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PAZ, Octavio - Claude Lévi-Strauss ou o Novo - No-IP

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OCTAVIO <strong>PAZ</strong><br />

CLAUDE LÉVI-STRAUSS<br />

OU O NOVO FESTIM DE ESOPO<br />

Editora Perspectiva<br />

1977<br />

_______________________________________________________<br />

<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo<br />

2


Título do original<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> o el Nuevo Festín de Esopo<br />

© <strong>Octavio</strong> Paz<br />

Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA<br />

PERSPECTIVA S.A.<br />

Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 – São Paulo – Brasil<br />

Telefone: 288-8388<br />

1977<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo<br />

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SUMÁRIO<br />

1. Uma Metáfora Geológica. Comércio Verbal e Comércio Sexual:<br />

Valores, Signos, Mulheres.<br />

2. Símbolos, Metáforas e Equações. A Posição e o Significado. Ásia,<br />

América e Europa. Três Transparentes: O Arco-íris, o Veneno e a<br />

Doninha. O Espírito: Algo que é Nada.<br />

3. Intermédio Discordante. Defesa de uma Cinderela e <strong>ou</strong>tras<br />

divagações. Um Triângulo Verbal: Mito, Épica e Poema<br />

4. Qualidades e Conceitos: Pares e Parelhas, Elefantes e Tigres. A<br />

Reta e o Círculo. Os Remorsos do Progresso. Ingestão, Conversão,<br />

Expulsão. O Fim da Idade do Ouro e o Começo da Escritura.<br />

5. As Práticas e os Símbolos. O Sim <strong>ou</strong> o Não e o Mais <strong>ou</strong> Menos. O<br />

Inconsciente do Homem, e o das Máquinas. Os Signos que se Destroem:<br />

Transfigurações. Taxila<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo<br />

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1. UMA METÁFORA GEOLÓGICA.<br />

COMERCIO VERBAL E COMÉRCIO SEXUAL: VALORES,<br />

SIGNOS, MULHERES.<br />

Há cerca de quinze anos um comentário de Georges Bataille sobre<br />

Les structures élémentaires de la parenté revel<strong>ou</strong>-me a existência<br />

de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. Comprei o livro, e após várias e infrutíferas tentativas,<br />

abandonei sua leitura. Minha boa vontade de aficcionado da<br />

antropologia e meu interesse pelo tema (o tabu do incesto) se chocaram<br />

com o caráter técnico da obra. <strong>No</strong> ano passado um artigo em The<br />

Times Literary Supplement (Londres) volt<strong>ou</strong> a despertar a minha<br />

curiosidade. Li apaixonadamente Tristes tropiques, e a seguir, com<br />

deslumbramento crescente, Anthropologie structurale, La pensée<br />

sauvage , Le totémisme auj<strong>ou</strong>rd'hui e Le cru et le cuit. Este<br />

último é um livro particularmente difícil: o leitor sofre uma espécie de<br />

vertigem intelectual ao seguir o autor em sua sinuosa peregrinação<br />

através da selva de mitos dos índios bororé e gê. Percorrer esse labirinto<br />

é penoso, mas fascinante: muitos trechos desse “concerto” do<br />

conhecimento me exaltaram, <strong>ou</strong>tros me iluminaram e alguns me<br />

irritaram. Embora leia por prazer e sem tomar notas, a leitura de <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> me revel<strong>ou</strong> tantas coisas e despert<strong>ou</strong> em mim tais interrogações<br />

que, quase sem perceber, fiz alguns apontamentos. Este texto é o<br />

resultado de minha leitura.<br />

Resumo de minhas impressões e meditações, não tem qualquer<br />

pretensão crítica.<br />

Os escritos de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> têm uma importância tríplice:<br />

antropológica, filosófica e estética. Sobre o primeiro mal é necessário<br />

dizer que os especialistas consideram fundamentais seus trabalhos sobre<br />

o parentesco, os mitos e o pensamento selvagem. A etnografia e a<br />

etnologia americanas lhe devem estudos notáveis; além disso, em quase<br />

todas as suas obras há muitas observações dispersas sobre problemas da<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo<br />

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pré-história e da história do nosso continente: a antiguidade do homem<br />

no <strong><strong>No</strong>vo</strong> Mundo, as relações entre a Ásia e a América, a arte, a cozinha,<br />

os mitos indo-americanos...<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> desconfia da filosofia mas seus livros são um diálogo<br />

permanente, quase sempre crítico, com o pensamento filosófico e<br />

particularmente com a fenomenologia. Por <strong>ou</strong>tro lado, sua concepção da<br />

antropologia como parte de uma futura semiologia <strong>ou</strong> teoria geral dos<br />

signos e suas reflexões sobre o pensamento (selvagem e civilizado) são de<br />

certo modo uma filosofia: seu tema central é o lugar do homem no<br />

sistema da natureza. Em sentido mais reduzido, embora não menos<br />

estimulante, sua obra de “moralista” tem também um interesse<br />

filosófico: <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> continua a tradição de R<strong>ou</strong>sseau e Diderot,<br />

Montaigne e Montesquieu. Sua meditação sobre as sociedades nãoeuropéias<br />

se resolve em uma crítica das instituições ocidentais, e esta<br />

reflexão culmina na última parte de Tristes tropiques por uma curiosa<br />

profissão de fé, desta vez francamente filosófica, em que oferece ao leitor<br />

uma espécie de síntese entre os deveres do antropólogo, do pensador<br />

marxista e a tradição budista. Entre as contribuições de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> à<br />

estética citarei os estudos sobre a arte indo-americana – um sobre o<br />

dualismo representativo na Ásia e na América, <strong>ou</strong>tro em torno do tema<br />

da serpente com o corpo repleto de peixes – e suas idéias brilhantes,<br />

embora nem sempre convincentes, sobre a música, a pintura e a poesia.<br />

P<strong>ou</strong>co direi sobre o valor estético de sua obra. Sua prosa me faz pensar<br />

na de três autores que talvez não sejam de sua predileção: Bergson,<br />

Pr<strong>ou</strong>st e Breton. Neles, como em <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, o leitor se defronta com<br />

uma linguagem que oscila continuamente entre o concreto e o abstrato,<br />

a intuição direta do objeto e a análise: um pensamento que vê as idéias<br />

como formas sensíveis e as formas como signos intelectuais... A primeira<br />

coisa que surpreende é a variedade de uma obra que pretende ser apenas<br />

antropológica; a segunda, a unidade do pensamento. Esta unidade não é<br />

a da ciência, mas a da filosofia, embora se trate de uma filosofia<br />

antifilosófica.<br />

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<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> aludiu em diversas ocasiões às influências que<br />

determinaram a direção de seu pensamento: a geologia, o marxismo e<br />

Freud. Uma paisagem se apresenta como um quebra-cabeças: colinas,<br />

rochedos, vales, árvores, barrancos. Essa desordem possui um sentido<br />

oculto; não é uma justaposição de formas diferentes, mas a reunião em<br />

um lugar de distintos tempos-espaços: as capas geológicas. Como a<br />

linguagem, a paisagem é diacrônica e sincrônica ao mesmo tempo: é a<br />

história condensada das idades terrestres e é também um entrelaçado de<br />

relações. Um corte vertical revela que o oculto, as capas invisíveis, e uma<br />

“estrutura” que determina e dá sentido às mais superficiais. À<br />

descoberta intuitiva da geologia se uniram, mais tarde, as lições do<br />

marxismo (uma geologia da sociedade) e da psicanálise (uma geologia<br />

psíquica). Esta tríplice lição pode ser resumida em uma frase: Marx,<br />

Freud e a geologia lhe ensinaram a explicar o visível pelo oculto. Isto é, a<br />

buscar a relação entre o sensível e o racional. Não uma dissolução da<br />

razão no inconsciente, mas uma busca da racionalidade do inconsciente:<br />

um super-racionalismo. Estas influências constituem, para continuar<br />

usando a mesma metáfora, a geologia do seu pensamento: são<br />

determinantes em um sentido geral. Não menos decisivas para a sua<br />

formação foram a obra sociológica de Marcel Mauss e a lingüística<br />

estrutural.<br />

Já disse antes que os meus comentários não são de ordem<br />

estritamente científica; examino as idéias de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> com a<br />

curiosidade, a paixão e a inquietude de um leitor que deseja compreendêlas<br />

porque sabe que, como todas as grandes hipóteses da ciência, estão<br />

destinadas a modificar nossa imagem do mundo e do homem. Assim,<br />

não me proponho a situar seu pensamento dentro das modernas<br />

tendências da antropologia, embora seja evidente que, por mais original<br />

que nos pareça, este pensamento faz parte de uma tradição científica. O<br />

próprio <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, aliás, em sua Leçon inaugurale no Collège de<br />

France (janeiro de 1960), assinal<strong>ou</strong> suas dívidas para com a<br />

antropologia anglo-americana e a sociologia francesa. Mais explícito<br />

ainda, em vários capítulos da Anthropologie structurale e em muitas<br />

passagens de Le totémisme auj<strong>ou</strong>rd’hui, revela e esclarece suas<br />

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coincidências e discrepâncias com Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown.<br />

Sobre isso vale a pena sublinhar que várias vezes record<strong>ou</strong> que os seus<br />

primeiros trabalhos foram concebidos e elaborados em estreita união<br />

com a antropologia anglo-americana. Não obstante, foram as idéias de<br />

Mauss que o preparam para receber a lição da lingüística estrutural e<br />

saltar de uma maneira mais total que os <strong>ou</strong>tros antropólogos do<br />

funcionalismo ao estruturalismo. Durkheim já afirmara que os<br />

fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos <strong>ou</strong> religiosos eram<br />

“projeções da sociedade”: o todo explicava as partes. Mauss recolheu<br />

esta idéia, mas advertiu que cada fenômeno possui características<br />

próprias e que o “fato social total” de Durkheim era composto por uma<br />

série de planos superpostos: cada fenômeno, sem perder sua<br />

especificidade, alude aos <strong>ou</strong>tros fenômenos. Por tal razão, o que conta<br />

não é a explicação global mas a relação entre os fenômenos: a sociedade<br />

é uma totalidade porque é um sistema de relações. A totalidade social<br />

não é uma substância nem um conceito mas “consiste finalmente no<br />

circuito de relações entre todos os planos”.<br />

Em seu famoso ensaio sobre a dádiva, Mauss adverte que o<br />

presente é recíproco e circular: as coisas que se intercambiam são<br />

também fatos totais; <strong>ou</strong>, dito de <strong>ou</strong>tro modo: as coisas (utensílios,<br />

produtos, riquezas) são veículos de relação. São valores e são signos. A<br />

instituição do potlach – <strong>ou</strong> qualquer <strong>ou</strong>tra análoga – é um sistema de<br />

relações: a dádiva recíproca assegura, <strong>ou</strong> melhor, realiza a relação.<br />

Portanto, a cultura de uma sociedade não e a soma de seus utensílios e<br />

objetos; a sociedade é um sistema total de relações que engloba tanto o<br />

aspecto material quanto o jurídico, o religioso e o artístico. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

recolhe a lição de Mauss e servindo-se do exemplo da lingüística, concebe<br />

a sociedade como um conjunto de signos: uma estrutura. Passa assim da<br />

idéia da sociedade como uma totalidade de funções à de um sistema de<br />

comunicações. É revelador que Georges Bataille (La part maudite)<br />

tenha extraído conclusões diferentes do ensaio de Mauss. Para Bataille<br />

não se trata tanto de reciprocidade, circulação e comunicação, mas de<br />

choque e violência, poder sobre os <strong>ou</strong>tros e autodestruição: o potlach é<br />

uma atividade análoga ao erotismo e ao jogo, sua essência não é distinta<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo<br />

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da do sacrifício. Bataille pretende desentranhar o conteúdo histórico e<br />

psicológico do potlach; <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> considera-o como uma estrutura<br />

atemporal, independentemente de seu conteúdo. Sua posição o defronta<br />

com o funcionalismo da antropologia saxônica, o historicismo e a<br />

fenomenologia.<br />

Mais adiante tratarei mais detidamente o tema da relação<br />

polêmica entre o pensamento de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> e o historicismo e a<br />

fenomenologia. Todavia, é oportuno esboçar desde já suas afinidades e<br />

diferenças com os pontos de vista de Malinowski e de Radcliffe-Brown.<br />

Para o primeiro, “os fatos sociais não se reduzem a fragmentos<br />

dispersos; o homem vive-os, realiza-os, e esta consciência subjetiva, tanto<br />

como suas condições objetivas, é uma forma de sua realidade”.<br />

Malinowski teve o grande mérito de mostrar experimentalmente que as<br />

idéias que uma sociedade tem de si mesma são parte inseparável da<br />

própria sociedade e desta maneira revaloriz<strong>ou</strong> a noção de significado no<br />

fato social; mas reduziu a significação dos fenômenos sociais à categoria<br />

de função. A idéia de relação, capital em Mauss, resolve-se na função: as<br />

coisas e as instituições são signos por ser funções. Por sua vez, Radcliffe-<br />

Brown introduziu a noção de estrutura no campo da antropologia. Só<br />

que o grande sábio inglês pensava que “a estrutura é da ordem dos fatos:<br />

algo dado na observação de cada sociedade particular...” A<br />

originalidade de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> reside em ver a estrutura não só como um<br />

fenômeno resultante da associação dos homens mas como “um sistema<br />

regido por uma coesão interna – e esta coesão, inacessível para o<br />

observador de um sistema isolado, revela-se no estudo das<br />

transformações, graças às quais se redescobrem propriedades similares<br />

em sistemas diferentes na aparência” (Leçon inaugurale). Cada<br />

sistema – formas de parentesco, mitologias, classificações etc. – é como<br />

uma linguagem que pode ser traduzida à linguagem de <strong>ou</strong>tro sistema.<br />

Para Radcliffe-Brown a estrutura “é a maneira durável que os grupos e<br />

os indivíduos têm de se constituir e de se associar no interior de uma<br />

sociedade”; portanto, cada estrutura é particular e intraduzível às<br />

<strong>ou</strong>tras. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> pensa que a estrutura é um sistema e que cada<br />

sistema é regido por um código que permite, caso o antropólogo consiga<br />

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decifrá-lo, sua tradução a <strong>ou</strong>tro sistema. Por último, diversamente de<br />

Malinowski e de Radcliffe-Brown, para <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> as categorias<br />

inconscientes, longe de serem irracionais <strong>ou</strong> simplesmente funcionais,<br />

possuem uma racionalidade imanente, por assim dizê-lo. O código é<br />

inconsciente – e racional. Nada mais natural, em conseqüência, que<br />

visse no sistema fonológico da lingüística estrutural o modelo mais<br />

acabado, transparente e universal dessa razão inconsciente subjacente<br />

em todos os fenômenos sociais, trata-se de relações de parentesco <strong>ou</strong> de<br />

fabulações míticas. Certo, não foi o primeiro a pensar que a lingüística<br />

era o modelo da investigação antropológica. Só que, enquanto os<br />

antropólogos anglo-americanos a consideraram como um ramo da<br />

antropologia, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> afirma que a antropologia é (<strong>ou</strong> será) um<br />

ramo da lingüística. Ou seja: parte de uma futura ciência geral dos<br />

signos.<br />

Arriscando-me a repetir o que <strong>ou</strong>tros disseram muitas vezes (e<br />

melhor do que eu), devo deter-me e esclarecer um p<strong>ou</strong>co a relação<br />

particular que une o pensamento de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> com a lingüística. 1<br />

Como se sabe, o trânsito do funcionalismo ao estruturalismo se opera,<br />

na lingüística. A idéia de que “cada item da linguagem – oração,<br />

palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para encher uma<br />

função, geralmente de comunicação” se superpõe <strong>ou</strong>tra: “nenhum<br />

1 Uma das conseqüências mais grotescas do obscurantismo stalinista foi a introdução do adjetivo<br />

pejorativo “formalista” nas discussões artísticas e literárias. Durante anos os críticos pseudomarxistas<br />

marcaram com o selo infamante desse vocábulo muitos poemas, quadros, novelas e obras musicais. Esta<br />

acusação resultava ainda mais insensata em países como o nosso, em que ninguém sabia o que significava<br />

realmente a palavra “formalismo”. Algo assim como se o Arcebispo de México, hipnotizado por um<br />

brâmane de Benares, condenasse os nossos protestantes não por heresia cristã mas por incorrer nos erros<br />

de Buda. Entre os formalistas russos se encontram dois dos fundadores da lingüística estrutural: Nicolai<br />

S. Trubetzskói e Roman Jakobson. Ambos abandonaram a União Soviética na década de vinte e<br />

participaram decisivamente nos trabalhos da escola lingüística de Praga. O primeiro morreu em 1939,<br />

vítima indireta dos nazistas; o segundo, também perseguido pelos camisas pardas, se refugi<strong>ou</strong> nos<br />

Estados Unidos e é hoje professor de Harvard. A história do formalismo russo está intimamente ligada à<br />

do futurismo. Maiakóvski, Khliébnikov, Burliuk e <strong>ou</strong>tros poetas e pintores do grupo participaram das<br />

discussões lingüísticas dos formalistas. O amigo íntimo de Maiakóvski, o crítico Ossip Brik, foi um dos<br />

animadores da Sociedade de Estudos da Linguagem Poética (Opoiaz). Maiakóvski estava presente na<br />

noite em que Jakobson leu seu ensaio sobre Khliébnikov e, segundo uma testemunha, “escut<strong>ou</strong><br />

intensamente os abstrusos raciocínios do jovem lingüista, nos quais examinava a prosódia dos futuristas<br />

à luz dos conceitos derivados de Edmund Husserl e Ferdinand de Saussure, (VICTOR ERLICH, Russian<br />

Formalism, 1965.<br />

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elemento da linguagem pode ser valorizado se não é considerado em<br />

relação com os <strong>ou</strong>tros elementos”. 2 A noção de relação se converte no<br />

fundamento da teoria: a linguagem é um sistema de relações. Por sua vez<br />

Ferdinand de Saussure já realizara uma distinção capital: o caráter dual<br />

do signo, composto de um significante e de um significado, som e<br />

sentido. Esta relação – ainda não inteiramente explicada – define o<br />

campo próprio da lingüística: cada um dos elementos da linguagem,<br />

inclusive os menores, “possuem dois aspectos: um, o significante, e<br />

<strong>ou</strong>tro, o significado”. A análise deve levar em conta esta dualidade e<br />

proceder do texto à frase e desta à palavra e ao morfema, a unidade<br />

mínima dotada de significado. A investigação não se detêm neste último<br />

porque a fundação da fonologia permitiu um passo decisivo: a análise<br />

dos fonemas, unidades que, “apesar de não possuir significado próprio,<br />

participam da significação”. A função significativa do fonema consiste<br />

em que designa uma relação de alteridade <strong>ou</strong> oposição em relação aos<br />

<strong>ou</strong>tros fonemas; embora o fonema careça de significado, sua posição no<br />

interior do vocábulo e sua relação com os <strong>ou</strong>tros fonemas tornam<br />

possível a significação. Todo o edifício da linguagem rep<strong>ou</strong>sa sobre esta<br />

oposição binária. Os fonemas podem decompor-se em elementos<br />

menores, que Jakobson chama de “feixe <strong>ou</strong> conjunto de partículas<br />

diferenciais”. 3 Como os átomos e suas partículas, o fonema é um<br />

“campo de relações”: uma estrutura. Isso não é tudo: a fonologia revela<br />

que os fenômenos lingüísticos obedecem a uma estrutura inconsciente:<br />

falamos sem saber que, cada vez que o fazemos, pomos em movimento<br />

uma estrutura fonológica. Portanto, a fala é uma operação mental e<br />

fisiológica que rep<strong>ou</strong>sa sobre leis estritas e que, não obstante, escapam<br />

ao domínio da consciência clara.<br />

Saltam à vista as analogias -da lingüística, por um lado, com a<br />

física, a genética e a teoria da informação; por <strong>ou</strong>tro, com a “psicologia<br />

da forma”. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> se propôs aplicar o método estrutural da<br />

lingüística à antropologia. Nada mais legítimo – a linguagem não só é<br />

um fenômeno social como constitui, simultaneamente, o fundamento de<br />

2 JOSEF VACKEK, The Linguistìc School of Praga, 1966.<br />

3 ROMAN JAKOBSON, Essais de Linguistique Générale, Paris, 1963.<br />

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toda sociedade e a expressão social mais perfeita do homem. A posição<br />

privilegiada da linguagem converte-a em um modelo de investigação<br />

antropológica: “como os fonemas, os termos de parentesco são<br />

elementos de significação; corno eles, não adquirem esta significação a<br />

não ser com a condição de participar de um sistema; como os sistemas<br />

fonológicos, os sistemas de parentesco são elaborações do espírito ao<br />

nível do pensamento inconsciente; por fim, a repetição de formas de<br />

parentesco e regras de matrimônio, em regiões distanciadas e entre<br />

povos profundamente diferentes, nos faz pensar que, como no caso da<br />

fonologia, os fenômenos visíveis são o produto do jogo de leis gerais<br />

embora ocultas... Em uma ordem distinta de realidades, os fenômenos de<br />

parentesco são fenômenos do mesmo tipo dos lingüísticos”. 4 Não se<br />

trata, é claro, de transpor a análise lingüística à antropologia, mas de<br />

traduzi-la em termos antropológicos. Entre as formas da tradução há<br />

uma que Jakobson chama “transmutação”: interpretação de signos<br />

lingüísticos por meio de um sistema de signos não-lingüísticos. Neste<br />

caso a operação consiste, ao contrário, na interpretação de um sistema<br />

de signos não-lingüísticos (por exemplo: as regras de parentesco) por<br />

meio de signos lingüísticos. Não me estenderei na descrição das formas,<br />

sempre rigorosas e às vezes extremamente engenhosas, que assume a<br />

interpretação de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>.<br />

Assinalo apenas que o seu método se funda mais em uma analogia<br />

do que em uma identidade. Além disso, adianto uma observação: se a<br />

linguagem – e com ele a sociedade inteira: ritos, arte, economia, religião<br />

– é um sistema de signos, que significam os signos? Um autor muito<br />

citado por Jakobson, o filósofo Charles Peirce, diz: “O sentido de um<br />

símbolo é sua tradução em <strong>ou</strong>tro símbolo”. Ao contrário de Husserl, o<br />

filósofo anglo-americano reduz o sentido a uma operação: um signo nos<br />

remete a <strong>ou</strong>tro signo. Resposta circular e que se destrói a si mesma: se a<br />

linguagem é um sistema de signos, um signo de signos, que significa este<br />

signo de signos? Os lingüistas coincidem com a lógica matemática,<br />

embora por motivos opostos, no horror à semântica. Jakobson tem<br />

consciência desta carência: “Depois de haver anexado os sons da<br />

4 CLAUDE LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 12


palavra à lingüística e constituído a fonologia, devemos incorporar<br />

agora as significações lingüísticas à ciência da linguagem”. Assim seja.<br />

Enquanto isso, observo que esta concepção da linguagem termina em<br />

uma disjuntiva: se só tem sentido a linguagem, o universo não-lingüístico<br />

carece de sentido e inclusive de realidade; <strong>ou</strong> então, tudo é linguagem,<br />

desde os átomos e suas partículas até os astros. Nem Peirce nem a<br />

lingüística nos dão elementos para afirmar a primeira <strong>ou</strong> a segunda<br />

hipótese. Tríplice omissão: em um primeiro momento subtrai-se o<br />

problema do nexo entre som e sentido, que não é simplesmente o efeito<br />

de uma convenção arbitrária como pensava Ferdinand de Saussure; em<br />

seguida, exclui-se o tema da relação entre a realidade não-lingüística e o<br />

sentido, entre ser e significado; por último, omite-se a pergunta central:<br />

o sentido da significação. Advirto que esta crítica não é inteiramente<br />

aplicável a <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. Correndo mais riscos que os lingüistas e os<br />

partidários da lógica simbólica, o tema constante de suas meditações é<br />

precisamente o das relações entre o universo do discurso e a realidade<br />

não-verbal, o pensamento e as coisas, a significação e a não-significação.<br />

Em seus estudos sobre o parentesco, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> procede de<br />

maneira contrária à maioria dos seus predecessores: não pretende<br />

explicar a proibição do incesto a partir das regras de matrimônio, mas<br />

serve-se da primeira para tornar mais inteligíveis as segundas. A<br />

universalidade da proibição, quaisquer que sejam as modalidades que<br />

adote neste <strong>ou</strong> naquele grupo humano, é análoga à universalidade da<br />

linguagem, quaisquer que sejam, também, as características e a<br />

diversidade dos idiomas e dialetos. Outra analogia: é uma proibição que<br />

não aparece entre os animais – pelo que se pode inferir que não tem uma<br />

origem biológica <strong>ou</strong> instintiva – e que, não obstante, é uma complexa<br />

estrutura inconsciente como a linguagem. Enfim, todas as sociedades a<br />

conhecem e a praticam, mas até agora – apesar de abundarem as<br />

interpretações míticas, religiosas e filosóficas – não temos uma teoria<br />

racional que explique sua origem e sua vigência. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> rechaça,<br />

com razão, todas as hipóteses que pretenderam explicar o enigma do<br />

tabu do incesto, desde as teorias finalistas e eugenéticas até a de Freud.<br />

A propósito deste último assinala que atribuir a origem da proibição ao<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 13


desejo pela mãe e ao assassinato do pai pelos filhos, é uma hipótese que<br />

revela as obsessões do homem moderno mas que não corresponde a<br />

nenhuma realidade histórica <strong>ou</strong> antropológica. É um “sonho simbólico”:<br />

não é a origem mas a conseqüência da proibição.<br />

A regra não é puramente negativa; não tende a suprimir as uniões,<br />

mas a diferenciá-las: esta união não é lícita, mas aquela sim. A regra é<br />

composta de um sim e de um não, oposição binária semelhante à das<br />

estruturas lingüísticas elementares. É um crivo que orienta e distribui o<br />

fluir das gerações. Cumpre assim uma função de alteridade e mediação –<br />

diferenciar, selecionar e combinar – que converte as uniões sexuais em<br />

um sistema de significações. É um artifício “pelo qual e no qual se<br />

cumpre o trânsito da natureza à cultura”. A metamorfose do som bruto<br />

em fonema se reproduz na da sexualidade animal em sistema de<br />

matrimônio; em ambos os casos a mutação se deve a uma operação dual<br />

(isto não, aquilo sim) que seleciona e combina – signos verbais e<br />

mulheres. Do mesmo modo que os sons naturais reaparecem na<br />

linguagem articulada, mas já dotados de significação, a família biológica<br />

reaparece na sociedade humana, mas já transformada. O “átomo” <strong>ou</strong><br />

elemento mínimo de parentesco não é o biológico <strong>ou</strong> natural – pai, mãe e<br />

filho – mas está composto por quatro termos: irmão e irmã, pai e filha. É<br />

impossível seguir <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> em toda a sua exploração e por isso me<br />

limito a citar uma de suas conclusões: “O caráter primitivo e irredutível<br />

do elemento de parentesco é uma conseqüência da proibição do incesto...<br />

na sociedade humana um homem só pode obter uma mulher de <strong>ou</strong>tro<br />

homem, que lhe entrega sua filha <strong>ou</strong> sua irmã”. A interdição não tem<br />

<strong>ou</strong>tro objeto fora o de permitir a circulação de mulheres, e neste sentido<br />

é a contrapartida da obrigação de doar, estudada por Mauss.<br />

A proibição é recíproca e graças a ela se estabelece a comunicação<br />

entre os homens: “As regras de matrimônio e os sistemas de parentesco<br />

são uma espécie de linguagem” – um conjunto de operações que<br />

transmitem mensagens. A objeção de que as mulheres são valores e não<br />

signos e as palavras signos e não valores, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> responde que, sem<br />

dúvida, as segundas eram também valores (hipótese que não me parece<br />

_______________________________________________________<br />

<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 14


descabida, se pensarmos na energia que ainda irradiam certas palavras);<br />

no que diz respeito às mulheres: foram (e são) signos, elementos desse<br />

sistema de significações que é o sistema de parentesco... Não s<strong>ou</strong><br />

antropólogo e deveria calar-me. Aventuro, em todo caso, um tímido<br />

comentário: a hipótese explica com grande elegância e precisão as regras<br />

de parentesco e de matrimônio pela proibição universal do incesto, mas,<br />

como se explica a própria proibição, sua origem e sua universalidade?<br />

Confesso que me custa aceitar que uma norma tão inflexível e na qual<br />

não é infundado ver a fonte de toda a moral – foi o primeiro Não que o<br />

homem opôs à natureza – seja apenas uma regra de trânsito, um<br />

artifício destinado a facilitar o intercâmbio de mulheres. Além disso,<br />

noto a ausência da descrição do fenômeno; <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> nos descreve a<br />

operação das regras, não aquilo que regulam: a atração e a repulsão pelo<br />

sexo oposto, a visão do corpo como um entrelaçado de forças benéficas<br />

<strong>ou</strong> nocivas, as rivalidades e as amizades, as considerações econômicas e<br />

as religiosas, o terror e o apetite que desperta uma mulher <strong>ou</strong> um homem<br />

de <strong>ou</strong>tro grupo social <strong>ou</strong> de <strong>ou</strong>tra raça, a família e o amor, o jogo<br />

violento e complicado entre veneração e profanação, medo e desejo,<br />

agressão e transgressão – todo esse território magnético, magia e<br />

erotismo, que cobre a palavra incesto. Que significa este tabu que nada<br />

nem ninguém explica e que, embora pareça não ter justificação biológica<br />

nem razão de ser, é a raiz de toda proibição? Qual é o fundamento deste<br />

Não universal? É verdade que este Não contém um Sim: a proibição não<br />

apenas separa a sexualidade animal da sexualidade social mas, como na<br />

linguagem, este Sim funda o homem, constitui a sociedade. A proibição<br />

do incesto nos faz defrontar, n<strong>ou</strong>tro plano, com o próprio enigma da<br />

linguagem: se a linguagem nos funda, nos dá sentido, qual é o sentido<br />

deste sentido? A linguagem nos dá a possibilidade de dizer, mas que quer<br />

dizer dizer? A pergunta sobre o incesto é semelhante à do sentido da<br />

significação. A resposta de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> é singular: estamos diante de<br />

uma operação inconsciente do espírito humano e que, em si mesma,<br />

carece de sentido <strong>ou</strong> fundamento, mas não de utilidade: graças a ela – e<br />

à linguagem, o trabalho e o mito – os homens são homens. A pergunta<br />

sobre o fundamento do tabu do incesto se resolve na pergunta sobre a<br />

significação do homem 'e esta na do espírito. Portanto temos que<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 15


penetrar numa esfera em que o espírito opera com maior liberdade, pois<br />

que não se defronta nem com os processos econômicos nem com as<br />

realidades sexuais mas consigo mesmo.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 16


2. SÍMBOLOS, METÁFORAS E EQUAÇÕES.<br />

A POSIÇÃO E O SIGNIFICADO. ÁSIA, AMÉRICA E EUROPA.<br />

TRÊS TRANSPARENTES: O ARCO-ÍRIS, O VENENO E A<br />

DONINHA. O ESPÍRITO: ALGO QUE É NADA.<br />

Diante do mito, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> adota uma posição francamente<br />

intelectualista e lamenta a preferência moderna pela vida afetiva, à qual<br />

atribui poderes que não tem: “É um erro acreditar que idéias claras<br />

podem nascer de emoções confusas”. 5 Critica também a fenomenologia<br />

da religião que trata de reduzir a “sentimentos informes e inefáveis”<br />

fenômenos intelectuais só aparentemente distintos dos de nossa lógica. A<br />

pretensa oposição entre pensamento lógico e pensamento mítico revela<br />

apenas a nossa ignorância: sabemos ler um tratado de filosofia mas não<br />

sabemos como devem ser lidos os mitos. Certo, temos uma clave – as<br />

palavras de que estão feitos – mas seu significado se nos escapa porque a<br />

linguagem ocupa no mito um lugar semelhante ao do sistema fonológico<br />

dentro da própria linguagem. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> inicia sua demonstração com<br />

esta idéia: a pluralidade de mitos, em todos os tempos e em todos os<br />

espaços, não é menos notável que a repetição em todos os relatos míticos<br />

de certos procedimentos. O mesmo sucede no universo do discurso: a<br />

pluralidade de textos resulta da combinação de um número muito<br />

reduzido de elementos lingüísticos permanentes. Portanto, a elaboração<br />

mítica não obedece a leis distintas das lingüísticas: seleção e combinação<br />

de signos verbais. A distinção entre língua e fala, proposta por<br />

Ferdinand de Saussure, também é aplicável aos mitos. A primeira é<br />

sincrônica e postula um tempo reversível; a segunda é diacrônica e seu<br />

tempo é irreversível. Ou, como dizemos em espanhol Io dicho, dicho<br />

está”. O mito é fala, seu tempo alude ao que pass<strong>ou</strong> e é um dizer<br />

irrepetível; ao mesmo tempo, é idioma: uma estrutura que se atualiza<br />

cada vez que voltamos a contar a história.<br />

5 A. M. HOCART, citado por <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> em La structure des mythes.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 17


A comparação entre mito e linguagem conduz <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> a<br />

buscar os elementos constitutivos do primeiro. Esses elementos não<br />

podem ser os fonemas, os morfemas <strong>ou</strong> os “semantemas”, pois se assim<br />

fosse o mito seria um discurso como todos os <strong>ou</strong>tros. As unidades<br />

constitutivas do mito são frases <strong>ou</strong> orações mínimas que, por sua<br />

posição no contexto, descrevem uma relação importante entre os<br />

diversos aspectos, incidentes e personagens do relato. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

propõe que chamemos a essas unidades de mitemas. Já que um mito é<br />

um conto contado com palavras, como distinguir os mitemas das <strong>ou</strong>tras<br />

unidades puramente lingüísticas? Os mitemas são “entrelaçados <strong>ou</strong><br />

feixes de relações mínimas” e operam em um nível superior ao<br />

puramente lingüístico. <strong>No</strong> nível mais baixo, encontra-se a estrutura<br />

fonológica; no segundo, a sintática, comum a todo discurso mítico<br />

propriamente dito. A estrutura sintática está para a mítica como a<br />

fonológica está para a sintática. Se a investigação consegue isolar os<br />

mitemas como a fonologia o fez com os fonemas, poder-se-á dispor de<br />

um. feixe de relações que formem uma estrutura. As combinações dos<br />

mitemas devem produzir mitos com a mesma fatalidade e regularidade<br />

com que os fonemas produzem sílabas, morfemas, palavras e textos. Os<br />

mitemas são ao mesmo tempo significativos (dentro da narrativa) e présignificativos<br />

(como elementos de um segundo discurso: o mito). Graças<br />

aos mitemas, os mitos são fala e idioma, tempo irreversível (narrativa) e<br />

reversível (estrutura), diacronia e sincronia. <strong>No</strong>vamente, com a ressalva<br />

de expor mais completamente meus pontos de vista no final deste<br />

trabalho, antecipo uma reflexão: se um mito é uma paralinguagem, sua<br />

relação com a linguagem é inversa à do sistema de parentesco. Este<br />

último é um sistema de significações que se serve de elementos nãolingüísticos;<br />

o mito opera com a linguagem como se esta fosse um<br />

sistema pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras<br />

do mito. O sistema de parentesco se decifra por meio de uma clave<br />

superior: a linguagem; qual seria a clave paralingüística para decifrar o<br />

sentido dos mitos? E essa clave seria traduzível a da linguagem? Em<br />

suma, os mitos nos defrontam <strong>ou</strong>tra vez com o problema do sentido da<br />

significação.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 18


Em seu ensaio La structure des mythes, prelúdio a <strong>ou</strong>tros<br />

trabalhos mais ambiciosos, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> serve-se da história de Édipo<br />

como pedra-de-toque de suas idéias. Não lhe interessa o conteúdo do<br />

mito nem pretende oferecer uma nova interpretação, mas tenta, isto sim,<br />

decifrar a sua estrutura: o Sistema de relações que o determina e que,<br />

provavelmente, não é diverso do de todos os <strong>ou</strong>tros mitos. Busca uma lei<br />

geral, formal e combinatória.Não sem franzir o cenho o de mais de um<br />

antropólogo e muitos helenistas e psicólogos, recolheu o maior numero<br />

possível de versões; em seguida, isol<strong>ou</strong> as unidades mínimas, os mitemas,<br />

que aparecem nessas variantes. Alguns criticaram este procedimento:<br />

como podem ser determinados objetivamente os mitemas? A objeção não<br />

tem valor se se recorda que uma das características dos mitos é a<br />

recorrência de certos temas e motivos. Inclusive desta maneira podem se<br />

reconstruir versões incompletas e ainda descobrir-se mitemas que, por<br />

esta <strong>ou</strong> aquela razão, não aparecem em nenhuma versão. Tal é o caso do<br />

defeito físico de Édipo, que não figura nas variantes conhecidas. Uma<br />

vez determinados os mitemas, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> inscreveu-os em um cartão,<br />

dispostos em colunas horizontais e verticais. Cada mitema designava um<br />

feixe de relações, isto é, era a expressão concreta de uma função de<br />

relação. Reproduzo, muito simplificado, o quadro de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>:<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 19


1 2 3 4<br />

Édipo mata Laio, seu<br />

Édipo se casa com sua<br />

mãe<br />

Antígona enterra o<br />

seu irmão<br />

pai<br />

Etéocles mata o seu<br />

irmão<br />

Édipo imola a Esfinge Édipo: pés inchados<br />

Se lemos da direita para a esquerda, contamos o mito; se de cima<br />

para baixo, penetramos em sua estrutura. A primeira coluna<br />

corresponde à idéia de relações de parentesco demasiado íntimas (entre<br />

Édipo e sua mãe, Antígona e seu irmão); a segunda descreve uma<br />

desvalorização dessas relações (Édipo assassina o seu pai, Eteócles o seu<br />

irmão) ; a terceira se refere à destruição dos monstros; a quarta a uma<br />

dificuldade para caminhar. A relação entre a primeira e a segunda<br />

coluna é óbvia: une-as um duplo e contrário descomedimento: exagerar<br />

<strong>ou</strong> minimizar as relações de parentesco. A relação entre Édipo e a<br />

Esfinge reproduz a de Cadmos e o dragão: para fundar Tebas o herói<br />

deve matar o monstro. É uma relação entre o homem e a terra que alude<br />

ao conflito entre a crença na origem terrestre de nossa espécie<br />

(autoctonia) e o fato de que cada um de nós é filho de um homem e de<br />

uma mulher. Em conseqüência, a terceira coluna é uma negação dessa<br />

relação e reproduz, n<strong>ou</strong>tro nível, o tema da segunda coluna. Muitos<br />

mitos representam os homens nascidos da terra como inválidos, coxos <strong>ou</strong><br />

de andar vacilante. Embora o significado do nome de Édipo não seja<br />

claro, a análise confirma que, como os de seu pai e de seu avô (o<br />

primeiro, coxo, e o segundo, surdo), alude a um defeito físico”. 6<br />

Portanto, a quarta coluna afirma o que nega a terceira e, novamente em<br />

<strong>ou</strong>tro nível, repete o tema da primeira. Portanto, a relação entre a<br />

6 O nome de Édipo significa “pé inchado” <strong>ou</strong> “aquele que conhece a resposta do enigma dos pés”? Como<br />

se sabe, a Esfinge pergunta: Qual é a criatura que tem quatro pés ao amanhecer, dois ao meio-dia e três<br />

ao crespúsculo? A resposta é: o homem. Parece-me que o enigma da Esfinge confirma a hipótese de <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong>: o tema das colunas terceira e quarta é o da origem do homem.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 20


terceira coluna e a quarta é da mesma índole que a da primeira e da<br />

segunda. Estamos diante de uma dupla parelha de contradições: a<br />

primeira está para a segunda assim como a terceira está para a quarta.<br />

Esta fórmula pode variar: a primeira é homóloga da quarta, a segunda<br />

da terceira. Em termos morais: o parricídio se nega com o incesto; em<br />

termos cosmológicos: negar a autoctonia (ser um homem de fato e de<br />

direito) implica em matar o monstro da terra. O defeito se paga com o<br />

excesso. O mito oferece uma solução ao conflito por meio de um sistema<br />

de símbolos que operam à maneira dos sistemas da lógica e da<br />

matemática.<br />

Ao encontrar a estrutura do mito de Édipo, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> se torna<br />

apto para aplicar as mesmas leis combinatórias a mitos de <strong>ou</strong>tras<br />

civilizações. Boas assinalara que as adivinhações são um gênero quase<br />

completamente ausente entre os índios da América do <strong>No</strong>rte. Há duas<br />

exceções: os bufões <strong>ou</strong> palhaços cerimoniais dos pueblo – segundo os<br />

mitos nascidos de um comércio sexual incestuoso – que divertem os<br />

espectadores com adivinhanças; e certos mitos dos índios algonquines,<br />

relativos a corujas que proferem enigmas, os quais, sob pena de morte, o<br />

herói deve resolver.. A analogia com o mito de Édipo é dupla: por um<br />

lado, entre o incesto e adivinhação; por <strong>ou</strong>tro, entre a esfinge e as<br />

corujas. Portanto, há uma relação entre incesto e adivinhação: a<br />

resposta a um enigma une dois termos inconciliáveis e o incesto a duas<br />

pessoas também inconciliáveis. A operação mental em ambos os casos é<br />

idêntica: unir dois termos contraditórios. Esta relação se reproduz em<br />

<strong>ou</strong>tros mitos, só que de maneira inversa. Por exemplo, no mito do Grial.<br />

<strong>No</strong> de Édipo, um monstro postula uma pergunta sem resposta; no mito<br />

celta, há uma resposta sem pergunta. Com efeito, Perceval não se atreve<br />

a perguntar o que é e para que serve o recipiente mágico. Em um caso, o<br />

mito apresenta uma personagem que abusa do comércio sexual ilícito e<br />

que, ao mesmo tempo, possui tal sutileza de espírito que pode resolver a<br />

adivinhação da esfinge; no <strong>ou</strong>tro, há uma personagem casta e tímida que<br />

não <strong>ou</strong>sa formular a pergunta que dissipará o encantamento. Comércio<br />

sexual ilícito = solução de um enigma que planteia a união de dois<br />

termos contraditórios; abstinência sexual = incapacidade para<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 21


perguntar. O conflito entre a autoctonia e a origem real, sexual, dos<br />

homens, exige uma solução inversa. A existência da esfinge (autoctonia)<br />

implica a desvalorização dos laços consangüíneos (parricídio) ; o<br />

desaparecimento do monstro, o exagero dos mesmos laços (incesto).<br />

Embora <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> se abstenha de estudar os mitos das civilizações<br />

históricas (o mito de Édipo é antes uma ilustração de suas idéias do que<br />

um estudo de mitologia grega), observo que a mesma lógica se<br />

desenvolve no mito de Quetzalcoatl. Diversos investigadores dedicaram<br />

notáveis estudos ao tema e mal se faz necessário recordar, por exemplo,<br />

a brilhante interpretação de Laurette Sej<strong>ou</strong>rné. Não obstante, o método<br />

de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> oferece a possibilidade de estudar o mito mais como uma<br />

operação mental que como uma projeção histórica. Os elementos<br />

históricos não desaparecem, mas ficam integrados nesse sistema de<br />

transformações que abarca desde os sistemas de parentesco e as<br />

instituições políticas até a mitologia e as práticas rituais. Advirto que o<br />

estruturalismo não pretende explicar a história: o acontecimento, o<br />

suceder, é um domínio que não toca; contudo, do ponto de vista da<br />

antropologia, tal como a concebe <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, a história é apenas uma<br />

das variantes da estrutura. O mito de Quetzalcoatl é um produto<br />

histórico – seja <strong>ou</strong> não histórica a sua personagem central – na medida<br />

em que é uma criação religiosa de uma sociedade secreta; ao mesmo<br />

tempo, é uma operação mental sujeita à mesma lógica dos <strong>ou</strong>tros mitos<br />

– sem excluir os mitos modernos, como o da Revolução. Apenas limitarme-ei<br />

aqui a assinalar certos traços e elementos significativos:<br />

Tezcatlipoca, deus coxo e senhor de magos e feiticeiros, intimamente<br />

associado ao mito dos sacrifícios humanos, tenta Quetzalcoatl e leva-o a<br />

cometer o duplo pecado de adultério e incesto (Quetzalcoatl se embebeda<br />

e deita-se com sua irmã). Ao inverso do que ocorre com Édipo, salvador<br />

de Tebas ao decifrar o enigma da esfinge, Quetzalcoatl é vítima do<br />

engano do feiticeiro, e assim perde o seu reino e ocasiona a perda de<br />

Tula. Os astecas, que se consideraram sempre os herdeiros da grandeza<br />

de Tula, representaram <strong>ou</strong>tra vez o mito de Quetzalcoatl (quero dizer:<br />

celebraram-no, viveram-no) no momento da conquista espanhola, só que<br />

ao inverso. Talvez o mito de Quetzalcoatl, caso se consiga decifrar a sua<br />

estrutura, possa nos dar a chave dos mistérios da história antiga do<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 22


México: o fim das grandes teocracias e o princípio das culturas<br />

históricas (a oposição entre Teotihuacán e Tula, poderia dizer-se, para<br />

simplificar), e a atitude dos astecas diante de Cortés.<br />

Na segunda parte de seu ensaio Léví-<strong>Strauss</strong> recorre a vários mitos<br />

dos índios pueblo para ampliar a sua demonstração. Neles também se<br />

manifesta uma oposição de termos inconciliáveis: autoctonia e<br />

nascimento biológico, mudança e permanência, vida e morte, agricultura<br />

e caça, paz e guerra. Estas oposições nem sempre são evidentes, porque<br />

às vezes os termos originais foram substituídos por <strong>ou</strong>tros. A<br />

permutação de um termo por <strong>ou</strong>tro tem por objeto encontrar termos de<br />

mediação entre as oposições. A forma de operação do pensamento mítico<br />

não é distinta da de nossa lógica; difere no emprego dos símbolos,<br />

porque em lugar de proposições, axiomas e signos abstratos serve-se de<br />

heróis, deuses, animais e <strong>ou</strong>tros elementos do mundo natural e cultural.<br />

É uma lógica concreta e não menos rigorosa que a dos matemáticos. A<br />

posição dos termos de mediação é privilegiada. Por exemplo, a mudança<br />

implica em morte para os índios pueblo; pela intervenção do mediador<br />

agricultura se transforma em crescimento vital. Guerra, sinônimo de<br />

morte, transforma-se em vida por obra de <strong>ou</strong>tra mediação: caça. A<br />

oposição entre animais carnívoros e herbívoros se resolve em <strong>ou</strong>tra<br />

mediação: a dos coiotes e auras que se alimentam de carne como os<br />

primeiros mas que, como os herbívoros, não são caçadores. A mesma<br />

operação de permutação rege a carreira dos deuses e dos heróis. A cada<br />

oposição corresponde um mediador, de modo que a função dos messias<br />

se esclarece: são encarnações de proposições lógicas que resolvem uma<br />

contradição. Algo semelhante ocorre com os gêmeos divinos, os deuses<br />

hermafroditas e uma estranha personagem, o palhaço mítico, que<br />

aparece em muitos mitos e ritos. A penetração psicológica, neste caso,<br />

não é menor que o rigor lógico: o riso, como se sabe, dissolve a<br />

contradição em uma unidade convulsiva que nega os dois termos da<br />

oposição. Entre esses palhaços míticos existe um, o Ash boy, que ocupa<br />

na mitologia dos pueblo um lugar semelhante ao da Cinderela no<br />

Ocidente: os dois são mediadores entre a obscuridade e luz, fealdade e<br />

beleza, riqueza e pobreza, o mundo de baixo e o de cima. A relação entre<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 23


a Cinderela e o Ash boy adota a forma de inversão simétrica. Mais<br />

adiante encontraremos de novo esta relação entre alguns mitos e lendas<br />

européias e <strong>ou</strong>tros da América”. 7<br />

A ambigüidade do mediador se explica não tanto por motivos<br />

psicológicos como por sua posição no interior da fórmula: é um termo<br />

que permite dissolver <strong>ou</strong> transcender a oposição. Por tal razão um termo<br />

positivo (deus, herói, monstro, animal, planta, astro) pode transformarse<br />

em um negativo: suas qualidades dependem de sua posição dentro do<br />

mito. Nenhum elemento possui significação própria; a significação brota<br />

do contexto: Édipo é “bom” ao imolar a Esfinge; é “mau”, ao casar com<br />

sua mãe; é “débil” ao andar com dificuldade; “forte”, quando mata o<br />

pai. Cada termo pode ser substituído por <strong>ou</strong>tro, contanto que haja entre<br />

eles uma relação necessária. Os mitos obedecem às mesmas leis da lógica<br />

simbólica; se se substitui os nomes próprios e os mitemas por signos<br />

7 Valeria a pena analisar, desole esse ponto de vista, a mitologia do México antigo. As religiões<br />

mesoameri canas são um imenso balé cósmico de transformações, uma grandiosa dança de disfarces em<br />

que cada nome é uma data e. uma máscara, um feixe de atributos contraditórios. Por exemplo,<br />

Quetzalcoatl. E um Messias, um mediador típico. Ao nível histórico é um mediador entre as culturas da<br />

costa do Golfo do México e as do Altiplano, as grandes teocracias e os toltecas, o mundo náhuatl e o<br />

maia; ao cosmológico, entre a terra (serpente) e o céu (pássaro), o ar (a máscara bocal de bico de pato) e<br />

a água (caracol marinho) o mundo subterrâneo e o celeste (o planeta Vénus); ao nível mágico-moral entre<br />

o sacrifício e o auto-sacrifício, a penitência e o excesso, a continência e a luxúria, a embriaguez e a<br />

sobriedade. É um mito de emergência (a origem do homem) e um mito de trânsito; é a imagem do tempo,<br />

a encarnação do movimento, seu fim e sua transfiguração (a auto-imolação pelo fogo e sua metamorfose<br />

em planeta). Mito astronômico e herói cultural, é sobretudo uma cristalização da dualidade, a cifra dos<br />

enigmas das relações entre esta e a unidade. Seu nome quer dizer “gêmeo preciosos, e seu duplo é<br />

Xóolot”. Este último possui muitos nomes, figuras e atributos: cão, ser contrafeito (como Édipo), tigre,<br />

divindade sexual, animal anfíbio (axólotl). Naturalmente haveria que pôr entre parênteses todas estas<br />

relações, aproximar-se do mito com olhos mais inocentes e objetivos e, após recolher todas as variantes,<br />

inscrever em um quadro todos os mitemas pertinentes. Ademais, o sentido da figura de Quetzacoatl só<br />

resultaria inteligível o dia em que se a estude como parte de um sistema mítico mais vasto e que abarca<br />

não só a Mesoamérica como o norte do continente e provavelmente também a América do Sul. A<br />

pluralidade de sociedades que adotaram e modificaram o mito proíbe estudá-lo por meio do método<br />

histórico. o único adequado, assim, seria o de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. Aponto, por ora, algo evidente: a história de<br />

Quetzacoatl é na realidade um conjunto de histórias, uma família de mitos <strong>ou</strong>, mais exatamente, um<br />

sistema. Seu tema é a mediação A situação do templo de Quetzacoatl em Tenochtitlán, entre os<br />

consagrados a Tlaloc e a Huitzilopochtli, revela uma espécie de triângulo no qual a figura do primeiro, é<br />

um ponto de união entre duas constelações míticas, uma associada às plantas e á água e <strong>ou</strong>tra<br />

astronômica e guerreira. Esta dualidade, como observ<strong>ou</strong> S<strong>ou</strong>stelle, corresponde também à estrutura da<br />

sociedade asteca e à situação peculiar deste povo no contexto das culturas do Altiplano: Huitzilopochtli<br />

era o deus tribal asteca enquanto que Tlaloc representa um culto muito mais antigo. Recordarei, por fim,<br />

que o Sumo Pontífice entre os astecas ostentava o nome de Quetzacoatl e que, diz Sahagún, “eram dois os<br />

sumo sacerdotes”.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 24


matemáticos, o mito e suas variantes, inclusive as mais contraditórios,<br />

podem se condensar em uma fórmula... Ao concluir seu estudo, <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> afirma que o mito “tem por objeto oferecer um modelo lógico<br />

para resolver uma contradição – algo irrealizável se a contradição é<br />

real”. Observo, em conseqüência, uma diferença entre o pensar mítico e<br />

o do homem moderno: no mito se desenvolve uma lógica que não se<br />

defronta com a realidade e sua coerência é meramente formal; na<br />

ciência, a teoria deve submeter-se à prova da experimentação; na<br />

filosofia, o pensamento é crítico. Aceito que o mito é uma lógica mas não<br />

vejo como possa ser um saber. Por último, o método de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

proíbe uma análise do significado particular dos mitos: por um lado,<br />

pensa que esses significados são contraditórios, arbitrários e, de certo<br />

modo, insignificantes; por <strong>ou</strong>tro, afirma que o significado dos mitos se<br />

desenvolve numa região que está mais além da linguagem.<br />

O sistema de simbolização se reproduz sem cessar. O mito<br />

engendra mitos: oposições, permutações, mediações e novas oposições,<br />

Cada solução é “ligeiramente distinta” da anterior, de modo que o mito<br />

“cresce como uma espiral”: a nova versão o modifica e, ao mesmo<br />

tempo, o repete. Por isso a interpretação de Freud, independentemente<br />

de seu valor psicológico, é mais uma versão do mito de Édipo. Poderia<br />

acrescentar-se que o estudo de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> constitui <strong>ou</strong>tra versão, já<br />

não em termos psicológicos, mas lingüísticos e de lógica simbólica. Este é<br />

o tema, justamente, de Le cru et le cuit. Análise de cerca de duzentos<br />

mitos sul-americanos, opera como um aparelho de transformações que<br />

os engloba e os “traduz” em termos intelectuais. Esta tradução é uma<br />

transmutação e daí que, como diz o seu autor, seja “um mito dos mitos<br />

americanos”. Le cru et le cuit responde de certo modo a minha<br />

pergunta acerca do significado dos mitos: à maneira dos símbolos de<br />

Peirce, o sentido de um mito é <strong>ou</strong>tro mito. Cada mito desenvolve o seu<br />

sentido em <strong>ou</strong>tro que, por sua vez, alude a <strong>ou</strong>tro, e assim sucessivamente<br />

até que todas essas alusões e significados tecem um texto: um grupo <strong>ou</strong><br />

família de mitos. Esse texto alude a <strong>ou</strong>tro e mais <strong>ou</strong>tro; os textos<br />

compõem um conjunto, não tanto um discurso mas um sistema em<br />

movimento e perpétua metamorfose: uma linguagem. A mitologia dos<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 25


índios americanos é um sistema e esse sistema é um idioma. Outro tanto<br />

pode dizer-se da mitologia indo-européia e da mongólica: cada uma<br />

constitui um idioma. Por <strong>ou</strong>tro lado, o significado de um mito depende<br />

de sua posição no grupo e daí que, para decifrá-lo, seja necessário ter em<br />

conta o contexto em que aparece. O mito é uma frase de um discurso<br />

circular e que muda constantemente de significado: repetição e<br />

variação”. 8<br />

Esta maneira de pensar nos põe diante de conclusões vertiginosas.<br />

O grupo social que elabora o mito, ignora o seu significado; aquele que<br />

conta um mito não sabe o que diz, repete o fragmento de um discurso,<br />

recita uma estrofe de um poema cujo princípio, fim e tema desconhece. O<br />

mesmo ocorre com os seus <strong>ou</strong>vintes e com os <strong>ou</strong>vintes de <strong>ou</strong>tros mitos.<br />

Ninguém sabe que esse relato é parte de um imenso poema: os mitos se<br />

comunicam entre si por meio dos homens e sem que estes o saibam. Idéia<br />

não muito distanciada da dos românticos alemães e dos surrealistas: não<br />

é o poeta que se serve da linguagem e sim esta que fala através do poeta.<br />

Há uma diferença: o poeta tem consciência de ser um instrumento da<br />

linguagem e não est<strong>ou</strong> certo de que o homem do mito saiba que o é de<br />

uma mitologia. (A discussão deste ponto e prematura: basta dizer, por<br />

enquanto, que para <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> a distinção é supérflua, pois pensa que<br />

a consciência é uma ilusão.) A situação descrita por Le cru et le cuit é<br />

8 Ver os mitos como frases <strong>ou</strong> partes de um discurso que compreenderia todos os mitos de uma civilização<br />

é uma idéia desconcertante, mas tônica. Aplicada à literatura, por exemplo, nos revelaria uma imagem<br />

distinta e talvez mais exata do que chamamos tradição. Em lugar de ser uma sucessão de nomes, obras e<br />

tendências, a tradição se converteria em um sistema de relações significativas: uma linguagem. A poesia<br />

de Góngora não seria unicamente algo que está depois de Garcilaso e antes de Rubon Dario, mas um texto<br />

em relação dinâmica com <strong>ou</strong>tros textos; leríamos Góngora não como um texto isolado mas em seu<br />

contexto: aquelas obras que o determinam e aquelas que sua poesia determina. Se concebemos a poesia de<br />

língua espanhola mais como um sistema que como uma história, a significação das obras que a compõem<br />

não depende tanto da cronologia nem de nosso ponto de. vista como das relações dos textos entre si e do<br />

próprio movimento do sistema. A significação de Quevedo não se esgota em sua obra nem na do<br />

conceptismo do século XVII; o sentido de sua palavra, o encontrarmos mais plenamente em algum poema<br />

de Vallejo embora, naturalmente, o que poeta peruano diz não seja idêntico ao que quis dizer Quevedo. O<br />

sentido se transforma sem desaparecer: cada transmutação, ao mudá-lo, o prolonga. A relação entre uma<br />

obra e <strong>ou</strong>tra não é meramente cronológica <strong>ou</strong>, antes, essa relação é variável e altera sem cessar a<br />

cronologia: para <strong>ou</strong>vir o que dizem os poemas da última época de Juan Ramón Jiménez, é preciso ler uma<br />

canção do século XIV (por exemplo: Aquel árbol que mueve la hoja... do Almirante Hurtado de<br />

Mendonza). A idéia de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> nos convida a ver a literatura espanhola não como um conjunto de<br />

obras mas como uma só obra. Essa obra é um sistema, uma linguagem em movimento e em relação com<br />

<strong>ou</strong>tros sistemas: as <strong>ou</strong>tras literaturas européias e sua descendência americana.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 26


análoga à dos executantes de uma sinfonia que estivessem<br />

incomunicados e separados pelo tempo e pelo espaço: cada um tocaria o<br />

seu fragmento como se fosse a obra completa. Nenhum deles poderia<br />

escutar o concerto porque para <strong>ou</strong>vi-lo teria que estar fora do círculo,<br />

longe da orquestra. <strong>No</strong> caso da mitologia americana esse concerto<br />

começ<strong>ou</strong> há milênios e hoje umas p<strong>ou</strong>cas comunidades dispersas e<br />

agonizantes repetem os últimos acordes. Os leitores de Le cru et le<br />

cuit são os primeiros que escutam essa sinfonia e os primeiros que<br />

sabem que a escutam. Mas, será que a <strong>ou</strong>vimos realmente? Escutamos<br />

uma tradução <strong>ou</strong>, mais exatamente, uma transmutação: não o mito, mas<br />

<strong>ou</strong>tro mito. Nisto consiste o paradoxo do livro de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> e o<br />

paradoxo do mito. A razão é a seguinte: embora a linguagem do mito,<br />

diferentemente da poesia, seja facilmente traduzível a qualquer idioma, o<br />

verdadeiro discurso mítico é, como a música, intraduzível. <strong>No</strong> mito,<br />

conforme já disse, a linguagem articulada desempenha a mesma função<br />

que o sistema fonológico no discurso comum: o mito serve-se das<br />

palavras como nós, ao falarmos, nos servimos dos fonemas. Portanto, a<br />

linguagem do mito, a história contada com palavras, é uma estrutura<br />

inconsciente e pré-significativa sobre a qual se edifica o verdadeiro<br />

discurso mítico. Por isso <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> afirma que há uma relação de<br />

verdadeiro parentesco entre o mito e a música, e não entre aquele e a<br />

poesia. A diferença desta última, o mito pode ser traduzido sem que<br />

nada de apreciável se perca na tradução; à semelhança da primeira, o<br />

discurso mítico constitui uma linguagem própria e intraduzível. A meu<br />

ver esta analogia não é perfeita: se no mito há dois níveis, um<br />

propriamente lingüístico e <strong>ou</strong>tro paralingüístico, na música não<br />

encontramos o primeiro nível. Em troca, em seu primeiro nível mito e<br />

poema estão construídos de palavras e no segundo os dois são objetos<br />

verbais, um feito de mitemas e <strong>ou</strong>tro de metáforas e equivalências.<br />

Voltarei a isto e examinarei ponto por ponto as razões que movem <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> a sustentar a singular identidade entre música e mito.<br />

Le cru et le cuit é apenas o começo de uma tarefa vastíssima:<br />

determinar a sintaxe da mitologia do continente americano. <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> rechaça o método da re construção histórica não só por razões<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 27


de princípio – embora estas sejam fundamentais, como já se viu – mas<br />

porque é impossível determinar os empréstimos que se fizeram umas às<br />

<strong>ou</strong>tras as sociedades indo-americanas desde o fim do Pleistoceno até<br />

nossos dias: a América foi uma “Idade Média sem Roma”. Sua<br />

exploração rep<strong>ou</strong>sa, em troca, sobre esta evidência: os povos que<br />

elaboraram esses mitos “utilizam os recursos de uma dialética de<br />

oposições e mediações dentro de uma comum concepção de mundo”. A<br />

análise estrutural confirma assim as presunções da etnografia, da<br />

arqueologia e da história sobre a unidade da civilização americana. Não<br />

é difícil inferir que esta investigação desembocará em uma empresa<br />

ainda mais ambiciosa: uma vez determinada a sintaxe do sistema<br />

mitológico americano, será preciso relacioná-la com a dos <strong>ou</strong>tros<br />

'sistemas: o indo-europeu, o da Oceania, o da África e o dos povos<br />

mongolóides da Ásia. Aventuro desde já uma hipótese, nada gratuita,<br />

pois a obra de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> nos oferece indícios suficientes para postulála:<br />

entre o sistema indo-europeu e o americano a relação há de ser de<br />

simetria inversa, tal como o mostra o Ash boy norte-americano e a<br />

Cinderela européia. Este exemplo não é o único: as constelações de Órion<br />

e do Corvo cumprem funções inversas embora simétricas entre os índios<br />

do Brasil e os gregos. O mesmo sucede com o costume do charivari<br />

(chocalhada) na Europa Ocidental e o ruído ritual com que os mesmos<br />

índios brasileiros enfrentam os eclipses: em ambos os casos se trata de<br />

uma resposta a uma desunião <strong>ou</strong> a uma união antinatural, sexual no<br />

Mediterrâneo e astronômica na América do Sul.<br />

A figura do triângulo é central no pensamento de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. Por<br />

isto, embora seja temerário, não será ocioso perguntar-se se a velha<br />

oposição entre Oriente e Ocidente, o mundo indo-europeu e o mongólico,<br />

não se resolve em uma mediação americana anterior à chegada dos<br />

europeus à nosso continente. O sistema mitológico americano poderia<br />

ser o ponto de união, a mediação entre os dois sistemas míticos<br />

contraditórios. Salto sobre uma fácil objeção – “o mundo americano é<br />

parte da área mongolóide” – porque a antigüidade do homem na<br />

América permite considerar as culturas índias como criações originais,<br />

já que não autóctones. A relação entre a Índia e a América seria assim<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 28


de simetria inversa, não só no espaço como no tempo: o subcontinente<br />

índio é o ponto de convergência real, histórico, entre a área mongolóide e<br />

a indo-européia, do mesmo modo que o continente americano seria o<br />

ponto de coincidência, não-histórico, entre ambas. Outra relação<br />

contraditória: o sistema mitológico indo-europeu predomina na índia,<br />

enquanto que a mitologia americana possui a mesma origem da<br />

mongolóide. A mediação indo-ária carrega o acento no indo-europeu; a<br />

americana, no mongolóide. <strong>No</strong> caso da América, as perspectivas desta<br />

suposição são portentosas, já que os indo-americanos ignoraram de todo<br />

os sistemas míticos das <strong>ou</strong>tras duas áreas. À maneira de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> se<br />

poderia dizer que as civilizações se comunicam entre si sem que aqueles<br />

que as elaboram se dêem conta. A universalidade da razão – uma razão<br />

maior que a razão crítica – ficaria demonstrada pela ação de um<br />

pensamento que ainda há p<strong>ou</strong>co chamamos de irracional <strong>ou</strong> pre-lógico.<br />

Não sei se <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> aprovaria de todo esta interpretação de<br />

seu pensamento. Eu mesmo julgo-a apressa da. Em Tristes tropiques e<br />

n<strong>ou</strong>tras obras alude ao problema das relações entre Ásia e América e se<br />

inclina por uma idéia cada vez mais popular entre os estudiosos: a<br />

indubitáveis analogias entre certos traços da civilização americana, da<br />

China e do sudeste da Ásia, só podem ser conseqüência de imigrações e<br />

contatos culturais entre ambos os continentes. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> vai mais<br />

longe e aventura a existência de um triântico subártico que uniria a<br />

Escandinávia e o Labrador com o norte da América e a este com a China<br />

e o sudeste asiático. Esta circunstância, diz, tornaria mais compreensível<br />

o estreito “parentesco do ciclo do Graal com a mitologia dos índios da<br />

América setentrional”: os celtas e a civilização escandinava subártica<br />

teriam sido os transmissores. É estranho que apele para a história a fim<br />

de explicar estas analogias: toda a sua tentativa se dirige antes a ver<br />

neste tipo de coincidência não a conseqüência da história mas de uma<br />

operação do espírito humano. Seja como for, não creio traí-lo se afirmo<br />

que a sua obra tenta resolver a heterogeneidade das histórias<br />

particulares em uma estrutura atemporal. Às pretensões da história<br />

universal, que inutilmente tenta reduzir a pluralidade das civilizações a<br />

uma só direção ideal – ontem encarnada na Providência e hoje<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 29


desencarnada na idéia do progresso – opõe uma visão vivificante: não há<br />

povos marginais e a pluralidade das culturas é ilusória porque é uma<br />

pluralidade de metáforas que dizem a mesma coisa. Há um ponto em que<br />

se cruzam todos os caminhos; este ponto não é a civilização ocidental e<br />

sim o espírito humano que obedece, em todas as partes e em todos os<br />

tempos, às mesmas leis.<br />

Le cru et le cuit parte do exame de um mito dos índios Bororo<br />

relativo à origem da tempestade e mostra sua conexão secreta com<br />

<strong>ou</strong>tros mitos dos mesmos índios. Depois descobre os nexos deste grupo<br />

de mitos com os das sociedades vizinhas até explorar um sistema imenso<br />

que se estende em um território não menos imenso. Reduz as relações de<br />

cada mito e de cada grupo de mitos a “esquemas de relações” que por<br />

sua vez revelam afinidades <strong>ou</strong> isomorfismos com <strong>ou</strong>tros esquemas e<br />

grupos de esquemas. Nasce assim “um corpo de múltiplas dimensões”<br />

que, sem cessar, se transforma e que torna interminável sua tradução e<br />

sua interpretação. Esta dificuldade não é demasiado grave: o propósito<br />

de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> não é tanto estudar todos os mitos americanos quanto<br />

decifrar sua estrutura, isolar seus elementos e termos de relação,<br />

descobrir a forma de operação do pensamento mítico. Por <strong>ou</strong>tro lado, se<br />

o mito é um objeto em perpétua metamorfose, sua interpretação também<br />

obedece à mesma lei. O livro de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> recolhe e repete, não sem<br />

mudá-los, temas de seus livros anteriores e adianta motivos e<br />

observações que seus livros futuros elaborarão – nunca exatamente, mas<br />

à maneira das variações de um poema. Sua tentativa me recorda, n<strong>ou</strong>tro<br />

nível, a de Mallarmé: tanto Un c<strong>ou</strong>p de dés como Le cru et le cuit<br />

são aparatos de significações. Esta coincidência não é fortuita:<br />

Mallarmé antecipa muitas tentativas modernas, tanto na esfera da<br />

poesia, da pintura e da música como na do pensamento. Mallarmé parte<br />

do pensamento poético (selvagem) até o lógico e <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> do lógico<br />

para o selvagem. A anexação da razão lógica pelos símbolos da poesia<br />

coincide em um momento com a reconquista da lógica sensível pela<br />

razão crítica.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 30


Ao mostrar a relação entre os mitos Bororo e Gê, o antropólogo<br />

francês descobre que todos eles têm como tema, nunca explícito, a<br />

oposição entre o cru e o cozido, a natureza e a cultura. Os mitos do<br />

jaguar e do porco selvagem, associados aos da origem da planta do<br />

tabaco, aludem à descoberta do fogo e à cozedura dos alimentos. Por<br />

meio do sistema de permutações que descrevi acima de forma sumária e<br />

grosseira, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> passa em revista 187 mitos nos quais se repete<br />

esta dialética de oposição, mediação e transformação. Um após <strong>ou</strong>tro,<br />

em uma espécie de dança – poesia e matemática – se sucedem os<br />

símbolos contraditórios: o contínuo e o descontínuo, a vida breve e a<br />

imortalidade, a água e os ornamentos funerários, o fresco e o<br />

corrompido, a terra e o céu, o aberto e o fechado – as aberturas do corpo<br />

humano convertidas em um sistema simbólico da ingestão e da dejeção –<br />

a rocha e o lenho apodrecido, o canibalismo e o vegetarianismo, o<br />

incesto e o parricídio, a caça e a agricultura, a fumaça e o trovão... Os<br />

cinco sentidos se transformam em categorias lógicas e a esta chave da<br />

sensibilidade se superpõe uma astronômica que se transforma em <strong>ou</strong>tra<br />

construída da oposição entre ruído e silêncio, fala e canto. Todos esses<br />

mitos são metáforas culinárias, mas por sua vez a cozinha é um mito,<br />

uma metáfora da cultura.<br />

Três símbolos me chamaram a atenção: o arco-íris, a doninha e o<br />

veneno para a pesca. Os três são mediadores entre a natureza e a<br />

cultura, o contínuo e o descontínuo, a vida e a morte, o cru e o podre. O<br />

arco-íris significa o fim da chuva e a origem da enfermidade; de ambas<br />

as maneiras é um mediador: no primeiro aspecto porque é um emblema<br />

da conjunção benéfica entre céu e terra e no segundo porque encarna a<br />

fatal transição entre a vida e a morte. O arco-íris é um homólogo da<br />

doninha, animal lascivo e pestilento: um atributo a liga com a vida e<br />

<strong>ou</strong>tro com a morte (putrefação). O timbó é um veneno que os índios<br />

usam para pescar e assim é uma substância natural utilizada em uma<br />

atividade cultural ambígua (pesca e caça são transformações da guerra).<br />

<strong>No</strong>s três símbolos a ruptura <strong>ou</strong> descontinuidade essencial entre natureza<br />

e cultura, cujo exemplo máximo e central é a cozinha, se adelgaça e se<br />

atenua. Seu caráter equívoco não provém só do fato de serem<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 31


depositários de propriedades contraditórias, mas de que são categorias<br />

lógicas difíceis de pensar: neles a dialética das oposições está a ponto de<br />

se desvanecer. Por sua própria transparência são, diria, elementos<br />

impensáveis – algo assim como o pensamento que se pensa. Para recriar<br />

a descontinuidade, o arco-íris se desagrega (origem do cromatismo, que<br />

é uma forma atenuada da continuidade natural); o veneno nega por sua<br />

função a sua natureza (é uma substância mortífera que dá vida); e a<br />

doninha se transforma, em certos mitos de exaltados e sinistros matizes<br />

sexuais, de homólogo da doença e da “mulher fatal” em nutriz e<br />

introdutora da agricultura. Não é estranho que em um momento de sua<br />

exposição <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> associe o cromatismo do Tristão wagneriano<br />

com o veneno e aos dois com infortúnio de Isolda, a doninha.<br />

O verdadeiro tema de todos esses mitos é a oposição entre a<br />

cultura e a natureza tal como se expressa na criação humana por<br />

excelência: a cocção dos alimentos pelo fogo domesticado. Tema<br />

prometéico de múltiplas ressonâncias: cisão entre os deuses e os homens,<br />

a vida contínua do cosmo e a vida breve dos humanos, mas também<br />

mediação entre a vida e a morte, o céu e a água, as plantas e os animais.<br />

Seria ocioso enumerar todas as ramificações desta oposição, pois<br />

engloba todos os aspectos da vida humana. É um tema que nos conduz<br />

ao centro da meditação de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: o lugar do homem na natureza.<br />

A posição da cozinha como atividade que justamente separa e une o<br />

mundo natural e o humano não é menos central que a proibição<br />

universal do incesto. Ambas estão prefiguradas pela linguagem, que é o<br />

que nos separa da natureza e o que nos une a ela e a nossos semelhantes.<br />

A linguagem significa a distância entre o homem e as coisas tanto<br />

quanto a vontade de anulá-la. A cozinha e o tabu do incesto são<br />

homólogos da linguagem. A primeira é mediação entre o cru e o podre, o<br />

mundo animal e o vegetal; o segundo entre a endogamia e a exogamia, a<br />

promiscuidade dissoluta e o onanismo do uno. O modelo de ambos é a<br />

palavra, ponte entre o grito e o silêncio, a não significação da natureza e<br />

a insignificância dos homens. Os três são crivos que filtram o mundo<br />

natural anônimo e o transmutam em nomes, signos e qualidades.<br />

Transformam a torrente amorfa da vida em quantidade discriminada e<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 32


em famílias de símbolos. <strong>No</strong>s três o tecido da rede (crivo) é composto de<br />

uma substância impalpável: a morte. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> quase não a cita.<br />

Talvez o proíba o seu orgulhoso materialismo. Ademais, de certo ponto<br />

de vista, a morte é apenas <strong>ou</strong>tra manifestação da imortal matéria<br />

vigente. Mas, como não ver nessa necessidade de diferenciar entre<br />

natureza e cultura para em seguida introduzir um termo de mediação<br />

entre ambas, o eco e a obsessão de nos sabermos mortais?<br />

A morte é a verdadeira diferença, a raia divisória entre o homem e<br />

a corrente vital. O sentido último de todas essas metáforas é a morte.<br />

Cozinha, tabu do inces to e linguagem são operações do espírito, mas o<br />

espírito é uma operação da morte. Embora a necessidade de sobreviver<br />

pela alimentação e pela procriação seja comum a todos os seres vivos, os<br />

artifícios com que o homem enfrenta esta fatalidade o convertem em um<br />

ser à parte. Sentir-se e saber-se mortal é ser diferente: a morte nos<br />

condena à cultura. Sem ela não haveria nem artes nem ofícios:<br />

linguagem, cozinha e regras de parentesco são mediações entre a vida<br />

imortal da natureza e a brevidade da existência humana. Aqui <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> coincide com Freud e, n<strong>ou</strong>tro extremo, com Hegel e com Marx.<br />

Mais próximo dos dois últimos do que do primeiro, em um segundo<br />

movimento o seu pensamento procura dissolver a dicotomia entre<br />

cultura e natureza – não pelo trabalho, pela história <strong>ou</strong> pela revolução,<br />

mas pelo conhecimento das leis do espírito humano. O mediador entre a<br />

vida breve e a imortalidade natural é o espírito: um aparelho<br />

inconsciente e coletivo, imortal e anônimo como as células. Por isto me<br />

parece ser um homólogo do arco-íris, do veneno para pescar e da<br />

doninha. Como esses três elementos vivazes e fúnebres, por sua origem<br />

está do lado da natureza e por sua função e seus produtos do lado da<br />

cultura. Nele se apaga quase completamente a oposição entre morte e<br />

vida, a significação distinta do homem e a não significação infinita do<br />

cosmo. Diante da morte o espírito é vida e diante desta, morte. Desde o<br />

principio o entendimento humano esbarr<strong>ou</strong> diante da impossibilidade<br />

lógica de explicar o nada pelo ser <strong>ou</strong> o ser pelo nada. Talvez o espírito<br />

seja o mediador. Na esfera da física se chega a conclusões semelhantes; o<br />

Professor John Wheeler, em uma recente reunião da Physical Society,<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 33


afirma que é impossível localizar um acontecimento no tempo <strong>ou</strong> no<br />

espaço: antes e depois, aqui e ali são noções que carecem de sentido. Há<br />

um ponto no qual “something is nothing and nothing is something”... O<br />

tema do espírito e o do sentido da significação são gêmeos, mas antes de<br />

abordá-los devo examinar as relações entre o mito, a música e um<br />

hóspede não convidado a esse festim de Esopo que é a obra de <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong>: a poesia.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 34


3. INTERMÉDIO DISCORDANTE.<br />

DEFESA DE UMA CINDERELA E OUTRAS DIVAGAÇõES. UM<br />

TRIANGULO VERBAL: MITO, ÉPICA E POEMA.<br />

Le cru e le cuit é um livro de antropologia que adota a forma de<br />

um concerto. Não é a primeira vez que uma obra literária se serve de<br />

termos e formas musicais, embora, de modo geral, tenham sido os poetas<br />

a se servirem da música e não os homens de ciência. Certo, desde<br />

Apollinaire e Picasso a relação entre poesia e pintura foi mais íntima do<br />

que a entre poesia e música. Creio que agora a relação está a ponto de<br />

mudar, tanto pela evolução da música contemporânea como pelo<br />

renascimento da poesia oral. Ambas, música e poesia, encontrarão nos<br />

novos meios de comunicação um terreno de união. Além disso, vários<br />

poetas modernos – Mallarmé, Eliot e, entre nós, José Gorostiza – deram<br />

às suas criações uma estrutura musical, enquanto <strong>ou</strong>tros – Valéry,<br />

Pellicer, Garcia Lorca – acentuaram a relação entre poesia e dança. Por<br />

sua vez os músicos e os dançarinos sempre viram nas formas poéticas<br />

um modelo <strong>ou</strong> arquétipo de suas criações. O parentesco entre poesia,<br />

música e dança é natural: as três são artes temporais. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

justifica a forma de seu livro pela índole da matéria que estuda e pela<br />

própria natureza de seu método de interpretação: acredita que existe<br />

uma verdadeira analogia; não, como seria de esperar, entre a poesia e o<br />

mito, mas entre o mito e a música. E mais ainda: na esfera da análise dos<br />

mitos se apresentam “problemas de construção para os quais a música<br />

já invent<strong>ou</strong> soluções”. Deixo de lado esta afirmação enigmática e me<br />

limitarei a discutir as razões que o levam a postular uma relação<br />

particular entre o pensamento mítico e o musical.<br />

O fundamento de sua demonstração se condensa nesta frase:<br />

“Música e mito são linguagens que transcendem, cada um à sua<br />

maneira, o nível da linguagem articulada”. Esta afirmação provoca<br />

imediatamente duas observações. Em primeiro lugar, a música não<br />

transcende a linguagem articulada pela simples razão de que o seu<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 35


código <strong>ou</strong> clave – a gama musical – não é lingüística. Em um sentido<br />

estrito a música não é linguagem, embora seja lícito chamá-la assim por<br />

metáfora <strong>ou</strong> por extensão do termo. Como as <strong>ou</strong>tras artes não verbais, a<br />

música é um sistema de comunicação análogo, e não idêntico, à<br />

linguagem. Para transcender algo há que passar por esse algo e ir mais<br />

além: a música não transcende a linguagem articulada porque não passa<br />

por ela. A segunda observação: “como o mito, embora em direção<br />

contrária, a poesia transcende a linguagem”. 9 Graças à mobilidade dos<br />

signos lingüísticos, as palavras explicam as palavras: toda frase diz algo<br />

que pode ser dito por <strong>ou</strong>tra frase, todo significado é um querer dizer que<br />

pode ser dito de <strong>ou</strong>tra maneira. A “frase poética” – unidade rítmica<br />

mínima do poema, cristalização das propriedades físicas e semânticas da<br />

linguagem – nunca é um querer dizer: é um dizer irrevogável e final, em<br />

que o sentido e som se fundem. O poema é inexplicável, exceto por si<br />

mesmo. Por um lado, é uma totalidade indissociável e uma mudança<br />

mínima altera toda a composição; por <strong>ou</strong>tro lado, é intraduzível: além<br />

do poema há apenas ruído e silêncio, um sem-sentido <strong>ou</strong> uma semsignificação<br />

que as palavras não podem nomear. O poema aponta para<br />

uma região a que aludem também, com a mesma obstinação e a mesma<br />

impotência, os signos da música. Dialética entre som e silêncio, sentido e<br />

não-sentido, os ritmos musicais e poéticos dizem algo que só eles podem<br />

dizer, sem dizê-lo nunca de todo. Por isso, corno a música, o poema “é<br />

uma linguagem inteligível e intraduzível”. Sublinho que não só é<br />

intraduzível para as <strong>ou</strong>tras línguas como para o idioma em que está<br />

escrito. A tradução de um poema é sempre a criação de <strong>ou</strong>tro poema;<br />

não é uma reprodução mas uma metáfora equivalente do original.<br />

Em suma, a poesia transcende a linguagem porque transmuta esse<br />

conjunto de signos móveis e intercambiáveis que é a linguagem em um<br />

dizer último. Tocada pela poesia, a linguagem é mais plenamente<br />

linguagem e, simultaneamente, cessa de ser linguagem: é poema. Objeto<br />

composto de palavras, o poema desemboca em uma região inacessível às<br />

palavras: o sentido se dissolve, ser e sentido são o mesmo... <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

9 Em El arco y la lira (1956) ocupei-me longamente do tema, assim com, das relações entre mito e<br />

poema. Nesta passagem, e em <strong>ou</strong>tras, repetirei às vezes textualmente, o que disse nesse livro.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 36


econhece em parte o que eu disse: “Na linguagem a primeira cifra nãosignificante<br />

(a fonológica) é meio e instrumento de significacão da<br />

segunda; a dualidade se restabelece na poesia, que recobra o valor<br />

virtual da significação da primeira para integrá-la na segunda...”<br />

Admite que a poesia muda a linguagem mas pensa que, longe de<br />

transcendê-la, se encerra assim mais totalmente em suas malhas: desce<br />

do sentido aos signos sensíveis, regressa da palavra ao fonema. Direi<br />

somente que me parece um perverso paradoxo definir desta maneira a<br />

atividade de Dante, Baudelaire <strong>ou</strong> Coleridge.<br />

Música e mito “requerem uma dimensão temporal para<br />

manifestar-se”. Sua relação com o tempo é peculiar porque o afirmam só<br />

para negá-lo. São diacrônicos e siri crônicos: o mito conta uma história<br />

e, como o concerto, se desenvolve no tempo irreversível da audição; o<br />

mito se repete, se reengendra, é tempo que volve sobre si mesmo – o que<br />

pass<strong>ou</strong> está passando agora e voltará a passar – e a música “imobiliza o<br />

tempo que transcorre... de modo que ao escutá-la acedemos a uma<br />

espécie de imortalidade”. Numa obra anterior <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> já tinha<br />

sublinhado a dualidade do mito, que corresponde à distinção entre<br />

língua e fala, estrutura atemporal e tempo irreversível da elocução. A<br />

analogia entre música e mito é perfeita, só que pode estender-se à dança<br />

e, de novo, à poesia. As relações entre dança e música são tão estreitas<br />

que me p<strong>ou</strong>pam toda explicação. <strong>No</strong> caso da poesia se reproduz a<br />

dualidade sincrônica e diacrônica da linguagem, embora em um nível<br />

mais elevado, já que a segunda clave <strong>ou</strong> cifra, a significativa, dá<br />

condições para que o poeta construa um terceiro nível não sem<br />

semelhanças com o da música e, está claro, com o que <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

descreve em Le cru et le cuit. O tempo do poema é cronométrico e, do<br />

mesmo modo, é <strong>ou</strong>tro tempo que é a negação da sucessão. Na vida diária<br />

dizemos: o que pass<strong>ou</strong>, pass<strong>ou</strong>; mas no poema aquilo que pass<strong>ou</strong><br />

regressa e encarna <strong>ou</strong>tra vez. O poeta, diz o centauro Ouiron a Fausto,<br />

não está encadeado no tempo: fora do tempo Aquiles encontr<strong>ou</strong> Helena.<br />

Fora do tempo? Melhor dizer, no tempo original... Inclusive nos poemas<br />

épicos e nas novelas históricas o tempo da narrativa escapa à sucessão.<br />

O passado e o presente dos poetas não são os da história e os do<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 37


periodismo; não são aquilo que foi nem aquilo que passa, mas o que está<br />

sendo, o que se está fazendo. Gesta, gestação: um tempo que se<br />

reencarna e se re-engendra. E reencarna de duas maneiras: no momento<br />

da criação e no da recriação, quando o leitor <strong>ou</strong> o <strong>ou</strong>vinte revive as<br />

imagens e ritmos do poema e convoca esse tempo flutuante que<br />

regressa... “Nem todos os mitos são poemas mas, neste sentido, todos os<br />

poemas são mitos”. (El arco y la lira, p. 64.) Poemas e mitos<br />

coincidem em transmutar o tempo em uma categoria temporal especial,<br />

um passado sempre futuro e sempre disposto a ser presente, a<br />

presentificar-se. Assim pois, as relações da música com o tempo não são<br />

essencialmente distintas das da poesia e da dança. A razão é clara: são<br />

três artes temporais que, para se realizar, devem negar a temporalidade.<br />

As artes visuais repetem esta relação dual, não com o tempo mas<br />

com o espaço: um quadro é um espaço que nos remete a <strong>ou</strong>tro espaço. O<br />

espaço pictórico anula o espaço real do quadro; é uma construção que<br />

contém um espaço possuidor de propriedades análogas às do “tempo<br />

congelado” da música e da poesia. Um quadro é um espaço em que<br />

vemos <strong>ou</strong>tro espaço; um poema é um tempo que transparece <strong>ou</strong>tro<br />

tempo, fluido e imóvel juntamente. A arquitetura, mais poderosa do que<br />

a pintura e a escultura, altera ainda mais radicalmente o espaço físico:<br />

não só vemos um espaço que não é real como vivemos e morremos nesse<br />

segundo espaço. A estupa 10 é uma metáfora do monte Meru, mas é uma<br />

metáfora encarnada <strong>ou</strong>, mais exatamente, petrificada: nós a tocamos e a<br />

vemos como um verdadeiro monte. O teatro, a dança e o cinema – artes<br />

temporais e espaciais, visuais e sonoras – combinam essa parelha de<br />

dualidades: o palco e a tela são um espaço que cria <strong>ou</strong>tro espaço sobre o<br />

qual desliza um tempo cromático que é reversível como o da poesia, da<br />

música e do mito.<br />

A música e o mito “operam a partir de um duplo contínuo, externo<br />

e interno”. O primeiro consiste, no caso do mito, em “uma série<br />

teoricamente ilimitada de ocorrências históricas <strong>ou</strong> tidas por tais, dentre<br />

10 Estupa <strong>ou</strong> Stupa, templo budístico indiano, construído de forma hemisférica, à semelhança de uma<br />

cúpula. Templos de caráter funerário, as estupas ergueram-se na índia até por volta do século XII. (N. do<br />

T.)<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 38


as quais cada sociedade extrai um número pertinente de<br />

acontecimentos”; pelo que diz respeito à música, cada sistema musical<br />

escolhe uma gama entre a série de sons fisicamente realizáveis. quase<br />

desnecessário observar que o mesmo acontece com a dança: cada sistema<br />

seleciona, dentro dos movimentos do corpo humano e mesmo dos<br />

animais, alguns que constituem o seu vocabulário. A dança de Kerala<br />

(katakali) serve-se de uma gama mímica, enquanto que na européia há<br />

uma espécie de sintaxe do salto e da contorsão. Na poesia sânscrita se<br />

l<strong>ou</strong>va a graça elefantina das bailarinas e no Ocidente o cisne e <strong>ou</strong>tras<br />

aves são os modelos de comparação da dança. Na poesia o contínuo<br />

sonoro da fala se reduz a alguns metros e é sabido que cada língua<br />

prefere apenas um <strong>ou</strong> dois: o octossílabo e o hendecassílabo em espanhol,<br />

alexandrino e eneassílabo em francês. Não é apenas isto: cada sistema<br />

de versificação adota um método distinto para constituir o seu cânone<br />

métrico: versificação quantitativa na antigüidade greco-romana, silábica<br />

nas línguas românicas e acentuai nas germânicas. Como a clave sonora<br />

é também semântica, cada sistema é composto por uma série de regras<br />

estritas que operam no nível semântico como a versificação no sonoro. A<br />

arte de versificar é uma arte de dizer que não combina todos os<br />

elementos da linguagem, mas um grupo reduzido. Enfim, mitos e poemas<br />

se assemelham de tal modo que não só os primeiros empregam com<br />

freqüência as formas métricas e os procedimentos retóricos da poesia<br />

como a própria matéria dos mitos – “os acontecimentos” a que alude<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> – são também matéria de poesia. Aristóteles chama mitos<br />

aos argumentos <strong>ou</strong> histórias das tragédias. Ao escrever a Fábula de<br />

Polifemo y Galatea, Góngora não só nos presente<strong>ou</strong> com um poema<br />

que ocupa na poesia do século XVII o lugar que Un c<strong>ou</strong>p de dés ocupa<br />

na do século XX, como nos ofereceu uma nova versão do mito do cíclope.<br />

O “contínuo interno” reside no tempo psicofisiológico do <strong>ou</strong>vinte.<br />

A longitude da narrativa, a recorrência dos temas, as surpresas,<br />

paralelismos, associações e ruptu ras provocam no auditório reações de<br />

ordem psíquica e fisiológica, respostas mentais e corporais: o interesse<br />

do mito é “palpitante”. A música afeta de maneira ainda mais<br />

acentuada nosso sistema visceral: carreira, salto, imobilidade, encontro,<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 39


desencontro, queda no vazio, subida ao cimo. Não sei se <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

not<strong>ou</strong> que todas estas sensações podem se reduzir a esta dualidade:<br />

movimento e imobilidade. Estas duas palavras evocam a dança, que é a<br />

verdadeira parelha da música. A dança nos convida a nos<br />

transformarmos em música: pede-nos que a acompanhemos; e a música<br />

nos convida a dançar: pede-nos que a encarnemos. O feitiço da música<br />

provém de que o compositor “retira aquilo que o <strong>ou</strong>vinte espera <strong>ou</strong> lhe<br />

dá algo que não esperava”. A palavra surpresa diz de maneira muito<br />

imperfeita este sentimento de “espera enganada <strong>ou</strong> recompensada mais<br />

além do previsto”. A mesma dialética entre o esperado e o inesperado se<br />

desenvolve na poesia. É uma característica comum a todas as artes<br />

temporais e que faz parte inclusive da oratória: um jogo entre o antes, o<br />

agora e o depois. Ao nível sonoro os <strong>ou</strong>vintes esperam uma rima <strong>ou</strong> uma<br />

série de sons e se assombram de que o poeta resolva a seqüência de<br />

forma imprevista. Nada me fez mais viva esta sensação do que escutar<br />

uma recitação de poemas em urdu, uma língua que desconheço: o<br />

auditório escutava com avidez e aprovava <strong>ou</strong> se desconcertava quando o<br />

poeta lhe oferecia algo distinto do que aguardava. Etiemble diz que a<br />

poesia é um exercício respiratório e muscular em que intervém tanto a<br />

atividade dos pulmões como a da língua, dos dentes e dos lábios. <strong>Claude</strong>l<br />

e Whitman insistiram sobre o ritmo de inspiração e expiração do poema.<br />

Todas estas sensações as reproduz o <strong>ou</strong>vinte e o leitor. Ora, como em<br />

poesia “the s<strong>ou</strong>nd must seem an echo of the sense”, esses exercícios<br />

fisiológicos possuem um significado; repetição e variação, ruptura e<br />

união são procedimentos que geram reações ao mesmo tempo psíquicas e<br />

físicas. A dialética da surpresa, diz Jakobson, foi definida pelo poeta<br />

Edgar Allan Poe, “o primeiro que valoriz<strong>ou</strong>, do ponto de vista métrico e<br />

psicológico o prazer que gera o inesperado ao surgir do esperado, um e<br />

<strong>ou</strong>tro impensáveis sem o seu contrário”.<br />

Na música e nos mitos há “uma inversão de relação entre emissor<br />

e receptor, 'pois o segundo se descobre significado pela mensagem do<br />

primeiro: a música vive em mim, eu me escuto através dela... O mito e a<br />

obra musical são como um diretor de orquestra cujos <strong>ou</strong>vintes fossem os<br />

silenciosos executantes”. Outra vez: poeta e leitor são momentos de uma<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 40


mesma operação; depois de escrito o poema, o poeta fica só e são os<br />

<strong>ou</strong>tros, os leitores, os que se recriam a si mesmos ao recriar o poema. A<br />

experiência da criação se reproduz em sentido inverso: agora o poema se<br />

abre diante do leitor. Ao penetrar nessas galerias transparentes,<br />

desprende-se de si mesmo e se interna no “<strong>ou</strong>tro ele mesmo”, até então<br />

desconhecido. O poema nos abre ao mesmo tempo as portas da<br />

estranheza e do reconhecimento: eu s<strong>ou</strong> esse, eu estive aqui, esse mar me<br />

conhece, eu te conheço, em teus pensamentos vejo a minha imagem<br />

repetida mil vezes até a incandescência... O poema é um mecanismo<br />

verbal que produz significados só e graças a um leitor <strong>ou</strong> um <strong>ou</strong>vinte que<br />

o coloca em movimento. O significado do poema não está no que quis<br />

dizer o poeta mas no que diz o leitor por meio do poema. O leitor é este<br />

“silencioso executante” de que fala <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. É um fenômeno comum<br />

a todas as artes: o homem se comunica consigo mesmo, se descobre e se<br />

inventa, por meio da obra de arte.<br />

Se os mitos “não têm autor e existem apenas encarnados em uma<br />

tradição”, o problema que a música apresenta é mais grave: tem um<br />

autor mas ignoramos como se escrevem as obras musicais. “Não<br />

sabemos nada das condições mentais da criação musical”: por que só<br />

alguns secretam música e são inumeráveis os que a amam? Esta<br />

circunstância e o fato de que “entre todas as linguagens só a musical<br />

seja inteligível e intraduzível”, convertem o compositor “em um ser<br />

semelhante aos deuses e a própria música no mistério supremo das<br />

ciências humanas – um mistério que resiste às mesmas e que guarda as<br />

chaves de seu progresso”. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> chama os aficcionados da<br />

pintura de “fanáticos”; este parágrafo é um exemplo de como o<br />

fanatismo, agora musical, ajudado pela fatal tendência à eloqüência das<br />

línguas latinas, pode extraviar os espíritos mais altos. O mistério da<br />

criação musical não é mais recôndido nem mais tenebroso do que o<br />

mistério da criação pictórica, poética <strong>ou</strong> matemática. Ainda não<br />

sabemos porque alguns homens são Newton e <strong>ou</strong>tros Ticiano. O próprio<br />

Freud disse que p<strong>ou</strong>co <strong>ou</strong> nada sabia do processo psicológico da criação<br />

artística. A diferença numérica entre os criadores de obras musicais e os<br />

aficcionados da música se repete em todas as artes e ciências: nem todos<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 41


são Whitman, Darwin <strong>ou</strong> Velázquez, mas muitos compreendem e amam<br />

as suas obras. Tamp<strong>ou</strong>co é exato que a música seja a única linguagem<br />

“inteligível e intraduzível”. Já disse que o mesmo sucede com a poesia e a<br />

dança. Acrescento agora os exemplos da pintura e da escultura: como<br />

traduzir a arte negra, a da antigüidade Greco-romana <strong>ou</strong> a japonesa?<br />

Cada “tradução” é uma criação <strong>ou</strong> transmutação que se chama<br />

cubismo, arte renascentista, impressionismo. Nenhuma obra de arte é<br />

traduzível e todas são inteligíveis – se possuímos a chave.<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> não faz uma distinção, a meu ver capital, entre clave<br />

(código <strong>ou</strong> cifra) e obra. A clave da música é mais ampla do que a da<br />

poesia, mas é menos do que a da pintura. O sistema musical europeu<br />

rep<strong>ou</strong>sa na gama de notas e é mais extenso do que o sistema poético<br />

francês, baseado na estrutura fonológica dessa língua; contudo, basta<br />

passar de fronteira musical e viver na China <strong>ou</strong> na índia para que a<br />

música ocidental dixe de ser inteligível. A linguagem das artes visuais e<br />

mais extensa – não mais universal – porque sua clave, como diz <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong>, se “organiza no seio da experiência sensível”. A clave da<br />

pintura – cores, linhas, volumes -- é mais sensível do que intelectual e,<br />

portanto, é acessível a maior número de homens, independentemente de<br />

sua língua e de sua civilização. À medida que aumenta a perfeição e a<br />

complexidade da clave, sua popularidade decresce. A clave das<br />

matemáticas é menos extensa e mais perfeita do que a fala corrente. A<br />

clave lingüística, pela mesma razão de perfeição e de complexidade, é<br />

menos extensa do que a musical e assim sucessivamente até chegar à<br />

dança, à pintura e à escultura. Dir-se-á que a música usa uma linguagem<br />

própria “e que não é suscetível de nenhum uso geral”, enquanto que as<br />

palavras do poeta não são distintas das do comerciante, do clérigo <strong>ou</strong> do<br />

revolucionário. Repetimos: a música não é linguagem articulada,<br />

característica que a une à pintura e às <strong>ou</strong>tras artes não-verbais. Neste<br />

sentido, a linguagem das cores e das formas também é um domínio<br />

exclusivo da pintura, embora sua clave seja menos elaborada e perfeita<br />

que a da música. Portanto, a primeira distinção que se deve fazer é entre<br />

estruturas verbais e estruturas não-verbais. Por ser a linguagem o mais<br />

perfeito dos sistemas de comunicação, as estruturas verbais são o<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 42


modelo das não-verbais. <strong>No</strong> universo propriamente lingüístico a poesia e<br />

a matemática se encontram em situação de oposição simétrica: na<br />

primeira, os significados são múltiplos e os signos inamovíveis; na<br />

segunda, es signos são movíveis e o significado unívoco. É claro que a<br />

música e as <strong>ou</strong>tras artes não-verbais participam desta característica da<br />

poesia. A ambigüidade é o signo distintivo da poesia e esta propriedade<br />

poética converte em artes a música, a pintura e a escultura.<br />

Se das claves se passa às obras, o juízo de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> torna-se<br />

ainda mais injusto. A universalidade de uma obra não depende de sua<br />

clave mas de sua mensagem. Explico-me. Aceitarei por um momento essa<br />

infundada pretensão que vê na linguagem musical um sistema de<br />

comunicação mais perfeito que o lingüístico: Debussy é mais perfeito e<br />

universal do que Shakespeare, Goya <strong>ou</strong> os relevos de Baharut que, com<br />

tanta razão, o sábio francês admira? Com uma clave “sensível” El Greto<br />

cria uma obra espiritual e Mondrian uma pintura intelectual que se<br />

limita com a geometria e a teoria binária da cibernética. Com uma clave<br />

que, segundo <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, deve p<strong>ou</strong>co aos sons naturais, Stravinski<br />

escreve a Sagração da Primavera, poema das forças e dos ritmos<br />

naturais. A universalidade e o caráter das obras não depende da clave e<br />

sim desse imponderável, verdadeiro mistério, a que chamamos de arte <strong>ou</strong><br />

criação. A confusão entre clave e obra talvez explique os desdenhosos<br />

juízos de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> sobre a pintura abstrata, a música serial e a<br />

concreta. Sobre esta última seria preciso dizer que, como a eletrônica, é<br />

parte da busca de uma estrutura sonora inconsciente, <strong>ou</strong> seja, de<br />

unidades concretas naturais. Essa tentativa recorda a “lógica concreta<br />

das qualidades sensíveis” de La pensée sauvage . Aliás, em um dos<br />

livros mais poéticos e estimulantes que li nos últimos anos (Silence) diz<br />

John Cage: “A forma da música nova é diversa da antiga, mas possui<br />

uma relação com as grandes formas do passado, a fuga e a sonata, do<br />

mesmo modo que há uma relação entre estas duas últimas”. Em arte<br />

toda ruptura é transmutação.<br />

Páginas adiante, guiado pelo demônio da analogia, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

adverte na música as seis funções que os lingüistas atribuem às<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 43


mensagens verbais. Essas seis funções, repetimos, aparecem também na<br />

dança e, está claro, nas <strong>ou</strong>tras artes. Embora música e dança não sejam<br />

linguagem articulada, são sistemas de comunicação muito semelhantes à<br />

linguagem e daí que sua mensagem seja o equivalente de uma das<br />

funções lingüísticas: a função poética. Segundo Jakobson, esta função<br />

não está centralizada no emissor, no receptor, no contato entre ambos,<br />

no contexto da mensagem <strong>ou</strong> na clave, mas sobre a própria mensagem.<br />

Assim, a função poética distingue os afrescos de Ajanta dos quadrinhos<br />

dominicais: são arte não porque nos contam as vidas anteriores do Buda<br />

– tarefa que os jatakas cumprem de sobra – mas porque são pintura.<br />

Nessa mensagem visual aparecem <strong>ou</strong>tras funções – a emotiva, a<br />

denotativa etc. – mas a mensagem é sobretudo pictórica e pede-nos que a<br />

recebamos como tal. Ora, o predomínio da função poética na poesia não<br />

implica que em um poema não apareçam as <strong>ou</strong>tras funções; do mesmo<br />

modo, uma mensagem verbal pode utilizar os recursos da função poética<br />

sem que isto signifique que seja um poema. Exemplos: os anúncios<br />

comerciais e, no <strong>ou</strong>tro extremo, os mitos. O mesmo livro de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

revela que os mitos são parte da função poética: os mitos são objetos<br />

verbais que utilizam, portanto, uma clave lingüística; esta primeira clave<br />

(que implica dois níveis: o fonológico e o significativo <strong>ou</strong> semântico)<br />

serve ao pensamento mítica para elaborar uma segunda clave; por sua<br />

vez, Le cru et le cuit oferece uma terceira clave que permite traduzir a<br />

“lógica concreta” do mito em um sistema de símbolos e proposições<br />

lógicas. Esta tradução é uma transmutação e tem mais de uma<br />

semelhança com a tradução poética, tal como Valéry a definiu: com<br />

meios diferentes produzir efeitos <strong>ou</strong> resultados semelhantes. Talvez se<br />

pudesse replicar que a minha analogia esquece uma diferença: enquanto<br />

a tradução poética se faz de uma clave lingüística a <strong>ou</strong>tra, a tradução de<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> implica na passagem de um sistema para <strong>ou</strong>tro sistema, da<br />

narrativa mítica aos símbolos das matemáticas e às proposições da<br />

ciência. Não creio: em ambos os casos a tradução é transmutação e em<br />

ambos não abandonamos a esfera da linguagem – algo que não ocorre<br />

com a música. Mitos e equações se traduzem como os poemas: cada<br />

tradução é uma transformação. A transformação é possível porque<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 44


mitos, poemas e símbolos matemáticos e lógicos operam como sistemas<br />

de equivalências.<br />

A função poética (cito <strong>ou</strong>tra vez Jakobson) translada o princípio<br />

da equivalência do eixo da seleção ao da combinação. A formulação de<br />

toda mensagem verbal compreende duas operações: a seleção e a<br />

combinação. Pela primeira, escolhemos a palavra mais adequada entre<br />

um grupo de palavras: “Seja menino o tema da mensagem; o locutor<br />

seleciona entre garoto, pequeno, rapazinho etc.; depois repete a<br />

operação com o complemento: dorme, sonha, rep<strong>ou</strong>sa, está quieto; em<br />

seguida combina as duas seleções: o menino dorme. A seleção se realiza<br />

sobre a base de semelhança <strong>ou</strong> dessemelhança, sinonímia <strong>ou</strong> antonímia,<br />

enquanto que a combinação, a construção da seqüência, rep<strong>ou</strong>sa sobre a<br />

contigüidade”. A poesia transtorna essa ordem e “promove a<br />

equivalência ao nível de procedimento constitutivo da seqüência”. A<br />

equivalência opera em todos os níveis do poema: o sonoro (rima, metro,<br />

acentos, aliterações etc.) e o semântico (metáforas e metonímias). A<br />

metalinguagem também utiliza “seqüências de unidades equivalentes e<br />

combina expressões sinônimas em frases-equações: A igual a A. Mas<br />

entre poesia e metalinguagem há uma oposição diametral: na<br />

metalinguagem utiliza-se a seqüência para construir uma equação; na<br />

poesia, a equação serve para se construir uma seqüência”. 11 O livro de<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> é uma metalinguagem e, ao mesmo tempo, um mito de<br />

mitos; pela primeira, serve-se dos mitemas para construir proposições<br />

que são, de certo modo, equações; pela segunda, participa da função<br />

poética, pois se serve das equações para elaborar seqüências. <strong>No</strong> caso<br />

dos mitos que <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> examina a ordem se inverte: secundariamente<br />

são uma metalinguagem e primordialmente se inscrevem dentro da<br />

função poética. Os mitos participam da poesia e da filosofia, sem ser<br />

nem um nem <strong>ou</strong>tro.<br />

A noção de função poética permite estabelecer a conexão íntima<br />

entre mito e poema. Se se observa a estrutura de um e de <strong>ou</strong>tro advertese<br />

imediatamente uma nova semelhança. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> fez uma<br />

11 ROMAN JAKOBSON, “Linguistic and Poetics”, In Style and Language, edição de T. Sebeok, 1960.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 45


contribuição fundamental ao descobrir que as unidades mínimas de um<br />

mito são maiores que as do discurso: frases <strong>ou</strong> orações que cristalizam<br />

feixes de relações. <strong>No</strong> poema se encontra um equivalente dos mitemas: o<br />

que chamei, a falta de melhor expressão, “frase poética”. A diferença da<br />

prosa, a unidade desta frase, o que a constitui como tal e a converte em<br />

imagem, não é (unicamente) o sentido, mas o ritmo. Ou seja: o poema é<br />

composto de frases <strong>ou</strong> unidades mínimas nas quais o som e o sentido são<br />

uma e mesma coisa. São frases que se resolvem em <strong>ou</strong>tras frases em<br />

virtude do princípio de equivalência a que Jakobson alude e que<br />

convertem o poema em um universo de ecos e de analogias. Poemas e<br />

mitos nos abrem as portas do bosque das semelhanças.<br />

Procurarei agora assinalar a diferença entre mito e poema. Em<br />

relação com os signos verbais o mito se acha em uma posição<br />

eqüidistante da poesia e da matemática: como na primeira, seu<br />

significado é plural; como na segunda, seus signos são mais facilmente<br />

intercambiáveis que na poesia. Dentro da função poética, o poema lírico<br />

se encontra em um extremo, e no oposto, o mito. Entre o poema lírico e o<br />

mito há. um termo intermédio: a poesia épica. É sabido que a poesia<br />

épica serve-se do mito como matéria-prima <strong>ou</strong> argumento e a decadência<br />

do gênero épico (<strong>ou</strong> melhor: sua metamorfose em romance) se deve ao<br />

relativo ocaso dos mitos no Ocidente. Digo relativo porque nossos mitos<br />

mudaram de forma e se chamam utopias políticas, tecnológicas,<br />

eróticas. Esses mitos são a substância de nossos romances e dramas –<br />

desde Don Juan, Fausto e Rastignac até Swan, Kyo, Nadja e Tim<br />

Finnegan. Os empréstimos entre mito e épica são inumeráveis e quase<br />

todos os recursos do primeiro são usados pela segunda e vice-versa. Em<br />

suma, o mito se situa nas fronteiras da função poética, um p<strong>ou</strong>co mais<br />

além do romance, do poema épico, do conto, das lendas e de <strong>ou</strong>tras<br />

formas mistas.<br />

O mito não é poema, nem ciência, nem filosofia, embora coincida<br />

com o primeiro por seus processos (função poética), com a segunda por<br />

sua lógica e com a última por sua ambição de nos oferecer uma idéia do<br />

universo. Assim pois, do mesmo modo que a épica traduz o mito a<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 46


equivalências fixas (metro e metáforas), a filosofia o traduz a conceitos<br />

e a ciência a seqüências de proposições. O livro de <strong>Lévi</strong>-Stratíss é, por tal<br />

razão, “um mito dos mitos americanos”, um poema, e, simultaneamente,<br />

um livro de ciência... Confesso que não posso entender sua impaciência<br />

diante da poesia e dos poetas. Certa vez <strong>ou</strong>vi José Caos dizer que a<br />

soberba do filósofo é uma paixão contraditória, já que é conseqüência de<br />

sua . visão total do universo e do exclusivismo dessa visão. Certo: a visão<br />

do filósofo é um todo em que faltam muitas coisas. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> se cur<strong>ou</strong><br />

dessa soberba com o antídoto da humildade do homem de ciência, mas<br />

ainda lhe resta certo mal humor filosófico, diante desse ser estranho que<br />

é a poesia. De minha parte d<strong>ou</strong>-me conta de que dediquei demasiadas<br />

páginas a este tema e reconheço, tardiamente, que também incorri no<br />

pecado de fanatismo. Não obstante, direi algo mais: ao escrever essas<br />

linhas escuto as primeiras notas de uma “raga” do norte da índia: não,<br />

em nenhum momento Le cru et le cuit me fez pensar na música. O<br />

prazer que me deu esse livro me evoca <strong>ou</strong>tras experiências: a leitura de<br />

Ulysses e a das Soledades, a de Un c<strong>ou</strong>p de dés e a de A la<br />

recherche du temps perdu.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 47


4. QUALIDADES E CONCEITOS:<br />

PARES E PARELHAS, ELEFANTES E TIGRES. A RETA E O<br />

CÍRCULO. OS REMORSOS DO PROGRESSO. INGESTÃO,<br />

CONVERSÃO, EXPULSÃO. O FIM DA IDADE DE OURO E O<br />

COMEÇO DA ESCRITURA.<br />

A obra de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> estende um arco que urre duas paisagens<br />

contrárias: a natureza e a cultura. Dentro da segunda se repete a<br />

oposição: La pensée sauvage descreve o pensamento das sociedades<br />

primitivas e o compara com o das históricas. Esclareço que o primeiro<br />

não é o pensar dos selvagens mas uma conduta mental presente em todas<br />

as sociedades e que nas nossas se manifesta principalmente nas<br />

atividades artísticas. Portanto, o adjetivo histórico não quer dizer que os<br />

primitivos não tenham história; do mesmo modo que em nosso mundo o<br />

pensamento selvagem ocupa um lugar marginal e quase subterrâneo, a<br />

noção de história não ocupa, entre os primitivos, a hierarquia suprema<br />

que lhe <strong>ou</strong>torgamos. Esta repugnância em relação ao pensar histórico<br />

não elimina o rigor, o realismo e a coerência do pensamento selvagem.<br />

Mais uma vez, sua lógica não difere da nossa no que diz respeito à sua<br />

forma de operação, embora o seja pelos objetos e fins a que se aplicam os<br />

seus raciocínios. Por exemplo, entre os primitivos os sistemas de<br />

classificação compreendidos dentro do rótulo geral de taxionomia não<br />

são mais exatos do que os de nossas ciências naturais e são mais ricos.<br />

Um e <strong>ou</strong>tro, o herbolário australiano e o botânico europeu, introduzem<br />

uma ordem na natureza, mas enquanto o primeiro tem em conta antes<br />

de tudo as qualidades sensíveis da planta – odor, cor, forma, sabor – e<br />

estabelece uma relação de analogia entre essas qualidades e a de <strong>ou</strong>tros<br />

elementos naturais e humanos, o homem de ciência mede e busca<br />

relações de ordem morfológica e quantitativa entre os exemplares, as<br />

famílias, os gêneros e as espécies. O primeiro tende a elaborar sistemas<br />

totais e o segundo especializados. Tanto num como n<strong>ou</strong>tro caso trata-se<br />

de relações que se expressam por esta fórmula: isto é como aquilo <strong>ou</strong> isto<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 48


não é como aquilo. Já foi dito muitas vezes que o pensamento selvagem é<br />

irracional, global e qualitativo enquanto que o da ciência é exato,<br />

conceituai e quantitativo. Esta oposição, tema constante das querelas<br />

antropológicas no princípio do século, revel<strong>ou</strong>-se ilusória. A química<br />

moderna “reduz a variedade dos perfumes e sabores à combinação, em<br />

proporções diferentes, de cinco elementos: carbono, hidrogênio,<br />

oxigênio, enxofre e, azoto”. Surge assim um domínio até agora<br />

inacessível à experimentação e investigação: esse mundo de<br />

características oscilantes que só são perceptíveis e definíveis por meio do<br />

conceito de revelação. O homem de ciência do passado media, observava<br />

e classificava; o primitivo sente, classifica e combina; a ciência<br />

contemporânea penetra, como o primitivo, no mundo das qualidades<br />

sensíveis graças à noção de combinação, simetria e oposição. As<br />

taxionomias dos primitivos não são místicas nem irracionais. Ao<br />

contrário, seu método não difere do dos computers: são quadros de<br />

relações<br />

A magia é um sistema completo e não menos coerente consigo<br />

mesmo que a ciência. A distinção entre ambas reside “na natureza dos<br />

fenômenos a que uma e <strong>ou</strong>tra se aplicam”. Por sua vez, esta diferença é<br />

resultado de <strong>ou</strong>tra: “as condições objetivas em que aparecem o<br />

conhecimento mágico e o científico”. Este último explica que a ciência<br />

obtenha melhores resultados que a magia. Se esta observação é exata (e<br />

creio que é) a diferença entre magia e ciência seria, em primeiro lugar, a<br />

precisão, a exatidão e a finura, não de nossos sentidos nem de nossa<br />

razão, mas de nossos instrumentos, e em segundo lugar, as finalidades<br />

distintas da magia e da ciência. <strong>No</strong> que diz respeito ao primeiro item, já<br />

se verá que não é tão grande como se acredita a inferioridade técnica e<br />

operatória do pensamento selvagem e que, suas conquistas não foram<br />

menos importantes que as da ciência. A segunda observação nos coloca<br />

diante de um problema de <strong>ou</strong>tra índole: a orientação contraditória das<br />

sociedades. Mais adiante tratarei deste tema capital; aqui direi somente<br />

que a magia coloca problemas que a ciência ignora <strong>ou</strong> que, por<br />

enquanto, prefere não tocar. Neste sentido pode parecer impaciente, e o<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 49


é, mas não o serão também, e com tão escassas esperanças de êxito como<br />

ela, as religiões e as filosofias das sociedades históricas?<br />

Magia e ciência procedem por operações mentais análogas. Em<br />

diversos capítulos brilhantes e árduos <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> analisa o sistema do<br />

totemismo – cuja existência autônoma lhe parece um erro de perspectiva<br />

de seus predecessores – para pôr em relevo as características essenciais<br />

desta “lógica concreta das qualidades sensíveis”. Em uma forma que não<br />

é essencialmente distinta da nossa o primitivo estabelece uma relação<br />

entre o sensível e o inteligível. O primeiro nos remete à categoria de<br />

significante e o segundo à de significado: as qualidades são signos que se<br />

integram em sistemas significativos por meio de relações de oposição e<br />

semelhança. Longe de estar submergido em um mundo obscuro de forças<br />

irracionais, o primitivo vive em um universo de signos e mensagens.<br />

Desse ponto de vista está mais próximo da cibernética que da teologia<br />

medieval. Não obstante, há algo que nos separa deste mundo: a<br />

afetividade. O selvagem se sente parte da natureza e afirma sua<br />

fraternidade com as espécies animais. Em troca, após nos termos<br />

acreditado filhos de deuses quiméricos, afirmamos a singularidade e a<br />

exclusividade da espécie humana por ser a única que possui uma história<br />

e que o sabe. Mais sóbrios e mais sábios, os primitivos desconfiam da<br />

história porque vêem nela o princípio da separação, o começo do exílio<br />

do homem errante no cosmos.<br />

O pensamento selvagem parte da observação minuciosa das coisas<br />

e classifica todas as qualidades que lhe parecem pertinentes; em seguida,<br />

integra essas “categorias concretas” em um sistema de relações. O modo<br />

de integração, já se sabe, é a oposição binária. O processo pode reduzirse<br />

a essas etapas: observar, distinguir e relacionar por pares. Estes<br />

grupos de pares formam uma clave que depois se pode aplicar a <strong>ou</strong>tros<br />

grupos de fenômenos. O princípio não é distinto do que inspira a<br />

operação das máquinas pensantes da ciência contemporânea. Por<br />

exemplo, o sistema de classificação totêmico é uma clave que pode servir<br />

para tornar inteligível o sistema de proibições alimentícias das castas.<br />

Como se sabe, o regime de castas se apresent<strong>ou</strong> sempre como uma<br />

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instituição radicalmente distinta do totemismo; <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> coloca em<br />

operação o sistema de transformações e mostra a conexão formal entre<br />

um e <strong>ou</strong>tro regime, embora o primeiro seja característico da Índia e o<br />

<strong>ou</strong>tro da Austrália. Esta conexão, mais uma vez, não é histórica: o<br />

chamado totemismo e as castas são operações de uma estrutura mental<br />

coletiva e inconsciente que procede por um método combinatório de<br />

oposições e semelhanças. Castas e totemismo são expressões de um<br />

modus operandi universal, embora as primeiras sejam parte de uma<br />

sociedade histórica extraordinariamente complexa como é a hindu e o<br />

segundo seja primitivo. O eixo desta lógica é a relação entre o sensível e<br />

o inteligível, o particular e o universal, o concreto e o abstrato. Os<br />

primitivos não “participam”, como acreditava Lévy-Bruhl; os primitivos<br />

classificam e relacionam. Seu pensamento é analógico, traço que os une<br />

não só aos poetas e artistas das sociedades históricas como também à<br />

grande tradição dos herméticos da Antiguidade e da Idade Média – <strong>ou</strong><br />

seja: aos precursores da ciência moderna. A analogia é sistemática e se<br />

apresenta “sob um duplo aspecto: sua corência e sua capacidade de<br />

extensão, praticamente ilimitada”. Pela primeira, resiste à crítica do<br />

grupo; pela segunda, o sistema pode englobar todos os fenômenos. É<br />

uma lógica concreta porque para ela o sensível é significativo; é uma<br />

lógica simbólica porque as categorias sensíveis estão em relação de<br />

oposição <strong>ou</strong> de isomorfismo com <strong>ou</strong>tras categorias e assim podem<br />

construir um sistema de equivalências formais entre os signos.<br />

Sem negar sua exatidão, parece-me que divisão entre sociedades<br />

que escolheram definir-se pela história e sociedades que preferiram fazêlo<br />

pelos sistemas de classificação, esquece um grupo intermediário. A<br />

idéia de um tempo cíclico não é exclusiva dos primitivos pois surge em<br />

muitas civilizações que chamamos históricas. Inclusive poderia dizer-se<br />

que só o Ocidente moderno se identific<strong>ou</strong> plena e freneticamente com a<br />

história, com evidente ignorância e desdém das idéias que as <strong>ou</strong>tras<br />

civilizações se fizeram de si mesmas e da espécie humana. A visão do<br />

tempo cíclico engloba o acontecer histórico como uma estrofe<br />

subordinada do poema circular que é o cosmos. É um compromisso entre<br />

o sistema atemporal dos primitivos e a concepção de uma história<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 51


sucessiva e irrepetível. A China combin<strong>ou</strong> sempre o sistema atemporal, o<br />

tempo cíclico e a historicidade. O modelo era um passado arquetípieo, o<br />

tempo místico dos quatro imperadores; a realidade histórica era a<br />

anedota de cada período, com seus sábios, seus soberanos, suas guerras,<br />

seus poetas, seus santos e suas cortesãs Entre esses dois pólos, a extrema<br />

imobilidade e a extrema mobilidade, a mediação era o movimento<br />

circular da dualidade: yin e yang. Um pensamento emblemático, como o<br />

chama Marcel Granet, que acentua a realidade das forças impessoais ao<br />

particularizá-las e dissolve a da história em mil anedotas coloridas e<br />

transitórias. Na verdade, a China não conheceu a história, mas só os<br />

anais. É uma civilização rica em narrativas históricas, mas os seus<br />

historiadores não formularam nunca o que se chama uma filosofia da<br />

história. Não a necessitavam, pois tinham uma filosofia da natureza. A<br />

história chinesa é uma ilustração das leis cósmicas e portanto carece de<br />

exemplaridade por si mesma. O modelo era atemporal: o princípio do<br />

princípio. A civilização centreo-americana neg<strong>ou</strong> mais totalmente a<br />

história. Do atiplano do México às terras tropicais da América Central<br />

durante mais de dois mil anos, se sucederam várias culturas e impérios e<br />

nenhum deles teve consciência histórica. A América Central não teve<br />

história mas mitos e, sobretudo, ritos. A queda de Tula, a penetração<br />

tolteca em Yucatán, o desaparecimento das grandes teocracias e as<br />

guerras e peregrinações dos astecas foram acontecimentos<br />

transformados em ritos e vividos como ritos. Não se entenderá a<br />

conquista do México pelos espanhóis se não se a contempla como a<br />

viram e viveram os astecas: como um grandioso rito final.<br />

A atitude da Índia diante da história é ainda mais assombrosa.<br />

Presumo que foi uma resposta ao fato que determin<strong>ou</strong> a vida dos<br />

homens e das instituições no sub continente desde há mais de cinco mil<br />

anos: a necessidade de coexistir com <strong>ou</strong>tros grupos humanos distintos<br />

em um espaço não franqueável e que, embora pareça imenso, era e é<br />

fatalmente limitado. A Índia é uma gigantesca caldeira e aquele que cai<br />

dentro dela não sai nunca. Tenha sido esta a causa <strong>ou</strong> seja <strong>ou</strong>tra a razão<br />

da aversão pela história, o certo é que nenhuma <strong>ou</strong>tra civilização sofreu<br />

mais suas intrusões e nenhuma o neg<strong>ou</strong> com tal obstinação. Desde o<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 52


princípio a Índia se propôs abolir a história pela crítica do tempo, e a<br />

pluralidade de sociedades e comunidades históricas pelo regime de<br />

castas. A infinita mobilidade da história real se transforma em uma<br />

fantasmagoria cintilante e vertiginosa na qual os homens e os deuses<br />

giram até fundir-se em uma espécie de nebulosa atemporal; o mundo<br />

matizado do acontecer desemboca <strong>ou</strong>, dizendo melhor, regressa a uma<br />

região neutra e vazia, na qual o ser e o nada se reabsorvem. Budismo e<br />

brahamanismo negam a história. Para os dois a mudança, longe de ser<br />

uma manifestação positiva da energia, e o reino ilusório da<br />

impermanência. Diante da heterogeneidade dos grupos étnicos – cada<br />

um com uma língua, uma tradição, um sistema de parentesco e um culto<br />

particulares – a civilização indiana adota uma solução contrária: não a<br />

dissolução mas o reconhecimento de cada particularidade e sua<br />

integração em um sistema mais amplo. A crítica do tempo e o regime de<br />

castas são os dois pólos complementares e antagônicos do sistema<br />

indiano. Por meio de ambos a Índia se propõe a abolição da história.<br />

O modelo do regime de castas não é histórico nem está fundado<br />

unicamente na idéia da supremacia de um grupo sobre <strong>ou</strong>tro, embora<br />

esta tenha sido uma de suas origens e a mais importante de suas<br />

conseqüências. Seu modelo é a natureza: a diversidade das espécies<br />

animais e vegetais e sua coexistência. Ao ver uma manada de elefantes<br />

selvagens – o macho, as fêmeas e suas crias – em um desses wild life<br />

sanctuaries que abundam neste país, disse-me o guia: “Os animais<br />

vegetarianos como o elefante são polígamos e os não-vegetarianos” (por<br />

nada nesse mundo teria dito: carnívoros) “como o tigre, são<br />

monógamos”. Esta crença na conexão entre o regime alimentar e o<br />

sistema de parentesco dos animais lança mais luz sobre a teoria das<br />

castas do que a leitura de um tratado. Tem razão <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: a casta<br />

não é um homólogo do totemismo, mas poderia dizer-se que é uma<br />

mediação entre este último e a história. É uma maneira de integrar a<br />

vida fluida em uma estrutura não temporal... A unidade mínima do<br />

sistema social da Índia não é, como nas sociedades modernas, o<br />

indivíduo, mas o grupo. Esta característica indica <strong>ou</strong>tra vez que seu<br />

modelo não é a sociedade histórica, mas a sociedade natural, com as<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 53


suas ordens, espécies, famílias e raças. Os indivíduos são prisioneiros de<br />

sua casta; prisioneiros e usufrutuários. Vida fetal, pois nada se parece<br />

mais com a casta do que um ventre maternal. Talvez isto explique o<br />

narcisismo hindu, * o amor de sua arte pelas curvas e de sua literatura<br />

pelos labirintos, a feminilidade de seus deuses e a masculinidade de suas<br />

deusas, sua concepção do templo como uma matriz e o que chamaria<br />

Freud a perversidade infantil polimórfica dos jogos eróticos de suas<br />

divindades e ainda de sua música. Pergunto-me se a noção psicológica<br />

conhecida como “complexo de Édipo” é inteiramente aplicável à Índia;<br />

não é o desejo de regressar à mãe mas a impossibilidade de sair dela o<br />

que, a meu ver, caracteriz<strong>ou</strong> o hindu. Foi sempre assim <strong>ou</strong> esta situação<br />

e o resultado da agressão exterior que obrig<strong>ou</strong> a civilização indiana a<br />

dobrar-se sobre si mesma? Por desdém <strong>ou</strong> por medo, abstraído <strong>ou</strong><br />

contraído, o hindu tem sido insensível, à sedução dos países estranhos:<br />

não busc<strong>ou</strong> o desconhecido lá fora mas em si mesmo. Entre certas<br />

castas, a proibição de viajar por mar era explícita e terminante. Não<br />

obstante, no passado os hindus foram grandes marítimos e os<br />

monumentos mais belos do período Pallava – um dos grandes presentes<br />

da arte indiana à escultura mundial – encontram-se precisamente em um<br />

porto, Mallapuram, que hoje é uma aldeia de pescadores.<br />

O indivíduo não pode sair de sua casta mas as castas podem<br />

mudar de posição, ascender <strong>ou</strong> descer. 12 A mobilidade social se realiza<br />

por um canal duplo. Um, individual e ao alcance de todos, é a renúncia<br />

ao mundo, a vida vagabunda de um monge budista e do sanayasi hindu<br />

<strong>ou</strong>tro, coletivo, é o lento e imperceptível movimento das castas, em torno<br />

e em direção a esse centro vazio que e o coração do hinduísmo: a vida<br />

contemplativa. Converter a sociedade histórica em urna sociedade<br />

natural e a natureza em um jogo filosófico, em uma meditação do uno<br />

sobre a irrealidade da pluralidade, é uma tentativa grandiosa – talvez o<br />

sonho mais ambicioso e coerente que o homem tenha sonhado. Mas a<br />

história, como se se tratasse de uma vingança, encarniç<strong>ou</strong>-se contra a<br />

* O autor usa, com freqüência, hindu, ao invés de indiano, embora o último seja o gentílico da Índia.<br />

Mantém-se, contudo, o original. (N. do T.)<br />

12 J. H. HUTTON. Caste in India, Londres, 1963.<br />

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Índia. Várias vezes foi invadida por povos que militavam sob a bandeira<br />

do movimento e da transformação: primeiro os persas, os gregos, os<br />

citas, os kuchanes e os hunos brancos; mais tarde, os muçulmanos com o<br />

seu Deus único e sua fraternidade de crentes; e por fim os europeus com<br />

o seu progresso menos universal e sectário que a religião do Profeta.<br />

Erosão da abstração intemporal pela mudança, queda do ser imóvel na<br />

corrente reputada ilusória do tempo. Na esfera social as invasões não<br />

modificaram o sistema de castas, mas o tornaram mais rígido. Para<br />

defender-se melhor a civilização indiana recorreu à contração. Dois<br />

universalismos – distintos mas igualmente exclusivos: o Islã e o<br />

Cristianismo protestante – rodearam e desnaturalizaram um<br />

particularismo universal. A experiência indiana, ademais, teria<br />

fracassado mesmo sem as invasões: a história em sua forma mais crua,<br />

isto é, a demografia, degener<strong>ou</strong> o sistema de coexistência em um dos<br />

regimes mais injustos e inúteis da era moderna.<br />

Este fracasso me faz refletir sobre a sorte de <strong>ou</strong>tra experiência,<br />

diametralmente oposta à indiana, mas que trata de resolver o mesmo<br />

problema. Refiro-me aos Esta dos Unidos. Esse país foi fundado por um<br />

universalismo exclusivista: o puritanismo e sua conseqüência políticoideológica,<br />

a democracia anglo-saxônica. Uma vez purificado o território<br />

de elementos estranhos – pelo extermínio e pela segregação da povoação<br />

indígena -, os Estados Unidos se propuseram criar uma sociedade na<br />

qual as particularidades nacionais européias, com exclusão das <strong>ou</strong>tras,<br />

se fundissem em um melting-pot. O todo seria animado pela história em<br />

sua expressão mais direta e agressiva: o progresso. Ou seja, ao contrário<br />

da Índia, o projeto anglo-americano consiste em uma desvalorização dos<br />

particularismos sociais e raciais (europeu) e em uma supervalorização<br />

da mudança. Mas os particularismos não-europeus, o negro<br />

especialmente, cresceram de tal modo (fora do melting-pot e dentro da<br />

sociedade) que hoje tornam impossível toda tardia tentativa de fusão.<br />

Portanto, o melting-pot deix<strong>ou</strong> de ser o modelo histórico dos Estados<br />

Unidos e esse país está condenado à cisão <strong>ou</strong> à coexistência. Por sua vez<br />

a valorização excessiva do progresso engendr<strong>ou</strong> o seu descrédito diante<br />

de um grupo numeroso, composto sobretudo por jovens e adolescentes.<br />

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Este último fato é decisivo. A revolta contra a abundância – em oposição<br />

simétrica à dos países subdesenvolvidos, que é uma revolta contra a<br />

pobreza – é uma rebelião contra a idéia de progresso. Não é acidental a<br />

inclinação da juventude anglo-americana pelas drogas. O país da ação e<br />

bebidas fortes descobre de repente a sedução da contemplação e da<br />

imobilidade. O bêbado não é contemplativo nem passivo, mas discursivo<br />

e agressivo; o que ingere drogas escolhe a imoralidade e a introspecção.<br />

A bebedeira culmina no grito; a alucinação no silêncio. As drogas são<br />

uma crítica da conversação, da ação e da mudança, dos grandes valores<br />

do Ocidente e de seus herdeiros anglo-americanos. É prodigioso que a<br />

crise dos fundamentos da sociedade anglo-americana coincida com a sua<br />

máxima expressão imperial. É um gigante que caminha cada vez mais<br />

depressa sobre um fio cada vez mais delgado. 13<br />

A pluralidade de sociedades e civilizações provoca perplexidade.<br />

Diante dela há duas atitudes contraditórias: o relativismo (esta<br />

sociedade vale tanto quanto aquela) <strong>ou</strong> o exclusivismo (só há uma<br />

sociedade valiosa – geralmente a nossa). A primeira logo nos paralisa<br />

intelectual e moralmente: se o relativismo nos ajuda a compreender os<br />

<strong>ou</strong>tros, também nos impede de os valorizarmos e nos proíbe de<br />

transformá-los – a eles e à nossa própria sociedade. A segunda atitude<br />

não é menos falsa: como julgar os <strong>ou</strong>tros e onde está o critério universal<br />

13 Já escrito este livro, cheg<strong>ou</strong> às minhas mãos o excelente estudo que dedic<strong>ou</strong> às castas da índia o Senhor<br />

L<strong>ou</strong>is Dumont (Homo hierarchicus, Paris, 1966). o antropólogo francês rechaça a explicação<br />

historicista que aponto mas em compensação coincide comigo, até certo ponto, ao ver como uma espécie<br />

de oposição simétrica entre o sistema social hindu e o do Ocidente moderno: no primeiro, o elemento – se<br />

é que se pode falar de elemento – não é o indivíduo mas as castas e a sociedade concebida como relação, é<br />

hierárquica; no segundo, o elemento é o indivíduo e a sociedade é igualitária. Dediquei um longo<br />

comentário às idéias do Senhor Dumont em Corriente alterna (1967). <strong>No</strong> mesmo livro trato com maior<br />

amplitude o tema da oposição entre comunicação e meditação, bebedeira e drogas. Direi aqui apenas que<br />

as duas imagens mais significativas de nossa tradição são o Banquete platônico e a última Ceia de Cristo.<br />

Ambos são símbolos da comu nicação e ainda da comunhão; nas duas, o vinho ocupa um lugar central. O<br />

Oriente, pelo contrário, exalt<strong>ou</strong> sobretudo o ermitão: o recluso Gautama, o iogue à sombra do banianes<br />

<strong>ou</strong> na solidão de uma gruta. Pois bem, o alcoolismo é um exagero da comunicação; a ingestão de drogas,<br />

sua negação. O primeiro se insere na tradição do Banquete (o diálogo filosófico) e da comunhão (o<br />

mistério da eucaristia); as últimas, na tradição da contemplação solitária. <strong>No</strong>s países do Ocidente, as<br />

autoridades se preocupavam até p<strong>ou</strong>co tempo com os perigos sociais do alcoolismo; hoje começam a se<br />

alarmar com o uso, cada vez mais difundido, das substâncias alucinógenas. <strong>No</strong> primeiro caso, se trata de<br />

um abuso; no das drogas, de uma dissidência. Não é este um sintoma de uma mudança de valores no<br />

Ocidente, especialmente na nação mais adiantada e próspera: os Estados Unidos?<br />

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e eterno que poderia nos autorizar a decretar que esta sociedade é boa e<br />

aquela é má? Descendente de Montaigne e R<strong>ou</strong>sseau, de Sahagún e de<br />

Las Casas, a solução de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> é a boa: respeitar os <strong>ou</strong>tros e<br />

transformar os seus, compreender o estranho e criticar ó próprio. Esta<br />

crítica culmina na idéia central que inspira nossa sociedade: o progresso.<br />

A etnografia nasceu quase ao mesmo tempo que a idéia de historia<br />

concebida como progresso ininterrompido; não é estranho que seja ao<br />

mesmo tempo a conseqüência do progresso e a crítica do progresso. É<br />

claro, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> não o nega: situa em seu contexto histórico o mundo<br />

do Ocidente moderno e assinala que não é uma lei histórica universal<br />

nem um critério de valor aplicável a todas as sociedades.<br />

Em geral o progresso se mede pelo domínio sobre a natureza, isto<br />

é, pela quantidade de energia de que dispomos. Se a ciência e a<br />

tecnologia fossem o critério decisivo, uma civilização como a<br />

mesoamericana, que não ultrapass<strong>ou</strong> o Neolítico no que toca aos<br />

utensílios, não mereceria sequer o nome de civilização. Não obstante, os<br />

mesoamericanos não só nos deixaram uma arte, uma poesia e uma<br />

cosmologia complexas e refinadas como realizaram proezas notáveis no<br />

domínio da técnica, sobretudo na agricultura. <strong>No</strong> da ciência<br />

descobriram o conceito do zero e elaboraram um calendário mais<br />

perfeito, exato e racional que o dos europeus. Se da técnica passamos à<br />

moral, a comparação seria ainda mais desvantajosa para nós: somos<br />

mais sensíveis, mais honrados <strong>ou</strong> mais inteligentes que os selvagens?<br />

<strong>No</strong>ssas artes são melhores que as dos egípcios <strong>ou</strong> dos chineses e nossos<br />

filósofos são superiores a Platão <strong>ou</strong> a Nagarjuna? Vivemos mais anos<br />

que um primitivo mas nossas guerras causam mais vítimas que as pestes<br />

medievais. Embora a mortalidade infantil tenha diminuído, aumenta dia<br />

a dia o número de indigentes – não nos países industriais mas nos que<br />

chamamos por eufemismo subdesenvolvidos e que constituem a terça<br />

parte da humanidade. Dir-se-á que tudo isto são lugares-comuns. São.<br />

Também a idéia de progresso se torn<strong>ou</strong> um lugar-comum.<br />

O melhor e o pior que se pode dizer do progresso é que<br />

transform<strong>ou</strong> o mundo. A frase se pode inverter: o melhor e o pior que se<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 57


pode dizer das sociedades primitivas é que quase não mudaram o<br />

mundo. Ambas as variantes necessitam de uma emenda: nem nós o<br />

modificamos tanto quanto acreditamos, nem os primitivos o<br />

modificaram tão p<strong>ou</strong>co. As modificações foram internas e externas. <strong>No</strong><br />

interior, a aceleração técnica produziu transtornos, revoluções e<br />

guerras; hoje ameaça a integridade psíquica e biológica da população.<br />

<strong>No</strong> exterior, a sociedade progressista destruiu inumeráveis sociedades e<br />

escraviz<strong>ou</strong>, humilh<strong>ou</strong> e mutil<strong>ou</strong> as sobreviventes. Certo, as mudanças<br />

que introduziu são imensas, muitas vezes benéficas e sobretudo<br />

inegáveis. Também são inegáveis os seus desequilíbrios e os seus crimes.<br />

Dizê-lo não implica nostalgia alguma pelo passado: toda sociedade é<br />

contraditória e não há nenhuma que escape à crítica. Se a sociedade<br />

progressista não é melhor que as <strong>ou</strong>tras sociedades, tamp<strong>ou</strong>co tem o<br />

monopólio do mal. Os astecas, os assírios e os grandes impérios nômades<br />

da Ásia Central não foram menos cruéis, orgulhosos e brutais do que<br />

nós. <strong>No</strong> museu dos monstros nosso lugar, destacado, não é o primeiro.<br />

O progresso é nosso destino histórico; nada mais natural que nossa<br />

crítica seja uma crítica do progresso. Estamos condenados a criticar o<br />

progresso do mesmo modo que Platão e Aristófanes deviam criticar a<br />

democracia ateniense, o budismo o ser imóvel do brahamanismo e Laotsé<br />

a virtude e a sabedoria confucianas. A crítica do progresso se chama<br />

etnologia. Os estudos etnográficos nasceram no momento da expansão<br />

do Ocidente e assumiram imediatamente uma forma polêmica: defesa da<br />

humanidade dos indígenas, obstinadamente negada por seus<br />

“descobridores” e espoliadores, e crítica dos processos “civilizadores”<br />

dos europeus. Não é um acaso que os espanhóis e portugueses, aos quais<br />

corresponde a duvidosa glória de ter iniciado a conquista das novas<br />

terras, tenham direito a uma glória mais certa: ser os fundadores da<br />

etnografia. As descrições que os portugueses fizeram do sistema de<br />

castas em Travancore e <strong>ou</strong>tras regiões do sul da Índia, as dos jesuítas<br />

das civilizações da China e do Japão, e os textos dos espanhóis sobre as<br />

instituições e costumes dos índios americanos, são os primeiros estudos<br />

de etnografia e antropologia do mundo moderno. Em muitos casos,<br />

como no de Sahagún, esse método foi tão rigoroso e objetivo como o dos<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 58


modernos antropólogos que hoje percorrem o mundo providos de<br />

magnetofones e <strong>ou</strong>tros aparelhos.<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> diz que a etnografia é a expressão dos “remorsos” do<br />

Ocidente. Não sei se observ<strong>ou</strong> a origem cristã deste sentimento. A crítica<br />

dos excessos do progresso é uma crítica do poder e dos poderosos. O<br />

cristianismo foi o primeiro que se atreveu a criticar o poder e exaltar os<br />

humildes. Nietzsche diz que o cristianismo, justamente por ser uma<br />

moral do ressentimento, afin<strong>ou</strong> nossa psicologia e invent<strong>ou</strong> o exame de<br />

consciência, essa operação que serve ao homem para julgar-se e<br />

condenar-se. A introspecção é uma invenção cristã e termina sempre<br />

com um juízo moral, não sobre os <strong>ou</strong>tros mas sobre si mesmo.O exame<br />

de consciência consiste em pôr-se no lugar dos <strong>ou</strong>tros, ver-se na situação<br />

do humilhado <strong>ou</strong> do vencido: o <strong>ou</strong>tro. É uma tentativa para nos<br />

reconhecermos no <strong>ou</strong>tro e, assim, recuperarmos a nós mesmos. O<br />

cristianismo descobriu o <strong>ou</strong>tro e ainda mais: descobriu que o eu só vive<br />

em função do tu. A dialética cristã do exame de consciência é repetida<br />

pela etnografia não na esfera individual, mas na social; reconhecer no<br />

<strong>ou</strong>tro um ser humano e reconhecemos a nós mesmos não na semelhança<br />

mas na diferença. Ademais, sem o cristianismo a idéia retilínea do tempo<br />

(a história) não haveria nascido. Devemos a essa religião do progresso<br />

seus excessos e seus remorsos: a técnica, o imperialismo e a etnografia.<br />

Há um aspecto central da dominação hispano-portuguesa que me<br />

interessa destacar. A política ibérica no <strong><strong>No</strong>vo</strong> Mundo reproduz ponto<br />

por ponto a dos muçulmanos na Ásia Menor, Índia, no <strong>No</strong>rte da África<br />

e na própria Espanha: a conversão, seja por bem, seja a sangue e fogo.<br />

Embora pareça estranho, a evangelização da América foi uma empresa<br />

de estilo e inspiração maometanos. O furor destruidor dos espanhóis tem<br />

a mesma origem teológica que o dos muçulmanos. Ao contemplar no<br />

norte da Índia as estátuas desfiguradas pelo Islã, recordei<br />

imediatamente as queimas de códices no México. A paixão construtora<br />

de uns e <strong>ou</strong>tros não foi menos intensa que a sua raiva destruidora e<br />

obedeceu à mesma razão religiosa. Os monumentos deixados pelos<br />

muçulmanos na Índia não se parecem com os que foram levantados na<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 59


América pelos espanhóis e portugueses, mas a sua significação é<br />

análoga: primeiro o templo-fortaleza (igreja <strong>ou</strong> mesquita) e depois as<br />

grandes obras civis e religiosas. A arquitetura obedece ao ritmo<br />

histórico: ocupação, conversão e organização. Não se esqueça, que as<br />

invasões dos muçulmanos no subcontinente indiano e a conquista da<br />

América foram empresas que libertaram uma parte da povoação<br />

indígena, oprimida pela <strong>ou</strong>tra: párias da Índia e, na América, povos<br />

submetidos ao Inca e aos cruéis astecas. Conquista e liberação são parte<br />

de um mesmo processo de conversão. Digo conversão porque os<br />

muçulmanos e seus discípulos portugueses e espanhóis não se<br />

propuseram recuperar o <strong>ou</strong>tro respeitando a sua <strong>ou</strong>tridade, como o<br />

antropólogo: queriam convertê-lo, modificá-lo. A humanização consistia<br />

em transformar o indígena infiel em irmão na fé. Os súditos de Babur e<br />

os de seu contemporâneo Carlos V, qualquer que fosse a sua situação<br />

social, pertenciam a uma mesma comunidade se a sua fé era a dos seus<br />

senhores. Mesquita e igreja eram, sobre a terra, a prefiguração do mais<br />

além: o lugar em que se anulam as diferenças de raça e hierarquia, o<br />

lugar em que se suprime a alteridade. Os muçulmanos e os ibéricos<br />

enfrentaram o problema da <strong>ou</strong>tridade * por meio da conversão; os<br />

europeus cristãos, pelo extermínio <strong>ou</strong> pela exclusão. Exemplos: a<br />

aniquilação dos aborígenes nos Estados Unidos e na Austrália. Na Índia,<br />

onde era impossível fisicamente a eliminação dos nativos, tamp<strong>ou</strong>co<br />

h<strong>ou</strong>ve evangelização e a população cristã não chega hoje a dez milhões,<br />

enquanto que são mais de cinqüenta os muçulmanos. 14 Comparando-se<br />

esses procedimentos com os dos astecas adverte-se uma diferença: nem a<br />

conversão à maneira muçulmana e hispano-portuguesa, nem exclusão <strong>ou</strong><br />

extermínio à maneira moderna, mas divinização. Sangüinários e<br />

filosóficos ao mesmo tempo, os astecas resolveram o problema da<br />

<strong>ou</strong>tridade pelo sacrifício dos prisioneiros de guerra. A destruição física<br />

*<br />

O autor utiliza-se, alternativamente, do neologismo otredad e do termo consagrado alteridad. Mantevese<br />

a distinção. (N. do T.).<br />

14 A matança dos índios na Argentina, Uruguai e Chile foi conseqüência de uma deliberada e irracional<br />

imitação dos procedimentos anglo-americanos: identific<strong>ou</strong>-se o progresso com o extermínio da população<br />

indígena e com a imigração européia. O teórico principal desta d<strong>ou</strong>trina foi Domingo Faustino<br />

Sarmiento, um dos homens de bem oficiais da América Latina. O lema “governar é povoar” despovo<strong>ou</strong><br />

esses três países.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 60


era também uma transfiguração: a vítima alcançava a imortalidade<br />

solar. , Conversão, exclusão, extermínio, ingestão ...<br />

Para um chinês <strong>ou</strong> para um aborígene australiano a função crítica<br />

não oferecia a dificuldade teórica que apresenta para nós: o juízo<br />

brotava da comparação entre o presente e o modelo atemporal, fosse este<br />

o passado místico do Imperador Amarelo <strong>ou</strong> a série de antepassados<br />

animais divinizados. O mesmo pode dizer-se de todas as <strong>ou</strong>tras<br />

civilizações: a idade de <strong>ou</strong>ro era um termo de referência e não importava<br />

que estivesse situada antes, depois <strong>ou</strong> fora da história. Era um modelo<br />

imutável. Em ma sociedade que sem cessar se transforma, a idade de<br />

<strong>ou</strong>ro, o sistema ideal de referência, também muda. Por tal razão, nossa<br />

crítica é também pensamento utópico, busca de uma idade de <strong>ou</strong>ro que<br />

sem cessar se transforma. <strong>No</strong>ssa sociedade ideal muda continuamente e<br />

não tem um lugar fixo nem no tempo nem no espaço; filha da crítica, se<br />

cria, se destrói e se recria como o próprio progresso. Um permanente<br />

voltar a começar: não um modelo mas um processo. Talvez por isto as<br />

utopias modernas tendem a apresentar-se como um regresso àquilo que<br />

não muda: a natureza. A sedução do marxismo consiste em ser uma<br />

filosofia da mudança que nos promete uma futura idade de <strong>ou</strong>ro que já o<br />

passado remoto, “o comunismo primitivo”,, ,continha em gérmen.<br />

Combina assim o prestígio da modernidade com o do arcaísmo.<br />

Condenadas à mudança, nossas utopias oscilam entre os paraísos<br />

anteriores à história e as metrópoles de ferro e vidro da técnica, entre a<br />

vida pré-natal do feto e um éden de robôs. E de ambas maneiras os<br />

nossos paraísos são infernais: uns se resolvem' no tédio da natureza<br />

incestuosa e <strong>ou</strong>tros no pesadelo das máquinas.<br />

Talvez a verdadeira idade de <strong>ou</strong>ro não esteja na natureza nem na<br />

história, mas entre elas: nesse instante em, que, os homens fundam o seu<br />

agrupamento com um pacto que, simultaneamente, os une entre si e une<br />

o grupo com o mundo natural. O pensamento de R<strong>ou</strong>sseau é uma fonte e<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> assinala que muitos dos descobrimentos da antropologia<br />

contemporânea confirmam suas intuições. <strong>No</strong> entanto a imagem que o<br />

filósofo genebrino se fazia da primeira idade não corresponde à<br />

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ealidade pré-histórica: os caçadores do Paleolítico deixaram uma arte<br />

extraordinária, mas aquela sociedade não é certamente um modelo ideal.<br />

Em compensação, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> acredita que o período Neolítico –<br />

precisamente antes da invenção da escritura, da metalurgia e do<br />

nascimento da civilização urbana com as suas massas envilecidas e seus<br />

monarcas e sacerdotes sangrentos – é o que mais se aproxima da nossa<br />

idéia de uma idade de <strong>ou</strong>ro. Os homens do Neolítico – segundo Gordon<br />

Childe: provavelmente as mulheres – inventaram as artes e ofícios que<br />

são o fundamento de toda vida civilizada: a cerâmica, os tecidos, a<br />

agricultura e a domesticação dos animais. Estas descobertas são<br />

decisivas e talvez sejam superiores às realizadas nos últimos seis mil<br />

anos de história. Confirma-se assim aquilo que apontei mais acima: o<br />

pensamento selvagem não resulta inferior ao nosso nem pela finura de<br />

seus métodos nem pela importância de suas descobertas. Outro ponto a<br />

favor do Neolítico: nenhuma de suas invenções é nociva. Não se pode<br />

dizer o mesmo das sociedades históricas. Sem pensar no ininterrupto<br />

progresso na arte de matar, já se refletiu sobre a função ambivalente da<br />

escritura? Sua invenção coincide com o aparecimento dos grandes<br />

impérios e com a construção de obras monumentais. Em uma passagem<br />

impressionante <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> demonstra que a escritura foi propriedade<br />

de uma minoria e que não serviu tanto para comunicar o saber como<br />

para dominar e escravizar os homens. Não foi a letra, mas imprensa que<br />

libert<strong>ou</strong> os homens. Liber<strong>ou</strong>-os da superstição da palavra escrita.<br />

Acrescentarei que, na realidade, não foi a imprensa a libertadora, mas a<br />

burguesia, que se serviu desta invenção para romper o monopólio do<br />

saber sagrado e divulgar um pensamento crítico. A idéia de Marshall<br />

McLuhan, que atribui à imprensa a transformação do Ocidente, é<br />

infantil: não são as técnicas, mas a conjugação de homens e<br />

instrumentos que transformam uma sociedade.<br />

Em <strong>ou</strong>tro ensaio ocupei-me da expressão escrita em relação com a<br />

verbal: a escritura desnaturaliza o diálogo entre os homens. 15 Embora o<br />

leitor possa concordar <strong>ou</strong> discordar, falta-lhe o direito de interrogar o<br />

15 Los signos en rotación, Buenos Aires, 1965, (Trad. bras.: Signos em Rotação, São Paulo,<br />

Perspectiva, 1972.)<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 62


autor e de ser escutado por este, Poesia, filosofia e política – as três<br />

atividades nas quais a fala desenvolve todos os seus poderes – sofrem<br />

uma espécie de mutilação. Se é verdade que graças à escritura dispomos<br />

de uma memória objetiva universal, também o é que ela acentu<strong>ou</strong> a<br />

passividade dos cidadãos. A escritura foi o saber sagrado de todas as<br />

burocracias e hoje mesmo é comunicação unilateral: estimula nossa<br />

capacidade receptiva e ao mesmo tempo neutraliza nossas reações,<br />

paralisa nossa crítica, Interpõe entre nós e o que escreve – seja um<br />

filósofo <strong>ou</strong> um déspota – uma distância, Contudo, não creio que os<br />

nossos meios de comunicação oral, nos quais depositam tantas<br />

esperanças McLuhan e <strong>ou</strong>tros, consigam reintroduzir o verdadeiro<br />

diálogo entre os homens. A despeito de terem devolvido à palavra o seu<br />

dinamismo verbal – algo que a poesia e a literatura contemporâneas não<br />

aproveitaram ainda de todo – rádio e televisão aumentam a distância<br />

entre o que fala e o que <strong>ou</strong>ve: convertem o primeiro em uma presença<br />

todo poderosa e o segundo em uma sombra, São, como a escritura,<br />

instrumentos de domínio. Se há um grão de verdade na visão do<br />

Neolítico como uma idade feliz, essa verdade consiste não na justiça de<br />

suas instituições, sobre as quais sabemos p<strong>ou</strong>quíssimo, mas no caráter<br />

pacífico de suas descobertas e, sobretudo, em que essas comunidades não<br />

conheceram <strong>ou</strong>tra forma de relação que a pessoal de homem a homem, O<br />

verdadeiro fundamento de toda democracia e socialismo autêntico é, <strong>ou</strong><br />

deveria ser, a conversação: os homens frente a frente, Sobre isto devemos<br />

a <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> páginas inesquecíveis, como naquelas em que descobre o<br />

bem fundado da adivinhação de R<strong>ou</strong>sseau: a origem da autoridade, nas<br />

sociedades mais simples, não é a coerção dos poderosos mas o mútuo<br />

consentimento, Impulsionado pelo seu entusiasmo, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> chega a<br />

dizer que a “idade de <strong>ou</strong>ro está em nós”, Frase maravilhosa, mas<br />

ambígua, Refere-se a um estado interior e pessoal <strong>ou</strong> à possibilidade de<br />

regressar com os novos meios técnicos a uma espécie de idade de <strong>ou</strong>ro da<br />

era industrial? Temo que, no segundo sentido, esta idéia seja utópica:<br />

nunca estivemos mais longe da comunicação entre pessoa e pessoa, A<br />

alienação, se é que ainda guarda sentido essa palavra manuseada, não é<br />

unicamente conseqüência dos sistemas sociais, sejam capitalistas <strong>ou</strong><br />

socialistas, mas da índole mesma da técnica: os novos meios de<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 63


comunicação acentuam, fortalecem a incomunicação. Deformam os<br />

interlocutores: magnificam a autoridade, a tornam inacessível – uma<br />

divindade que fala mas não escuta – e assim nos r<strong>ou</strong>bam o direito e o<br />

prazer da réplica, Suprimem o diálogo.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 64


5. AS PRÁTICAS E OS SÍMBOLOS.<br />

O SIM OU O NÃO E O MAIS OU MENOS. O INCONSCIENTE<br />

DO HOMEM E O DAS MAQUINAS. OS SIGNOS OUE SE<br />

DESTROEM: TRANSFIGURAÇÕES. TAXILA.<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> declar<strong>ou</strong> sempre que é um discípulo de Marx<br />

(discípulo, não repetidor). Materialista e determinista, pensa que as<br />

instituições e as idéias que a sociedade se faz de si mesma são o produto<br />

de uma estrutura inferior inconsciente. Tamp<strong>ou</strong>co é insensível ao<br />

programa histórico de Marx e, se não me equivoco, acredita que o<br />

socialismo é (<strong>ou</strong> pode ser?) a próxima etapa da história do Ocidente e<br />

talvez do mundo inteiro. Se concebe a sociedade como um sistema de<br />

comunicações, é natural que a propriedade privada lhe pareça um<br />

obstáculo à comunicação: “na linguagem”, diz Jakobson, “não há<br />

propriedade privada: tudo está socializado”... Dito isto, não vejo como<br />

se lhe poderia chamar de marxista sem forçar o termo. Por exemplo, não<br />

est<strong>ou</strong> certo de que compartilhe a teoria que vê na cultura um simples<br />

reflexo das relações materiais. Certo, diz aceitar sem dificuldade a<br />

primazia da estrutura econômica sobre as <strong>ou</strong>tras e em La pensée<br />

sauvage afirma que estas últimas são realmente superestruturas;<br />

acrescenta inclusive que os seus estudos poderiam chamar-se “teoria<br />

geral das superestruturas”. Não obstante, limita a validez do<br />

determinismo econômico às sociedades históricas; quanto às não<br />

históricas, assegura que os laços consangüíneos desempenham nelas a<br />

função decisiva do modo de produção econômica nas históricas. Apóia a<br />

sua afirmação em algumas opiniões de Engels em carta a Marx. Não<br />

pretendo pugnar em um ponto difícil e, de todos os modos, marginal,<br />

mas contes-so que a sua idéia das relações entre a práxis e o pensamento<br />

me parece muito distanciada da concepção marxista.<br />

Em La pensée sauvage distingue entre “práticas” e práxis; o<br />

estudo das primeiras, distintivas dos gêneros de vidas e formas de<br />

civilização, é o domínio da etnologia e o da segunda, da história. As<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 65


práticas seriam superestruturas. Entre a práxis e as “práticas” há um<br />

mediador: “o esquema conceituai, pelo qual uma matéria e uma forma se<br />

realizam como estruturas ao mesmo tempo empíricas e inteligíveis”. A<br />

meu modo de ver esta idéia elimina a noção de práxis <strong>ou</strong>, pelo menos, lhe<br />

dá um sentido distinto daquele do marxismo. A relação imediata e ativa<br />

do homem com as coisas e com os <strong>ou</strong>tros homens é indistinguível,<br />

segundo Marx, do pensamento: “as controvérsias sobre a realidade e a<br />

não realidade do pensamento, separado da prática, pertencem ao<br />

domínio da escolástica”. (Teses sobre Feuerbach). Práxis e<br />

pensamento não são entidades distintas e ambos são inseparáveis das<br />

leis objetivas da realidade social: o modo de produção. Marx se opõe ao<br />

antigo materialismo. diz Kostas Papaioann<strong>ou</strong>, porque este ignora a<br />

história. Para Marx a natureza é histórica, de modo que o seu<br />

materialismo é uma concepção histórica da matéria. O antigo<br />

materialismo “afirmava a prioridade da natureza exterior, mas uma<br />

natureza objetiva, independente do sujeito, não existe”. O mundo<br />

sensível não é um mundo de objetos: é o mundo da práxis, isto é, da<br />

matéria modelada e transformada pela atividade humana. A função da<br />

práxis é “modificar historicamente a natureza”.<br />

Se o marxismo é uma concepção histórica da natureza, também é<br />

uma concepção materialista da história: a práxis, “o processo vital<br />

real”, é o ser do homem, e sua consciência é simplesmente o reflexo dessa<br />

matéria que a práxis torn<strong>ou</strong> histórica. A consciência e o pensamento<br />

humano são produtos não da natureza mas da natureza histórica <strong>ou</strong><br />

seja, da sociedade e seu modo de produção. Nem a natureza nem o<br />

pensamento isolado definem o homem, mas sim a atividade prática, o<br />

trabalho: a história. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> diz, no fim de La pensée sauvage,<br />

que a práxis só pode conceber-se com a condição de que exista antes o<br />

pensamento, sob a “forma de uma estrutura objetiva do psiquismo e do<br />

cérebro”. O espírito é algo dado e constituído desde o princípio. É uma<br />

realidade insensível à ação da história e dos modos de produção porque é<br />

um objeto físico-químico, um aparelho que combina as chamadas e<br />

respostas das células cerebrais diante dos estímulos exteriores. Na<br />

práxis o espírito repete a mesma operação que no momento de elaborar<br />

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as práticas: separa, combina e emite. O espírito transforma o sensível em<br />

signos. Na concepção de Marx advirto a primazia do histórico: modo de<br />

produção social; na de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, a do químico-biológico: modo de<br />

operação natural. Para Marx a consciência muda com a história; para<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> o espírito humano não muda: seu reino não é o da história,<br />

mas o da natureza.<br />

Dessa perspectiva pode entender-se melhor sua polêmica com<br />

Sartre e o equívoco que os une e separa. Para Sartre a oposição entre<br />

razão analítica e razão dialética é real porque é histórica; quero dizer:<br />

cada uma delas corresponde a uma história e a um modo de produção<br />

distinto <strong>ou</strong>, mais exatamente, a etapas distintas de uma mesma história.<br />

A razão dialética nega a razão analítica e assim a engloba e a<br />

transcende. Não é a razão em movimento, como pretende <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>,<br />

mas o movimento da razão. Esse movimento a transforma e a converte<br />

efetivamente em <strong>ou</strong>tra razão: aquilo que diz a razão analítica o entende<br />

a dialética enquanto que esta última fala em uma linguagem<br />

incompreensível para aquela. A razão dialética situa a analítica dentro<br />

do seu contexto histórico e, ao relativizá-la, integra-a em seu movimento.<br />

Em troca, a razão analítica é incompetente para julgar a dialética... O<br />

defeito da posição de Sartre é o de toda dialética logo que cessa de<br />

rep<strong>ou</strong>sar sobre um fundamento. É certo que a razão dialética pode<br />

compreender e julgar a analítica e que esta é incompetente para<br />

compreendê-la e julgá-la mas, a razão dialética se compreende e se pode<br />

julgar a si mesma? A razão dialética é uma ilustração do paradoxo do<br />

movimento: a terra se move em torno de um sol que parece imóvel e que,<br />

para os fins do movimento terrestre, efetivamente o está. Sendo assim,<br />

falta à dialética, desde Hegel, um sol: se a dialética é o movimento do<br />

espírito, há um ponto de referência graças ao qual o movimento é<br />

movimento. O fundamento da dialética é não-dialético pois de <strong>ou</strong>tro<br />

modo não haveria movimento, não haveria dialética. Marx nunca<br />

explic<strong>ou</strong> com clareza as relações entre o seu método e a dialética de<br />

Hegel, embora o tenha prometido em várias páginas. Portanto, nos falta<br />

o ponto de referência entre a dialética e a matéria. Engels quis remediar<br />

esta omissão, com as suas investigações sobre a dialética da natureza,<br />

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hoje inaceitáveis para a ciência, como já o demonstr<strong>ou</strong>, entre <strong>ou</strong>tros, o<br />

próprio Sartre. 16 A dialética materialista carece de fundamento e não<br />

possui um sistema de referência que permita compreendê-la e,<br />

literalmente, medi-la. A ciência contemporânea admite que o observador<br />

altera o fenômeno mas sabe que o altera e pode calcular essa alteração.<br />

Se não fosse assim, não haveria observação nem determinação do<br />

fenômeno. Em verdade, desapareceria a própria noção de fenômeno<br />

objetivo. Poderia replicar-se que o ponto de referência do marxismo é o<br />

salto dialético: graças à negação podemos compreender a afirmação.<br />

Seria uma operação “progressivo-regressiva”, para empregar o<br />

vocabulário de Sartre: a razão dialética compreende a analítica e assim<br />

a salva. Observo que a salva só para dissolvê-la, do mesmo modo que a<br />

negação ilumina a afirmação só para apagá-la melhor. Se a dialética<br />

pretende encontrar seu fundamento não antes mas depois do salto,<br />

tropeça com esta dificuldade: esse depois se transforma imediatamente<br />

em um antes. A dialética nos parecia um movimento e agora se converte<br />

em um frenesi imóvel. Em suma, a crítica de Sartre é uma arma de dois<br />

gumes: resolve a contradição entre matéria e dialética em benefício da<br />

segunda. O materialismo cessa de ser um materialismo e a dialética se<br />

converte em uma alma penada em busca de seu corpo, em busca de seu<br />

fundamento.<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> assinala que Sartre converte a história em um refúgio<br />

da transcendência e que, portanto, é culpável do delito de idealismo.<br />

Talvez esteja certo, mas com uma ressalva: seria uma transcendência<br />

que se destrói a si mesma porque cada vez que se transcende, se anula.<br />

Por sua vez Sartre está certo quando diz que a dialética transcende a<br />

razão analítica. O que ocorre é que, ao transcendê-la, ela própria se<br />

anula como razão. Para restaurar sua dignidade racional, a dialética<br />

deveria realizar uma operação incompatível com a sua natureza:<br />

comparecer diante do juízo da razão analítica. Algo impossível porque,<br />

como se viu, a razão analítica não compreende a linguagem da dialética:<br />

carece de dimensão histórica tal como a dialética carece de fundamento.<br />

16 Veja-se a nota de Maximilien Rubel ao posfácio de Marx à segunda edição alemã de O capital<br />

(Oeuvres de Karl Marx, primeiro volume, coleção de La Pléiade). Também o ensaio de Kostas<br />

Papaioann<strong>ou</strong>: “Le mythe de la dialectique” (Contrat social, número de set-<strong>ou</strong>t. 1963).<br />

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Ademais, a pergunta sobre o fundamento <strong>ou</strong> razão suficiente também<br />

alcança a razão de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: qual é a razão das operações físicoquímicas<br />

do cérebro? Esta interrogação repete em <strong>ou</strong>tro nível a pergunta<br />

do começo: qual é o significado de significar? Em um e <strong>ou</strong>tro extremo do<br />

sistema de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> surge o fantasma da filosofia. Pretendendo<br />

ainda voltar a isto, direi que o equívoco entre <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> e Sartre<br />

consiste em que ambos alteram a noção marxista de práxis: o primeiro<br />

em benefício de uma natureza exterior à história e o segundo no de uma<br />

dialética puramente histórica. Para <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> a história é uma<br />

categoria da razão; para Sartre a razão é uma categoria histórica.<br />

Sartre é um historicista puro e sua concepção recorda o racio-vitalismo<br />

de Ortega y Gasset, com a diferença de que não são as gerações mas as<br />

classes que encarnam o movimento histórico. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> é também um<br />

materialista puro e seu pensamento prolonga o materialismo do século<br />

XVIII, com a ,diferença de que para ele a matéria não é uma substância<br />

mas uma relação. Este traço o converte não em um pensador da primeira<br />

metade do nosso século, como Sartre, mas da segunda: a que agora<br />

começa.<br />

Mais pertinente que a crítica marxista é a do antropólogo inglês<br />

Edmund Leach. 17 Aqui descemos da escolástica à terra firme do senso<br />

comum. Leach começa por assinalar que a importância da obra de <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> reside em que se propõe a explicar “o conteúdo não-verbal da<br />

cultura como um sistema de comunicações; portanto, aplica à sociedade<br />

humana os princípios de uma teoria geral da comunicação”. Ou seja: a<br />

estrutura binária da fonologia e dos cérebros eletrônicos que compõe<br />

mensagens pela combinação de pulsações negativas e positivas. A<br />

distinção binária é um “instrumento analítico de primeira ordem mas<br />

apresenta certas desvantagens. Uma delas é que tende a subestimar<br />

arbitrariamente os problemas relativos aos valores”. Estes últimos<br />

podem ser abordados com maior probabilidade de êxito pelos analogical<br />

computers. Enquanto- que estes mecanismos respondem às perguntas em<br />

termos de mais e menos, as máquinas que usam o sistema binário<br />

respondem unicamente com um sim <strong>ou</strong> um não. Leach ilustra a sua<br />

17 Telsar and lhe aborígines or La pensée sauvage (1964).<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 69


observação com o sistema de classificação totêmica tal como foi definido<br />

por <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>. Segundo o antropólogo francês, os aborígines não<br />

escolhem esta <strong>ou</strong> aquela espécie animal como totem pela sua utilidade,<br />

mas por suas qualidades e peculiaridades, isto é, por serem mais<br />

facilmente definíveis – por sua aptidão para formar parelhas<br />

conceptuais. Os funcionalistas britânicos afirmam que as espécies se<br />

convertem em totem por sua utilidade por exemplo: por serem<br />

comestíveis. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> sustenta que são categorias de classificação: se<br />

convertem em totem por serem pensáveis e não por serem comestíveis.<br />

Embora a sua solução seja mais universal e simples que a primeira –<br />

sobretudo se se aceita que o totemismo não é uma instituição isolada<br />

mas um aspecto de um sistema geral de coordenação do universo e da<br />

sociedade – oferece um inconveniente. A teoria britânica é crua e<br />

ingênua: o animal é sagrado por sua função benéfica <strong>ou</strong> nociva; a de<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> nos mostra a razão formal das classificações totêmicas mas<br />

não toca em algo essencial: por que são sagradas, as espécies totêmicas?<br />

A mesma observação pode se aplicar ao tabu alimentício <strong>ou</strong> ao sexual.<br />

Não basta dizer que os europeus não comem carne de cachorro e os<br />

muçulmanos de porco; o primeiro tabu é implícito e o segundo é<br />

explícito. Esta diferença, segundo Leach, não pode ser explicada pelo<br />

método binário. Em suma, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> “nos mostra a lógica das<br />

categorias religiosas e ao mesmo tempo ignora precisamente aqueles<br />

aspectos do fenômeno que são especificamente religiosos”. Creio que<br />

Leach tem razão mas assinalo que a sua aguda crítica evoca, sem propôlo,<br />

um interlocutor que ele e <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> expulsaram do simpósio<br />

antropológico: a fenomenologia da religião.<br />

Leach não toca os fundamentos do método de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>:<br />

simplesmente propõe substituir em certos casos a analogia binária por<br />

<strong>ou</strong>tra mais refinada. Por minha par te, pergunto-me se é válido o<br />

princípio básico: é um modelo universal a teoria geral da comunicação?<br />

A primeira vista a resposta deve ser afirmativa, ao menos na esfera da<br />

matéria viva, tal como mostr<strong>ou</strong> a genética contemporânea. Não<br />

obstante, é legítimo presumir que, como ocorreu sempre na história da<br />

ciência, cedo <strong>ou</strong> tarde aparecerá uma diferença que torne inoperante o<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 70


modelo. Tenho <strong>ou</strong>tra dúvida: as máquinas pensam mas não sabem que<br />

pensam; no dia em que cheguem a sabê-lo, continuarão sendo máquinas?<br />

Dir-me-ão que todos os homens, pelo único fato de falar, pensam, e, não<br />

obstante, só muito p<strong>ou</strong>cos e em ocasiões contadas se dão conta de que<br />

realizam uma operação mental cada vez que pronunciam uma palavra.<br />

Replico que basta que um só homem se dê conta de que pensa para que<br />

tudo mude: o que distingue o pensamento de toda <strong>ou</strong>tra operação mental<br />

é a sua capacidade de saber-se pensamento. Mal escrevo esta frase<br />

advirto nela certa inconsistência; minha idéia pressupõe algo que não<br />

provei e que não é fácil provar: um eu, uma consciência. Se o<br />

pensamento é o que se dá conta de que pensa – e não poderia ser de<br />

<strong>ou</strong>tro modo – estamos diante de uma propriedade geral do pensamento;<br />

portanto, se as máquinas pensam, um dia saberão que pensam. A<br />

consciência é ilusória e consiste em uma simples operação. 18 Reflito e<br />

arrisco <strong>ou</strong>tro comentário: a razão das máquinas é inflexível, infalível e<br />

irrebatível enquanto a nossa está sujeita a fraquezas, extravios e<br />

delírios. Como dizia Zamiatine: o homem é um enfermo e sua<br />

enfermidade se chama fantasia: “cada volta de um êmbolo é um<br />

imaculado silogismo, mas quem já viu uma roldana revirar-se na cama<br />

18 A concepção de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> recorda, por um lado, Hume; por <strong>ou</strong>tro, Buda. A semelhança com o<br />

budismo é extraordinária: “In Budism there is not percipient apart from perception, no consci<strong>ou</strong>s subject<br />

behind consci<strong>ou</strong>sness... The term subject must be understood no mean not the selfsame permanent<br />

consci<strong>ou</strong>s subject but merely a transitory state of consci<strong>ou</strong>sness. The object of Abhidhamma is to show<br />

that there is not s<strong>ou</strong>l or ego apart from the states of c<strong>ou</strong>nsci<strong>ou</strong>sness; but that each seemingly simple state<br />

is in reality a highly complex comp<strong>ou</strong>nd, constantly changing and giving rise to new combinations” (S. Z.<br />

Aung em sua Introdução a Abhidhammattha-Sangha, Pali Text Society. 1963). Apesar da<br />

semelhança entre o pensamento budista e o de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>, este último não aceita nem a renúncia<br />

ascética (parece-lhe egoísta) nem muito menos essa realidade indizível e indefinível, exceto em termos<br />

negativos, que chamamos Nirvana. Deve sentir-se mais longe ainda, suponho, dos pontos de vista do<br />

budismo Mahayana. Certo, a idéia de que todos os elementos (dharmas) são interdependentes não é<br />

distinta de sua concepção e tamp<strong>ou</strong>co o é ver neles simples nomes vazios de substância; em compensação,<br />

deduzir desse relativismo um absoluto de certo modo inefável, deve provocar-lhe certa repugnância<br />

intelectual. O paradoxo do budismo não consiste em ser uma filosofia religiosa mas em ser uma religião<br />

filosófica: reduz a realidade a um fluir de signos e nomes mas afirma que a sabedoria e a santidade (uma<br />

só e mesma coisa) reside no desaparecimento dos signos. “Os signos do Tathagatta”, diz o sutra<br />

Vagrakkhedika, “são os não-signos”. Direi, por último, que não é acidental a semelhança entre o budismo<br />

e o pensamento de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: é mais uma prova de que o Ocidente, por seus próprios meios e pela<br />

própria lógica de sua história, chega agora a conclusões fundamentalmente idênticas às que haviam<br />

chegado Buda e seus discípulos. O pensamento humano é uno e devemos a <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> – entre <strong>ou</strong>tras<br />

muitas coisas – haver demonstrado que a razão do primitivo <strong>ou</strong> a do oriental não é menos rigorosa do<br />

que a nossa.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 71


noites inteiras <strong>ou</strong> cismar durante as horas de rep<strong>ou</strong>so?” Atribuo esta<br />

diferença ao fato de que temos inconscientes distintos: falta algo às<br />

máquinas <strong>ou</strong> sobra algo em nós. Ou isto também é uma ilusão?<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> introduz uma distinção singular entre o consciente e<br />

o inconsciente. Este último é um depósito de imagens e recordações, “um<br />

aspecto da memória” – algo assim como um arquivo imenso,<br />

desordenado e repleto. O consciente, ao contrário, “sempre está vazio”;<br />

recebe as “pulsões”, emoções, representações e <strong>ou</strong>tros estímulos<br />

exteriores e os organiza e transforma “como o estômago aos alimentos<br />

que o atravessam”. Embora Freud pensasse que um dia os progressos da<br />

química tornariam desnecessário o longo tratamento psicanalítico, sua<br />

concepção do inconsciente se opõe totalmente a de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: os<br />

processos químicos, inconscientes e subconscientes, possuem para Freud<br />

uma finalidade. Esta finalidade recebe vários nomes: desejo, princípio de<br />

prazer, Eros, Tânato, etc. Muitos sublinharam o parentesco deste<br />

inconsciente psicológico com as estruturas econômicas de Marx,<br />

também inconscientes e, portanto, tendo uma direção. O inconsciente e a<br />

história são forças em marcha e que caminham independemente da<br />

vontade dos homens. Longe de ser mecanismos vazios que transformam<br />

em signos aquilo que recebem do exterior, são realidades plenas que sem<br />

cessar mudam o homem e se transformam a si mesmas. A matéria viva<br />

de Freud aspira ao nirvana da matéria inerte; quer rep<strong>ou</strong>sar na unidade<br />

mas está condenada a mover-se e a dividir-se, a desejar e a odiar as<br />

formas que engendra. O homem histórico de Hegel e Marx quer suprimir<br />

sua alteridade, ser uno <strong>ou</strong>tra vez com os <strong>ou</strong>tros e com a natureza, mas<br />

está condenado a transformar-se continuamente e transformar o<br />

mundo. Em um livro brilhante (Eros e Tânato), <strong>No</strong>rman O. Brown<br />

revel<strong>ou</strong> que a energia da história pode chamar-se também Eros<br />

reprimido e sublimado. A dialética histórica, seja a de Hegel <strong>ou</strong> a de<br />

Marx, se reproduz na teoria de Freud: afirmação e negação são<br />

conceitos que correspondem aos de libido e repressão, prazer e morte,<br />

atividade e nirvana.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 72


O materialismo de Freud e o de Marx não suprimem a idéia de<br />

finalidade: situam-na em um nível mais profundo que o da consciência e<br />

assim a fortificam. Alheia à consciência, esta finalidade é efetivamente<br />

uma força irrebatível. Ao mesmo tempo, Marx e Freud oferecem uma<br />

solução: mal o homem se dá conta das forças que o movem, está apto,<br />

senão a ser livre, pelo menos para estabelecer uma certa harmonia entre<br />

o que é realmente e o que pensa ser. Esta consciência é um saber ativo:<br />

para Marx, prometéico e heróico, é a atividade social, a práxis<br />

consciente de si mesma, que transformam o homem e o mundo; para o<br />

pessimista Freud é o equilíbrio, continuamente rompido, entre desejo e<br />

repressão. Assim pois a diferença entre estas duas concepções do<br />

inconsciente e a de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> reside em que, no primeiro caso, o<br />

homem acede ao conhecimento de um inconsciente ativo e senhor de<br />

uma finalidade, enquanto que, no segundo, contempla um mecanismo<br />

que não conhece <strong>ou</strong>tra atividade senão a repetição e que carece de<br />

finalidade. É um saber do vazio.<br />

Em seu comentário a Les structures élémentaires de la<br />

parente, citado no princípio destas páginas, Georges Bataille lamentava<br />

que <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> mal tocasse no tema da relação entre o intercâmbio de<br />

mulheres e o erotismo. A dualidade proibição e doação aparece também<br />

neste último: é uma espécie de oscilação entre horror e atração que se<br />

resolve sempre em violência, seja interior (renúncia) <strong>ou</strong> exterior<br />

(agressão). O jogo passional constitui o específico do fenômeno embora<br />

<strong>ou</strong>tras circunstâncias – econômicas, religiosas, políticas, mágicas –<br />

concorram também para determiná-lo. Em <strong>ou</strong>tras palavras, Bataille<br />

pedia que o tabu do incesto e sua contrapartida, as regras do parentesco<br />

e do matrimônio, se explicassem não só como uma forma de doação,<br />

uma expressão particular da teoria da circulação de bens e signos, mas<br />

por aquilo que os distingue dos <strong>ou</strong>tros sistemas de comunicação. Direi<br />

mais: o erotismo é comunicação mas os seus elementos específicos, à<br />

parte o fato de que o isolam e o opõem às <strong>ou</strong>tras formas de intercâmbio,<br />

anulam a própria noção de comunicação. Por exemplo, dizer que o<br />

matrimônio é uma relação entre signos que designam nomes (classes e<br />

linhagens) e valores (prestações, filhos, etc.), é omitir aquilo que o<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 73


caracteriza: ser uma mediação entre renúncia e promiscuidade e, assim,<br />

criar um âmbito fechado e legítimo em que se pode desenvolver o jogo<br />

erótico. Pois bem, se as mulheres são signos portadores de nomes e bens,<br />

deve acrescentar-se que são signos passionais. A dialética própria do<br />

prazer – dom e possessão, desejo e gasto vital – confere a esses signos<br />

um sentido contraditório: são a família, a ordem, a continuidade e são<br />

também o único, o extravio, o instante erótico que rompe a<br />

continuidade. Os signos eróticos destroem a significação – queimam-na<br />

e transfiguram-na: o sentido regressa ao ser. E do mesmo modo o abraço<br />

carnal, ao realizar a comunicação, a anula. Como na poesia e na música,<br />

os signos já não significam: são. O erotismo transcende a comunicação.<br />

Bataille assinala que a proibição do incesto também está ligada a<br />

<strong>ou</strong>tras duas negações pelas quais o homem se opõe à sua animalidade<br />

original: o trabalho e a cons ciência da morte. Ambas nos colocam<br />

diante de um mundo que <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> prefere ignorar: a história. O<br />

homem faz e ao fazer se desfaz, morre – e o sabe. Pergunto-me: o homem<br />

é uma operação <strong>ou</strong> uma paixão, um signo <strong>ou</strong> uma história? Esta<br />

pergunta pode repetir-se, segundo se viu, diante dos <strong>ou</strong>tros estudos de<br />

<strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> sobre os mitos e o pensamento selvagem. Com<br />

extraordinária penetração descobriu a lógica que os rege e revel<strong>ou</strong> que,<br />

longe de ser confusas aberrações psíquicas <strong>ou</strong> manifestações de ilusórios<br />

arquétipos, são sistemas coerentes e não menos rigorosos que os da<br />

ciência. Em compensação, omite a descrição do conteúdo concreto e<br />

específico. Tamp<strong>ou</strong>co se interessa pelo significado particular desses<br />

mitos e símbolos dentro do grupo que os elabora. Convertido em uma<br />

simples combinação, o fenômeno se evapora e a história se reduz a um<br />

discurso incoerente e a uma gesta fantasmal. Não faltará quem me diga:<br />

um homem de ciência não tem porque extraviar-se nos labirintos da<br />

fenomenologia e da história. Penso o contrário. A obra de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

nos apaixona porque interrompe o duplo e interminável monólogo da<br />

fenomenologia e da história. Essa interrupção é, ao mesmo tempo,<br />

histórica e filosófica: a negação da história é uma resposta à história e a<br />

filosofia reaparece como crítica do sentido – como crítica da razão.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 74


Ricoeur encontr<strong>ou</strong> uma surpreendente semelhança entre o sistema<br />

de Kant e o de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>: ao modo do primeiro, este postula um<br />

entendimento universal regido por leis e categorias invariáveis. 19 A<br />

diferença seria que o do antropólogo francês é um entendimento sem<br />

sujeito transcendental. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> aceita o bem fundado da<br />

comparação e, sem negá-la, assinala os seus limites: o etnólogo não parte<br />

da hipótese de uma razão universal mas da observação de sociedades<br />

particulares e p<strong>ou</strong>co a p<strong>ou</strong>co, pela classificação e comparação de cada<br />

elemento distintivo, desenha as linhas de “uma estrutura anatômica<br />

geral”. O resultado é uma imagem da forma da razão e uma descrição de<br />

seu funcionamento. A semelhança que Ricoeur assinala não nos deve<br />

fazer esquecer uma diferença não menos decisiva: Kant se propôs<br />

descobrir os limites do entendimento; <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> dissolve o<br />

entendimento na natureza. Para Kant há um sujeito e um objeto; <strong>Lévi</strong>-<br />

<strong>Strauss</strong> apaga esta distinção. Em lugar do sujeito postula um “nós” feito<br />

de 'particularidades que se opõe e combinam. O sujeito se via a si mesmo<br />

e os juízos do entendimento universal eram os seus. O “nós” não pode<br />

ser visto: não tem um si mesmo, sua intimidade é exterioridade. Seus<br />

juízos não são seus: é o veículo de um juízo. É a estranheza em pessoa.<br />

Nem sequer pode saber-se uma coisa entre as coisas: é uma<br />

transparência através da qual uma coisa, o espírito, contempla as <strong>ou</strong>tras<br />

coisas e se deixa contemplar por elas. Ao abolir o sujeito, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong><br />

destrói o diálogo da consciência consigo mesma e o diálogo do sujeito<br />

com o objeto.<br />

A história do pensamento do Ocidente foi a das relações entre o ser<br />

e o sentido, o sujeito e o objeto, o homem e a natureza. Desde Descartes<br />

o diálogo se alter<strong>ou</strong> por uma espécie de exageração do sujeito. Esta<br />

exageração culmin<strong>ou</strong> na fenomenologia de Husserl e na lógica de<br />

Wittgenstein. O diálogo da filosofia com o mundo se converteu no<br />

monólogo interminável do sujeito. O mundo emudeceu. O crescimento do<br />

19 Observo, de passagem, que Martin Heidegger, em O ser e o tempo se propôs algo semelhante, só que<br />

não na esfera do entendimento mas na da temporalidade. Por isso se opôs, com razão, a que se confunda<br />

o seu pensamento com o existencialismo. O formalismo de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> proíbe-me de comparar suas<br />

concepções com as de Heidegger; mas não com o antigo nominalismo: em seu sistema o universo se resolve<br />

em signos, nomes. Valeria a pena explorar mais estas afinidades.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 75


sujeito às expensas do mundo não se limita à corrente idealista: a<br />

natureza histórica de Marx e a natureza “domesticada” da ciência<br />

experimental e da tecnologia também ostentam a marca da<br />

subjetividade. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> rompe brutalmente com esta situação e<br />

inverte os termos: agora é a natureza que fala consigo mesma, através<br />

do homem e sem que este se dê conta. Não é o homem mas o mundo que<br />

não- pode sair de si mesmo. Se não fosse forçar demais a linguagem,<br />

diria que o entendimento universal de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> é um objeto<br />

transcendental. O “homem em si” nem sequer é inacessível: é uma ilusão,<br />

a cifra momentânea de uma operação. Um signo de troca, como os bens,<br />

as palavras e as mulheres.<br />

Por meio de reduções sucessivas e rigorosas, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> percorre<br />

o caminho da filosofia moderna só que em sentido inverso e para chegar<br />

a conclusões simetricamente opostas. Em um primeiro movimento, reduz<br />

a pluralidade das sociedades e histórias a uma dicotomia que as engloba<br />

e as dissolve: pensamento selvagem e pensamento domesticado. Em<br />

seguida, descobre que esta oposição é parte de <strong>ou</strong>tra oposição<br />

fundamental: natureza e cultura. Em um terceiro momento, revela a<br />

identidade entre as duas últimas: os produtos da cultura – mitos,<br />

instituições, linguagem – não são essencialmente distintos dos produtos<br />

naturais nem obedecem a leis diferentes das que regem os seus<br />

homólogos, as células. Tudo é matéria viva, que se transforma. A<br />

própria matéria se evapora: é uma operação, uma relação. A cultura é<br />

uma metáfora do espírito humano e este não é senão uma metáfora das<br />

células e de suas reações químicas que, por sua vez, são <strong>ou</strong>tra metáfora.<br />

Saímos da natureza e a ela retornamos. Só que agora é uma selva de<br />

símbolos: as árvores reais e as feras, os insetos e os pássaros se<br />

transformam em equações. Pode ver-se agora com maior clareza em que<br />

consiste a oposição de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> à dicotomia entre história e<br />

estrutura, pensamento selvagem e domesticado. Não é que lhe pareça<br />

falsa mas que, por mais decisiva que seja para nós, não é realmente<br />

essencial. Certo, o acontecer histórico é “poderoso – mas unânime”: seu<br />

reino é a contingência. Cada acontecimento é único e nesse sentido não é<br />

o estruturalismo, mas a história, quem pode, até certo ponto, explicá-lo.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 76


Ao mesmo tempo, todos os acontecimentos estão regidos pela estrutura,<br />

isto é, por uma razão universal inconsciente. Esta última é idêntica entre<br />

os selvagens e os civilizados: pensamos distintas coisas da mesma<br />

maneira. A estrutura não é histórica: é natural e nela reside a<br />

verdadeira natureza humana. É um retorno a R<strong>ou</strong>sseau, só que a um<br />

R<strong>ou</strong>sseau que tivesse passado pela Academia platônica. Para R<strong>ou</strong>sseau o<br />

homem natural era o homem passional; para <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> as paixões e a<br />

sensibilidade são também relações e não escapam à razão e ao número,<br />

às matemáticas. A natureza humana, já que não uma essência nem uma<br />

idéia, é um concerto, uma harmonia, uma proporção.<br />

Em um mundo de símbolos, que simbolizam os símbolos? Não ao<br />

homem, pois, se não há sujeito, o homem não é nem o ser significado<br />

nem o ser significante. O homem é, apenas, um momento na mensagem<br />

que a natureza emite e recebe. A natureza, por sua vez, não é uma<br />

substância nem uma coisa: é uma mensagem. Que diz essa mensagem? A<br />

pergunta que me fiz ao começar e que reapareceu algumas vezes ao<br />

longo destas páginas, retorna e se converte na pergunta final: que diz o<br />

pensamento, qual é o sentido da significação? A natureza é estrutura e a<br />

estrutura emite significados; portanto, não é possível suprimir a<br />

pergunta sobre o significado. A filosofia, sob a máscara da semântica,<br />

intervém em uma conversação a qual ninguém a convid<strong>ou</strong>, mas que sem<br />

ela careceria de sentido. Para que uma mensagem seja compreendida é<br />

indispensável que o receptor conheça a clave utilizada pelo emissor. Os<br />

homens tinham a presunção, no duplo sentido da palavra, de conhecer a<br />

clave, ao menos pela metade. Outros pensaram que a clave não existia. O<br />

fundamento da pretensão dos primeiros consistia em crer que o homem<br />

era o receptor das mensagens que lhe dirigia Deus, o cosmos, à natureza<br />

<strong>ou</strong> a Idéia. Os segundos afirmavam que o homem era o emissor. Kant<br />

debilit<strong>ou</strong> a primeira crença e mostr<strong>ou</strong> que uma região da realidade era<br />

intocável, inacessível. Sua crítica min<strong>ou</strong> os sistemas metafísicos<br />

tradicionais e fortific<strong>ou</strong> a posição dos partidários da segunda hipótese.<br />

Por meio da operação da dialética, Hegel transform<strong>ou</strong> a inacessível<br />

“coisa em si” em conceito; Marx deu o segundo passo e converteu o<br />

“conceito” em “natureza histórica”; Engels cheg<strong>ou</strong> a pensar que “a<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 77


práxis, particularmente a experimentação e a indústria”, tinham<br />

acabado para sempre com a “coisa em si”, à qual cham<strong>ou</strong> de<br />

“extravagância filosófica”. O fim da “coisa em si”, proclamado por<br />

Hegel e seus discípulos materialistas, foi uma subversão das posições no<br />

antigo diálogo que sustentam o homem e o cosmos: agora seria este o<br />

emissor e a natureza escutaria. A ininteligibilidade da natureza se<br />

transform<strong>ou</strong>, pela negação criadora do conceito e da práxis, em<br />

significação histórica. O homem humaniza o cosmos, isto é, lhe dá<br />

sentido: converte-o em uma linguagem. A pergunta sobre o sentido do<br />

sentido o marxismo responde desta maneira: todo sentido é histórico. A<br />

história dissolve o ser no sentido. A resposta de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> a esta<br />

afirmação poderia chamar-se: meditação nas ruínas de Taxila <strong>ou</strong> o<br />

marxismo corrigido pelo budismo.<br />

Talvez o capítulo mais belo deste livro que se chama Tristes<br />

tropiques seja o último. O pensamento alcança nessas p<strong>ou</strong>cas páginas<br />

uma densidade e uma transparência que fariam pensar nas construções<br />

do cristal de rocha, não fosse o caso de estar animado por uma<br />

palpitação que não recorda tanto a imobilidade mineral como a vibração<br />

das ondas da luz. Uma geometria de resplendores que adota a forma<br />

fascinante da espiral. É o caracol marinho, símbolo do vento e da<br />

palavra, signo do movimento entre os antigos mexicanos: cada passo é<br />

simultaneamente uma volta ao ponto de partida e um avançar para o<br />

desconhecido. Aquilo que abandonamos ao principio nos espera,<br />

transfigurado, ao final. Mudança e identidade são metáforas do Mesmo:<br />

se repete e nunca é o mesma. O etnógrafo regressa do <strong><strong>No</strong>vo</strong> ao Velho<br />

Mundo e i na antiga terra de Gándara une os dois extremos de sua<br />

exploração: na selva brasileira viu como se constitui urra sociedade; em<br />

Taxila contempla os restos de uma civilização que se concebeu a si<br />

mesma como um sentido que se anula. <strong>No</strong> primeiro caso foi testemunho<br />

do nascimento do sentido; no segundo, de sua negação. Duplo regresso:<br />

o etnólogo volta das sociedades sem história à história presente; o<br />

intelectual europeu regressa a um pensamento que nasceu há dois mil e<br />

quinhentos anos e descobre que nesse começo já estava inscrito o fim. O<br />

tempo também é uma metáfora e seu transcorrer é tão ilusório como os<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 78


nossos esforços para detê-lo: nem transcorre nem se detém. <strong>No</strong>ssa<br />

própria imortalidade é ilusória: cada homem que morre assegura a<br />

sobrevivência da espécie, cada espécie que se extingue confirma a<br />

perduração de um movimento que se despenha incansavelmente para<br />

uma imobilidade sempre iminente e sempre inalcançável.<br />

Taxila não é só uma assembléia de civilizações mas de deuses: os<br />

antigos cultos de fertilidade e Zoroastro, Apolo e a Grande Deusa, Shiva<br />

e o deus sem rosto do Islã. Entre todas essas divindades, a figura de<br />

Buda, esse homem que renunci<strong>ou</strong> a ser Deus e que, pela mesma decisão,<br />

renunci<strong>ou</strong> a ser homem. Assim venceu, ao mesmo tempo, a tentação da<br />

eternidade e a não menos insidiosa da história. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> assinala a<br />

ausência de monumentos cristãos em Taxila. Não sei se está certo ao<br />

pensar que o Islã impediu o encontro entre o budismo e o cristianismo<br />

mas não se equivoca ao dizer que esse encontro teria dissipado o feitiço<br />

terrível que enl<strong>ou</strong>queceu o Ocidente: sua carreira frenética em busca do<br />

poder e a autodestruição. O budismo é a malha que falta na cadeia de<br />

nossa história. É o primeiro nó e o último: o nó que, ao se desfazer,<br />

desfaz a cadeia. A afirmação do sentido histórico culmina fatalmente em<br />

uma negação do sentido: “entre a crítica marxista que libera o homem<br />

de suas primeiras cadeias e a crítica budista que consuma a sua<br />

liberação, não há oposição nem contradição”. Um duplo movimento que<br />

une o princípio com o fim: aquilo que nos propôs o Buda ao começo de<br />

nossa história talvez só é realizável ao terminar: unicamente o homem<br />

livre do fardo da necessidade histórica e da tirania da autoridade poderá<br />

contemplar sem medo a sua própria ninharia. A história do pensamento<br />

e a ciência do Ocidente foram apenas uma série de “demonstrações<br />

suplementares da conclusão a que quiséramos escapar”: a distinção<br />

entre o sentido e a ausência de sentido é ilusória.<br />

Disse ao princípio que a resposta de Peirce à pergunta sobre o<br />

sentido era circular: o significado da significação é significar. Como no<br />

caso do marxismo, <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> não nega nem contradiz a resposta de<br />

Peirce; recolhe-a e, fiel ao movimento da espiral, enfrenta-a consigo<br />

mesma: sentido e não-sentido são o mesmo. Esta afirmação é uma<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 79


epetição da antiga palavra do Iluminado e, simultaneamente, é uma<br />

palavra distinta e que só um homem do século XX poderia proferir. É a<br />

verdade do princípio, transfigurada por nossa história e que unicamente<br />

diante de nós se revela: o sentido é uma operação, uma relação.<br />

Combinação de chamadas e respostas psico-químicas <strong>ou</strong> de dharmas<br />

impermanentes e insubstanciais, o eu não existe. Existe um nós e seu<br />

existir é apenas um pestanejo, uma combinação de elementos que<br />

tamp<strong>ou</strong>co têm existência própria. Cada homem e cada sociedade estão<br />

condenados a “perfurar o muro da necessidade” e a cumprir o duro<br />

dever da história, sabendo que cada movimento de liberação os encerra<br />

ainda mais em sua prisão. Não há saída, não há <strong>ou</strong>tra margem? A<br />

“idade de <strong>ou</strong>ro está em nós” e é momentânea: esse instante<br />

incomensurável em que – quaisquer que sejam nossas crenças, nossa<br />

civilização e a época em que vivemos – nos sentimos não como um eu<br />

isolado nem como um nós extraviado no labirinto dos séculos mas como<br />

uma parte do todo, uma palpitação na respiração universal – fora do<br />

tempo, fora da história, imersos na luz imóvel de um mineral, no aroma<br />

branco de uma magnólia, no abismo encarnado e quase negro de uma<br />

amapola, no olhar, “grávido de paciência, serenidade e perdão recíproco<br />

que, às vezes, trocamos com um gato”. <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> chama a esses<br />

instantes: despreendimento. Eu acrescentaria que são também um desconhecimento:<br />

dissolução do sentido no ser, embora saibamos que o ser é<br />

idêntico a nada.<br />

O Ocidente nos ensina que o ser se dissolve no sentido e o Oriente<br />

que o sentido se dissolve em algo que não é nem ser nem não ser: em um<br />

O Mesmo que nenhuma linguagem designa exceto a do silêncio. Pois nós,<br />

os homens, estamos feitos de tal modo que o silêncio também é<br />

linguagem para nós. A palavra do Buda tem sentido, embora afirme que<br />

nada o tem, porque aponta para o silêncio: se quisermos saber o que<br />

realmente disse devemos interrogar o seu silêncio. Pois bem, a<br />

interpretação do que não disse o Buda é o eixo da grande controvérsia<br />

que divide as escolas desde o princípio. A tradição conta que o<br />

Iluminado não respondeu a dez perguntas: o mundo é eterno <strong>ou</strong> não?, o<br />

mundo é infinito <strong>ou</strong> não?, corpo e alma são o mesmo <strong>ou</strong> são diferentes?,<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 80


o Tathagatta viverá depois de sua morte <strong>ou</strong> não, <strong>ou</strong> ambas as coisas, <strong>ou</strong><br />

nenhuma das duas? Para alguns essas perguntas não podiam ser<br />

respondidas; para <strong>ou</strong>tros, Gautama não s<strong>ou</strong>be como responder; e para<br />

<strong>ou</strong>tros, preferiu não responder. K. N. Jayatileke traduz as interpretações<br />

das escolas em termos modernos. 20 Se o Buda não conhecia as respostas,<br />

foi um cético <strong>ou</strong> um agnóstico ingênuo; se preferiu calar porque<br />

respondê-las poderia desviar os <strong>ou</strong>vintes da verdadeira via, foi um<br />

reformador pragmático; se cal<strong>ou</strong> porque não havia resposta possível, foi<br />

um racionalista agnóstico (as perguntas estão mais além dos limites da<br />

razão) <strong>ou</strong> um positivista lógico (as perguntas carecem de sentido e,<br />

portanto, de resposta). O jovem professor singalês se inclina pela última<br />

solução. A despeito de que a tradição histórica pareça contradizê-lo, sua<br />

hipótese me parece plausível se se recorda o caráter extremamente<br />

intelectualista do budismo, fundado em uma teoria combinatória do<br />

mundo e do ego que prefigura a lógica contemporânea. Por esta<br />

interpretação, não muito distanciada da posição de <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong>,<br />

esquece <strong>ou</strong>tra possibilidade: o silêncio, em si mesmo, é uma resposta.<br />

Essa foi a interpretação da tendência Madhyamika e de Nagarjuna e<br />

seus discípulos. Há dois silêncios: um, antes da palavra, é um querer<br />

dizer; <strong>ou</strong>tro, depois da palavra, é um saber que não se pode dizer a única<br />

coisa que valeria a pena dizer-se. O Buda disse tudo que se pode dizer<br />

com as palavras: os erros e os acertos da razão, a verdade e a mentira<br />

dos sentidos, a fulguração e o vazio do instante, a liberdade e a<br />

escravidão do niilismo. Palavra plena de razões que se anulam e de<br />

sensações que se entredevoram. Mas seu silêncio diz algo distinto.<br />

A essência da palavra é a relação e daí que seja a cifra, a<br />

encarnação momentânea de tudo que é relativo. Toda palavra engendra<br />

uma palavra que a contradiz, toda palavra é relação entre uma negação<br />

e uma afirmação. Relação é atar alteridades, não resolução de<br />

contradições. Por isso a linguagem é o reino da dialética que sem cessar<br />

se destrói e renasce só para morrer. A linguagem é dialética, operação,<br />

comunicação. Se o silêncio do Buda fosse a expressão deste relativismo<br />

não seria silêncio mas palavra. Não é assim: com o seu silêncio cessam o<br />

20 Early Budhist Theory of Knowledge, Londres, 1963.<br />

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<strong>Octavio</strong> Paz – <strong>Claude</strong> <strong>Lévi</strong>-<strong>Strauss</strong> <strong>ou</strong> o Festim de Esopo 81


movimento, a operação, a dialética, a palavra. Ao mesmo tempo, não é a<br />

negação da dialética nem do movimento: o silêncio do Buda é a<br />

resolução da linguagem. Saímos do silêncio e voltamos ao silêncio: à<br />

palavra que deix<strong>ou</strong> de ser palavra. O que diz o silêncio do Buda não é<br />

negação nem afirmação. Diz <strong>ou</strong>tra coisa, alude a um mais além que está<br />

aqui. Diz Sunyata: tudo está vazio porque tudo está pleno, a palavra não<br />

é dizer porque o único dizer é o silêncio. Não um niilismo mas um<br />

relativismo que se destrói e vai mais além de si mesmo. O movimento não<br />

se resolve em imobilidade: é imobilidade; a imobilidade, movimento. A<br />

negação do mundo implica uma volta ao mundo, o ascetismo é um<br />

regresso aos sentidos, Samsara é Nirvana, a realidade é a cifra adorável<br />

e terrível da irrealidade, o instante não é a refutação, mas a encarnação<br />

da eternidade, o corpo é uma janela para o infinito: é o próprio infinito.<br />

Já notamos que os sentidos são ao mesmo tempo os emissores e os<br />

receptores de todo sentido? Reduzir o mundo à significação é tão<br />

absurdo como reduzi-lo aos sentidos. Plenitude dos sentidos: aí o sentido<br />

se desvanece para, um instante depois, contemplar como a sensação se<br />

dispersa. Vibração, ondas, chamadas e respostas: silêncio. Não o saber<br />

do vazio: um saber vazio. O silêncio do Buda não é um conhecimento<br />

mas o que está depois do conhecimento: uma sabedoria. Um<br />

desconhecimento. Um estar solto e, assim, resolvido. * A quietude é dança<br />

e a solidão do asceta é idêntica, no centro da espiral imóvel, ao abraço<br />

dos pares enamorados do santuário de Karli. Saber que sabe nada e que<br />

culmina em uma poética e em uma erótica. Ato instantâneo, forma que<br />

se desagrega, palavra que se evapora: a arte de dançar sobre o abismo.<br />

* <strong>No</strong> original, jogo verbal entre suelto e resuelto, impossível de ser reproduzido em português. (N. do T.).<br />

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