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ERASMUS (O QUE FICA?) Na maior parte das ... - Eurocid

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<strong>ERASMUS</strong> (O <strong>QUE</strong> <strong>FICA</strong>?)<br />

<strong>Na</strong> <strong>maior</strong> <strong>parte</strong> <strong>das</strong> universidades começam agora a fechar as pré-inscrições para o<br />

Erasmus. Mas, afinal, o que se vive neste programa internacional de câmbio de<br />

estudantes?<br />

Diga-se, em tom adoçante de leitura, que esta viagem de um semestre ou de um ano<br />

inteiro, é bem mais do que uma experiência de estudos enriquecedora, é uma longa<br />

descoberta de nós mesmos.<br />

Se me perguntarem o que me lembro do ano de 1999, por exemplo, tenho que pensar<br />

mais do que uns instantes, arranjar despertadores de memórias, interligar<br />

acontecimentos, e finalmente consigo agarrar uma visita, uma festa, uma tristeza, uma<br />

decisão com mudança de rumo, um êxito, uma desilusão. Marcadores e post-its na<br />

minha história.<br />

Agora, perguntem-me sobre o ano de 2000/2001, e eu sei os contornos dos dias num<br />

ápice, a <strong>maior</strong> <strong>parte</strong> pelo menos, recordações sem película que as imortalize e me<br />

faça lembrar, ou, sequer, que me deixe habituar (por estar pregada na parede e<br />

acessível a uma observação diária). Rapidamente, em qualquer lugar, consigo deixar-<br />

me levar, outro país, outra cidade “minha”, e ao chegar lá, sinto o cheiro, oiço a voz de<br />

com quem falo. A intensidade não diminui com os anos. Vinho tinto.<br />

Fico no limbo (onde ficamos todos quando “quase-adormecemos” conscientes).<br />

É no avião que sinto o primeiro impacto, quando, no ar, sou transportada a uns tempos<br />

longe do que estou habituada. Os olhos inchados <strong>das</strong> despedi<strong>das</strong> (provisórias –<br />

porque volto no <strong>Na</strong>tal e já o sei), caem sobre si próprios, e mergulhados no cansaço<br />

dos preparativos, reagem. Flash’s surtidos do meu recente presente, do que deixei, de<br />

quem ficou abraçado a mim. Do último verão. Dos últimos meses. Da vida inteira.<br />

Momentos retratados que sem eu saber, vos roubei, a todos! E ali, de garganta em nó,<br />

corto lentamente um cordão umbilical.<br />

Numa “semi-nudeza” chego à cidade decidida (e no meu caso, por mim escolhida –<br />

não fosse a sua posição geográfica). Turim (Itália). Nunca lá tinha ido. Destino<br />

desconhecido (vi postais). Um ano sabia eu. Quatro noites reserva<strong>das</strong> num hotel.<br />

<strong>Na</strong>da mais.<br />

Manhã n.º 1. Eu já vinha avisada para o embate. Choque frontal. Mas, talvez pela<br />

consciência de que o que me é mais especial estar a um telefonema de distância e a<br />

um passo do meu pensamento, levantei-me da cama como se tivesse ganho um<br />

prémio. Curiosidade. Queria encontrar... pequeno-almoço para começar, depois casa<br />

para viver, e o mais que se proporcionasse por aí fora. E, melhor que tudo, não estava


a fugir de nada. Fui porque sim (e só agora tinha tido tempo para responder a esta<br />

pergunta).<br />

A língua nova foi sendo entendida. O embalo de um concerto de Nicola Conte.<br />

Madrugando por hábito, e por não encontrar casa, corri a cidade de lés a lés, mapa<br />

decorado, via a via. Fui recebida por um padre num convento, quando as reservas do<br />

quarto se esgotaram. Não parei aí, já me arriscava a falar italiano. Palavras tortas.<br />

Segui pelo instinto da necessidade em exploração <strong>das</strong> imobiliárias, cafés, pizzerias,<br />

universidades, enfim, da cidade. Aprendi-lhe as curvas, e quanto mais me conseguia<br />

desenrascar mais parecia que me tinham aprisionado num filme japonês com guião<br />

russo. Delicioso!<br />

Mas nem tudo é tão fácil como possa parecer. Neste desatino de organização, de<br />

papelada escrita espalhada por to<strong>das</strong> as carteiras que eu tinha, cruzei-me com<br />

desistentes, que de elevado calibre de sociabilidade e “desembaraçadez”, foram<br />

derrotados pelo início e pela saudade. Não me foi possível convencê-los. O espírito<br />

tem que estar aberto a esta aventura.<br />

Viver sozinha. A meias. Mas sozinha. Com o meu horário, a minha desarrumação, os<br />

meus cozinhados. A minha loiça e a minha roupa para lavar (na loja <strong>das</strong> máquinas a<br />

moeda, a três quarteirões de distância).<br />

Instalada que estou, e a partir daqui rumo à estabilidade na confusão. Criam-se<br />

caminhos próprios, favoritismos. Conhecem-se “as” pessoas, as diferentes origens.<br />

Trocadilhos. Somos sozinhos, que, na mesma situação, se juntam. As jantara<strong>das</strong><br />

revezam as casas, como um culto. Metade dos presentes não se conhece.<br />

Comunicamos todos em italiano. Não têm medo de se conhecer. Do ponto zero<br />

(porque sem referências) conquistamo-nos uns aos outros. Despistam-se os<br />

preconceitos, os tabus mais severos e escondidos nas naturais pressões da sociedade<br />

(a que pertencemos) e da família que integramos (e nos dá o seu melhor). Sou mais<br />

eu do que nunca.<br />

O que tenho por garantido (os valores) é em várias situações varrido, varanda fora.<br />

Ora, aqui jaz a definição de relatividade. Não somos iguais. Mas aprendemos uns dos<br />

outros. Deixamos de julgar. Acabamos por aceitar com naturalidade que os nossos<br />

valores “absolutos” são distintos. Ordem sensivelmente genética. Como o é a cor dos<br />

nossos olhos, da nossa pele. Aí está o intercâmbio. <strong>Na</strong> partilha do que nos está<br />

intrínseco, embebido em genes portugueses. Da admissão!<br />

Instintivamente seleccionamos e permitimos (com restrições) que, da junção de<br />

diferentes raízes, nasça uma “família Erasmus” (como lhe chamava o Santiago). Entre<br />

nós os laços intimos de uma amizade de dez anos.


Meditei sobre tudo, especialmente nos comboios. Reflecti como nunca tinha feito.<br />

Tropecei em significados novos, porque vi de longe a minha vida até aí. Tornei-me<br />

clara. Receptiva ao que me é desigual. Curso intensivo. Prova de gelo ao egoísmo.<br />

Atentados fulminantes às paisagens bonitas que eu já conhecia, que reuni num<br />

catalogo mental. Perdura.<br />

É Fevereiro, já sou <strong>parte</strong> integrante desta forma de viver, de viajar sem bagagem, de<br />

comer enlatados, de não planear. Já conheço os cantos e os fascinantes. A língua<br />

está dominada. A contagem torna-se decrescente, a partir de agora. Acabará. Tem<br />

prazo de validade.<br />

Nesta fase, dá-se uma importante mudança que se prolongará indefinidamente.<br />

Filtramos o que de mais essencial nos é permitido viver. Separamos o trigo do joio e<br />

cingimo-nos ao principal, como quem sabe que irá morrer (em data certa) e aproveita<br />

o tempo que lhe resta. Uma emoção forte por dia, certamente. Conversas puras.<br />

Até que a data chega. O fim.<br />

Vim para Portugal de carro, afastando-me lentamente de “casa”. Sem sono, nem fome.<br />

Sem perceber. Regressava. Já sabia. O concerto que marcava o último dia já tinha<br />

acabado. Os aviões tinham levantado. A mezzanine estava desmontada.<br />

Os últimos conselhos, os últimos elogios. Os últimos olhares, especados uns nuns<br />

outros. Despedi<strong>das</strong> (a <strong>maior</strong> <strong>parte</strong> para sempre). Guardo sete peças de xadrez, <strong>das</strong><br />

quais não abdico. Mantenho intactas as amizades que, percebi, são eternas.<br />

Abrigo os horizontes novos e as suas ramificações espalha<strong>das</strong> pelo mundo todo.<br />

Protejo esta nova versão.<br />

Não vale a pena chorar porque o mais valioso trazemos sempre connosco.<br />

Demorei uma semana até chegar a Lisboa. Parei em Barcelona e Madrid. Respirei<br />

fundo.<br />

Passaram três meses, desde a minha chegada, e eu erguera à minha frente um muro<br />

escuro, muito alto. Inexplicavelmente, melhor preparada para manobrar a vida, com<br />

menos amarras, mais informação, mais maturidade, e sem qualquer evidência<br />

aparente, deixei de aceitar a “inércia” plantada à minha volta. Triste e insuportável<br />

tantas vezes estava bloqueada numa pequena revolta.<br />

Até que, apurado o drama, que é de retorno, e a razão, que é falta de variedade de<br />

sensações, decidi combater os despropósitos, as variações de humor, a arrogância, e<br />

o descontentamento “idiótico”, que pelo que me apercebi atinge todos os Erasmus<br />

“recém-regressados”.<br />

Não devia ser permitido. A conclusão Erasmus é oposta. Um ano é uma ínfima <strong>parte</strong><br />

da vida (espero!), e aquele ano é aproveitado como sendo finito, desde o princípio (e<br />

mais a partir de Fevereiro). Dessa forma é alcançada a intensidade e a sinceridade


com que o vivemos. As escolhas <strong>das</strong> pessoas que nos acompanham, dos programas<br />

que fazemos, <strong>das</strong> cidades e aldeias que visitamos, baseiam-se, exactamente, na<br />

limitação da nossa disponibilidade. Não é ilusão.<br />

Assim devia ser encarada a vida inteira, que tem fim, só não tem data e hora marcada.<br />

Essa será, talvez, a grande lição.<br />

Madalena Callé Lucas

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