre o sol, que gritou com<br />
grande voz para todas as<br />
aves que voam pelo alto<br />
<strong>do</strong> céu: “Vinde, reuni-vos<br />
para o grande festim, para<br />
comerdes a carne <strong>do</strong>s reis.”<br />
19, 17-18<br />
Mas a besta foi presa e com<br />
ela o falso profeta, que fazia<br />
sinais à sua frente, com os<br />
quais extraviava os que haviam<br />
recebi<strong>do</strong> a marca da besta e os<br />
que a<strong>do</strong>ravam a sua imagem.<br />
Ambos foram lança<strong>do</strong>s vivos<br />
no lago de enxofre ardente.<br />
19, 20<br />
Ele pegou o dragão, a serpente<br />
antiga, que é o diabo, Satanás,<br />
e o acorrentou por mil anos.<br />
20, 2<br />
Recebi<strong>do</strong> em 12/07/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 10/08/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O NEOBARROCO EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS<br />
DE GUIMARÃES ROSA<br />
Carolina Paganine<br />
UFSC<br />
Tu<strong>do</strong>, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive,<br />
os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?<br />
Quan<strong>do</strong> nada acontece, há um milagre que<br />
não estamos ven<strong>do</strong>. (João Guimarães Rosa)<br />
Resumo: O poeta cubano Severo Sarduy fornece algumas<br />
ferramentas para interpretar os elementos barrocos<br />
encontra<strong>do</strong>s na literatura contemporânea, tais como a<br />
artificialização (grande uso de metáforas), a proliferação<br />
(progressão metonímica que remete ao significa<strong>do</strong> ausente) e a<br />
condensação (troca ou fusão entre elementos fonéticos). Neste<br />
artigo, analisa-se como esses mecanismos aparecem na prosa<br />
de Guimarães Rosa, toman<strong>do</strong> como ponto de partida os contos<br />
de Primeiras estórias (1962). Procura-se evitar a categorização<br />
peremptória da obra de Guimarães Rosa como neobarroca,<br />
já que o termo foge a definições estanques e permeia grande<br />
parte da arte contemporânea. A crise da representação artística,<br />
apontada por Michel Foucault em A palavra e as coisas (1966),<br />
é potencializada na prosa poética <strong>do</strong> autor brasileiro. Assim, ao<br />
reagir a um postula<strong>do</strong> de regionalismo realista, Guimarães Rosa<br />
escapa da mera representação <strong>do</strong> objeto e procura construir<br />
sua arte no teci<strong>do</strong> lingüístico em si. Sua narrativa é um convite<br />
ao leitor para uma viagem nos meandros da linguagem, cuja<br />
ambigüidade reflete uma ambigüidade da existência.<br />
Palavras-chave: Neobarroco. Guimarães Rosa. Representação<br />
literária. Primeiras estórias.<br />
Abstract: The Cuban poet Severo Sarduy has developed<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
some tools for interpreting baroque elements found in<br />
contemporary literature such as artificiality (extensive use of<br />
metaphors), proliferation (a progression of metonymies that<br />
refers to an absent meaning) and condensation (an exchange<br />
or a fusion of phonetic elements). In this article, I analyze how<br />
these elements work in the prose of Guimarães Rosa, taking<br />
the short stories of Primeiras estórias (1962) as the starting<br />
point. A definite categorization of Guimarães Rosa’s work as<br />
neo-baroque was avoided since the term neo-baroque <strong>do</strong>es<br />
not fit rigid definitions and it has a very pervasive influence in<br />
the contemporary Arts. The crisis of artistic representation,<br />
pointed out by Michel Foucault in The order of things (1966),<br />
is intensified in the poetic prose of the Brazilian writer. Thus,<br />
by reacting against the postulate of Realistic regionalism,<br />
Guimarães Rosa escapes from a simplified representation<br />
of the object in order to create his art in the very fabric of<br />
language. His narrative is an invitation to the reader to a trip<br />
in the meanders of language whose ambiguity reflects the<br />
ambiguity of existence.<br />
Keywords: Neo-baroque; Guimarães Rosa; literary<br />
representation; Primeiras estórias.<br />
Por muito tempo, o conceito de barroco esteve atrela<strong>do</strong> a uma<br />
conotação negativa. A história mais plausível <strong>do</strong> termo aponta<br />
para origens portuguesas ou espanholas de designação de<br />
uma pérola de superfície irregular, comumente chamada pelos<br />
comerciantes de berrueco ou barrueco. A partir daí, a palavra<br />
“barroco” passou a ter conotação de imperfeição e mau gosto.<br />
Na periodização da história da arte, então, o termo começou a<br />
ser usa<strong>do</strong> para designar o perío<strong>do</strong> que sucedeu o Renascimento<br />
e que se acreditava ser caracteristicamente oposto a este<br />
último. Se as formas e os padrões renascentistas eram o ideal<br />
clássico, o barroco era tu<strong>do</strong> aquilo de negativo e bizarro na<br />
arte. Acreditava-se, também, que o barroco representava uma<br />
decadência <strong>do</strong> estilo renascentista. Enfim, era uma expressão<br />
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artística inferior.<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
É apenas na segunda metade <strong>do</strong> século XIX que o barroco<br />
começa a ser visto como um perío<strong>do</strong> artístico tal como o<br />
foi o Renascimento. Não mais decadência e esgotamento<br />
estético e, sim, um processo natural de evolução da arte.<br />
Muito importante para isso foi a definição de um perío<strong>do</strong><br />
intermediário entre o renascimento e o barroco – o<br />
maneirismo, que representaria um estágio de incubação e<br />
preparação das formas artísticas que viriam a compor as<br />
futuras expressões barrocas. É o que afirma, por exemplo,<br />
Lourival Gomes Macha<strong>do</strong>:<br />
Basta lembrar que o maneirismo, uma dessas<br />
fases que se julgara de bom aviso lançar ao rol<br />
das decadências insignificantes, reaparece hoje<br />
como cumprin<strong>do</strong> uma função importante, pois<br />
permite compreender o trânsito, formal e cultural,<br />
entre duas expressões artísticas antes tidas por<br />
simplesmente contraditórias e antagônicas. 45<br />
A idéia de que se processou uma transformação gradual<br />
<strong>do</strong> renascimento em outro estilo artístico, transformação<br />
esta que acompanhou o contexto histórico sócio-cultural,<br />
possibilitou novas análises sobre o barroco. Agora,<br />
começava-se a valorizá-lo como um perío<strong>do</strong> de propriedades<br />
únicas e respeitáveis, digno da mais alta fruição estética.<br />
Foi por volta de 1888 que Heinrich Wölfflin 46 desenvolveu<br />
sua teoria a respeito da arte e também <strong>do</strong> barroco. Para<br />
Wölfflin, o barroco é um conceito muito maior <strong>do</strong> que o<br />
de apenas uma categoria histórica. Passa a ser um elemento<br />
recorrente na história da arte.<br />
Segun<strong>do</strong> esta teoria, a arte barroca e a arte clássica seriam<br />
como duas pulsões artísticas que estivessem sempre a se<br />
alternar na evolução da cultura. Não se restringem, agora,<br />
45 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 38.<br />
46 In Renascença e Barroco e Conceitos Fundamentais da História da<br />
Arte.<br />
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à denominação de manifestações estéticas delimitadas<br />
historicamente. Enfim, “O Barroco não será um estilo, mas<br />
um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is estádios sucessivos de to<strong>do</strong>s os estilos, (...)”. 47<br />
Apesar de ter si<strong>do</strong> formulada em relação às artes plásticas,<br />
a teoria de Wölfflin também pode ser aplicada ao estu<strong>do</strong><br />
da literatura. Em relação à literatura, os conceitos <strong>do</strong><br />
autor remetem a uma linguagem que não é nem um pouco<br />
referencial. Pelo contrário, é extremamente metafórica e,<br />
por isso, um tanto misteriosa. Nas palavras de Hatzfeld,<br />
é “(...) um estilo que, em lugar de revelar sua arte, a<br />
esconde”. 48<br />
A contundência da aplicação das características formalistas<br />
de Wölfflin à arte literária já fora apontada brevemente pelo<br />
mesmo quan<strong>do</strong> comparan<strong>do</strong> o Orlan<strong>do</strong> Furioso (1516), de<br />
Ariosto, e Jerusalém Libertada (1580), de Tasso 49 . Ambas as<br />
obras representariam a dicotomia entre o renascimento e o<br />
barroco na literatura.<br />
A partir daí, foram surgin<strong>do</strong> vários críticos, tais como Leo<br />
Spitzer, Helmut Hatzfeld e René Wellek, que começaram a<br />
aplicar o conceito de barroco aos estu<strong>do</strong>s literários.<br />
O Neobarroco<br />
Se, hoje em dia, o conceito histórico de barroco é<br />
amplamente reconheci<strong>do</strong> na literatura, uma questão que se<br />
coloca é aquela a respeito de uma eventual presença de um<br />
neobarroquismo em obras contemporâneas.<br />
O neobarroco, contu<strong>do</strong>, ainda carece de uma definição<br />
que viabilize sua aplicação plena nos estu<strong>do</strong>s literários.<br />
Muito mais <strong>do</strong> que um conceito acaba<strong>do</strong>, a legitimidade<br />
de se falar em neobarroco se prende à percepção da<br />
47 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, p. 41.<br />
48 HATZFELD, Helmut. Estu<strong>do</strong>s sobre o Barroco, p. 16.<br />
49 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco, p. 98.<br />
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ocorrência de determinadas características em certas<br />
obras contemporâneas, tais como as explicitadas por<br />
Severo Sarduy 50 . Todavia, deve-se ter cuida<strong>do</strong> na aplicação<br />
de tais categorias, pois devi<strong>do</strong> ao seu caráter abrangente e<br />
generaliza<strong>do</strong>r, muitas vezes podem ser aplicadas a toda e<br />
qualquer obra contemporânea. Como, de resto, na utilização<br />
indiscriminada de rótulos, corre-se o risco de enxergarmos o<br />
que as obras têm em geral e não perceber o que elas têm de<br />
singular.<br />
Recursos como a artificialização ou a paródia, que foram<br />
assegura<strong>do</strong>s como próprios <strong>do</strong> neobarroco por Sarduy, nos<br />
parecem também constituintes da arte moderna como um<br />
to<strong>do</strong>. Não são suficientes e nem esgotam as possibilidades da<br />
criação neobarroca e, portanto, não fornecem uma definição<br />
exclusiva <strong>do</strong> que é o neobarroco.<br />
O trabalho de Sarduy, entretanto, não é em vão. Logo no início<br />
<strong>do</strong> seu texto, ele alerta para o “perigo” das generalizações a<br />
respeito <strong>do</strong> neobarroco:<br />
(...) interessa-nos, ao contrário, restringi-lo (o conceito<br />
de barroco), reduzi-lo a um esquema operatório<br />
preciso, que não deixe interstícios, que não permita<br />
o abuso ou o desenfa<strong>do</strong> terminológico de que esta<br />
noção sofre recentemente(...) 51<br />
Apesar de suas proposições serem questionáveis quanto à<br />
restrição ao neobarroco, não há dúvidas de que elas serviram<br />
para, de alguma forma, esquematizar características importantes<br />
da criação neobarroca, além de serem um pequeno alerta para<br />
futuros estu<strong>do</strong>s. Assim, é váli<strong>do</strong> apresentar brevemente o<br />
que foram os tais enuncia<strong>do</strong>s de Sarduy, de mo<strong>do</strong> a facilitar a<br />
análise posterior <strong>do</strong>s textos de Guimarães Rosa.<br />
O primeiro recurso <strong>do</strong> barroco, segun<strong>do</strong> Sarduy, seria a<br />
50 SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco. In América Latina em<br />
suas literaturas.<br />
51 Idem, p. 162.<br />
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artificialização. Este processo seria defini<strong>do</strong> por um grande<br />
uso de metáforas e, também, de metáforas de metáforas. Isto<br />
é, seria uma linguagem que está incessantemente envolven<strong>do</strong>se<br />
sobre si mesma. Uma linguagem da linguagem, na qual<br />
sucessivas máscaras são sobrepostas – os chama<strong>do</strong>s artifícios.<br />
Dentro da artificialização, podemos identificar três<br />
mecanismos. O primeiro seria a substituição. Nela, um<br />
significante é substituí<strong>do</strong> por outro significante cujo significa<strong>do</strong>,<br />
aparentemente, não apresenta nenhuma aproximação com o<br />
primeiro. Entretanto, dentro <strong>do</strong> contexto específico da escrita,<br />
e somente nele, este último significante assume o significa<strong>do</strong><br />
primeiro, fazen<strong>do</strong> com que o processo de artificialização<br />
funcione.<br />
O segun<strong>do</strong> mecanismo seria a proliferação. Esta consiste no<br />
uso de significantes dispostos em uma cadeia de progressão<br />
metonímica que, em seu conjunto total, remete ao significante<br />
ausente e, logo, ao significa<strong>do</strong> almeja<strong>do</strong>. Em outras palavras, a<br />
proliferação seria “(...) uma forma de enumeração disparatada,<br />
de acumulação de diversos nódulos de significação, de<br />
justaposição de unidades heterogêneas, de lista díspar e<br />
collage”. 52<br />
Por último, temos a condensação, que representaria o processo<br />
de troca ou fusão entre elementos fonéticos e plásticos de<br />
<strong>do</strong>is significantes. Este somatório resulta em um terceiro<br />
significante que condensa, resume em si, o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
primeiros.<br />
Em seguida, Sarduy faz uma exposição sobre a paródia<br />
como forma de expressão característica <strong>do</strong> barroco.<br />
Insere-se aí o processo de carnavalização que traduz, na<br />
linguagem, a ambivalência, a confusão e a polifonia. Também<br />
partes integrantes da paródia seriam os mecanismos de<br />
intertextualidade e intratextualidade. Ambos atuam em níveis<br />
diferentes, sen<strong>do</strong> que o primeiro trabalha com a incorporação<br />
direta (citação) ou indireta (reminiscência) de outros textos e<br />
52 Ibidem, p. 165.<br />
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o segun<strong>do</strong> com a escrita que supera a linearidade e incita a um<br />
caminho alternativo de leitura, no qual há uma “escritura entre<br />
a escritura”. 53<br />
Sarduy termina seu texto concluin<strong>do</strong> que o barroco constitui<br />
um espaço erótico pois nele prevalece a superabundância<br />
e o desperdício em função <strong>do</strong> prazer, em detrimento<br />
da funcionalidade e economia da linguagem puramente<br />
comunicativa.<br />
Como a retórica barroca, o erotismo apresenta-se<br />
como a ruptura total <strong>do</strong> nível denotativo, direto e<br />
natural da linguagem – somático –como a perversão<br />
que implica toda metáfora, toda figura. 54<br />
O neobarroco seria um jogo no qual se está sempre em busca<br />
<strong>do</strong> objeto perdi<strong>do</strong> que, por sua vez, não pode ser alcança<strong>do</strong>.<br />
É, então, um reflexo <strong>do</strong> desequilíbrio, da ruptura com o<br />
logocentrismo, da desarmonia e da rebeldia. Enfim, como<br />
assevera Sarduy ao final de seu texto:<br />
(...) barroco que recusa toda instauração, que<br />
metaforiza a ordem discutida, o deus julga<strong>do</strong>, a lei<br />
transgredida. Barroco da Revolução. 55<br />
A viagem neobarroca de Guimarães Rosa<br />
Uma obra da literatura brasileira que apresenta nítidas<br />
ressonâncias neobarrocas é o livro de contos Primeiras estórias<br />
(1962). Apesar de ter si<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> depois de Grande Sertão:<br />
Veredas (1956), Primeiras estórias parece ser uma pequena<br />
amostra daquilo que foi revela<strong>do</strong> primordialmente em Grande<br />
Sertão. Isto é, uma abordagem que privilegia a construção<br />
lingüística das palavras, na qual significante e significa<strong>do</strong>,<br />
juntamente com a musicalidade, formam um to<strong>do</strong> que supera<br />
53 Ibidem, p. 173.<br />
54 Ibidem, p. 177.<br />
55 Ibid, p. 200.<br />
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a narrativa convencional, partin<strong>do</strong> para uma expressão lírica<br />
<strong>do</strong> psicológico.<br />
Segun<strong>do</strong> Alfre<strong>do</strong> Bosi,<br />
Para Guimarães Rosa, como para os mestres da prosa<br />
moderna (um Joyce, um Borges, um Gadda), a palavra<br />
é sempre um feixe de significações: mas ela o é em<br />
um grau eminente de intensidade se comparada aos<br />
códigos convencionais da prosa. Além de referente<br />
semântico, o signo estético é porta<strong>do</strong>r de sons e de<br />
formas que desvendam, fenomenicamente, as relações<br />
íntimas entre o significante e o significa<strong>do</strong>. 56<br />
A partir <strong>do</strong> conceito de “palavra como feixe de significações”,<br />
podemos chegar até ao barroco pelo caminho de uma<br />
intensa elaboração da linguagem. É um verdadeiro trabalho<br />
artesanal no qual as palavras são entalhadas meticulosamente<br />
conforme seus sons e até suas formas visuais. Como disse<br />
Bosi, caminhamos nossa leitura para além de meras referências<br />
semânticas e partimos para um mun<strong>do</strong> de interpretações<br />
multissensoriais.<br />
Aqui podemos fazer uma ponte entre a obra literária de Rosa<br />
e a arte barroca. Em ambos notamos uma forma de expressão<br />
que pretende extrapolar seus limites formais, que quer nos<br />
proporcionar outras interpretações que não somente o simples<br />
processo código-mensagem. Uma forma de expressão que<br />
anseia em mostrar algo a mais no objeto artístico. É o que<br />
avalia, por exemplo, Affonso Ávila:<br />
Há, portanto, em toda a arte barroca declarada<br />
propensão para uma forma que se abre em<br />
indeterminação de limites e imprecisão de contornos,<br />
uma forma que apela para os recursos da impressão<br />
sensorial, que não quer apenas conter a informação<br />
estética, mas sobretu<strong>do</strong> comunicá-la sob um grau de<br />
56 BOSI, Alfre<strong>do</strong>. História Concisa da Literatura Brasileira, p. 482 e<br />
483.<br />
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tensão que transporte o receptor, o especta<strong>do</strong>r, da<br />
simples esfera de plenitude intelectual e contemplativa<br />
para uma estesia mais franca e envolvente – mais <strong>do</strong> que<br />
isso, para um êxtase <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s sugestionadamente<br />
acesos e livres. 57<br />
Dessa forma, em uma primeira leitura, os contos de Rosa<br />
podem parecer simples, retratan<strong>do</strong> situações banais como a<br />
de um menino que vive momentos de alegria e tristeza ao se<br />
afeiçoar a um peru e depois a uma árvore, ten<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is um<br />
destino fatal para desgosto <strong>do</strong> menino.<br />
Este é o enre<strong>do</strong> de “As margens da alegria”, primeiro conto <strong>do</strong><br />
livro Primeiras estórias. Dentro desta singela história, porém,<br />
podemos encontrar temas que ultrapassam o mero enre<strong>do</strong>,<br />
tal como o caráter de sonho e liberdade <strong>do</strong>s acontecimentos<br />
experimenta<strong>do</strong>s pelo menino que, de repente, vê-se imerso<br />
numa alegria aparentemente infinita. Logo no início <strong>do</strong> conto,<br />
somos informa<strong>do</strong>s de que:<br />
Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produziase<br />
em caso de sonho. (...) O menino fremia no<br />
acorçôo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com<br />
um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar<br />
numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe<br />
o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e<br />
logo novo senso de esperança: ao não-sabi<strong>do</strong>, ao mais.<br />
Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato<br />
de respirar – o de fugir para o espaço em branco. O<br />
Menino. 58<br />
Neste conto, percebemos um tema bastante pertinente ao<br />
barroco que é a efemeridade e a inconstância da vida que são<br />
apresentadas em figuras que, de alguma forma, relacionam-se<br />
com a idéia de movimento e fugacidade. É assim na expressão<br />
“com um jeito de folha a cair”, acima citada, que descreve o<br />
57 ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Barroco, p. 20.<br />
58 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 7.<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
comportamento <strong>do</strong> Menino, e também com o uso <strong>do</strong> termo<br />
“nuvem”, figura passageira por essência, que junto com a<br />
repetição da letra “L” e da palavra “longa” nos dão uma<br />
notável sensação de transitoriedade e demora na seguinte frase<br />
sobre a viagem de avião <strong>do</strong> garoto: “A luz e a longa-longalonga<br />
nuvem. Chegaram”. 59<br />
Também em outro trecho, observamos um forte apelo ao<br />
movimento, a não-estabilidade das coisas. É assim quan<strong>do</strong> o<br />
Menino faz um passeio de jipe e o autor faz uma descrição <strong>do</strong><br />
caminho:<br />
A poeira, alvissareira. A malva-<strong>do</strong>-campo, os lentiscos.<br />
O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde,<br />
atravessan<strong>do</strong> a estrada. A arnica: em candelabros<br />
páli<strong>do</strong>s. A aparição angélica <strong>do</strong>s papagaios. As pitangas<br />
e o seu pingar. O vea<strong>do</strong> campeiro: o rabo branco. As<br />
flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. (...)<br />
A tropa de seriemas, além, fugin<strong>do</strong>, em fila, índio-aíndio.<br />
Essa paisagem de muita largura, que o grande<br />
sol alargava. O buriti, à beira <strong>do</strong> corguinho, onde,<br />
por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas<br />
<strong>do</strong> opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria,<br />
sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos<br />
de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito<br />
puro, castelos já arma<strong>do</strong>s. Tu<strong>do</strong>, para a seu tempo ser<br />
dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e<br />
desconheci<strong>do</strong>. Ele estava nos ares. 60 (grifos meus)<br />
Apelan<strong>do</strong> para uma cadeia semântica que sugere movimento<br />
(“o velame branco”, “a cobra-verde”, “os papagaios”,<br />
“corguinho”), o narra<strong>do</strong>r sugere uma tomada cinematográfica,<br />
convidan<strong>do</strong> o leitor à reconstrução da cena. Imagem repleta de<br />
percepções sensoriais, táteis e visuais, que se sobrepõe umas às<br />
outras e, por fim, se ligam a uma espécie de memória afetiva<br />
da criança.<br />
59 Idem, p. 8.<br />
60 Idem, p. 9.<br />
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Esta descrição também pode ser considerada uma proliferação,<br />
conforme explica<strong>do</strong> anteriormente. Vemos aqui uma cadeia<br />
de termos que adquirem um senti<strong>do</strong> através <strong>do</strong> to<strong>do</strong> que é<br />
o passeio de jipe. Além disso, as palavras progridem num<br />
crescen<strong>do</strong> que vai da poeira e das pequenas plantas, passan<strong>do</strong><br />
por cobras, papagaios e seriemas, até a paisagem alargada pelo<br />
sol.<br />
Acima de tu<strong>do</strong>, porém, vemos no Menino de “As margens da<br />
alegria” aquela mesma dualidade <strong>do</strong> homem barroco entre vida<br />
e morte, entre eternidade e finitude. O menino, que admirava a<br />
exuberância <strong>do</strong> peru, sofre com a descoberta de que tu<strong>do</strong> tem<br />
um fim: “Tu<strong>do</strong> perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num<br />
átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. (...) Só no<br />
grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama<br />
de morte”. 61<br />
Ademais, esta dualidade também se faz presente na comparação<br />
entre o passeio de jipe pelo sítio que transbordava vida e o<br />
outro passeio pelo lugar ári<strong>do</strong> e cinzento onde construíam uma<br />
pista de avião. Aí, o Menino assiste, choca<strong>do</strong>, a uma derrubada<br />
de árvore. Neste momento, o narra<strong>do</strong>r nos revela a terrível<br />
descoberta feita pelo Menino:<br />
Sua fadiga, de impedida emoção, formava um me<strong>do</strong><br />
secreto: descobria o possível de outras adversidades,<br />
no mun<strong>do</strong> maquinal, no hostil espaço; e que entre o<br />
contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima,<br />
quase nada medeia. Abaixava a cabecinha. 62<br />
Já neste conto, observa-se que a finitude adquire grande<br />
relevância temática. Para Afrânio Coutinho, o “barroco é uma<br />
arte da morte e <strong>do</strong>s túmulos” 63 no qual a desintegração física<br />
e o ato de morrer são temas recorrentes. De uma forma ou<br />
de outra, a “morte” aparece em muitos contos, “A menina<br />
61 Idem, p. 10.<br />
62 Idem, p. 10.<br />
63 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 103.<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
de lá” e “Famigera<strong>do</strong>”, no impulso inicial da ação em “Os<br />
irmãos Dagobé”, ou na angústia <strong>do</strong>s jovens apaixona<strong>do</strong>s<br />
de “Nenhum, nenhuma”, que dependem tanto da morte de<br />
Nenha, “uma velha, uma velhinha – de história, de estória –<br />
velhíssima, a inacreditável” como da morte <strong>do</strong> pai da moça<br />
para concretizarem seu amor.<br />
Outro tema que permeia diversos contos da obra é a loucura.<br />
De acor<strong>do</strong> com Helmut Hatzfeld, a loucura seria um <strong>do</strong>s<br />
elementos decisivamente barrocos pois “(...) a loucura é uma<br />
espécie de metáfora, porque também o louco toma uma<br />
coisa por outra”. 64 Sen<strong>do</strong> o uso excessivo de ornamentos,<br />
mais especificamente, de metáforas, um recurso usa<strong>do</strong> com<br />
excelência pelo barroco, nos fica aqui claro que a presença<br />
significativa <strong>do</strong> tema da loucura em Primeiras estórias pode ser<br />
interpreta<strong>do</strong> como uma evidência de barroquismo.<br />
Assim, em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, as duas mulheres estão<br />
de partida para um manicômio e isto acaba viran<strong>do</strong> um grande<br />
acontecimento na cidade. No caminho para a estação de<br />
trem, elas começam a cantar uma canção que ninguém podia<br />
entender. Após a partida, surpreendentemente, Sorôco começa<br />
a entoar a mesma canção e com ele, os outros cidadãos. A<br />
cantiga das loucas, a música desatinada, desvairada, passa a ser,<br />
então, um código pelo qual to<strong>do</strong>s puderam compartilhar <strong>do</strong><br />
sofrimento de Sorôco.<br />
A loucura também é abordada em “A terceira margem <strong>do</strong> rio”,<br />
no qual um pai de família encomenda uma canoa e passa a<br />
viver pelo rio, sem nunca mais pôr os pés em terra. “Nossa<br />
mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso,<br />
to<strong>do</strong>s pensaram de nosso pai a razão em que não queriam<br />
falar: <strong>do</strong>ideira.” 65 E seu filho, que narra a história, pode nos<br />
dar a impressão de ter fica<strong>do</strong> louco também, pois chega a<br />
propor ao pai que troquem de lugar, mas acaba recuan<strong>do</strong> ante<br />
sua aproximação. É no último parágrafo que a melancolia e<br />
64 HATZFELD, Helmut. Estu<strong>do</strong>s sobre o Barroco, p. 32.<br />
65 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 33.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
pessimismo ficam evidentes, e o texto acaba por assemelhar-se<br />
a um canto fúnebre:<br />
Sofri o grave frio <strong>do</strong>s me<strong>do</strong>s, a<strong>do</strong>eci. Sei que ninguém<br />
soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento?<br />
Sou o que não foi, o que vai ficar cala<strong>do</strong>. Sei que<br />
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Mas, então, ao menos, que, no artigo da<br />
morte, peguem em mim, e me depositem também<br />
numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de<br />
longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro<br />
– o rio. 66<br />
Passamos, então, a tratar de outros aspectos da literatura<br />
barroca que são a clareza relativa e a polifonia. Pelo primeiro,<br />
entende-se a fusão de to<strong>do</strong>s os detalhes, que são muitos na<br />
arte barroca, sob um to<strong>do</strong> único e coerente. É como Afrânio<br />
Coutinho bem exemplifica:<br />
As coisas, as pessoas, ações não são descritas, apenas<br />
evocadas, seus contornos indistintos e apaga<strong>do</strong>s<br />
fundem-se, refleti<strong>do</strong>s como por um espelho através<br />
da visão das personagens: o perspectivismo, o<br />
expressionismo, o engavetamento são, por isso, as<br />
formas expressionais mais comuns, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> estilo<br />
prismático. 67<br />
Já a polifonia, ou multivocidade, refere-se ao discurso<br />
contrapontístico no qual diversas vozes se intercalam, mas que,<br />
sobretu<strong>do</strong>, giram em torno de uma idéia central. A polifonia<br />
está intimamente ligada à clareza relativa, pois seus limites são<br />
“esfuma<strong>do</strong>s”, “sombrea<strong>do</strong>s”, de forma que o que se sobressai,<br />
no final, é o tema principal.<br />
Isto pode ser melhor exemplifica<strong>do</strong> em contos como<br />
“Pirlimpsiquice”, “Partida <strong>do</strong> audaz navegante” e “Nenhum,<br />
nenhuma”.<br />
66 Idem, p. 37.<br />
67 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira, p. 106.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 237
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Em “Pirlimpsiquice”, ocorre uma mistura entre ficção e<br />
realidade que nos dá uma certa impressão de clareza relativa<br />
da qual nos fala Wölfflin. Neste conto, passa<strong>do</strong> em um colégio<br />
religioso somente para meninos, decide-se montar uma peça<br />
de teatro. Alguns alunos são escolhi<strong>do</strong>s para contracenar sob<br />
a condição de manter em sigilo total o teor <strong>do</strong> drama. A partir<br />
daí, os alunos-atores começam a inventar uma outra história<br />
para despistar os curiosos que não participam da peça. Neste<br />
meio tempo, também surge uma outra versão inventada por<br />
um <strong>do</strong>s alunos de fora, o Gamboa, e ainda outra, a verdadeira,<br />
que misteriosamente estava sen<strong>do</strong> divulgada.<br />
Todavia, não é este o fato mais genial <strong>do</strong> conto. Quan<strong>do</strong> é<br />
chegada a hora de representar a peça, no teatro cheio, os<br />
atores esquecem-se <strong>do</strong> texto e passam a representar aquela<br />
outra história inventada por Gamboa. Apesar de um primeiro<br />
momento de vaias, o público se rende e se seduz por aquele<br />
drama improvisa<strong>do</strong>.<br />
É a extrapolação das fronteiras entre teatro e vida real, entre<br />
meninos e personagens, entre verdade e mentira, que se<br />
fundem to<strong>do</strong>s na última fala <strong>do</strong> conto, proferida por Gamboa:<br />
“– Eh, eh, heim? Viu como era que a minha estória também era<br />
a de verdade?”. 68<br />
Em “Partida <strong>do</strong> audaz navegante”, também ocorre o mesmo<br />
processo de uma narrativa dentro da narrativa. Primeiro, temse,<br />
simplificadamente, a história de quatro crianças, três irmãs<br />
e um primo, e a mãe das garotas. Brejeirinha, a mais nova, é<br />
muito esperta e gosta de brincar com as palavras, mesmo com<br />
as quais não sabe o significa<strong>do</strong> dicionariza<strong>do</strong>. Assim, começa<br />
a imaginar uma história na qual Zito, o primo, é um “pirata<br />
inglório marujo”, o “Audaz navegante”, que se envolve numa<br />
história de amor apesar de ter que partir de navio para longe. A<br />
narrativa começa, então, a ter certa ligação com o real, pois Zito<br />
e Ciganinha, a outra irmã de Brejeirinha, estão enamora<strong>do</strong>s.<br />
Como não consegue arrumar um final feliz que agradasse ao<br />
68 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 46, grifo <strong>do</strong> autor.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
primo e à irmã, Brejeirinha recomeça a história, fazen<strong>do</strong><br />
de um monte de esterco, à beira de um riacho, o “Audaz<br />
navegante”. Após enfeitá-lo com flores, empurra-o rio<br />
abaixo, terminan<strong>do</strong> assim sua história.<br />
Nesta breve exposição <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, podemos identificar que<br />
um emaranha<strong>do</strong> de pequenas histórias vão se fundin<strong>do</strong><br />
umas nas outras até virarem uma só que acaba por ser a <strong>do</strong><br />
esterco/navegante.<br />
Já em “Nenhum, nenhuma”, o que nos chama a atenção é<br />
o intenso tom lírico da<strong>do</strong> à narrativa em terceira pessoa por<br />
meio de inserções de observações em primeira pessoa, de<br />
grande teor poético. É a polifonia em sua melhor expressão:<br />
Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para<br />
algo remembrar, da chuva que caía, da planta que<br />
crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais,<br />
os baús, arcas, canastras, na tenebrosidade, a gris<br />
pantalha, o oratório, registros de santos, como<br />
se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao<br />
se des<strong>do</strong>brar, os cheiros nunca mais respira<strong>do</strong>s,<br />
suspensas florestas, o porta-retratos de cristal,<br />
floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes das<br />
pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazes<br />
a foco as altas camas de tornea<strong>do</strong>, um catre com<br />
cabeceira <strong>do</strong>urada; talvez as coisa mais ajudan<strong>do</strong>, as<br />
coisas, que mais perduram: o compri<strong>do</strong> espeto de<br />
ferro, na mão da preta, o bate<strong>do</strong>r de chocolate, de<br />
jacarandá, na prateleira com alguidares, (...). 69<br />
Neste conto, Rosa fez uso da escrita em itálico para<br />
evidenciar a segunda voz que, por vezes, parece participar<br />
de um jogo com a primeira voz no qual memória,<br />
lembranças e fatos se misturam e brincam entre si. É o que<br />
se vê também em:<br />
69 Idem, p. 49, grifos <strong>do</strong> autor.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 239
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Eles se olhavam para não-distância, estiadamente,<br />
sem saberes, sem caso. Mas a Moça estava devagar.<br />
Mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá<br />
perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria<br />
precisão com que outras passagens lembradas se<br />
oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite<br />
a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos,<br />
que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo<br />
menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade.<br />
Mas o Menino queria que os <strong>do</strong>is nunca deixassem<br />
de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fun<strong>do</strong>; a vida,<br />
também, não. 70<br />
Mais adiante no texto, num momento crucial, percebe-se que<br />
a memória acaba vencen<strong>do</strong> o esquecimento pela força que os<br />
fatos têm de ser relembra<strong>do</strong>s:<br />
Vê-se – fechan<strong>do</strong> um pouco os olhos, como a memória<br />
pede: o reconhecimento, a lembrança <strong>do</strong> quadro, se<br />
esclarece, se desembaça. Desespera<strong>do</strong>, o Moço, lívi<strong>do</strong>,<br />
ríspi<strong>do</strong>, falava com a Moça, agarrava-se aos varões da<br />
grade <strong>do</strong> jardim. 71<br />
Ao fim, a narrativa principal que era em terceira pessoa passa<br />
a ser em primeira, sem os grifos em itálico, marcan<strong>do</strong> aqui<br />
também o encontro, a união, das vozes. Repare no segun<strong>do</strong><br />
parágrafo onde começa o uso de pronomes pessoais e verbos<br />
na primeira pessoa, marcan<strong>do</strong> a transição:<br />
Pouco a pouco, o Menino, devagarinho, chorava,<br />
também, o cavalo soprava. (...) Daí viu-se em casa.<br />
Chegara.<br />
Nunca mais soube nada <strong>do</strong> Moço, nem quem era,<br />
vin<strong>do</strong> junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha<br />
bigodes. (...) Minha Mãe me beijou, queria saber<br />
70 Idem, p. 48, grifos <strong>do</strong> autor.<br />
71 Idem, p. 53, grifos <strong>do</strong> autor.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
notícias de muita gente, (...). 72<br />
Outro conto de grande importância em Primeiras estórias é “O<br />
espelho”. Parece um tanto proposital que Primeiras estórias,<br />
possuin<strong>do</strong> 21 contos no total, tenha o 11° conto intitula<strong>do</strong><br />
de “O espelho” dividin<strong>do</strong>, assim, o livro em exatamente dez<br />
histórias antes e dez histórias depois. Liga<strong>do</strong> a isso, também<br />
está o fato de que o primeiro e o último conto possuem o<br />
mesmo protagonista. Apesar de aparentar ser apenas uma<br />
característica formal, Affonso Romano de Sant’Anna alerta<br />
para o uso <strong>do</strong> espelho como metáfora barroca:<br />
Revela<strong>do</strong>ramente, noutro livro de contos, Primeiras<br />
estórias (1962), “O espelho” tem um valor estrutural e<br />
também está no meio <strong>do</strong> livro. (...) Como em Tutaméia,<br />
onde o livro se <strong>do</strong>bra sobre si mesmo, o conto “O<br />
espelho” divide a obra em metades rigorosamente<br />
espelhadas, uma vez que é precedi<strong>do</strong> de dez contos e<br />
segui<strong>do</strong> também de dez contos, e os temas da primeira<br />
metade espelham-se nos contos da segunda metade.<br />
Isso, em uma leitura periférica, transformaria essa obra<br />
em obra esférica e circular. No entanto, ela é elíptica,<br />
primeiro porque o autor, praticante da numerologia,<br />
trabalha com números impares e faz com que haja dez<br />
contos de cada la<strong>do</strong>; “O espelho” é o de número 11,<br />
perfazen<strong>do</strong>-se o total de 21. Em segun<strong>do</strong> lugar, no<br />
interior desse conto, exercitan<strong>do</strong> a metalinguagem,<br />
a descrição que o próprio autor faz de sua situação<br />
espelha perfeitamente a perspectiva barroca que tinha<br />
da realidade: “À medida que trabalhava com maior<br />
maestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema<br />
perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a mo<strong>do</strong>s<br />
de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos e<br />
francamente cavernoso, como uma esponja”. 73<br />
72 Idem, p. 54.<br />
73 SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: <strong>do</strong> quadra<strong>do</strong> à elipse, p.<br />
78/79.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 241
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Além de ter este caráter central na obra, “O espelho” se<br />
distingue também <strong>do</strong>s outros contos pelo seu tom de relato,<br />
por ser narra<strong>do</strong> pelo protagonista e por tratar de um assunto<br />
que se destaca <strong>do</strong>s outros contos de temas mais ou menos<br />
equiparáveis.<br />
O espelho, assim como a água, a nuvem, a folha, etc., é<br />
reconheci<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s símbolos recorrentes no barroco 74 .<br />
Grandes quadros da era barroca possuíam o espelho como<br />
elemento chave na composição da obra, sen<strong>do</strong> este o caso, por<br />
exemplo, de O casal Arnolfini de Johannes van Eyck ou de As<br />
meninas de Velázquez 75 .<br />
No conto de Guimarães Rosa, o narra<strong>do</strong>r decide-se por<br />
uma experiência na qual pretende visualizar-se no espelho<br />
a partir de uma neutralidade no olhar, sem os costumeiros<br />
vícios de complacência com a nossa própria imagem. Este<br />
empreendimento se desenvolve quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r vê seu<br />
rosto refleti<strong>do</strong> ao mesmo tempo em <strong>do</strong>is espelhos num<br />
lavatório público. Assombra<strong>do</strong> com a imagem que vê, parte<br />
para uma procura de si mesmo:<br />
Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à<br />
tona <strong>do</strong>s espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio.<br />
(...) Sen<strong>do</strong> assim, necessitava eu de transverberar o embuço,<br />
a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo<br />
dessa nebulosa – a minha vera forma. Tinha de haver um jeito.<br />
Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações. 76<br />
Por to<strong>do</strong> o conto, o narra<strong>do</strong>r discute com o leitor sobre a<br />
veracidade científica <strong>do</strong>s fatos e pretende nos convencer que,<br />
apesar de nunca tentada ou comprovada, a experiência de fato<br />
ocorreu.<br />
74 HATZFELD, Helmut. Estu<strong>do</strong>s sobre o Barroco, p. 81.<br />
75<br />
Obra analisada por Michel Foucault em As palavras e as coisas,(1999,<br />
p. 3-21).<br />
76<br />
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, p. 67/68, grifo <strong>do</strong> au-<br />
tor.<br />
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O narra<strong>do</strong>r parte, então, numa empreitada que chegará até a<br />
completa anulação de sua própria imagem. Feito isso, passa a<br />
questionar-se sobre sua existência. Mais uma vez, aí se mostra<br />
a dualidade entre corpo e alma, carne e espírito, tão presente<br />
no homem barroco:<br />
E a terrível conclusão: não haveria em mim uma<br />
existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um...<br />
des-alma<strong>do</strong>? Então, o que se me fingia de um suposto<br />
eu, não era mais que, sobre a persistência animal, um<br />
pouco de herança, de soltos instintos, energia passional<br />
estranha, um entrecruzar-se de influências, e tu<strong>do</strong> o<br />
mais que na impermanência se indefine? Diziam-me<br />
isso os raios luminosos e a face vazia <strong>do</strong> espelho –<br />
com rigorosa infidelidade. 77<br />
É o conheci<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo entre essência e aparência da<br />
vida humana que, por analogia, pode-se conduzir a um<br />
questionamento sobre a própria linguagem na época moderna.<br />
Isto é, uma linguagem que deixa de ter como única meta a<br />
representação <strong>do</strong> objeto externo e passa a se voltar para si,<br />
valorizan<strong>do</strong> seus próprios mecanismos de construção e<br />
constituin<strong>do</strong>, ao mesmo tempo, a realidade artística.<br />
Ao final, percebe-se que Primeiras estórias, bem como toda<br />
grande obra da literatura, se esquiva a qualquer enquadramento<br />
fácil e taxativo, e este estu<strong>do</strong> procurou apenas apontar um<br />
possível olhar neobarroco para estes contos de Guimarães<br />
Rosa.<br />
Antes de mais nada, o termo neobarroco já é, por si só,<br />
de definição problemática, reflexo, em grande medida, da<br />
diversidade de tendências da literatura contemporânea. Do<br />
mesmo mo<strong>do</strong> que não podemos efetuar uma conceituação<br />
definitiva, também não acreditamos que a literatura chamada<br />
de neobarroca extrai suas fontes cria<strong>do</strong>ras somente de uma<br />
relação intertextual com autores <strong>do</strong> barroco histórico.<br />
77 Idem, ibidem, p. 71.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 243
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Mais essencial, nos parece o fato de que ambas as manifestações,<br />
o barroco histórico e o neobarroco, podem ser interpretadas<br />
como um reflexo da instabilidade e da crise das representações<br />
artísticas. Como Paul Valéry já dizia, não se mata a sede com os<br />
rótulos da garrafa. Ou seja, devemos estar alerta para o perigo<br />
<strong>do</strong> enquadramento força<strong>do</strong>, <strong>do</strong> reducionismo <strong>do</strong> particular e<br />
<strong>do</strong> original de cada autor, em nome da generalização.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico Anticlássico: O Renascimento de<br />
Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.<br />
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Barroco.<br />
São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />
BOSI, Alfre<strong>do</strong>. História Concisa da Literatura Brasileira. 2. ed.<br />
São Paulo: Cultrix, 1994.<br />
COUTINHO, Afrânio. Do Barroco (Ensaios). Rio de Janeiro:<br />
Editora UFRJ/Edições Tempo Brasileiro, 1994.<br />
COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 7. ed.<br />
Rio de Janeiro: Editora Distribui<strong>do</strong>ra de Livros Escolares Ltda.<br />
DOURADO, Autran. Uma Poética de Romance: matéria de<br />
carpintaria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.<br />
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia<br />
das ciências humanas. 8. ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />
HAUSER, Arnold. História Social da Arte. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1998.<br />
HATZFELD, Helmut. Estu<strong>do</strong>s sobre o Barroco. São Paulo: Ed.<br />
Perspectiva: Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1988.<br />
LUCAS, Fábio. Do Barroco ao Moderno. São Paulo: Ática, 1989.<br />
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 4. ed. São<br />
Paulo: Perspectiva, 1991.<br />
244 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 14. ed. Rio de<br />
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: <strong>do</strong> quadra<strong>do</strong> à<br />
elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.<br />
SARDUY, Severo. O Barroco e o Neobarroco, in: América Latina<br />
em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.<br />
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3. ed.<br />
Coimbra: Livraria Almedina, 1979.<br />
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da<br />
Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Ed.<br />
Perspectiva: Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1989.<br />
Recebi<strong>do</strong> em7/10/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 25/10/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 245
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
PRESENÇA DA COLUNA PRESTES NAS<br />
VEREDAS DO GRANDE SERTÃO<br />
Marcelo Luiz Cesar Mozzer<br />
Ufes<br />
Resumo: Na criação literária, há vestígios de verdade e<br />
verossimilhança. A escrita veicula a história e a estória, seja de<br />
paixão, seja de amor, seja de um ato político, religioso, social,<br />
sejam to<strong>do</strong>s esses juntos. Este livro, Grande sertão: veredas, será<br />
li<strong>do</strong> como uma fusão entre a ficção e o fato histórico.<br />
Palavras-chave: História. Literatura. Verdade e ficção.<br />
Resumé : Dans la création littéraire, il-y-a des vestiges de vérité<br />
et de vraissemblence. L’écriture propage l’histoire et le conte,<br />
soit de passion, soit d’amour, soit d’un acte politique, religieux,<br />
social, soit de tous ceux joints. Ce livre, Grande sertão : veredas,<br />
sera lu comme une fusion entre la fiction et l’événement<br />
historique.<br />
Mots-clés: Histoire. Littérature. Vérité et fiction.<br />
Acredito não haver a possibilidade de uma criação literária sem<br />
vestígios de verdade. Quan<strong>do</strong> se escreve, sempre é a história<br />
de um amor, de uma paixão, de um fato político, econômico,<br />
histórico, religioso, social e, às vezes, esses estão to<strong>do</strong>s juntos.<br />
Este livro – Grande sertão: veredas – pode ser li<strong>do</strong> como a<br />
mistura da ficção com o fato histórico.<br />
Para isso, suspen<strong>do</strong> as fronteiras entre duas linguagens: a de<br />
que se serve a História e a que utiliza a Literatura. Misturoas,<br />
a fim de mobilizar personalidades históricas pelas veredas<br />
discursivas de Guimarães Rosa. Nessas veredas, História<br />
e estória convocam-se a serviço da arte. Para início dessas<br />
246 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
desterritorializações entre o <strong>do</strong>mínio da poética e o das ciências<br />
humanas, questiono o lugar da fronteira entre História e ficção.<br />
No plano narrativo, essa distinção, a meu ver, não se estabelece<br />
permanentemente na voz de Riobal<strong>do</strong>. Para questionar a<br />
distinção entre verdade e invenção, passo a palavra a José<br />
Américo Motta Pessanha (1988, p. 282):<br />
Onde a fronteira – se é que ela existe – entre história<br />
e ficção? Pergunta<strong>do</strong> de outro mo<strong>do</strong>: entre as muitas<br />
formas de narrativa, onde estabelecer a linha divisória<br />
– se é que ela pode ser traçada – entre os diversos<br />
tipos de história inventada e uma história que pretende<br />
ostentar estatuto de cientificidade, apresentar-se<br />
enquanto episteme, inscrever-se entre as formas<br />
“sérias” de conhecimento, candidatar-se à conquista<br />
de alguma verdade sobre o que narra, narran<strong>do</strong> e ao<br />
mesmo tempo tentan<strong>do</strong> explicar o objeto que aborda?<br />
Comecemos com a história. A Coluna Prestes, 1924-1927,<br />
foi um movimento lidera<strong>do</strong> por militares insatisfeitos com as<br />
fraudes eleitorais e as corrupções no governo. Nesse contexto,<br />
o movimento não apoiava a candidatura de Artur Bernardes<br />
à presidência <strong>do</strong> Brasil. A chamada Coluna Prestes, liderada<br />
por Luís Carlos Prestes, percorreu 25 mil quilômetros pelo<br />
Brasil, envolven<strong>do</strong> 14 Esta<strong>do</strong>s. Esses militares que o Prestes<br />
comandava embrenharam-se pelo Brasil, e foram combati<strong>do</strong>s<br />
por tropas <strong>do</strong> governo e por jagunços contrata<strong>do</strong>s pelos chefes<br />
políticos locais, sobretu<strong>do</strong> na região Nordeste. O objetivo <strong>do</strong>s<br />
líderes da Coluna era derrubar o presidente Artur Bernardes.<br />
No dia 3 de fevereiro de 1927, quan<strong>do</strong> Bernardes já havia<br />
saí<strong>do</strong> da presidência e Washington Luís si<strong>do</strong> empossa<strong>do</strong> desde<br />
novembro de 1926, os rebeldes se exilaram na Bolívia, sem<br />
sofrerem derrota alguma.<br />
Aproximo agora os escritos da coisa histórica <strong>do</strong>s associa<strong>do</strong>s a<br />
fatos ficcionais. Para a realidade histórica, convoco as pesquisas<br />
de alguns historia<strong>do</strong>res. Para expor o mun<strong>do</strong> de referência<br />
ficcional de Grande sertão: veredas, convi<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 247
DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Riobal<strong>do</strong>. Perfilam-se as tropas textualmente: as compostas de<br />
jagunços e as da Coluna Prestes.<br />
As tropas de jagunços se apresentam prontas, segun<strong>do</strong> o olhar<br />
que Riobal<strong>do</strong> lança (“bispa”) sobre sua gente de guerra. Com<br />
a palavra Riobal<strong>do</strong>: “Disse só que decerto Joca Ramiro estava<br />
forman<strong>do</strong> gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em<br />
lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes,<br />
em Titão Passos, João Goanhá. – Fortes no fato valor e na<br />
lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei.” (ROSA,<br />
1986, p. 153)<br />
As tropas da Coluna Prestes, já acampada nos Cerra<strong>do</strong>s, no-las<br />
apresenta Anita Leocádia Prestes, pon<strong>do</strong> em relevo o nome de<br />
seus comandantes:.<br />
Coman<strong>do</strong> da Coluna Prestes reuni<strong>do</strong> em Porto<br />
Nacional, Goiás em outubro de 1925: Miguel Costa,<br />
Luis Carlos Prestes, Juarez Távora, João Alberto Lins<br />
de Barros, Antonio de Siqueira Campos, Djalma<br />
Dutra, Oswal<strong>do</strong> Cordeiro de Farias, José Pinheiro<br />
Macha<strong>do</strong>, Atanagil<strong>do</strong> França, Emygdio da Costa<br />
Miranda, João Pedro Gonçalves, Paulo Kruger da<br />
Cunha Cruz, Ary Salga<strong>do</strong> Freire, Nélson Macha<strong>do</strong> de<br />
Souza, Manuel Alves Lira, Sady Valle Macha<strong>do</strong>, André<br />
Trifino Correia, Ítalo Landucci. (PRESTES, 1995, p.<br />
74)<br />
A Coluna era militarmente disciplinada; os jagunços também<br />
o eram. Estes se reuniam em ban<strong>do</strong>s; tinham seus chefes;<br />
aqueles se reunião em unidades de combates, e tinhas seus<br />
comandantes. A organização da Coluna Prestes não era igual<br />
à <strong>do</strong>s jagunços, no entanto, entre ambas, tanto pelo olhar<br />
artístico de Riobal<strong>do</strong>, narra<strong>do</strong>r de Guimarães Rosa, como pela<br />
vista da História, se notam elementos pareci<strong>do</strong>s: a maneira de<br />
combater e os encontros <strong>do</strong>s chefes.<br />
Nas veredas <strong>do</strong> grande sertão, os jagunços chegaram à<br />
Fazenda Sempre-Verde, para se reunir. Riobal<strong>do</strong> apontaos<br />
como se olhasse para uma velha fotografia. “A jagunçada<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
veio avançan<strong>do</strong>, feito um rodear de ga<strong>do</strong> – fecharam tu<strong>do</strong>,<br />
só deixan<strong>do</strong> aquele centro, com Zé Bebelo senta<strong>do</strong> simples<br />
e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só Candelário em pé,<br />
o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos, to<strong>do</strong>s!” (ROSA,<br />
1986, p. 225)<br />
Intuo que Guimarães Rosa, após leitura sobre a Coluna Prestes,<br />
teria se inspira<strong>do</strong> nesse fato histórico militar marcante a década<br />
de 20, para escrever a Grande sertão: veredas. Haven<strong>do</strong> nesse<br />
homem um gênio da<strong>do</strong> a leituras e pesquisas, não teria ele<br />
li<strong>do</strong> alguma obra sobre a Coluna Prestes? Guimarães Rosa<br />
dialogaria literariamente com os feitos da Coluna Prestes?<br />
É possível. Sua criatividade e pesquisa poderiam convocar<br />
o fato real e histórico a serviço da literatura, embora os<br />
acontecimentos da História não sejam, naturalmente, idênticos<br />
aos lugares geográficos da Literatura. E não seria o primeiro<br />
artista a referir-se a Preste em tonalidades épicas. Candi<strong>do</strong><br />
Portinari teria se referi<strong>do</strong> a Prestes, pintan<strong>do</strong>-lhe o rosto na<br />
figura de Tiradentes, num se seus quadros da fase histórica,<br />
que conta a execução <strong>do</strong> Mártir mineiro.<br />
História e literatura se assemelham a partir das aproximações<br />
entre alguns jagunços menciona<strong>do</strong>s por Riobal<strong>do</strong> e os chefes<br />
ou subchefes <strong>do</strong>s quatro destacamentos da Coluna. Entre<br />
os jagunços, um <strong>do</strong>s chefes a comandar confrontos trava<strong>do</strong>s<br />
lá pelas veredas <strong>do</strong> grande sertão foi o próprio Riobal<strong>do</strong>, o<br />
Tatarana, o Urutu Branco. Com essa variação de nomes, o<br />
narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sertão atravessa as hierarquias de uma disciplina<br />
calcada na refrega; torna-se uma cobra no assunto e um<br />
homem bem informa<strong>do</strong> sobre os embates bélicos naquelas<br />
sendas. Ouçamo-lo:<br />
Os revoltosos depois passaram por aqui, solda<strong>do</strong>s<br />
de Prestes, vinham de Goiás, reclamaram posse de<br />
to<strong>do</strong>s animais de sela. Sei que deram fogo, na barra<br />
<strong>do</strong> Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor<br />
<strong>do</strong> Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas<br />
cravadas. (ROSA, 1986, p. 82)<br />
Heloisa Maria Murgel Starling, registran<strong>do</strong> seu testemunho<br />
histórico, escreve sobre os chefes políticos como Medeiros<br />
Vaz, Selorico Mendes, Joca Ramiro, Seo Ornelas, Seão Habão,<br />
Domingos Touro, Major Urbano, os Silva Sales, Dona Adelaide,<br />
Simão Avelino, Joãozinho Bem Bem, Hermógenes, Mozar<br />
Vieira. Disserta também a cerca sobre a política de chefes<br />
jagunços como Zé Bebelo, Riobal<strong>do</strong>, mencionan<strong>do</strong> elementos<br />
comuns ente a Coluna Prestes na obra de Guimarães:<br />
Os revoltosos depois passaram por aqui, solda<strong>do</strong>s de Prestes,<br />
vinham de Goiás, reclamaram posse de to<strong>do</strong>s os animais de<br />
sela. Sei que deram fogo, na barra <strong>do</strong> Urucuia, em São Romão,<br />
aonde aportou um vapor <strong>do</strong> Governo, cheio de tropas da<br />
Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau,<br />
encontra balas cravadas. (STARLING, 1999, p. 29)<br />
Não parece absur<strong>do</strong>, à luz dessas duas citações, supor que<br />
Guimarães Rosa poderia ter se utiliza<strong>do</strong> em sua obra <strong>do</strong>s<br />
personagens que combatiam a Coluna Prestes, que eram<br />
os chefes políticos locais, isto é, os coronéis e os seus<br />
jagunços. Teria também Rosa se inspira<strong>do</strong> nas virtudes e nos<br />
valores <strong>do</strong>s tenentes como: hierarquia, disciplina, coragem,<br />
lealdade, justiça, propósito político, a fim de caracterizar seus<br />
personagens jagunços? Com o surgimento da Coluna em<br />
1925 naqueles sertões, os chefes políticos continuaram as<br />
suas lutas internas entre si, mas receberam dinheiro e armas<br />
<strong>do</strong> governo, para combater os solda<strong>do</strong>s de Prestes. Grande<br />
sertão: veredas, não seria também um relato das lutas e disputas<br />
políticas, e territoriais, entre chefes políticos locais, associada<br />
ao inquestionável sabor histórico da Coluna Prestes?<br />
Outras aproximações se flagram. Riobal<strong>do</strong>, em determina<strong>do</strong><br />
momento, se declara um tenente, um chefe. “Tibes! Eu, não.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Ia demandar de outros o que eu mesmo não soubesse, a ser:<br />
nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente? (ROSA,<br />
1986, p. 494). Neste próximo exceto, Riobal<strong>do</strong> recebe a visita<br />
de um boiadeiro, e <strong>do</strong>s camaradas deste, e o ouve falar sobre<br />
os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo, que andavam por aquelas bandas <strong>do</strong><br />
sertão. “Sim. Os solda<strong>do</strong>s! – ´Os que solda<strong>do</strong>s, esses, mano<br />
velho?` Soldadesca pronta, <strong>do</strong> Governo, mais de uns cinqüenta.<br />
Assim onde era que estavam?” (ROSA, 1986, p. 282)<br />
O narra<strong>do</strong>r fala também de um advoga<strong>do</strong> seu “[...], e o que<br />
também devi<strong>do</strong> <strong>do</strong>u ao advoga<strong>do</strong> meu que zelou a sucessão<br />
– Dr. Meigo de Lima” (Rosa, 1986, p. 535). Esse nome se<br />
assemelha ao de Lourenço Moreira Lima, que era advoga<strong>do</strong>,<br />
capitão, secretário da Coluna Prestes. Ele é muito cita<strong>do</strong> por<br />
Jorge Ama<strong>do</strong> no livro O cavaleiro da Esperança, edita<strong>do</strong> em<br />
1942. “Lourenço Moreira Lima, advoga<strong>do</strong> e capitão. Chamamno<br />
de Bacharel Feroz, porque era valente nos combates”<br />
(AMADO, 1985, p. 191). A obra escrita por Jorge Ama<strong>do</strong> em<br />
1942, não teria passa<strong>do</strong> pelas mãos de Guimarães Rosa?<br />
Seguin<strong>do</strong> a prosa e a jornada pelas trilhas e veredas <strong>do</strong><br />
grande sertão, Riobal<strong>do</strong> nos põe em contato com um <strong>do</strong>s<br />
mais importantes coronéis <strong>do</strong> Nordeste, que combateu<br />
incessantemente a Coluna Prestes, contratan<strong>do</strong> jagunços<br />
para fazer esse serviço: o coronel Horácio de Matos. Passo a<br />
palavra, a Riobal<strong>do</strong>.<br />
O Alípio, preso, leva<strong>do</strong> para a cadeia de algum lugar.<br />
Titão Passos? Ah, persegui<strong>do</strong> por uma soldadesca,<br />
tivera de escapar para a Bahia, pela proteção <strong>do</strong><br />
Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá<br />
era quem ainda estava. Comandava sal<strong>do</strong> de uns<br />
homens, aos poucos. Mas coragem e munição não<br />
faltavam. (ROSA, 1986, p. 53)<br />
Anita Leocádia Prestes também o registra em A Coluna Prestes,<br />
citan<strong>do</strong> a força econômica, política e militar desses coronéis<br />
<strong>do</strong> Nordeste e indican<strong>do</strong> a quantidade de homens, a influência<br />
regional e o poder de fogo que cada coronel tinha sob seu<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
coman<strong>do</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> informações recolhidas pelo pesquisa<strong>do</strong>r<br />
Eul-Soo Pang, foram organiza<strong>do</strong>s, na Bahia no início<br />
de 1926, cerca de dez ‘batalhões patrióticos’, sen<strong>do</strong><br />
os mais importantes: o comanda<strong>do</strong> por Horácio<br />
de Mattos, de Lavras Diamantinas (cerca de 1500<br />
homens), o de Franklin Lins de Albuquerque, <strong>do</strong> vale<br />
médio <strong>do</strong> São Francisco (cerca de 800 homens), e o<br />
grupo de Abílio Wolney, forma<strong>do</strong> por jagunços de<br />
Barreiras e Goiás (cerca de 1000 homens). (PRESTES,<br />
1991, p. 262)<br />
Sobre a questão das mulheres, história e literatura também se<br />
conectam. Em outros caminhos da Coluna Prestes, constatase<br />
o envolvimento de mulheres na marcha. São as vivandeiras;<br />
vendem mantimentos ou os levam, acompanhan<strong>do</strong> as tropas<br />
em marcha. Luiz Maria Veiga aponta a participação feminina<br />
na Coluna, descreven<strong>do</strong> a insistência vitoriosa delas em<br />
acompanhar os seus homens.<br />
Os rebeldes gaúchos conseguiram finalmente entrar<br />
em Santa Catarina: eram cerca de mil homens, 500<br />
cavalos e 50 mulheres. Essas mulheres, chamadas<br />
vivandeiras, insistiram em acompanhar seus homens,<br />
mesmo contra as ordens <strong>do</strong> Capitão Prestes, que<br />
determinava que elas permanecessem <strong>do</strong> outro<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rio. Diante, porém, da consumada travessia<br />
feminina, não se opõe a que continuassem. (VEIGA,<br />
1992, p. 30)<br />
Coincidência ou não, Riobal<strong>do</strong>, em suas travessias, à parte sua<br />
paixão espartana pelo bravo Dia<strong>do</strong>rim (essa é outra estória),<br />
às vezes gozava a companhia de mulheres; mas, às vezes, se<br />
abstinha disso. Cruzou rios, viu, viveu e venceu lutas, passou<br />
por muitos lugares que lhe deram algum prazer, mesmo que<br />
tal prazer tivesse de ser adia<strong>do</strong> ou proibi<strong>do</strong>. Sobre esses,<br />
transcrevo aqui um trecho de sua prosa.<br />
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Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra<br />
de légua dali, no Leva, onde estavam arranchadas<br />
as mulheres, mais de cinqüenta. Elas vinham vin<strong>do</strong>,<br />
tantas, que quase to<strong>do</strong> dia, mais tinham que baratear.<br />
Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava:<br />
-- ´Onde é que já viu homem valer, se não tem à<br />
mão estradas raparigas? Ond´é ? Mesmo cachaça ele<br />
fornecia, com regra. (ROSA, 1986, p. 112)<br />
Riobal<strong>do</strong> também menciona uma proteção, provavelmente uma<br />
mulher. “Se diz que eles têm uma proteção preta [...]” (ROSA,<br />
1986, p. 53). Essa proteção, na coluna que Prestes comandava,<br />
é uma velha negra, a mulher muito conhecida, citada por<br />
vários autores em diversas obras. Trata-se da tia Maria. “Porém<br />
a que era aureola de mistério, cujo nome circulava de boca<br />
em boca entre os solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo era a Tia Maria, preta<br />
velha, seca e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente<br />
entre torturas. Contavam dela que era a feiticeira da Coluna”<br />
(AMADO, 1985, p. 123).<br />
A descrição de Riobal<strong>do</strong> com barba grande e preta também<br />
aproxima fato histórico detecta<strong>do</strong> em velhas fotos e literatura:<br />
“E já fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário<br />
de Dia<strong>do</strong>rim. Minha barba luzia grande e preta, conferin<strong>do</strong><br />
respeito” (ROSA, 1986, p. 462). Quanto aos homens da Coluna<br />
Prestes, basta abrir qualquer livro que tenha uma fotografia e lá<br />
vão estar os oficiais e os solda<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s barbu<strong>do</strong>s.<br />
Acompanhava Riobal<strong>do</strong> um menino chama<strong>do</strong> Guirigó, que<br />
chegou a chefiar ban<strong>do</strong>s. “Tu é existível, Guirigó... Vai pelos<br />
proveitos e preceitos [...]. Até que, um momento, o pretinho<br />
Guirigó se chegou sorrateiro, e emitiu em minha orelha. – Tô<br />
chefe...” (ROSA, 1986, p. 400 e 414).<br />
Na Coluna Prestes também havia <strong>do</strong>is meninos. Jaguncinho<br />
e Al<strong>do</strong>. “O primeiro era paulista e se incorporara a Coluna<br />
numa das estações de Estrada de Ferro Sorocabana; o segun<strong>do</strong><br />
era um pretinho que fora encontra<strong>do</strong> numa fazenda de Goiás,<br />
onde era um verdadeiro escravo” (LIMA, 1979, p. 185)<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Quan<strong>do</strong>, pela primeira vez, comecei a ler Grande sertão:<br />
veredas, notei que alguns episódios e personagens pareciam<br />
realmente comuns aos escritos de pesquisa<strong>do</strong>res sobre<br />
a Coluna Prestes. Outras aproximações entre História e<br />
Literatura são possíveis, a partir <strong>do</strong> contato com Guimarães<br />
Rosa. Por exemplo, as <strong>do</strong>ações de alimentos que os jagunços<br />
obtinham das populações locais são semelhantes às que eram<br />
obtidas pelas tropas de Prestes. E mais, pela censura imputada<br />
a Hermógenes, Riobal<strong>do</strong> se aproxima novamente da disciplina<br />
militar imposta por Prestes a seus comanda<strong>do</strong>s. Ouçamos<br />
Riobal<strong>do</strong>.<br />
Medeiros Vaz não maltratava ninguém sem necessidade<br />
justa, não tomava nada à força, nem consentia em<br />
desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as<br />
pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas,<br />
outros presentes. Mas os Hermógenes e os cardões<br />
roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça<br />
em qualquer povoal à-toa, renitiam feito peste. (ROSA,<br />
1986, p. 45)<br />
Na Coluna também havia requisições. Houve muitos casos em<br />
que mulheres, contrarian<strong>do</strong> as ordens de Prestes, invadiram<br />
casas e apanharam mantimentos. Muitos homens que também<br />
saquearam casas foram expulsos <strong>do</strong> movimento. Mesmo<br />
oficiais que não respeitaram as ordens de Prestes e cometeram<br />
outras falhas foram puni<strong>do</strong>s 78 . Sobre as requisições de<br />
alimentos feitas pela Coluna, Luiz Maria Veiga escreve.<br />
A princípio houve abusos nessas requisições, pois<br />
as mulheres que acompanhavam a Coluna achavam<br />
que tinham direito de limpar as casas aban<strong>do</strong>nadas<br />
pelos mora<strong>do</strong>res. O coman<strong>do</strong> revolucionário, porém,<br />
proibiu o saque indiscrimina<strong>do</strong>, só permitin<strong>do</strong> que os<br />
solda<strong>do</strong>s levassem o que fosse realmente necessário.<br />
78 Entre esses aconteci<strong>do</strong>s, há um caso de um oficial que foi expulso<br />
na época e, tempos depois, no ano de 1936, man<strong>do</strong>u prender o Prestes, já<br />
comunista, junto com a sua companheira Olga Benário Prestes. Olga passou<br />
por quatro prisões: Barnimstrasse, Lichtemburg, Ravensbruck e Bernburg.<br />
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Seria puni<strong>do</strong> severamente quem desrespeitasse essas<br />
ordens, e, com efeito, chegaram acontecer expulsões<br />
por desobediência. (VEIGA, 1992, p, 41).<br />
Certo ideário <strong>do</strong>s fortes em defesa <strong>do</strong>s fracos, <strong>do</strong> livre que<br />
liberta os cativos e faz justiça, também contamina Arte e<br />
História. Com a palavra Riobal<strong>do</strong>.<br />
Cavalaria de jagunços galopan<strong>do</strong>, sain<strong>do</strong> para distâncias<br />
marcadas. Abriam festas de bomba-real e foguetório,<br />
quan<strong>do</strong> entravam numa cidade. Mandavam tocar<br />
o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltan<strong>do</strong> os<br />
presos, arrancavam o dinheiro da coletoria, e ceavam<br />
em Casa-da-Câmara. (ROSA, 1986, p. 95)<br />
Anita Leocádia Prestes aponta atos semelhantes quan<strong>do</strong><br />
escreve sobre as atitudes <strong>do</strong>s oficiais da Coluna em favor <strong>do</strong>s<br />
fracos e <strong>do</strong>s menos favoreci<strong>do</strong>s. “A Coluna, em sua marcha<br />
pelo Brasil, tentava fazer justiça, queiman<strong>do</strong> os livros e listas de<br />
cobranças de impostos, soltan<strong>do</strong> os prisioneiros e destruin<strong>do</strong><br />
instrumentos de tortura que encontrava.” (PRESTES, 1995,<br />
p. 81)<br />
A localização geográfica <strong>do</strong>s rios é outro item que aproxima<br />
História e Literatura, por meio de quatro escritores: Alan<br />
Viggiano, Jorge Ama<strong>do</strong>, Guimarães Rosa e Abguar Bastos.<br />
Alan Viggiano, em sua obra O itinerário de Riobal<strong>do</strong>: espaço<br />
geográfico e toponímia em Grande sertão: veredas, fala de alguns<br />
rios como “Rio Par<strong>do</strong>, Grão-Mogol, São Francisco, Paracatu,<br />
Carinhanha. [...] Ao Urucuia; onde tanto boi berra, ele está<br />
preso pelo amor” (VIGGIANO, 1993, p. 16-17). Estes são<br />
outros rios aponta<strong>do</strong>s pelo mesmo autor: Preto, Par<strong>do</strong>,<br />
Canabrava, <strong>do</strong> Sono, Soninho, e que estão presentes na obra<br />
de Guimarães Rosa.<br />
Jorge Ama<strong>do</strong>, em seu livro, O cavaleiro da esperança, publica<strong>do</strong><br />
em 1942, escreve: “Em Minas a Coluna marcha sobre os<br />
chapadões limita<strong>do</strong>s pelos rios, Preto, Urucuia, Carinhanha.”<br />
(AMADO, 1985, p. 131). Para as jornadas de Riobal<strong>do</strong>, estes<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
mesmos rios eram familiares: “Rio Preto”; “Urucuia”; e<br />
“Carinhanha”. (ROSA, 1986, p. 60, 22, 22, respectivamente).<br />
Mera coincidência ou influência da história sobre a obra de<br />
Rosa? Os nomes <strong>do</strong>s rios que encontrei na obra de Guimarães<br />
Rosa não seriam os mesmos nomes de rios por onde passou a<br />
Coluna Prestes?<br />
Abguar Bastos, em sua obra Prestes e a revolução social, publicada<br />
no ano de 1946, escreve os nomes de alguns rios tais como:<br />
“São Francisco”; “rio <strong>do</strong> Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”;<br />
“Grão-Mogol”. (BASTOS, 1986, p. 131, 131, 136, 138, 134,<br />
respectivamente). Em Grande sertão: veredas os mesmos rios<br />
são cita<strong>do</strong>s por Riobal<strong>do</strong>. “São Francisco – Rio <strong>do</strong> Chico”;<br />
“<strong>do</strong>-Sono”; “Canabrava”; “Paracatu”; “Grão-Mogol”. (ROSA,<br />
p. 60, 64, 60, 60, 59 respectivamente). A obra escrita por<br />
Abguar Bastos, publicada em 1946, não teria também passa<strong>do</strong><br />
pelas mãos de Guimarães Rosa?<br />
Riobal<strong>do</strong>, em suas falas, prevê que aquelas lutas irão entrar<br />
para a história e serão contadas por uns cantos <strong>do</strong> Brasil. “... A<br />
guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão.<br />
Nela to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vai falar, pelo Norte <strong>do</strong>s Nortes, em Minas<br />
e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão<br />
fazer cantigas, relatan<strong>do</strong> as tantas façanhas... ”(ROSA, 1986,p.<br />
239)<br />
A Coluna Prestes entrou para a História <strong>do</strong> Brasil. Muitos<br />
livros e livretos (literatura de cordel) foram escritos sobre esse<br />
evento; essa história é parte da cultura popular lida contada<br />
e cantada nas feiras <strong>do</strong> Nordeste. A Coluna se tornou lenda;<br />
Luiz Carlos Prestes, histórico: líder <strong>do</strong> movimento mais<br />
importante na década de 20 no Brasil, que é a Coluna Prestes.<br />
Jorge Ama<strong>do</strong> (1985, p. 152) transcreve estes versos populares<br />
sobre o fato histórico:<br />
Uma vez, amiga, numa feira distante, um cego cantava<br />
sua recordação de Luiz Carlos Prestes.<br />
Deixan<strong>do</strong> os solda<strong>do</strong>s frios.<br />
Passava a pé pelos rios,<br />
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As águas se endurecia.<br />
Junto <strong>do</strong> fogo seguia.<br />
O fogo lhe protegia<br />
A brasa já se esfriava<br />
Quan<strong>do</strong> seu pé lhe pisava.<br />
Como que autorizan<strong>do</strong> esses versos, na Bolívia, já no exílio<br />
Lourenço Moreira Lima faz uma homenagem aos solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
Exército e da Coluna enterra<strong>do</strong>s no cemitério de La Gaiba.<br />
Solda<strong>do</strong>s da Liberdade!<br />
Dormi tranqüilos na terra estrangeira que vos acolheu<br />
com tanta nobrez, porque os vossos nomes e os<br />
vossos feitos serão eternos no coração generoso <strong>do</strong><br />
Brasil impetérrito, <strong>do</strong> Brasil que não teme os tiranos,<br />
<strong>do</strong> Brasil que esmagará os déspotas, <strong>do</strong> Brasil heróico,<br />
cuja espada cavalheiresca jamais deixará de ser<br />
brandida para maior glória <strong>do</strong> Direito, da Justiça, da<br />
Liberdade. (LIMA, 1979, 523)<br />
Riobal<strong>do</strong>, nas últimas conversas, fala em ser advoga<strong>do</strong>, escrever<br />
um livro, contar as estórias das guerras. “Não queria saber<br />
<strong>do</strong> sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com<br />
comércio, estudar para advoga<strong>do</strong> – Lá eu quero deduzir meus<br />
feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens<br />
de nossas guerras, fama devida...” (ROSA, 1986, p. 537).<br />
Esse advoga<strong>do</strong> pode ser Lourenço Moreira Lima, advoga<strong>do</strong>,<br />
participante da Coluna, que, com o término <strong>do</strong> movimento,<br />
escreve um livro maravilhoso: A Coluna Prestes (marchas e<br />
combates). É uma das primeiras e mais importantes obras<br />
sobre a Coluna Prestes.<br />
A obra de Guimarães Rosa é sedutora. Lê-la, como fiz, pode<br />
ser o caminhar na fronteira entre a História e a Literatura.<br />
O escritor enre<strong>do</strong>u estórias história e personagens, utilizou<br />
vocabulário regional, chamou pelo nome rios, córregos, lugares,<br />
lugarejos, criou nomes não existentes na língua portuguesa e<br />
está aí seduzin<strong>do</strong> leitores de muitas áreas <strong>do</strong> conhecimento.<br />
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DOSSIÊ GUIMARÃES ROSA<br />
Relembrar um <strong>do</strong>s maiores eventos militares <strong>do</strong> século XX,<br />
no Brasil, que foi a Coluna Prestes, acrescenta muito à obra<br />
de ficção de Guimarães Rosa. Mostra que o autor tinha<br />
preocupações concretas com a história de sua época.<br />
Não pretendi aqui discernir o que é História e o que é<br />
Literatura. Os <strong>do</strong>is saberes misturam-se, embrenham-se por<br />
um sertão afora e adentro, descortinan<strong>do</strong> uma sociedade<br />
pouco conhecida; valorizada, menos ainda. Reconheço e<br />
desejo que reconheçam a grandeza <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de ser<br />
<strong>do</strong> sertanejo. Sertão é linguagem, linguagem falan<strong>do</strong> um povo<br />
que tem muito a ensinar ao Brasil.<br />
REFERÊNCIAS<br />
AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança: vida de Luiz Carlos<br />
Prestes. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. 351 p.<br />
BASTOS, Abguar. Prestes e a revolução social: fatos políticos,<br />
condições sociais e causas econômicas de uma fase<br />
revolucionária <strong>do</strong> Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. 312 p.<br />
LIMA, Lourenço Moreira. A Coluna Prestes (marchas e<br />
combates). 3. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. 631 p.<br />
MOZZER, Marcelo Luiz Cesar. A Coluna Prestes: 1924 –<br />
1927. Monografia. (Especialização em Teoria da História)<br />
– Programa de Pós-Graduação em História, <strong>Universidade</strong><br />
<strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, Vitória, 1997. 142 p.<br />
PESSANHA, José Américo Motta. História e ficção: o sono e<br />
a vigília. In. RIEDEL, Dirce Côrtes. (Org.). Narrativa, ficção e<br />
história. Rio de Janeiro: Imago. 1988.<br />
PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3. ed. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1991. 498 p.<br />
PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira – a Coluna<br />
258 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
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Prestes. São Paulo: Moderna, 1995. 111 p. (Coleção Polêmica).<br />
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 36. ed. Rio de<br />
Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 538 p.<br />
STARLING, Heloísa Maria Gurgel. Lembranças <strong>do</strong> Brasil:<br />
teoria política, histórica e ficção em Grande sertão: veredas.<br />
Rio de Janeiro: Revan: Ucam, Iuperj, 1999. 192 p.<br />
VEIGA, Luiz Maria. A Coluna Prestes. História em aberto. São<br />
Paulo: Scipione, 1992. 80 p.<br />
VIGGIANO, Alan. O itinerário de Riobal<strong>do</strong>: espaço geográfico<br />
e toponímia em Grande sertão: veredas. 3. ed. Porto Alegre:<br />
Merca<strong>do</strong> Aberto. 1993. 64 p.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 02/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 10/09/2008<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
C L I P E<br />
A. Regionalismo: Brasil.<br />
1. pequena peça de metal ou matéria<br />
plástica, us. para juntar papéis<br />
2. objeto de a<strong>do</strong>rno feminino com<br />
fecho de segurança; broche<br />
B. Regionalismo: Brasil.<br />
3. red. de videoclipe [curta-metragem<br />
em filme ou vídeo que ilustra uma<br />
música e/ou apresenta o trabalho<br />
de um artista; clip; clipe]<br />
C. Regionalismo: Minho. Uso:<br />
informal.<br />
4. eucalipto [etimologia: orig.obsc.;<br />
não é impossível, contu<strong>do</strong>, supor-se<br />
tal forma como uma radical redução<br />
fonética de eucalipto > *euclip ><br />
*oclipe > clipe]<br />
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C L I P E<br />
262 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
BERNARDO CARVALHO: ENTRE TRAMAS E<br />
TRAMPAS<br />
Beny Ribeiro <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s<br />
UFRJ<br />
Resumo: Bernar<strong>do</strong> Carvalho, no romance Teatro, concebe uma<br />
história em que a ficção e a verdade se movem em <strong>do</strong>mínios<br />
constantemente redimensiona<strong>do</strong>s no curso da narrativa. O esforço<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r para demarcar os limites desses <strong>do</strong>mínios é contrário<br />
às relações que mantêm entre si na ordem da narrativa. Diante de<br />
acontecimentos de fatura reversível, seu esforço de esclarecimento é<br />
confronta<strong>do</strong> por uma experiência de natureza ambígua.<br />
Palavras-chave: Ficção. Verdade. Ambigüidade.<br />
Résumé: Bernar<strong>do</strong> Carvalho, dans son roman Teatro, conçoit une<br />
histoire dans laquelle la fiction et la vérité se meuvent dans des<br />
<strong>do</strong>maines <strong>do</strong>nt les dimensions changent fréquemment dans le cours<br />
du récit. L’effort du narrateur pour signaler les limites de ces <strong>do</strong>maines<br />
est contraire aux rapports que ceux-ci entretiennent l’un avec l’autre<br />
dans l’ordre du récit. Face à des événements de facture réversible,<br />
son effort d’éclaircissement est confronté à une expérience de nature<br />
ambiguë.<br />
Mots-clés: Fiction. Vérité. Ambiguïté.<br />
A tentativa de determinar de que la<strong>do</strong> está a verdade não consegue<br />
interromper o seu deslocamento para um <strong>do</strong>mínio em que se esquiva<br />
da definição mesmo sem o consentimento da vontade de saber.<br />
Quan<strong>do</strong> o homem se entrega à procura da verdade, nada, realmente<br />
nada, pode evitar sua retirada para um <strong>do</strong>mínio em que não é<br />
possível conhecê-la em sua totalidade. A verdade tem seu <strong>do</strong>mínio<br />
redimensiona<strong>do</strong> toda vez que a movimentação de fragmentos<br />
múltiplos e descontínuos é agenciada na ordem da vida, de mo<strong>do</strong> que<br />
os acontecimentos contraditórios e inconstantes passem a ocupar<br />
um lugar extraordinário na realidade das coisas. Em Teatro (1998),<br />
Bernar<strong>do</strong> Carvalho coloca em suspensão a certeza da verdade, quan<strong>do</strong><br />
lhe atribui formas diversas no interior da narrativa. Não se pode<br />
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C L I P E<br />
acreditar nos acontecimentos narra<strong>do</strong>s numa sintaxe sinuosa sem<br />
nenhuma forma de resistência a seu estatuto, uma vez que o narra<strong>do</strong>r,<br />
o personagem mais suspeito de toda a história, pode estar mentin<strong>do</strong><br />
mais uma vez com o objetivo de criar um espaço de incerteza em<br />
que é mais fácil se perder <strong>do</strong> que se encontrar. O romance explora<br />
a aporia <strong>do</strong> esforço de esclarecimento ante a contraposição de um<br />
princípio de incerteza atuante na constituição de acontecimentos<br />
de fatura reversível. Sua narrativa colide uma multiplicidade de<br />
disfarces que envolvem a verdade numa desagregação sem limites.<br />
A reprodução da fotografia de um homem de cabeça para baixo na<br />
capa <strong>do</strong> romance antecipa uma série de inversões inesperadas que<br />
intervêm no fluxo da narrativa.<br />
Teatro é constituí<strong>do</strong> por narrativas ficcionais que encenam<br />
testemunhos verdadeiros. Em “Os sãos”, um policial aposenta<strong>do</strong><br />
decide aban<strong>do</strong>nar a capital de um império econômico, para onde<br />
os pais haviam emigra<strong>do</strong> em busca de um futuro melhor, refazen<strong>do</strong><br />
em senti<strong>do</strong> contrário o caminho da emigração de anos atrás, quan<strong>do</strong><br />
ainda estava na barriga de sua mãe. O policial cruza a fronteira que<br />
isola o país <strong>do</strong>s “sãos” ao norte da terra <strong>do</strong>s “loucos” ao sul. O<br />
objetivo da fuga é retornar ao país de origem para narrar na língua<br />
natal a verdade sobre atenta<strong>do</strong>s terroristas contra executivos bemsucedi<strong>do</strong>s<br />
na economia da metrópole. A desconfiança em relação aos<br />
atenta<strong>do</strong>s levou o policial a pedir aposenta<strong>do</strong>ria antecipada. Com a<br />
prisão <strong>do</strong> suposto terrorista, pôde compreender a trama <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s<br />
que desconhecia em sua totalidade. Enquanto o químico V. assumiu<br />
a autoria <strong>do</strong>s assassinatos, o historia<strong>do</strong>r N. denunciou o irmão às<br />
autoridades, depois de reconhecer nas cartas pessoais <strong>do</strong> suspeito o<br />
estilo das cartas públicas que esclareciam a motivação <strong>do</strong>s ataques<br />
com o pó amarelo. A revelação permite que os policiais executem os<br />
últimos procedimentos <strong>do</strong> projeto de conservação da ordem social.<br />
Inspira<strong>do</strong>s na teoria <strong>do</strong> mal necessário, os agentes da ordem forjaram<br />
os atenta<strong>do</strong>s como estratégia de conservação da coesão social. O<br />
policial compreende a farsa de to<strong>do</strong> o processo somente duas<br />
horas após reencontrar Ana C., que o leva ao artigo de jornal com<br />
as informações sobre o terrorista. Somente então percebe que sua<br />
entrada na polícia não ocorreu por acaso: a organização o contratara<br />
conhecen<strong>do</strong> sua ligação com o autor da teoria <strong>do</strong> mal necessário,<br />
como também seu projeto de se tornar um escritor. Durante anos sua<br />
única função na polícia tinha si<strong>do</strong> ouvir e escrever: era o autor das<br />
cartas publicadas nos jornais de to<strong>do</strong> o país que criaram uma teoria<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
de explicação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na ótica de um terrorista paranóico. As<br />
cartas enviadas às vítimas pelos policiais criam em to<strong>do</strong> o país uma<br />
atmosfera de insegurança e desconfiança generalizada, uma vez que<br />
qualquer um pode ser um terrorista em potencial. O policial esperava<br />
que o terrorista aparecesse para corrigir a usurpação <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s,<br />
no entanto, durante vinte anos, o terrorista permaneceu em silêncio.<br />
Antes <strong>do</strong> sétimo atenta<strong>do</strong>, pela primeira vez, o policial recebeu ordem<br />
para escrever uma carta antecipada: queriam que deixasse prontas as<br />
cartas <strong>do</strong>s futuros atenta<strong>do</strong>s. A ocorrência <strong>do</strong> sétimo atenta<strong>do</strong> como<br />
previsto na carta fez com que deixasse a polícia. A desconfiança<br />
virou certeza quan<strong>do</strong> leu a notícia da prisão <strong>do</strong> suposto terrorista.<br />
Ainda que quisesse permanecer com Ana C., decidiu deixar a capital<br />
<strong>do</strong> império. Na fuga, comprou uma certidão de óbito falsa, foi à<br />
cabana no gelo à procura de uma fórmula secreta, partiu para a terra<br />
natal de seus pais, pois somente fora <strong>do</strong> país <strong>do</strong>s sãos podia restituir<br />
na língua antiga de seus pais alguma verdade ao que ouvira durante<br />
anos: “Só nesta língua posso restituir a verdade infame dessa história.<br />
E o sarcasmo que lá não existe. Só aqui as coisas podem fazer algum<br />
senti<strong>do</strong>” (CARVALHO, 1998, p. 23). A escrita de “Os sãos” tem<br />
por objetivo justamente desmascarar as imposturas <strong>do</strong>s agentes da<br />
ordem. Quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r chega ao término da investigação <strong>do</strong>s<br />
acontecimentos, revela seu nome próprio e encerra em código<br />
cifra<strong>do</strong> o primeiro bloco <strong>do</strong> romance com a frase: “Até que Daniel<br />
para de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43).<br />
Em “O meu nome”, um fotógrafo de paisagem, obceca<strong>do</strong> pela<br />
verdade que somente pode existir nas coisas inanimadas, se dedica,<br />
da mesma forma que o policial aposenta<strong>do</strong>, a conhecer a natureza de<br />
uma conspiração nebulosa. O centro da investigação é um ator de<br />
vídeos pornográficos que se autodenomina Ana C., tão impalpável<br />
como o espectro de um fantasma que se esquiva da matéria concreta.<br />
Este nome aparece na primeira parte <strong>do</strong> romance associa<strong>do</strong> à<br />
namorada <strong>do</strong> policial aposenta<strong>do</strong> que mais tarde será observada na<br />
atuação em vídeos pornográficos. Ana C. deixou o país natal onde<br />
se iniciou na prostituição e atravessou a fronteira ilegalmente para<br />
trabalhar na capital da pornografia. Sua atuação desperta nos fãs de<br />
to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> uma espécie de loucura que parecia estar a<strong>do</strong>rmecida.<br />
A maior parte desses admira<strong>do</strong>res vive em hospícios onde escreve<br />
uma literatura tão incorpórea quanto Ana C. Da mesma forma que<br />
uma atmosfera de irrealidade cercava o astro, a literatura escrita<br />
nos hospícios estava repleta de acontecimentos inverossímeis.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 265
C L I P E<br />
A indicação <strong>do</strong> fotógrafo de paisagem para compor a equipe de<br />
produção <strong>do</strong>s filmes em que Ana C. interpreta a si mesmo é agenciada<br />
por uma revista sensacionalista que deseja apurar sua participação<br />
na morte de um político importante. O fotógrafo exerce o papel de<br />
um agente infiltra<strong>do</strong> na indústria pornográfica para descobrir o real<br />
envolvimento <strong>do</strong> astro no suposto homicídio relaciona<strong>do</strong> com o<br />
comércio <strong>do</strong> sexo. Tempos depois Ana C. descobrirá que o sena<strong>do</strong>r<br />
com quem estivera numa transação jurídica não estava morto. Não<br />
poderia conhecer os fatos antes de vê-lo na televisão, pois não sabia<br />
como se chamava na realidade, nem chegou a ver sua fotografia nos<br />
jornais. O fotógrafo vislumbra uma série de farsas em que Ana C.<br />
pode estar envolvi<strong>do</strong>. É impossível saber de que la<strong>do</strong> está a verdade,<br />
já que tanto Ana C., quanto o fotógrafo podem estar mentin<strong>do</strong>.<br />
Assim como o policial aposenta<strong>do</strong> é engana<strong>do</strong> e introduzi<strong>do</strong> num<br />
mun<strong>do</strong> que se movimenta, se modifica, se mimetiza, Ana C. participa<br />
de um baile de máscaras que complica a realidade, a existência, a<br />
verdade. O que mais surpreende num enre<strong>do</strong> repleto de imposturas<br />
é a revelação final de que tu<strong>do</strong> o que foi escrito em nome da verdade<br />
não passa de um artifício cuja realidade se transforma toda vez que a<br />
verdade e a ficção têm seu <strong>do</strong>mínio redimensiona<strong>do</strong>. Não por acaso<br />
o fotógrafo de paisagem também se chama Daniel, o que traz à<br />
lembrança a fórmula que aparece na primeira parte <strong>do</strong> romance: “Até<br />
que Daniel pare de sonhar” (CARVALHO, 1998, p. 43).<br />
A série de acontecimentos narrada em ambas as partes <strong>do</strong> romance<br />
desperta a dúvida insidiosa sobre a natureza das coisas. Falta definição<br />
à fronteira entre a verdade e a mentira que se misturam de maneira<br />
inextricável num mun<strong>do</strong> repleto de oscilações que surpreendem<br />
a cada virada de página. Mesmo conhecen<strong>do</strong> pouco a pouco o<br />
<strong>do</strong>mínio em que a verdade e a ficção mudam de lugar com bastante<br />
freqüência, ainda se é surpreendi<strong>do</strong> pelo que deixa de ser o que é<br />
não mais que de repente. Nesse quadro, o narra<strong>do</strong>r se fragmenta<br />
em várias situações em que circulam identidades diferenciadas: ora<br />
é Daniel que inventa um personagem terrorista e configura uma<br />
realidade onde a ficção se finge de verdade, ora é Daniel que inventa<br />
um personagem ator e configura uma realidade onde as perspectivas<br />
são tão várias quanto as necessidades criadas. A narrativa é, de fato,<br />
o grande teatro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, em que a verdade e a ficção se afastam, se<br />
aproximam, se enredam num baile de máscaras vertiginoso. Daniel,<br />
o policial, quer contar a verdade na língua antiga de seus pais. Daniel,<br />
o fotógrafo, é um obceca<strong>do</strong> pela verdade inanimada da fotografia.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Ambos querem envolvê-la numa fortaleza, impedi-la de escapar<br />
<strong>do</strong> círculo de observação, definir o conhecimento em que habita<br />
silenciosa e enigmática. Mas o narra<strong>do</strong>r verte e reverte, diz e desdiz,<br />
quan<strong>do</strong> ouve e escreve sua narrativa. Não se pode confiar em seu<br />
testemunho, uma vez que não tem o estatuto de verdade, cuja história<br />
permanece inacabada, como As mil e uma noites, em que Cheherazade<br />
narra uma história sem fim. Como numa sala de espelhos onde nada<br />
é o que parece ser, é difícil se decidir por um caminho. A busca da<br />
verdade pode ser um sonho absur<strong>do</strong>, no entanto ainda não perdeu<br />
completamente o senti<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se encontra no <strong>do</strong>mínio<br />
em que a ambigüidade impede que a consciência represente a<br />
experiência na forma de um conhecimento unifica<strong>do</strong>.<br />
Teatro reúne uma série de suspeitas em relação à multiplicação de<br />
disfarces na narrativa. Costa Lima se pergunta se o narra<strong>do</strong>r é um<br />
louco ou alguém que assim se finge para escapar <strong>do</strong>s sãos. O crítico<br />
associa o romance “a um jogo de espelhos” em que cada um reflete e<br />
distorce “a imagem <strong>do</strong> outro”. “Cria-se assim um fascinante quadro<br />
de incertezas que aposta em um leitor <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de um interesse<br />
decifrativo semelhante” (2002, p. 273-4). O narra<strong>do</strong>r demonstra que<br />
a verdade conhecida tem origem nas criações humanas que podem<br />
ou não conservar a coexistência de antagonismos e indeterminações<br />
na ordem da vida. A denúncia da farsa programada <strong>do</strong>s policiais<br />
manifesta certos mecanismos <strong>do</strong>s sistemas de regulação que<br />
exercem um alto controle sobre a vida, principalmente quan<strong>do</strong><br />
tentam prever os acidentes, ordenar as sedições, abolir os refugos<br />
da realidade, estratégias usadas para compor uma organização capaz<br />
de purificar o “normal” <strong>do</strong> “patológico”. O testemunho de Daniel<br />
apresenta uma sociedade corrompida pelo dinheiro da imagem, pela<br />
religião <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, pelo teatro da ficção. O risco da ficção sem<br />
limite é introduzir na ordem da vida determinações que impeçam<br />
a expansão <strong>do</strong> horizonte da experiência. Platão temia que a ficção<br />
criasse monstros de toda espécie e destruísse a ordem da cidade. Para<br />
Daniel, “O problema é menos a mentira em si <strong>do</strong> que seu poder de<br />
contaminação, porque ela desestrutura todas as verdades, faz você<br />
perder o rumo e não saber mais o que está fazen<strong>do</strong>” (CARVALHO,<br />
1998, p. 48). Mas a ficção propõe outras formas para contrapor ao<br />
mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>. Ficcionar é uma atividade inclusiva que interfere<br />
no senti<strong>do</strong> da vida. Como o paranóico que não suporta a idéia de um<br />
mun<strong>do</strong> sem senti<strong>do</strong> e procura atribuir um senti<strong>do</strong> mesmo onde não<br />
há senti<strong>do</strong> algum, a ficção explora to<strong>do</strong> um repertório de situações<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 267
C L I P E<br />
inauditas colocadas à disposição <strong>do</strong> escritor ao fundar mun<strong>do</strong>s no<br />
mun<strong>do</strong>. A vontade de conhecer mun<strong>do</strong>s inexplora<strong>do</strong>s faz com que o<br />
homem ultrapasse o limite <strong>do</strong> conhecimento estabeleci<strong>do</strong> e percorra<br />
<strong>do</strong>mínios estranhos onde ainda estão para ser inventa<strong>do</strong>s o norte e o<br />
sul, o leste e o oeste. Daniel atravessa a fronteira em direção ao país <strong>do</strong>s<br />
loucos onde impera uma lógica diversa da distribuição <strong>do</strong>s seres no<br />
país <strong>do</strong>s sãos. Ana C. atravessa a fronteira em direção ao país <strong>do</strong>s sãos<br />
onde introduz a lógica <strong>do</strong> ser indetermina<strong>do</strong> numa forma imaterial.<br />
Ficcionar não é, portanto, como confirma Platão ironicamente, uma<br />
atividade que possa ser simplesmente deixada de la<strong>do</strong>. Enquanto a<br />
ficção explora as perspectivas que atravessam a constituição de uma<br />
experiência tumultuada, sinaliza que a verdade pode ser buscada na<br />
direção contrária à que está sen<strong>do</strong> seguida no momento atual pela<br />
necessidade de se fundamentar uma representação na ordem da vida.<br />
Teatro põe em cena um (des)enre<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> por inversões contínuas<br />
que desafiam a lógica previamente constituída. À medida que o<br />
narra<strong>do</strong>r força o limite da verossimilhança interna, outra lógica<br />
<strong>do</strong>mina a realidade da narrativa, o critério de verdade uniforme<br />
não resiste à ação da ambigüidade sobre sua natureza. Paranóia,<br />
alucinação, história extraordinária; ilusão, loucura, história insensata;<br />
farsa, invenção, história inverossímil; estiramento da lógica, quimera<br />
de imposturas, grande teatro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; Teatro é uma narrativa de<br />
ficções que se fingem de relato da verdade. Dizer que o romance<br />
está para além <strong>do</strong> sistema mimético enquanto representação<br />
analógica da realidade estabelecida não explica como é preciso<br />
a forma da narrativa de Teatro. Tanto a verdade, quanto a ficção<br />
não são passíveis de determinação no romance. A composição da<br />
narrativa numa sintaxe enviesada rompe com o postula<strong>do</strong> da mimese<br />
representativa, o que equivale a escapar da vontade de verdade <strong>do</strong><br />
romance realista e desarticular a expectativa em relação à descoberta<br />
da verdade. A natureza da verdade pode mudar de senti<strong>do</strong> a qualquer<br />
momento, determinan<strong>do</strong> uma nova direção e inteligibilidade para o<br />
senti<strong>do</strong> da narrativa. Se a distribuição <strong>do</strong>s componentes da narrativa<br />
pode ser redimensionada na trama das ações sempre que convier à<br />
apresentação de uma experiência desconhecida, torna-se impossível<br />
definir definitivamente a natureza de acontecimentos envolvi<strong>do</strong>s<br />
numa ordem de senti<strong>do</strong> reversível. O sistema da ficção se apropria<br />
da lógica <strong>do</strong> ilógico que organiza, a seu mo<strong>do</strong>, novos esquemas de<br />
senti<strong>do</strong>: “Só a lógica <strong>do</strong> ilógico pode trazer algum entendimento,<br />
alguma visão onde tu<strong>do</strong> se tornou cegueira, fazer você enxergar, por<br />
268 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
trás da cortina de senti<strong>do</strong>, um outro senti<strong>do</strong> que possa dar conta da<br />
compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, já que este não funciona” (CARVALHO,<br />
1998, p. 131). A narrativa de Bernar<strong>do</strong> Carvalho carrega consigo o<br />
problema da definição de parâmetros para a compreensão de algo<br />
que em si mesmo não pode ser compreendi<strong>do</strong> ou que não pode ser<br />
compreendi<strong>do</strong> em sua totalidade.<br />
A confabulação das palavras não é apenas uma fonte de ficções<br />
multifacetadas, mas também um poderoso instrumento de formação<br />
de realidades antropomórficas. As perspectivas permanecem,<br />
portanto, confundidas no imaginário <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r: a ficção é uma<br />
realidade indeterminada, a realidade é uma ficção naturalizada. Para<br />
reconhecer a ambigüidade que assinala cada acontecimento, basta<br />
acompanhar o percurso <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Daniel, o policial aposenta<strong>do</strong>, se<br />
apresenta, desde o início da narrativa, como o defensor <strong>do</strong>s atributos<br />
da verdade. É preciso contar tu<strong>do</strong> o que sabe sobre a impostura<br />
<strong>do</strong>s agentes da ordem para que algum resíduo da verdade possa<br />
ser conserva<strong>do</strong> na memória <strong>do</strong> leitor. Daniel é a única testemunha<br />
de to<strong>do</strong> o processo. Sua única função durante anos a fio tinha si<strong>do</strong><br />
ouvir e escrever no trabalho como policial. Era a memória da polícia.<br />
No entanto, é a própria testemunha que alimenta a desconfiança <strong>do</strong><br />
estatuto formal de sua memória, já que tu<strong>do</strong> depende de seu ponto<br />
de vista, tu<strong>do</strong> está apenas em sua cabeça, não se pode confiar em<br />
ninguém. Os momentos de instabilidade se multiplicam entre as<br />
conexões da narrativa. Não parece haver limite para o encadeamento<br />
de acontecimentos suspeitos em sua composição. Embora a<br />
indefinição <strong>do</strong>mine a realidade mais extrema – quanto mais se procura<br />
a verdade, mais distante ela se encontra da experiência –, a escrita<br />
ainda se aventura na exploração de certos pontos de indeterminação<br />
na realidade. O processo não tem a forma de uma resposta definitiva<br />
para o problema inicialmente vislumbra<strong>do</strong>. Define-se antes como um<br />
descompasso que atravessa as situações existenciais e contamina tu<strong>do</strong><br />
o que se encontra à sua volta, como o pó amarelo <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s que<br />
faz tu<strong>do</strong> perder o senti<strong>do</strong>: “O inferno é descobrir que você nunca foi<br />
o que pensava que era. É morrer e descobrir que o que você achava<br />
que era não é nada” (CARVALHO, 1998, p. 112).<br />
A narrativa de Teatro, como a de Os bêba<strong>do</strong>s e os sonâmbulos, é<br />
tributária da concepção de arte como poiesis, o que faz dela uma<br />
potência poética capaz de introduzir no mun<strong>do</strong> algo que antes não<br />
fazia parte de sua configuração, em vez de simplesmente reproduzir<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 269
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o mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>:<br />
Sob as ordens deles inventei sem saber o “terrorista”.<br />
E foi só quan<strong>do</strong> percebi que a minha palavra se tornava<br />
realidade é que decidi me afastar, e nunca mais escrever<br />
nada, amaldiçoa<strong>do</strong>, a não ser nesta outra língua, que eu mal<br />
enten<strong>do</strong>. Só nesta outra língua posso contar a história sem<br />
riscos, sem que eles usem as minhas palavras em benefício<br />
próprio, sem que elas se tornem realidade. Só nesta outra<br />
língua pobre posso escapar deles e contar o meu plano<br />
para reparar, ainda que parcialmente, os estragos, o plano<br />
que concebi ao ler o jornal, duas horas depois de ter<br />
reencontra<strong>do</strong> Ana C. na rua (CARVALHO, 1998, p. 77).<br />
Do ponto de vista etimológico, “paranóia” significa um distúrbio<br />
geral da razão que se extraviou <strong>do</strong> intelecto em algum momento.<br />
A paranóia é a forma insurgente de todas as idéias que são<br />
organizadas num fluxo de senti<strong>do</strong> determina<strong>do</strong> além <strong>do</strong> limite da<br />
lógica conhecida. Se o mun<strong>do</strong> se nega a oferecer um senti<strong>do</strong>, o<br />
paranóico encontra a situação ideal para se tornar o autor de seu<br />
próprio mun<strong>do</strong>: “O paranóico não pode suportar a idéia de um<br />
mun<strong>do</strong> sem senti<strong>do</strong>. É uma crença que ele precisa alimentar com<br />
ações militantes, para mantê-la de pé, tal é a força com que o mun<strong>do</strong><br />
a contraria” (CARVALHO, 1998, p. 31). Daí entende-se que a ficção,<br />
sen<strong>do</strong> por definição a criação de seres imaginários, seja uma espécie<br />
de atividade paranóica que busque configurar sistemas de senti<strong>do</strong><br />
em descompasso com a lógica que regulamenta as representações<br />
sociais. A ficção se torna responsável pela formulação de um<br />
pensamento original e independente que se investe <strong>do</strong> repertório<br />
necessário para se contrapor às representações naturalizadas. À<br />
medida que as cartas são encaminhadas às vítimas <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s,<br />
Daniel compõe livremente uma teoria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> na ótica de um<br />
paranóico. Nelas imagina as feições psicológicas de um homem<br />
perturba<strong>do</strong>, identifica a manipulação <strong>do</strong> processo civilizatório e<br />
propõe uma organização que restitua valores humanos fundamentais<br />
que estavam sen<strong>do</strong> destruí<strong>do</strong>s em nome <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> capital<br />
industrial e tecnológico. A paranóia, como uma razão tortuosa que<br />
foge às normas habituais, encerra uma visão parcial da realidade que<br />
busca compreender a totalidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Seu parentesco com a<br />
loucura se encontra em sua capacidade de formulação de lógicas<br />
que desafiam o pensamento racional, consensual, quan<strong>do</strong> é preciso<br />
270 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
atribuir uma interpretação a acontecimentos que não se ajustam uns<br />
aos outros. Quan<strong>do</strong> os agentes da ordem buscam desterrar as formas<br />
de insanidade para o país <strong>do</strong> sul, querem impedir que desestruturem<br />
a ordem de senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>minante no país que governam. Teatro mostra<br />
que o esta<strong>do</strong> de <strong>do</strong>ença, como a loucura, pode ser a saída de muitos<br />
impasses que imobilizam a existência. Como palavras ambíguas que<br />
apresentam um senti<strong>do</strong> cifra<strong>do</strong>, a enfermidade pode ser uma cura,<br />
a contaminação pode ser uma purificação, o veneno pode ser um<br />
medicamento, contanto que o esta<strong>do</strong> de <strong>do</strong>ença seja compreendi<strong>do</strong><br />
como uma potência ficcionante, capaz de engendrar as ficções mais<br />
fantasiosas, as realidades mais imateriais, as lógicas mais impensáveis,<br />
sempre contornan<strong>do</strong> situações extremas que não podem ser<br />
controladas em sua totalidade.<br />
O modelo teórico que opera na ficção de Bernar<strong>do</strong> Carvalho está<br />
conti<strong>do</strong> na fórmula obscura: “Até que Daniel pare de sonhar”<br />
(CARVALHO, 1998, p. 43). Daniel se deparou com a fórmula<br />
incompreensível numa das primeiras noites em que saiu pelas ruas<br />
da cidade fantasma. Trata-se de um código cifra<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> numa<br />
variedade de situações comunicativas que dificultam o entendimento<br />
de seu verdadeiro significa<strong>do</strong>: “É como um ponto impenetrável<br />
da língua pobre <strong>do</strong> meu pai. Também não me atrevo a perguntar<br />
o que significa, já que me parece uma expressão tão corriqueira”<br />
(CARVALHO, 1998, p. 44). Somente os inicia<strong>do</strong>s em sua linguagem<br />
que não se sentem ameaça<strong>do</strong>s em sua presença podem compreender<br />
seu senti<strong>do</strong>. A referência ao profeta israelita é explícita e retorna<br />
novamente na segunda parte <strong>do</strong> romance. É preciso lembrar que<br />
tanto o policial aposenta<strong>do</strong>, quanto o fotógrafo de paisagem têm<br />
identificação homônima. Às últimas linhas <strong>do</strong> romance, descobrese<br />
que ambos são uma só e mesma pessoa, quan<strong>do</strong> se trata de<br />
definir a fonte primordial de onde derivam as histórias de Teatro.<br />
Somente enquanto instância original que controla o ficcionamento<br />
de realidades podem ser considera<strong>do</strong>s a mesma pessoa, uma vez<br />
que assumem identidades diferentes nas duas partes <strong>do</strong> romance.<br />
Consta que Nabuco<strong>do</strong>nosor teve um sonho tão perturba<strong>do</strong>r, que<br />
foi preciso exigir <strong>do</strong>s mágicos a narração de seu conteú<strong>do</strong> antes de<br />
apresentarem sua interpretação. Como os mágicos disseram que<br />
somente os deuses poderiam adivinhar o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos, o<br />
rei babilônico decretou a morte de to<strong>do</strong>s os sábios daquele país. Para<br />
evitar o assassinato coletivo, Daniel, que estava entre os escribas <strong>do</strong><br />
rei, teve o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> sonho revela<strong>do</strong> pela intervenção de Deus:<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 271
C L I P E<br />
o sonho antecipava a sucessão de monarcas que ocupariam o trono<br />
no reino de Nabuco<strong>do</strong>nosor (Dn, 2, 1-49). Na visão de Ana C., o<br />
rei ordenou que Daniel narrasse antecipadamente o sonho para não<br />
ser enreda<strong>do</strong> numa interpretação falaciosa. Curiosamente o profeta<br />
narrou o sonho que era de natureza sigilosa, e o rei não discutiu<br />
a autenticidade da narração, passan<strong>do</strong> a ouvir a interpretação da<br />
narrativa. Se Daniel realmente inventou o sonho, como também<br />
a interpretação de sua simbologia, a realidade verdadeira não se<br />
confundia com uma certa natureza essencial <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Para Ana<br />
C., o desafio de Nabuco<strong>do</strong>nosor aos intérpretes deixa transparecer<br />
que cada interpretação cria a sua realidade, portanto, a realidade se<br />
fundamenta numa interpretação: “e foi isso que Daniel compreendeu<br />
ao responder ao desafio com um sonho que provavelmente inventou<br />
na hora” (CARVALHO, 1998, p. 84). A fórmula obscura “Até<br />
que Daniel pare de sonhar” é uma mensagem codificada da teoria<br />
ficcional que orienta a execução <strong>do</strong>s procedimentos de composição<br />
na narrativa de Bernar<strong>do</strong> Carvalho. Somente quan<strong>do</strong> Daniel parar<br />
de sonhar, o jogo de disfarces replicantes será suspenso da realidade.<br />
A necessidade de enveredar por um senti<strong>do</strong> que prescinda <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
previamente constituí<strong>do</strong> aparece em outras fórmulas <strong>do</strong> romance. N.<br />
busca insistentemente encontrar o “tesouro <strong>do</strong>s cátaros”, e V. vive<br />
fazen<strong>do</strong> cálculos à procura da “fórmula da humanidade”. O tesouro<br />
é um pergaminho enterra<strong>do</strong> numa urna de latão no qual está escrita<br />
uma nova teoria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em grande parte em língua d’oc. Consta<br />
no manuscrito cátaro que o corpo é a sede da verdade – o corpo traz<br />
consigo todas as respostas, de onde viemos, para onde vamos, o que<br />
somos, por que estamos aqui –, no entanto, por ser uma invenção<br />
<strong>do</strong> demônio, não revela o conhecimento que detém consigo, o que<br />
impede que a alma possa conhecer a verdade. Para poder se encontrar<br />
com a verdade, a alma precisa se pôr em desacor<strong>do</strong> com o corpo, o que<br />
promove a desarticulação <strong>do</strong> processo de naturalização <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e,<br />
conseqüentemente, a reflexão sobre a corrupção da verdade, que é<br />
a maior arma contra a sua fuga <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> conhecimento. A<br />
teoria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> expressa na ótica <strong>do</strong> manuscrito cátaro retoma<br />
antigas crenças <strong>do</strong> platonismo, que concebe o corpo como a prisão<br />
da alma e a verdade como o bem absoluto que pode ser conheci<strong>do</strong><br />
somente por inicia<strong>do</strong>s no processo de depuração da forma essencial.<br />
A fórmula da humanidade, por sua vez, compreende um sistema de<br />
senti<strong>do</strong> que elide o mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> de sua representação. Trata-se<br />
de um mun<strong>do</strong> expresso em fórmulas e números jamais concebi<strong>do</strong>s,<br />
272 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
um mun<strong>do</strong> imaginário que talvez seja perfeito em sua integridade<br />
e que está codifica<strong>do</strong> em fórmulas matemáticas incompreensíveis,<br />
porque simplesmente apresentam um mun<strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>. As duas<br />
teorias se cruzam na narrativa de Daniel. O pergaminho <strong>do</strong>s cátaros<br />
contém passagens expressas em código desconheci<strong>do</strong> que se oculta<br />
por trás da linguagem verbal. N. envia os manuscritos secretos a V.<br />
para que possa traduzi-los em linguagem matemática. V. consegue<br />
decifrar a incógnita <strong>do</strong> tesouro cátaro numa sucessão interminável<br />
de números e sinais matemáticos que apresenta para solucionar<br />
o problema da verdade. (In)felizmente somente V. teve acesso ao<br />
senti<strong>do</strong> desse mun<strong>do</strong> regi<strong>do</strong> por uma lógica desconhecida. O tesouro<br />
<strong>do</strong>s cátaros e a fórmula da humanidade conduzem à descoberta de<br />
uma teoria, um conhecimento, uma perspectiva que se mantém fora<br />
<strong>do</strong> consenso gregário. O idealismo de projetos dessa natureza não<br />
esconde o desejo de superar o limite que impede o homem de ter<br />
acesso a realidades de conformação mais perfeita.<br />
Daniel analisa os atenta<strong>do</strong>s terroristas, investiga o assassinato <strong>do</strong><br />
sena<strong>do</strong>r, procura a fórmula da humanidade, busca o tesouro <strong>do</strong>s<br />
cátaros, interpreta o código <strong>do</strong>s sonhos... A aporia da verdade com<br />
que se confronta nesse caminho parece ser insolúvel. Contu<strong>do</strong>, o<br />
empenho por resolver o problema impulsiona a vontade de saber na<br />
exploração de um mun<strong>do</strong> incongruente à espera de compreensão.<br />
A procura da verdade, contrarian<strong>do</strong> a vontade de determinação da<br />
razão objetiva, desencadeia a proliferação de narrativas de fatura<br />
reversível. O acontecimento possibilita a invenção de-fórmulas-decódigos-de-lógicas<br />
que reflete a formação emblemática da demanda<br />
absurda cada vez envolvida por uma visão parcial <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tentan<strong>do</strong><br />
compreender a totalidade da existência.<br />
Ao criar uma ficção em que não pára de se movimentar o motocontínuo<br />
de multiplicantes pontos de indeterminação, Bernar<strong>do</strong><br />
Carvalho resiste à naturalização das experiências que restringem o<br />
horizonte da consciência. Sempre que ultrapassa o limite <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><br />
determina<strong>do</strong> na ordem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>, libera as condições<br />
inumeráveis que podem se desprender <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>. O mun<strong>do</strong><br />
ficcional adquire a forma de um acontecimento tão inespera<strong>do</strong>, a tal<br />
ponto estranho e desconcertante, que a única regra da ficção parece<br />
ser o conflito contínuo com a ordem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>. Estancar<br />
o fluxo desse mun<strong>do</strong> de senti<strong>do</strong> indetermina<strong>do</strong>, onde o estiramento<br />
da lógica está subordina<strong>do</strong> à escolha da imaginação, pode restituir<br />
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alguma função à vontade de verdade. No entanto, uma vez que a<br />
ambigüidade se introduziu em todas as coisas, to<strong>do</strong> esforço por<br />
conter a disseminação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> está fada<strong>do</strong> a se tornar a fábula mais<br />
inverossímil. Se a verdade pode ser exatamente o contrário daquilo<br />
em que se acredita de fato, se a verdade não passa de uma ficção<br />
lógica que se naturalizou no imaginário social, se a verdade não se<br />
justifica como fundamento senão crian<strong>do</strong> disfarces para ocultar sua<br />
natureza, como pensava Nietzsche, pode-se começar enfrentan<strong>do</strong> o<br />
problema da verdade pela impossibilidade de sua existência: “Toda<br />
aquela história tinha apenas servi<strong>do</strong> para me confirmar o que sempre<br />
soube, que não há verdade possível entre os homens, ‘um dia estão<br />
de um jeito, no outro, de outro’, e que só as coisas inanimadas podem<br />
me dar alguma certeza” (CARVALHO, 1998, p. 127).<br />
REFERÊNCIAS<br />
AS MIL E UMA NOITES. Versão Antoine Galland. Trad. Alberto<br />
Diniz. 16. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 2 v.<br />
BÍBLIA SAGRAGA. 37. ed. Trad. Centro Bíblico Católico. Ave<br />
Maria: São Paulo, 1982.<br />
CARVALHO, Bernar<strong>do</strong>. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1998.<br />
CARVALHO, Bernar<strong>do</strong>. Os bêba<strong>do</strong>s e os sonâmbulos. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1996.<br />
LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.<br />
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal: prelúdio<br />
a uma filosofia <strong>do</strong> futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2002.<br />
PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.<br />
274 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 10/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 02/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
NA FRONTEIRA DAS PALAVRAS: A TEORIA DE<br />
BAKHTIN E A POÉTICA DE FERREIRA GULLAR<br />
COMO RESPOSTAS AO PROBLEMA<br />
DO FORMALISMO<br />
Rafael Campos Queve<strong>do</strong><br />
UnB<br />
Resumo: Este trabalho apresenta alguns argumentos da crítica de<br />
Bakhtin à “estética material” a fim de traçar paralelos com a trajetória<br />
poética de Ferreira Gullar ten<strong>do</strong> em vista a sua fase “pré-concreta” (A<br />
luta corporal), sua produção de vanguarda e seu posterior caminho de<br />
afastamento <strong>do</strong> concretismo. Aponta-se, aqui, para uma similaridade<br />
no mo<strong>do</strong> de compreender a questão <strong>do</strong> fazer poético que passa, em<br />
ambos os casos, por uma crítica às poéticas formalistas.<br />
Palavras-chave: Formalismo. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin.<br />
Résumé: Ce travail propose quelques arguments de la critique de<br />
Bakhtin à ‘l’esthétique matérielle’, mis en parallèle avec la trajectoire<br />
poétique de Ferreira Gullar abordant sa phase ‘pré-concrète’ (A luta<br />
corporal), sa production d’avant-guarde et son éloignement ultérieur<br />
du concrétisme. On démontrera, ici, une similitude dans le mode de<br />
compréhension du savoir-faire poétique, dans les deux cas, à travers<br />
une critique de la poétique formaliste.<br />
Mots-clés: Formalisme. Ferreira Gullar. Mikhail Bakhtin.<br />
A preocupação <strong>do</strong> Formalismo em fundar uma ciência da literatura<br />
exigiu da parte de seus teóricos o estabelecimento de alguns elementos<br />
indispensáveis a tal escopo, entre os quais a delimitação de um objeto<br />
de estu<strong>do</strong> próprio, ou seja, empiricamente discernível <strong>do</strong> objeto de<br />
outras disciplinas e um aparato meto<strong>do</strong>lógico adequa<strong>do</strong> a tal objeto,<br />
condições sem as quais não se chega a nenhuma generalização<br />
científica, pelo menos dentro <strong>do</strong>s moldes de um conhecimento de<br />
inegável inspiração nos modelos das ciências naturais, como foi o<br />
caso, afinal, não só <strong>do</strong> formalismo russo como, também, de boa<br />
parte das ciências humanas em suas origens.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 275
C L I P E<br />
Um equivalente poético da visão formalista pode ser encontra<strong>do</strong><br />
na prática <strong>do</strong>s poetas concretistas, especialmente na obstinação com<br />
que o movimento brasileiro perseguiu a “poeticidade” através <strong>do</strong><br />
máximo de distanciamento possível com relação ao uso “comum”<br />
da linguagem. A Poesia Concreta assimilou a noção formalista de<br />
“estranhamento” que, grosso mo<strong>do</strong>, seria a marca que conferiria a um<br />
determina<strong>do</strong> registro lingüístico o seu caráter poético, assim como,<br />
<strong>do</strong> ponto de vista teórico, asseguraria ao formalismo a delimitação de<br />
seu objeto, que já não seria a linguagem em si mesma, mas a língua<br />
em sua manifestação especificamente poética.<br />
É preciso ter em mente que o Concretismo foi o ponto de encontro<br />
de Ferreira Gullar com os poetas paulistas 1 , sistematiza<strong>do</strong>res teóricos<br />
<strong>do</strong> movimento concretista no Brasil. Tal convergência representou,<br />
para o poeta maranhense, uma possibilidade de expressão fora da<br />
escrita convencional que já havia si<strong>do</strong> “implodida” em seu segun<strong>do</strong><br />
livro: A luta corporal 2 . A seguir, um trecho de “Roçzeiral”, poema em<br />
que a referida implosão se inicia:<br />
Au sôflu i luz ta pom-<br />
pa inova’<br />
orbita<br />
FUROR<br />
tô bicho<br />
’scuro fo-<br />
go<br />
Rra<br />
(GULLAR, 200)<br />
Na explicação fornecida pelo próprio autor acerca <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> da<br />
desagregação <strong>do</strong> significante levada a cabo em alguns <strong>do</strong>s poemas<br />
<strong>do</strong> referi<strong>do</strong> livro 3 , Gullar fala a respeito de sua necessidade, naquela<br />
1 Por concretistas referimo-nos, neste trabalho, aos funda<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
grupo Noigandres, os poetas Augusto e Harol<strong>do</strong> de Campos e Décio Pignatari,<br />
sistematiza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> corpus teórico <strong>do</strong> movimento e autores de boa parte<br />
<strong>do</strong>s poemas a ele vincula<strong>do</strong>s.<br />
2 Para efeito de uma visada mais geral da obra de Ferreira Gullar<br />
estamos consideran<strong>do</strong> Um pouco acima <strong>do</strong> chão (1949) seu primeiro livro,<br />
embora ele não esteja incluí<strong>do</strong> em Toda poesia (2008). Cf. “Referências”.<br />
3 Conferir o texto “O inimigo das palavras” em Indagações de hoje<br />
(cf. referências).<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
altura, de concretizar o que ele chamou de “poema essencial” que<br />
seria a pretensão de se captar a experiência vivida sem a mediação da<br />
linguagem que, na problemática em questão, era objeto de descrédito<br />
quanto às suas possibilidades expressivas. Evidentemente, poemas<br />
como “Roçzeiral” assinalam a radicalização de uma questão que, a<br />
rigor, é inerente a to<strong>do</strong> fazer artístico: o embate <strong>do</strong> artista com o<br />
material de que dispõe para enformar o conteú<strong>do</strong> de sua expressão.<br />
Assim, a intenção de imprimir na matéria verbal a experiência <strong>do</strong><br />
“canteiro ressequi<strong>do</strong> da praia de Botafogo” de forma mais imediata<br />
(ou seja, sem mediação) e que poderia, muito bem, ser expresso<br />
como “ao sopro e luz tua pompa se renova numa órbita”, resultou<br />
no tipo de ruptura da linguagem assinalada no fragmento acima.<br />
Vale, para começar, enfatizarmos os elementos que compõem a<br />
problemática em foco. O primeiro deles discute a questão <strong>do</strong> poeta<br />
como artista, cuja tarefa instaura-se entre <strong>do</strong>is pólos: o mun<strong>do</strong> e a<br />
língua como material (segun<strong>do</strong> e terceiro elementos, respectivamente),<br />
esta última nada possuin<strong>do</strong> de “estético” em si mesma, uma vez que<br />
é largamente utilizada para fins, digamos, “instrumentais”. Tal como<br />
esse material “desgasta<strong>do</strong>” pelo uso cotidiano, o mun<strong>do</strong> também<br />
não carrega, consigo, a cintilação de um evento excepcional, já que<br />
canteiros ressequi<strong>do</strong>s podem ser encontra<strong>do</strong>s sem esforço e, como<br />
são da<strong>do</strong>s à percepção cotidiana, habitam o reino da banalidade da<br />
vida ordinária.<br />
Dependen<strong>do</strong> de em qual <strong>do</strong>s elementos (poeta, mun<strong>do</strong> e material) se<br />
puser a ênfase, pode-se verificar o princípio germinal de cosmovisões<br />
distintas sobre o problema estético. Genericamente falan<strong>do</strong>, se<br />
se deposita sobre o poeta o fundamento <strong>do</strong> fenômeno artístico<br />
podem-se haurir versões “subjetivistas” da questão que vão desde a<br />
explicação romântica <strong>do</strong> gênio criativo às justificativas psicológicas<br />
da obra. Se é sob o prisma <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo, considerações de<br />
ín<strong>do</strong>le “realista” (como todas as abordagens <strong>do</strong> literário que se<br />
atêm aos aspectos conteudistas <strong>do</strong> texto, como o historicismo e o<br />
sociologismo) podem ser obtidas e, por fim, se a ênfase recai sobre o<br />
material temos, sobretu<strong>do</strong>, o formalismo como principal arrazoa<strong>do</strong><br />
teórico da questão. Nada impede, contu<strong>do</strong>, que tais elementos sejam<br />
postos em relação entre si e que uma visão teórica diagnostique a<br />
legitimidade que cada um possui para o to<strong>do</strong> da obra artística. A<br />
nosso ver, a reflexão de Bakhtin, especialmente em seu texto de<br />
1924 intitula<strong>do</strong> “O problema <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, <strong>do</strong> material e da forma<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 277
C L I P E<br />
na criação literária 4 ”, equaciona de forma bastante convincente tal<br />
problema.<br />
Bakhtin denominou de “estética material” a posição teórica segun<strong>do</strong><br />
a qual o fundamento da obra de arte coincide com sua realidade<br />
empírica e se encontra no material <strong>do</strong> qual ela se serve. Logo de<br />
início, o autor aponta para a insuficiência dessa abordagem alegan<strong>do</strong><br />
a redução, por ela promovida, <strong>do</strong> fenômeno literário a problemas<br />
estritamente lingüísticos. Sempre interessa<strong>do</strong> numa visão de conjunto,<br />
o pensa<strong>do</strong>r russo não descartará, em nenhum momento de sua<br />
argumentação, a importância de se tratar a obra literária desde uma<br />
perspectiva lingüística, mas considera ser esta um <strong>do</strong>s momentos da<br />
análise literária e não a sua totalidade. Em tal argumento fica clara<br />
uma das premissas fundamentais <strong>do</strong> pensamento bakhtiniano que<br />
serviu de esteio a toda a sua discussão no ensaio em questão: a de que<br />
nenhum modelo estritamente científico (especialmente por carregar<br />
a reivindicação de um objeto empírico) seria adequa<strong>do</strong> à abordagem<br />
<strong>do</strong> fenômeno artístico e que, em seu lugar, seria preciso se readmitir<br />
a estética filosófica, ainda que reelaborada a partir de bases nãometafísicas.<br />
Dessa forma, apenas um méto<strong>do</strong> de cunho filosófico<br />
que, por natureza, não delimita fronteiras quanto aos objetos <strong>do</strong>s<br />
quais se ocupa (mas, ao contrário, busca “problemas” nos mais<br />
diversos campos <strong>do</strong> saber) estaria apto a tal empresa, uma vez que o<br />
afã de “cientificizar” a arte poderia dar conta, apenas, de uma parte<br />
<strong>do</strong> seu to<strong>do</strong> que seria, justamente, a de sua fatura material.<br />
O que vale para uma consideração meto<strong>do</strong>lógica <strong>do</strong> formalismo<br />
serve, a nosso ver, para o propósito de uma crítica às poéticas que<br />
com ele se afinam. Os textos da Teoria da poesia concreta que, como<br />
se sabe, assumiram filiação ao construtivismo e ao formalismo<br />
artísticos, estão repletos de menções à centralidade que o aspecto<br />
físico da palavra ocupa na poesia. Para os concretistas, vale a palavra<br />
como “coisa”, objeto auto-suficiente que oblitera o referente e<br />
oferece sua própria “estrutura” como conteú<strong>do</strong>. Declaradamente, os<br />
poetas em questão alistam-se em uma estirpe de autores caudatária<br />
<strong>do</strong> adágio mallarmaico de que o poema é feito com palavras e não<br />
com idéias.<br />
Recolocan<strong>do</strong> os vértices da triangulação <strong>do</strong> problema artístico<br />
diríamos que, para a Poesia Concreta, interessa rasurar as marcas tanto<br />
4 Primeiro capítulo de Questões de literatura e de estética (cf. Referên-<br />
cias)<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
<strong>do</strong> referente (mun<strong>do</strong>) como <strong>do</strong> autor em favor de um encarecimento<br />
<strong>do</strong> material. A intenção artística <strong>do</strong> poema concreto seria a exibição<br />
da materialidade <strong>do</strong> significante e a tarefa <strong>do</strong> poeta descobrir-lhes<br />
possibilidades insuspeitas. Se compararmos tal proposta com a<br />
intenção de Gullar ao dilacerar o corpo <strong>do</strong> significante em “Roçzeiral”,<br />
percebemos que, enquanto para o autor de A luta corporal a intenção<br />
era romper com a linguagem a fim de que o real fosse ilumina<strong>do</strong> de<br />
forma mais direta, para os poetas-teóricos <strong>do</strong> grupo Noigandres esse<br />
real era posto entre parênteses para uma melhor “presentificação” da<br />
realidade material <strong>do</strong> signo lingüístico. A esse antagonismo quanto ao<br />
papel da palavra dentro <strong>do</strong> poema, diremos que tu<strong>do</strong> se passa como<br />
se, para a Poesia Concreta, o significante devesse possuir um caráter<br />
“opaco”, similar ao <strong>do</strong> objeto, enquanto que, para Gullar, interessaria<br />
que a palavra fosse “translúcida”, ou seja, que se deixasse, o quanto<br />
possível, ser atravessada, para que o mun<strong>do</strong> pudesse ser entrevisto<br />
através dela.<br />
Uma rápida análise de um poema de maturidade de Ferreira Gullar<br />
(extraí<strong>do</strong> de seu último livro Muitas vozes 5 ) suscitará questões<br />
relevantes ao rumo de nossa exposição. Pela sua extensão, optamos<br />
por reproduzi-lo integralmente em nota de pé de página cuja<br />
leitura requisitamos para a entendimento das considerações que se<br />
sucederão.<br />
To<strong>do</strong> poema (ou seja: a “não-coisa”) é a tradução, para a “lógica <strong>do</strong><br />
ouvi<strong>do</strong>”, (10º verso) daquilo que “não tem senti<strong>do</strong>” (12º verso) na<br />
5 “Não-coisa” (título <strong>do</strong> poema): “O que o poeta quer dizer/no<br />
discurso não cabe/e se o diz é pra saber/o que ainda não sabe. // Uma fruta<br />
uma flor/um o<strong>do</strong>r que relume…/Como dizer o sabor,/seu clarão seu perfume?//Como<br />
enfim traduzir/na lógica <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>/o que na coisa é coisa/e<br />
que não tem senti<strong>do</strong>?//A linguagem dispõe/de conceitos, de nomes/mas<br />
o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes no corpo/o sabor que<br />
assimilas/e que na boca é festa/de saliva e papilas//invadin<strong>do</strong>-te inteiro/<br />
tal <strong>do</strong> mar o marulho/e que a fala submerge/e reduz a um barulho,//um<br />
tumulto de vozes/de gozos, de espasmos,/vertiginoso e pleno/como são os<br />
orgasmos//No entanto, o poeta/desafia o impossível/e tenta no poema/<br />
dizer o indizível://subverte a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade<br />
de coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/<br />
já que a coisa é fechada/à humana consciência.//O que o poeta faz/mais<br />
<strong>do</strong> que mencioná-la/é torná-la aparência/pura — e iluminá-la.//Toda coisa<br />
tem peso:/uma noite em seu centro./O poema é uma coisa/que não tem<br />
nada dentro,//a não ser o ressoar/de uma imprecisa voz/que não quer se<br />
apagar — essa voz somos nós.” (GULLAR, 2008, p. 450).<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 279
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coisa. A coisa é substância “densa” (“toda coisa tem peso” – verso<br />
45º) e opaca (pois com “uma noite em seu centro” – 46º verso). O<br />
senti<strong>do</strong> não está nela mesma já que pressupõe alguém que a sinta<br />
(“senti<strong>do</strong>”, possui, aqui, a acepção de “razão de algo” como indica, ao<br />
mesmo tempo, o particípio <strong>do</strong> verbo “sentir”). O poema em questão<br />
assinala que é no corpo que o real repercute o seu senti<strong>do</strong> e a coisa<br />
faz-se sentida, geran<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> da experiência a ser traduzi<strong>do</strong><br />
pelo poeta. Aqui, “saber” retoma seu parentesco etimológico com<br />
“sabor”: “mas o gosto da fruta/só o sabes se a comes//só o sabes<br />
no corpo/o sabor que assimilas/e que na boca é festa/de saliva e<br />
papilas”.<br />
Por serem de naturezas distintas, a linguagem é, por definição, nãocoincidente<br />
com a coisa. Usan<strong>do</strong> uma imagem extrema: ao falarmos<br />
“flor” não vertemos uma flor pela boca, ou seja, não “presentificamos”<br />
o objeto, mas nos contentamos com sua representação substitutiva,<br />
pela palavra. Nesse instante da análise o poeta tem diante de si<br />
não a coisa, mas a repercussão dela nos seus senti<strong>do</strong>s. Seu desafio:<br />
converter o reino da experiência em canto. Para tanto: “[...] o poeta/<br />
desafia o impossível/e tenta no poema/dizer o indizível://subverte<br />
a sintaxe/implode a fala, ousa/incutir na linguagem/densidade de<br />
coisa//sem permitir, porém,/que perca a transparência/já que a<br />
coisa é fechada/à humana consciência.” (29º ao 40º verso). Os grifos<br />
indicam a dicotomia opacidade/translucidez da qual lançamos mão<br />
para estabelecer o antagonismo entre a palavra “concreta” e a palavra<br />
<strong>do</strong> “poema essencial” almeja<strong>do</strong> por Gullar.<br />
Isso posto, convém agora promovermos o paralelo mais próximo<br />
com os argumentos de Bakhtin na obra já referida. Antes disso, um<br />
rápi<strong>do</strong> preâmbulo sobre o formalismo concretista.<br />
Pode causar surpresa aos leitores desavisa<strong>do</strong>s da Teoria da poesia<br />
concreta que o movimento tenha professa<strong>do</strong> a possibilidade de um<br />
poema que não fosse discurso sobre elementos externos, mas que seu<br />
conteú<strong>do</strong> fosse auto-referencial, dan<strong>do</strong> a entender que se tratasse de<br />
uma tentativa de forçar a arte verbal a assumir o mesmo estatuto, por<br />
exemplo, de um quadro ou uma escultura abstrata cuja possibilidade<br />
de utilização <strong>do</strong>s materiais (a cor, o mármore etc.) sem referência a<br />
objetos naturais é não só possível como largamente realizável. Fato<br />
é que os poetas concretos, cônscios da especificidade <strong>do</strong> material<br />
verbal (o fato de que ele parte de um sistema já significante ao<br />
contrário da linha ou da cor), incorporaram a idéia joyceana de espaço<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
verbivocovisual que continha, no radical “verbi”, o estrato semântico<br />
da palavra (sen<strong>do</strong> o “voco” e o “visual” as camadas sonora e plástica,<br />
respectivamente) sen<strong>do</strong>, este, a garantia <strong>do</strong> inexorável elo <strong>do</strong> signo<br />
verbal com o mun<strong>do</strong>.<br />
Malgra<strong>do</strong> tal ressalva, a carga semântica da palavra, se não é<br />
totalmente proscrita da natureza <strong>do</strong> signo (o que seria impossível),<br />
é de tal forma equiparada com suas outras dimensões que, não<br />
raro, o poema concreto resulta em um texto cuja fisionomia parece<br />
passar uma idéia de esvaziamento de conteú<strong>do</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, o<br />
conteú<strong>do</strong> aparentemente remoto de um poema concreto encontraria<br />
justificação na tese segun<strong>do</strong> a qual a forma “é” o conteú<strong>do</strong> e que<br />
o poema é um instaura<strong>do</strong>r de formas inabituais e não um discurso<br />
“sobre” a realidade, função à qual outros usos da linguagem já<br />
estariam destina<strong>do</strong>s. Porém, cabe perguntar: não seria tal delimitação<br />
um estreitamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da poesia ou, em outras palavras,<br />
não teria a Poesia Concreta funda<strong>do</strong> um espaço restrito, porquanto<br />
demasia<strong>do</strong> “composicional” (adiante explicaremos a acepção deste<br />
termo no contexto deste trabalho), para a poesia? Tentemos lançar<br />
luz sobre a questão ten<strong>do</strong> em vista o paralelo com o referencial<br />
bakhtiniano.<br />
No trecho a seguir, vemos Bakhtin servir-se da idéia de “fronteira das<br />
palavras” como lugar da realização poética. Tal idéia é fundamental<br />
para entendermos a crítica bakhtiniana ao formalismo, assim como<br />
será, neste trabalho, para as luzes que aqui pretendemos lançar sobre<br />
alguns aspectos da poética de Ferreira Gullar:<br />
O enorme trabalho <strong>do</strong> artista com a palavra tem por<br />
objetivo final a sua superação, pois o objeto estético<br />
cresce nas fronteiras das palavras, nas fronteiras da língua<br />
enquanto tal; mas essa superação <strong>do</strong> material assume um<br />
caráter puramente imanente: o artista liberta-se da língua<br />
na sua determinação lingüística não ao negá-la, mas graças<br />
ao seu aperfeiçoamento imanente: o artista como que vence<br />
a língua graças ao próprio instrumento lingüístico e,<br />
aperfeiçoan<strong>do</strong>-a lingüisticamente, obriga-a a superar a si<br />
própria. (BAKHTIN, 1990, p. 50)<br />
Antes de algumas explicações conceituais referentes à citação acima,<br />
convém antecipar o paralelo com o seguinte depoimento de Gullar<br />
colhi<strong>do</strong> de seu livro Indagações de hoje em capítulo intitula<strong>do</strong> “O<br />
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inimigo da palavra”:<br />
[...] Há certa verdade nisto: o poeta de fato bagunça um<br />
pouco o coreto da linguagem. Mas não para que as palavras<br />
se tornem perceptíveis. Desarruma-o para romper a crista<br />
verbal que impede o aflorar, na linguagem, da experiência<br />
viva. Um poeta pode até criar palavras mas não com o<br />
propósito de aumentar o volume <strong>do</strong>s dicionários, e sim para<br />
exprimir o novo. O mau poema é feito de palavras. O bom<br />
poema é feito contra as palavras. (GULLAR, 1989, p. 42)<br />
Logo de início fica visível a recusa de ambos os autores a aceitar a<br />
redutibilidade <strong>do</strong> poema ao aspecto proeminentemente lingüístico,<br />
ainda que ambos não neguem ser a palavra o material indispensável<br />
<strong>do</strong> constructo poético. Tal zona de convergência entre Bakhtin e<br />
Gullar diz respeito à relativização da estética formalista na medida em<br />
que a tarefa de “superar” a língua não se confunde com o destaque<br />
de suas configurações materiais, pois, como diz Bakhtin, “o objeto<br />
estético cresce nas fronteiras das palavras”.<br />
O “objeto estético” 6 é a totalidade unificada de um conteú<strong>do</strong><br />
totalmente “encarna<strong>do</strong>” em uma forma. O conteú<strong>do</strong> é composto de<br />
fragmentos da realidade que são “isola<strong>do</strong>s” da existência e, quan<strong>do</strong><br />
ingressam na composição artística, ganham uma realidade única e<br />
acabada.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, não há como escapar <strong>do</strong> fato de que tu<strong>do</strong> o que o<br />
artista tem diante de si é o material e somente sobre ele é que se<br />
dirige sua atividade. No entanto, a depender da atitude <strong>do</strong> artista,<br />
<strong>do</strong>is tipos de objeto podem ser obti<strong>do</strong>s. O primeiro deles, no que diz<br />
respeito à poesia, consistiria em haurir da matéria verbal um “objeto”<br />
pretensamente autônomo no senti<strong>do</strong> de que suas significações<br />
decorreriam <strong>do</strong> imanentismo da sua realidade física. A esse estágio,<br />
digamos assim, da obra, Bakhtin chama de “momento composicional”<br />
cuja característica consiste na ênfase sobre os elementos técnicos da<br />
arte em questão e <strong>do</strong>s aspectos físicos <strong>do</strong> material utiliza<strong>do</strong>. Toda a<br />
6 Com “objeto estético” Bakhtin não está se referin<strong>do</strong> à realização<br />
estritamente material da obra de arte já que, para esta, ele reservou o conceito<br />
de “obra exterior”. A grande limitação da “estética material” (leia-se: formalismo)<br />
residiria no fato de ela se ater ao estu<strong>do</strong> da obra exterior sem alçar a<br />
compreensão <strong>do</strong> objeto estético, toman<strong>do</strong> o primeiro como a realidade total<br />
da obra.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
fase mais radical da Poesia Concreta se insere nesse escopo. Como<br />
Gullar também foi um adepto <strong>do</strong> concretismo, podemos extrair de<br />
sua obra um exemplar <strong>do</strong> tipo de poesia a que estamos nos referin<strong>do</strong> 7 :<br />
verde verde verde<br />
verde verde verde<br />
verde verde verde<br />
verde verde verde erva<br />
(GULLAR, 2008, p. 102)<br />
Note-se que o poema acima autoriza, praticamente, apenas uma<br />
possibilidade interpretativa que se depreende a partir da proximidade<br />
semântica e fonética entre as palavras “verde” e “erva”. A disposição<br />
visual concorreria para en<strong>do</strong>ssar tal parentesco destacan<strong>do</strong> a “erva”<br />
<strong>do</strong> “verde”, sugerin<strong>do</strong> o engendramento daquela a partir da repetição<br />
deste pois, afinal, da eliminação <strong>do</strong> “de” de “verde” e adição <strong>do</strong><br />
“a” surge o vocábulo “erva”. Note-se que o elemento comum a<br />
ambos os vocábulos constitui um anagrama <strong>do</strong> verbo “ver”, numa<br />
espécie de auto-referência ao artifício fisionômico <strong>do</strong> poema que<br />
pede para ser “visto” menos que li<strong>do</strong>. O que tal poema reivindica é<br />
uma contemplação <strong>do</strong> seu próprio “corpo” assim como suas chaves<br />
interpretativas esgotam-se no desvelamento de suas estratégias<br />
composicionais.<br />
Se se constitui um mérito <strong>do</strong> poeta a exploração das potencialidades<br />
das palavras, a sua limitação, seguin<strong>do</strong> a ótica bakhtiniana, estaria<br />
em pretender fundar uma poética exclusivamente no âmbito<br />
composicional. No la<strong>do</strong> teórico da questão, é justamente o problema<br />
da redução da poesia às explicações composicionais que constitui a<br />
grande limitação <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> formal: “E eis que no <strong>do</strong>mínio da teoria<br />
da arte surge uma tendência no senti<strong>do</strong> de compreender a forma<br />
artística como forma de um da<strong>do</strong> material, e não mais como uma<br />
combinação nos limites <strong>do</strong> material [...]” (BAKHTIN, 1990, p. 18).<br />
Assim, a segunda das posturas que o poeta pode assumir diante da<br />
palavra (sen<strong>do</strong> a primeira a tentativa de equiparação da palavra ao<br />
estatuto de coisa) é forçá-la à sua “superação”, assim como a atitude<br />
7 Embora o poema em questão já pertença ao momento neoconcretista<br />
isso não invalida seu caráter exemplar pois o aspecto técnico-composicional<br />
permanece em destaque.<br />
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C L I P E<br />
correlata <strong>do</strong> estudioso de poesia seria compreender o poema não de<br />
forma fincada nas suas determinações especifica e exclusivamente<br />
lingüísticas, mas no seu entrecruzamento com o to<strong>do</strong> da cultura, <strong>do</strong><br />
qual ela faz parte.<br />
Se nos ativermos à poesia de Ferreira Gullar veremos exemplos tanto<br />
de extremos <strong>do</strong>s problemas relativos ao fazer poético em questão<br />
como, também, momentos de síntese. Já destacamos duas situaçõeslimite:<br />
“Roçzeiral” como a utópica tentativa da pura transparência e<br />
“verde erva” como a proposta <strong>do</strong> poema coisa (palavra opaca). Os<br />
poemas de cordel escritos por Gullar após seu rompimento com as<br />
vanguardas seriam a outra faceta radical da sua empreitada poética,<br />
dessa vez ten<strong>do</strong> em vista a primazia <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> sobre o trabalho<br />
estético.<br />
Seguin<strong>do</strong> a nossa lógica argumentativa, da mesma forma que se<br />
engana “<strong>do</strong> ponto de vista meto<strong>do</strong>lógico” o estudioso que busca<br />
reduzir o poema a seus “temas” e “conteú<strong>do</strong>s”, equivoca-se o poeta<br />
que lida com a forma poética como um repositório de visões de<br />
mun<strong>do</strong>, ideologias políticas etc. To<strong>do</strong> o texto de Bakhtin usa<strong>do</strong> como<br />
base desta explanação (“O problema <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, <strong>do</strong> material e da<br />
forma na criação literária”) empreende grande esforço em mostrar<br />
que os componentes cognitivos que ingressam numa obra assumem<br />
nela uma tal unidade que<br />
não pode ser destaca<strong>do</strong> da obra de arte um elemento<br />
real qualquer como sen<strong>do</strong> um conteú<strong>do</strong> puro, como<br />
aliás, realiter não há a forma pura: o conteú<strong>do</strong> e a forma<br />
se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são<br />
indissolúveis para a análise estética, ou seja, são grandezas<br />
de ordem diferente: para que a forma tenha um significa<strong>do</strong><br />
puramente estético, o conteú<strong>do</strong> que a envolve deve ter um<br />
senti<strong>do</strong> ético e cogninitivo possível, a forma precisa <strong>do</strong><br />
peso extra-estético <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, sem o qual ela não pode<br />
realizar-se enquanto forma.” (BAKHTIN, 1990, p. 37)<br />
Assim, o desequilíbrio entre os elementos cognitivos e os éticos<br />
e destes, por sua vez, com a forma, concorrem para interditar<br />
o êxito da obra de arte ou, como diz Bakhtin, <strong>do</strong> objeto estético.<br />
Os poemas de cordel de Ferreira Gullar ensaiam tal desequilíbrio<br />
forma/conteú<strong>do</strong> e, não raro, assumem o caráter de panfleto político.<br />
Consideradas as devidas diferenças, Bakhtin assinala semelhante<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
desacor<strong>do</strong> em momentos da obra de Dostoiévski e Tolstoi como<br />
“no romance Guerra e Paz, por exemplo, onde no seu final os juízos<br />
cognitivos e histórico-filosóficos rompem totalmente a sua ligação<br />
com o acontecimento ético e organizam-se num trata<strong>do</strong> teórico”<br />
(BAKHTIN, 1990, p. 41).<br />
Sen<strong>do</strong> assim, somos leva<strong>do</strong>s a crer que os momentos de síntese <strong>do</strong><br />
percurso poético de Gullar, ou seja, suas mais exitosas realizações<br />
estéticas coincidem com o momento em que sua produção conseguiu<br />
promover os efeitos mais satisfatórios a partir da articulação <strong>do</strong><br />
composicional com os componentes de conteú<strong>do</strong> histórico, social,<br />
político e biográfico. O Poema sujo é, possivelmente, o mais completo<br />
registro dessa síntese. Nele, o Gullar “biográfico” empresta-se<br />
como espaço onde se amalgama da<strong>do</strong>s existenciais e históricos que,<br />
desloca<strong>do</strong>s para o cerne da unidade artística, organizam um novo<br />
“to<strong>do</strong>”, esteticamente rico em possibilidades de relações com o<br />
universo cultural no qual está inscrito.<br />
Vale lembrar que a inserção <strong>do</strong> “eu”, ou seja, da subjetividade<br />
cria<strong>do</strong>ra no objeto estético, representa a negação de um <strong>do</strong>s tópicos<br />
<strong>do</strong> “receituário” concretista que prescreveu a abolição das marcas<br />
de subjetividade na poesia a fim de que esta se aproximasse mais <strong>do</strong><br />
objeto de aspecto industrial 8 . A inserção <strong>do</strong> autor no bojo <strong>do</strong> universo<br />
axiológico que o texto instaura pode ser mais minuciosamente<br />
compreendida em outro texto de Bakhtin intitula<strong>do</strong> “O autor e o<br />
herói na atividade estética” 9 . No entanto, mesmo em “O problema<br />
<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>...” o teórico russo já indica algumas questões relevantes,<br />
como a que transcrevemos abaixo:<br />
A personalidade criativa positivamente subjetiva é um<br />
momento constitutivo da forma artística, aqui a sua<br />
subjetividade encontra uma objetivação específica, torna-<br />
8 Na teoria concretista, o poeta liga-se à figura <strong>do</strong> produtor que<br />
remete à idéia de um opera<strong>do</strong>r de máquinas. Ele aciona certos mecanismos<br />
e permanece “neutro” no resulta<strong>do</strong> final, ou seja, o produto não terá a sua<br />
“presença” transfigurada, o seu “estilo”: “Um operário que trabalha uma<br />
peça ao torno não escreve nela o seu nome ou a sua revolta” (CAMPOS et<br />
alii, 1975, p. 125). Ou, então: “A figura romântica, persistente no sectarismo<br />
surrealista <strong>do</strong> poeta ‘inspira<strong>do</strong>’, é substituída pela <strong>do</strong> poeta factivo, trabalhan<strong>do</strong><br />
rigorosamente sua obra, como um operário um muro” (CAMPOS<br />
et alii, 1975, p. 52).<br />
9 Presente em “Estética da criação verbal” (cf. referências)<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 285
C L I P E<br />
se uma subjetividade cria<strong>do</strong>ra culturalmente significante; é<br />
ainda aqui que se realiza a unidade específica <strong>do</strong> homem<br />
orgânico, físico e interior, moral e espiritual, mas uma<br />
unidade provada a partir <strong>do</strong> interior. O autor, como<br />
momento constitutivo da forma, é a atividade, organizada e<br />
oriunda <strong>do</strong> interior, <strong>do</strong> homem como totalidade, que realiza<br />
plenamente a sua tarefa, que não presume nada além de si<br />
mesmo para chegar à conclusão, é, ademais, o homem to<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s pés à cabeça [...] (BAKHTIN, 1990, p. 68)<br />
Dadas as considerações até aqui desenvolvidas podemos, finalmente,<br />
sintetizar o paralelismo de nossa análise acusan<strong>do</strong> a premissa que a<br />
sustenta, a saber: a de que há um direcionamento comum entre o<br />
méto<strong>do</strong> formal e a prática da Poesia Concreta.<br />
Dissemos que, em ambos os casos (como objeto de estu<strong>do</strong> e como<br />
prática artística), a poesia sofreu um estreitamento de seu campo<br />
de abrangência. Da parte <strong>do</strong> Formalismo percebe-se, via crítica<br />
bakhtiniana, a tendência a restringir o estu<strong>do</strong> da poesia ao rol <strong>do</strong>s<br />
problemas lingüísticos cuja pressuposição epistemológica é a de<br />
que, enquanto méto<strong>do</strong> científico, a pesquisa formal deve possuir<br />
um objeto empírico delimita<strong>do</strong>, que é o caráter material da palavra<br />
esteticamente trabalhada no poema. Nesse senti<strong>do</strong>, o estreitamento a<br />
que nos referimos é o corte necessário para que o méto<strong>do</strong> em questão<br />
se afaste da abordagem especulativa própria da estética filosófica e<br />
ganhe, efetivamente, estatuto de saber científico.<br />
No que diz respeito à Poesia Concreta, essa base empírica da arte<br />
verbal converte-se em campo de realização estética. As fases <strong>do</strong><br />
movimento concretista, por exemplo, assinalam a obstinação de<br />
seus mentores com o aspecto técnico <strong>do</strong> “artefato” verbal pois,<br />
da “fenomenologia” à “matemática da composição” (v. TPC, p.<br />
43) o poema concreto estriba-se em pressupostos declaradamente<br />
formalistas, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>, supostamente, rompem com a poesia<br />
discursiva, acarretan<strong>do</strong> a dissipação conteudística, consoante a<br />
equiparação <strong>do</strong> semântico com as estratégias de visualidade.<br />
Correlatamente ao pôr “entre parênteses” o mun<strong>do</strong> da cultura,<br />
opera<strong>do</strong> pelo méto<strong>do</strong> formalista, o concretismo orto<strong>do</strong>xo também<br />
fez tabula rasa <strong>do</strong>s componentes referenciais optan<strong>do</strong> por uma<br />
participação “fisionômica” no mun<strong>do</strong> da vida, o que significa dizer<br />
que a forma poética é que se inscreve no universo das coisas (leia-se:<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
o mun<strong>do</strong> tecniciza<strong>do</strong>, industrial, cibernético e da linguagem <strong>do</strong>s mass<br />
media) num claro convite para que a poesia deixe de ser um mo<strong>do</strong><br />
de expressão simbólica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para ser um objeto dentro deste<br />
mesmo mun<strong>do</strong>.<br />
Para Gullar o “mau poema é feito de palavra [e o] bom poema é feito<br />
contra as palavras” (GULLAR, 1989, p. 42: grifo nosso). Sem levar<br />
ao pé da letra tal declaração, mas reconhecen<strong>do</strong> o argumento que ela<br />
encerra, não entendemos, como Gullar, que a Poesia Concreta seja<br />
uma forma absolutamente inválida de poesia.<br />
A nosso ver, a Poesia Concreta foi uma forma de escrita que<br />
constituiu o seu próprio sistema de validação para nele figurar como<br />
seu expoente mais acaba<strong>do</strong>. Se, como é comum dizer, a poesia<br />
pressupõe uma cosmologia ou uma mitologia das quais representa<br />
sua síntese estética (assim como a Divina comédia para a cosmovisão<br />
cristã, Homero para a axiologia grega e to<strong>do</strong> o grande cânone e suas<br />
respectivas ligações com o universo cultural <strong>do</strong> qual fazia parte)<br />
a vanguarda concretista, na constituição da sua Weltanschauung,<br />
incorreu no delibera<strong>do</strong> propósito de tomar o aspecto pela totalidade<br />
ou a singularidade pelo universal.<br />
De fato, a contemporaneidade comporta o paradigma tecnológico<br />
e este pode ser considera<strong>do</strong> a imagem que mais perto chega de<br />
singularizar nossa época. Mas a utópica proposta concretista de<br />
fornecer a linguagem própria dessa nova era acarretou, por sua vez,<br />
a idéia de que seria preciso reduzir a expressão poética a uma techné<br />
da palavra.<br />
Nesse ponto, convém reconhecer a legitimidade da proposta<br />
concretista a partir de uma dada circunscrição específica, impossível<br />
de se absolutizar como a linguagem poética hodierna por excelência.<br />
Fossem os <strong>do</strong>gmas <strong>do</strong> movimento concretista verdades indubitáveis<br />
não teria Harol<strong>do</strong> de Campos (e outros de sua geração) opta<strong>do</strong> por<br />
retroceder às formas negadas pela orto<strong>do</strong>xia daquela vanguarda.<br />
Nesse senti<strong>do</strong>, aquilo que aqui se observou, em ambos os autores<br />
apresenta<strong>do</strong>s, sob a metáfora da “fronteira das palavras” não<br />
corresponde à negação <strong>do</strong> material verbal (como poderia deixar<br />
parecer o ir “contra a palavra” da citação acima 10 ), mas aponta para<br />
10 É nesse senti<strong>do</strong> que também a transparência almejada pelo “poema<br />
essencial” – o caso “Roçzeiral” – não ultrapassou o caráter de registro<br />
de uma problemática, soçobran<strong>do</strong> em sua própria utopia de se afirmar como<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 287
C L I P E<br />
o fato de que os elementos materiais incorpora<strong>do</strong>s na obra de arte<br />
perdem sua especificidade física para dar lugar a um novo campo<br />
material transmuda<strong>do</strong> esteticamente. É a partir desse raciocínio que<br />
Bakhtin chama a atenção para o fato de que:<br />
[...] a natureza extra-estética <strong>do</strong> material (à diferença <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong>) não entra no objeto estético: não entram o<br />
espaço físico-matemático, as linhas e figuras da geometria,<br />
o movimento da dinâmica, o som da acústica, etc.; com<br />
eles se relacionam o artista-artesão e a ciência estética, mas<br />
não a contemplação estética em primeiro grau. É preciso<br />
distinguir claramente estes <strong>do</strong>is momentos: no processo<br />
de trabalho, o artista necessita relacionar-se com a física,<br />
a matemática, a lingüística, mas to<strong>do</strong> esse enorme trabalho<br />
técnico realiza<strong>do</strong> pelo artista e estuda<strong>do</strong> pelo esteta, sem o<br />
qual não existiria a obra de arte, não entra no objeto estético<br />
cria<strong>do</strong> pela contemplação artística, ou melhor, na existência<br />
estética enquanto tal, no objeto último da obra: tu<strong>do</strong> isso<br />
desaparece no momento da percepção artística, como<br />
desaparecem os andaimes quan<strong>do</strong> o prédio é construí<strong>do</strong>.<br />
(BAKHTIN, 1990, p. 48-49)<br />
REFERÊNCIAS<br />
BAKHTIN, Mikhail. “O problema <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, <strong>do</strong> material e da<br />
forma na criação literária”. In.: Questões de literatura e de estética<br />
(a teoria <strong>do</strong> romance). Trad.: Aurora F. Bernardini, José P. Júnior,<br />
Augusto G. Júnior, Helena S. Nazário, Homero F. de Andrade. 2. ed.<br />
Hucitec: São Paulo, 1990.<br />
BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o herói na atividade estética”. In.:<br />
Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2003.<br />
CAMPOS, Augusto de.; CAMPOS. Harol<strong>do</strong> de; PIGNATARI,<br />
Décio. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e manifestos 1950-<br />
1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.<br />
um “antipoema”, produto de uma linguagem esgarçada.<br />
288 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. (1950-1999). 16. ed. Rio de Janeiro:<br />
José Olympio, 2008.<br />
GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio,<br />
1989.<br />
GULLAR, Ferreira. Um pouco acima <strong>do</strong> chão. São Luís: Edição <strong>do</strong><br />
autor, 1949.<br />
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e poesia: Bakhtin e o formalismo<br />
russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 18/09/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 30/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 289
C L I P E<br />
A MÚMIA<br />
A<strong>do</strong>lfo Miranda Oleare<br />
Ufes<br />
(...) uma expressão de <strong>do</strong>çura e de paz taes que se julga<br />
vêr o pharaó a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> e não morto. (Encyclopedia e<br />
Diccionario Internacional)<br />
Resumo: Reflexão sobre a crítica de Nietzsche ao gesto<br />
desistoricizante da tradição filosófica. Para o autor, ao se fundar em<br />
conceitos e categorias ideais, a metafísica gera uma desvalorização da<br />
efetividade histórica <strong>do</strong> acontecimento humano.<br />
Palavras-chave: Conceito. Temporalidade. Historicidade.<br />
Abstract: Reflection on the critique of Nietzsche to the gesture of<br />
making reality un-historical, practiced by philosophical tradition.<br />
For the author, by reason of being grounded in concepts and ideals<br />
categories, the metaphysics creates a devaluation of human historical<br />
effectiveness of the event.<br />
Keywords: Concept. Temporality. Historicity.<br />
Da cadavérica ascese egípcia<br />
No antigo Egito, sabe-se bem, durante muito tempo cultivouse<br />
a mumificação. O cinema hollywoodiano não deixa a<br />
contemporaneidade alheia à memória <strong>do</strong> fenômeno. A palavra<br />
múmia tem origem persa. 11 Na língua de Xerxes, mum significa “cera<br />
ou substância balsâmica” 12 . Para a língua portuguesa, o substantivo<br />
feminino múmia corresponde a “cadáver humano embalsama<strong>do</strong> por<br />
11 Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Rio de Janeiro/Nova<br />
York: W. M. Jackson Inc.Editores, sem data, p. 7657-8.<br />
12 Idem, ibidem.<br />
290 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
processos especiaes que o conservam muito tempo” 13 .<br />
A meta da mumificação era exatamente impedir a decomposição<br />
<strong>do</strong> corpo, tornan<strong>do</strong>-o incorruptível. Seu processo envolvia – com<br />
variações – o mergulho <strong>do</strong> morto em soluções anti-sépticas, o<br />
salgamento, a extração <strong>do</strong> cérebro e das vísceras, a substituição <strong>do</strong>s<br />
olhos naturais por olhos de esmalte, o preenchimento <strong>do</strong> estômago<br />
com teci<strong>do</strong> de linho, serra de madeira, erva seca e natrão pisa<strong>do</strong> e<br />
obstrução das cavidades <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong>, boca e nariz com uma massa<br />
escura e perfumada, além de seu envolvimento em uma faixa, <strong>do</strong>s<br />
pés à cabeça. 14<br />
No pensar <strong>do</strong>s egypcios era necessario, com effeito, que<br />
o cadaver se não consumisse, porque a duração da alma<br />
estava subordinada á existencia <strong>do</strong> corpo que ella tinha<br />
anima<strong>do</strong>. A protecção da mumia no tumulo e a da alma nas<br />
suas peregrinações exigia to<strong>do</strong> um arsenal de cerimonias,<br />
de orações, de objectos de mobiliario e de amuletos, que se<br />
depunham no tumulo ou no ataúde. 15<br />
Nesses termos, o ritual de mumificação, ao que parece, pode ser<br />
apropria<strong>do</strong> como evidência <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de relacionamento <strong>do</strong>s egípcios<br />
com a vida. Na medida em que paralisavam o percurso natural <strong>do</strong><br />
corpo morto, idealizavam a existência, corrigin<strong>do</strong>-a naquilo que<br />
ela, por si, era incapaz de realizar. Por resultar de uma interferência<br />
artificial na dimensão biológica <strong>do</strong> corpo, a múmia retrata uma<br />
animosidade em relação ao imperativo primeiro da existência, da<br />
vida: sua constituição temporal. Em última instância, a finitude, o<br />
limite, a consignação entre realização e desrealização. Ela parece<br />
querer, especificamente, perpetuar aquilo que perece, estagnan<strong>do</strong> o<br />
perecimento. Para<strong>do</strong>xalmente, então, quer estagnar a ação <strong>do</strong> tempo,<br />
perpetuan<strong>do</strong>-a. Quer despotenciar o tempo, por meio de uma<br />
sabotagem de lastro espiritual, que consiste em fingir a capacidade<br />
de, aparentemente, produzir o tempo. Trata-se de golpear a morte,<br />
neutralizan<strong>do</strong>-a por uma jogada estética.<br />
A arte da mumificação attingiu o seu apogeu no segun<strong>do</strong><br />
imperio thebano, na XVIII.ª e XIX.ª dynastia: produziu<br />
13 Idem, ibidem.<br />
14 Idem, ibidem.<br />
15 Idem, ibidem. As citações seguem fidedignamente a grafia, a<br />
acentuação e a pontuação <strong>do</strong> texto original.<br />
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então admiráveis múmias, as mais celebres das quaes, a de<br />
Ramsés II e principalmente a de Seti I, teem uma expressão<br />
de <strong>do</strong>çura e de paz taes que se julga vêr o pharaó a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong><br />
e não morto. 16 (grifo nosso)<br />
Valorizan<strong>do</strong> a ênfase no aspecto central da múmia – o de legislar<br />
sobre a vida, obrigan<strong>do</strong>-a a permanecer naquilo <strong>do</strong> que já se<br />
extraviou –, lê-se, ainda no verbete da Encyclopedia e Diccionario<br />
Internacional que, transformadas – ou transtornadas – as condições<br />
históricas, sociais, econômicas e culturais de outrora, enfim,<br />
desgastada a tradição, eis que põe-se em movimento a decadência da<br />
arte de mumificar, de mo<strong>do</strong> que seu processo rotineiro passa a ser<br />
simplifica<strong>do</strong> e acelera<strong>do</strong>, substituí<strong>do</strong> por outros menos dispendiosos<br />
que, “embora asseguran<strong>do</strong> a conservação <strong>do</strong> corpo, não permitiam<br />
deixar-lhe essa quasi apparencia de vida que caracterizava as mumias<br />
anteriores.” 17 (grifo nosso)<br />
Conclui-se, da informação enciclopédica, que a concepção da<br />
múmia institui um jogo em que unem-se os termos duplicação,<br />
aparência, artifício, adulteração, conservação. Não se quer efetuar<br />
um estu<strong>do</strong> sobre este ou aquele tópico da simbologia religiosa<br />
egípcia; não ecoa aqui um grão sequer de egiptologia. Contu<strong>do</strong>,<br />
importa significativamente a fábula da múmia, à medida que nela se<br />
localiza um para<strong>do</strong>xo atraente: a conservação <strong>do</strong> transmundano pela<br />
aparência de conservação <strong>do</strong> mundano.<br />
Na fábula da múmia a matéria vale, porém de mo<strong>do</strong> idealiza<strong>do</strong>,<br />
idealmente adultera<strong>do</strong>. A múmia encerra em si dupla idealização.<br />
Existe para ancorar a alma, mas, em relação ao próprio corpo, é um<br />
distanciamento. Mantém o corpo inalterável, intransformável, imóvel.<br />
Exatamente o corpo, o próprio lugar da mudança, <strong>do</strong> movimento, <strong>do</strong><br />
devir.<br />
Gera a múmia paralisia, ao petrificar o corpo com a idéia de alma.<br />
Valoriza<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong> exclusivamente em função de uma avaliação<br />
superior da alma, o corpo-múmia distingue-se duplamente de um<br />
corpo efetivo, ativo na história. Vira estátua. Não perece como um<br />
corpo vivo, não perece como um corpo morto. É cuida<strong>do</strong>samente<br />
protegi<strong>do</strong> <strong>do</strong> contato com o ‘exterior’, e corrigi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s erros<br />
cometi<strong>do</strong>s pela ‘injusta natureza’. Em sua imobilidade, explicita<br />
16 Cf. Encyclopedia e Diccionario Internacional. Op. cit., p. 7657-8.<br />
17 Idem, ibidem.<br />
292 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
a unidade concentrada, constitutiva, de vida e morte: porque não<br />
morre, não vive. Não pode se mexer, não se putrefaz, não vira pó.<br />
Artifícios o impedem. Está vetada, assim, a ‘vida’, o vigor, o fluxo <strong>do</strong><br />
continuar morren<strong>do</strong>, se desfazen<strong>do</strong>: segun<strong>do</strong> golpe na efetividade.<br />
No corpo-múmia está a marca da impossível separação de alma<br />
e corpo. Separam-se, sen<strong>do</strong> inseparáveis; formam então um par<br />
constante. Ele, o corpo, agora artificialmente eterniza<strong>do</strong>, a sustém,<br />
a anima. O corpo-múmia como alma da alma: “a duração da alma<br />
estava subordinada á existencia <strong>do</strong> corpo que ella tinha anima<strong>do</strong>” 18 .<br />
Sem um, o outro também não há. A alma é garantida pelo corpo.<br />
Não se trata mais de um corpo vivo, nem de um corpo morto. Do<br />
corpo ideal, talvez.<br />
Na múmia tu<strong>do</strong> é ideal. Duplamente ideal. Por meio dela, garante-se<br />
o verdadeiro pelo falso, numa operação idêntica àquela imposta pela<br />
metafísica ocidental, conforme Nietzsche a compreende: idealismo,<br />
anti-natureza. A tais nomes, atribui o desenvolvimento <strong>do</strong> Ocidente,<br />
a construção <strong>do</strong>s valores no mun<strong>do</strong> ocidental. Neles, a vontade de<br />
eternidade. A múmia consiste em uma reação contra a morte, que se<br />
realiza pelo fingimento de que a vida, no morto, continua. Negan<strong>do</strong><br />
a efetividade, produzin<strong>do</strong> uma quasi apparencia de vida naquele que<br />
não mais devém, a mumificação, por fim, atesta o efetivo: a vida é<br />
infinita, não se extingue; o vivo cessa.<br />
O empalhamento filosófico da realidade<br />
“Tu<strong>do</strong> o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios<br />
foram múmias conceituais” (grifo nosso), lê-se na primeira seção de<br />
“A ‘razão’ na filosofia”, capítulo de Crepúsculo <strong>do</strong> í<strong>do</strong>los, livro no qual<br />
Nietzsche insistentemente irá mostrar como “o preconceito da razão<br />
(...) nos leva necessariamente ao erro.” 19 Na segunda seção de “O que<br />
devo aos antigos” (o penúltimo capítulo), sugere-se quanto pode ter<br />
de egipcismo em Platão: “Pagou-se caro pelo fato deste ateniense ter<br />
18 Idem, ibidem.<br />
19 Cf. NIETZSCHE. F.W. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, ou, Como se filosofa<br />
com o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume<br />
Dumará, 2000, p. 28. Daqui em diante esta obra será identificada por<br />
Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los.<br />
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C L I P E<br />
estuda<strong>do</strong> com os egípcios.” 20<br />
Trata-se, pois, de tematizar a imagem das múmias conceituais<br />
nietzscheanas, e as suas relações com a idéia de uma razão movida<br />
pela prática da conceituação metafísica. O que – pergunta-se –<br />
produzem os filósofos 21 ao construírem múmias conceituais? O que<br />
embalsamam e paralisam, com sua operação? Isto: a temporalidade,<br />
o devir, o acontecimento da própria realidade em sua estrutura<br />
20 Para não se cair numa redução inadequada da obra de Platão, é<br />
imprescindível observar que, pela sua grandiosidade e originalidade, Nietzsche<br />
propositadamente o caricaturiza, fazen<strong>do</strong>-o aparecer como o personagem<br />
que representa perfeitamente o desenvolvimento <strong>do</strong> Ocidente no senti<strong>do</strong><br />
da história platônico-cristã. António Marques afirma que a genealogia<br />
de Nietzsche inclui a criação de tipos por meio <strong>do</strong> estabelecimento de uma<br />
“ficção meto<strong>do</strong>lógica”. Cf. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: Discurso<br />
Editorial/Unijuí, 2003, p. 15.<br />
21 O termo filósofo está emprega<strong>do</strong> aqui no senti<strong>do</strong> caricatural de<br />
Nietzsche, isto é, como indicação de um tipo fisiológico que, marca<strong>do</strong> pelo<br />
socratismo e pelo cristianismo, produziu um mo<strong>do</strong> de ser, de ver e de avaliar,<br />
uma ética e uma estética decadentes, isto é, <strong>do</strong>entes e repletos de cansaço em<br />
relação à vida. Este tipo – o filósofo – é, então, o protagonista da décadence,<br />
tema crucial para Nietzsche, em toda a sua obra. Cf. p. ex., NIETZSCHE,<br />
F. W. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner:<br />
<strong>do</strong>ssiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza.<br />
São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 43-4: (...) – Toda época tem, na<br />
sua medida de força, também uma medida de quais virtudes lhe são permitidas,<br />
quais proibidas. Ou tem as virtudes da vida ascendente: então resiste<br />
profundamente às virtudes da vida declinante. Ou é ela mesma uma vida<br />
declinante – então necessita também das virtudes <strong>do</strong> declínio, então odeia<br />
tu<strong>do</strong> o que se justifica apenas a partir da abundância, da sobre-riqueza de<br />
forças. A estética se acha indissoluvelmente ligada a esses pressupostos biológicos:<br />
há uma estética da décadence, há uma estética clássica – algo “belo<br />
em si” é uma quimera, como to<strong>do</strong> o idealismo. – Na esfera mais estreita <strong>do</strong>s<br />
chama<strong>do</strong>s valores morais não se encontra oposição maior <strong>do</strong> que aquela entre<br />
uma moral <strong>do</strong>s senhores e a <strong>do</strong>s conceitos de valor cristãos: esta, aparecida<br />
num solo inteiramente mórbi<strong>do</strong> (– os Evangelhos nos mostram exatamente<br />
os mesmos tipos fisiológicos descritos nos romances de Dostoievski); a moral<br />
<strong>do</strong>s senhores (“romana”, “pagã”, “clássica”, “Renascença”), ao contrário,<br />
sen<strong>do</strong> a linguagem simbólica da vida que vingou, que ascende, da vontade de<br />
poder como princípio da vida. A moral <strong>do</strong>s senhores afirma tão instintivamente<br />
como a cristã nega (“Deus”, “além”, “abnegação”, puras negações).<br />
A primeira partilha a sua abundância com as coisas – transfigura, embeleza,<br />
traz razão ao mun<strong>do</strong> –, a segunda empobrece, empalidece, enfeia o valor das<br />
coisas, nega o mun<strong>do</strong>.”<br />
294 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
inultrapassável de criação e destruição.<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Tais filósofos, continua Nietzsche, “acreditam que desistoricizar<br />
uma coisa, torná-la uma sub specie aeterni, construir a partir dela<br />
uma múmia, é uma forma de honrá-la.” 22 A exemplo <strong>do</strong>s egípcios,<br />
esses personagens nietzscheanos não suportam o movimento e a<br />
temporalidade, fenômenos que refutam a estabilidade, a determinação<br />
inalterável acerca <strong>do</strong> que a realidade seja. Querem uma realidade que<br />
não se mexa: “Eles matam, eles empalham, quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ram, esses<br />
senhores idólatras de conceitos.” 23 Como fazem isso? Postulan<strong>do</strong><br />
conceitos últimos acerca das coisas, isto é, procuran<strong>do</strong>-lhes o Ser,<br />
entendi<strong>do</strong> como realidade eterna e absoluta, jamais afetada por<br />
qualquer indício de tempo, espaço, movimento e relação.<br />
A acusação de Nietzsche gira em torno dessa tara <strong>do</strong>s filósofos:<br />
duplicar a realidade, separar <strong>do</strong> que aparece, o que então é.<br />
Corrompem o aparecimento. Para isso desistoricizam, destacam<br />
a realidade das relações que a produzem no tempo e no espaço,<br />
despin<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> onde, <strong>do</strong> quan<strong>do</strong>, <strong>do</strong> como, <strong>do</strong> por quê. Criam a ficção<br />
de um real real e um real falso. E nomeiam o efetivo como falsidade.<br />
“O que é não vem-a-ser; o que vem a ser, não é.” 24<br />
Nietzsche refere-se aos edifícios conceituais ergui<strong>do</strong>s pela filosofia,<br />
ao longo de <strong>do</strong>is milênios. À sanha de enquadramento da realidade em<br />
sistemas abstratos, em organogramas categoriais. Em sua concepção,<br />
o filósofo é aquele que deseja chegar a um alvo que, apesar de<br />
resistir a seus esforços, deverá ceder a eles, assim que a abordagem<br />
se mostrar correta, compatível, meto<strong>do</strong>logicamente perfeita. Assim,<br />
toda a filosofia aparece como uma tentativa de acertar na abordagem.<br />
Um jogo de da<strong>do</strong>s? Um jogo de adivinhação? Quer-se chegar a um<br />
lugar completamente hipotético, fictício, toman<strong>do</strong>-o como o mais<br />
certo, o único seguro. Põe-se, antes, o fim. Constrói-se rigidamente o<br />
caminho, mas o destino, puramente ideal, sempre distante, jamais se<br />
mostrará. Os filósofos, ironiza Nietzsche, “acreditam to<strong>do</strong>s, mesmo<br />
com desespero, no Ser.” 25 Acontece que ele, o Ser, persegui<strong>do</strong> pelos<br />
filósofos, se oculta. Não parece afeito ao sistema da marcação cerrada<br />
filosófica; sente-se, ao certo, sufoca<strong>do</strong>. Mas a i<strong>do</strong>latria conceitual <strong>do</strong>s<br />
22 Cf. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, p. 25.<br />
23 Idem, ibidem.<br />
24 Idem, ibidem.<br />
25 Idem, ibidem.<br />
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filósofos os obriga a encontrar um culpa<strong>do</strong> para a situação. Persiste<br />
neles o sentimento de estarem sen<strong>do</strong> ludibria<strong>do</strong>s: “visto que não<br />
conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos<br />
quais ele se lhes oculta.” 26<br />
Eis que Nietzsche põe em cena a fala <strong>do</strong>s filósofos: “É preciso<br />
que uma aparência, que um ‘engano’ aí se imiscua, para que não<br />
venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?” E<br />
quem será, afinal, aquele que engana os filósofos? Para esboçar as<br />
respostas prováveis, que se detalhem: a) os filósofos são aqueles que<br />
desistoricizam a realidade, quan<strong>do</strong> resolvem dar senti<strong>do</strong> a ela. Desse<br />
mo<strong>do</strong>, criam “múmias conceituais”, ou seja, mumificam a realidade,<br />
mergulhan<strong>do</strong>-a em soluções conceituais, enfaixan<strong>do</strong>-a logicamente,<br />
<strong>do</strong>s pés à cabeça. Assim, “trazem um risco de vida para to<strong>do</strong>s,<br />
quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ram. A morte, a mudança, a idade, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que<br />
a geração e o crescimento são para eles objeções – e até refutações.”;<br />
b) os filósofos agem, portanto, sob o <strong>do</strong>mínio de alguma crença –<br />
eles a<strong>do</strong>ram. E, ao procederem assim, põem em risco a vida de to<strong>do</strong>s.<br />
Não são inofensivos, pois, esses personagens. Que risco oferecem? O<br />
risco <strong>do</strong> embalsamamento <strong>do</strong> real. A efetividade lhes aparece como<br />
refutação <strong>do</strong> ideal para o qual querem criar provas, motivo suficiente<br />
para ameaçá-la, refutan<strong>do</strong>-a, em represália, condenan<strong>do</strong>-a como erro.<br />
Já se pode assim ver o culpa<strong>do</strong>?<br />
Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana<br />
é a sensibilidade! Esses senti<strong>do</strong>s, que por outro la<strong>do</strong> são<br />
mesmo totalmente imorais, nos enganam quanto ao mun<strong>do</strong><br />
verdadeiro. Moral: conseguir desembaraçar-se <strong>do</strong> engano<br />
<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> vir-a-ser, da história, da mentira. História<br />
não é outra coisa senão crença nos senti<strong>do</strong>s, crença na<br />
mentira. Moral: dizer não a tu<strong>do</strong> o que nos faz crer nos<br />
senti<strong>do</strong>s, a to<strong>do</strong> o resto da humanidade. Tu<strong>do</strong> isso é o<br />
‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, apresentar o monótonoteísmo<br />
através de uma mímica de coveiros! – E antes de<br />
tu<strong>do</strong> para fora com o corpo, esta idée fixe <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s digna<br />
de compadecimento! Este corpo acometi<strong>do</strong> por todas as<br />
falhas da lógica, refuta<strong>do</strong>, até mesmo impossível, apesar de<br />
ser suficientemente impertinente para se portar como se<br />
fosse efetivo! 27<br />
26 Idem, ibidem.<br />
27 Cf. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, p. 25-6.<br />
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Os cria<strong>do</strong>res de múmias conceituais odeiam a realidade, consideram<br />
o próprio corpo, o corpo que eles mesmos são – e os senti<strong>do</strong>s –<br />
imorais. Mentirosos quanto à verdade, engana<strong>do</strong>res quanto ao<br />
mun<strong>do</strong> verdadeiro, não o deixam mostrar-se. Nietzsche enfatiza:<br />
“Em to<strong>do</strong>s os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo<br />
juízo sobre a vida: ela não vale nada...” 28 Por que será? Por que tanta<br />
má vontade? “Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom<br />
sain<strong>do</strong> de suas bocas. Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia,<br />
cheio de cansaço da vida, um tom plenamente contrafeito frente a<br />
ela”. 29 (grifo nosso)<br />
Logo, não poderiam os filósofos, insiste Nietzsche, se satisfazer com<br />
o mun<strong>do</strong> efetivo, pois inventaram de julgar elevada uma realidade<br />
fictícia, irreal: “Fala o desiludi<strong>do</strong>. Eu procurei por grandes homens,<br />
mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal.” 30 Como<br />
nasce essa depressão? Por meio da linguagem metafísica, imposta<br />
pela razão como operação moral 31 , assim como por meio da lógica,<br />
da crença em que a definição de causa e efeito deveria resolver por<br />
completo, de mo<strong>do</strong> transparente, o problema <strong>do</strong> conhecimento<br />
da realidade. E, também, por meio da gramática 32 , que substantiva<br />
28 Cf. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, p. 17.<br />
29 Idem, ibidem.<br />
30 Cf. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, p. 15.<br />
31 Cf. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal: prelúdio a uma filosofia <strong>do</strong> futuro.<br />
Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 2001, p. 25: “moral, entenda-se, como a teoria das relações de<br />
<strong>do</strong>minação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’.” Daqui em diante esta<br />
obra será identificada por Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal.<br />
32 Cf. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal, p. 26: “Onde há parentesco lingüístico<br />
é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática – quero dizer, graças<br />
ao <strong>do</strong>mínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais –,<br />
tu<strong>do</strong> esteja predisposto para uma evolução e uma seqüência similares <strong>do</strong>s<br />
sistemas filosóficos: <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que o caminho parece interdita<strong>do</strong> a<br />
certas possibilidades outras de interpretação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Filósofos <strong>do</strong> âmbito<br />
lingüístico uralo-altaico (onde a noção de sujeito teve o desenvolvimento<br />
mais precário) com toda a probabilidade olharão ‘para dentro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>’ de<br />
maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das <strong>do</strong>s in<strong>do</strong>-germanos ou<br />
muçulmanos: o encanto exerci<strong>do</strong> por determinadas funções gramaticais é,<br />
em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos.<br />
– (...)”<br />
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adjetivos, crian<strong>do</strong> essência para as ações, 33 e afirma para toda ação<br />
um agente preexistente, um sujeito indivisível, mona<strong>do</strong>lógico, um<br />
substrato lança<strong>do</strong> como base e razão <strong>do</strong> acontecimento, um átomo,<br />
um Eu enquanto substância, lugar de ocorrência da vontade livre<br />
como causa em geral, e como causa de si mesmo, arrancan<strong>do</strong>-se<br />
“pelos cabelos <strong>do</strong> pântano <strong>do</strong> nada em direção à existência”, à moda<br />
<strong>do</strong> barão de Münchausen 34 – sujeito versus objeto, sujeito como<br />
condição <strong>do</strong> predica<strong>do</strong>. 35<br />
“Cucolândia das Nuvens”, terra da filosofia<br />
Para Nietzsche, a idéia de finalidade, fixada pela filosofia – esse<br />
pretenso lugar da verdade! –, é uma estratégia moral para se justificar<br />
33 Cf. “Sobre verdade e mentira no senti<strong>do</strong> extra-moral”. Tradução<br />
de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 34.<br />
(Coleção Os pensa<strong>do</strong>res): “Denominamos um homem ‘honesto’; porque ele<br />
agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser:<br />
por causa da sua honestidade. (...) O certo é que não sabemos nada de uma<br />
qualidade essencial, que se chamasse ‘a honestidade’, mas sabemos, isso sim,<br />
de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo<br />
aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> desigual e designamos, agora, como ações honestas; por fim,<br />
formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: ‘a honestidade’.<br />
A desconsideração <strong>do</strong> individual e efetivo nos dá o conceito (...)”.Daqui em<br />
diante esta obra será identificada por “Sobre verdade e mentira no senti<strong>do</strong><br />
extra-moral”.<br />
34 Cf. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal, p. 27.<br />
35 Cf. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal, p. 23: “Quanto à superstição <strong>do</strong>s lógicos,<br />
nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos<br />
não admitem de bom gra<strong>do</strong> – a saber, que um pensamento vem quan<strong>do</strong><br />
‘ele’ quer, e não quan<strong>do</strong> ‘eu’ quero; de mo<strong>do</strong> que é um falseamento da realidade<br />
efetiva dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição <strong>do</strong> predica<strong>do</strong> ‘penso’. Isso pensa:<br />
mas que ‘isso’ seja precisamente o velho e decanta<strong>do</strong> ‘eu’ é, dito de maneira<br />
suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma ‘certeza<br />
imediata’. E mesmo com ‘isso pensa’ já se foi longe demais; já o ‘isso’ contém<br />
uma interpretação <strong>do</strong> processo, não é parte <strong>do</strong> processo mesmo. Aqui se<br />
conclui segun<strong>do</strong> o hábito gramatical: ‘pensar é uma atividade, toda atividade<br />
requer um agente, logo –’. Mais ou menos segun<strong>do</strong> esse esquema o velho<br />
atomismo buscou, além da ‘força’ que atua, o pedacinho de matéria onde ela<br />
fica e a partir <strong>do</strong> qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos aprenderam<br />
finalmente a passar sem esse ‘resíduo de terra’, e talvez um dia nos habituemos,<br />
e os lógicos também, a passar sem o pequeno ‘isso’ (a que se reduziu,<br />
volatizan<strong>do</strong>-se, o velho e respeitável Eu).”<br />
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um dever ser <strong>do</strong> homem; em última instância, para justificar sua<br />
<strong>do</strong>mesticação, a partir de valores que, por um embasamento<br />
transmundano, não podem ser discuti<strong>do</strong>s, transgredi<strong>do</strong>s, avilta<strong>do</strong>s. O<br />
que se apresenta filosoficamente como finalidade não passa, segun<strong>do</strong><br />
Nietzsche, de um meio.<br />
O conhecimento funciona, aí, como instrumento de um impulso<br />
mais fundamental: o impulso de <strong>do</strong>minar, que ambiciona impor<br />
uma interpretação hegemônica acerca da realidade e, para mantê-la<br />
firme, um sistema moral inabalável, segun<strong>do</strong> o qual deve comportarse<br />
o homem. Assim, a filosofia “cria o mun<strong>do</strong> à sua imagem, não<br />
consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais<br />
espiritual vontade de poder, de ‘criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>’, de causa prima<br />
[causa primeira].” 36<br />
Toda lógica, dirá, quer no fun<strong>do</strong> conservar instintivamente uma<br />
determinada perspectiva de pensamento, de lida com a vida, de<br />
interpretação da realidade. Valen<strong>do</strong>-se da máscara da independência,<br />
da autonomia, da exata limitação formal, da universalidade, 37<br />
36 Cf. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal, p. 15.<br />
37 No clássico Prefácio à Segunda edição da Crítica da razão<br />
pura, Kant apresenta sua concepção acerca <strong>do</strong> sucesso da lógica:<br />
“Confundir os limites das ciências entre si não constitui um aumento<br />
e sim uma desfiguração das mesmas. O limite da Lógica acha-se<br />
determina<strong>do</strong> de maneira bem precisa, por ser ela uma ciência que<br />
expõe circunstanciadamente e prova de mo<strong>do</strong> rigoroso unicamente<br />
as regras formais de to<strong>do</strong> o pensamento (seja ele a priori ou empírico,<br />
tenha ele a origem ou o objeto que quiser, encontre ele em<br />
nosso ânimo obstáculos acidentais ou naturais). A Lógica deve a<br />
vantagem <strong>do</strong> seu sucesso simplesmente à sua limitação, pela qual<br />
ela se autoriza e mesmo se obriga a abstrair de to<strong>do</strong>s os objetos<br />
<strong>do</strong> conhecimento e das suas diferenças, de mo<strong>do</strong> a não se ocupar o<br />
entendimento nela com nada mais <strong>do</strong> que consigo mesmo e com sua<br />
forma. Para a razão devia ser, naturalmente, muito mais difícil encetar<br />
o caminho seguro da ciência, quan<strong>do</strong> ela trata não somente de si<br />
mesma, mas também de objetos. Por isso constitui também a Lógica<br />
como propedêutica apenas uma espécie de vestíbulo das ciências e,<br />
quan<strong>do</strong> o assunto é o conhecimento, pressupõe-se uma Lógica para<br />
o seu julgamento, deven<strong>do</strong>-se, porém, procurar a sua aquisição nas<br />
próprias e objetivamente chamadas ciências.” (KANT. I. Crítica da<br />
razão pura. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Abril Cultural,<br />
1974, p. 9-10. Coleção Os pensa<strong>do</strong>res)<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 299
C L I P E<br />
consegue dissimular as valorações sobre as quais se sustém, “as<br />
exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada<br />
espécie de vida.” 38<br />
Concebe Nietzsche que o filósofo – ressenti<strong>do</strong> da condição faltosa,<br />
desnecessária e imperfeita da vida terrena, sempre ainda a se fazer,<br />
isenta de finalidade e utilidade, perdida em relação ao conhecimento<br />
de sua causa própria, sua razão de ser, isto é, inacessível a um<br />
julgamento acerca de seu valor, acerca de seu “em si” – depõe<br />
contra a vida terrena, crian<strong>do</strong>, para sustentá-la, um fundamento<br />
<strong>do</strong>gmaticamente transmundano. O filósofo, para Nietzsche, não<br />
se obriga, contu<strong>do</strong>, a questões mais difíceis. O valor da lógica, por<br />
exemplo, lhe é indubitável: “o material inteiro, no qual e com o qual<br />
mais tarde o homem da verdade, o pesquisa<strong>do</strong>r, o filósofo, trabalha<br />
e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em to<strong>do</strong> caso<br />
não da essência das coisas.” 39 A gênese da linguagem lógica, portanto,<br />
nada tem de lógica: “é preciso que já tenhamos esta<strong>do</strong> ao menos uma<br />
vez em um mun<strong>do</strong> mais eleva<strong>do</strong> (ao invés de em um muito inferior: o<br />
que teria si<strong>do</strong> a verdade!) e que aí tenhamos nos senti<strong>do</strong> em casa. É<br />
preciso que tenhamos si<strong>do</strong> divinos, pois temos a razão!” 40<br />
38 Cf. Além de bem e mal, p. 11: “Depois de muito tempo ler nos<br />
gestos e nas entrelinhas <strong>do</strong>s filósofos, disse a mim mesmo: a maior parte <strong>do</strong><br />
pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até<br />
mesmo o pensamento filosófico; aqui se deve mudar o mo<strong>do</strong> de ver, como já<br />
se fez em relação à hereditariedade e às ‘características inatas’. Assim como<br />
o ato de nascer não conta no processo e progresso geral da hereditariedade,<br />
também ‘estar consciente’ não se opõe de algum mo<strong>do</strong> decisivo ao que é<br />
instintivo – em sua maior parte o pensamento consciente de um filósofo é<br />
secretamente guia<strong>do</strong> e coloca<strong>do</strong> em certas trilhas pelos seus instintos.”<br />
39 Cf. “Sobre verdade e mentira no senti<strong>do</strong> extra-moral”, p. 34.<br />
40 Cf. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, p. 29, quan<strong>do</strong> Nietzsche refere-se aos<br />
primórdios da inferência, <strong>do</strong>nde resultará, “tardiamente, o pensamento lógico<br />
um tanto mais agu<strong>do</strong>, a rigorosa investigação de causa e efeito (...)”,<br />
conforme tematiza também em Humano demasia<strong>do</strong> humano, p. 24.<br />
300 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
REFERÊNCIAS<br />
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
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Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensa<strong>do</strong>res)<br />
MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo:<br />
Discurso Editorial/Unijuí, 2003.<br />
NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los, ou, Como se filosofa com<br />
o martelo. Tradução de Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro:<br />
Relume Dumará, 2000.<br />
NIETZSCHE, F. W. Além <strong>do</strong> bem e <strong>do</strong> mal: prelúdio a uma filosofia<br />
<strong>do</strong> futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo Cézar de Souza. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
NIETZSCHE, F. W. “Sobre verdade e mentira no senti<strong>do</strong> extramoral”.<br />
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:<br />
Nova Cultural, 1987. (Coleção Os pensa<strong>do</strong>res)<br />
NIETZSCHE, F. W. O caso Wagner: um problema para músicos /<br />
Nietzsche contra Wagner: <strong>do</strong>ssiê de um psicólogo. Tradução, notas e<br />
posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras,<br />
1999.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 21/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 12/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 301
C L I P E<br />
UM RECADO À PRIMA HERMENÊUTICA EM UM<br />
ASSOVIO DE QORPO-SANTO<br />
Alessandra Fabrícia Conde da Silva<br />
Ufes<br />
Resumo: As peças de Qorpo-<strong>Santo</strong> ultrapassam as noções de<br />
absur<strong>do</strong> e de surrealismo. São textos que apresentam imagens<br />
confusas, disformes, caricatas e não racionais. Um assovio apresenta<br />
uma trama burlesca, cuja melodia é dissonante, incômoda e risível, o<br />
que não deixa de ser genial quan<strong>do</strong> tentamos entender o reca<strong>do</strong> que<br />
a obra proporciona. Autores como Eudinyr Fraga, Mikhail Bakhtin e<br />
Wolfgang Kayser ampararão de mo<strong>do</strong> crítico-teórico o nosso estu<strong>do</strong><br />
sobre o autor gaúcho.<br />
Palavras-chave: Qorpo-<strong>Santo</strong>. Um assovio. Surrealismo. Absur<strong>do</strong>.<br />
Abstract: The Qorpo-<strong>Santo</strong>’s play beyond the notions of absurd<br />
and surrealism. They are texts that present confused, deformed,<br />
ridiculous and not rational images. Um assovio presents a burlesque<br />
plot, whose melody is grating, annoying and laughable, which <strong>do</strong>es<br />
not leave to be great when trying to understand the message that<br />
work brings. Authors such as Eudinyr Fraga, Mikhail bakhtin and<br />
Wolfgang Kayser will abet our critical-theoretical study of the<br />
gaúcho author.<br />
Keywords: Qorpo-<strong>Santo</strong>. Um assovio. Surrealism. Absurd.<br />
O ABSURDO, O SURREALISMO E QORPO-SANTO<br />
A palavra absur<strong>do</strong> quer dizer, literalmente, fora de harmonia. Na<br />
tentativa de se estruturar o conceito de absur<strong>do</strong> compreende-se que<br />
não há esperança, não há ideologia e sim a alienação de tu<strong>do</strong>. Assim,<br />
notamos que há<br />
a falta de uma mensagem ideológica, ou seja, um teatro<br />
aliena<strong>do</strong>, [e que está] preocupa<strong>do</strong> em mostrar as angústias<br />
particulares <strong>do</strong>s seus cultores, recusan<strong>do</strong> a realidade que<br />
nos cerca e ignoran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os problemas sociais existentes<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
– e prementes (FRAGA, 1988, p. 31).<br />
Em Qorpo-<strong>Santo</strong> não há essa alienação. Apesar de haver elementos<br />
presentes no absur<strong>do</strong>, as peças não podem ser caracterizadas como<br />
tal, haja vista que são feitas críticas sociais, utilizan<strong>do</strong> as técnicas<br />
<strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> absur<strong>do</strong>. O teatro de Qorpo-<strong>Santo</strong> não é racional, é,<br />
antes, não cerebral. Não é fruto de um labor intelectual, racional, mas<br />
manipula a linguagem na tentativa de “analisar (...) um universo que<br />
(...) parece enigmático e hostil” (FRAGA, 1988, p. 22). Eudinyr Fraga<br />
(1988, p.23) ainda comenta:<br />
O teatro de Qorpo-<strong>Santo</strong> parte de um esquema habitual<br />
ao teatro de costumes da sua época, mas, por força <strong>do</strong><br />
automatismo psíquico, de uma escrita automática que<br />
utiliza (ou que o utiliza...) sem cessar, ultrapassa-o e dele<br />
se distancia completamente, fragmentan<strong>do</strong> o fulcro inicial<br />
e transforman<strong>do</strong>-se em algo completamente diferente,<br />
repleto de elementos que, mais tarde, se constituirão como<br />
componentes de um teatro dito “surrealista”.<br />
Para Fraga (apud TELES, 1988, p. 37), o surrealismo se define como:<br />
Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe<br />
exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer<br />
outra maneira, o funcionamento real <strong>do</strong> pensamento.<br />
Dita<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento, na ausência de to<strong>do</strong> o controle<br />
exerci<strong>do</strong> pela razão, fora de qualquer preocupação estática<br />
ou moral. Encicl. Filos. O Surrealismo assenta na crença<br />
da realidade de certas formas de associação negligenciadas<br />
até aqui, no sonho to<strong>do</strong>-poderoso, no jogo desinteressa<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> pensamento. Tende a arruinar definitivamente to<strong>do</strong>s os<br />
outros mecanismos psicológicos e a substituir-se a eles na<br />
solução <strong>do</strong>s principais problemas da vida.<br />
Em desacor<strong>do</strong> com o Absur<strong>do</strong>, o Surrealismo busca a solução <strong>do</strong>s<br />
problemas da vida. E para isso busca a integração <strong>do</strong> homem <strong>do</strong><br />
ocidente com o universo.<br />
Essa integração foi perdida momentaneamente e é passível<br />
de ser recuperada, quan<strong>do</strong> desaparecer a dualidade:<br />
realidade visível e realidade perceptível. No Surrealismo, o<br />
homem não está sen<strong>do</strong> mas pode ser, porque o universo não é<br />
vazio de significações: no Teatro <strong>do</strong> Absur<strong>do</strong> o homem não<br />
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C L I P E<br />
está sen<strong>do</strong> porque jamais poderá ser (FRAGA, 1988, p. 106).<br />
Assim, na visão surrealista há uma esperança para o homem, para<br />
o seu dualismo, suas angústias geradas mediante a duplicidade das<br />
realidades. Uma realidade é a convencional, a que fere, mascara e<br />
molda o homem, conduzin<strong>do</strong>-o a um esta<strong>do</strong> de constante agonia. A<br />
outra realidade é a perceptível, a onírica, a que se oculta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
real, mas que está nele.<br />
A percepção desse mun<strong>do</strong> oculto é melhor apreendida quan<strong>do</strong> a<br />
mente é lançada à perturbações psíquicas. Os surrealistas tentavam<br />
reproduzir os efeitos dessas perturbações, cultivan<strong>do</strong> o automatismo<br />
psíquico cuja finalidade é o extravasar <strong>do</strong> inconsciente. No entanto<br />
essa prática é inautêntica, pois é fruto de atitude intelectual.<br />
É nesse universo que podemos introduzir as obras de Qorpo-<br />
<strong>Santo</strong>. Há uma diferença, no entanto. O automatismo psíquico <strong>do</strong><br />
dramaturgo gaúcho é autêntico. A sua grande dificuldade era manter<br />
os pés na realidade convencional. Os surrealistas procuravam aguçar<br />
os senti<strong>do</strong>s através de hipnose, tóxicos, delírios; fugin<strong>do</strong> da realidade;<br />
buscan<strong>do</strong> uma outra que estava oculta, estabelecida no entre-lugar da<br />
realidade, no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos.<br />
A sociedade agride o homem que não pode compreender o mun<strong>do</strong><br />
a sua volta; tão pouco consegue entender a si mesmo. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />
o surrealismo vem propor a recuperação desse mun<strong>do</strong>, através da<br />
fusão das antinomias, <strong>do</strong> equilíbrio entre o mun<strong>do</strong> exterior e mun<strong>do</strong><br />
interior. Nas peças de Qorpo-<strong>Santo</strong>, essa harmonia das duplicidades<br />
está presente e são colocadas num ambiente fantástico, maravilhoso<br />
em que tu<strong>do</strong> pode acontecer de forma perfeitamente, tranquilamente,<br />
normal. Esse é o grande axioma das peças e que também espelha a<br />
ideologia surrealista: a reconciliação <strong>do</strong> fantástico e <strong>do</strong> real, forman<strong>do</strong><br />
uma supra-realidade. A ruptura com a ordem natural <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com<br />
o estabelecimento de um universo regi<strong>do</strong> pelo fantástico, conduz<br />
à transgressão da realidade e conseqüente harmonia. Mas essa<br />
harmonia não exclui o pesar, a angústia. Ao contrário, nesse mun<strong>do</strong><br />
estão ora o pensamento <strong>do</strong> real, das convenções, ora o pensamento<br />
livre, das relações naturais.<br />
Em suas peças, Qorpo-<strong>Santo</strong> procurou demonstrar esses <strong>do</strong>is<br />
pensamentos e utiliza o humor, o riso, como recurso que equilibra<br />
as pressões sociais e as inquietações íntimas. Segun<strong>do</strong> Bakhtin (1999,<br />
p.10), “o riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo<br />
304 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
tempo burla<strong>do</strong>r [...]”. É burla<strong>do</strong>r porque se opõe à cultura popular<br />
e às exigências sociais. Um outro elemento presente nas peças é o<br />
burlesco. “O Grotesco... está em to<strong>do</strong> lugar; de uma parte, ele criou o<br />
disforme e o horrível; de outra, o cômico e o engraça<strong>do</strong>” (KAYSER,<br />
1986, p. 59). Wolfgang Kayser ainda define que (1986, p.159):<br />
no grotesco o mun<strong>do</strong> alheia-se, as forças distorcem-se, as<br />
ordens <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong> dissolvem-se (já na ornamentação<br />
grotesca se misturam os reinos <strong>do</strong> inanima<strong>do</strong>, das plantas,<br />
<strong>do</strong>s animais e <strong>do</strong>s homens; mais tarde os motivos, diletos<br />
da configuração grotesca são as marionetes, os bonecos de<br />
cera, ou então os loucos, os sonâmbulos, e sempre também<br />
animais mais que animalescos), um mecanismo me<strong>do</strong>nho<br />
parece ter caí<strong>do</strong> sobre as coisas e os homens.<br />
O grotesco muitas vezes tinge-se com as tintas <strong>do</strong> fantástico; afinal,<br />
para causar o efeito de estranhamento é necessário estar num mun<strong>do</strong><br />
fantasioso em que tu<strong>do</strong> é possível. Assim, “O obscuro foi encara<strong>do</strong>,<br />
o sinistro descoberto e o inconcebível leva<strong>do</strong> a falar” (Kayser, 1986,<br />
p. 162). O dilaceramento <strong>do</strong> autor, traduzi<strong>do</strong> na dualidade moral<br />
vigente versus “relações naturais”, utiliza o grotesco como elemento<br />
que possibilita a sua permanência num universo fantástico, sinistro,<br />
risível, transgressor, e que acaba por revelar as angústias, as tensões, ao<br />
mesmo tempo que mascara os anseios, as divagações e as aspirações<br />
<strong>do</strong> dramaturgo. Essa máscara, na verdade, é como o mun<strong>do</strong> o vê, ou<br />
como ele deve se apresentar ao mun<strong>do</strong>. Não é a sua essência, mas a<br />
usa imagem dissimulada. O grotesco vem a ser o elemento estético<br />
que propicia a reflexão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não a contestação ou a denúncia,<br />
mas o universo em que os mun<strong>do</strong>s podem se equilibrar.<br />
Nesse contexto, a dualidade estabelece-se na tensão moral vigente<br />
versus “relações naturais”. Qorpo-<strong>Santo</strong> (apud FRAGA, 1986, 76)<br />
comenta:<br />
Que tremenda a luta entre o meu espírito e a carne! Parece<br />
incrível o que em mim passa-se! Pinta-me a imaginação<br />
a necessidade indeclinável de ela voltar; aguça ao vê-la<br />
a ansiedade para n’ela tocar: sinto a força necessária que<br />
m’instiga; que m’excita... busco satisfazer; não encontro;<br />
ou não posso! Logo depois ocupa-me a idéia horrível <strong>do</strong>s<br />
tormentos <strong>do</strong> meu corpo; das torturas <strong>do</strong> meu espírito, não<br />
só pela prática de tal ato como mesmo tentativa! Ao mover-<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 305
C L I P E<br />
me em busca, o coração se me despedaça! ah! Quantos<br />
martírios forjam-se na minha imaginação que a minha pena<br />
agora cala!... Uma voz diz-me que veja; outra - que fuja! Que<br />
m’entretenha; outra – que m’abstenha! Uma – que passeie;<br />
outra – que esteja em casa!... E quanto mais oh! meu Deus...!<br />
A máscara posta sobre as personagens e a própria reflexão <strong>do</strong> autor<br />
sobre elas demonstra que apesar de querer expressar o seu mun<strong>do</strong><br />
próprio, cheio de tensões e angústias, há uma preocupação em não<br />
revelar-se por completo. Fraga (1986, p. 67) define:<br />
(...) Ele não se mostra por inteiro em ninguém, ele se acerca<br />
e se afasta, se dá e se recusa, se esconde e se revela. Ele<br />
se dissolve, se multifaceta em miríades de aspectos que se<br />
distribuem por to<strong>do</strong>s esses estranhos seres que povoam<br />
os textos... Qorpo-<strong>Santo</strong> tenta libertar-se <strong>do</strong> ambiente<br />
sufocante em que devia viver, e é o teatro que mais vai<br />
colaborar nessa fuga. Mas essa pretensa liberdade é<br />
perigosa, ele poderá ser reconheci<strong>do</strong>. Então será não apenas<br />
um indivíduo, mas diversos. Do Desejo e <strong>do</strong> Me<strong>do</strong>, nasce o<br />
drama. O Desejo de ser, o Me<strong>do</strong> de ser identifica<strong>do</strong>.<br />
Como reflexo dessa tensão Desejo e Me<strong>do</strong> está o fato de Qorpo-<br />
<strong>Santo</strong> fazer prédicas moralizantes nas peças, que nada mais são<br />
que “motivos cegos” – “falsos temas”, “falsas linhas de interesse”<br />
(FRAGA, 1986, p. 65) – que introduzem na obra uma atmosfera de<br />
instabilidade, de desconexão, de incômo<strong>do</strong> psicológico. Segun<strong>do</strong><br />
Fraga (1986, p. 104):<br />
(...) Quan<strong>do</strong> ele quer ser sério, preocupa<strong>do</strong> em ensinar e<br />
“fazer arte”, é repetitivo e mesmo maçante. Mas quan<strong>do</strong><br />
esquece as preocupações, surge o outro eu, irônico e<br />
brincalhão, e seu diálogo torna-se leve e ágil...<br />
Em geral, nas obras de Qorpo-<strong>Santo</strong> não há unidade de ação, de<br />
tempo e de espaço. A ação demanda que haja uma possibilidade de<br />
se estabelecer um sistema em um conjunto de ações, isto é, os fatos<br />
deveriam se encaixar harmoniosamente. O tempo e o espaço se<br />
confundem, conduzin<strong>do</strong> o leitor/especta<strong>do</strong>r a se ver numa espécie<br />
de sonho, de atmosfera de sonho. Na temática apresentada há furos<br />
nas teorias, o que dá a impressão de um texto instável. Segun<strong>do</strong><br />
Fraga (1986, p. 57), as peças de Qorpo-<strong>Santo</strong> são “(...) textos curtos,<br />
explosões ou “iluminações” de um cérebro perturba<strong>do</strong>”. Ainda<br />
306 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
acrescenta que<br />
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(...) a obra <strong>do</strong> dramaturgo gaúcho é, na sua totalidade, uma<br />
projeção mental, decorre de uma escrita automática, sem<br />
preocupações estéticas (o desenvolvimento desses textos<br />
não admite dúvidas a respeito) e cujo conflito único decorre<br />
<strong>do</strong> próprio conflito <strong>do</strong> autor com o mun<strong>do</strong>, onde o dualismo<br />
imaginação e realidade desaparece, surgin<strong>do</strong>, em seu lugar,<br />
uma síntese: a própria obra (FRAGA, 1986, p. 66).<br />
O insólito, o grotesco, o risível, a ironia são recursos estilísticos<br />
presentes na obra de Qorpo-<strong>Santo</strong>. Em Um assovio, essa marca<br />
estilística está presente com maestria. A unidade de ação é transgredida<br />
nessa peça. Mas ainda assim, diferente de muitas outras, pode-se ver<br />
uma fio de conexão. Uma mensagem à casa da prima Hermenêutica<br />
é enviada nessa peça. A Hermenêutica vem se debruçar sobre o<br />
estu<strong>do</strong> da interpretação <strong>do</strong>s textos escritos, debaten<strong>do</strong> ainda sobre a<br />
compreensão humana. Para isso devem ser considera<strong>do</strong>s os eventos<br />
históricos, os valores, a cultura. A finalidade se baseia em como utilizar<br />
o texto com um senti<strong>do</strong> prático, atribuin<strong>do</strong> um caráter didático. Mas o<br />
próprio conceito de Hermenêutica já é complexo. A compreensão ou<br />
apreensão de um senti<strong>do</strong> não se consegue facilmente, principalmente<br />
em Qorpo-<strong>Santo</strong>, com seu automatismo psíquico e dualidade de<br />
intenções e o seu constante revelar e mascarar as reflexões.<br />
Um assovio pode ser um chama<strong>do</strong> a prestar atenção em algo que está<br />
subliminar, no entre-lugar no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> real e <strong>do</strong> sonho. Um som<br />
que se espera melodioso, mas que se apresenta, para frustração das<br />
expectativas, como um ridículo e desenxabi<strong>do</strong> apito desafina<strong>do</strong>, mas<br />
que quer dizer algo; quer ser ouvi<strong>do</strong>, interpreta<strong>do</strong> e compreendi<strong>do</strong>.<br />
Daí o reca<strong>do</strong> à casa da prima Hermenêutica.<br />
O ENTREATO<br />
Assoviar, usan<strong>do</strong> o vocábulo na forma figurada é “avisar”, é<br />
“dar sinal” de alguma coisa, de um fato, de uma história, de um<br />
acontecimento, de uma mensagem, de um reca<strong>do</strong>. Qual sinal poderia<br />
haver em Um assovio de Qorpo-<strong>Santo</strong>? Que som sibilar poderíamos<br />
encontrar nessa comédia em que tanto ressoa o ridículo? Qual a<br />
intenção <strong>do</strong> ridículo? Porque a mudança de temática tão absurda?<br />
E será que a temática mu<strong>do</strong>u de fato? E porque a escolha de um<br />
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assovio ao invés de uma música?<br />
Nos três primeiros atos a comédia revela algumas situações<br />
corriqueiras, ainda que beirem o absur<strong>do</strong>; são situações banais, e<br />
inusitadas algumas vezes, em que o ridículo é o elemento que torna as<br />
cenas estapafúrdias, irracionais e, por assim dizer, ilógicas. Mas esse<br />
mesmo ridículo deixa a história cômica. Entreato e quadro parecem<br />
destoar <strong>do</strong> corpo inicial da comédia. Analisan<strong>do</strong> esse entreato, que<br />
parece tão absur<strong>do</strong> quanto os três primeiros atos, a melodia da<br />
comédia parece dissonante ainda mais.<br />
A personagem Jerônimo de Aviz prepara-se para tocar uma música<br />
em sua flauta, ao menos é isso o que o leitor/especta<strong>do</strong>r espera que<br />
aconteça, mas absurdamente, ridiculamente, o que acontece é um<br />
“destempera<strong>do</strong> assovio”. O flautista tenta novamente retirar <strong>do</strong><br />
seu instrumento uma sonoridade agradável, a qual to<strong>do</strong>s estavam<br />
esperan<strong>do</strong>, mas foi em vão. Comicamente, ele diz, tentan<strong>do</strong><br />
desculpar-se: “Senhores, deu o tétano na minha flauta! Desculpem;<br />
desculpem!”. Jerônimo não é um impostor; ele sabe manusear bem<br />
o seu instrumento, mas por alguma razão somente o som de um<br />
assovio pode ser retira<strong>do</strong> da flauta.<br />
Ao invés de música, de melodia, um assovio; ao invés de uma<br />
comédia de costumes normal, um absur<strong>do</strong>, um ridículo, configura<strong>do</strong><br />
numa história “irracional”, mas nem tanto. No entreato surge a<br />
sensação de absur<strong>do</strong>, de perda da meada da história, de desalinho,<br />
de desafino. Qual a ligação <strong>do</strong> flautista com a história abordada nos<br />
três atos anteriores? Ao que parece nenhuma ligação há diretamente,<br />
a não ser pelo fato de representar um eco da mensagem já assinalada<br />
no início da comédia. É como se o flautista, ainda que capaz de tirar<br />
da flauta um som especial, retira o decepcionante assovio, o que<br />
gera comicidade, mas, ao mesmo tempo, pode sugerir uma reflexão.<br />
Reflexão sobre um algo não explícito, pois não é uma música que<br />
pode ser ouvida claramente e que cause comoção, mas um sinal<br />
sonoro que chama atenção para o oculto, para o subliminar, e que<br />
pode ser reconheci<strong>do</strong>, nota<strong>do</strong> e apreendi<strong>do</strong>.<br />
Nisto podemos perceber que uma melodia já fora tocada, ainda que<br />
nem o leitor ou especta<strong>do</strong>r a tivesse escuta<strong>do</strong>, pois somente os alunos de<br />
Jerônimo a ouviram. Implicitamente a idéia da música anteriormente<br />
tocada está presente. E o que se percebe é que, intencionalmente, o<br />
entreato vem a especificar que ao leitor/especta<strong>do</strong>r basta somente<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
o chama<strong>do</strong> a prestar atenção ao aviso, ao assovio. Com o fim <strong>do</strong><br />
entreato desce o pano e parece que finda a comédia. Mas retornam<br />
to<strong>do</strong>s mascara<strong>do</strong>s no quadro e dançam e cantam, com instrumentos<br />
musicais, em mãos, e esperam pelo momento apoteótico em que<br />
a música será entoada; fazem silêncio; aguardam a melodia; mas<br />
eis que ouvem um níti<strong>do</strong> “fi...... u......” e termina a comédia. Os<br />
personagens mascara<strong>do</strong>s comemoram a vida, esquecem as tensões<br />
da realidade. E mesmo essa comemoração musical é feita de forma<br />
desbragada, caricata. A melodia tocada é na verdade uma antimúsica,<br />
pois satiriza, ridiculariza a harmonia e a impossibilidade de se tirar<br />
<strong>do</strong>s instrumentos um bom som. Os instrumentos estão desgasta<strong>do</strong>s,<br />
desafina<strong>do</strong>s, mas ainda assim é possível rir da incapacidade, <strong>do</strong><br />
impedimento, <strong>do</strong> não convencionalismo musical, da dissonância.<br />
Com a entrada de “to<strong>do</strong>s” no quadro, percebe-se a ligação entre<br />
entreato e atos, num fio de legitimação da mensagem sibilar revelada<br />
nos atos iniciais. O quadro vem reforçar o que no entreato já fora<br />
sugeri<strong>do</strong>. Mas esta visão só será pertinente, se entendermos que o<br />
“to<strong>do</strong>s”, explicita<strong>do</strong> no quadro, refere-se à presença <strong>do</strong>s personagens<br />
<strong>do</strong>s atos e <strong>do</strong> entreato.<br />
Não se quer na comédia passar verdades, moralismos, enfatizar<br />
<strong>do</strong>gmas, preceitos, mas de forma caricata e cômica permitir que o<br />
leitor/especta<strong>do</strong>r capte a mensagem/reca<strong>do</strong> ou mensagens que<br />
estão sen<strong>do</strong> enviadas à casa da “prima Hermenêutica”. E mesmo<br />
essa mensagem não é arbitrária. A interpretação é particular, pode<br />
ficar somente no campo da comédia, <strong>do</strong> divertimento, <strong>do</strong> ridículo,<br />
<strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, mas pode ser revestida de significações mais profundas,<br />
como um chama<strong>do</strong> à análise das relações humanas, por exemplo; da<br />
opressão social, religiosa, <strong>do</strong>s desejos naturais. Assim, transgredir as<br />
fronteiras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> real, é alienar o <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r e sua linguagem<br />
intransitiva e eterna. A linguagem <strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong> é uma digressão ao<br />
padrão, ao não estranho. É uma linguagem de transformação, que<br />
discorda <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que burla os conceitos (BARTHES, 1985, p.169).<br />
O reca<strong>do</strong> presente em Um assovio requer uma interpretação<br />
subliminar, intratextual, e possível de se considerar as tensões <strong>do</strong><br />
autor. Não é uma música que podemos ouvir, embora esperemos<br />
por ela, pois esse é o comum; ouviremos somente um assovio, um<br />
aviso, um chama<strong>do</strong> a prestarmos atenção à vida, ou podemos ignorar<br />
o aviso, a convocação, uma significação previamente explicitada no<br />
texto, e nos atermos à capa ficcional, cômica, absurda e ridícula que<br />
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reveste as personagens nas mais inusitadas situações.<br />
Não há uma gratuidade ideológica no texto, mas há imagens simbólicas<br />
que podem expressar múltiplas significações. Possibilidades que<br />
apresentam o desacor<strong>do</strong> social e o desalinho com os padrões naturais.<br />
Os discursos das personagens dão-nos uma idéia de querer passar<br />
uma verdade, uma mensagem, mas logo há o atropelo, a quebra <strong>do</strong><br />
pensamento original e logo se perde o senti<strong>do</strong> que se pensou existir;<br />
as intenções ficam, de certa forma, dissimuladas, escondidas sobre<br />
a máscara <strong>do</strong> grotesco e <strong>do</strong>s saltos <strong>do</strong>s acontecimentos. A suprarealidade,<br />
como dizem os surrealistas, embora Qorpo-<strong>Santo</strong> não<br />
seja um, mas seu estilo se assemelhe ao deles, revela um universo<br />
de angústias, de duplicidade, de tensão. O mun<strong>do</strong> de Qorpo-<strong>Santo</strong><br />
é um mun<strong>do</strong> fantástico em que tu<strong>do</strong> é possível. As personagens<br />
encaram um nariz que se desprega, ou um pedaço dele, e que depois<br />
é recoloca<strong>do</strong> no lugar, com a maior naturalidade, como vemos<br />
no ato primeiro. A bizarrice da cena nos faz recordar da obra <strong>do</strong><br />
século XIX, O nariz de Gogol, em que “um nariz se desprende <strong>do</strong><br />
rosto de seu proprietário e, transforma<strong>do</strong> em pessoa, leva uma vida<br />
independente; a seguir, volta ao seu lugar” (TODOROV, 1975, p. 79).<br />
Mas enquanto em Gogol o nariz se personifica e tem uma função<br />
amplamente significativa; na comédia de Qorpo-<strong>Santo</strong>, o nariz é<br />
somente um sinaliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ridículo, <strong>do</strong> cômico. Em<br />
Mateus e Mateusa, outra comédia de Qorpo-<strong>Santo</strong>, partes <strong>do</strong> corpo<br />
também desabam. Outras partes são nada mais que implantes, que<br />
acessórios artificiosos, instrumentos de uma farsa que apenas quer<br />
assinalar o riso. E essa mesma sinalização é vista no patético assovio<br />
<strong>do</strong> flautista.<br />
UM RECADO À “PRIMA HERMENÊUTICA”<br />
Qual é a mensagem em Um assovio? Qual música pode-se escutar?<br />
É possível escutar alguma? Há um maestro: Gabriel Galdino. Há<br />
um coral: as demais personagens. Há uma partitura na qual as notas<br />
musicais são <strong>do</strong>bradas, são repetidas, permitin<strong>do</strong> que personagens se<br />
assemelhem, que uma seja o reflexo da outra e que suas vozes ecoem<br />
conjuntamente no coro.<br />
Na comédia, Gabriel é o maestro que rege todas as situações e<br />
discursos. Sempre cantan<strong>do</strong> o seu “troleró, troró” e dançan<strong>do</strong> e<br />
bancan<strong>do</strong> o bobo estapafúrdio, segue demonstran<strong>do</strong> uma in<strong>do</strong>lência<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ridícula, a glutonaria, a devassidão e uma única preocupação em<br />
manter o ócio. Mas a imagem de bobo é falsa, e embora in<strong>do</strong>lente e<br />
perverti<strong>do</strong>, ele é antes um astucioso e hábil personagem, ainda que o<br />
seja de forma ridícula. E poderia perfeitamente ter trama<strong>do</strong> um plano<br />
para casar a filha Esméria, cujo nome sugere perfeição. O tempo em<br />
que trabalhou para Fernan<strong>do</strong> foi uma época de descobertas. Descobriu<br />
os segre<strong>do</strong>s e gostos <strong>do</strong> patrão. Soube <strong>do</strong> seu relacionamento com<br />
uma mulher chamada Luduvina. Interesseiro e astucioso retirava de<br />
Fernan<strong>do</strong> o pagamento de seu silêncio: “GABRIEL (à parte) – Por<br />
isso é que muitas vezes eu chupo-lhe o dinheiro, faço d’amo! Tem<br />
segre<strong>do</strong>s, que eu sei; e que ele não quer que sejam revela<strong>do</strong>s!”.<br />
A astúcia em esconder a filha e só revelá-la em momento oportuno<br />
demonstra a sua esperteza (como um bom “mensageiro” que chega<br />
na hora exata para revelar a verdade ou dar a significação <strong>do</strong> mistério<br />
ou revelá-lo) e sugere a manutenção de um plano pré-concebi<strong>do</strong> para<br />
casar o patrão com a filha, ainda mais quan<strong>do</strong> afirma antes mesmo<br />
que Fernan<strong>do</strong> visse Esméria: ”GABRIEL – (...) e por isso mesmo<br />
far-lhe-ei em breve minhas despedidas”. Despedidas que poderiam<br />
ser unicamente pelo fato de aban<strong>do</strong>nar o patrão em busca de um<br />
outro ou porque deixaria o patrão para tornar-se seu sogro. Além<br />
disso, no início <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ato, Luduvina, a esposa de Gabriel,<br />
afirma: “Graças a Deus que já se pode vir a esta casa”. E é a partir<br />
desse momento que Fernan<strong>do</strong> descobre a filha de Gabriel. Esméria<br />
entra logo em seguida na sala <strong>do</strong> patrão de seu pai, o que sugere que<br />
somente no momento certo, com a permissão de Gabriel, é que seria<br />
autoriza<strong>do</strong> que a moça se mostrasse a Fernan<strong>do</strong>. O ardil está pronto e<br />
captura o patrão. Este se rende aos encantos da resguardada Esméria<br />
e aceita as ‘condições’ preconizadas por Gabriel.<br />
GABRIEL – (...) O Ilmo° Sr. Dr. Fernan<strong>do</strong> há de ser uma<br />
espécie, ou um verdadeiro cria<strong>do</strong> fiel de minha filha; e há<br />
de declará-lo em uma folha de papel, escrita por tabelião<br />
e assinada pelo juiz competente; o <strong>do</strong>s casamentos ou <strong>do</strong>s<br />
negócios civis. Etc. etc. e etc. Com a satisfação de todas<br />
essas condições, ou seu preenchimento, a minha muito<br />
querida filha, se quiser, será sua mulher. Fora delas, ou sem<br />
elas, não falaremos, tocaremos mais sobre tão melindroso<br />
assunto.<br />
Gabriel é agora sogro de Fernan<strong>do</strong> de Noronha e passa a gozar das<br />
benesses que a posição social lhe permite. Eis então uma questão<br />
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interessante: ascender socialmente demanda um jogo de interesses,<br />
de subterfúgios, de astúcia e sagacidade. As relações humanas são<br />
pautadas por esse jogo de interesse. O “<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>” Gabriel insurgese<br />
contra a sua condição de cria<strong>do</strong> e torna-se um patrão. Mas a sua<br />
astúcia só serviu para conquistar a elevação social e seus privilégios;<br />
continuou o mesmo in<strong>do</strong>lente perverti<strong>do</strong> de sempre; regen<strong>do</strong> ainda<br />
o andamento da trama com irreverência e importunan<strong>do</strong> a criada<br />
Luduvica.<br />
No terceiro ato aparece esta criada que é assediada constantemente<br />
por Gabriel. Num ato idealista ela se lança contra os seus algozes<br />
com um punhal na mão. Oprimida pelos patrões, e ten<strong>do</strong> cessa<strong>do</strong> já<br />
to<strong>do</strong>s os argumentos de defesa, ela conclui:<br />
LUDUVICA – Que farão os três pan<strong>do</strong>rgas. (Passan<strong>do</strong> e<br />
vigian<strong>do</strong>-os ora com o rabo de um, ora com o rabo de outro<br />
olho.) Que esperarão eles! Pensarão eles que me hão de<br />
continuar a massar!? Estão bem servi<strong>do</strong>s! Eu componho; eu<br />
agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quan<strong>do</strong><br />
esta está a tu<strong>do</strong> resolvida, ou mesmo quan<strong>do</strong> apenas quer<br />
mangar com algum homem! (Puxa, passean<strong>do</strong>, um punhal<br />
que ocultava no seio e conserva-o escondi<strong>do</strong> na manga <strong>do</strong><br />
vesti<strong>do</strong>.) Estes (à parte) meus amos são uns poltrões; eu faço<br />
daqui carreira, faço brilhar o punhal; eles. Ou me hão deixar<br />
passar livremente, ou caem por terra mortos de terror;<br />
e não só por serem uns comilões, uns poltrões, também<br />
porque... não direi mas o farei! (Volta-se repentinamente;<br />
faz brilhar o punhal; avança-se para eles; os <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s caem<br />
cada qual para seu la<strong>do</strong>, e o <strong>do</strong> centro para diante; ela salta<br />
em cima deste, volta-se para o público e grita levantan<strong>do</strong> o<br />
punhal!) Eis-me pisan<strong>do</strong> um homem, como um carancho<br />
[a] um cavalo morto! Quan<strong>do</strong> a força da razão, <strong>do</strong> direito<br />
e da justiça, empregada por atos e por palavras, não for<br />
bastante para triunfar, lançai mão <strong>do</strong> punhal... e lançai por<br />
terra os vossos indignos inimigos, como fiz e vedes a estes<br />
três algozes! (Desce o pano, passa<strong>do</strong>s alguns minutos. E assim<br />
finda o terceiro ato.)<br />
O discurso idealista proferi<strong>do</strong> pela criada ecoa ainda mais o sinal<br />
que se pode apreender na comédia. Num gesto extremo, após terem<br />
si<strong>do</strong> feitas as argumentações cabíveis e não haven<strong>do</strong> solução, o<br />
desespero acaba conduzin<strong>do</strong> o oprimi<strong>do</strong> à violência, às armas. O<br />
312 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
convite feito na comédia não é à violência real, mas à não aceitação<br />
das arbitrariedades e <strong>do</strong>s desman<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s que detém o poder.<br />
Outro elemento que pode ser identifica<strong>do</strong> na peça é a voz feminina<br />
livre, consciente de seus direitos e de sua força: “LUDUVICA –<br />
(...) eu agora mostro-lhes o que é a força de uma mulher, quan<strong>do</strong><br />
está a tu<strong>do</strong> resolvida, ou mesmo quan<strong>do</strong> apenas quer mangar com<br />
algum homem!”. Aliás, essa é uma particularidade da comédia. As<br />
personagens femininas são distintas, têm voz ativa, imiscuin<strong>do</strong>-se<br />
na trama com invulgar presença, como detentoras de uma verdade<br />
própria, de um senso de justiça, de responsabilidade. Em oposição<br />
às personagens masculinas, elas representam a razão. E apesar disso,<br />
ainda são <strong>do</strong>minadas, incomodadas pelos caprichos arbitrários e<br />
ridículos. O mun<strong>do</strong> em que elas vivem é ainda um mun<strong>do</strong> fálico.<br />
Desde o início da comédia o controle é masculino; no final <strong>do</strong><br />
terceiro ato há a ligeira erupção feminina.<br />
Na rubrica <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ato, Luduvina é apresentada como “velha<br />
feia e com presunções e ares de feiticeira”. Essa presunção a faz<br />
parecer autoritária, controla<strong>do</strong>ra: “LUDUVINA – (...) Deixem – [n]<br />
os por minha conta; hei de pôr-lhes freios e lei, e em toda a sua<br />
grei”. Gabriel não cansa de afirmar que sua mulher é uma “santa de<br />
maldade”, o que leva a concluir que era obstinada e dura, e sen<strong>do</strong><br />
ele um “poltrão” e “comilão”, o jeito era “aturá-lo”, como afirma o<br />
folgazão em seu cinismo habitual.<br />
A criada assemelha-se bastante com a esposa de Gabriel. Além da<br />
aproximação <strong>do</strong>s nomes de ambas as personagens, Luduvina tem<br />
“ares de feiticeira”, mas é Luduvica quem acaba por revelar o suposto<br />
destino de Gabriel: morto ou feri<strong>do</strong> por causa de suas prevaricações.<br />
Aquilo que Luduvica disse que Luduvina poderia fazer com o<br />
mari<strong>do</strong>, acabou a criada mesmo fazen<strong>do</strong>, mas Fernan<strong>do</strong> de Noronha<br />
foi o alvo principal, embora Gabriel tenha senti<strong>do</strong> o terror da cena:<br />
“LUDUVICA – E que remédio o Sr. terá, senão assim proceder,<br />
ou humilhar-se!? Se o não fizer, ela o ferirá; o Sr. Há de morrer, ou<br />
ela se matar!”. Suas asserções proféticas ainda que tenham destoa<strong>do</strong><br />
um pouco <strong>do</strong> reca<strong>do</strong> inicial, acabam por aproximá-la de Luduvina<br />
quanto ao “ar de feiticeira”; como aquela que se imiscuiu com o<br />
oculto, que faz poções, ou profere palavras que irão interferir na vida<br />
das pessoas, tornan<strong>do</strong> essas palavras índices <strong>do</strong> destino. Se ela errou<br />
o alvo, a palavra, no entanto, tornou-se realidade.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 313
C L I P E<br />
O nome completo da criada é Luduvica Antônia da Porciúncula, isto<br />
é, uma porção pequena de Luduvina, uma amostra da outra. Eis a<br />
repetição das notas musicais na comédia. Luduvica e Luduvina se<br />
assemelham ainda que difiram em idade. Ambas são trabalha<strong>do</strong>ras<br />
e têm que aturar Gabriel. Este rechaça a esposa por ser velha (ainda<br />
que esta se insinue), mas procura a criada. Aproximam-se também<br />
as personagens masculinas. Estes são, na verdade, uns poltrões,<br />
in<strong>do</strong>lentes e glutões; caricaturas grosseiras que somente causam o<br />
riso. Já o nome Pulquéria, com o qual graceja Gabriel com respeito a<br />
sua esposa, é uma ironia à sua beleza, ou à falta desta; uma agressão,<br />
na verdade. “GABRIEL – Ora explique-me Sra. Pulquéria, a sua<br />
asserção; eu não enten<strong>do</strong> bem”.<br />
É difícil entender bem a comédia. Procurar um senti<strong>do</strong> lógico que<br />
satisfaça os padrões comuns de interpretação não é uma tarefa<br />
fácil em Qorpo-<strong>Santo</strong>, mesmo porque o enre<strong>do</strong> não é linear e,<br />
consequentemente, não há concatenação das idéias e sim saltos<br />
de acontecimentos. João Roberto Faria (1998, p.86) alerta para a<br />
vizinhança com o coq-à-l’âne: “ passagem sem transição e sem motivo<br />
de um assunto para outro”. O entreato de Um assovio, em relação aos<br />
três primeiros atos, é um <strong>do</strong>s muitos exemplos de coq-à-l’âne que se<br />
pode capturar nas peças de Qorpo-<strong>Santo</strong>.<br />
As comédias <strong>do</strong> autor gaúcho aproximam-se das farsas – embora não<br />
o sejam – que se debruçam sobre a violência. Segun<strong>do</strong> Eric Bentley<br />
(apud FARIA, 1998, p. 80), “sem agressão a farsa não funciona”. Em<br />
Um assovio, a violência também é verbal, ás vezes é irônica, outras<br />
beira à agressão física. O objetivo da agressão, da violência é causar o<br />
riso. A farsa propicia o riso que é alimenta<strong>do</strong> pelo rebaixamento <strong>do</strong><br />
eleva<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que tinha alto valor, seguin<strong>do</strong> o conceito bakhtiniano. As<br />
personagens são caricatas e representam o que tem de mais baixo na<br />
sociedade. Para Faria, (1998, p. 85), “as personagens são medíocres,<br />
moral e intelectualmente; to<strong>do</strong>s os ridículos são aborda<strong>do</strong>s e<br />
satiriza<strong>do</strong>s”.<br />
O teatro da farsa, diz-nos Bentley (apud FARIA, 1998, p. 79),<br />
é o teatro <strong>do</strong> corpo humano, mas de um corpo num esta<strong>do</strong><br />
tão distante <strong>do</strong> natural quanto a voz de Chaliapin está longe<br />
de minha voz ou <strong>do</strong>s leitores. È um teatro em que, embora<br />
os fantoches sejam homens, os homens são superfantoches.<br />
É o teatro <strong>do</strong> corpo surrealista.<br />
314 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O corpo em Um assovio, em semelhança a outras composições<br />
de Qorpo-<strong>Santo</strong> como Mateus e Mateusa é um corpo dilacera<strong>do</strong>,<br />
caricato, sujeito ao mais profun<strong>do</strong> rebaixamento moral, o que acaba<br />
conduzin<strong>do</strong> ao riso. Partes <strong>do</strong> corpo que caem e que são recoloca<strong>do</strong>s<br />
em seguida, sem qualquer objetivo aparente; o apelo sexual,<br />
principalmente vin<strong>do</strong> de mulheres de idade avançada. Em Mateus<br />
e Mateusa, a octogenária Mateusa reivindica relação sexual com seu<br />
mari<strong>do</strong> também octogenário. Luduvina, em Um assovio, insinua-se<br />
para seu mari<strong>do</strong> Gabriel, que a rejeita; afinal, Luduvina é uma “velha<br />
feia com ares de feiticeira”.<br />
Esméria man<strong>do</strong>u um reca<strong>do</strong> à “prima Hermenêutica”. E para se<br />
conseguir a compreensão, o senti<strong>do</strong>, de Um assovio é necessário<br />
adentrar num mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> e <strong>do</strong> surrealismo, para que enfim<br />
se consiga a interpretação, ou interpretações. Segun<strong>do</strong> Flávio Aguiar<br />
(apud FARIA, 1998, p. 92-93):<br />
se Qorpo-<strong>Santo</strong> é, em parte, um precursor <strong>do</strong> Teatro <strong>do</strong><br />
Absur<strong>do</strong>, ele é, entes, o precursor de si próprio. Paralisa<strong>do</strong><br />
pelas próprias condições, que nenhum público constante<br />
aju<strong>do</strong>u a resolver, seu teatro tornou-se esse amplo painel<br />
onde é possível projetar as vocações surrealistas, os impulsos<br />
brechtianos, as sensações <strong>do</strong> Absur<strong>do</strong>, e, certamente, muitas<br />
outras coisas que até agora sequer se imaginaram.<br />
O teatro de vanguarda, a qual as comédias de Qorpo-<strong>Santo</strong> costumam<br />
ser associadas, enfocam diversas tendências. E talvez por isso ainda se<br />
apresente de uma maneira vívida e instigante. A significação de suas<br />
peças, como já foi bastante assinala<strong>do</strong>, apresenta uma simbologia<br />
fluida que não objetiva um conceito concreto, fato ou história, mas<br />
que possibilita leituras, pois enfoca a relação com o natural, com o<br />
que é orgânico e inerente ao ser humano; ainda que esta visão seja<br />
turva por conta <strong>do</strong> impedimento <strong>do</strong> autor em sua disfunção psíquica.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 315
C L I P E<br />
REFERÊNCIAS<br />
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no<br />
Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. Trad. de Yara<br />
Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb,1999.<br />
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e<br />
Pedro de Souza. São Paulo: Difel, 1985.<br />
FARIA, João Roberto. O teatro na estante. Cotia: Ateliê, 1998.<br />
FRAGA, Eudinyr. Qorpo-<strong>Santo</strong>: surrealismo ou absur<strong>do</strong>? São Paulo:<br />
Perspectiva. 1988.<br />
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura.<br />
Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986.<br />
QORPO-SANTO. Teatro completo. Rio, MEC-SEAC-FUNARTE-<br />
SNT, 1980.<br />
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de<br />
Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.<br />
316 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 12/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 21/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
CARTOGRAFIAS INSTÁVEIS: PERCURSOS PELA<br />
CIDADE DE NO PAÍS DAS ÚLTIMAS COISAS,<br />
DE PAUL AUSTER<br />
Rafaela Scardino<br />
Ufes<br />
Resumo: Anna Blume, protagonista de No país das últimas coisas,<br />
de Paul Auster, viaja para uma cidade em que “a única coisa que<br />
conta é permanecer de pé”, um lugar em que nada perdura: deve-se<br />
buscar novos significa<strong>do</strong>s a to<strong>do</strong> momento, pois, neste lugar, alguém<br />
“só sobrevive se nada lhe for necessário”. Partin<strong>do</strong> de considerações<br />
sobre o romance <strong>do</strong> autor norte-americano e de teorias sobre o<br />
espaço na contemporaneidade, discutiremos a encenação literária das<br />
relações de produção de subjetividade nos instáveis cenários urbanos<br />
contemporâneos.<br />
Palavras-chave: Paul Auster. Espaços urbanos. Literatura<br />
contemporânea.<br />
Abstract: Anna Blume, protagonist of Paul Auster’s In the country<br />
of last things, travels to an unnamed city in which “the only thing<br />
that counts is staying on your feet”, a place where nothing lasts:<br />
significances should be constantly pursuit, for, in this city, “you can<br />
survive only if nothing is necessary to you”. Using contemporary<br />
theories about space and the analysis of Auster’s novel, we will discuss<br />
the literary depiction of the relations involved in how is subjectivity<br />
produced within the unstable contemporary urban spaces.<br />
Keywords: Paul Auster. Urban Spaces. Contemporary literature.<br />
As cidades <strong>do</strong>s textos de Paul Auster oferecem como sua principal<br />
característica a instabilidade, tanto de posições – conduzin<strong>do</strong> ao<br />
imperativo <strong>do</strong> deslocamento – quanto de identidades. Logo no<br />
princípio <strong>do</strong> romance No país das últimas coisas, a personagem Anna<br />
Blume adverte:<br />
O essencial é não se acostumar, pois os hábitos são mortais.<br />
Ainda que seja pela centésima vez, você deve tomar as coisas<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 317
C L I P E<br />
como se nunca as tivesse visto. Pouco importa o número de<br />
vezes anteriores, cada uma tem de ser sempre a primeira.<br />
Isso é quase impossível, eu sei, mas é uma regra absoluta 41 .<br />
As regras da cidade não podem ser generalizadas, nem transferidas<br />
de um território para outro, pois a cidade não constitui um lugar<br />
antropológico, ou seja, não faz parte daquilo que é próprio, comum<br />
ao sujeito. Se lugares, na definição de Marc Augé 42 , se caracterizam<br />
por históricos, identitários e relacionais, a cidade descrita por<br />
Anna 43 nos oferece muitas das características <strong>do</strong>s não-lugares, como<br />
a necessidade de assumir identidades previamente definidas e a<br />
hostilidade em relação à permanência, tanto de indivíduos quanto<br />
de comportamentos, além de ser marcada pela incerteza, pois “quem<br />
mora na cidade não tem garantia de nada” (NPUC, p. 9), e pelo signo<br />
da instabilidade, conceito fundamental para nossa compreensão <strong>do</strong>s<br />
espaços urbanos na obra <strong>do</strong> autor norte-americano. Essa última<br />
característica é, possivelmente, a mais perturba<strong>do</strong>ra para Anna em<br />
seu contato com a cidade, por impedir a consolidação de quaisquer<br />
referências constantes: “uma casa está aqui num dia e, no outro,<br />
sumiu. Uma rua pela qual você passou ontem já não existe hoje. Até<br />
mesmo o clima flui constantemente” (NPUC, p. 9).<br />
Anna vai para a cidade em busca de seu irmão, William, um jornalista<br />
envia<strong>do</strong> ao país com o propósito de produzir uma série de reportagens<br />
para um periódico de sua terra natal, mas que deixou de se comunicar<br />
com a redação há mais de nove meses. Decidida a encontrá-lo, ela<br />
embarca num navio de que é a única passageira. O primeiro contato<br />
com a cidade é amedronta<strong>do</strong>r: o navio aporta à noite e, na praia<br />
completamente escura, Anna tem a impressão de estar “entran<strong>do</strong><br />
num mun<strong>do</strong> invisível, num lugar onde só moravam cegos” (NPUC,<br />
p. 22). O endereço <strong>do</strong> jornal é, para ela, uma fonte de segurança, um<br />
ponto de partida para sua busca, mas, ao chegar ao local indica<strong>do</strong>,<br />
41 AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São<br />
Paulo: Best Seller, s/d1, p. 13.<br />
Para as seguintes citações deste texto, utilizaremos as iniciais NPUC e o número<br />
de página referente a essa edição<br />
42 AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.<br />
Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus,<br />
1994.<br />
43 Durante to<strong>do</strong> a narrativa, a cidade descrita por Anna Blume em<br />
sua carta jamais é nomeada.<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
descobre que a rua mesma desapareceu: “não era que o escritório<br />
estivesse desocupa<strong>do</strong> ou o prédio aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Simplesmente, não<br />
havia prédio algum, não havia nada: só pedras e centenas de metros<br />
quadra<strong>do</strong>s de entulho” (NPUC, p. 23).<br />
Sem ter por onde começar a procurar o irmão, Ana passa seus<br />
primeiros momentos – uma massa indefinida de tempo, que não<br />
consegue identificar como dias, semanas ou meses – vagan<strong>do</strong> pela<br />
cidade, como uma sonâmbula, “sem saber onde estava, sem mesmo<br />
[se] atrever a falar com quem quer que fosse” (NPUC, p. 43).<br />
A cidade retira <strong>do</strong>s habitantes a possibilidade de assentar sistemas de<br />
signos que conduzam à compreensão e conseqüente estabelecimento<br />
de vínculos com seus territórios, impedin<strong>do</strong> a fixação de<br />
conhecimentos, também eles sujeitos à flutuação e à instabilidade que<br />
a caracterizam: “a vida, tal como a conhecemos, acabou, e, entretanto,<br />
ninguém é capaz de compreender o que foi que a substituiu” (NPUC,<br />
p. 24). Anna identifica facilmente a perda de um mo<strong>do</strong> de vida, isto<br />
é, de uma maneira de perceber os fenômenos à sua volta e de lidar<br />
com eles, mas é incapaz de vislumbrar aquilo que poderia ter-lhe<br />
substituí<strong>do</strong>, daí a necessidade de incessante negociação, como numa<br />
busca por tentativa e erro, até a compreensão daquilo que tomou seu<br />
lugar.<br />
“Confronta<strong>do</strong> com o fato mais corriqueiro, você já não sabe como<br />
agir, e, não poden<strong>do</strong> agir, acaba se tornan<strong>do</strong> incapaz de pensar”, pois<br />
“à sua volta, as mudanças ocorrem uma após a outra, cada dia traz<br />
uma nova conturbação, as antigas suposições se esfumam no ar, se<br />
esvaziam” (NPUC, p. 24), prossegue, descreven<strong>do</strong> a incapacidade de<br />
adaptar pensamentos e mo<strong>do</strong>s de agir previamente conheci<strong>do</strong>s aos<br />
eventos com quais é obrigada a lidar. Notemos que pensar, aqui, implica<br />
criação de novos códigos e, em termos espaciais, argumentamos que<br />
a criação de práticas e mo<strong>do</strong>s de estar, ou seja, formas de habitar<br />
a cidade, apenas é possível através da negociação de lugares, cuja<br />
principal característica é a estabilidade 44 . Tal constatação nos permite<br />
compreender a incessante busca por espaços que possibilitem fixidez<br />
como a busca de Anna pela constituição de lugares antropológicos,<br />
isto é, territórios nos quais possa estabelecer práticas duráveis.<br />
Discordamos de Brigitte Vilequin-Mongouchon, ao afirmar que,<br />
44 Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção <strong>do</strong> cotidiano: 1. artes de<br />
fazer. 9. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 319
C L I P E<br />
na cidade de No país das últimas coisas, existe “uma única maneira<br />
de tentar resistir: estar em movimento” 45 . Acreditamos que a<br />
movimentação, prática de negociação espacial, presta-se – talvez<br />
de forma mais acentuada – à permanência <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de flutuação<br />
e fragmentação, através <strong>do</strong>s obstáculos impostos à instauração de<br />
relações com o espaço utiliza<strong>do</strong>. Atentamos, no romance, para outra<br />
forma de resistência: o estabelecimento de laços afetivos. Anna e Sam,<br />
o jornalista encarrega<strong>do</strong> de substituir William, passam a viver juntos<br />
na biblioteca, unin<strong>do</strong> seus recursos numa tentativa de sobreviver e,<br />
quem sabe, retornar a seu país, desafian<strong>do</strong> “uma das leis da cidade<br />
[que] determina que a gente nunca bata numa porta, a menos que<br />
saiba o que há <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro” (NPUC, p. 86). Existem também<br />
pessoas tão magras que, para não serem levadas pelo vento, andam<br />
“em grupos de duas ou três, famílias inteiras à vezes, presas umas às<br />
outras com cordas e correntes, firman<strong>do</strong>-se mutuamente contra as<br />
lufadas” (NPUC, p. 11). Um <strong>do</strong>s laços mais estreitos e dura<strong>do</strong>uros de<br />
Anna em sua estada na cidade se dá com Isabel, uma mulher de meiaidade<br />
que ela salvou da morte: “bem ou mal, minha verdadeira vida<br />
na cidade começou naquele momento. Tu<strong>do</strong> mais fora um prólogo,<br />
uma coleção de passos incertos, de dias e noites, de pensamentos<br />
que já não recor<strong>do</strong>” (NPUC, p. 44). Isabel leva Anna para sua casa e<br />
cuida dela, ensinan<strong>do</strong>-lhe, na medida <strong>do</strong> possível, como sobreviver<br />
na cidade.<br />
A necessidade de olhar sempre para as coisas como se fosse a primeira<br />
vez, uma das lições aprendidas por Anna, pode ser compreendida<br />
como um interdito ao hábito, que configura, para Alexandre Moraes,<br />
uma espécie de conceito que dinamita a possibilidade de<br />
um fluxo maior <strong>do</strong> sujeito. Dito de outra maneira, no hábito<br />
a obrigação de significar. [...] A metáfora deve desaparecer<br />
sob o signo de um conceito e tal conceito ganha mobilidade<br />
para impulsionar códigos e sistemas de codificações; cria<br />
uma lógica da cultura através de elabora<strong>do</strong>s sistemas de<br />
45<br />
ment”.<br />
No original: ”un seul moyen pour tenter résister: être en mouve-<br />
VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un trou noir: lecture<br />
transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the country of last things.<br />
Disponível em . Acesso em 16 nov. 2007.<br />
320 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
transmissão e repetição indefinidas: esta a raiz <strong>do</strong> hábito 46 .<br />
Em Auster, a impossibilidade <strong>do</strong> hábito é justamente a impossibilidade<br />
da manutenção de significa<strong>do</strong>s e da transmissão de experiência. O<br />
hábito, por suas repetições, pode conduzir a uma falsa sensação<br />
de familiaridade e segurança, propician<strong>do</strong> desatenção, o que pode<br />
ser fatal na cidade das últimas coisas: “é assim. Um momento de<br />
desatenção, um mero segun<strong>do</strong> em que você se esquece de estar<br />
alerta, e tu<strong>do</strong> se perde [...]” (NPUC, p. 73).<br />
A extrema instabilidade da cidade atinge, também, os conhecimentos<br />
cria<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> contato com suas ruas. Assim, “o fato de<br />
conseguir entrar não significa que conseguirá sair. As entradas não<br />
servem de saída e nada pode garantir que a porta pela qual passou a<br />
um momento ainda estará ali quan<strong>do</strong> você se voltar a sua procura”<br />
(NPUC, p. 75-76). E nos defrontamos, ainda mais uma vez, com<br />
a necessidade de constantes e incessantes negociações com este<br />
espaço, como nos dá a ver Anna, ao afirmar que “toda vez que a<br />
gente pensa saber a resposta de uma questão, descobre que a própria<br />
questão não tem senti<strong>do</strong>” (NPUC, p. 76). b<br />
A cidade <strong>do</strong> relato de Anna é aquela da interdição à fixidez, a mesma<br />
que, na modernidade analisada por Moraes, relegava os sujeitos à<br />
invisibilidade <strong>do</strong> banal, ou melhor, à impossibilidade de visão efetiva<br />
<strong>do</strong> banal, exatamente o que é pedi<strong>do</strong> a M. S. Fogg, narra<strong>do</strong>r de Palácio<br />
da lua, ao ser contrata<strong>do</strong> como acompanhante de um homem cego:<br />
Dei-me conta de que nunca tivera o hábito de olhar<br />
atentamente para as coisas, e, agora que me pediam para<br />
fazer isso, os resulta<strong>do</strong>s eram catastróficos. Até então<br />
sempre tivera tendência para generalizar, para ver em tu<strong>do</strong><br />
semelhanças em vez de diferenças. Agora, porém, eu estava<br />
sen<strong>do</strong> atira<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> das particularidades, e a luta para<br />
traduzi-las em palavras, para recolher os da<strong>do</strong>s imediatos<br />
que me vinham pelos senti<strong>do</strong>s apresentava-me um desafio<br />
para o qual eu não estava prepara<strong>do</strong> 47 .<br />
46 MORAES, Alexandre. O outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> hábito: modernidade e sujeito.<br />
Vitória: ED<strong>UFES</strong>, Centro de ciências Humanas e Naturais, 2002, p.<br />
122.<br />
47 AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São<br />
Paulo: Best Seller, s/d2, p. 131.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 321
C L I P E<br />
A Nova York descrita por Fogg, em que “todas as coisas inanimadas<br />
estavam se desintegran<strong>do</strong>; todas as coisas vivas, morren<strong>do</strong>” 48 ,<br />
assemelha-se à cidade de No país das últimas coisas, onde tu<strong>do</strong> se<br />
desintegra; e, para ambos, a instabilidade é o aspecto mais marcante<br />
da cidade:<br />
Um hidrante, um táxi, um sopro de vapor a subir da<br />
calçada – tu<strong>do</strong> isso me era profundamente familiar; eu<br />
supunha conhecer tais coisas de cor. Não levava, porém,<br />
em conta sua instabilidade [...]. Tu<strong>do</strong> estava em constante<br />
fluxo. Ainda que <strong>do</strong>is tijolos de uma parede fossem muito<br />
pareci<strong>do</strong>s, não se poderia dizer que fossem idênticos. Ou<br />
mais precisamente: um tijolo nunca era de fato o mesmo.<br />
Estava se desgastan<strong>do</strong>, consumin<strong>do</strong>-se imperceptivelmente<br />
sob a ação da atmosfera, <strong>do</strong> frio, <strong>do</strong> calor [...], e, por fim,<br />
depois de séculos, podia ter desapareci<strong>do</strong> 49 (PL, p. 132).<br />
Uma das principais características da cidade contemporânea é não se<br />
dar facilmente à exploração 50 . A falta de um centro defini<strong>do</strong>, ou de<br />
marcos e monumentos que guiem o visitante, incomoda também seus<br />
habitantes, que não atribuem significa<strong>do</strong>s às localidades que servem,<br />
apenas, de abrigo ao comércio ou outras instituições vivenciadas<br />
como distantes, ainda que públicas. É possível caminhar por suas<br />
ruas e mesmo saber o endereço de determina<strong>do</strong> sítio, mas a cidade<br />
opõe-se à criação de hábitos, tradições ou senti<strong>do</strong>s para o que se<br />
vê e experimenta: experimentar, nesta cidade, não implica adquirir<br />
experiência.<br />
Tomemos como exemplo o primeiro trabalho de Anna na cidade, a<br />
“caça” de objetos a serem vendi<strong>do</strong>s para “agentes de ressurreição”,<br />
“empresários priva<strong>do</strong>s que transformam essas bugigangas em novas<br />
merca<strong>do</strong>rias e, por fim, as vendem” (NPUC, p. 35). Para encontrar<br />
objetos, ou partes deles, ainda aproveitáveis, é necessário que os<br />
“caça<strong>do</strong>res de objetos”, em geral jovens “rápi<strong>do</strong>s e espertos”,<br />
percorram toda a cidade “impetuosamente, [...] vasculhan<strong>do</strong><br />
48 AUSTER, Paul. Op. Cit., s/d2, p. 133.<br />
49<br />
AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São<br />
Paulo: Best Seller, s/d2, p. 132.<br />
50<br />
Cf., dentre outros, RYKWERT, Joseph. A sedução <strong>do</strong> lugar: a historia<br />
e o futuro da cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2004.<br />
322 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
delicadamente uma rua após outra, sem jamais perder a esperança de<br />
encontrar algo extraordinário ao <strong>do</strong>brar a próxima esquina” (NPUC,<br />
p. 36). É fácil perceber que o deslocamento e a movimentação física<br />
se impõem à sobrevivência <strong>do</strong>s indivíduos, leva<strong>do</strong>s a caminhar em<br />
busca de algo que possa ser vendi<strong>do</strong>, mas a aversão à fixidez é parte<br />
da própria dinâmica da cidade, em que ruas inteiras desaparecem da<br />
noite para o dia. E onde existem escombros <strong>do</strong> que foram casas e<br />
edifícios, erguem-se barreiras, construídas pelos habitantes da cidade<br />
como trincheiras:<br />
Constroem-nas onde encontram material disponível, e<br />
ali ficam entrincheiradas com porretes, fuzis ou tijolos, à<br />
espera <strong>do</strong>s transeuntes. Tomam o controle da rua. Se quiser<br />
passar, você tem de dar o que exigirem. Às vezes é dinheiro;<br />
às vezes, comida; às vezes, sexo. Os espancamentos são<br />
um lugar-comum, e, a cada instante, você ouve falar em<br />
assassinatos (NPUC, p. 13).<br />
Mas as barreiras também são edificações temporárias, que vêm abaixo<br />
quan<strong>do</strong> deixam de ser úteis, ou quan<strong>do</strong> um grupo perde o poder para<br />
outro, que reorganiza o espaço de acor<strong>do</strong> com suas necessidades de<br />
criação, ou melhor, negociação de lugares. Trata-se de uma forma<br />
de tentar disciplinarizar 51 o espaço que já não lhes proporciona<br />
segurança, no qual não confiam por ser impossível seu mapeamento<br />
cognitivo. As barreiras tornam-se então “sua única chance de obter<br />
poder sobre algo [o espaço], ainda que apenas momentaneamente.<br />
Não querem construir abrigos tradicionais; em seu lugar, constroem<br />
muros” 52 .<br />
51<br />
Termo emprega<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> a acepção a ele atribuída por Michel<br />
Foucault em Vigiar e punir.<br />
Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad. Raquel<br />
Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />
52<br />
No original: “[barriers] are their only chance to get even momentary<br />
power over something. They <strong>do</strong> not want to build traditional shelters,<br />
they build walls instead”.<br />
NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border States in Paul<br />
Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University of Helsinki, Comparative<br />
Literature, Institute for Art Research, Faculty of Arts, p. 24, grifos<br />
nossos.<br />
Disponível em .<br />
Acesso em 31 mai. 2006.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 323
C L I P E<br />
Confronta<strong>do</strong>s com a exacerbada mobilidade dessas barricadas, os<br />
mora<strong>do</strong>res da cidade devem estar sempre alertas e prontos a criar<br />
novas formas de lidar com os sinais “envia<strong>do</strong>s” por estas construções:<br />
a visão nem sempre é suficiente para distinguir a tempo o perigo,<br />
“porque as barreiras têm um cheiro particular que você aprende a<br />
identificar mesmo a uma grande distância” (NPUC, p. 13). Assim, a<br />
cidade impõe que se lance mão de outras formas de contato com o<br />
mun<strong>do</strong>, exigin<strong>do</strong> que os mora<strong>do</strong>res voltem a confiar, por exemplo,<br />
em senti<strong>do</strong>s desprivilegia<strong>do</strong>s, como o olfato, a fim de se preservarem.<br />
Os habitantes, no entanto, não são os únicos a tentar controlar o<br />
espaço, pois também o governo se ocupa da construção de muros.<br />
Logo após a morte de Isabel, Anna tenta sair da cidade e descobre que o<br />
governo havia inicia<strong>do</strong> recentemente o “Projeto Amurada”, com planos<br />
de construir uma enorme muralha ten<strong>do</strong> como matéria-prima, assim<br />
como as barreiras, destroços e restos de edifícios, cujo objetivo seria<br />
proteger a cidade de invasões estrangeiras. A cidade fora fechada, já não<br />
era permiti<strong>do</strong> chegar ou sair e Anna é obrigada a se confrontar com o fato<br />
de que está presa na cidade.<br />
A instabilidade e extrema mobilidade das barreiras implicam uma relação<br />
de imprevisibilidade espacial que anula to<strong>do</strong> conhecimento histórico, pois<br />
as barreiras não permanecem sequer nas mesmas ruas: “novas barreiras se<br />
erguem, as antigas desaparecem. A gente nunca sabe que ruas tomar, que<br />
ruas evitar” (NPUC, p. 13). A experiência de Anna na cidade é, portanto,<br />
a da falta de lugar e sua frágil organização se configura espacialmente, e<br />
não temporalmente.<br />
Tal concepção de espaço urbano como algo que prescinde da necessidade<br />
de preservação e que deve renovar-se continuamente pode ser verificada<br />
neste trecho em que Richard Sennett fala da relação de Nova York com<br />
sua história:<br />
Muitas construções em perfeito esta<strong>do</strong> desapareciam com a<br />
mesma regularidade com que surgiam novas. Num perío<strong>do</strong><br />
de sessenta anos, por exemplo, as grandes mansões da Quinta<br />
Avenida [...] foram construídas, habitadas e destruídas, ceden<strong>do</strong><br />
lugar a edificações mais altas. Hoje [no começo da década de<br />
1990], apesar de já se cuidar da preservação <strong>do</strong> patrimônio<br />
histórico, os arranha-céus são planeja<strong>do</strong>s para durar cinqüenta<br />
anos e financia<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong> com essa duração estimada,<br />
conquanto sejam obras de engenharia capazes de conservar-se<br />
324 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
por muito mais tempo. De todas as cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, Nova<br />
York foi a que mais cresceu à custa de demolições; daqui a cem<br />
anos, as pessoas terão evidências mais tangíveis da Roma de<br />
Adriano <strong>do</strong> que da grande metrópole de fibra ótica 53 .<br />
A cidade de Anna, como a Nova York descrita por Sennett, é uma<br />
metrópole em que o movimento de demolição constituiria, aparentemente,<br />
uma forma de progresso, um andar para frente às custas de ruínas. Mas,<br />
em vez de consagrar uma possibilidade de progresso, o fenômeno há<br />
pouco descrito configura-se como um movimento na verdade circular e<br />
descentra<strong>do</strong>, pois o apagar da história acarreta também o desaparecimento<br />
de noções como para a frente e para atrás 54 , conduzin<strong>do</strong> a uma vida em<br />
episódios instáveis que buscam evitar conseqüências que extrapolem o<br />
tempo mínimo e flutuante de sua duração.<br />
REFERÊNCIAS<br />
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da<br />
supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 2ª ed. Campinas, SP:<br />
Papirus, 1994.<br />
AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. Trad. Luiz Araújo. São<br />
Paulo: Best Seller, s/d1.<br />
AUSTER, Paul. Palácio da Lua. Trad. Marcelo Dias Almada. São<br />
Paulo: Best Seller, s/d2.<br />
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro<br />
Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.<br />
CERTEAU, Michel de. A invenção <strong>do</strong> cotidiano: 1. artes de fazer. 9.<br />
ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.<br />
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Trad.<br />
Raquel Ramalhete. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />
53 SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização<br />
ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.<br />
291-292.<br />
54 Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad.<br />
Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 325
C L I P E<br />
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização<br />
ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.<br />
MORAES, Alexandre. O outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> hábito: modernidade e sujeito.<br />
Vitória: ED<strong>UFES</strong>, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2002.<br />
NYSTRÖM, Helmi. Three sides of a wall. Obstacles and Border<br />
States in Paul Auster’s Novels. Pro gradu, October 1999. University<br />
of Helsinki, Comparative Literature, Institute for Art Research,<br />
Faculty of Arts. Disponível em . Acesso em 31 mai. 2006.<br />
RYKWERT, Joseph. A sedução <strong>do</strong> lugar: a historia e o futuro da<br />
cidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />
VILEQUIN-MONGOUCHON, Brigitte. Voyage au coeur d’un<br />
trou noir: lecture transdiciplinaire du roman de Paul Auster, In the<br />
country of last things. Disponível em . Acesso em 16 nov.<br />
2007.<br />
326 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Recebi<strong>do</strong> em 15/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 15/09/2008
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
A AGONIA E O DESPERTAR DE UMA CIDADE EM A<br />
PESTE, DE ALBERT CAMUS<br />
Angela Regina Binda da Silva<br />
Ufes<br />
Resumo: Este artigo faz uma relação entre as obras A Peste e O<br />
Estrangeiro, de Albert Camus, apresentan<strong>do</strong> os principais pontos <strong>do</strong><br />
pensamento camusiano acerca <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> e da revolta inseri<strong>do</strong>s no<br />
enre<strong>do</strong> dessas obras.<br />
Palavras-chave: A Peste. O Estrangeiro. Absur<strong>do</strong>. Revolta.<br />
Abstract: This article makes a relation between the books The Plague<br />
and The Stranger, pointing the main aspects of Camus´ thoughts<br />
according to the absurd and revolt in the plot of these books.<br />
Keywords: The Plague. The Stranger. Absurd. Revolt.<br />
Publicada em 1947, A Peste, de Albert Camus, trata <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong><br />
pelo ser humano e de sentimentos coletivos como a revolta, temas<br />
que foram aborda<strong>do</strong>s pelo mesmo autor cinco anos antes de forma<br />
individual em O Estrangeiro.<br />
Tomada pela peste bubônica, a cidade de Oran no norte da África<br />
é fechada sobre si mesma e seus mora<strong>do</strong>res passam a conviver com<br />
sentimentos como o me<strong>do</strong> e a solidão. A morte é fato quase certo<br />
e a <strong>do</strong>ença faz milhares de vítimas que passam a dar importância<br />
à vida e ao próximo, despertan<strong>do</strong> a compaixão e a ajuda mútua. A<br />
iminência da morte traz à tona que a vida e o homem são finitos. Há<br />
também um fun<strong>do</strong> filosófico-existencial. Albert Camus se utilizava<br />
da literatura com uma escrita simples para expor e desenvolver suas<br />
idéias sobre questões filosóficas como o absur<strong>do</strong> e a revolta.<br />
Isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e separa<strong>do</strong>s de seus amantes e familiares,<br />
os cidadãos de Oran voltam-se para seus vizinhos e para cada um da<br />
cidade para redescobrirem a essência das relações humanas, antes<br />
a<strong>do</strong>rmecidas pela fria rotina de cada um. A monotonia <strong>do</strong> trabalho e<br />
o pensamento volta<strong>do</strong> para o acúmulo de riquezas são interrompi<strong>do</strong>s<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 327
C L I P E<br />
quan<strong>do</strong> milhares de ratos aparecem mortos. O que era no início<br />
apenas uma preocupação torna-se um horror generaliza<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
as mortes atingem também aos cidadãos, diziman<strong>do</strong> famílias inteiras<br />
e espalhan<strong>do</strong> o horror por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s os mora<strong>do</strong>res da<br />
cidade estão ameaça<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>ença mortal pelo simples contato<br />
com entes queri<strong>do</strong>s já infecta<strong>do</strong>s e passam a temer até o vento que<br />
sopra trazen<strong>do</strong> o bacilo da peste. A morte se torna uma personagem<br />
da obra que cumpre seu papel não por causa <strong>do</strong> ciclo natural da vida,<br />
mas porque dizima sem ordem, vez, ou classe social. É temida por<br />
ser injusta e numerosa.<br />
A obra traz como personagem central o Dr. Rieux. O médico tem<br />
papel fundamental na trama, pois se une a vários outros personagens<br />
para combater o mal que eles não sabem a origem. Ele é o próprio<br />
redator da narrativa e a considera como um testemunho para “[...]<br />
não ser daqueles que se calam, para depor a favor destas vítimas da<br />
peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência<br />
que lhes tinham si<strong>do</strong> feitas”. (CAMUS, 2004, p. 268)<br />
A obra A Peste está intimamente ligada à vida pessoal de seu autor. É<br />
de extrema importância entender o contexto em que Albert Camus<br />
vivia para fazer uma relação com alguns fatos da obra. Oran, a cidade<br />
onde se passa a história, localiza-se no norte da África, país onde<br />
Camus nasceu em 1913. O enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance destaca o fato <strong>do</strong>s<br />
amantes sofrerem pela separação imposta pela epidemia, o que<br />
poderia ser um reflexo da separação de Camus, sua família e terra<br />
natal por mais de <strong>do</strong>is anos. Nesse perío<strong>do</strong>, os alia<strong>do</strong>s à África <strong>do</strong><br />
Norte chegaram à Paris onde Camus estava para se tratar no verão<br />
de 1942. Há ainda a ausência de personagens femininos na obra.<br />
Muitas mulheres estão longe de Oran e as que residem lá não têm<br />
importância. A mãe <strong>do</strong> Dr. Rieux é a única mulher que aparece em<br />
algumas cenas e recebe destaque. Camus provavelmente descreve a<br />
Senhora Rieux com traços de sua mãe dan<strong>do</strong> um aspecto calmo e<br />
silencioso à personagem.<br />
Ainda jovem Camus entregou-se aos esportes (especialmente ao<br />
futebol) até descobrir a tuberculose e sua condição de homem mortal,<br />
aspecto trata<strong>do</strong> na obra em questão. Em A Peste há um joga<strong>do</strong>r de<br />
futebol que por várias vezes fala de sua paixão pelo esporte. Camus<br />
ainda foi funcionário da prefeitura em Argel da mesma forma que o<br />
personagem Grand é no romance. Grand é um personagem simples,<br />
mas importante dA Peste que busca a perfeição de uma maneira<br />
328 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
obcecada ao escrever uma frase que faria parte de um romance. Ele<br />
tenta por diversas vezes compor essa frase mudan<strong>do</strong> a pontuação e<br />
substituin<strong>do</strong> palavras. O personagem chega ao fim da história sem<br />
êxito. Há assim uma reflexão sobre o papel <strong>do</strong> escritor e da própria<br />
maneira de escrever.<br />
Camus também desempenha a função de jornalista e viaja por vários<br />
lugares relatan<strong>do</strong> a pobreza e os horrores das guerras. NA Peste,<br />
Rambert é um jornalista que acaba por ficar preso na cidade devi<strong>do</strong><br />
ao isolamento imposto e desiste da fuga para enfim ajudar ao Dr.<br />
Rieux e a to<strong>do</strong>s os flagela<strong>do</strong>s. Esse fato pode ser interpreta<strong>do</strong> como<br />
um símbolo de opressão à liberdade de imprensa.<br />
O ESTILO ABSURDO E POÉTICO EM A PESTE E O<br />
ESTRANGEIRO<br />
Há fortes elos que ligam O Estrangeiro à obra A Peste. Camus usou<br />
o nome Raymond em ambas as obras para nomear na primeira o<br />
vizinho de andar <strong>do</strong> personagem principal e nA Peste um jornalista<br />
preso na cidade fechada por causa da epidemia de peste. Esse<br />
jornalista procura meios de ultrapassar os muros da cidade e fugir<br />
ao cerco imposto pelas autoridades para reencontrar a liberdade e<br />
a mulher amada. “Sua argumentação principal consistia sempre em<br />
dizer que era estrangeiro em nossa cidade e que, por conseguinte, o<br />
seu caso devia merecer um exame especial”. (CAMUS, 2004, p. 96)<br />
Camus ainda faz um elo explícito com O Estrangeiro quan<strong>do</strong> cita<br />
sobre a prisão de Mersault em A Peste: “Grand chegara a assistir<br />
a uma cena curiosa com a vende<strong>do</strong>ra de tabaco. No meio de uma<br />
conversa animada, ela falara de uma prisão recente que alvoroçava<br />
Argel. Tratava-se de um jovem que matara um árabe na praia”.<br />
(CAMUS, 2004, p.53)<br />
O mun<strong>do</strong> incoerente apresenta<strong>do</strong> por Camus na obra O Estrangeiro<br />
através <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> e da revolta, também faz parte dA Peste. A rotina,<br />
o tédio e a repetição de situações são aspectos que fazem Mersault –<br />
o protagonista de O Estrangeiro – e a população de Oran – cidade<br />
assolada pela peste – mergulharem no absur<strong>do</strong> da vida mostra<strong>do</strong> por<br />
Camus através de sua literatura. Mesmo amedronta<strong>do</strong>s pela epidemia<br />
que faz centenas de mortos por semana, os concidadãos de Oran<br />
passam a viver o absur<strong>do</strong> acostuman<strong>do</strong>-se com a peste.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 329
C L I P E<br />
Os nossos concidadãos tinham-se adapta<strong>do</strong>, como se<br />
costuma dizer, porque não havia outro mo<strong>do</strong> de proceder.<br />
Tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e <strong>do</strong><br />
sofrimento, mas já não o sentiam. De resto, o <strong>do</strong>utor Rieux,<br />
por exemplo, achava que essa era justamente a desgraça e<br />
que o hábito <strong>do</strong> desespero é pior que o próprio desespero.<br />
Antes, os separa<strong>do</strong>s não eram realmente infelizes, pois havia<br />
no seu sofrimento uma luz que acabava de se extinguir.<br />
Agora, eram vistos pelas esquinas, nos cafés ou em casa <strong>do</strong>s<br />
amigos, pláci<strong>do</strong>s e distraí<strong>do</strong>s, e com um ar tão entedia<strong>do</strong><br />
que, graças a eles, toda a cidade parecia uma sala de espera.<br />
Os que tinham uma profissão executavam-na ao ritmo da<br />
própria peste, meticulosamente e sem brilho. (CAMUS,<br />
2004, p. 160)<br />
Essa fácil adaptação a uma difícil vida também acontece com Mersault,<br />
em O Estrangeiro, que se acostuma com os dias na prisão e diz que<br />
“[...] se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore,<br />
sem outra ocupação além de olhar a flor <strong>do</strong> céu acima da minha<br />
cabeça, eu teria me habitua<strong>do</strong> aos poucos” (CAMUS, 2005, p. 81).<br />
Suas lembranças na prisão são seu único passatempo e ele “aprende<br />
a recordar” situações simples de sua vida como a localização <strong>do</strong>s<br />
móveis e objetos de sua casa. Dessa mesma forma, os habitantes de<br />
Oran aprendem a usar a imaginação para passar o tempo.<br />
Impacientes com o presente, inimigos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e<br />
priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com<br />
aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás<br />
das grades. Para terminar, o único meio de escapar a estas<br />
férias insuportáveis era através da imaginação, recolocar em<br />
movimento os trens e encher as horas com os repeti<strong>do</strong>s<br />
sons de uma campainha que, no entanto, se obstinava ao<br />
silêncio. (CAMUS, 2004, p. 68)<br />
Mesmo com a cidade de Oran assolada pela peste e sem sinais de<br />
regressão da <strong>do</strong>ença, alguns personagens ignoravam mentalmente<br />
todas as duras regras impostas pelo governo e pensavam como<br />
homens livres. Mersault, em O Estrangeiro, tem pensamentos de<br />
homem livre mesmo preso e sente mais dificuldade em ter esses<br />
tais pensamentos <strong>do</strong> que o fato de estar preso e ter que vivenciar<br />
to<strong>do</strong>s os problemas que a prisão lhe oferece como falta de higiene ou<br />
estrutura física precária.<br />
330 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Assim, durante semanas, os prisioneiros da peste debateram-se como<br />
puderam. E alguns, como Rambert, chegavam até a imaginar, como se<br />
vê, que ainda agiam como homens livres, que ainda podiam escolher.<br />
Mas, na realidade, podia dizer-se neste momento, nos mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mês<br />
de agosto, que a peste tu<strong>do</strong> <strong>do</strong>minara. Já não havia então destinos<br />
individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos<br />
compartilha<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s. (CAMUS, 2004, p. 149)<br />
A agonia que os cidadãos de Oran viveram por meses e o cenário<br />
aterrorizante que a peste criou e os obrigou a presenciar, fez com<br />
que muitos se acostumassem com a morte e esperassem por sua<br />
vez de contraírem a <strong>do</strong>ença para morrerem. “Estavam a tal ponto<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s à peste que lhes acontecia às vezes só desejarem o<br />
sono e surpreenderem-se a pensar: Que venham logo os tumores e<br />
se acabe com isto!” (CAMUS, 2004, p. 161)<br />
O toque de recolher imposto pelas autoridades, o fechamento da<br />
cidade, as medidas de segurança e prevenção que os mora<strong>do</strong>res<br />
tiveram que se submeter fez parte da vida <strong>do</strong>s concidadãos de Oran<br />
por longos meses. Essa nova vida imposta pela peste, trouxe junto<br />
com ela o costume e a rotina que são características <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> que<br />
os personagens de Camus vivenciam. Na página 162 de A Peste lêse:<br />
“De manhã, voltavam ao flagelo, quer dizer, à rotina”. (CAMUS,<br />
2004)<br />
A falta de esperança <strong>do</strong> homem camusiano e a vivência <strong>do</strong> presente<br />
também são características que fazem parte de cada cidadão de Oran.<br />
As autoridades tinham conta<strong>do</strong> com os dias frios para<br />
deterem este avanço e, contu<strong>do</strong>, ele passava através <strong>do</strong>s<br />
primeiros rigores da estação sem desanimar. Era preciso<br />
esperar ainda. Mas, de tanto esperar, ninguém mais espera<br />
– e a nossa cidade inteira vivia sem futuro. (CAMUS, 2004,<br />
p. 225)<br />
OS HOMENS REVOLTADOS DE ORAN EM UM FINAL<br />
FELIZ E DUVIDOSO<br />
O homem descrito por Camus vive no absur<strong>do</strong>, locomove-se nele e<br />
revolta-se após despertar diante de algum fato. A revolta surge diante<br />
<strong>do</strong> fato <strong>do</strong> homem se negar a viver o que vinha experimentan<strong>do</strong> e<br />
aceitan<strong>do</strong> até então. O “não” <strong>do</strong> homem absur<strong>do</strong> é o início da revolta<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 331
C L I P E<br />
que permite que o próprio homem tenha consciência <strong>do</strong> seu valor.<br />
Após uma primeira aceitação e de tentarem levar suas vidas de uma<br />
forma normal, os cidadãos de Oran precisam seguir as duras regras<br />
impostas pelo governo e revoltam-se em meio ao caos como descreve<br />
o trecho da obra abaixo:<br />
Os tumultos junto às portas da cidade, durante os quais<br />
os guardas tinham si<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>s a lançar mão de suas<br />
armas, criaram uma surda agitação. Tinha havi<strong>do</strong> feri<strong>do</strong>s,<br />
sem dúvida, mas falavam-se de mortos na cidade, onde<br />
tu<strong>do</strong> se exagerava por efeito <strong>do</strong> calor e <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Em to<strong>do</strong><br />
o caso, é verdade que o descontentamento não cessava<br />
de aumentar, que as nossas autoridades tinham recea<strong>do</strong> o<br />
pior e estuda<strong>do</strong> muito a sério medidas a serem tomadas no<br />
caso de esta população, mantida sob o flagelo, ser levada<br />
à revolta. Os jornais publicaram decretos que renovavam<br />
a proibição de sair e ameaçavam com pena de prisão os<br />
infratores. Patrulhas percorriam a cidade. Muitas vezes, nas<br />
ruas desertas e escaldantes, viam-se avançar, anuncia<strong>do</strong>s<br />
em primeiro lugar pelo ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cascos <strong>do</strong>s cavalos nos<br />
paralelepípe<strong>do</strong>s, guardas monta<strong>do</strong>s que passavam por entre<br />
duas fileiras de janelas fechadas”. (CAMUS, 2004, p. 102)<br />
Durante a noite as portas da cidade são atacadas por cidadãos<br />
arma<strong>do</strong>s que tentam repetidamente fugir e lutar contra os guardas<br />
que não conseguiram acalmar o sopro de revolução que contagiou<br />
a to<strong>do</strong>s.A cidade que antes de ser acometida pela peste era calma e<br />
individualista, tornou-se uma prisão para os seus próprios cidadãos<br />
que encontram na revolta coletiva valores não individuais, éticos e<br />
políticos.<br />
Por fim, a revolta traz o benefício da “purificação”. Assim como<br />
em O Estrangeiro Mersault revolta-se em sua cela e depois se sente<br />
renova<strong>do</strong>, em A Peste os concidadãos se revoltam e depois se sentem<br />
prontos para agirem contra o mal que os dizima. “O rumor da cidade,<br />
contu<strong>do</strong>, continuava a chegar aos terraços com um marulho de vaga.<br />
Mas esta noite era a da libertação e não a da revolta”. (CAMUS, 2004,<br />
p. 268)<br />
Os primeiros foguetes <strong>do</strong>s festejos anunciavam a peste que ia embora,<br />
juntamente com gritos de alegria. Uma cidade que enfim começava<br />
a sorrir e iria enfim retomar sua rotina depois de sacudida por um<br />
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Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
inimigo invisível. O flagelo ensinou aos cidadãos que há mais coisas<br />
para se admirar nos homens diante <strong>do</strong> caos <strong>do</strong> que para se desprezar.<br />
A alegria <strong>do</strong>s homens agora livres estava sempre ameaçada por algo<br />
que estava escrito nos livros e que os felizes cidadãos desprezavam:<br />
“[...] o bacilo da peste na morre nem desaparece nunca, pode<br />
ficar dezenas de anos a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> nos móveis e na roupa, espera<br />
pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na<br />
papelada”.<br />
REFERÊNCIAS<br />
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 26. ed. Rio<br />
de Janeiro: Record, 2005.<br />
CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Valerie Rumjanek 15. ed. Rio de<br />
Janeiro: Record, 2004.<br />
BARRETO, Vicente. Camus Vida e Obra. 2. ed. São Paulo: Paz e<br />
Terra, 1991.<br />
PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus Um Elogio <strong>do</strong> Ensaio. São<br />
Paulo: Ateliê Editorial, 1998.<br />
TODD, Oliver. Albert Camus: Uma Vida. Trad. Mônica Stahel. Rio<br />
de Janeiro: Record, 1998.<br />
Recebi<strong>do</strong> em 17/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 15/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 333
C L I P E<br />
WALDO MOTTA: POESIA, CRÍTICA E PROBLEMA<br />
Rodrigo Leite Caldeira<br />
Ufes<br />
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer um mapeamento das zonas<br />
de tensões surgidas à luz da obra poética de Wal<strong>do</strong> Motta.<br />
Palavras-chave: Wal<strong>do</strong> Motta. Poesia. Crítica e interpretação.<br />
Abstract: This article aims at mapping the tensions risen in light of<br />
the poetic work of Wal<strong>do</strong> Motta.<br />
Keywords: Wal<strong>do</strong> Motta. Poetry. Criticism and interpretation.<br />
Wal<strong>do</strong> 55 Motta “é um problema literário. Imagino,” temeroso em<br />
afirmar minha certeza, que esse plágio inicial, angústia de minha<br />
ignorância, seja o sustentáculo deste artigo, pois nele procurarei, a<br />
partir de uma leitura dialética entre os poemas waldianos e a fortuna<br />
crítica sobre eles, pontuar as zonas de tensões surgidas à luz de sua<br />
poética, que, como veremos, pela singularidade <strong>do</strong> tema atual se nos<br />
apresenta como um problema. Podemos dividir este problema em<br />
três fases interligadas aos seus livros da seguinte forma:<br />
a) uma 1ª fase que vai <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos 70 até o ano de 1984 com<br />
a publicação <strong>do</strong>s livros Pano Rasga<strong>do</strong> (1979), Os Anjos Proscritos e<br />
Outros Poemas (1980, em parceria com Wilbett R. Oliveira), O Signo<br />
na Pele (1981), Obras de Arteiro (1982), As peripécias <strong>do</strong> Coração (1982)<br />
e De Saco Cheio (1983), to<strong>do</strong>s em edições autorais ainda vincula<strong>do</strong>s à<br />
cultura <strong>do</strong>s anos 70 da poesia mimeógrafo, onde o problema aqui é da<br />
ordem da subtração; de uma literatura feita ao calor das emoções, sem<br />
o crivo necessário para consolidá-la. Faz-se poesia numa tentativa<br />
brusca de mudanças sociais, políticas e amorosas, utilizan<strong>do</strong>-se da<br />
palavra apenas como um artefato de guerra, valen<strong>do</strong> muito mais<br />
o que se quis dizer <strong>do</strong> que como se disse, perden<strong>do</strong>, deste mo<strong>do</strong>,<br />
55 Uso aqui a grafia que o autor utilizou na assinatura <strong>do</strong> seu último<br />
livro Recanto – poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002. Pois como o mesmo<br />
atesta em seu site (http://www.wal<strong>do</strong>motta.cjb.net/) assim o fará em suas<br />
próximas obras.<br />
334 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
a força poética advinda sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> labor meticuloso sobre as<br />
palavras, ou, como quer o próprio poeta, este perío<strong>do</strong> se destaca por<br />
“um ciclo muito frege e pensamento rarefeito, alguma pretensão e<br />
certa ingenuidade (ilusões políticas, amorosas, essas coisas)” 56 , <strong>do</strong>nde<br />
o poema surge quase num ato epifânico, de mo<strong>do</strong> espontâneo:<br />
Quase que à revelia de mim<br />
vão-se-me brotan<strong>do</strong> palavras,<br />
como seres incorpóreos anima<strong>do</strong>s.<br />
A minha vontade é um pastor distraí<strong>do</strong><br />
que por acaso e por estar está ali,<br />
e com apenas estar por estar<br />
vai tangen<strong>do</strong> sem tanger o rebanho heterogêneo de palavras<br />
agregan<strong>do</strong>-as de mo<strong>do</strong> que constituam<br />
um interpretação de fatos, uma idéia, uma <strong>do</strong>r<br />
existentes em mim, gestante, que me engravidara<br />
pelos gametas das circunstâncias. 57<br />
O poeta torna-se o “pastor distraí<strong>do</strong>” que “por acaso” agrega as<br />
palavras, este “rebanho heterogêneo”, de mo<strong>do</strong> que lhe sirvam<br />
como intérpretes de fatos, idéias e <strong>do</strong>res que lhe “engravidam”.<br />
Esta analogia ao poema como sen<strong>do</strong> fruto de algo engendra<strong>do</strong> no<br />
interior corpóreo <strong>do</strong> poeta é corrente nesta primeira fase. O poema<br />
que a melhor realiza é “Poemas cambiantes” onde o poeta após sete<br />
estrofes que podem ser lidas como um to<strong>do</strong>, mas também, como o<br />
próprio título sugere, sen<strong>do</strong> cada uma um poema cambiante, de cor<br />
indistinta, fecha o poema com estes seis versos:<br />
Só porque escrevo<br />
sinto esvair-se<br />
o que me enchera.<br />
A esferográfica<br />
é como se<br />
56 MOTTA, Val<strong>do</strong>. “Saída para dentro (Introdução)”. In.: Transpaixão:<br />
coletânea. Vitória: Kabun<strong>do</strong>, 1999, p. 7.<br />
57 Idem, Eis o homem: poemas seleciona<strong>do</strong>s 1980/1984. Coletânea.<br />
Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, 1987, p. 21.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 335
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me ordenhasse. 58<br />
Contu<strong>do</strong>, se pontuamos os aspectos acima descritos como o menos<br />
na poesia waldiana, não podemos deixar de salientar que são poemas<br />
que assumem feições comuns aos de seus contemporâneos. Flora<br />
Süssekind, analisan<strong>do</strong> a produção literária <strong>do</strong>s anos 70 e 80, observa<br />
que a característica comum aos poetas deste perío<strong>do</strong> era o aspecto<br />
confessional de suas obras. Onde “as vivências cotidianas <strong>do</strong> poeta,<br />
os fatos mais corriqueiros [...] constituirão a matéria da (sua) poesia” 59 .<br />
Com Wal<strong>do</strong> Motta não dá-se diferente. Nele, também, onde se<br />
lê poesia, leia-se vida. O eu lírico está ali, a to<strong>do</strong> momento, num<br />
colóquio com o leitor; dan<strong>do</strong> ciência <strong>do</strong> seu dia-a-dia, trazen<strong>do</strong>-o<br />
para a sua vivência. Daí Süssekind comparar estes livros aos diários.<br />
São livros que colocam o leitor em dia com a vida <strong>do</strong> poeta. Exemplo<br />
disso é “Devaneio no ônibus”, onde o leitor é leva<strong>do</strong>, pelos olhos <strong>do</strong><br />
poeta que “borboleteiam”, ao interior de um ônibus na hora <strong>do</strong> rush:<br />
Meus olhos borboleteiam<br />
no interior <strong>do</strong> ônibus<br />
a pousar de um a outro<br />
par de coxas <strong>do</strong>s peões<br />
que voltam <strong>do</strong> trampo, os corpos<br />
58 Idem., p. 17.<br />
59 SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários<br />
& retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 115.<br />
Destacan<strong>do</strong> a figura <strong>do</strong> leitor como cúmplice <strong>do</strong> autor, Süssekind destaca:<br />
“A sensação <strong>do</strong> leitor é meio a de quem violasse correspondência alheia ou<br />
abrisse de repente o diário de alguém e, começan<strong>do</strong> a lê-lo, percebesse estranhas<br />
semelhanças com o seu próprio cotidiano não escrito, vivi<strong>do</strong> apenas.<br />
E, para obter esse efeito de reconhecimento imediato, essa resposta direta,<br />
foi preciso que o texto poético começasse a dialogar cada vez mais com os<br />
media e menos com o próprio sistema literário, cada vez mais com o alinhavo<br />
emocional <strong>do</strong> diário, com o instantâneo, com o registro, em close, da própria<br />
geração. [...] E é entre referências cada vez mais freqüentes ao universo da<br />
televisão, da propaganda, <strong>do</strong>s quadrinhos, <strong>do</strong>s jornais populares, canções de<br />
sucesso e o detalha<strong>do</strong> relato <strong>do</strong> que se passa na rua, no cotidiano desses poetas<br />
sempre em trânsito que se vai estabelecer um novo tipo de pacto, menos<br />
literário e mais confessional, com o leitor” (p. 125-126). Se exce<strong>do</strong> na citação<br />
é para observar que na poética waldiana, embora haja o tom confessional,<br />
não localizo nela o diálogo com os media tão fortemente. Algo que ocorre<br />
com maior freqüência em Sérgio Blank, poeta capixaba contemporâneo a<br />
Wal<strong>do</strong>.<br />
336 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
viscosos de poeira e suor<br />
O rude pano <strong>do</strong>s uniformes<br />
atiça-me a imaginação,<br />
assanha-me a libi<strong>do</strong> e sonho-me<br />
a língua a recolher o sal de um corpo<br />
moreno e musculoso sob a parca<br />
luz de uma lâmpada de 40 volts<br />
ou de uma candeia a querosene<br />
numa caxanga suburbana;<br />
e sonho mil peripécias,<br />
estrepolias de amor,<br />
a prospecção completa<br />
um <strong>do</strong> outro, até que ambos<br />
estejamos lambuza<strong>do</strong>s<br />
e que, assim, nossos corpos saibam<br />
a sal e sangue e baba e porra 60 .<br />
Reparem que o grau confessional <strong>do</strong> autor transcende o vivi<strong>do</strong> para se<br />
abrir, sem meias palavras, ao sonho, aspiração por demais íntima.<br />
b) a 2ª fase seria vinculada ao livro O Salário da Loucura (1984). Quem<br />
conhece minimamente a obra poética <strong>do</strong> autor certamente discordará<br />
desta minha divisão, pois sabe que em termos literários o Salário da<br />
Loucura apenas fecha o “ciclo muito frege” acima descrito, sen<strong>do</strong> ele<br />
mesmo a melhor expressão <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Então por que destacá-lo desse<br />
conjunto de “pensamento rarefeito”? Pelo simples fato de que seu prefácio<br />
inaugura o problema da adição em sua poesia. Escrito pela professora<br />
Deny Gomes é a primeira inserção da obra waldiana – em certa medida<br />
– no meio acadêmico. Portanto, a adição aqui proposta como problema<br />
seria a da legitimação inerente que pressupõe qualquer texto escrito por<br />
pertencentes ao “reino <strong>do</strong>s saberes”. Deny Gomes, persona grata aos jovens<br />
literatos capixabas por seus trabalhos desenvolvi<strong>do</strong>s na <strong>Universidade</strong><br />
<strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> 61 onde à época figurava como “Professora<br />
60 MOTTA, Eis o homem... p. 20.<br />
61 Sobre a importância de Deny Gomes neste perío<strong>do</strong> Reinal<strong>do</strong> <strong>Santo</strong>s<br />
Neves em seu Mapa da Literatura Brasileira feita no <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> assim<br />
se expressa: “Fatores paralelos contribuíram para que a década de 80 visse<br />
um despertar da atividade literária no <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, mais especificamente<br />
em Vitória. Um deles foi a realização de uma série de oficinas literárias pela<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 337
C L I P E<br />
de Teoria da Literatura e Coordena<strong>do</strong>ra de Literatura da Sub-Reitoria<br />
Comunitária da <strong>UFES</strong>” 62 , diz em seu texto “algumas coisas”, “não no<br />
preito de admiração ao jovem vate mateense”, muito menos usan<strong>do</strong><br />
“recursos da dissertação teórica avançadinha que, muitas vezes, cheia<br />
de modismos ‘liberais e progressistas’ escamoteia preconceitos e/ou<br />
falta de honestidade intelectual e humano”, mas “com o (seu) sentir,<br />
com (sua) cabeça, com (sua) perplexidade e respeito pelo jeito de ser<br />
e pela atividade artística <strong>do</strong> autor” 63 . E o fez muito bem. Adicionou<br />
à obra waldiana pré-Bun<strong>do</strong> um ethos que, embora o próprio autor<br />
desdiga hoje, numa clara intenção de que voltemos os olhos para seu<br />
Bun<strong>do</strong>, não pode ser desvincula<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> algum <strong>do</strong> seu projeto<br />
poético, muito menos omiti<strong>do</strong> de qualquer análise. Daí a necessidade<br />
dessa revisão histórico-literária que faço. Para aferir o valor daquele<br />
prefácio destaco alguns pontos levanta<strong>do</strong>s pela autora que de certa<br />
professora Deny Gomes, das quais participaram alunos de Letras e jovens<br />
da comunidade interessa<strong>do</strong>s no ofício da literatura. Esse projeto, que teve<br />
seu embrião no I Seminário de Produção <strong>do</strong> Texto Literário, promovi<strong>do</strong> em<br />
1981 pela Coordenação de Literatura (dirigida por Deny Gomes) da Sub-<br />
Reitoria Comunitária da Ufes, e que se institucionalizou a partir de 1982<br />
como projeto da Sub-Reitoria e <strong>do</strong> Departamento de Línguas e Letras da<br />
Ufes, deixou pelo menos três registros impressos nessa década: Ofício da<br />
palavra (1982), conten<strong>do</strong> trabalhos realiza<strong>do</strong>s durante o Seminário de 1981,<br />
Traços <strong>do</strong> ofício (1983), conten<strong>do</strong> textos de oficina literária realizada em 1982,<br />
e Toques (1984), conten<strong>do</strong> textos de uma oficina de poesia realizada em 1984.<br />
Três <strong>do</strong>s “gradua<strong>do</strong>s” da oficina literária de 1982 — Francisco Grijó, Paulo<br />
Roberto Sodré e Val<strong>do</strong> Motta — vão ser encontra<strong>do</strong>s, mais tarde, na Coleção<br />
Letras Capixabas da FCAA”. Cf. “A época áurea: os anos 80”. In.: NEVES,<br />
Reinal<strong>do</strong> <strong>Santo</strong>s. Mapa da Literatura Brasileira feita no <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>. Disponível<br />
em http://www.estacaocapixaba.com.br/texto/texto.php?id=223 ,<br />
acessa<strong>do</strong> em 21/10/2006.<br />
62 Essa titulação inscrita abaixo <strong>do</strong> seu nome ao final <strong>do</strong> prefácio,<br />
além da legitimação já dita, destaca-se se observarmos a estrutura física da<br />
1ª edição <strong>do</strong> livro feita de mo<strong>do</strong> artesanal e longe <strong>do</strong>s padrões estéticos <strong>do</strong>s<br />
livros produzi<strong>do</strong>s pela <strong>Universidade</strong>. Deste mo<strong>do</strong> a legitimação da prefacia<strong>do</strong>ra<br />
dá-se diretamente no habitat natural da poesia marginal, não ferin<strong>do</strong> a<br />
lógica não-merca<strong>do</strong>lógica das edições caseiras, como no caso da antologia<br />
26 poetas hoje organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1975 com<br />
poetas marginais <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />
63 GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Val<strong>do</strong>. Eis o homem:<br />
poemas seleciona<strong>do</strong>s (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30. Vitória:<br />
Fundação Ceciliano Abel de Almeida - <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong><br />
<strong>Santo</strong>, 1987, p. 99.<br />
338 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
maneira dialogam com a crítica atual, tais como: o “enfrentamento<br />
de contradições” da obra que suscita espanto em leitores e críticos<br />
mais sensíveis; as contradições de ordem pessoal <strong>do</strong> autor: tími<strong>do</strong>/<br />
arrogante, sutil/escracha<strong>do</strong>, fechativo/desafia<strong>do</strong>r; “linguagem<br />
que é deliberadamente a expressão de suas contradições sociais:<br />
ora formal, quase clássica, dentro <strong>do</strong>s parâmetros da norma culta;<br />
ora brutalmente grosseira, cheia de neologismos pessoais ou de<br />
expressões codificadas no meio <strong>do</strong>s homossexuais” e “a visão crítica,<br />
o humor amargo de quem participa da minoria discriminada mas que<br />
não a erige como detentora <strong>do</strong> monopólio <strong>do</strong> sofrimento humano<br />
nem a sacraliza como agrupamento corporativista intocável” 64 .<br />
Em conformidade com os apontamentos feitos por Deny Gomes,<br />
Francisco Aurelio Ribeiro foi, digamos, o segun<strong>do</strong> nesta equação de<br />
adição da crítica à obra waldiana. Primeiro em A modernidade das<br />
letras capixabas (1993) e depois em A Literatura <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>: uma<br />
marginalidade periférica (1997), onde vai reafirmar as considerações<br />
feitas por Deny Gomes acrescentan<strong>do</strong>-lhes <strong>do</strong>is outros aspectos:<br />
o 1º aspecto seria a partir <strong>do</strong>s poemas que versam sobre a<br />
homossexualidade masculina. Para Ribeiro, por não serem poemas<br />
que tratam <strong>do</strong> tema de mo<strong>do</strong> aliena<strong>do</strong> e por serem uma marca da pósmodernidade,<br />
é neles que “está o melhor de sua poesia e da poesia<br />
contemporânea ao retratar um tipo de vida quase ignora<strong>do</strong> pela<br />
poética tradicional. A ironia ao extremo, a auto-ironia, a irreverência,<br />
o deboche, o experimentalismo, o culto <strong>do</strong> corpo, o he<strong>do</strong>nismo, o<br />
consumo de drogas, a marginalidade [...]” 65 . O 2º aspecto seria que a<br />
poesia waldiana estaria incluída em uma tripla periferia: a geográfica,<br />
a cultural e a de minoria, no caso dele também tripla: negro, pobre e<br />
homossexual. 66<br />
c) a 3ª fase 67 inicia-se em 1996 com a publicação <strong>do</strong> livro Bun<strong>do</strong> e<br />
outros poemas 68 . Enten<strong>do</strong> que o problema aqui é da ordem da divisão,<br />
64 Idem., pp. 99-102.<br />
65 RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas.<br />
Vitória: <strong>UFES</strong> – SPDC/FCAA, 1993, p. 184-185.<br />
66 Cf. RIBEIRO, Francisco Aurélio. Literatura <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>:<br />
uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996, p. 67.<br />
67 Por acreditar que não figura em nenhuma das três fases por mim<br />
sugeridas, excluo propositalmente o livro Poiesen de 1990.<br />
68 MOTTA, Val<strong>do</strong>. Bun<strong>do</strong> e outros poemas. Coletânea reunin<strong>do</strong> poemas<br />
<strong>do</strong>s livros Waw e Bun<strong>do</strong>. Organização: Iumna Maria Simon e Berta<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 339
C L I P E<br />
pois se na fase anterior a crítica apenas adiciona à obra waldiana um<br />
status legitima<strong>do</strong>r em âmbito local, a partir de Bun<strong>do</strong> a legitimação da<br />
crítica figurará la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com o texto poético, por vezes sen<strong>do</strong> o<br />
único elo entre o poeta e um público maior. Neste senti<strong>do</strong>, refiro-me<br />
em especial ao ensaio de Iumna Maria Simon publica<strong>do</strong> em 1999 na<br />
revista Praga 69 . Este ensaio foi o divisor de águas no entendimento da<br />
obra waldiana, pois, além de destrinchar a poética inova<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s poemas<br />
reuni<strong>do</strong>s em Bun<strong>do</strong>, fez um pequeno esboço sobre a obra precedente<br />
<strong>do</strong> autor, situan<strong>do</strong> e acalman<strong>do</strong> os ânimos daqueles que ainda deglutiam<br />
a duras tragadas os versos <strong>do</strong> “so<strong>do</strong>mita místico <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>” 70 .<br />
Iumna foi e ainda é a única que soube dividir os outros poemas de Bun<strong>do</strong>.<br />
Em seu ensaio distingue com sabe<strong>do</strong>ria a poesia de WAW como<br />
uma “busca de autoconhecimento”, um esboço da religião e sistema<br />
Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.<br />
69 SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os <strong>do</strong>is livros<br />
de Val<strong>do</strong> Motta”. In.: Revista Praga (estu<strong>do</strong>s marxistas). São Paulo: Hucitec, n.<br />
7, p. 69-99, março 1999. Sobre o impacto que provocou este ensaio no meio<br />
crítico-literário acho salutar as palavras proferidas por Roberto Schwarz<br />
acerca da obra de Wal<strong>do</strong> Motta a partir da leitura <strong>do</strong> texto de Iumna: “Um<br />
trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de<br />
Iumna Simon, que saiu na revista Praga n° 7, sobre a poesia de Val<strong>do</strong> Motta.<br />
Ele é um poeta negro <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, homossexual militante, muito pobre<br />
e da<strong>do</strong> a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus <strong>do</strong> poeta<br />
como centro <strong>do</strong> universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura<br />
bíblica, disposição herética, leitura <strong>do</strong>s modernistas, capacidade de formulação,<br />
talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem<br />
ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem<br />
nada de exótico. [...] Para fazer justiça ao poeta, que é perfeitamente contemporâneo,<br />
ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretu<strong>do</strong>,<br />
compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as<br />
conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim - sem desmerecer<br />
outras linhas possíveis - que a crítica depende para recobrar vitalidade e estar<br />
à altura da realidade.” Cf. “Um crítico na periferia <strong>do</strong> capitalismo - Entrevista<br />
com o ensaísta e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique<br />
Lopes <strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=3668.<br />
Acessa<strong>do</strong> em 03/10/2006.<br />
70 MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta <strong>do</strong> sublime na poesia<br />
brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos e<br />
Evan<strong>do</strong> Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, p. 17. “Para fazer o contraponto<br />
com a poesia atual, destacan<strong>do</strong> algum nome <strong>do</strong>s anos 90 para juntarmos<br />
ao de Piva, creio que não há ninguém melhor que Val<strong>do</strong> Motta, o so<strong>do</strong>mita<br />
místico <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> [...]”<br />
340 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
de salvação que será arma<strong>do</strong> como <strong>do</strong>utrina em Bun<strong>do</strong>, ao mesmo<br />
tempo em que reconhece em WAW, “livro mais irregular e varia<strong>do</strong><br />
[...], menos acaba<strong>do</strong> enquanto arquitetura e sistema expressivo”, a<br />
maior quantidade de bons poemas e “verdadeiras obras-primas” 71 .<br />
A este ensaio quero acrescentar outros <strong>do</strong>is: um de Raul Antelo,<br />
“Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição moderna” 72 e<br />
outro de Miguel Sanches Neteo, “Poesia e as subculturas <strong>do</strong> gosto” 73 .<br />
O ensaio de Antelo, publica<strong>do</strong> em 1998, portanto antes de Iumna<br />
publicar o seu, destaca-se, sobretu<strong>do</strong>, pela erudição <strong>do</strong> autor que<br />
evidentemente destoa <strong>do</strong> “coloquialismo eleva<strong>do</strong>” 74 <strong>do</strong>s poemas de<br />
Bun<strong>do</strong>. Nele, Antelo associa os poemas de Wal<strong>do</strong> – com especial<br />
atenção ao “Ave, pedra <strong>do</strong>s escândalos,” 75 – a grandes nomes da<br />
literatura mundial, o que confere à sua obra um caráter universalista,<br />
furtan<strong>do</strong>-lhe, desse mo<strong>do</strong>, a “marginalidade periférica” sugerida<br />
anteriormente por Francisco Aurelio Ribeiro. Partin<strong>do</strong> da análise<br />
<strong>do</strong> poema em italiano de Murilo Mendes “Rapporto di Édipo”,<br />
passan<strong>do</strong> pelo aforismo de O discípulo de Emaú: “Deus não é<br />
somente fim – é também centro”, Antelo desemboca nas “escrituras<br />
pós-poéticas” de Wal<strong>do</strong> Motta de “Ave, pedra <strong>do</strong>s escândalos,”, para<br />
em seguida correlacioná-la à narrativa borgiana de “A aproximação a<br />
Almotassim”. Como num texto barroco, em constante elipse, Antelo<br />
vai correlacionan<strong>do</strong> textos das verves mais diversas à primeira vista,<br />
como por exemplo ao associar a “centralidade corporal” contida nos<br />
poemas de Bun<strong>do</strong> a “certas figurações modernistas, ‘sociológicas’, da<br />
origem brasileira, a teoria <strong>do</strong> puito macunaímico mas também a da<br />
geração a partir da interferência de um espírito maligno, tutelar <strong>do</strong>s<br />
peixes, uauiara, como narra a rapsódia de Mario de Andrade a partir<br />
71 SIMON, op. cit., p. 94.<br />
72 ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição<br />
moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos<br />
e Evan<strong>do</strong> Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998.<br />
73 NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas <strong>do</strong> gosto”.<br />
Em http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessa<strong>do</strong> em<br />
03/10/2006.<br />
74 SIMON, op. cit., p. 98.<br />
75 Em um grande número de poemas de Bun<strong>do</strong> não há a inscrição<br />
de título. Valho-me aqui, portanto, <strong>do</strong> primeiro verso <strong>do</strong> poema localiza<strong>do</strong> à<br />
página 43.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 341
C L I P E<br />
de Couto de Magalhães” 76 ; ou pensan<strong>do</strong> em Casa-grande & Senzala,<br />
no “enigma original da couvade, que não só aponta na direção de<br />
uma bissexualidade difusa entre os indígenas [...], mas também<br />
nos propõe uma explicação nominalista, já que, por exemplo, ovo<br />
e pai, em Bakaiiri, têm igual derivação” 77 . Em claro contra-senso<br />
de análise, Neteo, a partir <strong>do</strong> entendimento de que “a poesia pósmoderna<br />
está fundada num princípio de exclusão”, onde a exclusão<br />
não ocorre “apenas por sua linguagem rarefeita ou galvanizada<br />
(...) mas principalmente por representar uma especialização muito<br />
intransigente <strong>do</strong> gosto”, vai polemizar sobre a poética waldiana. Sua<br />
crítica reside principalmente no fato de que a poesia em Wal<strong>do</strong> Motta<br />
está a serviço <strong>do</strong>s seus interesses pessoais e grupais, sen<strong>do</strong> moldada<br />
de acor<strong>do</strong> com “as suas opções existenciais”, onde<br />
em uma grande confusão de símbolos, operan<strong>do</strong><br />
rudimentos de culturas tão díspares quanto a afro-brasileira<br />
e a hebraica, entre outras, faz uma leitura homossexual da<br />
bíblia. Atualizar algumas passagens <strong>do</strong>s textos sagra<strong>do</strong>s,<br />
numa tentativa desesperada de dar legitimidade sacra<br />
à sua preferência erótica é pretexto para um exercício<br />
escatológico gratuito. Indigna<strong>do</strong> pelo fato de na cultura<br />
ocidental o homossexualismo ter passa<strong>do</strong> como o amor<br />
que não ousa dizer o nome, ele transforma os seus poemas<br />
numa girân<strong>do</strong>la de palavrões. A sua agressividade lexical<br />
está aliada a uma visão esotérico-apocalíptica que nos faz<br />
corar, não pelos termos chulos, mas pela ingenuidade <strong>do</strong><br />
autor. 78<br />
76 ANTELO, op. cit., p. 33.<br />
77 Idem, p. 34.<br />
78 NETEO, op. cit., § 9. O autor continua parágrafos à frente: “Bun<strong>do</strong><br />
é um livro monotonamente exibicionista em que o autor vê tu<strong>do</strong> pelo<br />
prisma <strong>do</strong> amor masculino. É obra para circular entre pares, simpatizantes e<br />
interessa<strong>do</strong>s, em que o autor confunde projeto político de vida com poesia.<br />
[...] Embora o autor consiga ser o que escreve, o que escreve não consegue<br />
ser poesia. [...] Na grande maioria <strong>do</strong>s poemas, para agravar, a transgressão<br />
buscada por Val<strong>do</strong> Motta não consegue passar de agressão, fruto da pior de<br />
todas as pragas: a intransigência”. Se Neteo errou limitan<strong>do</strong> sua análise a<br />
uma leitura exclusivista <strong>do</strong> tema relegan<strong>do</strong> ao segun<strong>do</strong> plano o valor literário<br />
da obra, penso que a classificação por ele dada de “poesia da exclusão” para<br />
as obras de cunho homoerótico possa ser utiliza<strong>do</strong> para pensarmos que com<br />
a ascensão e legitimação a olhos vistos na literatura brasileira hoje de autores<br />
342 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Embora diga que sua postura enquanto crítico não é preconceituosa,<br />
seu texto assume claramente um tom homofóbico, pois, para<br />
embasar ainda mais seus argumentos, destila palavras contra o poeta<br />
Antônio Cícero e ironicamente acha “significativo” de que Bun<strong>do</strong> e<br />
Guardar (livro de Cícero) “sejam apresenta<strong>do</strong>s, respectivamente,<br />
por José Celso Martinez Correia e Silviano Santiago”. Sem entrar<br />
no mérito da segregação intelectual, penso que o erro maior<br />
de Neteo foi pensar pejorativamente a poética waldiana como<br />
uma <strong>do</strong>utrina “esotérico-apocalíptica” de cunho estritamente<br />
engaja<strong>do</strong>. Como bem definiu Deny Gomes, sua poesia de mo<strong>do</strong><br />
algum se “erige como detentora <strong>do</strong> monopólio <strong>do</strong> sofrimento<br />
humano nem sacraliza como agrupamento corporativista<br />
intocável” 79 . Concor<strong>do</strong> com Iumna quan<strong>do</strong> propõem que isto,<br />
que a Neteo soa como um engajamento stricto sensu, “ao invés<br />
de denunciar os ardis da metafísica e <strong>do</strong> idealismo integra um<br />
espécie de metafísica homossexual produzida nas bárbaras<br />
condições <strong>do</strong> antagonismo social brasileiro, hoje acentuadas pela<br />
desintegração globalizada” 80 , onde para o poeta resta apenas a<br />
poesia como “meio de se vingar da experiência da desagregação,<br />
inclusive das marcas mais opressivas <strong>do</strong> cotidiano, cuja crônica<br />
ele a faz em plano estético distancia<strong>do</strong> e impessoal” 81 .<br />
Também nesta equação de divisão <strong>do</strong> mérito entre a própria<br />
poesia <strong>do</strong> Bun<strong>do</strong> e sua crítica, acrescente-se a produção narrativa<br />
<strong>do</strong> autor contida no prefácio ao Bun<strong>do</strong> e no polêmico ensaio<br />
“Enraban<strong>do</strong> o capetinha ou o dia em que Eros se fodeu”<br />
como Glauco Mattoso, Antônio Cícero e Wal<strong>do</strong> Motta, a mulher que antes<br />
sofrera o aban<strong>do</strong>no literário por conta de uma cultura falocêntrica tende a<br />
permanecer à margem ainda por mais algum tempo. Neste senti<strong>do</strong> a obra de<br />
Wal<strong>do</strong> é revela<strong>do</strong>ra, pois o feminino é algo praticamente inexistente. Em sua<br />
<strong>do</strong>utrina da gnose anal escatológica e apocalíptica a mulher, quan<strong>do</strong> muito,<br />
“é um homem ao avesso” que “Amorosamente se destroem/ e geram frutos<br />
perecíveis”. Percebam que a própria natureza feminina da procriação vai de<br />
encontro à visão apocalíptica almejada pelo poeta. A mulher não mais intermedeia,<br />
a relação é direta entre Pai e Filho, pois elas “Destroem a figueira<br />
sagrada/ e depredam a vinha santa/ em sua feroz concupiscência/ devastam<br />
o pomar celestial”.<br />
79 GOMES, op. cit., p. 102.<br />
80 SIMON, op. cit. p. 90.<br />
81 Idem, p. 72.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 343
C L I P E<br />
publica<strong>do</strong> em 2000 no livro Mais poesia hoje 82 . No primeiro,<br />
Wal<strong>do</strong> se apresenta ao grande público, fazen<strong>do</strong> um breve histórico<br />
de sua formação e deixan<strong>do</strong> no ar algumas dicas <strong>do</strong>s interstícios de<br />
sua poética. No segun<strong>do</strong>, Wal<strong>do</strong> vai teorizar o que foi pretendi<strong>do</strong> em<br />
Bun<strong>do</strong>. E é neste senti<strong>do</strong> que penso que propôs para si um grande<br />
problema: o de como dar continuidade ao projeto poético inicia<strong>do</strong><br />
em Bun<strong>do</strong> sem limitar sua expressão poética a um tema, tornan<strong>do</strong>-a<br />
enfa<strong>do</strong>nha e repetitiva. Desde a publicação de Bun<strong>do</strong> até hoje vão-se<br />
mais de dez anos de um ostracismo poético 83 apenas interrompi<strong>do</strong><br />
pelo Recanto que está longe de representar uma continuidade à<br />
<strong>do</strong>utrina poética pretendida e anunciada como verdade. Esperamos<br />
que este tempo seja o da maturação das folhas em gavetas fechadas<br />
– tão benéfico a qualquer escrita – e não o <strong>do</strong> falecimento poético<br />
advin<strong>do</strong> da ascensão da persona literária, pois como sabemos: a vida<br />
passa, a obra fica.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ANTELO, Raul. “Não mais, nada mais, nunca mais. Poesia e tradição<br />
moderna”. In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia<br />
Matos e Evan<strong>do</strong> Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 27-45.<br />
GOMES, Deny. “Prefácio”. In.: MOTTA, Val<strong>do</strong>. Eis o homem:<br />
poemas seleciona<strong>do</strong>s (1980-84) Coleção Letras Capixabas. Vol. 30.<br />
Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida - <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, 1987, pp. 99-103.<br />
MORICONI, Ítalo. “Pós-modernismo e volta <strong>do</strong> sublime na poesia<br />
brasileira” In.: Poesia hoje. Organização: Celia Pedrosa, Cláudia Matos<br />
e Evan<strong>do</strong> Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 11-26.<br />
MOTTA, Val<strong>do</strong>. “Enraban<strong>do</strong> o capetinha ou o dia em que Eros<br />
se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de<br />
Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76.<br />
82 Cf. MOTTA, Val<strong>do</strong>. “Enraban<strong>do</strong> o capetinha ou o dia em que<br />
Eros se fodeu”. In. Mais poesia hoje. Organização: Célia Pedrosa. Rio de<br />
Janeiro: 7Letras, 2000. p. 59-76.<br />
83 Recentemente foi apresentada ao Mestra<strong>do</strong> de Estu<strong>do</strong>s Literários<br />
da <strong>UFES</strong> dissertação sobre a obra poética de Wal<strong>do</strong> Motta, onde faz-se menção<br />
ao livro ainda não publica<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Terra sem mal. Cf. BERÇACO,<br />
Ériton Bernardes. Exus, cus e ecos: a poética erótico-sagrada de Wal<strong>do</strong> Motta.<br />
– 2008.<br />
344 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
MOTTA, Val<strong>do</strong>. Bun<strong>do</strong> e outros poemas. Coletânea reunin<strong>do</strong> poemas<br />
<strong>do</strong>s livros Waw e Bun<strong>do</strong>. Organização: Iumna Maria Simon e Berta<br />
Waldman. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.<br />
MOTTA, Val<strong>do</strong>. Eis o homem: poemas seleciona<strong>do</strong>s 1980/1984.<br />
Coletânea. Vitória-ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida -<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>, 1987.<br />
MOTTA, Val<strong>do</strong>. Transpaixão: coletânea. Vitória: Kabun<strong>do</strong>, 1999.<br />
MOTTA, Val<strong>do</strong>. Recanto - poema das 7 letras. Vitória: Ímã, 2002.<br />
NETEO, Miguel Sanches. “Poesia e as subculturas <strong>do</strong> gosto”. Em<br />
http://www.revistaagulha.com.br/msanches13.html. Acessa<strong>do</strong> em<br />
03/10/2006.<br />
NEVES, Reinal<strong>do</strong> <strong>Santo</strong>s. Mapa da Literatura Brasileira feita no<br />
<strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>. Disponível em http://www.estacaocapixaba.com.br/<br />
texto/texto.php?id=223 , acessa<strong>do</strong> em 21/10/2006.<br />
RIBEIRO, Francisco Aurelio. A modernidade nas letras capixabas.<br />
Vitória: <strong>UFES</strong> – SPDC/FCAA, 1993.<br />
RIBEIRO, Francisco Aurelio. Literatura <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong>: uma<br />
marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996.<br />
SIMON, Iumna Maria. “Revelação e desencanto – os <strong>do</strong>is livros<br />
de Val<strong>do</strong> Motta”. In.: Revista Praga (estu<strong>do</strong>s marxistas). São Paulo:<br />
Hucitec, n. 7, p. 69-99, março 1999.<br />
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários &<br />
retratos. 2ª ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.<br />
EntrEvista<br />
“Um crítico na periferia <strong>do</strong> capitalismo - Entrevista com o ensaísta<br />
e crítico literário Roberto Schwarz”. Por Luiz Henrique Lopes<br />
<strong>do</strong>s <strong>Santo</strong>s e Mariluce Moura. In.: http://www.universia.com.br/<br />
materia/materia.jsp?materia=3668. Acessa<strong>do</strong> em 03/10/2006.<br />
Site<br />
http://www.wal<strong>do</strong>motta.cjb.net/<br />
Recebi<strong>do</strong> em 04/08/2008<br />
Aprova<strong>do</strong> em 14/09/2008<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 345
346 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
TRADUÇÕES<br />
OUVERTURE LA VIE EN CLOSE<br />
em latim<br />
“porta” se diz “janua”<br />
e “janela” se diz “fenestra”<br />
a palavra “fenestra”<br />
não veio para o português<br />
mas veio o diminutivo de “janua”,<br />
“januela”, “portinha”,<br />
que deu nossa “janela”<br />
“fenestra” veio<br />
mas não como esse ponto da casa<br />
que olha o mun<strong>do</strong> lá fora,<br />
de “fenestra”, veio “fresta”,<br />
o que é coisa bem diversa<br />
já em inglês<br />
“janela” se diz “win<strong>do</strong>w”<br />
porque por ela entra<br />
o vento (“wind”) frio <strong>do</strong> norte<br />
a menos que a fechemos<br />
como quem abre<br />
o grande dicionário etimológico<br />
<strong>do</strong>s espaços interiores<br />
(Paulo Leminski)<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 347
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348 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ALFRED DE SAINT-QUENTIN<br />
Tradução e notas de Álvaro Faleiros (USP)<br />
Um <strong>do</strong>s primeiros registros da literatura da Guiana de<br />
que se tem conhecimento é a coletânea de contos e fábulas<br />
populares de Alfred de Saint-Quentin. Sabe-se muito pouco<br />
sobre o poeta além <strong>do</strong> fato de que trabalhava em 1837 para o<br />
governo da Guiana e que publicou sua Introdução à história de<br />
Caiena em 1862. Este é um <strong>do</strong>s poucos poemas dele de que se<br />
tem conhecimento e pode ser interpreta<strong>do</strong> como um canto de<br />
adeus de um escravo negro envia<strong>do</strong> à América. Na tradução, o<br />
tom eloqüente <strong>do</strong> poema foi um pouco atenua<strong>do</strong> pela escolha<br />
da terceira pessoa <strong>do</strong> singular ao invés da segunda <strong>do</strong> plural,<br />
muito mais usual em francês.<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 349
T R A D U Ç Õ E S<br />
350 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
AMIE, ADIEU<br />
Je pars, le navire s’en va,<br />
Amie, adieu !<br />
Laissez-moi baiser vos mains et vos cheveux !<br />
Amie, adieu !<br />
Quand je serai là-bas vous songerez à ma peine !<br />
Ne m’oubliez pas, n’oubliez pas votre ami !<br />
Comment pourai-je vivre si loin de vous ?<br />
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !<br />
Rappelez-vous, rappelez-vous notre rencontre,<br />
Amie, adieu !<br />
Vous m’avez promis de ne jamais oublier.<br />
Amie, adieu !<br />
Dès que je vous vis mon coeur s’enflamma,<br />
Je demeurai immobile les yeux fixés sur vous ;<br />
Oh ! que vous étiez belle ! Vos yeux étincelaient !<br />
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !<br />
Je vous parlai, j’entendis votre choix,<br />
Amie, adieu !<br />
Et nous nous aimâmes.<br />
Amie, adieu !<br />
C’en est fait ! maintenant je pars !<br />
Vous gémissez, vos larmes coulent,<br />
Mais bientôt viendra l’oubli !<br />
Amie, adieu ! Hélas ! adieu !
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
AMIGA, ADEUS !<br />
Parto, o navio se vai,<br />
Amiga, adeus!<br />
Deixe-me beijar suas mãos e cabelos!<br />
Amiga, adeus!<br />
Quan<strong>do</strong> eu já estiver lá pense em meu tormento!<br />
Não esqueça de mim, não olvide seu amigo!<br />
Como poderei viver tão longe assim!<br />
Amiga, adeus! Que pena! adeus!<br />
Lembra, lembra <strong>do</strong> nosso encontro,<br />
Amiga, adeus!<br />
Prometeu nunca me esquecer.<br />
Amiga, adeus!<br />
No instante em que lhe vi meu peito se inflamou,<br />
Fiquei imóvel com os olhos fixos a lhe encarar;<br />
Oh! como você é bela! Seus olhos resplandeciam!<br />
Amiga, adeus! Que pena! adeus!<br />
Eu lhe falava, escutava sua voz,<br />
Amiga, adeus!<br />
E nós nos amamos.<br />
Amiga, adeus!<br />
Está feito! Agora parto!<br />
Você lamenta, as lágrimas escorrem,<br />
Mais em breve virá o esquecimento!<br />
Amiga, adeus! Que pena! adeus!<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 351
T R A D U Ç Õ E S<br />
GEORGE POPESCU<br />
Tradução e notas de Marco Lucchesi (UFRJ)<br />
Núpcias de Cadmo e Harmonia<br />
Parte essencial da história da literatura repousa na<br />
poética <strong>do</strong> encontro. Tramada pelos anjos, que movem as<br />
letras <strong>do</strong> livro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, os anjos da cabala, tão abissais em<br />
seus mistérios.<br />
Não tenho como provar o que digo. Mas sei que existe<br />
uma verdade imponderável.<br />
Abismo de palavras em branca superfície. Espaço<br />
aponta<strong>do</strong> por Lucian Blaga como sen<strong>do</strong> a imagem de um<br />
saber que cria camadas mais profundas de menos-saber<br />
(minuscunoaštere).<br />
Tive um desses encontros que me levaram ao impacto<br />
da língua romena. George Popescu foi o meu Virgílio. Poeta de<br />
águas claras. Metade anjo. Metade abismo.<br />
A Romênia era e continua sen<strong>do</strong> para mim uma<br />
transcendência no campo da latinidade. E ela saltava <strong>do</strong>s<br />
olhos de George. Olhos difíceis de alcançar, os seus, como<br />
que atravessa<strong>do</strong>s por uma espessa neblina, mensageiros de<br />
verdades esquecidas, como os espelhos de Jean Cocteau.<br />
George é um poeta habita<strong>do</strong> pelo futuro. Futuro mais<br />
longo que o passa<strong>do</strong>. Tal como o destino da literatura romena.<br />
Cidade de Craiova. Estrada Brestei, 59.<br />
Conversas infindáveis no calor da biblioteca. Uma<br />
floresta de poetas e palavras. Densas madrugadas. Cigarros. E<br />
charutos. Para espantar os vapores frios da noite. George me<br />
deu uma língua e uma constelação no céu de minhas buscas.<br />
352 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Essa língua, tão cheia de claro-escuros. E cujo léxico<br />
impressiona.<br />
Ouço a polifonia de dácios, getas, gregos e romanos.<br />
A fronteira da latinidade, tão viva e porosa, com seu acervo<br />
de palavras turcas e francesas. O mun<strong>do</strong> eslavo, forman<strong>do</strong><br />
um continuum admirável com o latino, apressa as núpcias de<br />
Cadmo e Harmonia.<br />
Anoto três formas de dizer pôr-<strong>do</strong>-sol e seus possíveis<br />
devaneios:<br />
Asfintit. Como que o Sol tocasse em pleno ocaso o Mar<br />
Negro e liberasse um vapor imenso, através <strong>do</strong> f e <strong>do</strong> ţ, torna<strong>do</strong><br />
agu<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>is i.<br />
Amurg. Sinto como que uma grande desolação: a<br />
consoante final tão abrupta e esse u tão escuro. Um resto de<br />
luz se perde à medida que avanço palavra adentro.<br />
Apus. A sensação de um anoitecer precipita<strong>do</strong>, que<br />
começa no u e se prolonga nas horas mortas <strong>do</strong> s, que<br />
pronuncio como se fosse uma semibreve.<br />
Seja como for, nosso diálogo noturno, eminentemente<br />
noturno, irava em torno <strong>do</strong> labirinto da palavra e <strong>do</strong> fio de<br />
ouro da etimologia: Lauras, Verônicas, Ariadnes. Mas era a<br />
elena de Pierre Jean Jouve aquela que parecia melhor atender à<br />
síntese <strong>do</strong> feminino e seus arcanos.<br />
Por que nossas latinidades iam tão esquecidas, diante de<br />
tantas convergências?<br />
O romeno e o português são as flores últimas <strong>do</strong> Lácio.<br />
Extremos que coincidem (como vertentes marginais) em<br />
relação a um possível centro de latinidade. E todavia essas<br />
flores parecem de to<strong>do</strong> solitárias.<br />
Talvez a solução estivesse nas mãos <strong>do</strong>s poetas, em seu<br />
imaginário inquieto e gentil.<br />
Um passaporte para toda a latinidade.<br />
Assim, passavam pela biblioteca – como os reisfantasmas<br />
diante de um Macbeth sidera<strong>do</strong> – os maiores<br />
poetas da Romênia. Mace<strong>do</strong>nski e sua melodia, tão alta<br />
como as torres-agulha de Istambul, além daquelas coloridas<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 353
T R A D U Ç Õ E S<br />
e aceboladas de Moscou. O verbo iridescente de Ion Barbu,<br />
cria<strong>do</strong>r inigualável, e a liberdade, brilhan<strong>do</strong> a cada estrofe. As<br />
remissões de Arhgezi, com seu mo<strong>do</strong> firme, delica<strong>do</strong>, irregular.<br />
Bacovia e sua tremenda melancolia, preso aos brancos e aos<br />
cinzas. A impertinência de Geo Bogza com o seu belo circo<br />
semântico. Gherassim Luca e o golpe de esta<strong>do</strong> no seio da<br />
linguagem. Além da luminosa poesia de Blaga, a partir <strong>do</strong><br />
cemitério romano, das aldeias e <strong>do</strong> espaço miorítico.<br />
Este foi o começo de uma amizade profunda e a<br />
descoberta de uma poesia atormentada e bela, que habita o<br />
coração da baixa modernidade. Da obra extensa e variada de<br />
George Popescu, apresentamos esta breve antologia, toda ela<br />
constituída de poemas inéditos em português.<br />
Itacoatiara, dezembro de 2008.<br />
354 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
MARGINEA SE REVOLTĂ<br />
nu eu sunt alesul<br />
şi<br />
nu tu eşti cel aşteptat<br />
aici<br />
în acolada în care<br />
cad duminica<br />
îngeri fragezi<br />
cu aripi de maci<br />
tremură limfa<br />
se ascute<br />
marginea<br />
se revoltă molia<br />
infinitei cânepe cereşti<br />
jocul de-a căutatul de-ne-găsit<br />
un relief accidentat
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
A MARGEM SE REBELA<br />
eu não sou o escolhi<strong>do</strong><br />
e<br />
tu não és o espera<strong>do</strong><br />
aqui<br />
neste parênteses onde<br />
caem no <strong>do</strong>mingo<br />
anjos delica<strong>do</strong>s<br />
com asas de papoulas<br />
treme a linfa<br />
aguça-se<br />
a margem<br />
rebela-se a traça<br />
<strong>do</strong> interminável cânhamo celeste<br />
o jogo de buscar não encontrável<br />
relevo acidenta<strong>do</strong><br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 355
T R A D U Ç Õ E S<br />
NUMAI FOAMEA ÎNFLOREŞTE<br />
356 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Locuiesc singur<br />
purgatoriul famelic<br />
încă setos şi încă trădat:<br />
cu braţele mele am ucis<br />
trandafirul bolnav de speranţe<br />
iluzia nu mă priveşte<br />
speranţa are picioare scurte<br />
numai foamea înfloreşte<br />
în ochii copilului aban<strong>do</strong>nat<br />
cu giacomino cerşesc fragilitatea<br />
acestei luni hazlii<br />
gemând de caisele<br />
unei copilării de prisos
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
SOMENTE A FOME FLORESCE<br />
habito solitário<br />
o purgatório famélico<br />
inda com sede e traí<strong>do</strong><br />
matei com meus braços<br />
a rosa <strong>do</strong>ente de esperanças<br />
a ilusão não me concerne<br />
a esperança tem pequenos pés<br />
somente a fome floresce<br />
nos olhos <strong>do</strong> menino aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong><br />
com giacomino mendigo a fragilidade<br />
dessa lua burlesca<br />
gemen<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong>s pêssegos<br />
de uma infância inútil<br />
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T R A D U Ç Õ E S<br />
358 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
ADORMIREA SEMNULUI<br />
iarba se ridică<br />
din nisipul spaimei<br />
şi fuge prin ghimpii<br />
unei inocenţe fără hotar<br />
apuc râul de pletoasele-i sălcii<br />
şi-l mut mai aproape<br />
de numele tău<br />
către destinul unei pietre uitate<br />
numele meu pleacă<br />
fluierând prin trestirişul<br />
acestei atopice favele a<br />
lui marco:<br />
semnul a<strong>do</strong>arme<br />
sub secara ochilor tăi<br />
de copil<br />
aban<strong>do</strong>nat de îngerul spaimei
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O ADORMECER DO SINAL<br />
ergue-se a relva<br />
<strong>do</strong> areal <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />
e foge por entre espinhos<br />
de uma inocência que não tem fim<br />
apanho o rio pela crina <strong>do</strong>s salgueiros<br />
e o levo às cercanias<br />
de teu nome<br />
para um destino de pedra esquecida<br />
meu nome segue<br />
assovian<strong>do</strong> pelo canavial<br />
desta atópica favela<br />
de marco:<br />
o sinal vai <strong>do</strong>rmir<br />
sob o centeio de teus olhos<br />
de menino<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo anjo assusta<strong>do</strong>r<br />
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T R A D U Ç Õ E S<br />
360 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
ARDEREA DE UNGHII<br />
pe frunzele îngheţate ale serii<br />
nu se mai găseau decât braţe învinse<br />
melci sterpi şi coji de îngeri<br />
în cenuşa ierbii duşmane<br />
o stea pustia în ochii<br />
de tablă ai străinului<br />
secera verii bolnave<br />
stingea remediul<br />
unui prunc sfânt<br />
în tăişul albastru<br />
memoria îngâna rugina amintirii<br />
eram mort şi nu ştiam<br />
piatra de pe frunte scria<br />
pe cerul vecin<br />
o hieroglifă de adio
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UNHAS EM CHAMAS<br />
nas folhas geladas da noite<br />
já não se encontram mais que braços venci<strong>do</strong>s<br />
estéreis caracóis e cascas de anjos<br />
nas cinzas de inimiga relva<br />
uma estrela solitária nos olhos<br />
de lata <strong>do</strong> estrangeiro<br />
a foice de um verão enfermo<br />
pôs fim ao remédio<br />
de um sagra<strong>do</strong> feto<br />
no corte azul<br />
a memória murmurava a ferrugem da lembrança<br />
eu estava morto sem saber<br />
a pedra junto à fronte ditava<br />
no céu próximo<br />
um hieróglifo de adeus<br />
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T R A D U Ç Õ E S<br />
SĂRBĂTOAREA DEZASTRULUI<br />
362 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
ca şi cum gura ta<br />
nu mi-ar cunoaşte pasul<br />
moare ora promisă<br />
în dinţii unui mut<br />
vinul aşteaptă gura pelegrinului<br />
însetat de boală<br />
iarba renaşte în sicriul gol<br />
staulul huruie<br />
o carte amuţeşte în mâinile<br />
dansatoarei uitate<br />
pe un câmp între<br />
anii ştirbi ai unei tinereţi netimbrate<br />
hoţul de ieri<br />
vinde zile furate<br />
unui calendar însângerat<br />
ceea ce vezi e<br />
<strong>do</strong>ar sărbătoarea dezastrului
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A FESTA DO DESASTRE<br />
como se tua boca<br />
não soubesse meus passos<br />
a hora prometida morre<br />
nos dentes de um mu<strong>do</strong><br />
o vinho aguarda a boca <strong>do</strong> peregrino<br />
sequioso de <strong>do</strong>ença<br />
a relva renasce no féretro vazio<br />
o presépio ressoa<br />
um livro emudece nas mãos<br />
da dançarina sem memória<br />
num campo de<br />
tempos sem dentes de uma juventude a que faltaram selos<br />
o ladrão da véspera<br />
vende os dias rouba<strong>do</strong>s<br />
de um calendário em sangue<br />
o que vês é<br />
apenas a festa <strong>do</strong> desastre<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 363
T R A D U Ç Õ E S<br />
INSIDIOSUL PACT CU IARBA DUMINICALĂ<br />
364 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
e mult fum în micul bar<br />
prin vitrină îngeri noi<br />
mimează eternitatea<br />
prin cartoane în care zumzăie<br />
efemerul în reclame arse de ger<br />
la măsuţa din colţ<br />
o rochie tânără îmbracă tăcerea<br />
a<strong>do</strong>lescentei moarte de ieri<br />
dinspre suburbii veselia<br />
săracilor salută pomana degeaba<br />
cineva poartă spre gura<br />
fragilei libertăţi<br />
paharul greu al spaimei<br />
surâsul tău înfloreşte<br />
lângă petala ratată<br />
a trădării smulse<br />
unui pact dureros<br />
cu iarba duminicală<br />
asediind gelatina ce ne inundă
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
O PACTO INSIDIOSO COM A RELVA DOMINICAL<br />
muita fumaça no pequeno bar<br />
na vitrine novos anjos<br />
imitam a eternidade<br />
nos cartazes por onde zune<br />
o efêmero em propagandas queimadas de gelo<br />
na mesinha <strong>do</strong> canto<br />
um jovem paletó veste o silêncio<br />
da a<strong>do</strong>lescente que ontem morreu<br />
<strong>do</strong>s subúrbios a alegria<br />
<strong>do</strong>s pobres saúda o gesto que faltou<br />
alguém leva à boca<br />
da frágil liberdade<br />
o pesa<strong>do</strong> copo <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />
teu sorriso floresce<br />
junto à pétala caída<br />
da traição separada<br />
por um sofri<strong>do</strong> pacto<br />
com a relva de <strong>do</strong>mingo<br />
no cerco da gelatina que nos cobre<br />
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T R A D U Ç Õ E S<br />
FERICIREA DE DUPĂ MOARTE<br />
o cafea fără lacrimi aproape<br />
imposibil de băut -<br />
în săracul bar din Assis:<br />
366 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
femeia de la masa vecină<br />
(toată azurie: îmbrăcată în cerul<br />
care<br />
prin ochiul sordid al ferestrei<br />
îmi face cu mâna)<br />
îmi spune:<br />
n-am trăit mult - tu tremuri<br />
în ciobul unei amintiri nepoftite -<br />
dar bucuria nu m-a ocolit<br />
ascult din locul meu clandestin<br />
cum Brazilia aruncă spre margini<br />
prelungi fâşii de suspine<br />
ce i-au strivit destinul<br />
hei, n-am murit dacă asta-ai crezut<br />
deşi<br />
acum<br />
trăiesc<br />
fericirea de după moarte<br />
zice<br />
şi nu ştiu de ce<br />
în rochia aceea a ei numai cer<br />
am regăsit funinginea<br />
unei Veneţii divorţate<br />
de porumbeii cărora nici eternitatea<br />
nu le-a fost de folos
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
A FELICIDADE DEPOIS DA MORTE<br />
um café sem lágrimas quase<br />
impossível de beber –<br />
no pobre bar de Assis:<br />
a mulher da mesa ao la<strong>do</strong><br />
(toda de azul: vestida de céu<br />
que<br />
pelo olho sórdi<strong>do</strong> da janela<br />
me acena)<br />
me diz<br />
não vivi muito – e tremes<br />
no caco de uma lembrança não convocada –<br />
mas a felicidade nunca me faltou<br />
ouço de meu lugar clandestino<br />
como o Brasil manda para as margens<br />
tão prolongadas faixas de suspiros<br />
que o destino esmagou<br />
ah, não morri se tal supuseste<br />
mas<br />
agora<br />
vivo<br />
a felicidade depois da morte<br />
diz<br />
e não sei por que<br />
naquele vesti<strong>do</strong> de céu absoluto<br />
encontrei a fuligem<br />
de uma Veneza divorciada<br />
<strong>do</strong>s pombos aos quais sequer a eternidade<br />
prestou socorro<br />
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368 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
Venezia sterilă şi aspră<br />
din visul cu tine<br />
şi cuţitul alb în carnea<br />
insomniei fără de leac
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
Veneza áspera e estéril<br />
que sonhei contigo<br />
e o branco punhal na carne<br />
da insônia sem remédio<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 369
T R A D U Ç Õ E S<br />
370 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009<br />
SEDUC SÂNGELE HOMERIC<br />
Les actions du poète ne sont que la consequence des énigmes de la<br />
poésie. (René Char)<br />
pe cassandra n-a luat-o nimeni de mână<br />
(la ţărm răsunau cântări de cheflii<br />
prea trişti ca să privească luna)<br />
maci negri fumegau în covata verii<br />
ce sta să vină: examen al frunzei<br />
în zăpada azură<br />
pe <strong>do</strong>sul paginii se mai văd<br />
intraductibile plăgile poetului<br />
pensionat de zeii potrivnici<br />
orbit de asfaltul care-mi seduce<br />
peticul de linişte prelins<br />
în estuarul unui vers trecut<br />
de ghilotina prezentului năprasnic<br />
seduc sângele homeric<br />
de prin tavernele arse de spaimă<br />
şi cine-a mai stat pe pietrele arse<br />
ale poveştii ce-a înghiţit<br />
mari hălci din profeţia<br />
acelei moarte eterne?<br />
în paharul străinului<br />
se otrăveşte vinul în aşteptare
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
ESTOU SEDUZINDO O SANGUE HOMÉRICO<br />
Les actions du poète ne sont que la conséquence des énigmes de la<br />
poésie. (René Char)<br />
ninguém tomou Cassandra pelo braço<br />
(ecoavam junto à margem canções de bêba<strong>do</strong>s<br />
mais tristes para ver a lua)<br />
negras papoulas deitam fumo nos ninhos <strong>do</strong> verão<br />
que está para chegar: a prova das folhas<br />
junto à neve azul<br />
no verso da página ainda se vêem<br />
as intraduzíveis chagas <strong>do</strong> poeta<br />
aposenta<strong>do</strong> pelos férreos deuses<br />
cego pelo asfalto que me seduz<br />
esboço de silêncio orvalha<strong>do</strong><br />
no estuário de um verso que passou<br />
na guilhotina <strong>do</strong> presente em tempestade<br />
estou seduzin<strong>do</strong> o sangue homérico<br />
numa taberna crestada de me<strong>do</strong><br />
quem mais passou nas pedras ardentes<br />
da fábula que engoliu<br />
grandes partes da profecia<br />
daquela eterna morta?<br />
no copo <strong>do</strong> forasteiro<br />
o vinho se envenena na espera<br />
Publicação da Edufes - Editora da <strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> <strong>do</strong> <strong>Espírito</strong> <strong>Santo</strong> • 371
Revista <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Letras • C O N T E X T O<br />
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA<br />
<strong>CONTEXTO</strong><br />
1. Ao enviar o artigo, o autor deve fornecer: a) nome completo;<br />
b) endereço; c) telefones; d) formação acadêmica; e) instituição<br />
em que trabalha; f) principais publicações.<br />
2. São aceitos textos redigi<strong>do</strong>s em português, inglês, francês,<br />
espanhol ou italiano.<br />
3. Apresentar o texto na seguinte seqüência: título <strong>do</strong> artigo,<br />
nome(s) <strong>do</strong>(s) autor(es), filiação institucional, resumo na língua<br />
<strong>do</strong> artigo e em italiano, francês, espanhol ou inglês, palavraschave<br />
em português e na outra língua <strong>do</strong> resumo apresenta<strong>do</strong>,<br />
texto, referências e anexos.<br />
4. Digitar o texto em Word for Win<strong>do</strong>ws (edição 6.0 ou<br />
superior), fonte Times New Roman, corpo 12, espaçamento<br />
simples entre linhas e parágrafos, em mo<strong>do</strong> justifica<strong>do</strong>. Entre<br />
partes <strong>do</strong> texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas,<br />
ilustrações etc., utilizar espaço duplo<br />
5. Formato de papel A4, com 3 cm nas margens esquerda<br />
e superior e 2 cm nas margens direita e inferior. Utilizar<br />
paragrafação automática, com adentramento.<br />
6. Digitar o título <strong>do</strong> artigo centraliza<strong>do</strong> na primeira linha da<br />
primeira página com fonte Times New Roman, tamanho 12,<br />
em formato negrito, todas as letras maiúsculas.<br />
7. O texto deve ter entre 12 a 24 laudas, não ultrapassan<strong>do</strong> a 8<br />
mil caracteres, incluin<strong>do</strong> os anexos.<br />
8. Usar normas de citação da ABNT.<br />
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9. Os resumos devem ser antecedi<strong>do</strong>s pela expressão RESUMO<br />
em maiúsculas, seguida de <strong>do</strong>is pontos. O texto <strong>do</strong>s resumos<br />
segue na mesma linha e deve ficar entre 100 e 150 palavras.<br />
Digitá-lo em fonte Times New Roman, corpo 11.<br />
10. As palavras-chave devem ser antecedidas pela expressão<br />
PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, seguida de <strong>do</strong>is pontos.<br />
Utilizar entre três e cinco palavras-chave com fonte Times<br />
New Roman, tamanho 11, com inicial em maiúscula, separadas<br />
por ponto.<br />
11. Digitar os títulos de seções com fonte Times New Roman,<br />
tamanho 12, em negrito e duas linhas após o último parágrafo<br />
da seção anterior. Apenas a primeira letra de cada subtítulo<br />
deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes<br />
próprios.<br />
12. As referências no texto devem ser indexadas pelo sistema<br />
autor-data da ABNT: (SILVA, 2005, p. 36). Quan<strong>do</strong> o<br />
sobrenome vier fora <strong>do</strong>s parênteses, deve-se utilizar apenas a<br />
primeira letra em maiúscula.<br />
13. Citações no meio <strong>do</strong> texto sempre devem vir entre aspas e<br />
nunca em itálico. Use itálico para termos estrangeiros.<br />
14. Exemplos de corpora analisa<strong>do</strong>s devem vir no padrão de<br />
citação.<br />
15. Caso seja necessária transcrição fonética, o autor deve<br />
enviar a fonte utilizada juntamente com seu artigo, a fim de<br />
que a mesma possa ser instalada para editoração <strong>do</strong> artigo.<br />
16. As notas de rodapé, só as essencialmente necessárias,<br />
devem aparecer em seqüência numérica, com fonte corpo 10.<br />
Se houver nota no título, marcar com asterisco (*). Não se deve<br />
374 • Revista nº 15 e 16 - 2008/2009
usar nota para citar referência.<br />
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17. Tabelas, quadros, ilustrações (desenhos, gráficos etc.)<br />
devem ser entregues prontos para a editoração eletrônica. Eles<br />
deverão ser devidamente escanea<strong>do</strong>s e inseri<strong>do</strong>s no texto. Os<br />
títulos de figuras devem ser digita<strong>do</strong>s com fonte Times New<br />
Roman, tamanho 12, em formato normal, centraliza<strong>do</strong>. Tabelas,<br />
quadros, ilustrações devem ser identifica<strong>do</strong>s por legendas.<br />
18. Os anexos devem ser entregues prontos para a editoração<br />
eletrônica. Para anexos que se constituem de textos já<br />
publica<strong>do</strong>s, o autor deve incluir referência bibliográfica<br />
completa.<br />
19. As referências devem ser antecedidas da expressão<br />
Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida<br />
na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem<br />
seguir as normas vigentes da ABNT. Os autores devem ser<br />
cita<strong>do</strong>s em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço<br />
entre as referências e sem adentramento. Ordene referências<br />
de mesmo autor em ordem decrescente.<br />
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