16.04.2013 Views

CULTURAS E EDUCAÇÕES Orientadora: P MARISA FLÁVIA ... - UFF

CULTURAS E EDUCAÇÕES Orientadora: P MARISA FLÁVIA ... - UFF

CULTURAS E EDUCAÇÕES Orientadora: P MARISA FLÁVIA ... - UFF

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>MARISA</strong> <strong>FLÁVIA</strong> DA SILVA<br />

<strong>CULTURAS</strong> E <strong>EDUCAÇÕES</strong>: O TANGOLOMANGO COMO EXPERIÊNCIA<br />

<strong>Orientadora</strong>: Prof. Dr Drª. . Edwiges Santos Zaccur<br />

Niterói<br />

2008<br />

Dissertação apresentada apresentad ao Curso de Pós-<br />

Graduação em Educação ducação da Universidade<br />

Federal Fluminense, como requisito parcial<br />

para obtenção do Grau de Mestre. Ár Área de<br />

Concentração: Estudos do Cotidiano Escolar.


S586 Silva, Marisa Flávia da.<br />

Culturas populares e educações: O TANGOLOMANGO como<br />

experiência / Marisa Flávia da Silva. – 2008.<br />

205 f.<br />

Orientador: Edwiges Santos Zaccur.<br />

Dissertação (Mestrado) – Universidade<br />

Federal Fluminense,<br />

Faculdade de Educação, 2008.<br />

Bibliografia: f. 202-205.<br />

1. Educação popular – Rio de Janeiro (RJ). 2. Diversidade cultural.<br />

I. Zaccur, Edwiges Santos. II. Universidade Federal Fluminense.<br />

Faculdade de Educação. III. Título.<br />

CDD 370.19098153<br />

II


A todos os meninos e meninas que se lançaram nesta aventura<br />

cultural e educativa comigo.<br />

III


AGRADECIMENTOS<br />

De coração, agradeço:<br />

Minha filha, pela ausência,<br />

Minha família, pelas memórias,<br />

Meus amigos de fé: Carlos, Mônica, Regina,<br />

D. Nelma, Marcelo e Déa, pela leitura e apoio,<br />

Margarethe, pela amizade e respeito,<br />

Maurício, pelo companheirismo,<br />

afeto e últimas provocações,<br />

Jongo da Serrinha, pelas oportunidades,<br />

Minha orientadora, Edwiges, pela determinação,<br />

cumplicidade, acolhimento e aprendizagens.<br />

IV


“Quando a noite descia, ao som da Ave-maria,<br />

Um som de tambor se ouvia.<br />

Dentro de uma senzala, em um caminho pra Minas<br />

Vozes de Jongueiro se ouviam”<br />

(Saracura letra e música de Pedro Monteiro e Darcy Monteiro)<br />

“(..)Mas os presos são quase todos pretos/Ou quase pretos /Ou quase brancos<br />

quase pretos de tão pobres/ E pobres são como podres /E todos sabem como se<br />

tratam os pretos(...)O Haiti é aqui /O Haiti não é aqui...”<br />

(HAITI letra de Caetano Veloso música de Gilberto Gil e Caetano Veloso)<br />

V


RESUMO<br />

O projeto Tangolomango é fruto de uma pesquisa sobre a prática desenvolvida por mim para<br />

favorecer o processo de apropriação de leitura e escrita para crianças e adolescentes das classes<br />

populares com defasagem série /idade ou que não haviam completado com sucesso sua<br />

alfabetização nos três primeiros anos do 1º Ciclo Básico de Formação. O projeto buscava<br />

atender demandas de Classes de Progressão de duas Escolas Municipais situadas em Campo<br />

Grande, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro - o CIEP Posseiro Mário Vaz entre 2002 e 2005 e<br />

a escola Professor Gonçalves entre 2005 e 2006, tendo como proposta pedagógica promover<br />

um diálogo entre os saberes contidos na arte e culturas populares e os saberes formais<br />

pertinentes ao currículo escolar. Busquei acolher em meio à polifonia de vozes, a ambigüidade<br />

de encontros e desencontros culturais, fazendo uma reflexão sobre as questões referentes ao<br />

processo de colonização e ao “pensamento único” de matriz européia que se encontra<br />

ideologicamente implicado no imaginário coletivo. A consciência de que os países<br />

subalternizados são espaços de produção de cultura(s), mas não produtores de saber(res),<br />

ressoa, metaforicamente falando, no microcosmo cotidiano da escola, onde o “outro” e as<br />

diferenças culturais das crianças originárias das classes populares, são, muitas vezes, vistos<br />

como “exóticos”, mascarando, de maneira velada ou explícita, um conjunto de práticas<br />

excludentes em relação a saberes e dizeres de culturas vistas não “cultas”. Para discutir as<br />

questões referentes às fronteiras e hibridização cultural, reporto-me aos estudos e pesquisas de<br />

CHARTIER e HANNERZ que buscaram construir seus pensamentos rompendo armadilhas<br />

dicotômicas que, de certa forma, naturalizaram as polarizações entre culturas. Neste sentido, o<br />

presente trabalho aproxima-se dos estudos sobre os saberes subalternos apontados por<br />

MIGNOLO, das considerações de BAKHTIN referentes à palavra como arena, além de retomar<br />

os ideários humanistas de uma educação libertária preconizada por de FREIRE e BRANDÃO.<br />

O desafio de optar por desenvolver um projeto pelo viés cultural e artístico foi uma estratégia<br />

que, longe de ser neutra, afirma valores humanísticos, impregnados de diversidade, acolhimento<br />

e respeito aos diferentes saberes que circulam pelo espaço escolar.<br />

Palavras-chave: Encontros e desencontros culturais; culturas e educações.<br />

VI


ABSTRACT<br />

The Tangolomango Project derives from a research developed by me to favor the process of<br />

reading and writing absorption by children and teenagers of lower classes who were behind in<br />

grade for their age or who hadn’t completed their alphabetizing process in the first three years<br />

of the First Basic Cycle of Study. The project tried to attend the toils of Progression Classes of<br />

two Municipal Schools located in Campo Grande, suburban area of Rio de Janeiro- in the CIEP<br />

Posseiro Mario Vaz between 2002 and 2005 and the school Professor Goncalves between 2005<br />

and 2006, having as a educational proposal the promotion of a dialogue between the knowledge<br />

contained in art and popular cultures and the formal knowledge contemplated by the school<br />

syllabus. Among the polyphony of voices, I tried to assess the ambiguity of cultural encounters<br />

and disencounters, reflecting on issues related to the process of colonization and to the<br />

European-inspired unitarian thought, which are ideologically implied in the collective<br />

imaginary.<br />

The conscience that the subjugated countries are places where one can produce culture -but not<br />

knowledge- resonates, metaphorically speaking, in the microcosm of the school routine, where<br />

the “other” and the cultural differences of children coming from lower classes are many times<br />

seen as exotic, masquerading a group of exclusion practices e in relation to knowledges and<br />

speeches of cultures seen as not “cult”. To discuss the issues related to frontiers and cultural<br />

hybridization, I refer to studies and research by CHARTIER and HANNERZ, who tried to<br />

build their thoughts by breaking dichotomy traps that, in a way, naturalized the polarizations<br />

amongst cultures. In this way, the present work draws on studies on subjugated knowledges<br />

developed by MIGNOLO and on the considerations of BAKHTIN referring to the word as an<br />

arena. It also recovers the humanist ideals of a libertarian education defended by FREIRE and<br />

BRANDAO. The challenge of developing a project in the cultural and artistic path was mot a<br />

neutral strategy, but one which fostered humanistic values, impregnated with diversity, warmth<br />

and respect for the different knowledges that circulate in the school environment.<br />

Key words: Cultural encounters and disencounters, cultures and education.<br />

VII


SUMÁRIO<br />

ABRA A RODA TIN DO LE LÊ 08<br />

1 – DA LARANJA QUERO UM GOMO, DO LIMÃO QUERO UM PEDAÇO 13<br />

1.1 – A barata diz que tem sete saias de filó, é mentira da barata 20<br />

1.2 – Sozinho eu não fico, nem hei de ficar 43<br />

1.3 – Passaraio, passaraio, quem me deixe eu passar 50<br />

1.4 - Se esta rua, se esta rua fosse minha 69<br />

2- VIVA EU, VIVA TU, VIVA O RABO DO TATU 87<br />

2.1- Gato escondido com rabo de fora 104<br />

2.2- A canoa virou, pois deixaram ela virar 116<br />

2.3- O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor 125<br />

3- ERAM NOVE IRMÃS NUMA CASA 138<br />

3.1- Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar 146<br />

3.2 – Tudo que seu mestre mandar? Faremos todos? 158<br />

3.3 – Era uma vez 170<br />

3.4 – Escravos de Jó, jogavam caxangá 183<br />

ENTROU POR UMA PORTA, E SAIU PELA OUTRA 196<br />

BIBLIOGRAFIA 202<br />

VIII


ABRA A RODA TIN DO LE LÊ ...<br />

Tangolomango é uma brincadeira musicada recorrente no universo popular com<br />

inúmeras versões espalhadas pelo Brasil. Uma cantiga que tem duplo objetivo: divertir e<br />

ensinar. Uma brincadeira que ajuda a meninada a compreender melhor o conceito de subtração.<br />

Eram nove irmãs, e cada qual em seu tempo, pratica uma ação, e “dá” um Tangolomango nela<br />

(um “estremilique” ou “piripaque”) obrigando-a a sair da brincadeira. Assim das nove, ficam<br />

oito, que ficam sete, que ficam seis, que ficam cinco, que ficam quatro, que ficam três, que<br />

ficam dois, que fica um e depois, acaba a geração.<br />

Ou melhor, acaba a geração ou morre e renasce a cada brincadeira? O Tangolomango<br />

como metáfora da vida? O que morre? O que se transforma? O que fica? Estas são algumas<br />

questões iniciais que atravessam esta pesquisa.<br />

O que mais me encantava nesta atividade eram as possibilidades de aprendizagens que<br />

esta brincadeira possibilitava: cantavam e dançavam tão animadamente quanto liam e<br />

escreviam seus versos. Tudo junto, misturado, ao mesmo tempo. Esta foi a primeira “pista” que<br />

me ajudou a refletir sobre a possibilidade de experimentar outras maneiras de fazer e estar<br />

dentro do espaço escolar, de modo a favorecer a aprendizagem da leitura e escrita das crianças.<br />

Situando melhor o( a) leitor(a), o presente trabalho foi realizado em duas Escolas<br />

Municipais em Campo Grande, subúrbio da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: O CIEP<br />

Posseiro Mário Vaz pertencente a 10ª CRE (Santa Cruz) localizado no Jardim Maravilha/Ilha<br />

de Guaratiba entre 2002 e início de 2005 e na Escola Municipal Professor Gonçalves<br />

pertencente a 9ª CRE, localizada em Campo Grande durante o restante do ano de 2005.<br />

A presente narrativa deriva de uma experiência pedagógica que me marcou, me<br />

atravessou profundamente, e que levou a lançar um olhar mais aguçado a sobre minha própria<br />

práxis, com o objetivo de buscar compreender melhor os encontros e desencontros culturais<br />

que acontecem no cotidiano escolar.<br />

Também me levou a discutir implicações ideológicas e políticas que, no meu entender,<br />

interferem diretamente ou indiretamente no processo de ensino aprendizagem das crianças e<br />

adolescentes das classes populares.<br />

Não acredito que fragmentos de minha práxis educativa, narrados e refletidos na<br />

presente pesquisa, dêem conta da complexidade e conflitos existentes na educação popular<br />

IX


asileira. Gostaria apenas de compartilhar dúvidas e inquietações vividas, trazendo um olhar<br />

aprendente e pesquisador, inacabado e contraditório (como a natureza humana) sobre as tramas<br />

culturais e a polifonia de vozes que circulam pelo ambiente escolar. Foi este movimento que me<br />

trouxe a esta Universidade: a necessidade de conjugar ação-reflexão-ação centrada na minha<br />

experiência pedagógica, buscando ao mesmo tempo, ouvir e dialogar com outros educadores e<br />

educadoras sobre as questões e conflitos presentes na alfabetização das crianças das classes<br />

populares.<br />

Retomo o início desta história que objetiva re-pensar e refletir sobre os desafios de uma<br />

educação libertadora. Mais do que respostas prontas, busco com este estudo ampliar minhas<br />

reflexões e investigações sobre a alfabetização tendo como suporte as intervenções pedagógicas<br />

culturais que o projeto Tangolomango foi realizando dentro do espaço escolar.<br />

A título de esclarecimento e orientação do leitor (a) gostaria de anunciar que a presente<br />

pesquisa está organizada em três partes, que estão imbricadas seja na minha história seja na<br />

história das crianças das classes populares que convivi.<br />

Neste sentido, tal experiência foi vivida como um momento de produção cultural que<br />

serviu para aquelas pessoas, naquele momento, com aquelas pessoas, naquela comunidade<br />

escolar. Isto afasta a possibilidade de transposição direta das atividades aqui recontadas. O que<br />

busco possibilitar como contribuição ao cotidiano escolar, seria a reflexão crítica sobre a<br />

questão recorrente que alinhava as três partes da pesquisa: Qual a relação entre Culturas e<br />

Educações e que “tipo” de educação atende aos interesses e necessidades das classes populares?<br />

Reconheço que este é um tema amplo e bastante polêmico (um assunto há tempos<br />

discutido e problematizado por inúmeros educadores e educadoras que realizaram - e realizam-<br />

significativos trabalhos de intervenção cultural dentro e fora da escola). Por isto, gostaria de<br />

esclarecer que apesar desta pedagogia cultural não ser novidade, gostaria de dizer que o que<br />

trago foi sentido por mim e pelas crianças e adolescentes e também pelos outros atores<br />

escolares que direta ou indiretamente estiveram envolvidos e se inquietaram com as<br />

intervenções educativas do Tangolomango, como novidade, como diferente, como ousado,<br />

como alternativa, como uma proposta pedagógica criativa e transgressora e até certo ponto,<br />

perigosa.<br />

Cada momento é um momento de invenção da escola. Cada momento é possibilitador de<br />

novas descobertas. Falo isso, ressaltando a necessidade de cada educador ou educadora<br />

X


procurar refletir sobre sua própria prática, visto que cada modelo é singular e irrepetível. O que<br />

interessa, são as possibilidades reflexivas de cada experiência.<br />

Acredito ser importante também anunciar que, no início, os nomes dos títulos e sub-<br />

títulos eram outros; mais formais e acadêmicos. E isso, a meu ver, traduzia muito pouco a<br />

experiência do Tangolomango. Com todos os desafios e descobertas implicados nesta opção,<br />

arrisquei-me a criar outra forma, mais brincante de apresentar esta pesquisa: recolhi do universo<br />

popular infantil uma série de cantigas ou brincadeiras que traduzissem o que a experiência do<br />

Tangolomango buscava realizar em sala de aula, ou seja, divertir e ensinar. Tudo junto, ao<br />

mesmo tempo, misturado.<br />

Voltando a sucinta apresentação deste trabalho, procuro discutir na primeira parte as<br />

relações entre as palavras culturas e educações e suas implicações no campo sócio-histórico-<br />

cultural, tendo como pano de fundo o delicado território de herança escravista no Brasil. As<br />

discussões levantadas neste primeiro capítulo apontam para as seguintes questões: Quais os<br />

lugares de pertencimento reservados para os negros, ou quase negros, secularmente<br />

subalternizados originários das classes populares na sociedade brasileira? Como fica a delicada<br />

questão do racismo em nossa sociedade? E a escola, o que ela tem a dizer sobre isso? Por que<br />

nossa sociedade valoriza um tipo de conhecimento, em detrimento de outro? O que vai de<br />

encontro ou ao encontro dos saberes das classes populares e o que isso tudo tem a ver com o<br />

analfabetismo e suas implicações políticas no Brasil? Busco com estas questões, revisitar o<br />

passado para compreender melhor o presente, na tentativa de rememorar espaços tempo de<br />

construção da subalternidade pensando na possibilidade de sua des-construção.<br />

Buscando compreender melhor estas intrincadas relações culturais de herança<br />

escravista, recupero no segundo momento deste trabalho, um pouco de minha própria história<br />

de vida, onde também me encontro - e me desencontro - no lugar do híbrido, da mestiçagem, da<br />

mistura, e conseqüentemente da uma subalternidade e inferioridade identitária e que precisei<br />

olhar de frente para começar a des-construir. Fui aos poucos descobrindo, que estas questões<br />

estão de alguma forma entrelaçadas com a questão da migração das populações de regiões onde<br />

a miséria e a pobreza, acarretaram um sentimento de desenraizamento em relação à sua<br />

identidade afro-brasileira, aumentando ainda mais o sentimento de subalternidade e<br />

inferioridade das camadas mais pobres da sociedade. Diante deste quadro, faço um recorte<br />

reflexivo sobre as relações entre Cultura Popular e Escola: Como incorporar a diversidade<br />

XI


cultural trazida pelos educandos no contexto escolar, de modo a enriquecê-lo? Até que ponto, a<br />

incorporação curricular das práticas e manifestações populares (modos de subsistências e<br />

resistências, festas, religiosidade, danças, histórias, brincadeiras etc.) auxiliam o trabalho de<br />

valoração do sentimento de alteridade dos educandos e em seu processo de alfabetização?<br />

Quais os perigos de escolarizar ou “folclorizar” as manifestações populares?<br />

Na terceira parte desta pesquisa, trago o Tangolomango como experiência educativa,<br />

visando descrever algumas vivências ancoradas na pedagogia cultural que a matriz freireana<br />

possibilitou, assim como refletir de que maneira os encontros e desencontros culturais<br />

vivenciados em sala, favoreciam ou não o processo de aprendizagem das crianças.<br />

As questões que permeiam esta terceira e última parte seriam: O que sabem as crianças<br />

das classes populares? O que escondem e só revelam entre os pares, o que sabem, mas pensam<br />

que não sabem? O que efetivamente sabem e têm orgulho em transmitir? Como aprendem e<br />

ensinam seus saberes? Em qual lógica este saber circula? O que pensam sobre nossos saberes?<br />

E o currículo, onde fica em meio a essa riqueza polifônica de saberes? O pano de fundo destas<br />

reflexões seria a formação social do educador (a) e a busca do possível diálogo curricular que<br />

incorporam diferentes culturas. Tantas questões anunciadas ficaram no meio do caminho e<br />

continuarão provocando novas buscas.<br />

Importante também ressaltar que atualmente o projeto Tangolomango deslocou-se para<br />

um outro espaço educativo, porém não formal: a Escola de Jongo da Serrinha, localizada em<br />

Madureira, zona norte da cidade.<br />

Este movimento que fiz, passando de um espaço formal para um espaço informal de<br />

educação, vem, a meu ver, fortalecer a idéia de que não há como conceber educação sem<br />

cultura e suas potenciais relações. Este deslocamento entre o “formal” e o “não formal”<br />

atravessará o texto intencionalmente, levando o leitor (a) a transitar entre o passado<br />

rememorado e o momento presente: o dentro e o fora da escola, mas também, as fronteiras e<br />

suas zonas de intersecções, onde culturas e educações se misturam e interpenetram.<br />

Gostaria de ressaltar que mais do que respostas prontas, existe nesta pesquisa, a vontade<br />

de legitimar saberes ainda contemporaneamente excluídos dos currículos “oficiais” da escola:<br />

os saberes dos meninos e meninas das classes populares de nossa sociedade que reuni, em sua<br />

grande maioria, são negros ou mestiços. Trata-se, de um esforço para compreender o<br />

XII


hibridismo cultural que nos caracteriza, e as fronteiras e passagens entre os saberes que,<br />

queiramos ou não, invadem o território escolar.<br />

XIII


1- DA LARANJA QUERO UM GOMO, DO LIMÃO QUERO UM PEDAÇO<br />

Culturas e Educações: uma relação estreita e delicada<br />

“Bendito louvado seja,<br />

é o rosário de Maria.<br />

Bendito louvado seja,<br />

É o rosário de Maria.<br />

Bendito pra Santo Antônio<br />

Bendito pra São João,<br />

Senhora Santana, saravá meu “zirimão”<br />

Saravá Angoma-puíta, saravá meu Candongueiro,<br />

Abre Caxambu, saravá jongueiro<br />

Agora mesmo que eu cheguei<br />

Foi pra saravá! ”.<br />

(Bendito/ Mestre Darcy do Jongo/ Ponto de Bizarria)<br />

Gostaria de iniciar minha narrativa como bizarria, uma anunciação. A exemplo do<br />

Jongo 1 acima - ritmo trazido pelos negros escravizados na época do Brasil colônia e que em<br />

2001 virou Patrimônio Imaterial da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, peço licença<br />

para utilizar a palavra que se faz sinuosa, dança e comunica, trafegando entre a oralidade e a<br />

escrita. Peço licença, neste momento, a todos os Mestres, brincantes e foliões, aos versadores e<br />

cantadores, a todos aqueles/aquelas que dialogam com diferentes tambores, que levam<br />

mensagens aos Deuses dançando e fincando os pés no chão, e principalmente, às crianças –<br />

Erês 2 que me acompanham no viver de todo dia, pois parodiando a canção “toda vez que a<br />

1 Disponível em: www.jongodaserrinha.org.br<br />

2 Para os iniciados no Candomblé, os Erês são entidades boas e puras como as crianças. Quando “descem” a<br />

Terra, são recebidos com festa e alegria. Os Erês são festejados em 27 de Setembro, dia em que a Igreja<br />

Católica comemora o Dia de São Cosme e Damião.<br />

XIV


tristeza me alcança 3 ” eles vêm para me dar a mão. Peço licença também aos leitores e leitoras,<br />

que a partir deste momento iniciam esta viagem re-memorada comigo.<br />

Licença aos meus orixás: a Ogum, Ogum Eh, que sincretizado no Rio de Janeiro na<br />

figura de São Jorge Guerreiro, protege e abre meus caminhos e a Iansã - dona dos ventos e das<br />

tempestades - que quando sopra me desloca para lugares antes inimagináveis. EPA HEI! Para<br />

todo o sempre! Axé!<br />

Pois estando eu acostumada a entrar na roda e a “sungar” a saia e começar a girar e a<br />

dançar, proponho-me a re-escrever um pouco de minha história enquanto educadora afro-<br />

descendente e comprometida com as crianças das classes populares. Revisitar o vivido e<br />

transformá-lo em experiência incluíram momentos pontuados de extrema solidão. Que<br />

acontecimentos pessoais ou coletivos, que inquietações e dores estariam profundamente<br />

imbricados não apenas em minha história de vida, na minha formação enquanto educadora, mas<br />

de uma maneira mais ampla, encontram-se também implicados à vida de muitas crianças das<br />

classes populares com as quais trabalhei? Que encontros e desencontros que me formaram<br />

ressoam nas experiências desses meninos e meninas vitimados pelo fracasso escolar?<br />

Anuncio assim que a presente pesquisa tem como objetivo investigar possíveis<br />

encontros, mas também desencontros que vão de encontro às práticas culturais das crianças das<br />

classes populares. Refiro-me especialmente a turmas de Progressão, instituídas em 2001,<br />

buscando atender a demanda de alunos da rede municipal de Educação do Rio de Janeiro que<br />

entraram tardiamente na escola ou nela se arrastavam sem conseguir avanços. De certa forma,<br />

reconheço que naquele momento, minha prática pedagógica estava refletindo uma crença ainda<br />

bastante arraigada em meu imaginário - e também no imaginário coletivo de muitos<br />

educadores. Sei que ainda luto atualmente para me desvencilhar de máscaras “quase brancas”<br />

que trago em minha pele “quase negra”. Preciso romper com a idéia, ainda presente em mim, de<br />

que “encontros” são sempre possibilitadores de transformações e que “desencontros” sempre<br />

nocivos, opressores e subalternizantes. As polarizações entre positivo e negativo, na vida<br />

cotidiana, não se apresentam de forma tão simples assim: o que em princípio tem como<br />

intenção tornar-se um “encontro” pode vir a gerar grandes “desencontros” e vice-versa.<br />

Reconheço hoje, que na prática diária, muitas vezes o que eu acreditava estar indo “ao”<br />

encontro, traduzia-se por fim, em ir “de” encontro às necessidades das crianças das classes<br />

3 Refiro-me a cantiga “Bola de meia, bola de gude” de composição do cantor Milton Nascimento.<br />

XV


populares, gerando conflitos culturais que passavam por vezes despercebidos por mim. Estarei,<br />

repetidas vezes, voltando às emblemáticas questões dos encontros e desencontros culturais que<br />

acontecem, queiramos ou não dentro do cotidiano da escola.<br />

Retomando os objetivos das Turmas de Progressão, o projeto tinha como meta acelerar<br />

o processo de ensino aprendizagem para aqueles que estavam defasados em relação à<br />

idade/série e “também para aqueles que não concluíram o 1º ciclo com sucesso, necessitando<br />

um pouco mais de tempo para que lhes fossem ensinados os valores e conhecimentos<br />

necessários à continuidade de sua escolaridade” 4 . Eis que, após a vigência de cinco anos,<br />

deu-se a extinção deste projeto 5 . As experiências vividas, no entanto, deixaram marcas nas<br />

vidas dos atores sociais em diferentes escolas, como veremos no decorrer desta pesquisa que só<br />

existe porque em determinado tempo/lugar nos encontramos e nos desencontramos também.<br />

Recuperar algumas destas experiências é dar espaço e voz a estes mesmos atores sociais<br />

entre os quais me incluo para que, através de suas / nossas histórias, lutas, prazeres, conquistas<br />

e curiosidades, possamos ousar compreender um pouco mais os avanços e tropeços, no interior<br />

das escolas. Estes delicados e complexos processos de ensinar e aprender estão imbricados no<br />

ofício do trabalhador da educação, ou educações - já anunciando uma pedagogia voltada para a<br />

valorização da diversidade, do múltiplo e plural.<br />

Rememorando o universo cultural vivenciado na sala de aula, trago a fotografia de<br />

nosso primeiro painel pintado no pátio da escola. Um mosaico de histórias e brincadeiras<br />

populares que passaram a fazer parte integrante do currículo formal que deveria ser trabalhado<br />

com aquelas crianças.<br />

4 Portaria E/DGED nº08 de 04/01/2001. Disponível em: www.rio.rj.gov.br/sme<br />

5 Portaria E/DGED nº 29 de 14 de Dezembro de 2006. Disponível em: www.rio.rj.gov.br/sme<br />

XVI


Figura 1<br />

Primeiro painel pintado pelas crianças do Projeto Tangolomango, expressando a valorização<br />

dos saberes das classes populares. (Projeto Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2002)<br />

A ambivalência de ir ao encontro e de encontro pode vir a ser um caminho para se<br />

pensar o processo de escolarização das crianças e adolescentes em defasagem de série/idade nas<br />

escolas públicas: suas repetências e exclusões. Numa perspectiva mais ampla, poderíamos ousar<br />

perguntar: Como acontecem encontros e desencontros de crianças das classes populares<br />

diariamente em nossas escolas?<br />

Já me explico. Ao lidar cotidianamente com a questão do fracasso e repetência escolar,<br />

fui aos poucos sendo instigada a pesquisar as raízes históricas do problema. Inquietava-me com<br />

algumas falas recorrentes na escola em que trabalhava: são crianças que não tem jeito mesmo,<br />

não aprendem; esses meninos não querem saber de estudar, só de brincar e brigar; isso é mal<br />

de família, que não lhes deu educação em casa, os irmãos também não foram pra frente...<br />

Tais inquietações também, de algum modo, me traziam à memória as sucessivas<br />

políticas de erradicação do analfabetismo no Brasil. Sentia/sinto um certo mal estar sempre que<br />

ouvia/ouço a expressão “erradicação do analfabetismo” e buscava/busco entender porque, após<br />

inúmeras e sucessivas tentativas governamentais de se solucionar este problema, a questão da<br />

aprendizagem da leitura e escrita e conseqüente continuidade dos estudos dos meninos/meninas<br />

das classes populares, continuava e continua sendo um assunto preocupante e com graves<br />

impasses a resolver. Ainda se buscam soluções urgentes para resolver o problema que se arrasta<br />

na sociedade brasileira. Em plena era da informática, ainda não conseguimos acabar com o<br />

analfabetismo de grande parte de nossa população.<br />

XVII


Mas, quem são os analfabetos e as analfabetas deste país? Onde estão concentrados? De<br />

qual camada social estão incluídos? De quais crianças estamos falando?<br />

As falas recorrentes de que “as crianças das escolas públicas não aprendem”; ou “são<br />

crianças que têm dificuldade de aprendizagem” levaram-me à prática constante da reflexão<br />

sobre esta difícil realidade educacional brasileira: o fracasso escolar de milhares de crianças e<br />

adolescentes das classes populares no Brasil. Uma inquietação que tem como conseqüência, re-<br />

pensar cotidianamente a função social da escola, os processos de aprendizagem da leitura e<br />

escrita e as diferentes concepções políticas sobre o acesso ao conhecimento, questões que, no<br />

meu entender, podem vir a ser um instrumento de luta para as classes secularmente excluídas:<br />

as classes populares que, majoritariamente, abrangem afro-descendentes ou negros.<br />

Voltando às políticas públicas de “erradicação do analfabetismo” que ainda vigoram<br />

como “prioridade máxima” do governo, penso compreender melhor por que a palavra<br />

“erradicação” me incomodava/incomoda tanto. Erradicar, que vem do latim “erradicare” tem o<br />

significado de “arrancar pela raiz”. Outras palavras que comporiam o campo semântico desta<br />

palavra seriam “desarreigar”, “destruir totalmente”, “suprimir” e “eliminar”. Erradicar é uma<br />

forma de “cortar o mal pela raiz”, certo? Mas, de que “mal” se está falando? Do mal que recai<br />

sobre sujeitos analfabetos que “não aprendem”? Da escola, dos professores? Do sistema? Onde<br />

está a raiz que precisa ser extirpada? Bem sei que se pode dizer que se trata d e erradicar o<br />

analfabetismo do sujeito e não do sujeito do analfabetismo, mas tudo isso está muito implicado.<br />

Relembrando os avessos de nossa história que configurou ao longo de séculos nosso<br />

delicado tecido social, descobrimos cada vez mais que esta história dita como “oficial” afirma<br />

que o fracasso escolar de vários meninos e meninas das escolas públicas, a responsabilidade, ou<br />

“culpa” se assim preferirmos, sempre recaiu sobre o lado mais fraco: o povo pobre e analfabeto.<br />

Mas, de que “povo” especificamente estamos falando? Falamos, repito mais uma vez, da<br />

população negra, ou mestiça, ex-escrava, agora “liberta”. Esses fatores podem ajudar a<br />

complexificar a valoração negativa que nossa sociedade ainda atribui aos lugares de<br />

“pertencimento” dos negros e afro-descendentes e, por tabela, determinar que “tipo” de escola<br />

serve para esta ou determinada classe social. Encontro na citação da filósofa Simone Weil uma<br />

contribuição importante para as questões que costuram esta pesquisa:<br />

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da<br />

alma humana. (...) Cada ser Humano precisa ter múltiplas raízes. (...) As trocas<br />

XVIII


de influências entre os meios muito diferentes não são menos indispensáveis que<br />

o enraizamento do ambiente natural. (WEIL, 1943:437).<br />

Afirmando ser o enraizamento uma necessidade vital para o desenvolvimento<br />

harmonioso do homem, Weil amplia sua discussão ao dizer que uma raiz só não basta, é preciso<br />

ter “múltiplas” raízes tornando indispensável o contato e as trocas com outros meios, outras<br />

culturas. Encontros e desencontros mais uma vez.<br />

Neste sentido, como fica uma escola que trabalha na perspectiva da “erradicação do<br />

analfabetismo” e, por tabela, trata de apartar os educandos das raízes culturais, da comunidade à<br />

qual estão inseridos? O que acontece quando o educador/educadora na tentativa de erradicar<br />

acaba desarraigando o sujeito de dos saberes próprios de sua(s) cultura(s)? A imagem que me<br />

vem a cabeça é de uma avalanche: fica tudo fora do lugar! E como falamos de seres humanos, e<br />

não de “coisas”, as pessoas ficam sem lugar, sem terra firme onde suas raízes encontrem<br />

elementos nutrientes, metaforicamente falando. Assim, estudar pode perder o sentido, quando o<br />

sujeito acaba ficando “desconectado” de suas raízes.<br />

Tem um Jongo que canta assim: “Eu vou falar pro seu Vitor fincar tenda aí!” “Fincar<br />

tenda” é “fincar-pé”, é enraizar-se. É potencializar e assumir o seu lugar de pertencimento. E<br />

esta é uma das questões centrais na formação identitária do sujeito: o seu lugar de<br />

pertencimento. Minha hipótese é a de que uma escola que ignore o outro em sua outridade, não<br />

dialoga com ele e não consegue promover o seu sucesso escolar.<br />

A Constituição Federal, assegurando o direito da criança e do adolescente à educação<br />

(cabendo à família a obrigação de matricular seus filhos/filhas nas escolas), parece abrir<br />

definitivamente os portões de uma escola que se anuncia como universal e “para todos”. Se a<br />

preocupação inicial com a quantidade de crianças e adolescentes matriculados nas escolas já foi<br />

em grande escala atendida, permanecem os desafios. A palavra de ordem que se impõe no seio<br />

dos debates entre de especialistas e políticos e a população em geral, cada qual defendendo seus<br />

interesses, é cada vez mais a qualidade da educação.<br />

Muito freqüentemente se pensa que aumentar o tempo de escolarização pode resolver os<br />

problemas. Nesse sentido, a recente lei 11.274/2006 6 altera a redação da Lei n o 9.394/1996,<br />

estabelece a obrigatoriedade da ampliação do ensino fundamental para nove anos, passando a<br />

atender crianças e adolescentes dos seis aos 14 anos. No corpo do texto anterior, continua sendo<br />

6 Lei Nº 11.274 de 6 de Fevereiro de 2006.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL<br />

XIX


dever do Estado garantir a todos o acesso ao ensino fundamental, obrigatório, gratuito e de<br />

qualidade. Mas é na prática cotidiana, nos encontros e desencontros culturais inerentes à prática<br />

educativa que os problemas persistem.<br />

Lançando um olhar sobre as taxas de analfabetismo no Brasil, encontramos um<br />

percentual de 11% de população acima de 15 anos ainda analfabeta. Esse percentual, que<br />

declinou consideravelmente nos últimos cinqüenta anos, em termos absolutos abrange 14, 9<br />

milhões de brasileiros 7 . Muita gente que, não encontrando oportunidades, deixa em aberto o<br />

grande desafio de uma sociedade marcada pela política neoliberal que em pleno século XXI,<br />

ainda não se manifestou vontade política suficiente para universalizar a alfabetização. O quadro<br />

torna-se ainda mais grave, se levarmos em conta o conceito de alfabetização funcional, aqui<br />

compreendida como apenas o fato de ser capaz de “ler e escrever seu nome e bilhetes simples”.<br />

Nesse caso, os índices aumentam consideravelmente para 30 milhões de brasileiros na faixa<br />

etária de 15 anos ou mais, 8 fazendo o Brasil pertencer à lista dos países que mais têm<br />

analfabetos do mundo. Nesta perspectiva, o problema do analfabetismo torna-se mais complexo<br />

e se avoluma.<br />

A aprendizagem da leitura e da escrita e o ensino básico de qualidade continuam<br />

fazendo parte da agenda política, sem que na prática sejam desfeitos os nós, sejam eles do<br />

próprio sistema ou das concepções pedagógicas, ainda tão “bancárias” que prevalecem nas<br />

escolas. Encontramos em Paulo Freire argumentos que colocam em cheque a questão da educação<br />

“bancária” e tudo o que esta concepção de homem e mundo implica:<br />

Eis aí a concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da<br />

busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educando se<br />

arquivam na medida em que, nesta distorcida visão de educação, não há<br />

criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção,<br />

na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem<br />

no mundo, com o mundo e com os outros. (FREIRE, 2005:67).<br />

Não há como pensar em melhoria da qualidade de ensino básico no país sem levar em<br />

conta o enorme contingente de pessoas que foram e continuam sendo excluídas da apropriação<br />

de um bem cultural decisivo e prioritário em nossa sociedade: a cultura escrita.<br />

7 Dados do IBGE em 2005. Disponível em: www.ibge.org.br<br />

8 Disponível em: www.inep.gov.br/download/cibec/2000/publicacoes<br />

XX


Para isso, recuperar alguns fios da história, na tentativa de corrigir violências históricas,<br />

pode ser um exercício árduo, mas de certa forma, um divisor de águas na hora de decidirmos<br />

que “tipo” escola queremos ou não reproduzir.<br />

1.1. A barata diz que tem sete sais de filó, é mentira da barata...<br />

Desconstruindo uma história mal contada de muitas ressonâncias<br />

Rememorar um pouco o fio desta história, a história contada pelo viés dos negros e afro-<br />

descendentes secularmente excluídos é urgente. A letra da música a seguir, serve como porta<br />

de entrada para aprofundarmos esta questão tão delicada e importante para nós, educadores (as)<br />

brasileiros(as): o racismo e o preconceito - que de forma velada ou explícita –, encontram-se<br />

profundamente arraigados em nossa identidade pessoal e coletiva, dos brancos, dos “quase<br />

brancos” e dos “quase negros” e dos próprios negros:<br />

Negro não sabe o que é dor<br />

Negro não tem alma não<br />

Assim dizia o feitor...<br />

Com seu chicote na mão...<br />

Malvado banzo de mata<br />

Quero à pátria voltar<br />

Na minha terra sou livre<br />

Como a andoria no ar...<br />

Negro... Negro!<br />

Nesta música encontramos duas falas: a do colonizador que diz que o negro não tem dor<br />

porque não tem alma, ou seja, não é “humano” e a resposta do negro que insurge contra tal<br />

premissa defendida pelos escravocratas, ou seja: negro sofre sim, tem alma sim, é ser humano<br />

sim e anseia recuperar a liberdade e a pátria perdida.<br />

No livro “A Invenção do ser Negro: um percurso das idéias que naturalizaram a<br />

inferioridade do ser negro” a autora Gislene Aparecida dos Santos, expõe essa questão:<br />

XXI


No século XIX, a teoria da distinção racial pautada na biologia, fortalecida, deu<br />

o estatuto final à teoria de que a natureza forja alguns indivíduos ao comando e<br />

outros à obediência. Obediência identificada com a raça negra. (SANTOS,<br />

2005: 53).<br />

Baseados mais uma vez, em critérios etnocêntricos de caráter “científico” na Europa,<br />

observamos, que para os ideários eugenistas 9 da época, a raça ariana era o motor que fazia o<br />

mundo evoluir.<br />

A eugenia é um termo criado por Francis Galton (1822-1911), cientista inglês e primo<br />

de Darwin, que a definiu como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem<br />

melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou<br />

mentalmente”. Na prática a eugenia se propunha a uma limpeza étnica para evolução dos<br />

povos envolvidos. Na interpretação dos eugenistas de então, o fenótipo cor de pele branca era<br />

indicativo de superioridade biológica e, portanto, deveria ser perseguido por meio de<br />

cruzamentos humanos que fossem extirpando o fenótipo cor de pele não branca da população a<br />

ser “melhorada”. Uma amostra dessa prática é muito bem ilustrada no filme de ficção “Rabbit-<br />

Proof Fence” 10 de 2002 (com o título em português “Geração Roubada”) que trata da eugenia<br />

ocorrida de fato na Austrália no começo do século XX. Sendo o aborígene australiano negro ou<br />

mestiço, a etnia deles deveria ser “melhorada”, embranquecida. A eugenia também vigorou nos<br />

meios científicos no Brasil nos anos 30 e parecia enviar uma mensagem clara para os afro-<br />

descendentes, era como se dissesse: antes era dito que vocês não tinham alma. Agora já é<br />

aceitável que vocês tem alma e são seres humanos. Porém a ciência revelou que vocês são de<br />

uma raça inferior. Ou seja, a dificuldade de auto-estima, e auto-conhecimento que já eram<br />

difíceis de obter, pois a escravidão traz conseqüências negativas profundas, agora era<br />

potencializada e definida em um retumbante NÃO para os afro-descendentes. Tudo é NÃO:<br />

você não é inteligente, você não é bonito, você não é capaz, você não tem valor. Esse NÃO<br />

vem sendo desconstruído com muito esforço por parte de comunidades afro-descendentes e de<br />

vários atores e setores da sociedade brasileira. A escola pela qual luto, é aquela que pode<br />

transformar o NÃO em SIM. Negro é bonito, sim. Negro é inteligente, sim. Negro é capaz, sim.<br />

Negro tem valor, sim!<br />

9 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia<br />

10 Disponível em : http//www.imdb.com<br />

XXII


Mesmo sem poder contar integralmente com a escola, ao longo da História do Brasil, o<br />

negro sempre resistiu, sobreviveu e inventou novas maneiras de viver e criar, e re-criar sua<br />

cultura, se tornando inegavelmente um constituinte majoritário na cultura brasileira.<br />

Encontramos, séculos depois, outra canção bivocal trazendo a resposta dos próprios<br />

negros ao juízo de valor dos brancos:<br />

Negro é Burro?<br />

Quero negro no Senado.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro no Doutorado.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro no Mestrado.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro na Universidade.<br />

Negro é Burro?<br />

Quero negro Professor.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro Engenheiro.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro Doutor.<br />

Negro é burro?<br />

Quero negro Advogado...<br />

(Jongo de Guaratinguetá/SP)<br />

Carrego estes versos jongueiros como um desafio para a educação brasileira: assegurar o<br />

acesso a um conhecimento de qualidade que, qualifique os negros ou afro-descendentes a<br />

disputarem lugares historicamente centralizados nas mãos de uma elite “branca”: os lugares de<br />

“poder”, como o senado e as universidades e as profissões de melhor prestígio e remuneração<br />

neste país.<br />

Lembro-me de que algumas vezes, quando entrava em debate com alguns professores<br />

sobre como era difícil, diante das condições precárias em que trabalhávamos, não cairmos nas<br />

armadilhas de “rebaixar” o conteúdo ensinado nas escolas públicas ou “lavar as mãos” diante<br />

das dificuldades. Eram recorrentes os comentários do tipo: não esquenta não, para balconista<br />

ali da esquina, o que eles aprendem aqui está bom”. Estas e outras falas similares tanto me<br />

impactavam como me faziam reagir: e se os sonhos daquelas crianças – como os meus foram<br />

um dia - fossem maiores? Não teria eu, de certa forma, co-participação neste “cortar de asas”<br />

XXIII


por onde infinitos sonhos transitam? E como realizar estes sonhos, se a questão inicial da<br />

alfabetização continuava pendente?<br />

Neste sentido, o que esta e tantas outras falas recorrentes no universo educacional<br />

revelam? De quais visões de mundo fazem parte? Estão impregnadas de qual ideologia? E que<br />

conseqüência trazem efetivamente para as práticas docentes nas salas de aula? Ou seja, como<br />

esta e tantas outras crenças foram sendo construídas e que marcas efetivas deixam em nossa<br />

sociedade?<br />

As conseqüências diretas e indiretas do dia 13 de Maio ainda ressoam na corporeidade e<br />

nas lutas e conquistas de um povo escravizado que aspira por uma liberdade, que agora se<br />

institui, fundamentada em forma de lei:<br />

No dia 13 de maio,<br />

cativeiro acabou,<br />

e os escravos gritavam<br />

liberdade senhor.<br />

(“Treze de Maio” Letra e música<br />

de Djanira do Jongo/Ponto de louvação)<br />

Agora, se estamos falando de “liberdade” é preciso saber em quais condições esta<br />

liberdade foi sendo efetivada, visto que tal libertação não representou “a alforria dos negros<br />

para o mercado de trabalho e das profissões como homens livres” (BOMENDY, 2001: 14).<br />

Isso porque não era (era?) do interesse da elite brasileira dividir e socializar o<br />

conhecimento com a sociedade negra ou mestiça, agora liberta. Recuar um pouco em nossa<br />

história para compreender melhor o que as ditas “leis abolicionistas” efetivamente<br />

representaram naquela época para os negros escravizados, talvez nos dê uma dimensão mais<br />

detalhada das pressões cotidianas sofridas por aquelas pessoas destituídas há séculos de seus<br />

direitos sociais.<br />

Nosso país, em menos de quarenta anos, teve quatro leis abolicionistas, que aos poucos,<br />

foram dando novos sentidos à palavra “liberdade”. Vejamos de uma maneira bem sucinta, quais<br />

foram estas leis e em quais contextos elas se deram.<br />

Comecemos pela primeira. A Lei Eusébio de Queiroz assinada pela pressão dos<br />

Ingleses, além de incentivar o tráfico interno, não conseguiu acabar de imediato com o tráfico<br />

negreiro, que passou a existir em regime de pirataria. Os capitães ingleses receberam poderes<br />

XXIV


de abordar navios brasileiros em alto mar e verificar se transportavam escravos, prendendo e<br />

julgando seus comandantes por descumprimento da lei que extinguiu o tráfico. Por ser realizado<br />

como contravenção, as condições de transporte dos negros pioraram em muito e,<br />

freqüentemente, na eminência de uma rigorosa inspeção inglesa aos navios negreiros, os negros<br />

escravizados eram lançados vivos ao mar. Um verdadeiro genocídio que a história “oficial”<br />

teima em invisibilizar.<br />

Quase vinte anos depois da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, persistia o quadro<br />

de horrores. É preciso lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos<br />

navios negreiros completava a viagem com vida. Castro Alves - um dos poetas mais conhecidos<br />

da literatura brasileira se empenhou na denúncia da miséria a que eram submetidos os africanos<br />

na cruel travessia oceânica. O Navio Negreiro – Tragédia no Mar, poema contido no livro “Os<br />

escravos” foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868. Vejamos alguns de seus versos:<br />

Era um sonho dantesco... o tombadilho<br />

Que das luzernas avermelha o brilho.<br />

Em sangue a se banhar.<br />

Tinir de ferros... estalar de açoite...<br />

Legiões de homens negros como a noite,<br />

Horrendos a dançar...<br />

Negras mulheres, suspendendo às tetas<br />

Magras crianças, cujas bocas pretas<br />

Rega o sangue das mães:<br />

Outras moças, mas nuas e espantadas,<br />

No turbilhão de espectros arrastadas,<br />

Em ânsia e mágoa vãs!”(...)<br />

Fatalidade atroz que a mente esmaga!<br />

Extingue nesta hora o brigue imundo<br />

O trilho que Colombo abriu nas vagas,<br />

Como um íris no pélago profundo!<br />

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga<br />

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!<br />

Andrada! arranca esse pendão dos ares!<br />

Colombo! fecha a porta dos teus mares! (Castro Alves) 11<br />

A essa época já vigorava a Lei do Ventre Livre, que declarava libertos os filhos de<br />

mulher escrava nascidos desde a data da lei. Mas também deixava suas marcas negativas na<br />

11 Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm<br />

XXV


vida cotidiana daquelas pessoas. No documento, os senhores de escravos tinham a tutoria sobre<br />

seus filhos/filhas até atingirem a idade de 21 anos implicando com isso, uma grande luta pela<br />

manutenção de seus laços afetivos e até mesmo pela sobrevivência de seus descendentes.<br />

Ô iaiá, quer jongar, jongo com eu?<br />

Ô iaiá, jongueiro bom é de Lorena.”<br />

É de Lorena, minha avó falou,<br />

sou dumba forte, com a minha dor,<br />

jongueiro de Lorena canta alto e vem louvar,<br />

“matoco” pra ser forte tem que “curiar”, a aê,<br />

tem que “curiar.<br />

(“É de Lorena” letra e música de Lazir Sinval)<br />

A letra do Jongo acima exprime o sofrimento de uma mulher forte (dumba) que sente a<br />

dor ao ver seu filho (matoco= homem) sem comer, ou seja, sem “curiar”. E, sobretudo, dialoga<br />

com as questões apontadas sobre as ressonâncias da Lei do Ventre Livre que deixou como<br />

rastro o aumento do índice de mortalidade infantil, neste período, entre os escravos. Além das<br />

péssimas condições de vida, cresceu o descaso dos colonizadores pelos recém-nascidos, que<br />

favorecidos pela lei, não geravam mais lucro para seus senhores quando completavam a<br />

maioridade.<br />

Lancemos agora uma lente mais detalhada sobre as ressonâncias da Lei dos<br />

Sexagenários. Sabemos hoje que o trabalho escravo era realizado de 12 a 16 horas por dia em<br />

condições sub-humanas de habitação, castigos e principalmente alimentação - que consistia<br />

basicamente de farinha de mandioca, aipim, feijão e banana. Tal tratamento acabava por reduzir<br />

o tempo de vida útil de um escravo comprado em idade adulta a algo entre 10 e 15 anos.<br />

Assim, poucos negros conseguiram chegar aos sessenta anos e se prevalecer dos benefícios da<br />

lei. Observou-se, na prática, que tal lei acabou por favorecer indiretamente os senhores de<br />

engenho que não precisavam mais ter despesas com escravos “improdutivos”. E mais, os<br />

benefícios da Lei dos Sexagenários impunham para as pessoas de mais idade uma triste<br />

realidade: como conseguir o sustento sem trabalho? Foram muitas as alternativas de<br />

XXVI


sobrevivência originadas no seio da tradição africana, que preconiza o respeito e o cuidado aos<br />

mais velhos depositários das tradições e conhecimentos de seu próprio povo.<br />

Gilberto Freire, em seu livro Casa-Grande & Senzala, elucidou sobre o papel social não<br />

só das amas-de-leite como das negras velhas. Afirma, inclusive, que foram “as negras que se<br />

tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias” (FREYRE,2004:413). Mais adiante, o<br />

mesmo autor nos ensina que em grande parte do continente africano:<br />

Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das<br />

crônicas do passado. O Akpalô é uma instituição africana que floresceu no<br />

Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias. Negras que<br />

andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos<br />

meninos brancos. (...) contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso.<br />

Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô.”(FREYRE, 2004: 413)<br />

Por fim, a última lei, a Lei Áurea. Logo de início, esta lei foi de encontro aos interesses<br />

econômicos e sociais dos senhores dos engenhos, que passaram a exigir do império<br />

indenizações pela perda de seus “bens”. Entretanto, e este é um ponto chave desta pesquisa,<br />

sabemos que a condição subalterna dos negros não melhorou com as leis de progressiva<br />

extinção da escravatura. À medida que a obra escravista torna-se cada vez mais escassa e<br />

onerosa, o governo brasileiro, pressionado pelos senhores de engenho começa a pensar em<br />

medidas de povoamento brasileiro, tendo como alternativa a política de imigração que resolvia,<br />

em princípio dois impasses da nação que começava a surgir: mão de obra mais qualificada e o<br />

“branqueamento” da nação, assunto intrinsecamente ligado as questões culturais e ideológicas<br />

desta pesquisa. Portanto, avancemos.<br />

As políticas de “embranquecimento” organizadas pelo governo reforçaram o racismo já<br />

existente acabando por configurar o negro, agora liberto, às piores condições de vida em<br />

sociedade: sem moradia, sem emprego e sem formação escolar ou uma profissão definida para<br />

XXVII


a maioria deles, a simples emancipação jurídica, não mudou sua condição subalterna nem<br />

ajudou a promover sua cidadania ou ascensão social. 12<br />

Apesar dos decantados benefícios que cada lei acarretou para os negros escravizados,<br />

considero importante compreendermos, sob outra óptica, o que estas ações naquela época<br />

desencadearam, na vida cotidiana daqueles sujeitos. Para não correr o risco de generalizar, vale<br />

ressaltar que cada senhor de escravos reinterpretou e aplicou a Lei a seu modo, ora<br />

favoravelmente aos negros escravizados, ora indiretamente ferindo seus direitos garantidos<br />

pelas referidas Leis.<br />

Procurar compreender um pouco mais, como se desenrolaram as lutas sociais e os<br />

entraves políticos econômicos que vigoraram durante este período, amplia nossa compreensão<br />

sobre os contextos que tais leis foram assinadas e como isso influenciou a luta e a vida dos<br />

negros escravizados naquele momento:<br />

Em 1887, de acordo com o relatório do Ministério da Agricultura, pouco mais<br />

de 700 mil escravos ainda encontravam-se em cativeiro. Três anos antes, os<br />

escravos eram de 1.200.000. Portanto, neste período auge do movimento<br />

abolicionista, a média de redução anual do número de cativos foi de ordem de<br />

170 mil indivíduos. Nos dez anos anteriores a 1884, esta média fora de cerca de<br />

30 mil. Nos primeiros anos de 1888, as fugas se intensificaram. Em 13 de maio,<br />

os escravos não eram de fato mais do que 400 mil e a perspectiva de liberdade<br />

estava cada vez mais ao seu alcance. (SALLES e SOARES, 2005:113)<br />

Poderíamos, neste sentido nos questionar sobre: que ressonâncias tais deliberações<br />

tiveram na constituição identitária dos negros e afro-descendentes em nossa sociedade? Que<br />

heranças deixaram? Penso nisso, lembrando que “a história não é o passado. A história só é o<br />

passado na medida em que este é historiado no presente – historiado no presente, porque foi<br />

vivido no passado” (LACAN aput CARVALHO,2002:99). Por isso, inquieto-me em querer<br />

saber o que podemos aprender com estas histórias? O que elas nos revelam e o que fica<br />

escondido, nas entrelinhas, no “não dito”?<br />

No caso da Lei Áurea, que é a lei que mais ressonâncias encontramos em nosso tecido<br />

social, o texto revela um total desinteresse sobre o futuro da população negra, agora liberta.<br />

Acabar com a escravidão não representava o fim da exploração do negro no Brasil, nem a sua<br />

reintegração - em pé de igualdade - na sociedade brasileira.<br />

12 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil<br />

XXVIII


O original da Lei Áurea encontra-se hoje guardado no Museu Histórico Nacional e se<br />

observarmos o texto curto da lei, fica mais fácil entendermos o contexto em que tal implantação<br />

da lei se deu:<br />

A Princesa Imperial Regente, em Nome de Sua Majestade, o Imperador, o<br />

senhor dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia<br />

Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:<br />

Art. 1º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.<br />

Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário. 13<br />

Nenhuma referência ao destino dos escravos. Nenhuma política de distribuição de terras<br />

para que tivessem onde viver e extrair da terra o seu sustento. Em vez disso surgiram projetos<br />

de “repatriar” escravos e políticas de embranquecimento. No entanto, essa foi a Lei possível<br />

num contexto de tensas disputas que anteciparam o fim do Brasil Império. Neste jogo de forças,<br />

de concessão em concessão, a Lei negociada não conseguiu atender totalmente aos sonhos dos<br />

abolicionistas mais conscientes, mas, forçava os escravocratas a libertarem seus escravos. 14<br />

De luta em luta, novas Leis vão configurando avanços importantes que visam restituir<br />

aos negros e afro-descendentes o direito à cidadania negada, legitimando saberes outrora<br />

desmerecidos. Como legitimar no dia a dia da escola uma cultura secularmente excluída?<br />

Quais as contribuições nas “áreas social, econômica e política” que o povo negro ou mestiço<br />

deixou para o Brasil? E principalmente, incorporar estes saberes no currículo escolar numa<br />

perspectiva de “alfabetizar enraizando” o sujeito?<br />

Relembrando estes e tantos outros aspectos de nossa história que somente agora<br />

começam a aparecer – mesmo de forma ainda insipiente - nos livros didáticos e currículos<br />

escolares, onde a lei 10.639/2003, que altera a Lei 9.394/ 96 institui a obrigatoriedade da<br />

13 Carla Caruso é escritora e pesquisadora, autora do livro “Zumbi, o último herói dos Palmares” (Editora Callis).<br />

Disponível em: www.popnews.wordpress.com/2007/05/<br />

14 Cartas recentemente reveladas registram inclusive o descontetamento da própria Princesa Isabel diante dos termos<br />

da lei que deveria assinar e algumas ações a favor dos negros recém libertos. Maiores informações disponível em:<br />

http://marconegro.blogspot.com/2006/05/polmica-carta-da-princesa-isabel.html<br />

XXIX


temática “História e Cultura Afro- Brasileira no currículo formal escolar”. Segue abaixo, os<br />

termos da referida lei 15 :<br />

Art. 1 o A Lei n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos<br />

seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:<br />

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,<br />

oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e<br />

Cultura Afro-Brasileira.<br />

§ 1 o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo<br />

incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos<br />

negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da<br />

sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas<br />

áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.<br />

§ 2 o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão<br />

ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas<br />

áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.<br />

§ 3 o (VETADO)"<br />

Art. 79-A. (VETADO)"<br />

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como<br />

‘Dia Nacional da Consciência Negra’."<br />

Art. 2 o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 16<br />

Esta nova demanda curricular, fruto de lutas e reivindicações sociais, começa a penetrar no<br />

cenário educacional brasileiro, provocando uma série de conflitos, tensões e resistências<br />

provocativas de mudanças e reorganização do conteúdo a ser ensinado em diversas disciplinas<br />

escolares.<br />

15 Brasília, 9 de Janeiro de 2003; 182 o da Independência e 115 o da República. Presidente Luiz Inácio da Silva.<br />

Ministro da Educação Cristovam Buarque.<br />

http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.639<br />

16 Atualmente, a Lei 10.639, foi revogada pela LEI Nº 11.645, DE 10 DE MARÇO DE 2008 que “Altera a Lei no<br />

9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as<br />

diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da<br />

temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena".<br />

Disponível em: http://www.mp.pe.gov.br/index.pl/gtlegislacao<br />

XXX


Entretanto, a não familiaridade do educador(ra) com o assunto, aliado as precárias<br />

condições de trabalho e falta de material didático específico, apresentam-se como um obstáculo<br />

para que tal lei seja realmente incorporada no cotidiano da escola de maneira a ajudar o menino<br />

e a menina negra, ou afro-descendente a valorizar suas raízes ancestrais. Algumas Secretarias<br />

de Educação preocupadas com a questão da formação do educador(ra) em relação a este<br />

assunto, passaram a oferecer cursos livres que pudessem auxiliar a implantação sistemática da<br />

recente lei e o educador(ra) diante de seu não saber se vê motivado (ou até mesmo forçado) a<br />

estudar e procurar materiais alternativos para resolver a questão. Entretanto, a des-construção<br />

de crenças em relação à inferioridade do negro ou afro-descendentes buscando a construção da<br />

valorização das contribuições que os negros deixaram marcadamente em nosso país - como<br />

salienta a lei - indica que ainda temos um longo caminho a percorrer. Isso sem falar na<br />

polêmica questão da religiosidade negra, assunto de difícil trato dentro e fora das escolas.<br />

Lembro-me de que uma vez, ouvi a opinião de uma professora sobre o porque não<br />

encontramos murais com desenhos de orixás africanos nas escolas, visto que é comum<br />

encontrarmos murais com alusão as religiões cristãs, principalmente na época do Natal, que é<br />

uma celebração cristã. Assim como também é comum encontrarmos professores(as) que<br />

ensinam, de maneira velada ou explícita, suas respectivas religiões (as católicas ou evangélicas<br />

geralmente) durante as aulas: rezam para começar o dia, rezam quando começam a merendar<br />

etc, obrigando os meninos e meninas muitas vezes a se submeterem a uma ideologia religiosa<br />

de que não fazem parte na vida real, a vida fora da escola. Para não parecerem como “um peixe<br />

fora d’água” aprendem desde cedo a silenciar seus saberes e acabam aparentemente vencidos<br />

pela ideologia cristã homogeneizante. Afirmo aparentemente, porque por diversas vezes em que<br />

lhes é oferecido alguma ruptura contra a ordem escolar vigente, suas falas insurgem deixando<br />

claro a diversidade de suas opções religiosas.<br />

Assim aconteceu certo dia, em que um menino, muito esperto mas, muito agitado<br />

também, começou a batucar na sala de aula. A perfeição de seu batuque me chamou a atenção e<br />

resolvi investigar. Disse-lhe que no dia seguinte, lhe traria uma surpresa e ele curioso chegou<br />

logo pela manhã lembrando-me do combinado. Foi então que lhe mostrei meu tambor e foi com<br />

aquele instrumento que eu e Willian passamos a interagir. No final do dia, ele veio e cochichou<br />

corajosamente no meu ouvido: - Professora, meu pai é Ogã!<br />

XXXI


Figura 2<br />

Da direita para a esquerda: Saiara, Raíssa, Alexandre, Moisés, Natália e Willian.<br />

Estas crianças participaram da última turma do Projeto Tangolomango no CIEP. Faziam parte<br />

da Turma do Papagaio no ano de 2005. Atualmente, estas crianças estão na 5º ano do Ensino<br />

Fundamental.<br />

Recentemente, quando voltei ao CIEP para ouvir algumas crianças que haviam<br />

participado do projeto Tangolomango reencontrei Willian e pude reviver esta experiência que<br />

se desdobrou em muitas atividades naquele ano escolar. Atividades estas possibilitadas pela<br />

quebra e ruptura com determinadas crenças escolares que buscava, através do projeto<br />

Tangolomango desconstruir. Vejamos um pedaço da entrevista que fala especificamente sobre<br />

este assunto:<br />

Marisa: - Você lembra que ele veio tocar aqui?<br />

Willian (11 anos): - Eu falei pra senhora, ai ele falo com a senhora e começo a tocar.<br />

Marisa: - Mas como que você falou que ele sabia tocar?<br />

Willian (11 anos): - Eu falei que ele sabia tocar que meu pai é “ogã”.<br />

Moises (12 anos): - Ele tocou o tambor.<br />

Marisa: - Mas você sabe por que eu convidei seu pai pra tocar aqui? Foi pra mostrar o que? É<br />

comum os pais virem à escola para mostrar o que fazem?<br />

Todos: - Não!!!<br />

Marisa: - Eu trouxe seu pai aqui pra ele mostra o que sabe fazer. Porque todo mundo sabe<br />

fazer alguma coisa...<br />

Moises (12 anos): - Meu pai faz a comida.<br />

Natália (12 anos): - Meu pai é pedreiro.<br />

Marisa: - Mas o que você sentiu quando seu pai veio aqui tocar?<br />

Willian (11 anos): - Eu fiquei feliz!<br />

Marisa: - E ser “ogã” é uma coisa valorizada? O que é ser “ogã”?<br />

Crianças: - Não sei.<br />

Willian (11 anos): - É tocar tambor na macumba.<br />

Marisa: - Isso. É quem toca tambor no Candomblé. E vocês lembram que nos já falamos em<br />

religião em nossas aulas?<br />

Natália (12 anos): - É que diziam que você era macumbeira, espírita, assim....<br />

XXXII


Marisa: Você lembra que a sua mãe veio reclamar comigo, Raíssa? O que eu disse em sala, que<br />

você não gostou e falou pra sua mãe?<br />

Raissa (12 anos): - Não lembro...<br />

Marisa: - Alguém lembra?<br />

Natália (12 anos): - Porque a senhora era espírita, ou ainda é, sei lá...<br />

Marisa: É, e eu tive que explicar a sua mãe que eu não tinha desrespeitado a sua religião, mas<br />

eu acho que a escola tem que estar aberta a mais de uma religião.<br />

Raissa (12 anos): - Eu não tenho nada contra isso não. Porque é assim, cada um tem sua<br />

religião, eu não tenho nada contra não.<br />

Natália (12 anos): - Ás vezes, quando eu a Saiara brigávamos, ela me chamava de macumbeira.<br />

Willian (11 anos): -Mas, Saiara porque você chamava ela de macumbeira se a sua família<br />

também é macumbeira?<br />

Moises (12 anos): - Eu acho que todo mundo tem que respeitar a religião do outro – finalizou<br />

Moises, que por sinal, tem nome bíblico. 17<br />

Aprofundando um pouco mais uma questão complexa que vai além do aparato legal,<br />

cabe investigar o que estas falas denunciam e que tais crenças ideológicas são construções<br />

históricas que vem de longa data. Na prática,como já foi mencionado anteriormente, o Brasil<br />

viveu uma política do “embranquecimento” logo após a abolição da escravatura, que deixou<br />

marcas negativas em relação à identidade dos negros e afro-descendentes, assim como a<br />

conseqüente desvalorização da cultura afro-brasileira, a qual a religião negra foi uma das<br />

expressões culturais mais combatida e discriminada. A Primeira República repetiu a política<br />

dos últimos anos do Império: voltou as costas para o povo negro, optando pela política de<br />

imigração de europeus em grande escala, causando encontros e desencontros culturais que<br />

repercutem em menor ou maior escala em nossas vidas até os dias de hoje. No livro de Helena<br />

Bomeny “Os intelectuais da Educação” a autora afirma que:<br />

A vinda de imigrantes brancos, mais preparados, letrados, foi uma saída<br />

vislumbrada pela elite política e econômica para“higienizar” a sociedade<br />

brasileira. A miscigenação poderia se constituir em uma chance de “limpeza”<br />

dos brasileiros marcados pela cor e pela miséria social. (BOMENY,2001:21).<br />

17 Entrevista realizada no dia 28/02/2008 no CIEP Posseiro Mário Vaz.<br />

XXXIII


A política de embranquecimento aparece como uma alternativa para a continuidade da<br />

exclusão do negro na sociedade elitista brasileira. Uma população negra que os poderosos<br />

teimavam em invisibilizar, fazendo-a acreditar - através da palavra que forma, deforma,<br />

informa e transforma - em sua inferioridade e incapacidade de ocupar novos lugares sociais em<br />

uma sociedade que se preparava para a industrialização. E foi a partir destes encontros e/ou<br />

desencontros que foram configurando aos poucos as identidades negras brasileiras e seus<br />

respectivos lugares sociais também: os morros e as favelas cariocas.<br />

Tais medidas mascaravam interesses econômicos de centralização do capital e poder,<br />

que ainda vigoram metamorfoseados nos dias atuais. Continuamos tendo uma elite tradicional e<br />

uma neo-elite populista que despreza e desmerece a sabedoria do povo. Na prática, temos uma<br />

política de embranquecimento que começou no séc. XX e que atravessa, até hoje todos os<br />

níveis da sociedade, mas é lá, nas classes populares, que ela mostra seu lado mais perverso e<br />

ideológico. Ou seja, o oprimido carrega o opressor, como sinaliza Freire, acabando por<br />

incorporar à sua identidade negra os vários adjetivos pejorativos e preconceituosos que lhe<br />

foram atribuídos pelo branco e ressoam em nosso imaginário até hoje. Isso inclui as<br />

características fenotípicas como: cabelo “ruim” ou “duro”, nariz de “preto” etc; mas também<br />

aspectos subjetivos que eram desqualificados: “negro quando não suja na entrada, suja na<br />

saída”; ou desmerecidos “trabalho de preto”. Sem contar o recorrente argumento para a<br />

justificativa da pobreza e miséria que milhares de negros ou quase negros vivem. Mesmo um<br />

aparente elogio, mascarava um preconceito: “preto de alma branca”; “é preto, mas é tão<br />

limpinho” etc. “ isso é serviço de preto” ou seja, isso é serviço mal feito. Vários são os estudos<br />

sobre as ressonâncias deste “racismo velado” que encontramos de forma recorrente nas falas de<br />

sujeitos concretos em nossa sociedade:<br />

Assim como o seu oposto “branco de alma negra” é usado para pessoas<br />

brancas que se portam mal, ou seja, se portam como “negros”, ditos inferiores<br />

e desonestos. Uma característica comumente atribuída aos negros é a da<br />

incapacidade de realizar bem uma tarefa, a de fazer um bom trabalho de tal<br />

maneira que seja “digna de um branco”, ou seja, a de fazer um “serviço de<br />

preto” ou de sua variante: “só podia ser preto”. Esses ditados usados ,quando<br />

alguém faz um trabalho mal feito ,também têm sua origem na época da<br />

XXXIV


escravidão, quando os negros eram obrigados a realizar tarefas diversas<br />

debaixo da chibata. Como eram punidos sempre, eles se voltavam contra seus<br />

senhores e muitas vezes sabotavam a produtividade do branco. O “serviço de<br />

preto” era uma forma de resistência e protesto, uma forma de se opor ao poder<br />

senhorial, por isso os escravos não realizavam nada além do necessário, e<br />

ganharam a fama de serem “preguiçosos”, “incompetentes” e “incapazes”.<br />

Quando um branco não faz um trabalho à altura das expectativas, além de fazer<br />

um “serviço de preto”, ele pode estar fazendo esse serviço “nas coxas”. De<br />

origem colonial esse dito popular é usado para designar um trabalho imperfeito<br />

ou sem cuidado. Imperfeitas como as telhas de formas arredondadas das casas<br />

do Brasil colonial que, para fabricá-las , os escravos tinham que modelá-las em<br />

suas coxas, para dar um formato de canal. Como ficavam irregulares e pouco<br />

uniformes, o telhado ficava torto e mal feito. “preto quando não suja na entrada<br />

suja na saída”. Imaginava-se que o escravo acabaria fazendo algo errado,<br />

devido a sua “incompetência”, por ser “inferior” ou “preguiçoso”. E também<br />

por serem considerados sujos, até mesmo devido às condições em que viviam.<br />

"Preto não pode entrar na gaiola!”, ou seja, para os brancos racistas, os negros<br />

não podem pertencer ao grupo seleto de brancos ricos, capazes e trabalhadores,<br />

pois são social e intelectualmente inferiores, incapazes. Por se sentirem à<br />

margem da sociedade, algumas vezes os negros se conformam com sua situação<br />

e deixam muitas questões de lado, afinal “eles que são brancos que se<br />

entendam”. A versão mais aceita do surgimento desse ditado é do século XVIII,<br />

quando um capitão de regimento, mulato, teve uma discussão com um de seus<br />

comandados, também mulato, e fez queixa a seu superior, um oficial português<br />

branco. O capitão reivindicava uma punição ao soldado que o desrespeitara.<br />

Seu superior português respondeu com a seguinte frase “vocês que são pardos<br />

que se entendam”. O oficial recorreu ao vice-rei do Brasil na época, dom Luís<br />

de Vasconcelos, que mandou prender o oficial português. Sendo essa uma das<br />

primeiras punições contra o racismo no Brasil. Ao longo do tempo a expressão<br />

se transformou no que é usada hoje “eles que são brancos que se entendam”,<br />

quando alguém não quer tomar partido em alguma situação. (Fábia Carla<br />

Rossoni) 18<br />

A citação acima, apesar de longa, demonstra claramente as ressonâncias de nossa<br />

herança escravista presentes no dia-a-dia de nossa sociedade. Crenças enraizadas que se<br />

revelam nas formas mais “cordiais” possíveis, tornando-se quase invisível, mas estão lá,<br />

presentes na voz de sujeitos encarnados, que consciente ou inconscientemente, continuam<br />

reproduzindo e produzindo uma cultura racista. Por acabar naturalizando a inferioridade dos<br />

negros e afro-descendentes em nosso espírito coletivo, é potencialmente perigoso e nocivo à<br />

sua formação identitária.<br />

18 Disponível em: http://fabiomayer.blogspot.com/2007<br />

XXXV


Pode parecer desnecessário, repetir o já sabido, mas trata-se de uma reiteração<br />

necessária. Algumas destas histórias muitas vezes adormecidas, onde as palavras raça,<br />

miscigenação e preconceito fazem parte do cenário de discussões políticas e tomadas de<br />

decisões sócio-educativas em nosso país, podem ajudar a compreender melhor o “por quê” em<br />

pleno século XXI, ainda nos depararmos com a manchete de jornal a seguir:<br />

Mulher é presa acusada de racismo em cinema da Barra 19<br />

Ela chamou vendedora de negrinha e disse que ela devia estar na Rocinha<br />

Rio - Uma acusação de racismo foi parar na delegacia, na noite de quarta-feira,<br />

na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O crime aconteceu no cinema do<br />

Shopping Downtown, quando a vítima, que trabalha como atendente, alega ter<br />

sido chamada de "negrinha" pela produtora Ana Cristina de Paiva, de 40 anos,<br />

que acabou presa. Ela vai responder pelo crime de injúria por preconceito<br />

racial, cuja pena pode chegar a três anos de prisão. De acordo com a vítima,<br />

que preferiu não se identificar, e com testemunhas, a confusão começou quando<br />

Ana Cristina entregou o cartão de crédito para pagar por pipocas que havia<br />

comprado.<br />

O pagamento não foi autorizado. Eu informei e ela disse que eu é que não<br />

estava sabendo usar o equipamento. Eu disse, então, para que ela mesma<br />

tentasse, já que pensava que eu não sabia trabalhar. Ela ficou furiosa, quis<br />

passar para o lado de dentro do balcão para me bater e disse que eu era uma<br />

negrinha e que devia estar morando na Rocinha", contou a jovem(...)<br />

Para a vítima, a sensação foi de constrangimento. "Não pensei que isso fosse<br />

acontecer comigo. Ela ameaçou me bater e disse que negrinha tem que morrer<br />

de trabalhar”, lembrou.<br />

O marido de Ana Cristina, que não teve o nome revelado, defendeu a mulher:<br />

"Chamar uma negrinha de negrinha e um crioulo de crioulo é crime? Como é<br />

que eu diferencio? Acho que isso é síndrome de novela", comentou. Já a<br />

advogada de Ana Cristina não quis comentar o caso.<br />

No site de discussão onde fui reler a notícia, encontrei 122 comentários. Optei por<br />

recolher alguns como amostragem da discussão de racismo e preconceito. As contribuições<br />

abaixo, longe de encerrar o assunto, o problematizam. Através das falas escolhidas podemos<br />

buscar compreender melhor as contradições de uma sociedade de herança escravista que<br />

apresenta dificuldades crônicas de olhar e ver que a pretensa inferioridade dos negros e<br />

19 Por Marcelo Bastos Disponível em: http://forum.outerspace.com.br /Disponível também no Jornal o Globo do dia<br />

24/01/2008.<br />

XXXVI


mestiços vem de uma longa construção histórica, e está presente como assunto “mal resolvido”<br />

até os dias de hoje. Vamos por partes:<br />

Comentário 1 - Agora deixa eu entender, a atendente ficou chateada por ter<br />

sido chamada de "negrinha" ou por ter sido chamada de "favelada" ou os dois<br />

??<br />

Comentário 2- Você leu o título do tópico? Só porque a atendente é negra a<br />

mulher disse que era da Rocinha, que não poderia ser da Barra...Cara isso é<br />

nojento. É coisa de gente que vê a sociedade toda dividida entre quem é como<br />

eles e quem é inferior. Ela não tinha nada que falar uma merda dessas, não<br />

tinha motivo nenhum pra ela vir com esse comentário racista. Aposto que na<br />

cabeça dela ela "apelou"... chegou uma hora da discussão em que ela quis botar<br />

a atendente no lugar dela... deve ter tentado "lembrar" quem era quem ali...<br />

Se pedissem pra ela descrever a atendente e ela dissesse "ela é negra" não teria<br />

problema nenhum. "Negro" só é ofensa quando se dá a entender uma conotação<br />

ruim nisso... e o problema nesse caso não é dizer que a pessoa é negra, mas<br />

caracterizar isso como ofensa (e aí o problema não é a ofensa em si, mas o fato<br />

de você dizer que a cor da pele da pessoa é uma coisa ruim).<br />

Comentário 3 – Muitos dos imigrantes europeus foram literalmente expulsos da<br />

terra natal e explorados aqui no Brasil, os japoneses também, foram<br />

literalmente expulsos da terra deles pela guerra e chegaram aqui como os<br />

demais imigrantes só com a roupa do corpo e foram explorados no Brasil,<br />

escravidão de 500 anos atrás pra mim não é desculpa válida. Sem falar que os<br />

judeus foram escravizados também em épocas remotas, e também sofreram no<br />

nazismo e veja como eles estão hoje!! o próprio branco também foi explorado e<br />

escravizado por assim dizer na Europa no período feudal.<br />

Comentário 4 - Cara, se você acha que o passado histórico desses exemplos<br />

citados, tem a mesma importância para construção do papel social atual, como<br />

tem o passado histórico do negro, minha discussão acaba aqui.<br />

As imigrações citadas foram para suprir justamente a mão de obra escrava, que<br />

extinta tornava o negro caro e pouco eficaz no seu trabalho. Imigração<br />

totalmente incentivada pelo governo brasileiro, e que diferentemente do que<br />

aconteceu no período de escravidão, os imigrantes podiam manter seus<br />

costumes culturais e religiosos. E muitos desses imigrantes mais tarde se<br />

tornavam donos das terras onde trabalhavam, principalmente japoneses e<br />

italianos. Essa atitude de governo, deixou o negro a margem da sociedade, e até<br />

hoje reflete na sua difícil inclusão no mercado de trabalho.<br />

Cara como já disse não tentei falar que era certo ou errado, tentei mostrar uma<br />

face da moeda. Mas se você acha que o passado histórico do negro não traz<br />

dificuldades para sua vivência nos dias de hoje não posso fazer nada. E não<br />

XXXVII


estou fazendo discurso de coitado, falando que o negro deve ter inúmeros<br />

privilégios. Só mostro que o racismo existe, tanto de forma grotesca como<br />

velado.<br />

No episódio racista noticiado, para ofender a balconista, não bastou apenas chamá-la<br />

pejorativamente de “negrinha”. A empresária foi mais incisiva, afirmando que aquele não era<br />

“seu lugar de pertencimento” e que ela deveria estar na favela da Rocinha, uma das maiores<br />

favelas do mundo. Terminando o quadro, ela ameaçou “bater” na balconista dizendo que ela<br />

deveria “morrer de trabalhar”. Parafraseando os filmes de ficção, poderíamos dizer, que neste<br />

caso, qualquer semelhança com o período da escravidão é “mera coincidência”? Onde estão os<br />

“pelourinhos” da contemporaneidade?<br />

Esta é uma questão central para esta pesquisa também: qual lugar destinado aos negros e<br />

pobres em nossa sociedade? E a escola, que função cumpre, seja na manutenção de uma<br />

hierarquia dos “lugares de pertencimentos” impostos historicamente, seja na subversão de um<br />

modelo de subalternização que cumpre desconstruir?<br />

Voltando para o arenoso território escolar, como se dão os embates racistas nas escolas?<br />

Como lidamos com estas questões no dia-a-dia escolar?<br />

Outro comentário (o quinto entre os que recolhemos) põe em questão o conceito de<br />

raça, indiciando o quanto somos todos minimamente descendentes da “mãe” África, que como<br />

nos fala os versos da canção “é mãe solteira, e tem que fazer mamadeira todo dia, além de<br />

trabalhar como empacotadeira nas casas Bahia”. 20<br />

Comentário 5 - se brincar essa mulher "racista" deveria ter mais sangue<br />

africano que a própria negra...<br />

A questão biológica levantada na fala acima, é algo importante de ser discutido. A<br />

suspeita sobre “o quanto de “sangue africano” poderia ou não ter a empresária branca procede.<br />

O discurso científico já não respalda o mundo eugenista dividido em raças do séc. XIX - em<br />

20 “Mama África” de Chico César Disponível em: http://www2.uol.com.br/cante/lyrics/Chico_Cesar<br />

XXXVIII


que a idéia de evolução propaga uma série de intolerâncias em relação as diferenças entre os<br />

homens. Através da própria ciência que vem fazendo importantes descobertas em relação a<br />

genética humana e nosso DNA, os cientistas chegaram a conclusão de que somos uma raça só,<br />

a raça humana. E mais, de que no Brasil especificamente falando, 87% da população tem mais<br />

de 10% de ancestralidade africana, o que levou a desconcertante revelação, para alguns, de que<br />

existem negros com ancestralidade genômica majoritariamente européia e brancos com<br />

ancestralidade genômica majoritariamente africana. Somos uma mistura, como podemos<br />

observar no texto retirado da site do Ministério da Ciência e Tecnologia abaixo:<br />

O DNA do brasileiro é uma história de bastardia. A bastardia cultural que,<br />

segundo o lingüista Carlos Vogt, permeou o sofrido percurso do ver-se a si<br />

próprio, tem um registro indelével em sua ancestralidade. O médico-geneticista<br />

Sérgio Danilo Junho Pena coordenou um estudo na Universidade Federal de<br />

Minas Gerais para definir o DNA do brasileiro. A bastardia está lá,<br />

indiscutível: pela linhagem paterna, o brasileiro é filho de europeu; pela<br />

linhagem materna, aproximadamente 60% dos brancos têm ancestralidade índia<br />

ou negra.<br />

Então, a genética chegou à "Casa Grande e Senzala", mas não pela porta da<br />

casa grande, do brasileiro cordial cantado em verso e prosa pela sociologia<br />

brasileira do começo do século passado, mas pela da senzala."É uma<br />

comprovação da bastardia e, mais que isso, de uma história de opressão social<br />

do português dono do engenho, predador de africanas e ameríndias(...)<br />

Ele e sua equipe restringiram a pesquisa a uma amostra de 200 brasileiros<br />

brancos, em todo o país, entre universitários e pacientes que se submeteram a<br />

testes de paternidade. Um universo de classe média e ricos de pele branca. Eles<br />

também têm um pé na senzala, por parte de mãe. 21<br />

Mas, quotidianamente, percebemos que estas descobertas ainda se mostram insipientes<br />

em relação a séculos e séculos de exclusão e construção do sentimento de inferioridade dos<br />

negros em nossa sociedade e por isso, ainda acontecem de maneira recorrente cenas de racismo<br />

e preconceito, como a da balconista do cinema, trazendo para o palco das discussões visões de<br />

mundo tão divergentes.<br />

21 Site do Ministério da Ciência e Tecnologia. Disponível em: http://agenciact.mct.gov.br/index<br />

XXXIX


Para Gilberto Freyre “o Brasil resolveu a questão racial com a miscigenação”. Há<br />

controvérsias. Vejamos a opinião de outros pensadores:<br />

No Brasil, as idéias racistas adquiriram uma variante própria, a teoria do<br />

branqueamento. De acordo com as teorias racistas européias, o Brasil era um<br />

país fadado ao fracasso. O sangue negro havia contaminado irremediavelmente<br />

a população. O processo de mestiçagem maculara o sangue branco no país,<br />

que, aliás, por sua vertente portuguesa, misturada com árabes, judeus e negros,<br />

já não era de estirpe superior. De acordo com essas teorias, o mestiço era<br />

biologicamente inferior às raças puras , tanto à branca quanto à negra.(...) Os<br />

brasileiros, de um modo em geral, eram nitidamente mestiços, portanto<br />

destinados ao insucesso pelas leis científicas da evolução racial e<br />

histórica”.(SALLES e SOARES, 2005:115).<br />

Poderíamos nos perguntar: Como proceder ao des-racismo no mundo? Como por fim ao<br />

preconceito e a intolerância em relação às diferenças culturais? E qual o papel da escola em<br />

relação a isto?<br />

Comentários 6 - Porque se fosse o contrário não teria todo esse alvoroço?<br />

Isso que é o pior tipo racismo, criar leis para proteger negros como se eles<br />

fossem inferiores.<br />

Comentário 7 - Não, as leis são para que os brancos não se achem superiores.<br />

Aprofundando a questão do sentimento de inferioridade em relação à identidade negra,<br />

percebemos ressonâncias históricas melhor percebidas na citação abaixo:<br />

A descrição do negro como lascivo, lidibinoso, violento, beberrão, imoral ganha as páginas dos jornais compondo a imagem de alguém que<br />

não se pode confiar. Condenavam o samba e a capoeira como práticas selvagens e que terminavam em desordem e violência. Acusavam os<br />

negros por praticarem bruxarias, por não possuírem espírito familiar sendo as mulheres sensuais e infiéis e os maridos violentos, retratos da<br />

falta de estrutura psíquica e social do negro.(SANTOS,2005:131).<br />

A reportagem do jornal descrita anteriormente expressa uma visão: a visão do<br />

colonizador ou do opressor em relação ao negro. Chico Buarque tem uma cantiga que diz “a<br />

dor da gente não sai no jornal” 22 . Mas o que sai nos jornais, nas revistas, nas diferentes formas<br />

de propagandas espalhadas pela cidade, nos afeta e nos informa, ou (de)forma.<br />

22 “ Notícia de Jornal” de Chico Buarque de Holanda.<br />

XL


Falamos de um imaginário construído a partir da visão do opressor sobre o oprimido.<br />

Podemos compreender melhor esta complicada questão da construção identitária dos negros e<br />

afro-descendentes, tendo como parâmetro a letra da música “100 anos de liberdade” da Escola<br />

de Samba da Mangueira, cujo um dos versos canta reclama: Moço, não se esqueça que o negro<br />

também construiu as riquezas do nosso Brasil.<br />

A frase, de certa forma, legitima o trabalho dos negros para fazer valer que, nas<br />

fazendas de açúcar e café, nas minas de ouro e diamante, nas construções das Igrejas e casarios<br />

e tudo o mais, o negro escravizado foi o grande construtor das riquezas de nosso país.<br />

Isso vai de encontro à ideologia recorrente que encontramos muitas vezes em nosso dia<br />

a dia, que quer nos fazer acreditar que o negro é preguiçoso, que não gosta de trabalhar, é<br />

indolente e tantos outros rótulos negativos que estão incrustados em nosso imaginário.<br />

Entretanto, ainda me inquieta a palavra “também” que me soa como um atenuante, quase<br />

“pedindo licença ao moço branco” para dizer e contar o seu lado da história. Por outro lado,<br />

reconheço que pode indicar também uma negociação: contemporaneamente não podemos nos<br />

arriscar a praticar um racismo “às avessas” discriminando o trabalho dos brancos.<br />

Em contraponto, no ponto de Jongo abaixo, o compositor Nei Lopes não hesita em dar<br />

ao negro o lugar de merecido destaque e valorização de seus trabalhos na construção econômica<br />

deste país:<br />

Auê, meu irmão café!<br />

Auê, meu irmão café!<br />

Mesmo usados, moídos, pilados,<br />

Vendidos, trocados, estamos de pé:<br />

Olha nós aí, meu irmão café!<br />

Meu passado é africano<br />

Teu passado também é.<br />

Nossa cor é tão escura<br />

Quanto chão de massapé.<br />

XLI


Amargando igual mistura<br />

De cachaça com fernet<br />

Desde o tempo que ainda havia<br />

Cadeirinha e landolé<br />

Fomos nós que demos duro<br />

Pro país ficar de pé! (Nei Lopes em “Jongo do Irmão Café”)<br />

Como a letra anuncia, “mesmo usados, moídos, pilados, vendidos, trocados” (nós) o<br />

povo negro “estamos de pé”. E brincando com as palavras o autor avança, afirmando que<br />

“fomos nós que demos duro pro país ficar de pé!”. E isso, o menino e a menina afro-<br />

descendentes, negros ou negras precisam saber, precisam escutar, precisam estudar na escola,<br />

que é o lugar legitimado pela sociedade como lugar de “aprender”. Assim, terá a possibilidade<br />

de ir aos poucos transformando sua auto-imagem negativa, em positiva, passando a não mais<br />

“envergonhar-se” de sua cor e herança hereditária, seja ela genética ou cultural. Pelo contrário,<br />

passará a ter orgulho da saga de seus ascendentes passando este mesmo sentimento para seus<br />

descendentes no futuro. Retomo as falas das crianças que participaram da última turma do<br />

projeto comigo em que aparecem claramente os sentimentos contraditórios das crianças em<br />

relação a seus traços fenotipicamente africanos e seus sentimentos de inferioridade construído a<br />

partir do convívio com a sociedade:<br />

Marisa: - Queria saber como é que vocês percebiam as historias africanas que eu contava pra<br />

vocês...<br />

Natália (12 anos): - A senhora ensinou pra gente que não pode ter racismo.<br />

Marisa: - Do que mais vocês se lembram? Saiara, como você se vê agora? Você se acha<br />

bonita?<br />

Saiara (12 anos): - Não!<br />

Natália (12 anos): - Você tem que se achar bonita, se não ninguém vai achar!<br />

Marisa: - Mas você não se acha bonita por causa do seu cabelo? (Saiara balança a cabeça que<br />

sim). É, é bem complicada essa história de cabelo. Lembra quando a gente se penteava na<br />

sala??<br />

Moises (12 anos): - A gente fazia um monte de negocio na sala...<br />

Natália (12 anos): - A gente trazia maquiagem.<br />

Marisa: Saiara, você é uma negra muito bonita, sabia? (Saiara sorri e eu aproveito e tiro a foto)<br />

Natália (12 anos): - Mas ela não se cuida.<br />

Marisa: - Você acha que a Saiara não se cuida?<br />

Natália (12 anos): - Não, porque se ela se cuidasse, ela ia todo dia pentear o cabelo, não ia<br />

deixar esses troços brancos no cabelo. ( Natália estava se referindo a dois pozinhos brancos do<br />

cobertor que haviam ficado grudados no cabelo de Saiara).<br />

Marisa:- Mas o cabelo da Saiara penteia de um outro jeito.<br />

XLII


Raissa (12 anos): - O cabelo dela penteia de um jeito diferente... não é igual ao nosso não.<br />

Natália (12 anos): - Eu penteio de um jeito só, com pente e com creme.<br />

Marisa: -Mas o dela não tem química, o seu cabelo está com química, está alisado. O dela não<br />

tem.<br />

Figura 3<br />

Saiara (12 anos) fala sobre a dificuldade de se achar bonita, tendo traços fenotípicos africanos<br />

tão fortes. Na foto acima, Saiara mostra seu sorriso negro que lembra a cantiga que sempre<br />

cantava em sala com a meninada: “Um sorriso negro/ um abraço negro / traz ...felicidade/<br />

Negro sem emprego/ fica sem sossego/Negro é a raiz da liberdade...” 23<br />

Figura 4<br />

Natália (12 anos) aparece na foto com os cabelos presos para “não ficar alto” como ela mesma<br />

diz.<br />

Natália (12 anos): - Mas mentir ela é feio! Ela fala que ela tinha o cabelo até a “bunda”<br />

cacheado. É mentira!<br />

Raissa (12 anos): - Não é que eu ache ela feia. Ela se acha feia, mas eu não acho. Mas ela<br />

tinha que se cuidar mais!<br />

23 “Um sorriso Negro” de D. Ivone Lara. Disponível em: http://www.brasileirinho.mus.br/artigos/ivonelara.htm Dia<br />

28/02/08<br />

XLIII


Marisa: - Mas eu acho que a Saiara se cuida. Eu acho que essa coisa de beleza tem duas<br />

coisas: uma é estar limpo, e a outra é se enfeitar. Porque não adianta ter um cabelo liso<br />

natural ou alisado e está sujo, fedido. E outra coisa que a gente já discutiu é que a beleza do<br />

negro é diferente da beleza do branco. É outro jeito. Como que vocês vêem o cabelo das<br />

pessoas na televisão?<br />

Moises (12 anos): - Arrumados.<br />

Marisa:- Com o cabelo de que jeito???<br />

Moises (12 anos): - Penteado, as vezes pro alto.<br />

Willian (11 anos): - Penteadinho pra trás.<br />

Marisa: - Penteadinho, baixinho, alisado...<br />

Willian (11 anos): - Mas tem gente como Bob Marley...<br />

Marisa: - Mas é um ou outro! Como a gente vê os negros na novela, por exemplo?<br />

Willian (11 anos): - Na cozinha, na favela, trabalhando. Não tem um negro arrumado.<br />

Moises (12 anos): - Tem na novela das oito, aquela “mulé ricona” preta que dói! ( todos falam<br />

ao mesmo tempo, mas o assunto continua em torno da questão do embranquecimento e<br />

escravidão)<br />

Willian (11 anos): - Não viu a escrava Isaura? Ela é branca, mas é escrava.<br />

Moises (12 anos): - Mas é porque ela é filha de branco com preto.<br />

Willian (11 anos): - É metadinha. Todo mundo aqui é metadinha! 24<br />

Gostei muito da expressão “metadinha” utilizada por Willian. E este menino tem razão:<br />

somos um povo híbrido, misturado e plural e esta questão profundamente imbricada na visão de<br />

mundo e de homem, costura por diversas vezes, a presente pesquisa. As falas acima revelam<br />

conflitos internos sobre a beleza e estética negra e a partir destas denúncias infantis, podemos<br />

nos perguntar: O que fazer para não reproduzir tais ideologias e trabalhar a diversidade étnica<br />

na sala de aula?<br />

1.2 – Sozinho eu não fico, nem hei de ficar<br />

Encontros e desencontros corporais e culturais que acontecem na escola<br />

Voltando a atenção para as palavras encontros e desencontros culturais que acontecem<br />

no interior das escolas, no livro “Dialética da colonização” Alfredo BOSI discute a afirmativa<br />

de Alphonse Dupront de que “há encontros que matam” logo no 1º capítulo do livro intitulado<br />

24 Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008<br />

XLIV


“Colônia, culto e cultura”. Proponho avançar nesta emblemática discussão sobre as<br />

complexidades que tais invasões e interações culturais propiciavam ao longo de vários<br />

encontros e desencontros culturais de nossa história, tendo esta afirmativa como ponto de<br />

partida.<br />

Penso que quando falamos em “morte” a partir de “encontros ou desencontros culturais”<br />

talvez a primeira idéia que nos vem à mente, seria a discussão em duas perspectivas: a morte<br />

física e a morte simbólica. Na trajetória histórica brasileira esta afirmativa procede: desde o<br />

período da colonização no Brasil, os encontros culturais efetivamente mataram: índios em<br />

primeiro plano, negros em segundo e posteriormente, pobres e mestiços.<br />

Apesar de saber da incompletude, insuficiência e prováveis armadilhas de toda e<br />

qualquer generalização, inquieto-me utopicamente em buscar compreender este universo tão<br />

complexo de imbricadas relações sociais constituídas ao longo da história da Educação no<br />

Brasil, acentuando aqueles períodos em que algumas rupturas paradigmáticas e políticas<br />

impulsionaram tensões e mudanças no arenoso território escolar.<br />

Bueno relata:<br />

Para rememorar um pouco desta história, em seu livro “Brasil: uma história” Eduardo<br />

Jamais se saberá com certeza, mas quando os portugueses chegaram à Bahia os<br />

índios brasileiros somavam mais de dois milhões – quase três, segundo os<br />

autores. Mas, no alvorecer do Terceiro Milênio da Era Cristã, não passavam de<br />

325.652 – menos do que dois estádios do maracanã lotados. Foram dizimados<br />

por gripes, sarampo e varíola; escravizados aos milhares e exterminados pelo<br />

avanço da civilização e pelas guerras intertribais em geral, estimuladas pelos<br />

colonizadores europeus.(BUENO, 2003: 25)<br />

XLV


Já sobre os negros escravizados, encontramos o registro de que mais de três milhões de<br />

africanos morreram nos porões dos navios negreiros durante a travessia do Atlântico por mais<br />

de trezentos anos. Esta é uma nação erguida por seis milhões de braços escravos – e sobre<br />

três milhões de cadáveres. (Bueno, 2003:112). Bosi também comenta sobre o assunto nos<br />

dando uma amostra da dimensão dos números de negros escravizados que, em apenas 20 anos,<br />

o tráfico “trouxe aos engenhos e às fazendas cerca de 700 mil africanos entre 1830 e 1850<br />

(BOSI, 1992:196). A título de curiosidade, este pequeno recorte histórico aconteceu como<br />

relatado anteriormente, em plena vigência da pirataria, pois o acordo com a Inglaterra sobre a<br />

não comercialização de escravos já havia sido assinado em 1826. Prevalecia, assim, um regime<br />

escravocrata sustentado pelas autoridades locais que, se dizendo liberais, faziam “vista grossa”<br />

para a comercialização de escravos então trocados por café, ao desembarcarem dos navios<br />

negreiros.<br />

Outro historiador, Francisco Alencar em “História da Sociedade Brasileira”, continua<br />

nos alertando sobre a dimensão dos fatos históricos referentes ao contingente de população<br />

negra africana escravizada. Diz o autor:“Em quatro séculos, do XV ao XIX , a África perdeu,<br />

entre escravizados e mortos 65 a 75 milhões de pessoas, e estas constituíam uma parte<br />

selecionada da população, uma vez que ninguém, normalmente escraviza os velhos, os<br />

aleijados, os doentes. Segundo estimativas de Afonso Taunay, entraram no Brasil nos séculos<br />

XVI, XVII e XVIII, respectivamente, 100.000, 600.000 e 1.300.000 negros<br />

escravizados”.(ALENCAR, 1981:26) Uma escravidão que perdurou mais de trezentos anos<br />

deixando marcas profundas em nosso imaginário social.<br />

Por isso, com o devido desconto pelas diferenças que cada contexto histórico-social<br />

apresenta, lanço mão agora, de um pequeno “relicário” de lembranças construídas em sala de<br />

XLVI


aula que irão, como um mosaico colorido, constituir um suporte importante para o escopo<br />

teórico desta pesquisa.<br />

Através de fatos históricos negados, ou silenciados pelo currículo escolar, íamos através<br />

do desenvolvimento do projeto Tangolomango, reescrevendo e escrevendo de maneira mais<br />

consciente nossas próprias histórias. O trabalho de alfabetização se dava a partir dos encontros<br />

e desencontros culturais que iam paulatinamente construindo um novo currículo escolar<br />

condizente com as necessidades e características do universo infantil daquelas crianças.<br />

Crispim, menino negro que participou do Projeto Tangolomango em 2003, tinha muita<br />

resistência a aprender a ler e escrever, é um exemplo de como estas questões tencionavam<br />

nosso universo escolar. Sua recusa tinha justificativa: tinha 12 anos e ainda não havia<br />

conseguido alfabetizar-se. Sua postura era de quem estava quase desistindo e, se não fosse por<br />

sua avó que o incentivava, provavelmente já não mais estaria ali. Crispim , apesar de menino<br />

ainda, já havia passado por várias situações de violência e exclusão social, sendo que o mais<br />

grave, havia presenciado dentro de sua própria família: havia perdido o pai muito cedo e tinha<br />

visto seu padrasto abusar sexualmente de sua irmã e por este motivo, fugira de casa, morando<br />

tanto ele quanto a irmã com outros parentes.<br />

XLVII


Figura 5<br />

O desenho realizado por Crispim (12 anos).Uma representação infantil denunciadora<br />

de fatos importantes de nossa subjetividade identitária. Projeto Tangolomango/Turma do<br />

Parangolé/CIEP/ 2003<br />

Gostaria de ressaltar que somente agora, reunindo o material para esta pesquisa, pude<br />

perceber que seu nome está inserido na frase que escolhemos para fazer o desenho e abrir nossa<br />

roda de discussão naquele dia.<br />

Buscando uma melhor compreensão sobre o que Crispim queria anunciar ao inserir-se<br />

neste contexto de escravidão, começo agora a me perguntar: qual o nível de identificação de<br />

Crispim com o exercício proposto? Foi apenas uma coincidência ou podemos ousar pensar que<br />

este trabalho possibilitou a Crispim um envolvimento e um nível de subjetividade tamanho, que<br />

ao escrever sobre o assunto, este menino se vê também, de algum modo aprisionado e ansiando<br />

por liberdade?<br />

Os traços fortes de sua escrita nos levam a re-pensar o quanto este exercício pode ter<br />

envolvido este menino, que sendo negro e pobre e ainda analfabeto, lutava com as armas que<br />

tinha para sobrevier de uma maneira mais digna, mostrando-se a cada dia mais a sua revolta e<br />

insubmissão ás regras e limites impostos pela escola e pela vida ao seu redor.<br />

XLVIII


Apesar dos esforços de ajuda-lo a refletir sobre a condição subalterna em que vivia e as<br />

possibilidades de transformação social que a aprendizagem da leitura e escrita poderiam lhe<br />

trazer, Crispim acabou progredindo muito pouco em seus estudos e no ano seguinte, mesmo<br />

tendo saído da Turma de Progressão, soube que um pouco mais tarde, abandonou a escola.<br />

Retomando o relato de algumas atividades vividas em sala de aula, gostaria de enfatizar<br />

que a estratégia de utilizarmos as letras das músicas como suporte para politizarmos o ato de<br />

aprender a ler e escrever fazia parte de minha proposta educativa e por isso, estarei por várias<br />

vezes, me apropriando desta e de outras maneiras de anunciar os paradigmas conceituais que<br />

me proponho a discutir.<br />

A canção que inspirou tanto o desenho de Crispim, quanto o trabalho plástico abaixo,<br />

chama-se “Yaya Massemba” 25 e começa com o barulho forte de uma porta batendo. Lembro-<br />

me que esta era uma canção que me emocionava, e por isso, resolvi usar com as crianças em<br />

sala.<br />

Recorria freqüentemente à emoção como estratégia para trabalhar os conteúdos<br />

curriculares propostos. Assumia de diferentes maneiras, a necessidade de se humanizar a<br />

educação, criando uma sintonia que ia “de coração para coração”. A letra da música é<br />

envolvente porque evoca justiça e traz como lema o seguinte refrão: “vou aprender a ler, para<br />

ensinar meus camaradas”. Como continuar descrevendo a música? O que fica para mim, é a<br />

sensação da noite fria deste porão retratado no desenho de Crispim, da viagem longa, do<br />

batuque das ondas batendo no casco do navio, dos raios e tempestades e do coração que bate no<br />

“fundo do cativeiro”.<br />

25 “ YAYA MASSEMBA” de Roberto Mendes e Capinam . Musica interpretada por Maria Bethânia no disco<br />

“Brasileirinho” em 2003.<br />

XLIX


Figura 6<br />

Representação do navio negreiro construído pelas crianças em sala.<br />

Tangolomango/Turma do Tangolomango/ CIEP/2002<br />

Por isso a música, a dança, a festa. Para abrir na escola espaço para o sujeito possa se<br />

emocionar e se maravilhar com a possibilidade de conhecer, e ter alegria nisso. Fazer de cada<br />

conhecimento um acontecimento inesperado, surpreendente e maravilhoso.<br />

A decisão de aprender a ler para ensinar é uma decisão política: reconhecer a leitura e<br />

escrita como instrumento de poder e utilizar este mesmo instrumento para se libertar e ajudar<br />

outros a se libertarem da condição de subalternização. Se a opressão, com variantes<br />

consideráveis, atinge os pobres e mestiços de nossa sociedade, alfabetizar este sujeitos e<br />

restituir-lhes a cidadania secularmente negada, são com certeza um desafio para a educação<br />

pública brasileira, que promove cotidianamente encontros mas também, grandes desencontros<br />

culturais.<br />

L


Certa vez, ouvi o desabafo de uma professora que, ao ser questionada sobre sua<br />

concepção de alfabetização, reagiu dizendo: - Mas eu só queria falar de alfabetização! Esta fala<br />

é exemplar de uma concepção ainda muito presente na escola. Na hora, lembrei-me de Freire<br />

pensei o quanto para aquela professora o seu fazer pedagógico estava constituído a partir de<br />

uma idéia de neutralidade que na prática, não se sustenta. O fazer educativo está, queiramos ou<br />

não, implicado em concepções de homem e mundo, e por isso, é fazer político, que pode gerar<br />

alienação e/ou desenvolver a criticidade.<br />

As falas de algumas professoras que entrevistei ilustram com mais densidade estas<br />

questões culturais dentro da escola. Suas crenças sobre como uma escola deve funcionar, estão<br />

entrelaçadas com suas experiências pessoais escolares de herança “bancária” e conteudista que<br />

tiveram.<br />

Vejamos algumas de suas opiniões sobre este assunto:<br />

Marisa: - O que você lembra e poderia destacar como ponto positivo e ponto negativo do trabalho do<br />

Tangolomango?<br />

Dina: - Você trabalhava muito a musicalidade. Você não ficava restrita a dar a informação só na sala<br />

de aula. O ponto negativo é que eu acho que eles não estavam preparados para aquilo, nem os pais<br />

nem as crianças, criava muito conflito.<br />

Marisa: - E isso incomodava?<br />

Dina: - Incomodava porque era uma forma diferente de trabalhar.<br />

Marisa: - Mas você acha que a minha forma de trabalhar desmascarava alguma coisa? O que, na sua<br />

opinião, incomodava os outros professores na escola?<br />

Dina: - Eu acho que denunciava a falta de estrutura da escola que não está preparada pra essas coisas,<br />

denuncia a formação dos professores, ele é formado daquele jeito e não consegue mudar.<br />

Marisa: - Então você acha eu incomodava porque os professores se deparavam, de alguma forma com<br />

o seu não saber?<br />

Dina: - É, pode ser. Eu ainda não sei direito o que incomodava, talvez as crianças andando pela escola.<br />

Você não vai conseguir mudar todo mundo de uma só vez.<br />

Marisa:- Mas, de alguma forma o Tangolomango te contagiava ou te incomodava?<br />

Dina: - Me contagiava, eu gostava, a sua alegria de ir fazendo... eu não poderia fazer aquilo, eu teria<br />

que estudar mais pra isso. 26<br />

26 Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008.<br />

LI


Como percebemos, transformar uma herança de escola bancária em emancipatória não<br />

acontece de uma hora para outra. Isso pressupõe um longo caminho de negociação entre os<br />

atores sociais da escola, além de certa tendência a transgressão e revolução.<br />

Neste mesmo dia, entrevistei outras professoras da escola e as falas continuam<br />

denunciando um pouco de como o Tangolomango foi percebido no imaginário de alguns<br />

professores da escola. Fiz a três professoras, que não quiseram se identificar, a mesma pergunta<br />

sobre os pontos positivos e negativos do Tangolomango:<br />

Professora 1: -Eu acho que também faltava você amarrar um pouco. Toda turma que a gente pegava<br />

depois, eles não eram acostumados a certas regras e limites.<br />

Marisa: -De quais regras e limites vocês se referem?<br />

Professora 3: -Algumas coisas que não dava para deixar que eles fizessem e eles ficavam revoltados<br />

com isso. Eu acho que faltou um pouco de rotina. Você fazia coisas diferentes que eram ótimas, mas<br />

faltou rotina pra disciplinar eles. Porque como você dava aula com musicas e danças, em alguns<br />

momentos eles queriam porque queriam batucar na mesa e não havia nada que fizesse eles pararem.Eu<br />

não sei se eles encararam isso como bagunça, então eu acho que você devia ter dado mais limites.<br />

Professora 1: -Por isso eu digo que tem que ter um limite. Por exemplo: a fila, eles não respeitam fila<br />

nenhuma, saem atropelando os colegas. Você deixava eles muito soltos. Eu, por exemplo, faço assim:<br />

toca o sinal, eles formam. Daí, eu subo com eles devagar. A gente pára na porta da sala. As meninas<br />

entram e sentam nos lugares combinados. Os meninos esperam. Depois eles entram e sentam. Eles<br />

foram acostumados assim, não sabem ser de outro jeito...<br />

Professora 2: -Outra coisa também, é que eu não tenho esse tempo que você tinha pra isso, nem voz.<br />

Para canto, por exemplo, minha voz não é boa para canto, eu não teria essas habilidades.<br />

Professora 3: -Uma vez eu consegui. Eu estava dando uma aula de ciências, sobre eletricidade, e eu fui<br />

percebendo que ao final de cada frase que eu dizia tinha uma rima, e os alunos que foram seus, também<br />

perceberam isso. Então a gente montou um rap. E ai quando essas crianças foram para a 5º série, eles<br />

fizeram outras musicas e isso ajudou muito segundo a professora deles. 27<br />

Percebemos através das falas das professoras acima que falar de regras disciplinares na<br />

escola não é tarefa fácil. O fato do Tangolomango não priorizar determinadas regras e culturas<br />

27 Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008.<br />

LII


escolares como filas e lugares marcados em sala para sentar, passava a impressão equivocada<br />

de que não havia regras e limites acordados com as crianças em sala de aula. Enganavam-se: o<br />

Tangolomango, como proposta educativa voltada para o desenvolvimento humano, tinha como<br />

premissa a educação para a liberdade, por isso, o trabalho era altamente conscientizador, neste<br />

sentido, era muito mais amplo e profundo do que se poderia apressadamente supor.<br />

Só que os conflitos eram negociados junto com as crianças, através de uma proposta<br />

dialógica de educação e não apenas imposto pela autoridade supostamente inabalável do<br />

professor. Então poderemos mais uma vez nos perguntar: Educar, sim, mas dentro de qual<br />

cultura(s)?<br />

As falas das professoras acima, denunciam alguns segredos sobre a corporaneidade<br />

vivida pelo educador (a) em seu longo processo de tornar-se professora. Sim, porque ninguém<br />

vira professor(a) de uma hora para outra: isto se dá de forma processual e contínua. No livro “O<br />

corpo que fala dentro e fora da escola” a educadora Nilda Alves nos dá alunas pistas de como<br />

nosso corpo “se torna” o do professor(a). As questões levantadas pela referida autora seriam: -<br />

Que experiências anteriores (este professor ou professora) viveu, que marcas adquiriu, que<br />

possibilitaram que ela (assim) o fizesse? (ALVES, 2002:123). Em síntese, o texto intitulado<br />

“Como o nosso corpo passa a ser o da professora?” trabalha na perspectiva de que determinadas<br />

posturas educativas ou punitivas são adquiridas, construídas, e por fim, reproduzidas no<br />

cotidiano da escola. São ressonâncias do que experienciamos ao longo de nossa formação<br />

profissional, que começou bem antes de tomarmos a decisão de sermos professores(as). Porque<br />

antes de sermos educadores(as) fomos educando(as) e por isso, conhecemos muito bem este<br />

espaço que trabalhamos: a escola com suas fragilidades e potências. As marcas de tais<br />

experiências encontram-se gravadas em nossos corpos, por isso, compreendo cada vez mais<br />

LIII


que, educar nesta perspectiva libertária, é um aprendizado não apenas para o educando, mas<br />

também para o educador(ra) que se renova a cada instante e neste sentido, não tem fim.<br />

1.3 – Passaraio, passaraio, quem me deixe eu passar...<br />

Encontros, desencontros e preconceitos que repercutem na escola<br />

Puxando ainda mais o fio sobre as questões dos encontros e desencontros culturais,<br />

podemos observar que, na perspectiva do plano simbólico, a palavra “morte” pode ganhar<br />

outros significados interfere e marca profundamente identidades coletivas – tanto opressoras,<br />

quanto oprimidas.<br />

Ao contrário do plano físico em que muitas tribos e línguas foram extintas, as mortes<br />

simbólicas recalcam identidades que resultam mascaradas como sinalizou Fanon em “Peles<br />

negras, máscaras brancas”. Reconheço, entretanto, que este é um assunto já há muito discutido<br />

e estudado. Reconheço, mas insisto para minar o que nunca é demais denunciar, mas também<br />

anunciar.<br />

Gostaria de lançar meu olhar para novas /velhas possibilidades que a palavra “morte”<br />

pode nos oferecer. Proponho que façamos outras pescarias, visto que, se desviarmos um pouco<br />

nosso olhar já condicionado as ambivalências e polaridades das palavras, percebemos que não<br />

LIV


dá para se pensar em morte, sem lembrar da força da palavra vida. Vida, morte e vida<br />

novamente são processos cíclicos e embrionários de constantes mudanças e transformações e<br />

seja no campo físico ou no campo simbólico possibilitam movimentos – ora opressores, ora<br />

transgressores que abrem possibilidades para constantes mudanças.<br />

Observando agora a questão da identidade sob esta nova/velha perspectiva de mudança<br />

e fragmentação, podemos recuperar o sentido das “identidades mascaradas” híbridas –<br />

misturadas e multifacetadas do mundo contemporâneo. E tais processos de transformação, que<br />

acontecem cotidianamente em relação aos atores sociais, penetram e invadem, queiramos ou<br />

não, o espaço escolar ou os diferentes espaços escolares, impulsionando a formação constante<br />

de novas identidades que surgem a partir destes encontros/desencontros entre diferentes<br />

culturas.<br />

Hibridização, tensão, mistura, confluências e discordâncias configuraram os desejos, as tensões e conflitos que em diferentes épocas<br />

foram mobilizando a formação de novas identidades, são palavras significativas para esta pesquisa.<br />

Entretanto, do ponto de vista das histórias dos sujeitos encarnados esta diferenciação<br />

entre diferentes usos e valores culturais é difícil e quase impossível demarcar. A cultura popular<br />

não tem purezas e vice-versa.<br />

Por isso, arrisco-me a ensaiar algumas compreensões mais globais em relação à<br />

emblemática questão da alfabetização nas classes populares brasileira. Este é o foco central da<br />

pesquisa: a alfabetização das crianças das classes populares. E as palavras que transitam em<br />

círculo ao redor desta questão seriam: saberes híbridos, subalternização, culturas e educações.<br />

Para situar um pouco mais o leitor/leitora sobre a complexidade das relações culturais<br />

híbridas que foram se configurando no tecido social brasileiro, gostaria de trazer a fala de<br />

Roger Chartier - historiador sensível às manifestações culturais – que se pronunciou ao escrever<br />

“a cultura popular é um conceito erudito”. Sendo a Cultura Popular um produto erudito, um<br />

constructo erudito, podemos refletir sobre quem são os que conceituam os fazeres e saberes das<br />

LV


classes populares e mais especificamente, compreender de uma maneira mais crítica o porquê<br />

das polarizações entre as culturas: as populares e as eruditas e suas relações com os conteúdos<br />

escolares ensinados nas escolas.<br />

Neste sentido, podemos questionar: Porque não podemos dizer apenas “cultura” ou<br />

“culturas”? Que valores estão postos no imaginário coletivo brasileiro em relação a hierarquia<br />

dos saberes que de uma forma muito estreita aparecem no cotidiano da escola? O que é<br />

valorizado e o que é esquecido tendo como princípio os valores de uma classe social elitista que<br />

muito pouco ou nada sabe sobre os modos de vida e as reais necessidades de pessoas de outra<br />

classe?<br />

Por estar emocionalmente implicada com as questões levantadas até aqui, reconheço que internamente, a questão não está em mim<br />

totalmente resolvida: escorrego ainda em polaridades que sinalizam o lugar de onde venho e de qual lugar estou falando. Lugar este que<br />

aparecerá melhor configurado no capítulo II desta pesquisa.<br />

De qualquer maneira, compreendo melhor hoje que as questões que vão costurando este trabalho onde ainda se indiciam polaridades<br />

entre culturas populares e eruditas não se sustentam num mundo cada vez mais globalizado e carecem de um olhar mais atento e sensível. São<br />

questões que me forçam a constantes deslocamentos, buscando compreender os fluxos culturais existentes entre as culturas.<br />

Um pequeno registro histórico do livro “Viagem pela História do Brasil” de Jorge<br />

Caldeira, serve como mais um suporte para as questões referentes a hibridização cultural que<br />

busco enfatizar. O relato é sobre as missões paulistas, lá pelos tempos de 1640 quando, por<br />

contingências econômicas começaram as partidas de bandeirantes para caçar os “índios” e<br />

negros fugitivos. Vejamos quais as estratégias utilizadas por estes “anti-heróis” brasileiros:<br />

Um dos segredos da eficiência dos paulistas nas missões de apresamento era<br />

seu conhecimento da natureza tropical e dos costumes indígenas. Quase todos,<br />

eram filhos de índias e casados com índias. Desde cedo aprendiam a andar<br />

descalços pelo mato e a falar a língua geral. Essa adaptação as condições<br />

locais, associada ao conhecimento das práticas comerciais e à ambição<br />

européia, cria um tipo novo (grifo nosso). (...) Com isso, foi havendo uma fusão<br />

de costumes locais e hábitos europeus. (CALDEIRA, 1997: 57)<br />

Esse tipo novo vai surgindo a partir das fusões, dos encontros e desencontros culturais<br />

que foram se configurando ao longo dos tempos como uma estratégia dos europeus para<br />

colonizar o Brasil. Que dizer de astúcias e ações, onde neste caso específico, os bandeirantes<br />

LVI


jogavam com todas as possibilidades oferecidas pelas tradições ao seu redor, “usavam esta de<br />

preferência àquela, compensavam uma pela outra”. (CERTEAU, 1994:122).<br />

No caso dos bandeirantes, ressalto um aspecto que há algum tempo me incomoda a<br />

ponto de classificá-los como “anti-heróis” brasileiros. Digo isso, lembrando que durante<br />

grande parte de minha vida escolar aprendi nos livros de História que os bandeirantes foram<br />

importantes desbravadores que abriram caminhos pelo sertão fundando cidades e levando<br />

“civilização e progresso” ao país. Sendo “filha” de todo um sistema, acreditei e aceitei estas e<br />

tantas outras informações sem questionar. Por isso, via até bem pouco tempo, os bandeirantes<br />

como “heróis”. Hoje, buscando “avessos” da história, descubro que realmente eles foram<br />

grandes desbravadores, abriram caminhos e estradas, fundaram vilarejos etc, mas... estão longe<br />

de serem HERÓIS, para mim. Os Bandeirantes eram escravistas e partiam em grandes<br />

expedições sendo temidos até mesmo pelos coronéis e governadores locais. Um dos nomes<br />

mais conhecidos foi o do paulista Domingos Jorge Velho. Homem bruto e audacioso, que<br />

liquidou com o maior de todos os quilombos do Brasil: o Quilombo dos Palmares em 1694,<br />

liderado pelo guerreiro e lendário Zumbi dos Palmares em Alagoas. Segue abaixo, um<br />

depoimento que revela as práticas da época:<br />

Jorge velho ordenou a seus homens que o agarrassem. Sangrava muito. A<br />

mordida do cachorro havia arrancado um pedaço de carne de suas costas.<br />

-Onde vocês estão amoitados!? – gritavam com ele. – Onde estão os outros?!<br />

Como ele permanecesse calado, começaram a espancá-lo. – Fala, negro safado.<br />

Onde estão os outros?<br />

Moeram-no de pancadas mas só resolveu falar quando ameaçaram castra-lo.<br />

Informou que o mocambo ficava a meio dia dali.<br />

-Cuidem dele, Jorge Velho – deve valer bom preço.<br />

Cuidar significava não espancar mais e fornecer um pouco de farinha de milho<br />

misturada com água.<br />

LVII


O ataque foi rápido, sem resistência e com saldo altamente positivo para os<br />

escravistas. Conseguiram aprisionar 59 negros, 4 índios e 5 mulatos. Como os<br />

índios não tinham valor comercial, o bandeirante entregou-os aos índios que o<br />

acompanhavam para que os massacrassem. Os cães se refestelavam com o<br />

sangue derramado. – Não sabia que gostavam de índios – comentou Jorge<br />

Velho – pensei que só comiam negros.<br />

Decidiu voltar para Olinda com os prisioneiros. Deixaria metade dos homens<br />

aguardando seu retorno. Estava feliz porque nenhum dos prisioneiros tinha a<br />

letra “F” gravada na testa, o que valorizava a mercadoria.Havia algumas<br />

mulheres com crianças de colo e alguns meninos menores de 10 anos. Decidiu<br />

que os meninos seriam destinados ao Quinto do Rei. Os bebês vinham em boa<br />

hora. Percebeu a excitação dos cães quando arrancou um deles dos braços da<br />

mãe. (BOUEDOUKAN, 1999: 143).<br />

O que muda quando contrastamos estas informações com as informações “oficiais” dos<br />

livros escolares? Que descentramentos acontecem quando nos aproximamos de múltiplas fontes<br />

de informação? E porque é importante avançarmos na perspectiva de ouvirmos outras vozes e<br />

suas histórias singulares?<br />

Quando estava em sala de aula, buscava recuperar com os meninos/meninas algumas<br />

destas histórias esquecidas e então, constantemente nos perguntávamos: Onde estão os Heróis<br />

deste país? Os Heróis desta cidade em que moramos? Os heróis de nosso bairro, da nossa rua,<br />

de nossa família? Negros ou não, onde estão os nossos heróis e suas histórias de resistência?<br />

Uma vez, ao participar do Programa “Um Salto para o Futuro 28 ” na antiga TVE – hoje<br />

TV Brasil, tive a oportunidade de interagir com Tião Rocha, um educador do sertão mineiro<br />

que acaba de ganhar o Prêmio de Empreendedor Social /2007. Seu trabalho à frente do Centro<br />

Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984 é realizado junto às populações mais<br />

carentes e pobres do Brasil – o vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Tião Rocha distingue<br />

28 Tema do programa: Linguagens Artísticas na sala de aula: O que vamos aprender hoje?(Março, 2005).<br />

Disponível em: http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2005/lacp/index.htm<br />

LVIII


educação de escolarização chegando a afirmar que “esta escola formal não serve para educar<br />

ninguém” e propõe a reorganização do espaço escolar questionando-nos sobre por que não<br />

podemos ter uma escola “aos pés de uma mangueira”. Seus problemas com a escola<br />

começaram desde muito cedo. Vejamos o que ele tem a nos contar:<br />

Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos. Logo no<br />

primeiro dia de aula, a professora leu um livro: “Era uma vez um lugar muito<br />

distante, onde havia um rei e uma rainha (...)”. Eu levantei a mão e falei:<br />

“Professora, tenho uma tia que é rainha”. Ela me mandou calar a boca. Depois<br />

que a interrompi duas ou três vezes, fui para a sala da diretora. A partir daí, eu<br />

sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa. Nunca<br />

tive prazer na escola, mas sempre quis aprender. Quando fui para a faculdade<br />

estudei História e Antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era<br />

Rainha do Congado.<br />

Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de<br />

que se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um<br />

reprodutor da mesma chatice. 29<br />

Sua fala é denunciativa de uma escola que nos faz aprender e assimilar o discurso do<br />

“outro” assim como seus respectivos heróis que não necessariamente são os nossos. Eu também<br />

não queria reproduzir, em minha práxis pedagógica, aquelas chatices que havia aprendido na<br />

escola quando criança: buscava fazer com que nossas aulas adquirissem um outro sabor.A<br />

saber: acreditava (e acredito!) que este lugar que chamamos escola, podia ter um sabor que<br />

enriquecesse culturalmente a vida dos meninos e meninas originários das classes populares.<br />

Encafifada com estas questões, lembro-me que, certa vez, meus alunos e eu<br />

participamos de um concurso chamado “CONDEDIME” 30 que tinha como tema daquele ano,<br />

29 Maiores informações sobre o CPCD e seu diretor Tião Rocha está disponível no site http://www.cpcd.org.br/<br />

30 Concurso realizado anualmente pela Prefeitura do Rio de Janeiro e tem sempre como foco a valorização da cultura<br />

Afro-brasileira.<br />

LIX


escolher uma personalidade negra de nossa comunidade. Escolhi o patrono de nossa escola,<br />

conhecido como Mário Vaz, personalidade local pelo menos para mim, muito pouco conhecida.<br />

Descobrimos juntos que ele havia sido um posseiro que tinha ajudado muita gente pobre<br />

naquele lugar e que por esse motivo, acabou sendo assassinado por um grileiro mercenário. Um<br />

crime que acabou sem justiça como tantos outros neste país. Por este motivo o nome de nossa<br />

escola. Mário Vaz foi um herói negro para aquela comunidade e sua história de vida, assim<br />

como a história da tia de Tião Rocha, que foi rainha negra do Congado daquela região, não está<br />

em nossos livros de História.<br />

Falar de heróis negros neste país é uma necessidade: como desenvolver um sentimento<br />

de valorização de nossa ancestralidade negra e mestiça, se as imagens que vemos dos negros<br />

está sempre associada à miséria, a pobreza, a subalternidade e a opressão? Como desconstruir<br />

esta ideologia que quer nos fazer acreditar em nossa inferioridade em relação à etnia branca?<br />

Falar de nossos heróis negros, de nossa família, de nossa linhagem hereditária como<br />

estratégia de fortalecimento de nossa identidade negra e afro-descendente pode vir a ser um<br />

caminho possível de inaugurarmos uma outra sociedade, visto que como nos lembra Brandão, a<br />

educação fechada em si mesma não protagoniza mudanças, mas ela é um caminho para mudar<br />

as pessoas, pessoas que por sua vez, interferem e mudam o mundo. 31<br />

Voltando ao cotidiano de nossas aulas, lembro-me que convidei as crianças para<br />

participarem do concurso e expliquei que iríamos precisar pesquisar sobre a vida do homem<br />

que dava nome a nossa escola, saber sobre sua história de vida ler muito, fazer entrevistas, etc.<br />

Foi um projeto que acabou envolvendo bastante as crianças e para nossa surpresa e alegria<br />

acabamos ganhando em uma das categorias. Segue abaixo um dos esboços feito por Jhony , um<br />

31 Carlos Rodrigues Brandão em “ A educação popular na escola cidadã” - 2002 - Editora Vozes<br />

LX


menino muito esperto de 13 anos, que foi um dos ganhadores do concurso na categoria<br />

desenho, visto que por ser no início do ano, as crianças estavam ainda muito inseguras para<br />

uma produção textual mais elaborada.<br />

As três crianças que ganharam o prêmio foram: Jhony Vitoriano Coimbra, Rosângela<br />

Maria de Souza e Thamirys Brandão Gomes e a premiação foi realizada no Teatro Carlos<br />

Gomes no dia 24 de Setembro de 2004. Como a premiação aconteceu pela manhã, lembro-me<br />

que os convidei a passarem a noite em minha casa, pois queria ter certeza de que não iriam se<br />

atrasar (ou até mesmo faltar!). Quando chegamos ao centro da cidade, a curiosidade tomou<br />

conta daquelas crianças: tudo olhavam e queriam saber. Principalmente o Jhony que nunca<br />

havia estado no centro da cidade: olhava para os gigantescos edifícios, espantado, rindo a toa e<br />

muito animado.<br />

Figura 7<br />

LXI


Um dos esboços feitos em sala por Jhony para participar do concurso sobre a vida do patrono de nossa<br />

escola Mário Vaz<br />

Subir no palco e receber a premiação também foi um momento emocionante. A nossa<br />

diretora, Margarethe Bandeira estava lá junto com a coordenadora pedagógica Rosana Leal<br />

festejando conosco.<br />

Experiências que me fazem mais uma vez me perguntar: O que sabem os meninos e as<br />

meninas das classes populares que ainda não conseguiram aprender a ler e escrever? O que<br />

fazem, como vivem quando estão fora do ambiente escolar? De quais outros espaços de<br />

produção de conhecimentos fazem parte? O que aprendem nas “horas vagas”? Quais as suas<br />

potencialidades? E o que os seus saberes e dizeres podem nos ensinar? E porque seus saberes<br />

não são contemplados na escola?<br />

Encontro estas e outras perguntas na letra da música que transcrevo a seguir:<br />

“Quem foi que fez brasileiro bater<br />

Tambor de jongo?<br />

De onde é que sai quem batuca com o pé<br />

Terno-de-Congo?<br />

Quem é, me ensina quem foi<br />

Que fez o povo dançar<br />

Tambor-de-Mina, Bumba-meu-boi,<br />

Boi-bumbá,<br />

O bambaquerê,<br />

O samba, o ijexá,<br />

Quando o Brasil resolveu cantar?<br />

Quem foi que pôs o lamento na voz da lavadeira?<br />

Quem fez aqui baticum, candomblé<br />

E a capoeira?<br />

Quem trouxe o maracatu?<br />

Quem fez o maculelê,<br />

Mineiro-pau, côco, caxambu, Bangulê,<br />

A xiba, o lundu,o cateretê,<br />

Quando o Brasil resolveu cantar?<br />

Me diz quem foi que fez<br />

LXII


A dor se transformar<br />

Em som de carnaval,<br />

Em batucada,<br />

Em melodia?<br />

Que força fez mudar<br />

Toda tristeza<br />

Em alegria,<br />

Quando o Brasil resolveu cantar?<br />

(“Áfrico”Paulo César Pinheiro/2002)<br />

Figura 8<br />

Crianças da Escola de Jongo repassando seus saberes para as crianças da Escola<br />

Municipal Mestre Darcy do Jongo. Gabriel ( 5 anos) é o menino do meio e é estudante desta<br />

escola. Seu sorriso aberto demonstra o quanto está feliz por poder mostrar os toques dos<br />

tambores para seus amigos da turma e toda a escola.<br />

Arquivo da Escola de Jongo da Serrinha/ Madureira/2006<br />

Retornando mais uma vez à delicada questão da constituição da tessitura cultural<br />

brasileira e suas múltiplas expressões artísticas, vale ressaltar a notável contribuição dos negros<br />

no terreno das artes, como sinaliza a música “Áfrico”. Entretanto, lutamos ainda hoje, pela<br />

legitimação da intelectualidade negra que sofre uma série de preconceitos em determinados<br />

lugares instituídos como locais de saber: como as escolas e as universidades por exemplo.<br />

LXIII


Retomando o foco de nossa pesquisa, os encontros e/ou desencontros culturais presentes<br />

nas danças, música, comida, etc, onde percebemos matizes, nuances, ressonâncias que valem a<br />

pena um estudo mais atento, tornaram-se ao longo do tempo a porta de entrada para novos tipos<br />

de brasileiros que aos poucos foram se constituindo a partir dos saberes e fazeres entre<br />

diferentes tipos de culturas.<br />

Singularizando a afirmativa acima, temos na dança da quadrilha de nossas Festas<br />

Juninas, um exemplo de constante hibridização cultural:<br />

Da França veio a dança marcada, característica típica das danças nobres e<br />

que, no Brasil, influenciou muito as típicas quadrilhas. Já a tradição de soltar<br />

fogos de artifício veio da China, região de onde teria surgido a manipulação da<br />

pólvora para a fabricação de fogos. Da península Ibérica teria vindo a dança de<br />

fitas, muito comum em Portugal e na Espanha. 32<br />

Em relação à comida, podemos nos apoiar num prato que acabou se incorporando a vida<br />

de milhares de brasileiros(as) independente de sua classe social e está relacionada ao espírito de<br />

festa e celebração tão presentes em nossa cultura: a famosa feijoada brasileira. Vejamos um<br />

pouco sobre sua história híbrida:<br />

A explicação mais difundida sobre a origem da Feijoada é a de que o senhores<br />

das fazendas de café, das minas de ouro e dos engenhos de açúcar davam aos<br />

escravos os "restos" dos porcos, quando estes eram carneados. O cozimento<br />

desses ingredientes, com feijão e água, teria feito nascer a receita. No entanto,<br />

tal versão não se sustenta, seja na tradição culinária, seja na mais leve pesquisa<br />

histórica. Segundo Carlos Augusto Ditadi, técnico em assuntos culturais do<br />

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em artigo publicado na revista “Gula”, de<br />

maio de 1998, essa alegada origem da feijoada não passa de lenda<br />

contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão romanceada das<br />

relações sociais e culturais da escravidão no Brasil.(...) Portanto, o mais<br />

32 http://www.suapesquisa.com/musicacultura/historia_festa_junina.htm<br />

LXIV


provável é creditar as origens da feijoada a partir de influências européias.<br />

Alguns crêem que sua origem tem a ver com receitas portuguesas, das regiões<br />

da Estremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro, que misturam<br />

feijão de vários tipos - menos feijão preto (de origem americana) - lingüiças,<br />

orelhas e pé de porco. E ainda há aqueles que afirmam que a feijoada é um<br />

prato inspirado em outro prato europeu, como o cassoulet francês, que também<br />

leva feijão no seu preparo. A Espanha tem o cozido madrileño. A Itália, a<br />

“casseruola” ou "casserola" milanesa. Ambos são preparados com grão-debico.<br />

Aparentemente, tiveram a mesma evolução da feijoada, que foi<br />

incrementada com o passar do tempo, até se transformar na obra-prima da<br />

atualidade. Câmara Cascudo observou que sua fórmula continua em<br />

desenvolvimento. 33<br />

E o que falar da música, especificamente do samba brasileiro? Que encontros e<br />

desencontros foram formando novos tipos, ritmos, nuances musicais? Até onde é popular?<br />

Onde é erudito? Vale a pena separar, desmerecendo uma e valorizando outra? Através de que<br />

processos as culturas se encontram, misturam-se, confluem e divergem?<br />

O exemplo de hibridização cultural que trago para este trabalho é bem recente. No<br />

programa “Revista Brasil” passado na TV Brasil sobre o carnaval, especificamente sobre o<br />

surgimento dos Trios Elétricos na Bahia, encontramos a seguinte fala do historiador Milton<br />

Moura:<br />

A criação do Pau Elétrico ou chamada Guitarra Baiana, tem a ver com a<br />

chegada de um violinista português famoso chamado Benedito Chaves em 1942<br />

e foi a primeira vez que se deu por aqui um violão ligado à eletricidade. E aí,<br />

Dodô e Osmar assistiram a apresentação e constataram que o violão elétrico<br />

não gerava muita microfonia. Dodô resolveu fazer a experiência de colocar uma<br />

madeira lisa com cordas de violão ligada a eletricidade e percebeu que gerava<br />

um som límpido e a partir daí, em 1943 nasce o Pau Elétrico. 34<br />

33 http://pt.wikipedia.org/wiki/Feijoada_brasileira<br />

34 Programa “Revista Brasil” que foi ao ar no dia 27/01/2008 na TV Brasil.<br />

LXV


São as Guitarras Baianas que formaram, por sua vez, os famosos Trios Elétricos<br />

transformando para sempre - a partir da mistura de cavaquinho e bandolim - o carnaval na<br />

Bahia, que foi assumindo outras formas de expressão popular. E quando a guitarra elétrica por<br />

aqui chegou os baianos já haviam fabricado a sua própria guitarra elétrica.<br />

Os exemplos acima citados, tanto na dança, comida, música e tantas outras formas de<br />

expressão popular, anunciam zonas fronteiriças onde encontros e desencontros culturais fazem<br />

nascer novas possibilidades valendo-me mais uma vez do plural.<br />

Aquela fusão de “costumes” que desde o início da colonização estiveram presentes de<br />

uma forma menos consciente nos encontros e/ou desencontros culturais no território brasileiro,<br />

corresponde ao que chamamos hoje - de uma maneira bem mais consciente - de hibridização<br />

cultural. Acredito que olhar mais de perto estas “fusões” culturais buscando compreender os<br />

conflitos e assimilações, os campos e contra-campos de embates, as aproximações e<br />

negociações que se dão a todo instante no quotidiano das escolas públicas, pode vir a ser um<br />

caminho possível para se entender as manhas e artimanhas de sujeitos que parecem resistir, por<br />

diferentes motivos, a aprendizagem da leitura e escrita dentro da escola.<br />

Ao dialogar com o que Hannerz classifica como “zonas fronteiriças”<br />

(HANNERZ,1997:24), defendo a hipótese de que os encontros e desencontros que acontecem<br />

constantemente no espaço escolar possam possibilitar a abertura e/ou fechamento,<br />

fortalecimento e/ou empobrecimento de alguns espaços, brechas e às vezes, imperceptíveis<br />

fissuras onde as atividades vividas no cotidiano sejam o agente re-organizador de velhos novos<br />

usos e ações culturais.<br />

Mestre Darcy, músico altamente criativo e de caráter transgressor, morador do morro da<br />

Serrinha, alargou as fronteiras de seu saber para outros espaços da cidade. Tornou-se famoso e<br />

LXVI


econhecido pelos fluxos e re-fluxos culturais que promovia visto que tanto interagia com a<br />

academia – onde constantemente era convidado para dar cursos e oficinas – como levava estes<br />

mesmo atores sociais para dentro de sua casa, no morro, para que as pessoas de lá pudessem ter<br />

contato com diferentes culturas também.<br />

O Jongo da Serrinha é uma demonstração bastante relevante desta hibridização cultural:<br />

foi ele que introduziu cavaquinho no Jongo fazendo diversas experiências com outros<br />

instrumentos musicais mais “eruditos” como o piano, o trompete e até mesmo o violino. Sua<br />

atitude incomodou muitos jongueiros que não aceitavam esta inovação no Jongo: apegados a<br />

uma herança mais tradicional do jongo resistiam à idéia de se tocar o Jongo com outros<br />

instrumentos que não fossem os tambores.<br />

Mestre Darcy ousou transpor as barreiras culturais e sociais e mostrou ao mundo<br />

“erudito” seu saber, que não se deixou subalternizar: falava de “igual para igual” com os<br />

diferentes. Sua sobrinha Dely Monteiro, herdeira mais direta de seus conhecimentos jongueiros,<br />

rememora constantemente o pensamento fronteiriço do tio:<br />

Meu tio era assim: se ele fosse num lugar, numa universidade e gostasse de uma<br />

pessoa, ele já voltava par casa com essa pessoa, nos apresentava e essa pessoa<br />

passava a tocar com a gente. As vezes, a gente ensaiava tudo direitinho e então,<br />

ele chegava no dia da apresentação, com uma pessoa que a gente nunca tinha<br />

visto e colocava para tocar, ou cantar. Isso deixava as gentes (referindo-se a si<br />

mesma e a Lazir Sinval que são duas das Pastoras do Jongo da Serrinha) muito<br />

chateadas. Aquilo acabava com a gente! Você sabe, cantar Jongo não é pra<br />

qualquer um, e aí a pessoa chegava e se errasse, bem na hora? A gente tinha<br />

medo, mas no final tudo acabava bem. Foi assim que a Luiza (outra Pastora)<br />

chegou, e ficou. A gente não conhecia ela não e meu tio trouxe ela no dia que a<br />

gente tinha uma apresentação e falou: ela vai cantar com vocês! – eu e Lazir<br />

quase “comemos ela viva”, mas ela cantou direitinho e nós deixamos ela ficar .<br />

Dely ri da situação, Lazir concorda e Luiza se defende:<br />

LXVII


Figura 9<br />

Eu conheci o Mestre Darcy na Escola de Música Villa Lobos. Ele ia muito lá,<br />

dava curso e etc; Um dia, vi um cartaz escrito “Oficina de Jongo com Mestre<br />

Darcy do Jongo” e fui lá par ver o que era,. Na mesma hora, me apaixonei.<br />

Aprendi rapidamente a tocar os três toques de tambores e me lembro que<br />

Mestre Darcy ficou surpreso por eu tocar sem dificuldades o Caxambu, que é<br />

um dos toques mais difícieis, o que faz a “virada” do Jongo. Depois, cantei<br />

para ele e então ele me convidou, quase “convocou” para uma apresentação<br />

que teriam naquele dia. Achei loucura, mas fui. As meninas (Dely e Lazir) me<br />

olharam com uma cara feia, não gostaram de mim. Quer dizer, hoje entendo que<br />

não era de mim que elas não estavam gostando, mas da situação em si. Cantei<br />

com elas naquele dia e não parei mais. Estou no grupo até hoje e isso já faz 18<br />

anos.<br />

Mestre Darcy do Jongo e seu inseparável tambor. Ao eleger palavras como<br />

transgressão, criação, revolução e libertação, Mestre Darcy apostava nas fusões e misturas<br />

culturais que podem vir a nos levar a significativas mudanças em nosso jeito de ser e estar com<br />

o outro.<br />

Neste enfoque, o que está em jogo é a questão da centralização e do poder do<br />

conhecimento, que para Mestre Darcy, pertencia a todos, era de todo mundo. Não era um<br />

conhecimento etnocêntrico que exclui, subalterniza, expropria o outro enquanto valoriza o seu<br />

próprio saber.<br />

LXVIII


Esta foi uma das maiores heranças deixadas por nosso Mestre e em nossa prática diária<br />

buscamos perpetuar este saber: nossa escola de Jongo transita por diferentes espaços culturais e<br />

educativos e os resultados destes encontros fronteiriços tem contribuído bastante para o<br />

aperfeiçoamento artístico e até mesmo profissional de nossos educando(as).<br />

Recuperando a discussão entre as fronteiras híbridas dentro do cotidiano da escola<br />

pública, preocupo-me sobremaneira com a complexidade das ressonâncias destas palavras<br />

dentro do universo de escolarização da qual em menor ou maior grau, repito mais uma vez,<br />

estamos inseridos: os níveis de hibridização e subalternização cultural e as possíveis<br />

ressonâncias – positivas e/ou negativas- nas vidas das crianças – que como eu – são originárias<br />

das classes populares.<br />

Falo isso, lembrando de algumas situações e debates que tínhamos em sala, sobre a<br />

negritude e sua estética e beleza. Para trazer o tema à tona, propunha sempre que fizéssemos<br />

alguns auto-retratos, tal e qual este ou aquele artista plástico que gostaria que eles tivessem<br />

contato.<br />

Depois do projeto iniciado, o resultado era que muitos, muitos mesmos, sendo negros, se<br />

desenhavam brancos, com cabelos lisos e louros. Numa destas atividades provocadoras, uma<br />

menina negra, a Rosângela – que tinha uma situação familiar atravessada por estas questões de<br />

mestiçagem muito forte: uma mãe mestiça e uma irmã, mais velha, filha de outro pai que era<br />

branca de olhos claros – contou-me que queria muito ter o cabelo igual de sua irmã mais velha,<br />

porque quando sua irmã estava na janela seus cabelos balançavam, balançavam ao vento. E ela,<br />

também ficava na janela e quando o vento batia, seu cabelo não balançava, o que a levava a<br />

acreditar que tinha um cabelo “duro” e “ruim”.<br />

O caso da Rosângela era mais grave, visto que era no seio de sua própria família que o<br />

sentimento de desqualificação mais fortemente acontecia. Já explico: certa vez, conversava com<br />

a diretora da escola sobre o comportamento agressivo da Rosangela, quando ela me falou um<br />

dado familiar que eu não conhecia. Disse-me que apenas Rosângela era “largada” pela mãe,<br />

pois a outra irmã mais velha, que havia estudado desde a Ed. Infantil no CIEP, sempre vinha<br />

LXIX


arrumada para a escola, principalmente os cabelos. Fica fácil entender porquê para Rosângela,<br />

seu cabelo a depreciava tanto: sofria na própria família ressonâncias deste sentimento de<br />

subalternização tão fortemente arraigado em nossa sociedade.<br />

Recentemente encontrei Rosangela na praia, catando latinha no Leblon. Vale ressaltar<br />

que o Leblon fica muito distante de sua casa. Não estava só: viera acompanhada de umas<br />

amigas e de seu irmão casula. Nosso encontro foi totalmente inesperado e que mesmo contente<br />

em revê-la, saber que estava trabalhando novamente naquelas condições me preocupou.<br />

Perguntei sobre a escola e ela me disse que estava tudo muito chato. Insisti para que ela<br />

voltasse para a escola e ela me garantiu que voltaria. Passou. Dias depois, recebo um recado na<br />

internet da professora da Rosangela: não só havia voltado para a escola, com estava fazendo os<br />

exercícios animadamente. Havia contado para todos da sala o nosso encontro na praia, inclusive<br />

que tínhamos tomado sorvete juntas. A professora falou do quanto era forte o laço afetivo que<br />

Rosangela tinha comigo e sugeriu que eu aparecesse na escola quando pudesse para<br />

acompanhar melhor seus avanços e tropeços escolares.<br />

Estive no CIEP algumas vezes e Rosangela não aparecia. Certa vez apareceu e logo<br />

causou polêmica: estava com uma roupa inadequada para entrar na escola e teria que voltar para<br />

casa. Criou-se um impasse: Rosangela disse que não tinha outra roupa para colocar, pois sua<br />

irmã havia vestido a única calça comprida que possuía(isso podia ser “meia” verdade) e se<br />

voltasse para casa, não poderia retornar por causa do ônibus da prefeitura que só passava com<br />

hora marcada (isso era uma verdade).<br />

Mas, a decisão era irrevogável e por isso, pedi a direção da escola para conversar um<br />

pouco com Rosangela antes que ela fosse liberada. Conversamos sobre várias coisas, inclusive<br />

sobre prostituição, namoro e drogas. Constatei, através dos exercícios de leitura e escrita que<br />

fizemos juntas, que Rosangela havia avançado muito pouco desde quando saiu da Turma de<br />

Progressão em 2004. Estávamos em 2007 e ela ainda estava concluindo a 5º ano do ciclo (que<br />

corresponderia antiga 4ª série). Sua repetência era principalmente por faltas. Faltava tanto que<br />

acabava eliminada!<br />

A entrevista realizada recentemente por uma das últimas professoras de Rosangela no<br />

CIEP, revela como a vida escolar desta menina era conflituosa e delicada:<br />

Marisa:- E Rosangela, o que você tem a falar sobre ela?<br />

LXX


Simone:- Ela também lia, escrevia, tinha uma pratica de vida muito mais responsável que o resto da<br />

turma. Ela aprendeu muita coisa com a gente, ela aprendeu a se comunicar, mas ela tinha uma questão<br />

de que você tinha que cativar. Dependendo da maneira com que você falava com ela já te colocava de<br />

fora. Ela era agressiva como maneira de se defender, então eu me dava bem com ela, mas, o convívio<br />

dela com as crianças da turma era difícil. Primeiro porque ela não aceitava regra, porque na casa dela<br />

não tinha regra, ela vivia na rua. Ela acordava as 4:00 h. da manha pra buscar água pra mãe, quando<br />

ela voltava já estava quase na hora de ir pra escola. Ela era a única que passava, lavava, cozinhava e<br />

arrumava tudo, e ainda tinha que tomar conta da irmã. Então se depois de tudo isso ela vinha pra<br />

escola com uma roupa mais ou menos, meio sujo, e alguém falava “olha sua roupa está suja” ela ficava<br />

revoltada. Então isso dificultava a convivência dela com as outras crianças.<br />

Marisa:- Você me mandou um e-mail sobre a Rosângela. O que aconteceu?<br />

Simone:- Ela havia encontrado contigo na praia do Leblon no final de semana. Lembra? Ela chegou<br />

toda animada naquela semana, fazia os trabalhos, contou pros amigos que esteve com você. Acho que<br />

se sentiu importante. Este encontro fez muito bem pra ela, mas depois de algum tempo, ela voltou a se<br />

desinteressar e sumiu novamente. A rua tem muito atrativo.<br />

Rosângela sentia-se enfraquecida por sua condição afro-descendente em sua própria<br />

estrutura familiar que apenas reproduzia idéias que fazem parte do imaginário coletivo do povo<br />

brasileiro: racismo, preconceito, sentimento de menos valia e inferioridade. Sobre a<br />

complexidade destas ressonâncias dentro do universo de escolarização da qual em menor ou<br />

maior grau, estamos todos(as) inseridos (as), é que se concentra a tônica desta pesquisa.<br />

Ressonâncias estas, que reverberando em torno de nossa formação identitária, se manifestam<br />

através destas inter-relações culturais dando “ora sinais de vida, ora de fraqueza”<br />

(PRETTO,2005:138)<br />

Figura 10<br />

Rosângela escreve seu nome na parede da sala de aula<br />

Turma do Jabuti/ Projeto Tangolomango/CIEP/2003<br />

LXXI


O cabelo “duro” e “ruim” de Rosângela tinha várias razões: desvalorização social do<br />

cabelo crespo e ondulado afro-brasileiro; tratamento químico inadequado que prejudica a<br />

médio/longo prazo o cabelo que devia ser obrigatoriamente lisos, para os padrões de beleza<br />

atuais; impossibilidade de uma manutenção higiênica do cabelo: falta d’água, falta de shampoo<br />

e cremes que hidratam e cuidam dos fios. Mas, este discurso denunciava outras ideologias: um<br />

discurso racista que, em menor ou maior escala, ressoa mascarado cotidianamente, falseado e<br />

algumas vezes, instituído historicamente em nossa sociedade. A foto a seguir ilustra esta<br />

experiência das crianças em relação a beleza e estética negra ou afro-descendente.<br />

Então, a ferramenta de luta teria de ser a palavra. A conscientização a partir da palavra-<br />

ação. E assim, esbarrávamos na questão curricular que passou a ser enriquecido com aulas de<br />

penteado afro, onde fazíamos trancinhas, cucurucos, usávamos faixas e entramos em contato<br />

com revistas especializadas em assuntos afros. Um mundo novo ia aos poucos se descortinando<br />

em nossa sala de aula e as referências aos poucos, começavam a variar e se diversificar. Os<br />

meninos também participavam: ajudavam nos penteados, ou aproveitavam para pequenas<br />

higienes pessoais, como cortar a unhas, por exemplo. Falávamos de tudo um pouco: da<br />

necessidade de cuidar dos piolhos, como da dificuldade de deixar os cabelos soltos ao vento<br />

para secarem sem fungo etc. As mudanças foram lentas, mas aconteceram, ou pelo menos,<br />

serviram como experiência de uma outra auto-imagem possível, que cada um poderá recuperar<br />

em diversos momentos de suas vidas.<br />

Ressonâncias estas, que reverberando em torno de nossa formação identitária<br />

desemboca na discussão das ambivalências e práticas culturais que se misturam, se tencionam,<br />

se entrecruzam e dão certos “nós” que ora enfraquecem, ora fortalecem as relações identitárias.<br />

Esses “nós” ou cruzamentos, onde cada ponto e contra-ponto configuram os costumes, usos e<br />

valores de nossa sociedade, podem nos dar algumas pistas sobre processos complexos de<br />

negociação que estiveram/estão presentes de alguma forma na cultura ou culturas escolares<br />

brasileiras.<br />

LXXII


Figura 11<br />

Crianças penteando seus cabelos em sala de aula. Além dos “cocurutos” fazíamos<br />

tranças e colocávamos turbantes em nossas cabeças. As crianças e adolescentes aceitavam fazer<br />

“só para experimentar” mas dificilmente iam para casa com os penteados feitos em sala.<br />

Turma da Capoeira/ Projeto Tangolomango/Escola Municipal Professor Gonçalves/2005<br />

O ponto chave destas questões é que tal re-organização social demarca em torno do<br />

currículo escolar, o que para determinados grupos sociais, para aquela turma, aquelas crianças e<br />

adolescentes daquela comunidade, daquela escola, daquele espaço geograficamente e<br />

simbolicamente determinado, e mesmo o que para determinada classe social e se tratando de<br />

território geográfico, em pequena ou grande escala, é ou não é importante conhecer.<br />

Com isso, percebemos a todo instante que as fronteiras do conhecimento estão desnudas<br />

e flutuam de lado a lado, transitando entre pontos, onde o desconhecido e o conhecido, o saber<br />

e o não saber oscilam e passeiam por diferentes lugares. Apesar deste esforço controlador sobre<br />

nossas mentes e ações, estes pequenos aparatos coercitivos que tanto conhecemos já não<br />

comporta mais aprisionar aquilo que o homem tem de mais precioso: o poder de saber, ou<br />

saberes.<br />

LXXIII


E a escola que por grande espaço de tempo, foi legitimada por determinado grupo social<br />

como a “única” produtora do saber, encontra-se muitas das vezes perdida, pois como nos alerta<br />

PRETTO a “sala de aula explodiu” e talvez fosse revelador irmos lá descobrir o que resultou<br />

desta explosão...<br />

Como nos fala o ditado “O que era doce, acabou-se” e o que estava aqui em um instante<br />

já não está mais, mudou-se, transformou-se. E neste mundo de coisas e valores muitas vezes<br />

fugidios, onde uma enxurrada de informações nos invade a todo instante, podemos continuar<br />

nos questionando: Como fica o cotidiano da escola, e seus componentes curriculares? O que<br />

muda, o que sai, o que entra, o que se misturou, o que permaneceu nestes tempos de incertezas?<br />

Para falar um pouco mais sobre esta questão dos encontros e desencontros culturais<br />

dentro do espaço escola, consideramos importante que esta mesma escola tenha como horizonte<br />

uma visão mais ampla de educação, ou educações, que como nos fala Brandão, está em toda<br />

parte e imbricado no próprio processo de ensinar e aprender do sujeito humano:<br />

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola,<br />

de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com<br />

ela; para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar, para saber,<br />

para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida<br />

com educação. Com uma ou com várias: educação ou<br />

educações?(BRANDÃO, 2004:7)<br />

Apoiando-me neste horizonte multifacetado das educações, podemos trazer algumas<br />

questões que aprofundarão esta pesquisa, tais como: Como se deram estes<br />

encontros/desencontros culturais na escola pública destinada as classes populares? E os<br />

conflitos, como eles foram se configurando? Como são percebidos, re-interpretados e re-<br />

significados os sentidos nos dias atuais? O que foi realçado? O que permaneceu? O que se<br />

transformou? O que estes encontros ou desencontros culturais de diferentes classes sociais têm<br />

LXXIV


a ver com o problema de analfabetismo das classes populares no Brasil? E principalmente –<br />

parafraseando a cantiga de Caetano Veloso e Gilberto Gil – Qual educação atende aos reais<br />

interesses dos pobres, pretos “ou quase brancos quase pretos de tão pobres”?<br />

Esta educação que a escola pública quantitativamente oferece ás classes populares vem<br />

instrumentalizando os pobres, pretos “ou quase brancos quase pretos de tão pobres” a lutar<br />

conscientemente sobre seus direitos de cidadão? Um cidadão que como nos fala os versos da<br />

canção de Martinho da Vila “Assim não Zambi” sobrevive muitas vezes denunciando<br />

opressões, maus tratos e descasos que se materializam das mais diversas maneiras:<br />

Quando eu morrer vou bater lá na porta do céu<br />

E vou falar pra São Pedro<br />

Que ninguém quer essa vida cruel<br />

Eu não quero essa vida não Zambi<br />

Ninguém quer essa vida assim não Zambi<br />

Eu não quero as crianças roubando<br />

A veinha esmolando uma xepa na feira<br />

Eu não quero esse medo estampado<br />

Na cara duns nêgo sem eira nem beira<br />

Abre as cadeias pros inocentes<br />

Dá liberdade pros homens de opinião<br />

Quando um nêgo tá morto de fome<br />

Um outro não tem o que comer<br />

Quando um nêgo tá num pau-de-arara<br />

Tem nego penando num outro sofrer Assim Não Zambi (Martinho da Vila) 35<br />

Talvez então, possamos continuar buscando respostas que se aproximem da<br />

complexidade da função social da escola tendo como suporte estas e mais algumas questões que<br />

estão diretamente ligadas ao ofício do educador(a): Para que ensinamos? A favor de que ou de<br />

quem? Ou como Freire preconizava que “tipo” humano queremos formar”? O que a cultura da<br />

repetência nos revela? O que tentam nos dizer sobre o imbricado processo de ensinar e aprender<br />

as crianças que não aprendem? E como fica a questão do conhecimento diante destes encontros<br />

e desencontros em relação aos saberes das classes populares?<br />

35 Samba cantado por Clementina de Jesus em “Clementina de Jesus e convidados” 1979/ EMI-Odeon.<br />

LXXV


LXXVI


1.4 – Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar<br />

Na raiz da cultura da repetência, encontros e desencontros culturais<br />

Encontramos esta preocupação na fala dos negros, que através de suas canções, - como<br />

no ponto de Jongo “ Eu chorei” do Jongueiro Manuel Bambambam - desabafa: “Eu chorei, eu<br />

chorava, era minha mãe que me acalentava(...) E a professora quando me reprovava, era<br />

minha mãe quem me incentivava(...)”.<br />

Convido o leitor/leitora a ouvir as vozes destes Mestres Jongueiros que discutem a partir<br />

de seus lugares e instrumentos de resistência sobre o conhecimento e o que fazer com o<br />

conhecimento. Narrativas orais que poderão possivelmente, nos ajudar a aprofundar estas<br />

reflexões sobre Culturas Populares, Educações e Escolas: a fala da Vovó Maria Joana – uma<br />

mulher negra, semi-analfabeta, de sabedoria rezadeira e jongueira, que viveu e morreu no<br />

Morro da Serrinha em Madureira e que ao ser questionada sobre o que fazer com o que<br />

sabemos, afirmou que “Não somos donos de nada, mas, tudo que sabemos, devemos passar a<br />

diante”.<br />

Vale a pena conhecer um pouco a trajetória de vida desta jongueira, Mãe de Santo, que<br />

ainda hoje tem suas idéias perpetuadas pelos jongueiros e admiradores do Jongo em diversos<br />

cantos do país – e que tem algumas singularidades com minha história pessoal, visto que Vovó<br />

Maria Joana nasceu em Valença/RJ, lugar em que passei grande parte de minha infância e teve<br />

grande importância em minha formação identitária.<br />

Situando melhor o leitor/leitora, Vovó Maria Joana Monteiro, nasceu em 24/06/1902 em<br />

uma Fazenda no interior do estado do Rio de Janeiro chamada “Fazenda Saudade”. Esta<br />

fazenda era vizinha de outra chamada “Fazenda da Bem Posta” , em Marquês de Valença/RJ,<br />

onde seus padrinhos moravam. O nome desta fazenda inspirou , bem mais tarde, outro ponto<br />

de Jongo que denuncia um pouco da vida cotidiana daqueles negros, onde o Jongo – que é uma<br />

dança circular e de umbigada levada pelo toque de três diferentes tambores, o Candongueiro, o<br />

Caxambu e o Angoma-Puíta - fazia parte do inventário cultural daquelas pessoas. Foi nesta<br />

fazenda que Vovó Maria Joana ouviu, ainda menina, pela primeira vez, o toque dos tambores e<br />

conheceu o Jongo.<br />

LXXVII


Um pouco mais crescida, veio morar na cidade do Rio de Janeiro, e com 12 anos já<br />

trabalhava em casa de família. Casou-se aos 14 anos com Pedro Monteiro, jongueiro e músico.<br />

Tiveram 14 filhos, mas somente dois sobreviveram: Eva e Mestre Darcy do Jongo. Morou<br />

primeiro no morro da Mangueira – onde antigamente também havia Jongo – e depois foi morar<br />

definitivamente na Serrinha em Madureira, onde se tornou uma das figuras mais emblemáticas<br />

da sua comunidade. Iniciou-se na religião Umbandista e tornou-se uma Mãe de Santo na Tenda<br />

Espírita Cabana de Xangô em um espaço dentro se sua própria casa. Também era rezadeira<br />

bastante requisitada na Serrinha. Foi integrante da escola de Samba “O Prazer da Serrinha” e<br />

fundadora da Escola de Samba Império Serrano.<br />

Figura 12<br />

Babalorixá Vovó Maria Joana em seu terreiro na Serrinha Joana morreu em<br />

27/02/1986, mas seus saberes continuam sendo re-passados através do trabalho diário que<br />

acontece na Escola de Jongo da Serrinha. 36<br />

Vovó Maria Joana nos fala que “não somos donos de nada”, ou seja, na sua visão, o que<br />

conhecemos só faz sentido, só tem valor, se dele outras gerações os incorporarem. A resposta<br />

apresentada pela Vovó Maria Joana propõe a quebra e ruptura de um paradigma capitalista em<br />

que o conhecimento é “propriedade” de uns poucos e nos desafia a encararmos o conhecimento<br />

como um patrimônio de todos e portanto, uma pertença coletiva. É contra o sentimento de<br />

posse que encontramos muitas vezes dentro do espaço escolar que a fala da Vovó Maria Joana<br />

se impõe: trata-se de uma subjetividade coletiva tencionando as relações no campo do poder de<br />

saber.<br />

36 História recolhida do livro “Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos” de Edir Gandra.<br />

LXXVIII


Saber este que não está em abstrato, está encarnado nos sujeitos concretos que compõe o<br />

cotidiano da escola. Saber que é meu e é de todo mundo. Uma pertença coletiva diferente do<br />

sentimento de posse que é essencialmente capitalista. E por ser de todo mundo eu quero que<br />

seja disseminado. Quando penso em disseminar, me aproximo da raiz etimológica que é<br />

“semear”. Semear é um pouco mais que “passar a diante”, visto que isso a escola, muitas vezes<br />

já faz. Semear é deixar sementes que podem vir a germinar e crescer e frutificar e enraizar, e<br />

mais uma vez lançar sementes que se misturam em novas terras e geram novos frutos. Semear<br />

foi o que Vovó Maria Joana e seu filho Mestre Darcy do Jongo fizeram na Serrinha:<br />

disseminaram seus saberes para que as gerações futuras pudessem se “alimentar” delas também.<br />

Mas, este é um pensamento contra-corrente. Uma postura de resistência cultural a um modelo<br />

hegemônico de educação, pois pressupõe o desenvolvimento de valores educacionais vivos,<br />

acolhedores e enraizantes.<br />

Sabemos portanto, da relevância no processo de ensino-aprendizagem de se<br />

contextualizar a realidade regional, familiar e individual de cada criança. E nisso a herança<br />

cultural singular e coletiva pode se tornar uma ferramenta importante no ato de educar.<br />

Entretanto, o que se observa no Brasil é uma des-conexão curricular decorrente sobretudo, de<br />

uma visão estagnada, pouco criativa e pouco ousada, e de uma herança colonizadora(onde o<br />

saber do outro é inferior) que afetaram o próprio valor do papel da educação na sociedade<br />

brasileira.<br />

A educação e conseqüentemente, a escola, apontada pela macro visão governamental<br />

como o elixir mágico para todos os males da sociedade, acaba na prática, desvalorizada no<br />

ranking dos destinos orçamentários, e planejamentos estratégicos no que diz respeito às<br />

demandas regionais de conhecimento (demandas essas de escolas públicas técnicas<br />

profissionalizantes de toda sorte: agrícolas, agroflorestais - no país que parece desconhecer que<br />

tem a Floresta Amazônica - , petroquímicas, e outras tantas de necessidades pontuais) e<br />

principalmente a desvalorização dos atores escolares.<br />

Esses fatores afetam e praticamente inviabilizam o trabalho do professor brasileiro, que<br />

desmerecido e negligenciado na sua remuneração, na continuidade da sua formação, na<br />

discussão sobre as reformulações e adequações do(s) currículo(s) a serem trabalhados em<br />

diferentes regiões e necessidades de um país de território continental, se vê cada vez mais<br />

acuado diante dos conflitos originários no seio de nossa própria sociedade e que invadem<br />

inevitavelmente o território escolar. Como produto final, a escola retorna para sociedade um<br />

inevitável índice de reprovação e exclusão escolar altíssimo: dentro da América Latina, o Brasil<br />

só não é pior que a Bolívia. 37<br />

37 Disponível em: Jornal o Globo/ Setembro/2007.<br />

LXXIX


O espaço físico escolar , por sua vez, é o retrato fiel da retórica e da falta de estratégia<br />

por parte dos poderes executivos de todas as esferas e como conseqüência dessa sabotagem<br />

educativa observamos que ao longo da trajetória educacional brasileira, projetos<br />

educacionais que começavam a dar sinais que poderiam dar certo - como os CIEPs - foram<br />

abandonados, sucateados. Falo isso, lembrando especificamente de minha parca experiência<br />

no CIEP que trabalhei. Logo assim que cheguei, no ano de 2002, fui trabalhar em uma sala<br />

ampla, que logo depois descobri que era a sala utilizada pelos educadores(as) de artes<br />

plásticas preconizado no projeto inicial quando o CIEP funcionava em horário integral.<br />

Nesta sala, desenvolvemos o projeto Tangolomango por dois anos e este espaço físico,<br />

atendia perfeitamente as necessidades de nosso currículo escolar: era ampla e arejada<br />

possibilitando o dinamismo de nossas aulas, além de ter uma pia para os trabalhos de tinta e<br />

barro e até mesmo um bebedouro em sala.<br />

Pois bem, com o crescimento assustador do número de crianças matriculadas na<br />

escola, a solução da Prefeitura foi ampliar o número de salas dentro do próprio CIEP. Com<br />

isso, foram construídas mais cinco salas de aulas de caráter provisório no pátio coberto do<br />

CIEP escola, e a estas salas de aula seriam destinadas as dez turmas de Progressão existentes<br />

na escola. Fiquei incomodada logo de início com aquela determinação, por duas razões: a<br />

primeira é que utilizávamos freqüentemente aquele espaço para nossas aulas e brincadeiras e<br />

a segunda é que teria que trabalhar em uma sala sem janela. Minha indignação e<br />

reivindicação com a diretora foi grande, porém inútil: - Quero sala com janela! –<br />

argumentava. Como descrever aquela sala “provisória” em que fui obrigada a trabalhar por<br />

dois anos? Era um quadrado feito de divisórias – que mais lembrava um escritório com suas<br />

paredes cinzas – com um quadro verde preso na parede e um gradeado pequeno próximo ao<br />

teto em apenas uma das paredes para não sufocarmos com tanto calor. Dois anos depois, foi a<br />

vez do campo de futebol que também era um de nossos espaços preferidos na escola:<br />

construíram uma outra escola dentro deste espaço, confinado as crianças e adolescentes cada<br />

vez mais ao espaço da sala de aula.<br />

Essa experiência, vivida no microcosmo de uma escola municipal da cidade do Rio de<br />

Janeiro, é um fato que vai se somando a inúmeros outros casos que constituem a política do<br />

“faz-de-conta” da educação no Brasil: o governo faz-de-conta que constrói e mantém<br />

decentemente as escolas e pagam bem os professores, os professores (em sua maioria) fazem de<br />

conta que ensinam e aprovam (ou reprovam) e os alunos (aqui vistos como a-lunos mesmo)<br />

LXXX


fazem de conta que são alfabetizados e aprendem. Não é saudosismo, nem defesa políticopartidária,<br />

mas o educador Darcy Ribeiro tinha um projeto consistente e realmente<br />

possibilitador de transformações nos extratos sociais a partir da educação. Um projeto que,<br />

desfigurado e destituído de verbas e atenção públicas minou a esperança de muitos educadores,<br />

dentro do qual me incluo, de desenvolver um trabalho educacional efetivo de melhor qualidade<br />

para todos.<br />

Finalmente, o que falar sobre aquele que deveria ser a personagem principal do universo<br />

escolar: o educando. Destaco a seguir, uma série de fatores que ao meu ver favorecem o sujeito<br />

a (des)conectar-se da possibilidade de uma educação libertadora que vai desde a má<br />

distribuição de renda brasileira (tão negativamente notória), à falta de planejamento familiar<br />

(que fere interesses religiosos e políticos); à insistência de propagandas apelativas alienantes<br />

que geram a formação de consumidores em potencial e consumidores frustrados (excluídos), o<br />

meio ambiente degredado (falta de saneamento básico e condições mínimas de habitação,<br />

locomoção, saúde e alimentação saudável), e por fim, o não acesso aos bens culturais da<br />

sociedade (cinema, teatro, lazer, praças e parques de qualidade, museus e centros culturais etc).<br />

Estes fatores aparecem de maneira contundente no filme “Pro dia nascer Feliz” 38 , onde os<br />

depoimentos de alunos e professores deixam escapar o quanto a cultura de repetência na<br />

educação brasileira está entrelaçada também com o investimento insuficiente, sério e maciço<br />

no ensino fundamental e médio no Brasil.<br />

Aprofundando mais esta questão, reporto-me ao desabafo indignado de Cristóvam<br />

Buarque que em artigo ao Jornal “O Globo” causa polêmica ao afirmar que “o Brasil é um<br />

incinerador de cérebros”:<br />

Ao nascer, cada ser humano traz o imenso potencial de um cérebro vivo e<br />

virgem. Como um poço de energia a ser ainda construído: pela<br />

educação. No Brasil, treze porcento dos adultos são analfabetos, apenas<br />

trinta e cinco porcento concluem o ensino médio; destes, só a metade tem<br />

uma educação básica com qualidade acima da média. Portanto, oitenta e<br />

dois porcento ficam impedidos de escrever, todos os livros que<br />

escreveriam são queimados antes de escritos. Como se o Brasil fosse um<br />

imenso crematório de inteligência.<br />

As conseqüências são perfeitamente perceptíveis: basta olhar a cara da<br />

escola pública no presente para ver a cara do País no futuro. Apesar de<br />

nossos quase 200 milhões de cérebros, o quinto maior potencial<br />

intelectual do mundo, o Brasil continuará a ser um país periférico na<br />

produção de conhecimento. Da mesma forma como a China regrediu<br />

intelectualmente depois de Shih Huang Ti; a Alemanha, com Hitler; a<br />

Península Ibérica, com a Inquisição; o Brasil está perdendo o potencial<br />

de seus cérebros interrompidos. O resultado já é visível: ineficiência,<br />

atraso, violência, desemprego, desigualdade, tolerância com a corrupção<br />

e a contravenção. Um país dividido por um muro da desigualdade que<br />

separa pobres e ricos; e separado das nações desenvolvidas. 39<br />

38 “Pro dia nascer feliz” de João Jardim, Brasil, 2006.<br />

39 Disponível em: http://cristovam.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=173&Itemid=2<br />

LXXXI


O texto continua em tom premonitório: “Ou o Brasil se educa ou fracassa” e mais à frente,<br />

o autor aponta para a necessidade de educarmos a todos, sem exceção, ou melhor, sem exclusão.<br />

Este é o desafio da escola pública atual: transpor os muros que separam os que aprendem dos que<br />

não aprendem, facultando a todos indiscriminadamente o direito ao conhecimento. Conhecimento<br />

este que é sempre múltiplo, plural, dinâmico, vivo.<br />

Para que este paradigma acima proposto, se configure no cenário educacional brasileiro,<br />

algumas rupturas tornam-se indispensáveis. Ruptura principalmente, com este currículo que<br />

universalmente se apresenta e que está interligado e responde aos interesses de uma visão<br />

utilitarista da educação: aliado cada vez mais a uma política econômica de qualificação para o<br />

mercado de trabalho, gera sujeitos desconectados de seu dia-a-dia, de sua cultura local que vão<br />

aos poucos esquecendo de seus saberes e incorporando outros, que muitas das vezes acaba sem<br />

sentido, sem significado. Falamos de um currículo pensado e selecionado para atender a<br />

manutenção da ordem vigente, portanto perigoso e alienante.<br />

Brandão, citando Levi-Strauss, compreende a seletividade do processo de aprendizagem a<br />

partir das palavras “guardar e esquecer” defendendo a idéia de que “o enriquecimento da pessoa<br />

é o resultado de empobrecimentos inevitáveis de outros conhecimentos e outras habilidades 40 ”.<br />

(BRANDÃO,2004:166). Então, estamos falando de uma maneira bem ampla da necessidade da<br />

lembrar e esquecer que são atribuições de nossa memória que filtra, seleciona, armazena, retém e<br />

esquece. É a partir de nossa memória que são formadas nossas experiências e referências<br />

individuais e coletivas.<br />

A palavra memória, de origem latina, derivada de menor e oris, e significa “o que lembra”<br />

. Buscando ampliar a compreensão sobre a memória, descubro que ela é:<br />

(...) uma construção e, como tal, é perpassada, veladamente, por mediações que<br />

expressam relações de poder que hierarquizam, segundo os interesses<br />

dominantes, aspectos de classe, políticos, culturais, etc. Isto não é produto do<br />

acaso; é sim, resultado da relação e interação entre os diversos atores<br />

históricos em um determinado momento conjuntural. (Enrique Serra Padrós) 41<br />

Trabalhando na perspectiva de que não há memória sem esquecimento e de que lembrar e<br />

esquecer são ações interligadas, que interagem com diferentes interesses e visões de mundos,<br />

podemos questionar: a quem interessa a seleção do que as classes populares devem lembrar ou<br />

40 In Levi-Strauss, 1983: 361-362.<br />

41 Enrique Serra Padrós Usos da memória e do esquecimento na História Departamento de História – UFRGS Disponível<br />

em: http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista<br />

LXXXII


esquecer? E como fica a questão dos silenciamentos e esquecimentos impostos por determinada<br />

classe social? Lembrar e esquecer “o quê” e “por quê”? O que lembrar e o que esquecer tendo<br />

como referência as múltiplas manifestações culturais em nosso país?<br />

Falamos especificamente de possibilidades: como lembrar o que não se conhece ou o que<br />

lhe foi negado conhecer? De qual conhecimento estamos falando? Ressaltamos mais uma vez, o<br />

caráter seletivo do currículo escolar e sua complexidade política e ideológica também.<br />

Recuperando a dimensão subjetiva da palavra esquecer, lembro-me que esta questão<br />

permeava por outro viés minha intervenção educativa na sala de aula: era preciso fazer com que<br />

as crianças e os adolescentes fossem capazes de “esquecer” sucessivas experiências negativas que<br />

tiveram com a aprendizagem da leitura e escrita ao longo de seu processo de escolarização.<br />

Experiências não apenas negativas, mas até mesmo traumáticas que marcaram suas relações com<br />

a escola e seu espaço físico e suas carteiras e cadeiras, murais, cadernos, livros, lápis, borrachas<br />

e tudo mais que viesse a lembrar os exercícios escolares. Tais experiências eram tão marcantes<br />

em sua subjetividade, que eles passavam a rejeitar toda e qualquer forma de aproximação com<br />

este tipo de aprendizado. Falas do tipo “eu não consigo, não vou nem tentar” eram comuns e<br />

precisavam ser pedagogicamente des-construidas.<br />

Mas, por diversas vezes, as falas infantis denunciavam vontade de aprender, curiosidade<br />

em descobrir coisas novas, vontade de se esforçar para entender “as letras” como diziam, mas<br />

como já haviam feito inúmeras tentativas sem sucesso seu fracasso se tornava público e era<br />

explícita a vergonha que tinham de sua “incompetência”. Para não se frustrarem novamente,<br />

desistiam, desacreditando de sua própria capacidade de aprender. Toda nova aprendizagem exige<br />

esforço e uma certa confiança de que seremos capazes de aprender: tocar um instrumento,<br />

aprender uma dança, uma receita diferente, aprender a desenhar, a cantar, aprender uma segunda<br />

língua etc. são atividades que exigem um certo nível de autoconfiança, e quando não a temos, o<br />

contato com as pessoas à nossa volta, encorajando-nos ou desencorajando-nos pode fazer muita<br />

diferença. No caso das crianças que repetem sucessivas vezes, palavras encorajadoras atuam<br />

como um “gerador” de novas energias, que ilumina e fortalece pontos fragilizados do sujeito<br />

como sua auto-imagem, agora negativa em relação ao conhecimento, ajudando-os a re-<br />

descobrirem que são capazes de voltar a aprender.<br />

Isso se deu de uma maneira muito efetiva com Daniele, uma menina da “Turma da<br />

Capoeira” da Escola Municipal Professor Gonçalves, no ano de 2005. O histórico que me fora<br />

LXXXIII


passado ao chegar na escola era de que Daniele não lia nem escrevia nada além do nome.Isso era<br />

uma meia verdade! Aos poucos, fui descobrindo que Daniele sabia ler muito mais do que a escola<br />

acreditava, mas realmente não conseguia ainda se comunicar através da linguagem escrita.<br />

Esta era uma escola diferente do CIEP a qual havia trabalhado: era uma escola de horário<br />

integral e eu dividia a turma com uma outra professora na parte da tarde, por isso, a nota tinha<br />

que ser acordada entre nós duas. Respeitando as diferentes concepções de avaliação, currículo e<br />

escola, quero trazer o desabafo rememorado de Daniele que me deixou sem fala, me fazendo<br />

pensar sobre como ajudar as crianças das classes populares a apagar experiências negativas<br />

dentro da escola.<br />

Daniele havia tirado o conceito “I” de “Insuficiente” durante os dois primeiros semestres.<br />

Desde o segundo bimestre, eu havia sinalizado que Daniele lia e por isso, podíamos apostar mais<br />

na valorização deste saber, buscando alternativas para que avançasse na construção escrita<br />

também, visto que leitura e escrita são aprendizados diferentes: podemos ler e não escrever, mas<br />

para escrever, é preciso saber ler. Mas, era sempre vencida: Daniele não lia para outras pessoas,<br />

ficava nervosa, abaixava a cabeça, não saía. Para mim, lia baixinho, quase sussurrando ao meu<br />

ouvido. Hoje penso que poderia ter gravado sua leitura, ter investido mais para entender o seu<br />

“não saber”, aprender com ele, problematizá-lo.<br />

Chegando a hora de conceitua-la no 3º bimestre, minha opinião era de que, pelas razões<br />

que já expus acima, ela ficaria com “R” de “Regular”. Acreditava que o acreditar nela poderia ser<br />

uma estratégia, um divisor de mares, uma “injeção de ânimo”, um “vamos lá” ou um “nós<br />

acreditamos que você consegue”, ou qualquer coisa parecida, que ajudasse Daniele a re- começar<br />

a acreditar que poderia conseguir. Buscava fazer com que sua auto-confiança aumentasse e ela<br />

continuasse se esforçando a aprender.<br />

LXXXIV


Figura 13<br />

Daniele é esta sorridente menina de cabelos compridos e uma flor de crepon amarela<br />

dançando bem na frente da câmera. Dançando, buscávamos outras formas de potencializar<br />

nossos corpos e era através da música e da dança, da celebração da festa e da alegria que nos<br />

conduzíamos a novas aprendizagens. (Turma da Capoeira/ Projeto Tangolomango/2005)<br />

Porém, fui vencida pelo medo: medo de ousar, de transgredir, de criar outra forma de<br />

avaliar, de acreditar que ela poderia passar a fazer diferente e depois dar errado mais uma vez.<br />

Disseram-me que com esta atitude, estaríamos criando “falsas esperanças” para Daniele e isto iria<br />

prejudicá-la mais do que ajuda-la. Medo de tentar outras formas de recuperar Daniele. E ela<br />

acabou ficando com “I” de insuficiente pela terceira vez. Acredito intuitivamente na força do<br />

número três. Aquela nota apontava apenas uma possibilidade para Daniele: a mesma experiência<br />

negativa com o espaço escolar.<br />

Tinha por hábito, além de fazer com as crianças uma auto-avaliação sobre o rendimento<br />

deles/delas durante o respectivo período letivo, conversar individualmente com cada criança<br />

sobre o seu conceito, antes de entregar os boletins para os responsáveis. E quando contei a ela<br />

sobre seu conceito, recordo-me que ouvi esta menina se expressando mais ou menos assim: - Mas<br />

eu venho me esforçando tanto!<br />

E depois disso, Daniele emudeceu, e não avançou mais. Era como se eu lesse em seus<br />

olhos: de que adianta eu me esforçar, se nunca ninguém vê, não reconhecem? Claro que expliquei<br />

a ela que eu via e percebia seus avanços, mas...para a escola ela tinha que mostrar mais. Meus<br />

pedidos foram em vão: Daniele foi demonstrando mais e mais desinteresse pelas aulas e por fim,<br />

ficou retida mais uma vez. Levou “I” no boletim o ano inteiro.<br />

Trabalhar hipoteticamente é arriscado e perigoso. O que poderia ou não poderia acontecer<br />

se ela tivesse tirado um “R” no terceiro bimestre jamais saberemos. Se a possibilidade de tentar<br />

LXXXV


nos foi negada, reconheço hoje, minha fragilidade em defender minhas idéias intuitivas. Hoje, se<br />

pudesse voltar atrás, com maior convicção de estar superando a subalternização, minha e dela,<br />

apostaria novamente no “R” de Daniele.<br />

Deixando um pouco a palavra “esquecer” e retomando o fio da palavra “guardar”,<br />

lembro-me de outro poeta, o Antonio Cícero. A boniteza de seus versos me faz pensar que o que<br />

guardo comigo, me emociona, me atravessa, me toca. Acredito que, por me tocar, por mexer com<br />

minha emoção, buscava levar para sala de aula, fatos e situações do “universo temático infantil”<br />

para que eles se emocionassem e se permitissem serem “atravessados” pelo conhecimento<br />

também:<br />

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.<br />

Em cofre não se guarda coisa alguma.<br />

Em cofre perde-se a coisa à vista.<br />

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por<br />

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.<br />

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por<br />

ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,<br />

isto é, estar por ela ou ser por ela.<br />

Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro<br />

Do que de um pássaro sem vôos.<br />

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,<br />

por isso se declara e declama um poema:<br />

Para guardá-lo:<br />

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:<br />

Guarde o que quer que guarda um poema:<br />

Por isso o lance do poema:<br />

Por guardar-se o que se quer guardar. 42<br />

Este desejo de guardar o saber sensível, olhando-o, vigiando-o, admirando-o, iluminando-<br />

o e sendo dialogicamente por ele iluminados inspirava as atividades que vivíamos em sala. O que<br />

queríamos guardar e o que precisávamos esquecer são perguntas que me faço até hoje e a cada<br />

dia, encontro mais e mais respostas reveladoras sobre este assunto, onde o que vai “ao encontro”<br />

pode inversamente ir “de encontro” ao que as crianças e adolescentes das classes populares<br />

querem e precisam guardar ou esquecer.<br />

Rememorar estes momentos ampliando a complexidade que tais encontros, mas também<br />

desencontros apresentam, incorporando à minha fala, conceitos como hibridismo e invasão<br />

42 Antonio Cícero(Guardar / Record: 1997<br />

LXXXVI


cultural, fluxos e refluxos, zonas fronteiriças etc. desenvolvidos por Hanners e Chartier me leva a<br />

aproximar mais uma vez da percepção de que se a da cultura popular é um conceito erudito, um<br />

constructo erudito, podemos questionar de forma mais contundente: como são reinterpretadas e<br />

utilizadas estas manifestações e produções populares dentro das escolas? E como são percebidas<br />

as zonas fronteiriças entre os saberes que acontecem constantemente no interior da sala de aula?<br />

Partindo do princípio de que contemporaneamente, encontramos em nossa sociedade,<br />

uma não legitimação, uma negação e até mesmo o ocultamento de certos “saberes” que, por não<br />

serem originários de determinados “lugares oficiais de saber”, acabaram por ficar a margem<br />

silenciados e excluídos da sociedade, focar na localização geográfica deste saber pode ser um<br />

caminho de descentramentos importantes para a práxis educativa.<br />

Este argumento encontra eco nos estudos de Walter D. Mignolo sobre as questões<br />

referentes a “geopolítica do conhecimento” chamando-nos a atenção para a necessidade, de<br />

desconstruirmos determinadas crenças ligadas a “colonialidade do poder” e a posição<br />

subalterna que os conhecimentos produzidos por paises intitulados como Terceiro Mundo<br />

ocupam no cenário mundial. Os países periféricos são legitimados como lugar de cultura, mas<br />

não com lugar de “produtores de conhecimentos”, como nos chama a atenção o referido autor.<br />

Acompanhando a leitura de seus estudos, percebemos que no passado, era preciso criar<br />

razões para a colonização, explicá-las criando uma narrativa que desse respostas a divisão do<br />

“mundo entre regiões e povos cristãos e pagãos, civilizados e bárbaros, modernos e pré-<br />

modernos e desenvolvidos e subdesenvolvidos, todos eles projetos globais mapeando a<br />

diferença colonial”(Mignolo,2003:143). Na geopolítica mundial, somos paízes periféricos que<br />

apesar de atualmente sermos reconhecidos como produtores de culturas, muitas vezes vista<br />

como exótica e fascinante, ainda não temos o reconhecimento de também produzimos<br />

conhecimentos e fazemos ciência.<br />

Este argumento também é válido, em uma escala micro para os processos de<br />

“colonialização escolar” que mascaradas sob diversas formas, encontramos ainda dentro da<br />

escola. É válido porque é dentro da escola que o menino ou a menina aprende desce cedo que<br />

aquele é “o lugar” instituído de saber e se o seu saber tem ou não lugar naquele espaço. Mas<br />

nem por isso, ele ou ela deixa de transgredir e buscar maneiras de subverter a ordem. Não são<br />

LXXXVII


totalmente passivos nem totalmente ativos. Oscilam como no verso “eu não sou eu nem o outro,<br />

sou qualquer coisa de intermédio 43 ”.<br />

Então podemos nos perguntar: que lugares fronteiriços são esses em que muitas vezes<br />

nos encontramos? E como isso repercute na sala de aula, dentro dos diferentes espaços<br />

escolares e diferentes classes sociais? O saber do homem do campo, por exemplo, não é<br />

científico? E o que dizer das rezadeiras e dos Pais de Santo espalhados por este país? O saber<br />

das parteiras não tem cientificidade? O que sabem sobre as folhas e o poder de curar através das<br />

plantas?<br />

A efeito de demonstração, trago uma reportagem sobre as parteiras/rezadeiras da região<br />

do Amazonas: sábias mulheres que usam técnicas de massagens com ungüentos à base de<br />

gorduras de animais e óleos vegetais – como a andiroba, cânfora, copaíba, casca de bartimão,<br />

verônica, folhas de hortelã do maranhão etc. Usam Chá de Cominho para aumentar as<br />

contrações e Chá de Sete Grelos do Ingá para controlar a hemorragia e conhecem a fundo as<br />

ervas que ajudam a descolar a placenta. De maioria predominantemente analfabetas, estas<br />

mulheres utilizam lascas de bambu e fibras para cortar o cordão umbilical dos recém nascidos e<br />

entoam cantigas indígenas, misturadas com rezas e preces às entidades Católicas. Assim diz a<br />

reportagem:<br />

43 Adriana Calcanhoto em “O outro”.<br />

Cerca de 920 mulheres, indígenas, caboclas e negras do Estado do Amapá,<br />

vivem diferenças culturais, lingüísticas, porém, em comum elas tem uma<br />

"vocação", são parteiras tradicionais, com diferentes técnicas e orações na<br />

hora do parto. São donas-de-casa, pescadoras, agricultoras e extrativistas de<br />

castanha, que deixam seus lares para auxiliar as parturientes a dar à luz,<br />

sempre permanecendo com elas mais sete dias depois do nascimento.<br />

É a região do País, que tem a maior ocorrência (88%) de partos normais. O<br />

índice médio de cesarianas é 12%, abaixo da marca de 15% apontada como<br />

aceitável pela Organização Mundial de Saúde (DM5).<br />

O Amapá possui cerca de 600 mil habitantes, num território de 144 mil Km<br />

quadrados e uma das mais baixas densidades demográficas do Brasil: 2<br />

habitantes por km quadrado. O Estado tem somente 16 municípios e não possui<br />

hospitais suficientes para atender à sua população.<br />

Recebem como pagamento um 'bocado' de milho ou outro cereal, uma galinha<br />

ou até mesmo uma pequena quantia de dinheiro de R$ 10 a R$ 40. Mas muitas<br />

se recusam a receber qualquer tipo de pagamento, pois acreditam terem sido<br />

escolhidas por Deus para a arte de "puxar barriga" e "pegar menino".<br />

LXXXVIII


No período (7 dias), em que permanecem com as mães, elas lavam fraldas,<br />

preparam refeições leves, fazem massagens para que a barriga da parturiente<br />

volte ao lugar. Ensinam a não comer comida que prejudica a saúde da mãe e do<br />

bebê, como jacaré ou capivara. Orientam a comer coisas mais leves como<br />

galinha com caribé, que é uma farinha coada com água, sal, manteiga e alho.<br />

Os cuidados e a dedicação da parteira ocorre até que a mãe se restabeleça para<br />

enfrentar novamente os afazeres domésticos.<br />

Estas parteiras, também cumprem outra importante função social: são elas que<br />

fazem o cadastro de nascimentos nos povoados. 44<br />

Qual o lugar destes e tantos outros saberes tidos como “populares” ou não científicos<br />

dentro de nossa sociedade? E como a escola dialoga com estes saberes? O que é científico e o<br />

que é popular? Onde o encontro “das águas” as “fronteiras híbridas”? Qual a escola que formou<br />

estas mulheres parteiras, rezadeiras, curandeiras? Cadê os seus diplomas? Quem legitima ou<br />

não o seu ofício?<br />

Voltamos a falar mais uma vez sobre saberes híbridos, identidades multifacetadas ou<br />

morte e vida ou vida e fraqueza como nos fala Pretto.<br />

E de fato, é também lá, no interior da escola, que determinados saberes tidos como<br />

universais são transmitidos de forma hegemônica, em detrimento de outro. A exemplo do<br />

projeto global de colonialidade do poder que sofremos na América Latina, o conhecimento<br />

provém de “certas línguas e vem de certos lugares”, como nos fala Mignolo. 45 A este<br />

fenômeno, Mignolo denominou de “colonialismo interno” e está intrinsecamente envolvido<br />

com o contexto político e econômico de nossa sociedade. Colonialismo este que atravessa a<br />

escola e seu sistema de escolarização como um todo, onde a cultura do outro é tida como<br />

inferior, subalterna, estranha e conseqüentemente, invisibilizada.<br />

E independente da classe social que você ocupe, em termos globais, continuamos<br />

sendo, aos olhos dos países ditos como “1º mundo” latino americanos subalternizados. E a<br />

escola, como um sistema que se propõe ser universalizante , pode ter alguma coisa a nos dizer<br />

sobre isso: rebaixamento do ensino, desqualificação do educador, pouco investimento na<br />

formação de leitores, pouca produção textual autônoma que nos levam, muitas vezes a ficar em<br />

44 Escrito por Da Redação, Rui Martins em Outubro de 2004. disponível em: www.brazil-brasil.com/index.<br />

45 Walter D. Mignolo em sua entrevista intitulada “lãs políticas Del conocimento y colonlalidadd Del poder”.<br />

LXXXIX


“desvantagem” quando nos deparamos com estudantes de determinadas escolas, de<br />

determinados países e por aí vai.<br />

Assim, tal hegemonia curricular, coloca a escola muitas das vezes no lugar que elegem<br />

uns saberes e marginaliza outros, dando voz a umas histórias e silenciando outras. Afinal de<br />

contas, que histórias queremos contar? Falando mais uma vez em culturas e educações,<br />

recuperamos a fala de Brandão, que expõe sua opinião sobre o assunto:<br />

A educação do homem existe por toda parte e, muito mais do que a<br />

escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os<br />

seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que o educa.<br />

E a escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento<br />

provisórios onde isto pode acontecer. Portanto, é a comunidade<br />

quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o que possa ser<br />

vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida – e também<br />

com a aula – ao educando. (BRANDÃO, 2004:47).<br />

Este exercício de convivência - onde as experiências e trocas culturais se misturam, se<br />

permeiam – aparece fortemente dentro da cultura da escola, onde fica cada vez mais claro o<br />

choque, o embate e os conflitos culturais: de um lado a cultura formal da escola, com seus ritos<br />

de passagem, seus currículos universais e práticas disciplinarizantes e de outro, a cultura da<br />

criança, seus valores e seus saberes, suas crenças e modos de ver e estar no mundo. Se<br />

pretendemos construir uma escola emancipadora, não podemos mais falar em Educação e sim<br />

em Educações e suas múltiplas formas de expressão, reconhecendo inclusive que existem<br />

“outros” ecossistemas educativos que educam, assim como as escolas educam também. Um<br />

exemplo do que nos fala Brandão, observamos na foto a seguir, um menino de nossa Escola de<br />

Jongo ensinando os passos do Jongo da Serrinha a uma professora Angolana que veio ao Brasil<br />

para visitar e conhecer nossa escola:<br />

XC


Figura 14<br />

Um exercício de “convivência” que educa através da vida cultural de sua comunidade:<br />

Leandro (12 anos) ensina o Jongo para uma professora Angolana que veio aprender o Jongo<br />

em nossa Escola. Arquivo da Escola de Jongo da Serrinha/2007.<br />

Como pano de fundo de nossa pesquisa, observamos a necessidade de uma intervenção<br />

pedagógica que legitime outros saberes tal e qual foi pensado por Freire:<br />

É que indiscutivelmente, há uma sabedoria popular, um saber popular,<br />

que se gera na pratica popular que o povo participa, mais, às vezes o que<br />

está faltando é uma compreensão mais solidária dos temas que compõem<br />

este saber. (FREIRE, 1989).<br />

Acredito que a necessidade deste diálogo entre saberes, que se dá independentemente de<br />

nossa vontade, de maneira constante no espaço escolar, seja um desafio aos educadores(as)<br />

preocupados em desenvolver um olhar sensível à multiplicidade cultural ao qual todos nós<br />

estamos inseridos, instrumentalizando as classes populares para que sejam cada vez mais<br />

capazes de não apenas armazenarem conhecimentos, mas utilizá-los como instrumento de luta e<br />

revolução.<br />

Conhecimentos estes que não dialogam com a ineficiência e os perigos de uma educação<br />

“bancária” que ainda se apresenta dentro de nossa sociedade.<br />

Dar voz a outras histórias é um caminho ou o início de um caminho possível de<br />

recuperação identitária e fortalecimento das classes populares, seus saberes e dizeres, mas, é um<br />

XCI


exercício de descentramento perigoso e ousado. Freire , abordando o assunto, também é<br />

contundente em afirmar que: A questão está em que pensar autonomamente é perigoso<br />

(FREIRE, 2005:70).<br />

Perigos que como nos mostrou o filme “Quanto vale ou é por Quilo? 46 ” repercutem em<br />

nossa sociedade deste a época da colonização. Será que, em uma proporção micro, não somos<br />

nós educadores(s) os agentes reprodutores deste pensamento “colonizante” também?<br />

Voltemos a Brandão que acrescenta novos olhares para esta discussão:<br />

Dentro da cultura do povo há um saber: no fio da história que torna este saber<br />

vivo e continuamente transmitido entre pessoas e grupos, há uma educação. É a<br />

partir destas redes de trabalho popular que o educador popular deve situar seu<br />

trabalho através da cultura. Ele não tem o direito de invadir, como um<br />

colonizador bem intencionado, estes domínios de educação e saber da cultura<br />

do povo. (BRANDÃO, 2004:97).<br />

A incorporação dos saberes populares no currículo formal da escola como uma<br />

alternativa de instrumentalização e fortalecimento das classes populares, pode ser uma<br />

estratégia pedagógica importante para a elaboração de uma educação voltada para o<br />

desenvolvimento humano.<br />

Principalmente por estarmos em uma sociedade onde encontros e desencontros culturais<br />

tiveram como objetivo transformar o “outro” em “eu”(BRANDÃO, 2004: ). Até que ponto, em<br />

prol da formação de um sujeito bem “educado e culto”, nós também não forçamos o menino e<br />

a menina a “esquecer” seus saberes e a incorporar nossos saberes, ou seja, transformar o<br />

“outro” no que eu acho – na maior das boas vontades – que é melhor para eles, tal e qual<br />

fizeram os Jesuítas que aqui chegaram para catequizar os índios sem almas, para salvá-los? De<br />

qual educação estamos falando? Dentro de qual cultura?<br />

Manter este sentimento de pertencimento no horizonte educacional é um desafio<br />

instigante, que se contrapõe a modelos de uma “escola-fábrica-fordista” (PRETTO,<br />

2005,p.141) em que pessoas são vistas como peças, engrenagens, abstraídas, esvaziadas de seu<br />

contexto sociocultural. Assim, o sujeito cada vez mais desconectado de seu inventário de<br />

46 “Quanto vale ou é por quilo?” Filme brasileiro/2005. Diretor: Sérgio Bianchi.<br />

XCII


saberes pode vir a perder o sentido do fazer sabendo e do saber-se fazendo. Com a perda do<br />

sentido que orienta o fazer e a ação dos sujeitos, percebemos dentro do contexto escolar uma<br />

inadequação, cada vez mais crescente entre a vida que as pessoas das classes populares querem<br />

ou não querem, sobretudo levando em conta as dinâmicas e movimentos de um mundo em<br />

constante transformação.<br />

Processo este, que entranhado em crenças e valores eurocêntricos em um primeiro<br />

momento e norte-americano atualmente, acaba por reforçar no dia-a-dia este sentimento<br />

negativo quanto a sua própria etnia e traços identitários e brasileiro.<br />

XCIII


2 – VIVA EU, VIVA TU, VIVA O RABO DO TATU<br />

Re-descobrindo a Cultura Popular e reconstruindo a consciência da negritude:<br />

como pessoa e como educadora<br />

“Vapor berrou na Paraíba,<br />

chora eu, chora eu Vovó.<br />

Fumaça dele na Madureira,<br />

e chora eu.<br />

O vapor berrou piuí, piuí.<br />

Ô irê, irê, irê,<br />

ô irê, irê, irê .”<br />

(Vapor da Paraíba/Vovó Tereza) 47<br />

“Viver é muito perigoso, seu moço!”, já alertava o jagunço Riobaldo em Grande Sertão:<br />

Veredas. Concordando com o pensamento do personagem de Guimarães Rosa, percebo neste<br />

momento que não apenas viver é perigoso mas, escrever sobre as experiências vividas também.<br />

O relato autobiográfico apresenta armadilhas, ou certas ilusões que foram pensadas por Roger<br />

Chartier:<br />

Outro aspecto da ilusão biográfica ou autobiográfica é pensar que as coisas são<br />

muito originais, singulares, pessoais, quando são, na verdade, freqüentemente,<br />

experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas pertencentes a uma<br />

mesma geração. Ao fazer um relato autobiográfico é quase impossível evitar<br />

cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das pessoas frente às<br />

47 Vovó Teresa conta nesse jongo a sua ida de trem de Paraíba do Sul para o subúrbio de Madureira. Vendo a fumaça<br />

do trem de ferro “Maria-Fumaça”, ela lembrava das chaminés dos navios do Rio Paraíba. Disponível em:<br />

http://www.jongodaserrinha.org.br<br />

XCIV


experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita numa trajetória<br />

de vida. 48<br />

Correndo o risco de cair nas contradições, ou “ilusões” que o texto autobiográfico em<br />

sua própria constituição apresenta, convido o leitor/leitora a reviver comigo um pouco de<br />

minha história. Como quem conta uma história, um conto, aumenta sempre “um ponto”<br />

esquivo-me da pretensão de fazer destas experiências um modelo a ser seguido. Esta é uma<br />

história reinventada pela fragilidade de minha memória carregada de emoções muito<br />

particulares, que tentarei descrever a seguir.<br />

Através dela busco compreender não só experiências que reverberaram na minha<br />

formação profissional mas também o processo de escolarização das crianças das classes<br />

populares que tive a oportunidade de conviver. Tudo isso respeitando as peculiaridades de<br />

tempo e espaço, pois não se trata de colar minha vida à das crianças, mas de garimpar o que nos<br />

aproxima em nossas histórias singulares.<br />

Começo pela questão do êxodo rural que ouvi muitas vezes durante minha trajetória<br />

escolar. Porém, como apenas decorava os conceitos apresentados pelos livros didáticos sem ser<br />

orientada a refletir criticamente sobre eles, não conseguia fazer nenhuma relação entre minha<br />

história de vida e os movimentos migratórios que estão estreitamente relacionados à vida de<br />

milhões de brasileiros.<br />

Achava que dados geográficos e históricos não eram mais do que matéria de escola.<br />

Enganava-me. Do mesmo modo que o “vapor berrou na Paraíba” e foi parar em Madureira<br />

transportando centenas de pessoas durante décadas, como nos fala o ponto de Jongo da<br />

Serrinha, na epígrafe a cima, venho de duas famílias de retirantes pobres, que migraram do<br />

campo para a cidade, na esperança de fugir da miséria e pobreza que os perseguiam como um<br />

fantasma. Tinham como tantos brasileiros que passavam pela mesma situação, a esperança de<br />

conseguir um emprego na cidade e dar uma melhor educação para os filhos.<br />

Tanto a família de meu pai, que migrou do Estado de Minas Gerais; como a de minha<br />

mãe, que veio de Recife, no Nordeste, foram desterradas de seu local de origem. Ambos<br />

partiram ainda crianças, com suas respectivas famílias em busca de uma vida melhor. O<br />

movimento migratório e imigratório foi e ainda é uma questão social tão estrutural e formadora<br />

48 Conversa com Roger Chartier<br />

Por Isabel Lustosa http://pphp.uol.com.br/tropico em 23/11/2004<br />

XCV


da história de nosso país que se tornou tema recorrente nas artes, nas ciências sociais e na<br />

literatura. Trago a foto de uma peça de Mestre Vitalino 49 , grande mestre da arte popular, que<br />

retrata a viagem migratória: a família, os poucos pertences e os animais de estimação. À parte<br />

isso, os costumes e tradição levados na memória.<br />

Figura 15<br />

“Os retirantes” de Mestre Vitalino<br />

A obra acima representa uma cena desse fluxo migratório que marca fortemente a vida<br />

dos sertanejos nordestinos. Pessoas que, fugindo da seca e da fome, largavam tudo que tinham e<br />

seguiam, muitas vezes a pé de um estado a outro, carregando crianças, velhos e trouxas de<br />

roupas na cabeça. Essa saga nordestina é a mais forte no imaginário brasileiro por ter carga tão<br />

dramática e causas aparentemente insolúveis, pois o fenômeno da seca é de característica<br />

cíclica permanente. Ou seja, o sertanejo nordestino é “sobretudo um forte” como dizia Euclides<br />

da Cunha em Os Sertões. Forjado na extrema falta de recursos e carregando em seus extratos<br />

genéticos uma síntese das matrizes brasileiras: a européia, a indígena, e a africana, como no<br />

resto do país. Porém, produziu uma cultura de atavismos e místicas que é única, pungente e<br />

fascinante. Não é à toa que essa saga já foi retratada de múltiplas formas e gerou verdadeiros<br />

ícones da arte no Brasil: o livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, o quadro Retirantes de<br />

Cândido Portinari, a canção Pau de Arara de Luiz Gonzaga, e mais recentemente o filme<br />

49 Vitalino Pereira dos Santos, Mestre Vitalino, consagrou-se com sua arte de fazer bonecos em Caruaru, onde<br />

nasceu, perto do rio Ipojuca, em 1909. Disponível em :<br />

http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/2artes/nd-vital.html<br />

XCVI


Central do Brasil de Walter Salles são algumas obras inspiradas nessa realidade. Mas como está<br />

dito em Grande Sertão: Veredas – “o sertão está em toda parte” - assim, no bojo das cidades<br />

grandes o sertão sobrevive simbolicamente nos corações e mentes dos migrantes sertanejos<br />

sejam eles nordestinos ou não. Promovendo encontros felizes e enriquecedores, e desencontros<br />

de aculturação e esquecimento, ou entorpecimento pelo turbilhão de outros símbolos que<br />

tomam de assalto o sertanejo, ameaçando torna-lo não só desterrado como “desalmado”<br />

também. É aí que entram em cena os heróis da resistência cultural, de forma consciente-<br />

engajada ou instintiva. A cultura que emana da terra, das heranças, vai se mantendo, se<br />

modificando e dando a referência vital do pertencimento.<br />

Como no Jongo citado, José Melo, meu avô materno, chegou no Rio de Janeiro em<br />

1953. Minha avó Josefa veio com seus oito filhos, um ano depois, em viagem de navio que<br />

durou 10 dias. No Recife, a família levava uma vida simples, onde não faltava o essencial: meu<br />

avô tomava conta de um pequeno sítio, de onde tiravam o alimento para comer. Tinham o<br />

bastante para vestir e se abrigar, mas não tinham escola. Foi no Rio que os filhos puderam<br />

aprender a ler e escrever. Lembro-me que meus avôs maternos falavam com saudade da terra<br />

natal jamais esquecida. Mesmo velhinhos, continuaram a fumar seus cachimbos de rolo e a<br />

comer farinha com bolinho de feijão todos os dias.<br />

Já a família de meu avô paterno, Edmundo da Silva, veio do interior de Minas Gerais,<br />

metade da viagem de carroça em carroça e a outra parte de trem. Minha avó paterna, Catarina,<br />

nasceu em 30 de abril de 1888. Teve a sorte de, ao nascer, já estar enquadrada na lei do Ventre<br />

Livre. De qualquer forma, a Lei Áurea foi assinada poucos dias depois. A vida estava difícil<br />

para aquela família descendente de negros escravizados. Dos 13 filhos, restaram nove. Sabemos<br />

que a alta mortandade infantil era um triste episódio dessa época. Mas é no interior das classes<br />

populares - na equação entre a miséria e a pobreza - que mostra sua faceta mais cruel e<br />

desumana. No entanto, quando a família Silva saiu da cidadezinha de Rio Pomba, no interior de<br />

Minas Gerais, o filho homem caçula Luis, meu pai, tinha três anos. Meu avô Edmundo passou a<br />

trabalhar nos famosos laranjais de Campo Grande. Um “laranjal em flor” como se dizia no<br />

tempo deles.<br />

Para a família Silva, a vida na cidade grande continuava tão difícil quanto no interior. O<br />

trabalho na lavoura era duro e, muitas das vezes, os filhos tinham que ajudar, trabalhando com<br />

os pais na colheita.<br />

XCVII


Como meus pais se conheceram? Bem, minha avó Catarina era parteira, minha avó<br />

Josefa era rezadeira e quis o destino que suas respectivas famílias se tornassem vizinhas.<br />

Ambas se conheceram muito antes de imaginar que um dia seus filhos iriam unir as duas<br />

famílias. Aliás, essa união gerou enorme conflito dentro da família de minha mãe, pois além de<br />

meu pai ser vinte anos mais velho e divorciado era, ainda por cima, negro. Juntando todas essas<br />

equações, havia ali uma clara situação de preconceito e racismo. Corajosa atitude de uma<br />

mulher branca que escolhe casar com um negro. Corajosa e transgressora atitude, visto que a<br />

união entre pessoas de etnias diferentes, em nosso país de herança escravista, àquela época era<br />

vista sob as lentes do preconceito racial.<br />

Pode-se, no entanto, indagar: em algum lugar ficou escondido o racismo ocorrido na<br />

história meus pais? Falo isso pensando em uma propaganda da TVE que ilustra bem as<br />

contradições desta herança de mais de 300 anos de escravidão, perguntando-nos: Onde você<br />

esconde seu racismo? E, como nos fala Clarice Lispector 50 , diante de uma situação conflituosa,<br />

em que muitas das vezes não é correto falarmos a verdade, ficamos com “uma confusão<br />

silenciosa, entrecortada por palavras pouco elucidativas...”. Uma situação desconcertante que<br />

nos faz lembrar, algumas vezes em que o racismo apareceu em nossas ações, emergiu de nossas<br />

entranhas. E tudo que queremos depois é fingir que não o temos e escondê-lo em algum lugar,<br />

para que nem a gente mesma encontre. No entanto, alguns ditados recorrentes ainda hoje<br />

demonstram o que se passa no imaginário das pessoas, onde frases aparentemente inocentes<br />

como “Segunda – feira é dia de branco” deixam escapar uma concepção de que o negro não<br />

gosta de trabalhar , ou umas mais agressivas que incita o desprezo pela gente de cor como<br />

“Preto quando não suja na entrada, suja na saída” ou “Um negro parado é suspeito, um negro<br />

correndo é ladrão”. Podemos encontrar expressões onde o preconceito é mais velado, e parecem<br />

aos mais desavisados um “elogio” do tipo “Preto de alma branca” que nos leva a entender um<br />

pouco mais sobre a política de “embranquecimento” que ressoa em nosso inconsciente até hoje.<br />

Em meio a tantas contradições se formou a família que descendo. Sou fruto desta grande<br />

miscigenação, hibridização e conflito entre resistência e aculturamento social. Nada tão difícil<br />

de explicar se tivermos em mente o delicado processo de colonização e formação do sistema<br />

social brasileiro. Parafraseando o poeta 51 , posso dizer que: o meu pai era mineiro, descendente<br />

50 Texto “Felicidade Clandestina” de Clarice Lispector.<br />

51 Chico Buarque de Holanda em seu CD “Paratodos”.<br />

XCVIII


de escravos, minha mãe pernambucana, bisneta de holandês com uma cafuza; e eu, sou carioca<br />

buscando minhas raízes de afro-descendente.<br />

A fotografia abaixo conta um pouco sobre esta história e fala também dessa mistura de<br />

raças e etnias da qual sou fruto. Esta foto foi tirada em 1967, ano em que nasci.<br />

Figura 16<br />

Minha avó Catarina ao lado de meu pai Luis e minha mãe Janete na praia do<br />

recreio/1967<br />

Era comum naquela época, que os rapazes pobres servissem o exército e continuassem<br />

engajados como Cabo e Sargento. Com meu pai não foi diferente: emprego seguro e promissor<br />

- começar como Soldado e sair Sargento era uma ambição que muitos desses jovens almejavam.<br />

Passar dali, já era um sonho quase que impossível. Meu pai ultrapassou em muito as<br />

expectativas de ascensão social de uma pessoa que começava do lugar em que começou. Ele<br />

entrou como Praça e se reformou como Capitão. Enquanto se entregava aos estudos e missões<br />

internas do quartel minha mãe cuidava da vida doméstica e de nossa educação. Meus pais<br />

tiveram três filhas, eu e minhas duas irmãs: uma mais velha e a outra mais nova do que eu. As<br />

três com marcas fenotípicas da sua condição afro-brasileira.<br />

Para contar um pouco mais sobre esta história híbrida, gostaria de re-começar assim:<br />

Sempre fui, como tantas outras, uma menina-moleque. Criança inquieta, curiosa, faladeira,<br />

inventadeira de palavras e histórias. Do pai negro, incorporei, na infância, um pouco da herança<br />

africana. Da mãe, a que mais preencheu meu universo infantil, com suas histórias e acalantos na<br />

hora de dormir, trago a européia.<br />

XCIX


Até meus seis anos de idade, o contato com meu pai era basicamente nos finais de<br />

semana. Guardo a lembrança dos domingos em que ele nos contava histórias de onças e<br />

mosquitos falantes, que havia aprendido com seus pais. Histórias que, atravessando aquele<br />

mundo de roçados, chegavam até nós num contexto totalmente urbano. Recordo-me também<br />

que era aos domingos que ele colocava suas músicas preferidas na vitrola: ouvíamos de tudo<br />

um pouco, de clássica a italiana, passando por conhecidos nomes da música popular brasileira,<br />

como: Lupicínio Rodrigues, Dalva de Oliveira e Altemar Dutra, e de seu preferido, Nelson<br />

Gonçalves. Depois, ao cair da tarde, pegávamos os disquinhos coloridos que minha mãe nos<br />

comprava e ouvíamos histórias que alimentavam ainda mais nosso imaginário infantil. Assim,<br />

ficamos conhecendo “Chapeuzinho Vermelho”, “Branca de Neve”, “Aladim e sua Lâmpada<br />

Maravilhosa”, uma não tanto conhecida, mas que amávamos chamada “O Sino Misterioso”.<br />

Havia a divertida “Festa no Céu” e a que mais me identificava, o famoso “João e Maria”.<br />

Lembro que as histórias de abandono me comoviam, assim como “O Patinho Feio” de<br />

Andersen e “O Lobo e as Sete Cabritinhas” de domínio público. Histórias híbridas, recolhidas<br />

dos contos espalhados pelo mundo e organizadas e reescritas na Europa e que nos chegaram e<br />

invadiram nossa imaginação e de tantas e tantas crianças que vivenciaram esse rito de<br />

passagem: a contação de histórias.<br />

Misturando mais ainda as culturas, os tambores e a tradição africana também permearam<br />

minha infância. Em algumas ocasiões festivas, nosso pai nos levava para Umbanda e vestíamos<br />

roupa de Santo nas festas de São Cosme e Damião. Destas últimas, guardo na memória alguns<br />

pontos, dentre eles um que meu pai adorava cantar, que diz assim:<br />

Cosme e Damião. Mião cadê Doum?<br />

Doum foi cavalgar no cavalo de Ogum.<br />

Dois, dois, sereia do mar<br />

Dois , dois, mamãe Iemanjá.<br />

(Ponto de Umbanda cantado para Erês<br />

em festa de São Cosme e Damião)<br />

Apesar da política de “embranquecimento” velada, instituída pela minha família<br />

materna, visto que lembro de minha avó materna dizer que “não gostava de preto”, estes<br />

tambores atravessaram minha formação, marcando profundamente minha visão de mundo.<br />

Além do mais, nasci em uma família – tanto da parte materna, quanto paterna - extremamente<br />

C


católica e as miscigenações aconteceram em minha vida tanto no campo físico como cultural:<br />

minha mãe foi noviça antes de se casar e por isso, éramos levadas para a missa aos domingos<br />

onde, posteriormente, acabamos freqüentando as aulas de catecismo e a Primeira Comunhão. A<br />

fotografia, pertencente ao álbum de família retrata um destes momentos em que almejávamos<br />

coroar Nossa Senhora:<br />

Figura 17<br />

Da esquerda para a direita: Eu, minha irmã caçula, Lucinha e Flávia, minha irmã mais<br />

velha. Todas nós vestidas de anjinho antes da coroação da Santa na Igreja de Nossa Senhora<br />

da Fátima Valença/ 1976<br />

Por este motivo, participávamos das procissões vestidas de anjinho. Nosso sonho, meu e<br />

de minhas irmãs, era de que fossemos escolhidas para coroar Nossa Senhora. Coisa que nunca<br />

aconteceu! Crianças, não entendíamos o porquê , visto que para o privilégio do coroamento<br />

fazíamos o que era preciso: não faltávamos aos ensaios; sabíamos as músicas na ponta da língua<br />

e tínhamos roupas com asinha e tudo. Mas, “esqueceram” de nos dizer que no imaginário<br />

cristão, não existiam “anjinhos negros”. Eis o problema. E a nossa cor não dava para mudar ou<br />

CI


esconder. Como não nos percebíamos na condição de negras, continuávamos a fazer de tudo<br />

para merecermos o destaque do coroamento que nunca aconteceu. De todas as cantigas<br />

aprendidas, recordo-me de uma que muito me emocionava chamada “Maria de Nazaré”:<br />

Maria de Nazaré, Maria me cativou<br />

Fez mais forte a minha fé<br />

E por filho me adotou<br />

As vezes eu paro e fico a pensar<br />

E sem perceber, me vejo a rezar<br />

E meu coração se põe a cantar<br />

Pra Vigem de Nazaré<br />

Menina que Deus amou e escolheu<br />

Pra mãe de Jesus, o Filho de Deus<br />

Maria que o povo inteiro elegeu<br />

Senhora e Mãe do Céu<br />

Ave - Maria (3X), Mãe de Jesus!<br />

Maria que eu quero bem, Maria do puro amor<br />

Igual a você, ninguém<br />

Mãe pura do meu Senhor<br />

Em cada mulher que a terra criou<br />

Um traço de Deus Maria deixou<br />

Um sonho de Mãe Maria plantou<br />

Pro mundo encontrar a paz<br />

Maria que fez o Cristo falar<br />

Maria que fez Jesus caminhar<br />

Maria que só viveu pra seu Deus<br />

Maria do povo meu 52<br />

Depois, um pouco mais crescidas, rompemos com a Igreja Católica definitivamente e<br />

viramos todas espíritas, mas da “linha branca” é claro. Orientadas pela minha mãe, nos<br />

tornamos espíritas kardecistas (olha a matriz européia mais uma vez). Pelo menos, eu já estava,<br />

por linhas tortas – parafraseando o poeta que diz “prefiro as linhas tortas, como Deus” 53 - me<br />

aproximando dos tambores mais uma vez. Contradições e mais contradições de uma sociedade<br />

de herança escravista.<br />

Dentro de minha família também encontrei/encontro este discurso ambíguo. Explico-<br />

me: outro dia estava com um turbante na cabeça, me achando a mais “africana das brasileiras”,<br />

quando minha mãe viu logo teceu seu comentário discordante: - Tira isso da cabeça! Isso é<br />

52 Disponível em: http://letras.terra.com.br/padre-zezinho/248703/<br />

53 Manoel de Barros "Livro sobre Nada", Editora Record - Rio de Janeiro,1997.<br />

CII


coisa de preto! No que eu respondi perguntando: - E eu sou o que mãe? Ela então, retrucou: -<br />

Você é morena, não é não?!?<br />

Naquele momento, dirigi à minha mãe uma pergunta que eu mesma demorei anos a<br />

responder. Qual é a minha cor? A qual etnia eu pertenço, se o tempo todo, minha formação<br />

passou por um processo de “embranquecimento” e não afirmação das minhas raízes afro-<br />

brasileiras? Meu lugar, durante 25 anos de minha vida, foi o lugar da “morena” que não se<br />

assume mestiça e menos ainda afro-brasileira. Hoje, orgulhosamente, sei que carrego em mim<br />

heranças africanas, européias e indígenas. Surgem daí algumas questões: Quero eleger qual<br />

dessas etnias como referência em minha vida? Quero falar de que história, ou melhor, de quais<br />

histórias? E o que tudo isso tem a ver com minha formação docente, onde mais uma vez vale a<br />

pena ressaltar: educar sim, mas a favor de que(m)?<br />

Leio no momento um livro sobre alguns países africanos. Pela leitura, pude conhecer um<br />

pouco mais sobre Angola, Moçambique, África do Sul etc. Um livro emocionante chamado “As<br />

Mulheres de Meu Pai”, de José Eduardo Agualusa 54 . Neste romance, Agualusa traz narrativas<br />

sobre os conflitos raciais vividos em diferentes territórios africanos, a partir do processo de<br />

descolonização. Ao atravessar especificamente a África do Sul, uma de suas personagens trás<br />

uma narrativa que se aproxima das questões sobre lugar e identidade levantadas por mim. A<br />

transcrição se faz necessária e enriquecedora:<br />

Finalmente sentou-se, de frente para Laurentina e contou-nos a curiosa história<br />

de sua vida: nos anos 60, assim que o appartheit começou a organizar-se, a<br />

mulher, mestiça como ele, escolheu ser classificada como branca, e abandonou-o<br />

com quatro crianças nos braços. Chamou-me a atenção uma frase que repetiu<br />

várias vezes: “depois que minha mulher se tornou branca”. Dizia aquilo sem<br />

ironia, no mesmo tom que poderia dizer “depois que minha mulher engordou”.<br />

Limitava-se a me contar um facto. A mulher portanto, tornou-se branca, opção<br />

comum a muitos mestiços de pele mais clara, rompendo todos os laços que a<br />

prendiam ao mundo dos não-eleitos (...). Meses atrás, voltou a reencontrar a<br />

primeira mulher. Voltou a ser mestiça, aliás, faz muito alarde do muito que<br />

sofreu durante o regime do apartheit. Alimenta aspirações políticas. Serafim riuse:<br />

-Noutros países há quem troque de casaca. Aqui, na África do Sul, somos mais<br />

radicais: trocamos de pele. (AGUALUSA, 2007:211/212)<br />

54 Agualusa é Angolano e já publicou seis romances celebradissimos pela comunidade literária internacional,<br />

recebendo em 2007 o prêmio “The Independent Foreign Fiction Prize”.<br />

CIII


Através do livro, percebemos claramente o conflito identitário vivido por milhares de<br />

pessoas durante o apartheid naquele país. Era comum, nos fala mais a frente o autor, as pessoas<br />

requerem re-classificação de raça, passando de mestiços a brancos, ou de brancos a mestiços,<br />

ou de negros a mestiços. Mas, na prática, como nos afirma a personagem, essas pessoas<br />

continuavam vivendo a mesma vida subalterna de antes, sofrendo preconceitos e discriminação<br />

raciais, mesmo tendo “trocado de pele”, como brinca Serafim.<br />

As questões identitárias trazidas pelas crianças das classes populares com quem convivi<br />

refletiam também este desejo de quererem “trocar de pele”. Quando questionados sobre se<br />

gostavam de sua auto-imagem, a grande maioria dizia: “Não!”. Fiz esta mesma pergunta<br />

recentemente a um grupo de crianças da Escola de Jongo obtive a mesma resposta. Estávamos<br />

assistindo ao DVD da Beth Carvalho que reconta a história do samba no Rio de Janeiro. Apesar<br />

de todo investimento feito por nós, da Escola de Jongo, no sentido de fortalecer a identidade<br />

afro-brasileira, a pressão de fora também é grande, o que leva ao conflito vivido pelas crianças.<br />

O DVD citado prosseguiu, trazendo outros relatos sobre a experiência de se fazer uma<br />

roda de samba no tempo em que o “negro era mal visto” e a represália policial era intensa.<br />

Donga, um dos sambistas entrevistados, relembra que a polícia não apenas batia e prendia, mas<br />

também quebrava os instrumentos. Lembro-me que em algum momento de nossa conversa,<br />

alguém falou baixinho que ser preto era “ruim”. Lancei então a pergunta no ar: Quem era preto<br />

ali? – alguns levantaram as mãos. Quem gostava de ser preto? – nenhuma criança levantou a<br />

mão. Questionados sobre o “por quê” não gostavam de ser preto, um menino negro na esperteza<br />

de seus sete anos que se sentia excluído socialmente falou: - Eu não gosto de ser preto, porque<br />

ser preto é ruim, é feio. Preto é pobre e eu não gosto de ser pobre! (Welton de Amorim,7 anos)<br />

Mostrar a esse menino o valor de sua pele negra em uma sociedade excludente como a<br />

nossa, não é tarefa fácil. Este menino literalmente vive “na pele” toda sorte de preconceitos e<br />

infortúnios: seu pai está preso, sua mãe praticamente o abandonou na casa de parentes, na<br />

escola suas notas são péssimas e ele mal consegue escrever o próprio nome. O único lugar que<br />

freqüenta com prazer é a escola de Jongo: lá ele mostra seus saberes e assim, encontra um<br />

contraponto diante das dificuldades que a vida lhe apresenta. Nós o acolhemos, gostamos dele.<br />

Valorizamos seus saberes e o ajudamos a encontrar oportunidades para, quem sabe, através da<br />

imersão na cultura local, transformar sua realidade.<br />

CIV


Figura 18<br />

Welton de Amorim ( 7 anos) e seu inseparável Tambor<br />

na oficina de percussão oferecida semanalmente em nossa Escola de Jongo<br />

É contra este sentimento de inferioridade encontrada na fala deste jongueiro mirim, cuja<br />

cor da pele e os traços fenotípicos africanos denunciavam uma condição subalterna na<br />

sociedade que minha fala se pronuncia. Dar voz a estas e tantas outras falas de crianças que<br />

vivem situações de exclusão e desmerecimento são meios de se buscar transformar<br />

criticamente, este sentimento de inferioridade recalcada nas identidades negras, ou “quase<br />

negras”, visto que:<br />

Se durante a escravidão os negros já eram desprezados por serem considerados<br />

inferiores, após a abolição esse desprezo só aumentou. Ora, se não eram<br />

inferiores, por que não progrediam como os imigrantes que chegaram aqui com<br />

tão pouco e logo tinham alcançado algum avanço?( SANTOS, 2005:119)<br />

Trazendo o tema para dentro do currículo formal da escola, voltamos freqüentemente a<br />

nos perguntar do porquê temos a sensação - e muitas das vezes as estatísticas de reprovação<br />

denunciam - que os meninos e meninas das classes populares aprendem tão pouco o ABC que<br />

ensinamos ou simplesmente, não aprendem? Por que as crianças da turma de progressão, em<br />

seus estudos são mais lentas do que dos meninos e meninas de outras classes sociais? Que<br />

sentimento de pertença a este lugar que chamamos de “escola” estes meninos e meninas<br />

apresentam, até onde se sentem familiarizados com determinado tipo de conhecimento e não<br />

com outro? E o que fazer quando estes conhecimentos que poderiam se cruzar, se hibridizar e<br />

CV


se enriquecer, se transformam em obstáculos? E principalmente, por que meninos como o<br />

Welton, conseguem aprender tão facilmente os difíceis toques dos tambores jongueiros,<br />

aprendem a dançar o “tapiado” – que é uma batida firme do pé, um contratempo que só o Jongo<br />

da Serrinha tem, decoram todos os pontos e letras do jongo, e mantém-se atento a todas as<br />

atividades em nossa escola e na escola formal que freqüenta, não consegue ainda ler e<br />

escrever?<br />

Retorno agora às minhas histórias locais, percebendo mais nitidamente como estas e<br />

tantas outras histórias encarnadas em sujeitos reais, encontram-se vinculadas a projetos globais<br />

de “subalternização” de saberes e identidades, na qual nossa sociedade está intrinsecamente<br />

envolvida. O que fazer para não “embranquecer” de vez? Como lutar contra essa hegemonia<br />

branca que agora absorve o povo negro como produto e o caricatura, ou o torna arquétipo de<br />

sucesso apenas nos esportes e nas artes fechando-lhe as portas para a infinidade de atividades<br />

humanas ? Em que outros espelhos reais a criança negra ou quase negra vai poder enxergar-se<br />

médica, astronauta, bióloga, diplomata etc. e não ter mais enganos e embaraços com sua bela<br />

cor? E a questão maior: quando nos libertaremos da ilusão fenotípica e seremos todos<br />

simplesmente humanos? Como já foi dito: quando veremos nossa infância e juventude<br />

brasileira pobre como solução, força, potencialidade infinita e não problema, analfabetismo,<br />

miséria e crime? Enquanto isso, vamos fazendo força, não só negros, como brancos, pardos e<br />

pessoas de todos os matizes para sairmos de vez dessa era de obscurantismo que permeia cada<br />

história vivida por uma criança negra, quase negra ou pobre.<br />

Talvez rememorar, não apenas a minha, mas várias outras histórias locais, – como as das<br />

crianças das classes populares, por exemplo – possa nos dar mais pistas sobre como legitimar<br />

essas histórias para que tenham valor epistemológico também.<br />

Assim, voltando a minha história de vida, mais crescida um pouco, tive que me mudar<br />

para uma outra cidade, por conta do trabalho de meu pai. Oportunidade e, diria também,<br />

felicidade, de morar em uma cidadezinha do interior do Estado do Rio de Janeiro: Valença com<br />

seus altos e baixos jardins - que foi fundada em 29 de Setembro de 1823 - e que pelos acasos<br />

da vida, vem ser a mesma cidade que nasceu Vovó Maria Joana. Valença tem muitas igrejas,<br />

sendo que a igreja de Nossa Senhora da Glória (1820- 1917) é a matriz mais antiga e<br />

importante. Mais tarde, vim a descobrir que nesta igreja que tanto freqüentei quando menina, a<br />

Vovó Maria Joana foi batizada em 15/08/1902. Mas Valença tinha /tem mais segredos.<br />

CVI


Valença possibilitou-me ricas experiências e novos encontros com a cultura popular, foi<br />

lá que dancei pela primeira vez a “Dança da fita” onde ficávamos cantando, trançando e<br />

destrançando as fitas coloridas que encantavam meu olhar. Sempre que vejo um pau com fitas,<br />

rememoro estes momentos em que bailava entre fitas e flores multicores que tanto encantavam<br />

meu olhar infantil:<br />

Figura 19<br />

Imagem de um Pau - de - Fitas que estava na Exposição do Quilombo “Campinho da<br />

Independência” na Festa do Saci em Paraty que me faz memorar as festas juninas com seus<br />

Paus-de –fitas coloridos que brincava quando criança/RJ/Arquivo da Escola de Jongo da<br />

Serrinha/ 2007<br />

Mas, foi também em Valença, que vivemos, eu e minhas irmãs, várias experiências de<br />

exclusão – como a da Coroação de Nossa Senhora já mencionada anteriormente. Recordo-me<br />

de outra, tão intensa quanto esta. Saímos de Campo Grande/RJ às pressas, no meio do ano<br />

letivo, pois a transferência de meu pai para o outro quartel não podia esperar. Minha mãe,<br />

preocupada com a continuidade de nossos estudos, preparou rapidamente toda nossa<br />

documentação de transferência escolar. Chegando em Valença, mamãe descobriu que havia<br />

duas escolas públicas no centro de Valença: o Colégio Estadual Theodorico Fonseca, onde<br />

estudavam todos os filhos de oficiais do quartel e conseqüentemente, os filhos da “elite”<br />

valenciana e a escola Municipal José Fonseca, que atendia o restante da população. Diante<br />

destas duas opções, minha mãe encaminhou-se para a primeira escola. Ligou para pegar<br />

informações sobre a documentação escolar, explicou o caso e combinou que no dia seguinte, lá<br />

estaria conosco para conhecermos aquela que aos seus olhos, deveria ser a nossa nova escola.<br />

CVII


Na página da Prefeitura em Valença, encontrei apenas a foto da Escola Theodorico Fonseca que<br />

aparece pomposamente a seguir:<br />

Figura 20<br />

Vista geral do Colégio de ensino Fundamental Theodorico Fonseca . Prédio histórico<br />

de estilo neoclássico construído no período da República /1943. Foi a residência do Visconde<br />

do Rio Preto, virando depois internato de meninos, passando posteriormente por clube e<br />

depois, escola. Atualmente, este prédio foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico,<br />

Artístico e Cultural 55<br />

No dia seguinte, estávamos lá no horário combinado: minha mãe, eu e minhas duas<br />

irmãs. Recordo-me que era um prédio de construção antiga, bastante “pomposa”, bem diferente<br />

da escola municipal em que estudávamos anteriormente. Ao entrarmos, minha mãe se<br />

apresentou esclarecendo o motivo da visita. Depois de esperarmos um bom tempo na secretaria<br />

da escola, uma outra pessoa muito secamente voltou com a resposta: não havia mais vagas<br />

naquela instituição e a secretária entregou a minha mãe, uma solicitação para que ela nos<br />

matricula-se em outra escola mais próxima, a José Fonseca.<br />

Lembro-me bem da decepção que sentimos: como assim, não tinha vaga, se até um dia<br />

atrás, pelo telefone, as vagas estavam garantidas? Sem entender o que realmente estava<br />

acontecendo, mamãe saiu dali e fomos imediatamente para a outra escola, que apesar de estar<br />

repleta de alunos, tinha vaga. E foi lá, nessa escola que nós três estudamos durante todo o<br />

período em que lá vivemos. Minha irmã mais velha, relembrou o assunto:<br />

- Minha mãe ficou muito chateada e quando o Coronel do quartel ficou sabendo do que havia<br />

acontecido, disse que se ela tivesse reclamado com ele, ele teria conseguido as vagas que eram nossas,<br />

por direito. Mas, mamãe não reclamou e acabamos ficando na outra escola mesmo.<br />

55 Disponível em: http://www.cepdv.org.br/inventario_pdf/imperio/09_Colegio%20Theodorico.pdf<br />

CVIII


Hoje, penso que este fato vivenciado por minha família reflete uma situação de exclusão<br />

em determinam quais os lugares de pertencimento dos negros e mestiços em nossa sociedade.<br />

Mas, as situações de racismo “velado” não pararam por aí...<br />

Eu, particularmente, passei por mais uma situação de racismo que muito me marcou.<br />

Certa vez, fui com a empregada doméstica - que era negra - fazer compras miúdas para minha<br />

mãe no mercado. Lembro-me bem do letreiro grande na frente. Chamava-se “Floresta”. Lá<br />

dentro, afastei-me um pouco da moça que tomava conta de mim e acabei entrando<br />

acidentalmente, ou guiada pelo desejo que a grande maioria das crianças têm de comer<br />

chocolate, na parte dos doces. Lá, achei um saquinho de “Confete” aberto e resolvi<br />

experimentar. Peguei alguns – pois o saco estava aberto mesmo! – e fui procurar pela<br />

empregada.<br />

Quando estávamos saindo, um segurança entrou em nossa frente e, com o saquinho<br />

quase pela metade na mão, acusou-me de haver aberto e comido aquele chocolate. Foi uma<br />

situação muito constrangedora: no fundo ele me acusava de ladra. Tentei me defender, dizendo<br />

a verdade: não havia aberto o saquinho de chocolate, vi o chocolate aberto e aproveitei para<br />

comer alguns. O segurança, em alto tom, disse que eu estava mentindo e, para minha surpresa,<br />

falou que minha “mãe” – apontando para a empregada – teria que pagar. Íamos começar a<br />

explicar que ela não era minha mãe, quando chegou a salvação: o gerente do mercado, que eu<br />

não me lembrara de ter visto na vida, conhecia minha família e, principalmente, conhecia meu<br />

pai que, à época, era Tenente do Exército. O gerente veio ver o que era aquele falatório na<br />

entrada do mercado – sim, o vigia falava alto, expondo a situação para quem quisesse ouvir. E,<br />

depois de ouvir a explicação do vigia, falou: - Mas esta é a filha do Tenente Flávio. Foram<br />

palavras mágicas: na mesma hora o incidente foi dado por terminado.<br />

Voltamos eu e a empregada sem dar uma só palavra. Estávamos pensativas, não sei o<br />

que ela imaginava, nem posso me lembrar exatamente o que pensei. Apenas lembro que fiquei<br />

com muita raiva daquele vigia e minha compreensão infantil percebeu que se eu não fosse filha<br />

de quem eu era, estaria em maus lençóis...<br />

Refletindo sobre o episódio que me marcou, algumas questões se apresentam: Se eu<br />

estivesse com meu pai fardado isso teria acontecido? Ou com minha mãe branca? Se eu não<br />

fosse filha de quem era, como ficaria o desfecho desta história? Pela gravidade das acusações<br />

CIX


que recebi, penso que teria passado por “maus bocados”, como qualquer criança negra, pobre<br />

em sociedade excludente como a nossa, onde “e pobres são como podres /E todos sabem como<br />

se tratam os pretos”, como nos fala a canção.<br />

Hoje, distante um pouco mais daquele acontecimento, fico me questionando sobre quem<br />

é o “vilão” desta história. Em uma primeira leitura, podemos afirmar que o vigia teve uma<br />

atitude racista em relação a uma criança negra. Foi grosseiro e rude acusando-me de uma ação<br />

que eu não havia praticado: ter aberto o saco de confete. E mais uma vez, o recorte histórico em<br />

que alguns negros, no papel de capitães do mato, viravam os algozes de seu próprio povo.<br />

Assim como muitos negros escravizados que trabalhavam na casa grande, não se misturavam<br />

com os negros das senzalas, a história registra casos de brancos e mulatos, uns poucos, e vários<br />

deles negros, nascidos na África ou no Brasil, tornaram-se, do mesmo modo que os imalês<br />

traficantes de escravos. Alguns deles fizeram-se famosos, como Francisco Félix de Sousa — o<br />

Chachá de Ajuda 56 que montou seu império na África e se fortaleceram e enriqueceram como<br />

grandes exportadores de escravos para o Brasil.<br />

Será que estes conflitos ainda persistem metamorfoseados de maneiras diversas no<br />

cotidiano de nossa sociedade? Referindo-me mais uma vez ao filme “Quanto vale ou é por<br />

quilo” do diretor Sérgio Bianchi, observamos uma seqüência de cenas em que estas e outras<br />

questões raciais desnudam as máscaras que ainda trazemos dentro de nós, independente de<br />

classe social, gênero ou etnia. O autor trabalha o tempo todo fazendo recortes históricos não<br />

lineares entre o tempo da escravidão e os dias atuais, levando o espectador a fazer uma analogia<br />

entre as questões raciais no Brasil relacionando-as a manutenção da pobreza. Um drama que<br />

revela o quanto ainda existe de racismo e preconceito em nossa sociedade, além de fazer uma<br />

abordagem sociológica sobre como vão se formando as representações e papéis sociais<br />

subalternos em relação aos negros no Brasil e os perigos da atuação de determinadas ONGS<br />

que ao invés de combater, alimentam e aumentam contraditoriamente a pobreza no Brasil.<br />

56 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141994000200003&script<br />

CX


2.1- Gato escondido com rabo de fora<br />

O educador(a) e a Cultura Popular: o desafio de uma alfabetização emancipatória<br />

Em Valença - onde permaneci dos sete aos doze anos - o que marcou para sempre minha<br />

relação com a escola foi a hora do recreio - momento único em que brincávamos de tudo um<br />

pouco: amarelinha, cabra-cega, carniça, garrafão, roda e piques variadíssimos. Brincávamos<br />

também com as palavras: os famosos trava-línguas, as parlendas e os versinhos populares<br />

enchiam meu universo infantil. Brincávamos, aprendíamos e nos divertíamos para valer.<br />

Quando levava os meninos e as meninas para a hora do recreio, de certa forma, revivia estes<br />

momentos tão prazerosos de minha infância:<br />

Figura 21<br />

Crianças brincando no recreio de “caracol”/Tangolomango/CIEP Posseiro Mário<br />

Vaz/2002<br />

CXI


Figura 22<br />

Crianças brincando no recreio de “peteca”<br />

Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2004<br />

Agora, bom mesmo, era quando eu saía da escola e tinha o restante do dia para,<br />

literalmente, “bisbilhotar” as cores, os sons e movimentos que aquela cidade desconhecida teria<br />

para me oferecer. Foi assim que dancei pela primeira vez um Pau-de-fita. Os festejos religiosos<br />

também alimentaram meu imaginário infantil: éramos três irmãs vestidas de anjinho – como já<br />

relatei anteriormente - com suas asas de algodão e penas branquíssimas, mas nem os cachinhos<br />

naturais dos cabelos nos salvaram da exclusão velada e silenciosa.<br />

Memórias ainda não esquecidas que me levam a reconhecer hoje, ou pelo menos<br />

desconfiar, de que o que sou, ou parte do que sou, está impregnado de experiências e valores<br />

trazidos da infância, quando descobri, pelos desvios da vida, não só a dor da exclusão, mas<br />

também a beleza e a sabedoria das classes populares, com suas festas, danças, bois e reisados.<br />

Depois de algum tempo de pesquisa e estudo com as Culturas das classes Populares,<br />

tomei ciência de que Valença é a cidade de maior grupo de Folia de Reis do Rio de Janeiro, que<br />

lá, naquele pedacinho de mundo, tem um Museu Afro-brasileiro organizado por um negro, com<br />

peças da época da escravidão e que todo este rico patrimônio esteve durante muito tempo<br />

fechado e que atualmente, provavelmente por falta de recursos, está aberto somente com<br />

agendamento prévio, o que dificulta em muito a socialização deste saber.<br />

CXII


Figura 23<br />

Memorial Afro-Valenciano Padre João José da Rocha Exposição de objetos ligados à<br />

cultura negra em Valença, como utensílios de cozinha dos negros, cálice e patena da 1ª missa,<br />

objetos de tortura (canga, vira-mundo, perneira), instrumentos musicais afros, objetos de<br />

bambu, etc. 57<br />

Mais tarde, em minhas pesquisas, descobri também que Valença tinha/tem uma tradição<br />

fortíssima de Jongo cujos pontos venho salpicando ao longo deste texto.<br />

Hoje, pelos desvios da vida, trabalho em uma Escola de Jongo, no Morro da<br />

Serrinha/Madureira/RJ, e sinto que estas experiências que poderiam ter enriquecido minha<br />

infância, foram-me negadas. Desnecessário dizer que falamos de uma época em que a escola<br />

estava longe de se abrir às contribuições da Cultura Popular. Mas e hoje, como a escola dialoga<br />

com estes saberes na contemporaneidade? Que educação e cultura são inseparáveis, já sabemos.<br />

Mas, como na prática isto se revela? Como efetivamente trabalhar por de uma educação<br />

libertadora? Não voltei a Valença para reviver esta história e pode até ser nas escolas, ou em<br />

algumas escolas ou alguns educadores valencianos estejam, com certeza, discutindo as<br />

questões por hora levantadas. Trago, entretanto, algumas reflexões vividas no campo do<br />

cotidiano da Escola de Jongo, onde encontros e desencontros com as escolas formais têm nos<br />

possibilitado a mim e as crianças e adolescentes com as quais trabalho, inquietantes<br />

descobertas.<br />

Recentemente (setembro/2006) fui com as crianças e adolescentes da Escola de Jongo<br />

fazer uma apresentação em uma escola particular de classe média alta, no Recreio dos<br />

Bandeirantes/RJ. Tínhamos dois grupos bem distintos: de um lado crianças de uma classe<br />

57 Endereço: Rua Bernardo Viana, 120 (Igreja do Rosário) – Centro – Valença. Telefone: (24) 2453-4248<br />

Funcionamento: Visitação somente com autorização prévia.<br />

CXIII


privilegiada social e economicamente - brancos e formados no interior de determinado tipo de<br />

cultura: a cultura dominante. De outro, nós da Escola de Jongo, crianças e adolescentes da<br />

classe popular, negros ou mestiços formados por outro tipo de cultura. Propus, como rege a<br />

tradição africana, que começássemos pela tradição oral.<br />

Fizemos uma Roda de Conversas, onde as crianças de lá fizeram perguntas às crianças<br />

de cá e vice versa. Várias perguntas e considerações foram feitas, umas as crianças da Escola de<br />

Jongo sabiam responder, outras precisavam de minha interferência para tal. Então, quando se<br />

falava sobre a África como “berço da humanidade”, um menino muito atento levantou o braço,<br />

questionando-me (ou desafiando-me?) - Mas, não havia os gregos? – e sorriu, demonstrando<br />

total convicção de suas certezas epistêmicas.<br />

Sim, havia os gregos – respondi. Mas ... (e este “mas” faz toda a diferença) muito antes<br />

havia o africano, e dentro da África muitos povos, como os Egípcios, por exemplo. O que você<br />

sabe sobre os Egípcios com suas pirâmides misteriosas? Sabe a idade delas?<br />

Se o menino entendeu, aceitou ou se inquietou com minha resposta, não importa muito.<br />

O que fica para reflexão, é que sua argumentação traz ressonâncias de uma informação ou<br />

formação cultural entrelaçada com um discurso totalmente eurocêntrico e dominante: a<br />

hegemonia dos povos europeus colonizadores em detrimento de múltiplas histórias fora do<br />

mundo ocidental, que antecedem, muitas das vezes, a chegada destes “invasores” ou<br />

colonizadores culturais.<br />

Figura 24<br />

Crianças da Escola de Jongo repassando seus saberes para as crianças da Escola<br />

Internacional do Recreio/ Recreio/RJ/2006<br />

CXIV


O que fica para a discussão é o quanto a escola “re-força” a herança ocidental, em<br />

detrimento de outras heranças provenientes de outros locais geohistóricos de produção do<br />

conhecimento. Nesta perspectiva, formamos sujeitos submissos à hegemonia eurocêntrica e<br />

dominante: o “outro” é melhor do que nós e o que vem de fora (o estrangeiro) sabe mais do que<br />

sabemos. Uma visão histórica que tem data e local pré-determinados, trazendo à tona questões<br />

da escrita alfabética, que contribuiu para glória e supremacia dos gregos, deixando para sempre<br />

marcas nas gerações futuras.<br />

E foi nesta visão histórica que eu também fui formada e educada, dentro inclusive de<br />

minha própria família. Ao rever as experiências culturais que fazem parte de minha constituição<br />

identitária, busco compreender as ressonâncias que tais experiências tiveram/têm em minha<br />

vida profissional como educadora e cada vez mais sensível às práticas e saberes das classes<br />

populares.<br />

Por isso, recorro mais uma vez à fala que iniciou as reflexões deste estudo, onde é<br />

denunciada a dicotomia entre saberes populares e saberes oficiais oferecidos pela escola. Estes<br />

questionamentos aparecem nos estudos de Alfredo Bosi em seu livro Dialética da Colonização,<br />

onde ele discute as relações entre as culturas brasileiras: a cultura erudita, cultura de massa e a<br />

cultura popular e o complexo envolvimento delas com a educação. Bosi contra-argumenta no<br />

capítulo final do livro; ele diz que deveríamos deslocar nosso olhar do singular para o plural,<br />

ampliando o foco da discussão para o horizonte cultural múltiplo que existe no interior da<br />

sociedade brasileira. Principalmente, tendo como referência a sociedade de classes e,<br />

conseqüentemente, desigual em que vivemos, onde podemos identificar novamente variantes<br />

dos tipos de cultura que coexistem: cultura da elite, do povo, dos sem- terra, dos negros ou<br />

afros-descendentes, cultura escrita, cultura oral, das mulheres, dos homossexuais, das crianças<br />

etc. Todas elas intimamente imbricadas com o projeto de nação ou como nos lembraria Freire,<br />

com o “tipo” humano que queremos formar.<br />

Mas, enfim, como definir a palavra cultura? E por que ela é tão importante para a<br />

compreensão dos problemas que afligem nossa sociedade? E a educação, o que ela tem a ver<br />

com tudo isso?<br />

CXV


Bosi trabalha em seu texto com o conceito antropológico de cultura, ou seja, como um<br />

conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social (Bosi, 1992 p.<br />

319) nos leva, pelo olhar da antropologia, a repensar as dimensões culturais da educação. Com<br />

isso, fica embutida a necessidade de buscar uma filosofia da educação que contemple as<br />

construções históricas e sociais da(s) cultura(s), onde os saberes, valores e diferentes<br />

cosmovisões se entrecruzam, tencionam-se, agregam-se e se transformam mutuamente,<br />

obrigando-nos a um esforço cada vez maior de diálogo entre as culturas. Brandão apresenta<br />

uma concepção dialética de cultura:<br />

Ao lado da concepção usual que vê na cultura o produto do trabalho do homem<br />

sobre a natureza e leva mais em conta o produto feito do que o trabalho –<br />

inclusive o trabalho político do fazer – que cria e reproduz a cultura, agora se<br />

concebe uma idéia de cultura subordinando-a às de: trabalho, como modo<br />

humano de ação consciente sobre o mundo; história, como o campo de<br />

realização e produto do trabalho do homem: dialética, como a qualidade<br />

constitutiva das relações entre homem e natureza e dos homens entre si, através<br />

de cujo movimento o ser humano cria a cultura e faz história. (BRANDÃO,<br />

2004:38)<br />

Interligando estes pensamentos, podemos compreender a atividade humana produzida e<br />

produzindo cultura e, mais uma vez, reportar-nos às dimensões culturais da educação,<br />

encarando o sujeito – todo e qualquer sujeito - como promotor de cultura(s). Esta dimensão de<br />

construtor de culturas é que faz do homem um ser histórico que realiza o trabalho com outros<br />

homens uma série de atividades humanas, modificando e transformando a todo instante o seu<br />

mundo e o mundo ao seu redor. Assim, as coisas, os objetos, as pessoas vão ganhando sentido,<br />

vão ganhando significados. Somos sujeitos de cultura(s). Culturas marcadas pelo fazer coletivo<br />

que vem possibilitando ao homem conhecer e transformar o mundo, mas também se<br />

transformar, tomar consciência das relações e conhecer-se. Como nos lembra Freire, nesta<br />

trajetória histórica o homem se humaniza.<br />

Daí a relevância dos estudos culturais para a ação educativa e que nos leva mais uma<br />

vez a nos perguntar: Educar, sim, dentro de qual cultura? Voltamos a falar de educação ou<br />

Educações como sugere Brandão, e trabalhando na des-construção do singular para o plural,<br />

como nos propõe Bosi, Pretto e tantos outros.<br />

Neste sentido, pluralizar implica negociações, muito freqüentemente doloridas. O<br />

confronto com o outro, com a diferença gera conflitos entre sujeitos pertencentes a grupos<br />

CXVI


sociais diferentes. Esta tensão pode provocar fortalecimentos de uns e enfraquecimentos de<br />

outros. Vida e morte novamente. Pretto nos ajudará mais uma vez, pois trabalha com a<br />

perspectiva da ambigüidade e contaminação cultural:<br />

A contemporaneidade requer culturas que se misturam e ressoam mutuamente.<br />

Que convivem e se modificam. E se modificam modificando outras culturas pela<br />

convivência ressoante. Um processo contínuo, que não se limita a um receber<br />

ou dar. É contaminação. É ressonância. Estabelece-se uma troca permanente,<br />

constante e sem hegemonias predeterminadas e preestabelecidas, definidas a<br />

priori, de fora, externamente e sem a presença dos implicados, todos os<br />

implicados, principais e secundários. (PRETTO, 2005:138)<br />

Este mesmo jogo de forças, esta tensão em que “cada um puxa a corda para o seu lado”<br />

também está presente no território escolar, onde agentes principais – a cultura oficial, currículo<br />

universal etc – e secundários – a cultura popular, o saber dos educandos, as histórias locais etc –<br />

interagem constantemente, uma ressoando na outra criando ruídos, conflitos onde cada qual<br />

tenta se fortalecer como pode. Um jogo de fortalecimento e enfraquecimento constante se<br />

estabelece a todo instante dentro da escola. Um movimento contínuo e ambíguo, em que<br />

diferentes cosmovisões entram em cena, interagem, como já afirmamos anteriormente, criando<br />

e recriando, transformando e deixando-se transformar na busca constante de dar sentido e re-<br />

significar o mundo ao redor.<br />

Por isso, voltando às questões que se colocam para esta pesquisa, acredito que recuos<br />

históricos se fazem necessários para a compreensão de que o período de colonização no Brasil<br />

continua ressoando de diferentes maneiras, tanto para as classes dominantes, como para as<br />

classes subalternizadas.<br />

Histórias locais, culturas locais, culturas muitas vezes negadas, silenciadas por outras<br />

culturas. Encontros que marcaram e mataram e que se desdobram nos dias de hoje, sob diversas<br />

máscaras e formas de opressão. Somos hoje um povo mestiço, herdeiros de grandes genocídios<br />

originários destes encontros/desencontros culturais.<br />

Observamos que no processo de escolarização no Brasil, fazendo um recorte da década<br />

de 40, apenas um terço da população brasileira tinha acesso à escola. O que mudou de lá para<br />

cá? Por que continuamos insatisfeitos com o ensino da grande maioria das escolas públicas<br />

brasileiras?<br />

CXVII


Como sabemos, no início do processo de escolarização no Brasil, eram as camadas mais<br />

favorecidas economicamente que tinham o “privilégio” de freqüentar a escola e, mesmo assim,<br />

era comum até nessas famílias mais abastadas, a escolha deste ou daquele filho para seguir os<br />

estudos – visto que para as aspirações de uma sociedade especificamente de economia agrária,<br />

ter um “doutor” na família já estava de bom tamanho. Dos filhos restantes, os homens<br />

trabalhavam com os negócios da família e as mulheres se preparavam para casar e ter filhos.<br />

Em 1940, por exemplo, menos de um terço da população, entre 7 e 14 anos estava na escola<br />

enquanto em 2000, a taxa de escolarização passou para quase 95% das crianças 58 .<br />

Além disso, saímos de um Brasil rural para um país que rapidamente se industrializava e<br />

se “modernizava”. Mas este estado de coisas foi mudando com a crescente urbanização, visto<br />

que na mesma década, menos de um terço (31, 3%) da população morava nas cidades,<br />

enquanto no 2000 já eram 81,2%. O contingente de população urbana, que correspondia a<br />

12,8 milhões de habitantes, em 1940, atingiu 137,9 milhões, no último Censo. 59 Os dados<br />

estatísticos apenas potencializam o que nós que moramos em uma grande cidade como o Rio de<br />

Janeiro sentimos: o inchaço de uma cidade que cresceu de forma muito rápida e sem<br />

planejamento.<br />

À medida que o Brasil ia se tornando cada vez mais urbano, a cultura escrita se impunha<br />

crescentemente, fazendo com que a distribuição entre letrados e não letrados cumprisse o papel<br />

de manutenção de uma sociedade desigual. As mudanças de ordem social, política e econômica<br />

obrigaram a escola a abrir suas portas para um número maior de pessoas de diferentes culturas<br />

e classes sociais, sobretudo a partir da obrigatoriedade do ensino fundamental, instituída<br />

durante o regime militar. De lá para cá, muito pouca coisa mudou e a escola, que no imaginário<br />

popular deveria servir de base para diversas transformações e inclusive de abertura para<br />

mobilidade social, demonstra-se na prática, mais uma faceta do poder da cultura dominante: ela<br />

espelha a dominação e oprime, através de relações saber e poder, tornando-se neste sentido,<br />

uma escola alienante. Em resumo, a colonialidade permanece após a quebra dos laços da<br />

colonização.<br />

58 Disponível em:<br />

http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=892&id_pagina=1<br />

59 Disponível em:<br />

http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=892&id_pagina=1<br />

CXVIII


E o mais grave: quando as crianças das classes populares percebe que não consegue<br />

incorporar e aprender os valores da cultura oficial imposta pela escola, um sentimento de<br />

incompetência as paralisam, e muitas acabam ficando no meio do caminho: nem reafirmam os<br />

saberes trazidos de sua cultura, nem se apropriam daqueles que a escola lhes apresenta.<br />

Brandão, citando Levi-Strauss, afirma que:<br />

Na verdade, hoje a escola e tudo o que ela envolve passa por um processo de<br />

deteriorização e, sob alguns aspectos, está em ruínas. Mas a natureza desta<br />

condição é exterior ao sistema educacional que apenas reage como pode a um<br />

tipo de mundo que lhe rouba o sentido e a adequação. Portanto, ‘antes de ser<br />

pedagógico’, o problema da criança criadora coloca-se em termos de<br />

civilização.(Levi-Strauss aput Brandão, 2004:164)<br />

Este sentimento de “ruína” e perda de “sentido” eram comuns nas classes de Progressão,<br />

onde o menino e a menina cansados de tentar conseguir aprender passavam a resistir a todo<br />

movimento de aproximação com a leitura e a escrita apresentadas pela escola. Para driblar um<br />

pouco o “gosto” do fracasso, viravam excelentes copistas, mas não escreviam e nem liam<br />

sozinhos, não criavam. Este é um dos reflexos mais evidentes do fracasso escolar<br />

historicamente constituído em nossa sociedade.<br />

Para tentar resolver essa questão, muitas políticas nos níveis federal, estadual e<br />

municipal têm sido implementadas. Falamos especificamente nesta pesquisa de algumas<br />

políticas instituídas pelo município do Rio de Janeiro que, de portarias em portarias, como<br />

veremos a seguir, a questão do analfabetismo continua e o tema fracasso escolar é sempre<br />

recorrente.<br />

No que diz respeito às Classes se Progressão, as Portarias instituídas pela Secretaria de<br />

Educação do Município do Rio de Janeiro apontam seu início em 2000, ano da implantação do<br />

regime ciclado, e seu término em 2007, como se lê a seguir:<br />

“§ 2º Excepcionalmente, no ano de 2007, devido à transição do sistema seriado<br />

para o sistema ciclado, poderão estar enturmados:<br />

a) no 1º Ciclo de Formação, alunos com 9 anos;<br />

b) no 2º Ciclo de Formação, alunos com idade igual ou superior a 12 anos;<br />

c) no 3º Ciclo de Formação, alunos com idade igual ou superior a 15 anos;<br />

d) nos 1º, 2º ou 3º Ciclos de Formação, os alunos transferidos de outras<br />

redes de ensino com base na documentação apresentada pelo aluno, seguindo o<br />

mesmo processo de enturmação dos alunos da Rede Pública do Sistema<br />

Municipal de Ensino.<br />

CXIX


§ 3º Ficam extintas as Turmas de Progressão.<br />

§ 4º Os alunos oriundos das Turmas de Progressão de 2006 deverão ser<br />

enturmados, em 2007, no 2º Ciclo de Formação - Período Inicial.<br />

§ 5º Excepcionalmente, no ano de 2007, será instituído projeto, de caráter<br />

acelerativo, para os alunos com 14 e 15 anos completados até 28/02/2007,<br />

oriundos das Turmas de Progressão e de matrícula inicial.<br />

§ 6º Excepcionalmente, no ano de 2007, os alunos oriundos das Turmas<br />

de Progressão, com 16 anos ou mais, serão encaminhados ao PEJA. 60<br />

A rede Municipal de Educação conta hoje com um total de 1.054 Escolas, 203 Creches,<br />

37 mil professores e 748.409 mil alunos, onde a reorganização escolar por ciclos é um desafio<br />

para este gigantesco sistema de ensino. A extinção das Turmas de Progressão traz à tona a<br />

necessidade de discutirmos antigos dilemas, tais como, repetência e aprovação automática, que<br />

estão intrinsecamente veiculados ao sistema ciclado de ensino.<br />

O que de fato sabemos é que a reprovação deixa marcas negativas profundas nas vidas<br />

das crianças de classes populares mas, como fomos formados por essa concepção conteudista<br />

educativa, que sendo “bancária” (FREIRE, 2005:71) favorece a desumanização do homem, a<br />

dificuldade de resolvermos esta questão nos parece na maioria das vezes intransponível.<br />

Lembro-me que um dia, estávamos em um Centro de Estudos 61 na escola, quando um<br />

senhor aparentando mais ou menos 50 anos, negro, de corpo franzino apareceu na porta. Não<br />

entrou. Olhava para as paredes como se essas lhe falassem coisas. Chamou-me a atenção e,<br />

curiosa, resolvi perguntar:<br />

- O senhor está procurando alguém?<br />

- Não – respondeu-me pensativo - estou olhando e me lembrando que foi nesta sala, que eu fiquei<br />

reprovado na primeira série. Fui reprovado cinco vezes.<br />

Olhei para a sala, para aquelas paredes e pensei o que aquele depoimento denunciava.<br />

Queria que ele entrasse, queria ouvir mais um pouco sobre sua história e descobrir se havia<br />

conseguido aprender a ler e escrever, quando isso se deu, o que faz da vida hoje, em que<br />

trabalhou etc. Queria entender melhor que sentido teve em sua vida aquelas cinco repetidas<br />

reprovações e qual o sentido da escola hoje para ele. Sabia que poderia aprender muito com<br />

60 Diário Oficial do Rio de 18/12/2006. Disponível em: http://doweb.rio.rj.gov.br/sdcgi-bin/om<br />

61 Pensados e organizados pela SME, os Centros de Estudos funcionam como um dos momentos de Formação<br />

Continuada. Neste dia pré-estabelecido pela rede, as aulas vão até o meio período e todas as escolas trabalham com<br />

um tema único.<br />

CXX


aquele senhor, mas, estávamos em um Centro de Estudos, tínhamos muito o quê estudar e,<br />

afinal, estávamos ali para discutir sobre “Avaliação Escolar” e não sobre repetência ou coisas<br />

parecidas. O Senhor se foi, mas aquela experiência me marcou, deixando incertezas e dúvidas<br />

sobre que “tipo” de educação falávamos.<br />

Experiências que me levam a perceber cada vez mais que desenvolver um olhar sensível<br />

às práticas culturais de nossos educandos se constitui um desafio e um caminho possível para o<br />

enfrentamento de questões referentes à exclusão escolar das crianças e jovens das Classes<br />

Populares, especificamente daquelas que não conseguiram ainda completar seu processo de<br />

alfabetização e ficavam retidas nas classes de Progressão do Município do Rio de Janeiro.<br />

Reporto-me especificamente, ao período compreendido entre 2004/2006 e uma rede de<br />

1044 escolas e mais de 37 mil crianças e adolescentes, que carregavam desde os primeiros anos<br />

de sua vida escolar uma experiência negativa, em relação à aprendizagem da leitura e escrita.<br />

Fato decorrente de um processo de desconhecimento e, conseqüentemente, desvalorização de<br />

suas experiências significativas de aprendizagem, motivações, comportamentos e<br />

principalmente de criação, que acontece cotidianamente fora do ambiente da Escola. Uma<br />

escola que pretenda formar sujeitos livres, capazes de transformar criativamente a sua prática,<br />

anuncia-se como uma escola capaz de dialogar com estes diferentes mundos que existem no<br />

interior de diferentes classes sociais, onde encontramos outras formas mais eficazes – para<br />

aquelas pessoas - de ensinar e aprender.<br />

Percebo que os relatos de minha história, assim como os relatos das crianças das classes<br />

populares, estão de alguma forma entrelaçados à questão da migração das populações de<br />

regiões, onde a miséria e a pobreza os levaram/levam a se desenraizar. Mas, sobretudo, quero<br />

enfatizar que no Brasil de herança escravista, estes entrelaçamentos me levam a pensar se seria<br />

possível ter como estratégia de ensino-aprendizagem a historicidade dos fatos cotidianos e se<br />

estes mesmos fatos podem vir a servir de base à pesquisa e à produção de conhecimentos para<br />

melhor compreensão da vida social. O pano de fundo seria uma formação complexa do<br />

educador(a) de modo a dar mais ênfase, inclusive, às culturas, às políticas e às histórias locais e<br />

globais, de modo a compreender uma trama invisível, por trás do fracasso escolar.<br />

A partir destas brechas que possam surgir através de uma infinidade de perguntas que<br />

cabe à Escola a si mesma fazer, os contextos culturais dos quais nossos educandos concretos<br />

fazem parte, podem vir a ser tomados como referência para elaborarmos métodos mais<br />

CXXI


significativos para estes sujeitos em formação. Palavras como vida, inteligência e conhecimento<br />

estão de tal maneira interligadas que não poderíamos mais pensar Educação sem Cultura(s) e<br />

suas estruturas de relações.<br />

Trago novamente o relato de uma professora do CIEP que expressa sua visão de mundo<br />

em relação aos conflitos que as crianças das classes populares enfrentam cotidianamente dentro<br />

e fora da escola:<br />

Marisa:- Então, a gente passou três anos trabalhando com Turmas de Progressão, qual a sua<br />

impressão sobre essas turmas?<br />

Simone:- Minha impressão é que alguma coisa faltou, digo lá nos períodos inicias. Uma falta de<br />

pressão de casa, uma falta de pressão de alguns professores. Porque a gente sabe que as turmas de<br />

Progressão têm sempre uma característica: as crianças de cor preta, são negras, são as crianças mais<br />

necessitadas, são as crianças que vem mais mal arrumadas, que os pais não comparecem a escola. Pelo<br />

histórico de vida você pode ver, são as crianças que faltaram demais, que tem pouca freqüência. A<br />

dificuldade de aprendizado existe, o que não existe é não aprender. Mas, é claro que precisamos de um<br />

atendimento especial. O quantitativo de alunos na sala interfere...<br />

Marisa:- Mas a turma de Progressão acabou e ai?<br />

Simone: -E aí que sinceramente não sei o que a prefeitura vai fazer porque as crianças estão passando,<br />

estão indo pras turmas que a realidade é triste, porque na maioria das vezes os profissionais da 3º ou 4º<br />

série, eles já querem alunos prontos, que saibam ler e escrever pra poderem mandar trabalhos, e<br />

começam a achar que essas crianças estão perdidas, e vão ficar cada vez mais...<br />

Marisa:-E a Turma de Projeto? – refiro-me aqui, a turma especial criada pela CRE para tentar<br />

alfabetizar as crianças que não tinham a mínima condição de serem enturmadas no sistema ciclado.<br />

Simone: - A turma de Projeto pra mim não da certo. Eu não quis dar aula, porque foi dito que teriam<br />

assistência de professores de arte, de material escolar, disso, daquilo, e nada disso aconteceu. Ninguém<br />

queria pegar. E o perfil das turmas era o seguinte: as crianças que já eram da escola tudo bem, porque<br />

você já conhecia a historia de vida, a família e o comportamento daquela criança. Mas, as que vieram<br />

de outras escolas encararam isso como mais uma escola onde elas iam bagunçar, então elas mal<br />

ficavam em sala. É claro que de um grupo sempre sai alguém, sempre sai alguma criança, agora, tinha<br />

crianças ali que você via que as necessidades deles eram com profissionais com outras competências.<br />

Aquelas crianças não vão aprender. Há uma falta de material, falta de profissionais, a falta de tempo,<br />

uma falta de um espaço adequado porque uma sala comum não vai dar conta, a falta de<br />

acompanhamento da família também. Quer dizer a escola recebe um modelo maravilhoso, ótimo. Mas<br />

nesse motor faltam varias engrenagens, família, material, profissional, médico, fono, sem isso, fica<br />

difícil o trabalho dar certo.<br />

Eu não acreditei. No final do ano eu olhei, a turma foi pra outra série e voltou. Foi uma turma que já<br />

tinha 5 anos de progressão, e ninguém queria pegar. Se você tem a opção de pegar uma turma com<br />

crianças comuns, porque as turmas de Projetos não são crianças comuns, você vai pegar uma de<br />

projeto porque? A criança passa só quatro horas e meia aqui. O resto ele passa na rua. Na rua, não é<br />

em casa com a mãe, é na rua mesmo.<br />

Marisa :- Mas, voltando ao tangolomango, logo assim que eu saí, você pegou a minha turma...<br />

Simone: - Eles liam e escreviam. A dificuldade deles era a escrita ortográfica Daniel acompanhou, foi<br />

embora, passou pra 4º serie. (Daniel é o menino que aparece através de vários desenhos durante esta<br />

pesquisa). Willian, ele lia com uma certa dificuldade, mas entendia e tinha dificuldade em escrever.<br />

Mas uma vez, a mãe dele chegou pra mim e falou assim: - Olha o que o Willian fez. Ele comprou o<br />

pacote de Miojo, e eu não queria que ele fizesse. Aí eu disse que ele não sabia fazer. Então ele<br />

CXXII


espondeu: - A minha professora me ensino a ler pra quê?!? Ele leu o pacote todinho do Miojo e fez.<br />

Quer dizer, a partir daí eu acho que ele já tava pronto pra ir embora... 62<br />

O que fazer com a as crianças que não aprendem? O que estas crianças e adolescentes<br />

têm a nos dizer e ensinar? O que sabem? Por que resistem e insistem? Faço estas perguntas,<br />

buscando desmistificar a prática tradicional de ensino, alinhando-me ao pensamento de<br />

Guimarães Rosa que escreveu: Mestre não é quem ensina, mas aquele que, de repente,<br />

aprende.<br />

Nesta perspectiva, o projeto pedagógico Tangolomango buscava refletir acerca das<br />

seguintes questões: de que maneira, no contexto da prática pedagógica do educador, pode se dar<br />

os diálogos entre diferentes saberes? Como incorporar a diversidade cultural trazida pelos<br />

educandos no contexto escolar, de modo a enriquecê-lo? E o currículo, onde fica no meio desta<br />

riqueza polifônica de saberes? Até que ponto, uma mudança na perspectiva do olhar, cada vez<br />

mais sensível do educador, as práticas e manifestações populares (modos de subsistências e<br />

resistência – festas, religiosidade, danças, histórias, brincadeiras etc.) auxiliam o trabalho de<br />

valoração do sentimento de alteridade dos educandos e em seu processo de alfabetização?<br />

2.2 – A canoa virou, pois deixaram ela virar<br />

Algumas considerações sobre o Movimento Folclórico Brasileiro: “Defender nosso<br />

Patrimônio artístico e cultural é alfabetização”(Mário de Andrade)<br />

Houve um momento, em que as preocupações e debates sobre o Folclore nacional<br />

tornaram-se bastante intenso no Brasil. Um momento de forte inquietação intelectual e<br />

artística que levaram nossos primeiros folcloristas que tornaram-se os primeiros<br />

protagonistas a marcarem história e produzirem uma série de ações políticas voltadas para a<br />

valorização do Folclore nacional como expressão máxima do que seria o povo brasileiro,<br />

com suas especificidades e origens. Observamos que o Folclore, desde suas raízes<br />

etimológicas, esteve associado a uma reminiscência do passado no presente, a algo que<br />

62 Depoimento de Simone Dolores, professora que trabalha no CIEP há 15 anos. Entrevista realizada no dia<br />

26/02/2008.<br />

CXXIII


corria sério risco de desaparecer. Refiro-me especificamente às discussões encontradas de<br />

maneira bem mais ampla e detalhada no livro “Projeto e missão: o movimento folclórico<br />

brasileiro 1947-1964” escrito por Luiz Rodolfo Vilhena. No livro, que é uma versão<br />

resumida de sua tese de Doutorado, Vilhena abre as portas para uma série de discussões<br />

sobre o Folclore, a Cultura Popular e formação de uma “identidade brasileira” e traz uma<br />

importante discussão em sua conclusão sobre “os lugares do Folclore”, analisando o fim do<br />

Movimento Folclórico no Brasil, assim como as conseqüências das lutas sociais e ações<br />

políticas que ressoam no tecido social até os dias atuais. Pontos e contrapontos de um<br />

Movimento Folclórico intenso que na visão do autor:<br />

(...)não foi constituído meramente por um conjunto de diletantes<br />

exóticos anacrônicos, mas faz parte de valorização, mas faz parte do<br />

nosso pensamento social, esse “objeto” foi responsável pela<br />

constituição do campo intelectual no qual estamos situados e vivemos<br />

hoje. (VILHENA, 1997: 268)<br />

E são estas as ressonâncias que esta pesquisa procura iluminar: Quais são as<br />

reminiscências deste movimento dentro do atual cenário educacional brasileiro? Quais<br />

repercussões, naturalizações e estranhamentos herdados por este movimento histórico em<br />

prol da valorização do Folclore nacional que ainda persistem no cotidiano da escola?<br />

Segundo o autor, as discussões tornaram-se bastante intensas a partir de Mário de<br />

Andrade, escritor Modernista e participante ativo da Semana de Arte Moderna do MAM de<br />

São Paulo (1922). Mário foi diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo<br />

(1935 – 1938) organizando um mapeamento das manifestações populares por todo o Brasil,<br />

mantendo correspondências com folcloristas dos mais renomados, como Câmara Cascudo<br />

por exemplo, em certo momento de sua pesquisa afirmara que não bastaria apenas ensinar o<br />

analfabeto a ler e que em sua visão, “defender nosso Patrimônio histórico e artístico é<br />

alfabetização”. 63<br />

Outro importante pesquisador dos fatos folclóricos citado no livro, o poeta<br />

Parnasiano Amadeu Amaral , que já em 1925 tinha como objetivos principais “a criação de<br />

um museu de folclore, a necessidade de mapear o Folclore brasileiro, a organização de uma<br />

biblioteca especializada e, finalmente, o aliciamento, nas diversas localidades do país, de<br />

63 Fonte: DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo. Hucietc, 1985.<br />

CXXIV


“correspondentes” capazes de realizar a coleta primária que julgava indispensável”<br />

(VILHENA,1997:79), foi um dos percussores deste movimento em favor do Folclore e<br />

Cultura Popular brasileiro. Muito tempo depois, a Biblioteca do Museu do Folclore Édson<br />

Carneiro, levaria reconhecidamente seu nome.<br />

Podemos traçar também, algumas outras características importantes para os avanços<br />

das pesquisas em Cultura Popular no Brasil, presentes nos apontamentos de Mário de<br />

Andrade e Amadeu Amaral, que seriam: as primeiras propostas de criação de órgãos e<br />

entidades governamentais – no caso de Mário – e não governamentais, através de Amadeu<br />

Amaral e o questionamento da “tradição” enquanto elemento definidor do fato folclórico,<br />

trazendo abertura para a inserção da Cultura Popular urbana como fato folclórico, rompendo-<br />

se pela primeira vez com a dicotomia rural x urbano.<br />

Os estudos sobre os fatos folclóricos foram se avolumando ainda mais ao longo<br />

destas décadas, culminando com o surgimento da Comissão Nacional do Folclore (CNFL)<br />

um pouco antes da década de 50. A movimentação da Comissão Nacional do Folclore inicia-<br />

se, efetivamente, a partir do I Congresso Brasileiro de Folclore, iniciado em 1951 e<br />

sucedendo-se, anualmente, até 1963, configurando-se como os momentos de maior<br />

expressividade e dinamismo do movimento.<br />

Renato Almeida – Fundador da CNFL. aspirava a superação do “autodidatismo”<br />

(VILHENA,1997:125) que acompanhava os estudos do folclore no Brasil. Superação esta que viria<br />

com a “institucionalização” dos estudos do folclore, criando conseqüentemente um mercado<br />

de trabalho que absorvesse estes profissionais voltados para uma pesquisa científica,<br />

consolidando sua profissionalização em prática e promovendo a renovação sistemática de<br />

futuros pesquisadores.<br />

A movimentação de maior visibilidade do Movimento Folclórico foram os<br />

congressos intercalados com as semanas folclóricas que aconteceram nas seguintes cidades<br />

respectivamente: Rio de janeiro (27 a 31 de agosto de 1951) – vale ressaltar neste Congresso<br />

CXXV


foi redigida a Carta do Folclore Brasileiro – texto programático do Movimento Folclórico;<br />

em Curitiba (22 a 31 de agosto de 1953); em Salvador (2 a 7 de julho de 1957); em Porto<br />

Alegre (19 a 26 de julho de 1959) e em Fortaleza (21 a 26 de julho de 1963). Entre este<br />

período, tivemos um Congresso Internacional de Folclore em São Paulo (15 a 22 de agosto<br />

de 1954).<br />

Já as Semanas Nacionais de Folclore, aconteceram nas seguintes cidades e datas: Rio<br />

de Janeiro (1948); São Paulo (1949); Porto Alegre (1950); Maceió (1952). Os frutos dessa<br />

campanha foram: a valorização da Cultura Popular e da Identidade Nacional, a Inauguração<br />

da Biblioteca Amadeu Amaral, vários convênios com as Universidades do Ceará e da Bahia,<br />

os Festivas Folclóricos, a criação da Revista Brasileira de Folclore e o início da catalogação<br />

de composição de documentários fonográficos e fotográficos, entre outros. Fora isso, as<br />

aspirações e objetivos centrais da CNFL apontavam para três fatores fundamentais para a<br />

valorização do Folclore, que seriam: “a pesquisa, para o levantamento do material,<br />

permitindo seu estudo; a proteção do folclore, evitando sua regressão; e o aproveitamento do<br />

folclore na educação”(VILHENA in Almeida,1953-341:174).<br />

Os debates intelectuais sobre o tema, apelos em favor da defesa de nossas tradições folclóricas, solicitação de uma agência<br />

governamental que coordenasse pesquisas e a preservação dos patrimônios culturais, trouxeram credibilidade para o movimento fomentando o<br />

que os folcloristas denominaram Campanha de Defesa de Folclore Brasileiro em 1958.<br />

Dos três eixos em questão levantados como bandeira pela CNFL, tivemos como<br />

protagonista que toma a frente dos estudos entre folclore e educação, a figura de Cecília<br />

Meireles, que além de literata era educadora. Suas maiores preocupações eram de que “os<br />

estudos folclóricos não deveriam passar a fazer parte do currículo escolar de maneira<br />

formal – como se aprende as outras disciplinas – mas sim, como um apoio à ação<br />

pedagógica dos professores”. (VILHENA, 1997:193)<br />

CXXVI


Figura 25<br />

“O que é , o que é, que está no meio do rio?” Resposta: A letra “I”.<br />

Daniel expressa sua visão de mundo sobre os “seres encantados” que moram no rio:<br />

Um homem e sua carranca, a sereia e o Boitatá, a baleia cantora etc. Projeto Tangolomango/<br />

Turma do Parangolé/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003<br />

Como podemos observar no desenho acima, as práticas pedagógicas do<br />

Tangolomango, buscavam dialogar com tais aspirações. Vejamos um pouco mais de perto,<br />

como as crianças percebiam estes movimentos, através de suas falas rememoradas:<br />

Marisa: -Das atividades que fizemos em sala, do que vocês mais gostaram?<br />

Willian (11 anos): - Da história que você contava, aquela do rabo do macaco “perdi meu rabo,<br />

ganhei uma...”(todos cantam juntos e se divertem)<br />

Marisa:- Você está falando da história do “Rabo do macaco”, né? Agora, vamos ver as fotos<br />

pra ver do que a gente lembra.Olha aqui... O que a gente estava fazendo???<br />

Saiara (12 anos): - É a história do Boi - Bumbá.<br />

Marisa:- De onde vem essa historia do Boi - Bumbá??<br />

Natália (12 anos) : - É do folclore.<br />

Alexandre(11 anos): - Tem uma história também que foi lá no museu. Era o museu do boneco,<br />

tinha um monte de bonequinho.<br />

Marisa: - Foi o Museu do Pontal, que a gente foi conhecer...<br />

Raissa (12 anos): - A gente” vimos” o teatro.<br />

Marisa: - Este já foi outro passeio.<br />

Raissa (12 anos): - Foi a história do Pavão...<br />

CXXVII


Marisa: - A história do Pavão Misterioso, né? (todos concordam com a cabeça). Mas o que<br />

vocês mais gostavam de fazer na aula?<br />

Willian (11 anos): - Futebol!<br />

Willian (11 anos): - Bater no tambor!<br />

Marisa : - E o que mais?<br />

Saiara (12 anos): - Trabalho.<br />

Natália (12 anos): - A gente se divertia fazendo o trabalho. Não era aquele trabalho que a<br />

gente ficava só quieto fazendo não, a gente se divertia.<br />

Marisa: - E o que mais fazíamos?<br />

Saiara (12 anos): - A gente enfeitou a sala com um monte de boizinho pendurado no teto.<br />

Saiara (12 anos): - Ficavam aquelas correntes de papel era bonito...<br />

Alexandre (11 anos): - A gente até fizemos um lanche dentro da sala. Com os pais.<br />

Marisa:- O que mais vocês acham que a gente fez na nossa aula??<br />

Saiara (12 anos): - Estudamos muito, fazia umas provas...<br />

Moises (12 anos): - Foi legal.<br />

Marisa: - Vocês acham que aprenderam a ler alguma coisa??<br />

Willian (11 anos): - Eu aprendi!- fala animado. O Alexandre também aprendeu. A gente<br />

aprendeu a ler muitas coisas.<br />

O depoimento de Natália acima chama atenção pelo tom entusiasmado com que fala<br />

sobre as aulas, afirmando que não era aquele trabalho que a gente ficava só quieto fazendo<br />

não, a gente se divertia. Brincar e aprender são movimentos importantes para o Tangolomango.<br />

Mas, apesar de todo o esforço da CNFL de se pensar um projeto pedagógico de inclusão<br />

dos estudos das manifestações folclóricas nas escolas, o movimento começa a perder força<br />

inicialmente pelo falecimento de Mário de Andrade (1893- 1945) e um mais adiante, o de<br />

Cecília Meireles (1901- 1964), pessoas singulares na movimentação das ações políticas dos<br />

estudos folclóricos. Aliado a isso, não podemos esquecer que instaurava-se no cenário social<br />

brasileiro um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil proposto pelo golpe militar de 64<br />

- onde a desconfiança a todo e qualquer projeto utópico para o país que atendesse as aspirações<br />

de uma educação mais humanitária e socialmente inclusiva. Ou seja, os contextos históricos<br />

que outrora acenavam para múltiplas possibilidades de interações e trocas culturais,<br />

apresentava-se agora completamente hostil e repressor a qualquer atividade que ameaçasse a<br />

“ordem vigente”.<br />

A partir desta data, pouca coisa ou quase nada pode ser feito e o movimento folclorista<br />

no Brasil vai perdendo sua força de atuação, com muitos de seus membros depostos de seus<br />

CXXVIII


cargos públicos e tendo seus projetos engavetados até que novas perspectivas político-culturais<br />

permitissem a retomada dessas discussões.<br />

Não há de ser por acaso que, analisando a trajetória e a realidade educacional brasileira<br />

observamos hoje este hiato em relação a valoração da cultura popular e o currículo escolar que<br />

acabaram por confinar as manifestações de cultura popular a dia e mês determinados, caindo na<br />

maioria das vezes de “pára-quedas” sem diálogo ou interação com o contexto social e histórico<br />

que está inserido.<br />

Portanto, considero relevante o olhar reflexivo para o momento em que vivemos agora,<br />

em que os altos índices de exclusão e repetência escolar continuam a ser o grande desafio a ser<br />

vencido se realmente quisermos democratizar o saber e mudar a imagem subalterna que se<br />

acumulou por anos e anos de história sobre a cultura popular.<br />

A quebra de paradigmas e modelos educacionais voltados para uma educação tecnicista<br />

de política colonialista que se mostraram contraproducentes ao longo de décadas e décadas de<br />

escolarização de crianças e jovens das classes populares no Brasil, convida-nos a revisitar a<br />

todo instante nossa própria práxis e a nossa própria capacidade de aprender a aprender.<br />

Figura 26<br />

A pipa trazida por um menino naquele dia que está pendurada no quadro acima, foi o tema<br />

gerador da produção textual no quadro. A investigação do universo infantil como estratégia<br />

de promoção de conhecimentos pressupõe um acolhimento, por parte do educador(a) dos<br />

saberes e dizeres que a s próprias crianças trazem de casa para dentro do território escolar.<br />

Posteriormente no caderno como tarefa de “Para-casa” uma atividade de produção textual<br />

transcrita a seguir:<br />

CXXIX


Figura 27<br />

(A pipa/ Para fazer uma pipa é preciso: papel fino,cola, tesoura, vareta, linha)Projeto<br />

Tangolomango/ Turma da Capoeira<br />

Escola Municipal Professor Gonçalves/2005<br />

O projeto Tangolomango apresentado como proposta de pesquisa junto a esta<br />

universidade, fundamenta-se em um olhar crítico-retrospectivo sobre estes três eixos acima<br />

relacionados, revendo conceitos e analisando os avanços e tropeços deste Movimento<br />

Folclórico e propondo-se, principalmente, direcionar e aplicar estas reflexões sobre o acervo da<br />

cultura popular no cotidiano escolar. Proporcionar um espaço no cotidiano escolar capaz de<br />

permitir uma identificação cultural do sujeito cognoscente, tanto com o objeto de conhecimento<br />

quanto os seus processos, para que estes mesmos sujeitos sejam mais capazes de utilizar<br />

conceitos, e não simplesmente, armazená-los.<br />

Por isso, longe de conceber a cultura popular como um movimento folclórico estático,<br />

ligado ao passado e que por isso, precisa ser “resgatado” como pensavam os nossos primeiros<br />

pesquisadores do assunto, acreditamos ser de grande importância no momento contemporâneo<br />

de crise e quebra de paradigmas, analisarmos mais de perto as contribuições e significados das<br />

manifestações populares, sem com isso cairmos na armadilha de uma idealização romântica das<br />

CXXX


tradições. Esta é uma discussão contemporânea, que ainda hoje encontra resistência dentro das<br />

Comissões Nacionais de Folclore e Cultura Popular espalhados pelos Estados deste país.<br />

Figura 28<br />

Apresentação do Projeto Tangolomango no XII Congresso Brasileiro em Natal/ Rio<br />

Grande do Norte/2007<br />

Lembro-me de que era comum eu ser requisitada com a turma do Tangolomango na<br />

época do famoso “Mês do Folclore” ou na “Semana do Folclore” como as escolas continuam<br />

a trabalhar. O argumento era simples: achavam que porque nosso currículo escolar já<br />

contemplava as diferentes manifestações da Cultuar Popular, estávamos prontos para<br />

“apresentar” uma dança, um folguedo, uma brincadeira de Bumba-meu-boi e por aí em<br />

diante. A “folclorização” dos fatos folclóricos se apresenta como uma questão a ser<br />

analisada mais de perto pelos educadores populares.<br />

Apenas no mês de Agosto, nosso saber diário implicado nas histórias locais das<br />

crianças da turma - visto que o processo de migração ainda é forte e várias crianças ou eram<br />

de outro estado, ou os pais haviam nascido por lá – tinha visibilidade, era de uma maneira<br />

legitimado apenas naquele momento.<br />

Com isso, havia uma simplificação de nossa experiência pedagógica: e mais uma vez,<br />

a separação entre Culturas e Educações onde a vida cultural continuava fragmentada, em<br />

guetos, demonstrando de certa forma, a formação deficitária dos educadores(as) para lidar<br />

com esta questão.<br />

O que talvez seja de maior relevância de estarmos tentando ressaltar neste trabalho é<br />

que diversos modos de vida são constantemente recriados por meio de um complexo<br />

processo de produção e divulgação de valores e idéias socialmente determinados que a todo<br />

instante batem a porta da escola, convidando-nos à um constante re-pensar na formação do<br />

sujeito e sua atuação no mundo.<br />

Por isso, acreditamos que a proposta de estarmos dialogando de maneira mais<br />

consciente com as manifestações culturais populares aponta-se como uma das alternativas de<br />

CXXXI


omper com este longo círculo vicioso de exclusão e baixo rendimento escolar, onde o educador<br />

tem papel relevante neste processo. A troca de experiências com este educador /mediador de<br />

conhecimento, que em muitos casos, não teve a oportunidade de experiênciar e/ou refletir sobre<br />

estes valores culturais, pode ser um diferencial importante na elaboração de um currículo<br />

escolar que como nos fala Ariano Suassuna “não esteja voltado de costas” para a realidade do<br />

educando.<br />

Esta preocupação também estava presente na movimentação dos protagonistas do II<br />

Congresso Brasileiro de Folclore, onde para Renato Almeida “o problema do analfabetismo no<br />

Brasil só poderia ser resolvido “se levássemos em conta o papel do Folclore” propiciando ao<br />

educador o conhecimento do “modo de viver do povo” e evitando que seja “a escola um meio<br />

de desenraizar” os alunos. (VILHENA,1997:195). Como fortalecer o sentimento de<br />

pertencimento a sua cultura(s) se o próprio educador se encontra muitas vezes desenraizado de<br />

sua cultura(s) e saberes? Por isso, sem re-pensar a formação continuada do educador(a) este<br />

desafio talvez seja intransponível.<br />

2. 3 – O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor...<br />

Culturas populares e escolarização: os perigos da “folclorização”<br />

“ Quem nasce na Paraíba, é paraibano<br />

Quem nasce no Amazonas, amazonense<br />

Quem nasce no Paraná, paranaense<br />

Quem nasce em Pernambuco, pernambucano<br />

Quem nasce na Paraíba, é paraibano(...)<br />

( Paraíba/Mestre Darcy do Jongo)<br />

Quais as relações entre a valoração da experiência de vida de cada indivíduo com o<br />

processo ensino-aprendizagem que tanto perseguimos nas escolas? Como determinados sujeitos<br />

organizam e re-significam seus objetos de conhecimentos? O que seus modos e costumes<br />

culturais traduzem? E como nós, educadores, estamos percebendo este fluxo e refluxo entre as<br />

culturas dentro do espaço escolar?<br />

CXXXII


Lembro-me que quando cantava o ponto de Jongo descrito acima, as crianças e<br />

adolescentes nascidos fora da grande metrópole do Rio de Janeiro, identificavam-se e se sentiam<br />

acolhidos com esta cantiga. Seus olhos ganhavam um brilho novo, como se rememorassem<br />

fragmentos de suas vidas. Era um trabalho de evocação da memória e com ela, uma série de<br />

histórias e saberes iam sendo relembrados. Lembro-me especificamente de duas destas crianças<br />

que tiveram voz e espaço para rememorar suas vidas em pequenos projetos em sala de aula: uma<br />

menina que se chamava Janeide, que nasceu na Paraíba e Jakson, que apesar de ter nascido nesta<br />

cidade, tinha como herança cultural as histórias do Maranhão, onde sua mãe havia nascido. Com<br />

Janeide, desenvolvíamos nossa corporeidade dançando muitos “cocos” originários da Paraíba.<br />

Janeide é paraibana e veio morar no Rio de Janeiro com sua avó. Era uma situação dramática,<br />

pois não sabia nada sobre sua mãe, que havia ficado por lá.<br />

Ao ser estimulada a falar sobre seu local de origem, sentia que isso a ajudava a elaborar<br />

um pouco essa perda e ao mesmo tempo, Janeide nos ensinava a conhecer melhor este lugar tão<br />

desconhecido para nós. No final daquele ano, Janeide foi aprovada e veio muito feliz me contar<br />

que sua avó e ela iriam voltar para a Paraíba. Ela iria ficar perto dos tios e primos, perto “dos<br />

meus” como ela mesma falou. Às vezes, lembro-me dela e me pergunto: por onde andará esta<br />

menina de personalidade “arretada” e que tanto ensinou e encantou? Será que algum dia nos<br />

reencontraremos?<br />

Figura 29<br />

Janeide fazendo um pião de brinquedo com material reciclável<br />

CXXXIII


Jakson já era um ótimo contador de histórias e, com a prática, ficou cada vez melhor.<br />

Vivia contando piadas e historietas engraçadas, fatos do dia-a-dia para os colegas. Quando<br />

descobriu que sabia o que pensava não saber, sua vida escolar foi tomando nova consistência e<br />

sabor. O trabalho girou em torno da fabulação, visto que ele conhecia a história do Bumba -meu-<br />

boi através de sua mãe. Esta “troca” de papéis em que o educando passa a ser “educador” e vice<br />

versa, nos leva a pensar que se buscamos uma educação voltada para a democracia, é preciso<br />

descentralizarmos cada vez mais o conhecimento, abrindo espaços para que “outras” vozes<br />

assumam o “poder de saber”.<br />

Figura 30<br />

Nesta foto, Jakson segura um boizinho que uma amiga havia trazido para mim do<br />

Maranhão. Aprendeu rapidamente a história do Bumba-meu-Boi e não se cansava de contá-la<br />

para os amigos.<br />

Acredito que a partir de fatos e falas retiradas deste espaço atravessado por diferentes<br />

visões de mundo, construímos até aqui um suporte expressivo de experiências e reflexões que nos<br />

possibilita ousar fazer um vôo mais panorâmico sobre o território da escola, buscando perceber<br />

como os saberes populares estão contidos neste universo tão particular e ao mesmo tempo, com<br />

hábitos e estruturas tão universais: a cultura escolar.<br />

Por isso, proponho neste capítulo, uma reflexão sobre a relevância ou não da valoração<br />

dos saberes de origem popular dentro do espaço formal da escola, anunciando que<br />

inevitavelmente, estaremos penetrando no argiloso campo do currículo e conteúdos escolares.<br />

CXXXIV


Evitando as clássicas armadilhas que hora desmerecem ou romantizam as culturas<br />

populares, apóio-me mais uma vez nos estudos de Roger Chartier para em primeiro lugar, buscar<br />

identificar de que “popular” estou me referindo neste trabalho:<br />

O "popular" não está contido em conjuntos de elementos que bastaria<br />

identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo<br />

de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade,<br />

mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal<br />

constatação desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga<br />

a caracterizar, não conjuntos culturais dados como "populares" em si, mas as<br />

modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados”.(CHARTIER,<br />

1995:182 ).<br />

Nesta parte do texto, Chartier chama a atenção para a necessidade de ao invés de<br />

focarmos nas “produções populares”, como se este fosse um produto que nascesse pronto ( um<br />

“Pirlimpimpim” mágico?) seria mais enriquecedor deslocarmos o nosso olhar para a elaboração<br />

de uma “história social dos usos e das interpretações”(CHARTIER,1995:182 ) prestando atenção<br />

às condições de produção de sentido que sujeitos encarnados constroem e resignificam<br />

determinados costumes culturais.<br />

Figura 31<br />

Esta escola é uma das parceiras da Escola de jongo da Serrinha ,localizada bem próximo<br />

de nosso Centro Cultural em Madureira/RJ. Neste dia, nossa Escola tinha sido convidada para<br />

se apresentar na culminância do projeto de Folclore realizado naquele mês. (Mural da Escola<br />

República Dominicana/ Mês do Folclore/2008)<br />

CXXXV


Se acreditarmos na prática ativa de sujeitos construtores de mundos e sentidos, talvez<br />

possamos nos aproximar mais de uma abordagem que considere os contextos de produção, as<br />

relações e os usos culturais que públicos muito diferentes fazem de seus objetos de<br />

conhecimentos, do que ancorarmo-nos na equivocada visão de que as práticas culturais são “um<br />

sistema neutro de diferenças” esquecendo que “tanto os bens simbólicos como as práticas<br />

culturais continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua<br />

hierarquização, sua consagração(ou ao contrário, sua desqualificação).(CHARTIER,1995:182-<br />

183)<br />

Voltamos então a uma questão recorrente nesta pesquisa: quem classifica ou desclassifica,<br />

valora ou desvaloriza as culturas? E principalmente, o fato da cultua popular ser desmerecida em<br />

detrimento de uma cultura eleita como “culta ou erudita” impede o trânsito e o fluxo entre as<br />

culturas? È possível controlar o supostamente controlável, ou a despeito das querências de<br />

determinados grupos sociais, as fronteiras e territórios não estão tão delimitados assim?<br />

Este pensamento vem derrubar algumas crenças que norteiam muitas vezes a ação<br />

educativa dentro das escolas: primeiro de que a de que a cultura “popular” se caracteriza apenas<br />

pelo produto cultural que certos grupos sociais manifestam; a de que a “cultura popular” é a<br />

“irmã pobre da cultura “erudita”.<br />

Pensando assim, a hierarquia curricular nos leva a acreditar que a cultura dominante é<br />

universal. No entanto, quando abrimos a porta da escola para as crianças das classes populares,<br />

os seus saberes e dizeres, suas lutas e todo um conjunto construção simbólicas “entram junto”,<br />

misturando e sendo misturados, transformando e se deixando transformar a partir dos usos que<br />

estes mesmos sujeitos ativos fazem em relação aos novos conhecimentos que a “cultura oficial”<br />

da escola lhes apresenta.<br />

Podemos ou não aprisionar os saberes? Existe intercâmbio cultural? Quais os limites da<br />

criatividade e inventividade humana? Para efeito de exemplificação, recorro aos versos de<br />

Antonio Vieira, não o jesuíta célebre, mas o poeta nordestino batizado em sua homenagem. Seus<br />

versos mostram como na prática os encontros e desencontros culturais foram forjando a imersão<br />

em territórios culturais desconhecidos, que aos poucos, foram se tornando híbridos e plurais. Ou<br />

seja, como a escola pode não ser pluriversal como nos fala a poesia a seguir?<br />

A nossa poesia é uma só<br />

Eu não vejo razão pra separar<br />

Todo o conhecimento que está cá<br />

CXXXVI


Foi trazido dentro de um só mocó<br />

E ao chegar aqui abriram o nó<br />

E foi como se ela saísse do ovo<br />

A poesia recebeu sangue novo<br />

Elementos deveras salutares<br />

Os nomes dos poetas populares<br />

Deveriam estar na boca do povo<br />

Os livros que vieram para cá<br />

O Lunário e a Missão Abreviada<br />

A donzela Teodora e a fábula<br />

Obrigaram o sertão a estudar<br />

De repente começaram a rimar<br />

A criar um sistema todo novo<br />

O diabo deixou de ser um estorvo<br />

E o boi ocupou outros lugares<br />

Os nomes dos poetas populares<br />

Deveriam estar na boca do povo<br />

No contexto de uma sala de aula<br />

Não estarem esses nomes me dá pena<br />

A escola devia ensinar<br />

Pro aluno não me achar um bobo<br />

Sem saber que os nomes que eu louvo<br />

São vates de muitas qualidades<br />

O aluno devia bater palma<br />

Saber de cada um o nome todo<br />

Se sentir satisfeito e orgulhoso<br />

E falar deles para os de menor idade<br />

Os nomes dos poetas populares.<br />

(Poesia Antonio Vieira)<br />

O seu desejo, sobre quais saberes deveriam estar na “boca do povo” rompe com uma<br />

visão dicotômica e universalista que temos da cultura - ou culturas privilegiando o plural. As<br />

culturas se misturam, hibridizam e os encontros e desencontros culturais obrigam, impulsionam,<br />

abrem possibilidades e brechas para novos conhecimentos.<br />

O poema acima segue em direção a noção de circularidade e pertencimento do saber que<br />

legitima outros saberes e não apenas aqueles hierarquizados pelo currículo formal que (re)tira os<br />

nomes dos poetas populares do contexto das salas de aulas, e por (re) tirá-los eles passam a ser<br />

desconhecidos, lembrados, guardados e por este motivo, o poeta se entristece e tem pena. Um<br />

poeta que reclama em seus versos pelo direito da criança ao acesso a um conhecimento que lhe<br />

está sendo negado: os saberes e dizeres das classes populares secularmente silenciados,<br />

desmerecidos, diminuídos.<br />

CXXXVII


Refiro-me agora, à escola como um espaço fronteiriço entre os saberes, e reconheço de<br />

antemão, os embates e conflitos que tal paradigma suscita, principalmente porque não há como<br />

obter receitas prontas, visto que os sujeitos são únicos e singulares, mas acredito na<br />

necessidade de se apontar algumas possibilidades de interferências pedagógicas voltadas para a<br />

valorização da diversidade cultural existente em nosso país.<br />

A esse respeito, gostaria de trazer para o diálogo com o leitor/leitora, algumas situações<br />

que venho vivenciando neste delicado território escolar. Os diálogos recolhidos apontam para a<br />

necessidade de repensarmos constantemente nossa práxis educativa, assim como nossas crenças<br />

sobre as manifestações culturais e as culturas escolarizadas tão marcadas pelas polarizações<br />

entre as culturas: a popular e a erudita.<br />

Com isso, busco neste momento, mais uma vez, problematizar determinadas culturas<br />

naturalizadas no cotidiano escolar e evidenciar algumas cenas que presenciei no interior da<br />

escola, e que descrevo a seguir. Pequenas situações recorrentes da prática educativa de muitos<br />

professores. Falamos mais uma vez de educação ou educações, valendo-me insistentemente do<br />

plural.<br />

Durante o emblemático mês de Agosto, estava eu observando os murais referentes ao<br />

mês do Folclore na Escola Municipal República Dominicana, em Madureira/RJ, que é uma das<br />

parceiras do Jongo da Serrinha. Todos os murais falavam sobre o mesmo assunto: histórias<br />

sobre Saci, mula-sem-cabeça, Ditados Populares, Parlendas, Trava-línguas etc. Um deles,<br />

falava sobre Literatura de Cordel e cheguei mais perto para ler o que as crianças haviam<br />

produzido, quando uma das professoras se aproximou e desabafou:<br />

Diálogo 1:<br />

- Pena que eles não gostaram de fazer esta atividade! Não se interessaram e tive que forçá-los<br />

a fazer, senão não saía. Tiveram muitas dificuldades para escrever os Cordéis.<br />

- Talvez este assunto não fosse, naquele momento, interessante mesmo para as crianças<br />

aprenderem – respondi.<br />

A professora rapidamente se afastou e eu continuei a olhar os trabalhos, porém desta vez<br />

um infinidade de perguntas me invadiu o pensar: Por que as crianças não se interessaram pelos<br />

Cordéis? De que maneira as crianças tiveram contato com este gênero textual que fala tanto de<br />

nossa brasilidade?<br />

CXXXVIII


Por tratar-se de uma abordagem pedagógica, que escolarizou a poesia, que<br />

possibilidades criou para um contato efetivo com a literatura de cordel e os cordelistas? Por<br />

que a atividade, que em tem por princípio a poesia e a brincadeira com as palavras, tornou-se<br />

uma obrigação, um dever sem sentido para as crianças? A atividade virou atividade de um dia<br />

só, como tantas outras que encontramos nas escolas? Que aprendizado as crianças tiraram desta<br />

atividade, se a mesma virou um conteúdo como qualquer outro? Os nomes dos poetas<br />

populares, como nos alerta Antonio Vieira foram parar na boca do povo?<br />

Encontro na fala de Joel Rufino, algumas questões que vão ao encontro das aspirações<br />

do projeto Tangolomango.<br />

Diálogo 2:<br />

Bom, eu acho que o que tem dificultado a alfabetização no Brasil é uma<br />

razão econômico-social. É o fato de que grandes parcelas da população<br />

estão excluídas da escola. Negros, brancos, mestiços, enfim, estando<br />

excluídos, a alfabetização vai se ressentir. Agora, em segundo lugar, se<br />

pode pensar naquilo que falávamos antes: que a não incorporação à<br />

pedagogia brasileira geral, dos elementos principais dos contextos<br />

culturais que temos, resultou em algum prejuízo. Então, se poderia dizer<br />

que, em segundo lugar, as crianças negras têm dificuldades de<br />

alfabetização, de aprendizado na escola, porque nada que é do seu<br />

mundo foi incorporado pela escola. Da mesma forma se poderia repetir o<br />

raciocínio para a população indígena, para as crianças indígenas. 64<br />

- Professora, que hora que a senhora vai começar a aula?<br />

- A aula já começou faz tempo – respondo com calma.<br />

- Começou, não. Até agora só brincamos e a senhora não passou nenhum trabalho no quadro<br />

pra gente copiar. Eu quero estudar!<br />

- E o que é estudar? – questiono - Estudar é copiar as coisas do quadro. Fazer dever.<br />

Diálogo 3:<br />

Estava pesquisando no CIEP sobre o Tangolomango, revendo diários e alguns apontamentos<br />

quando a Coordenadora Pedagógica que eu não via há algum tempo chegou. No momento em<br />

que nos vimos, nos abraçamos e ela começou a me apresentar para o psicólogo que estava<br />

sentado em outra mesa:<br />

64 Entrevista de Joel Rufino para “Um salto para o futuro” Disponível em:<br />

http://www.redebrasil.tv.br/salto/<br />

CXXXIX


-Esta é a Marisa. Ela já foi professora aqui do CIEP. Você pode conversar com ele sobre sua<br />

pesquisa, Marisa. Ele está trabalhando na turma de Projetos, antiga Progressão e tem alguns<br />

alunos que foram seus e ainda estão lá.<br />

-É mesmo, quis são? - Indaguei curiosa e um pouco triste em saber que crianças que passaram<br />

pelo Tangolomango ainda se encontravam sem saber ler e escrever.<br />

-O Fabrício eu tenho certeza o restante só olhando com ele.<br />

E então, quando ia sentar ao lado do psicólogo para conversarmos melhor, a coord. falou:<br />

- Marisa é uma professora muito animada. Lembro que um dia, ela trouxe um boi e contou<br />

histórias no pátio para criançada toda. Foi muito bom. Ela é do tipo de professora que<br />

trabalha bem em uma Sala de Leitura, com projetos fora de sala, brincadeiras, sabe?”<br />

Os diálogos acima demonstram um pouco do que se passa no imaginário das crianças e<br />

dos professores sobre este lugar que chamamos “escola”. O que pensam mesmo quando não<br />

lhes é permitido verbalizar: escola é lugar de dever e de copiar, já que haviam sido formados<br />

naquela cultura escolar e o quanto difícil era para eles se permitirem outro tipo de pulsação<br />

dentro da escola. Só sabiam copiar. A aula para eles se resumia em copiar. Eram excelentes<br />

copistas. Precisava, através da palavra-ação transformar aquela realidade que tanto me<br />

incomodava. Quando assisti ao filme “Estamira” lembrei das crianças, pois a própria Estamira,<br />

que é uma catadora de lixo, em uma de suas críticas à sociedade se referia a escola como<br />

“escola copiadora”. Estava certa a Estamira.<br />

Falas que também denunciam o que outras pessoas pensam sobre minha prática<br />

educativa, minha ação docente.<br />

Diálogo 4:<br />

Era o ano de 2002. Termino a aula e vou devolver meu diário na direção do CIEP quando a<br />

diretora Margarete me diz:<br />

- Ligou um pessoal da MULTIRIO perguntando se aqui tinha alguma professora que<br />

trabalhasse com as questões raciais porque eles querem fazer uma reportagem sobre o assunto<br />

agora no mês de Novembro, dia de Zumbi.<br />

- Que legal, você falou do Tangolomango? – quis logo saber.<br />

CXL


Sim, falei. Achei engraçado o jeito que ele falou : - Mas esta professora trabalha com estas<br />

questões somente no mês de Novembro ou durante todo o ano? – durante o ano todo, afirmei.<br />

Então ele aceitou fazer a entrevista e talvez faça um programa para a TVE 65 também.<br />

A idéia de que se continuarmos reproduzindo este paradigma hegemônico onde a<br />

simples transposição da cultura popular para dentro da escola torna-se uma estratégia pouco ou<br />

quase nada produtiva em termos de buscar fazer com que “os nomes dos poetas entrem na boca<br />

do povo”, o desafio que se apresenta como metodologia de projeto pedagógico é o inverso:<br />

transformar a escola em lugar de cultura, ou lugar de culturas para contemplarmos a diversidade<br />

da Cultura Popular. Uma escola que ofereça as crianças a oportunidade de ler o mundo pela<br />

lente da cultura e das trocas culturais.<br />

Esta é a diferença. Diferença de olhar, de rota, e conseqüentemente, de caminho e<br />

destino e de chegada também. É outro o ponto de partida e conseqüentemente, um outro ponto<br />

de chegada. Senão, continuamos trocando “seis por meia dúzia” como nos fala a sabedoria<br />

popular, ou como nos alerta Freire (1983), continuaremos sendo “invasores culturais”. E era<br />

assim que eu me sentia quando cheguei no CIEP: uma invasora cultural.<br />

Diálogo 5:<br />

“Certo dia ia do centro da cidade para Madureira e como tinha que levar os uniformes da<br />

Escola de Jongo, entrei em um táxi. O trajeto é grande e com o tempo, comecei a puxar<br />

conversa com o motorista. Falávamos sobre o cotidiano fugidio da cidade quando ao<br />

chegarmos no viaduto de Madureira, passando em frente ao Mercadão de São Sebastião nossa<br />

conversa rememorada, deu-se mais ou menos assim:<br />

- Que lugar feio, Madureira. A senhora não acha?(Apesar de eu não ter nascido em<br />

Madureira, aquela observação me incomodou e eu saí em defesa daquele lugar que me é tão<br />

caro afetivamente).<br />

- É. Realmente Madureira foi crescendo - como muitos bairros - de uma forma desorganizada,<br />

o que dá esta aparência feia mesmo. Mas...Madureira tem muita cultura. Nunca vi um bairro<br />

assim!<br />

- Cultura!!! – falou o motorista surpreso – onde a senhora vê cultura aqui?!?<br />

- Bem, acabamos de passar em frente ao Mercado de São Sebastião do Rio de Janeiro, que<br />

além de levar o nome do padroeiro de nossa cidade, é uma referência para a cidade. Um lugar<br />

onde circula uma diversidade de pessoas e são vendidas uma infinidade de coisas,<br />

praticamente tudo que você precisa você encontra lá. Depois, passamos em frente a Escola<br />

65 Durante o desenvolvimento do projeto Tangolomango, gravamos dois programas “Um salto para o futuro da antiga<br />

TVE, hoje TV Brasil participamos de uma reportagem para a revista “Nós da Escola” da MULTIRIO, nº de<br />

Novembro de 2002.<br />

CXLI


Carmela Dutra, uma escola muito antiga de Formação de Professores e muito importante para<br />

a região. Não sei se o senhor sabe, mas só de Escolas de Samba temos duas: a Portela e a<br />

Império Serrano e pra terminar, estamos chegando na Serrinha, onde temos o Jongo que é<br />

considerado o pai do Samba e é Patrimônio Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro. O senhor<br />

já ouviu falar do Jongo da Serrinha?”<br />

O motorista ficou surpreso com minha resposta. E de certa forma, desconcertado<br />

também. Concordando ou não, o importante é que ele parou para pensar. Em sala de aula, nossa<br />

relação com esta palavra tão emblemática, a cultura, também perpassava por estas provocativas<br />

rupturas. Ou seja, ousávamos de alguma maneira fugir da alienação e conseqüente<br />

subalternização à qual os meninos e meninas das classes de Progressão estavam imersos.<br />

Lutávamos, eu e as crianças “pela recuperação da humanidade roubada”(FREIRE, 1983,p.100),<br />

tendo o diálogo como ato de criação e transformação. Por isso, buscava as mais variadas<br />

maneiras das crianças se expressarem através da palavra. Recuperar o poder da fabulação era,<br />

ao meu ver, o primeiro movimento para que tomassem consciência do poder da palavra<br />

enquanto formadora e transformadora de mundos. Desde movimento dialógico, íamos<br />

selecionando e construindo nosso currículo.<br />

Agora, compreender o diálogo como ferramenta de formação humana, pressupõe um<br />

movimento de escuta imprescindível do educador que acredita que “a palavra não é privilégio<br />

de alguns homens, mas direito de todos os homens”.(FREIRE,1983:92)<br />

“Daí que para esta concepção como prática de liberdade, a sua<br />

dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra<br />

com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes,<br />

quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta<br />

inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno<br />

do conteúdo programático da educação.”(FREIRE, 1983: 98).<br />

Chegamos então a questão do currículo escolar que na perspectiva freiriana deve ser<br />

construído a partir do conteúdo do diálogo que elegemos como importante acentuar. A seleção<br />

prévia do que queremos dialogar com nossos educandos. Que tipo de diálogo com as crianças<br />

das classes populares queremos ter? Ao definimos sobre o que queremos comunicar, estaremos<br />

CXLII


delineando o conteúdo de currículo que acreditamos ser necessário nossos educandos<br />

conhecerem e terem contato.<br />

E é neste ponto em que o Projeto Tangolomango se diferenciava das outras propostas<br />

curriculares apresentadas por aquela cultura da escolar. Era no cotidiano de nossas<br />

ações/reflexões que mergulhávamos a todo instante neste universo infinito de possibilidades<br />

que as diversidades culturais de nossa sociedade apresenta, indo de encontro ao que considero<br />

ser uma “escola de um dia só”, buscando sobretudo compreender os motivos que levavam os<br />

meninos e meninas das classes de Progressão não conseguirem aprender.<br />

Brandão analisa esta questão da seguinte forma:<br />

Eu costumo dizer que se uma escola só se lembra das culturas populares na<br />

semana de 22 de agosto, é melhor não fazer coisa nenhuma.<br />

Partir dessa visão “aulista”, monológica de um professor ensinando aos<br />

alunos, quem sabe dando a quem não sabe, aquilo que Paulo Freire chamava de<br />

uma educação bancária, para uma educação dialógica que parte inclusive<br />

daquele princípio de que eu falava, de que cada criança, cada pessoa é uma<br />

fonte original de saberes, é uma experiência única e irrepetível de saberes. 66<br />

O movimento do projeto Tangolomango era contra-corrente e ia de encontro a esta<br />

escola que funciona como a “escola de um dia só”. Importante ressaltar que nossa turma era<br />

muito requisitada todo mês do Folclore e os outros professores da escola pediam para irmos em<br />

suas salas para mostrarmos nossos saberes que neste momento faziam parte do conteúdo<br />

curricular. Isso me incomodava, mas incomodada mesmo íamos de sala em sala mostrando<br />

nossas experiências, que para nós, tinha muito sentido, era nossa identidade e por isso, nos fazia<br />

diferentes, não apenas aquele período do ano, mas durante o ano inteiro.<br />

66 Entrevista de Carlos Rodrigues Brandão para “Um salto para o futuro” Disponível em:<br />

http://www.redebrasil.tv.br/salto/<br />

CXLIII


CXLIV


3 – ERAM NOVE IRMÃS NUMA CASA<br />

O Tangolomango como experiência<br />

“Você diz que sabe, sabe,<br />

você diz que sabe lê,<br />

então pega na cartilha<br />

e me ensina o ABC.”<br />

(“Eu tenho pena” Darcy do jongo/Ponto de Demanda)<br />

“Com amor no coração / preparamos a invasão.<br />

Cheios de felicidade/ entramos na cidade amada(...)<br />

Com a espada de Ogum/E a benção de Olorum<br />

Como num raio de Iansã/<br />

Rasgamos a manhã vermelha(...)”.<br />

(Caetano Veloso/ Os Mais Doces Bárbaros)<br />

É suficiente pensar que a formação do educador seja constituída apenas do curso de<br />

formação de professores ?<br />

A partir desta questão, busco, neste capítulo final, discutir a respeito das<br />

experiências do projeto Tangolomango em minha vida profissional e na vida das crianças e<br />

adolescentes que compartilharam esta aventura pedagógica comigo. Proponho começar com as<br />

palavras Tangolomango e Experiência pois, o sentido que damos às palavras que elegemos<br />

ajuda a definir quem somos, o que queremos e como queremos comunicar. Comecemos pelo<br />

nome que escolhemos para a pesquisa, o Tangolomango.<br />

CXLV


Tangolomango como anunciei no início, é o nome de uma cantiga popular de<br />

construção e reconstrução textual que possibilita às crianças operacionalizarem ludicamente o<br />

conceito de número.<br />

Pela força motivadora que tal brincadeira representa, posso afirmar que o<br />

Tangolomango foi vivido como experiência seminal: era movida pela intuição e me deixava<br />

navegar, permitindo descobrir, ou melhor, re-descobrir, novos modo de educar. Logo depois,<br />

fui percebendo que intuir apenas não bastava. Foi necessário dialogar com outros espaços que<br />

possibilitassem apreender melhor minha prática docente, como os cursos no Museu de<br />

Folclore Édson Carneiro, os de Contação de Histórias, no Paço Imperial, entre outros, sempre<br />

buscando um diálogo mais profundo entre Culturas Populares e Educações.<br />

Passemos, então, à segunda palavra escolhida: Experiência? Experiências? O que<br />

dizer desta palavra? Como definir, sentir ou me apropriar epistemologicamente dela?<br />

Experiência (ou melhor, experiências) vem sendo discutida já há muito tempo por<br />

alguns teóricos da Educação. Gostaria, inicialmente, de recorrer a dois deles: Dewey e<br />

Larrosa, que, em tempos distintos, dispuseram-se a refletir sobre o valor desta palavra no<br />

campo educativo. Não pretendo aproximar autores tão distantes em termos históricos e<br />

conceituais, mas acredito que cada um deles abordou aspectos diferentes que se prestam ao<br />

diálogo com o que foi vivido no meu fazer-com aqueles meninos e meninas.<br />

Voltando à palavra experiência, encontro nos estudos de Dewey a seguinte<br />

afirmativa: toda experiência vive e se prolonga em experiências que se sucedem (DEWEY,<br />

1976:16). Nesta frase, o autor propõe uma idéia de continuidade, de desdobramentos de<br />

experiências. Em Dewey, o conceito de contínuo e sucessão de experiências é base de novas<br />

experiências.<br />

Imagino que uma experiência acrescida de outra resulte em uma nova experiência,<br />

base, raiz, passado, formação, memória. Enfim, tantos são os nomes do somatório do que nos<br />

constitui ao longo de diferentes espaços e tempos. Como nos fala os versos da canção “cada<br />

um sabe a dor e a delícia de ser o que é” 67 . E quão difícil é, às vezes, expressar os pesares e<br />

prazeres vividos.<br />

67 “Dom de iludir” Caetano Veloso / letras.terra.com.br/caetano-veloso/44719/<br />

CXLVI


Por isso, tendo como ponto de partida os estudos de Dewey, penso a complexidade<br />

deste conceito “experiência”. Ao falarmos de turmas de progressão, falamos de crianças e<br />

adolescentes que tiveram, ao longo de seu processo de escolarização, experiências negativas<br />

em relação à aquisição da leitura e da escrita, que quase sempre resultaram em uma grande<br />

resistência ou desistência por conta de reais dificuldades de se apropriar deste tipo de saber: a<br />

leitura e a escrita.<br />

Dificuldades estas que eles trazem em suas experiências e que, somada às do educar<br />

na escola, se revelam estagnadoras e, portanto, dificultadoras (e não potencializadoras) das<br />

experiências positivas. Ouso perguntar: Até que ponto, as falas e rótulos negativos que ecoam<br />

pelo ambiente escolar, as palavras recheadas de pré-conceitos sobre sua aparente incapacidade<br />

de alfabetização, não colaboram para cristalizar e alimentar ainda mais o sentimento de<br />

inferioridade e desinteresse destas crianças? Podemos continuar nos questionando: Quantas<br />

violências simbólicas e subalternidade também são disseminadas na experiência escolar?<br />

Trago estas questões em forma de perguntas por que desconfio que mesmo o que<br />

vai de encontro ao modo de ser e aprender das crianças nem sempre consegue efetivamente<br />

paralisá-las. Ás vezes, este movimento “sai pela culatra” como nos diz a sabedoria popular. E<br />

o que era para paralisar, acaba por promover, dentro do indivíduo, força e determinação<br />

necessária à superação das situações-limite, discutidas por Freire. De alguma maneira, muitos<br />

sujeitos se insurgem contra esta situação opressora e conseguem “levantar, sacudir a poeira e<br />

dar a volta por cima”. O que era para deixar o sujeito cada vez mais subalternizado acaba por<br />

lhe facultar a energia necessária à reação, ao posicionamento crítico e à tomada de<br />

consciência. Neste sentido, o que era para ir de encontro vai ao encontro.<br />

Penso nestas questões especialmente depois de ler o livro de Alberto Manguel<br />

intitulado “Uma história da Leitura”. No capítulo denominado “Leituras proibidas”, o autor<br />

fala como a proibição de aprender a ler e escrever motivou alguns heróicos negros afro-<br />

americanos escravizados justamente a aprenderem a ler e escrever. Mesmo que arriscassem<br />

suas próprias vidas para que isso acontecesse. A circunstância vivida pelos negros<br />

escravizados (bastante conhecida no Brasil) em nada favorecia a alfabetização daquelas<br />

pessoas e existia total vigilância sobre algum negro que demonstrasse interesse em aprender e<br />

ensinar os seus pares a ler e escrever.<br />

CXLVII


Para os senhores de escravos, ler e escrever era (era?) um privilégio e uma forma de<br />

dominação. A ignorância que os negros encontravam em relação a este saber era uma<br />

estratégia que fortalecia o lugar subalterno destinado a eles e, por isso, deveria ser mantida a<br />

qualquer preço.<br />

Entretanto, mesmo com todos os riscos, havia os que curiosamente se insurgiam<br />

contra a “ordem” vigente e não só teimosamente aprendiam a ler, mas também passavam a<br />

ensinar os “seus”. É como se o sujeito, em determinado momento, pensasse: - Eles estão<br />

querendo que eu desista, que eu abandone, que eu não insista, que eu não vença. Pois agora,<br />

sim, é que eu não vou desistir, não vou abandonar, não vou me entregar.<br />

Vejamos o exemplo que o próprio Alberto Manguel nos traz:<br />

O escritor americano Frederick Douglass, que nasceu escravo e se tornou um<br />

dos mais eloqüentes abolicionistas de seu tempo, bem como fundador de vários<br />

periódicos políticos,relembra em sua autobiografia: "Ouvir minha dona<br />

sempre ler a Bíblia em voz alta [...] despertou minha curiosidade em relação a<br />

esse mistério da leitura e estimulou em mim o desejo de aprender. Até aquela<br />

época, eu não sabia nada dessa arte maravilhosa, e minha ignorância e<br />

inexperiência sobre o que ela poderia fazer por mim, bem como a confiança<br />

em minha senhora, animaram-me a lhe pedir que me ensinasse a ler [...] Num<br />

período de tempo incrivelmente curto, com seu generoso auxílio, dominei o<br />

alfabeto e consegui soletrar palavras de três ou quatro letras... [Meu senhor]<br />

proibiu-a de me dar mais instrução... [mas] a determinação que ele expressou<br />

em me manter na ignorância apenas me deixou mais decidido a buscar<br />

compreensão. No aprendizado da leitura, portanto, não sei se devo mais à<br />

oposição de meu senhor ou ao generoso auxílio de minha amável senhora".<br />

Thomas Johnson, escravo que depois se tornou um conhecido pregador<br />

missionário na Inglaterra, explicou que havia aprendido a ler estudando as<br />

letras de uma Bíblia que roubara. Como seu dono todas as noites lia em voz<br />

alta um capítulo do Novo Testamento, Johnson o persuadia a ler o mesmo<br />

capítulo repetidamente, até que o soubesse de cor e pudesse achar as mesmas<br />

palavras na página impressa. Da mesma forma, quando o filho do dono estava<br />

estudando, Johnson sugeria que o menino lesse parte de sua lição em voz alta.<br />

"Senhorzinho, leia isso de novo", dizia Johnson para encorajá-lo, e o menino<br />

repetia a leitura, achando que Johnson estava admirando seu desempenho.<br />

Por meio da repetição, aprendeu o suficiente para ler jornais quando começou<br />

a Guerra Civil e, mais tarde, abriu uma escola para ensinar os outros a<br />

ler.(MANGUEL, 1997158)<br />

CXLVIII


A aprendizagem da leitura e escrita não facultou diretamente liberdade aos negros,<br />

mas, de alguma forma, abriu possibilidades de começar a lutar com as mesmas “armas do<br />

inimigo”. Podemos pensar que, contemporaneamente, aprender ler e escrever, se não estiver<br />

ligado a um projeto político de homem e de mundo preconizado por uma educação libertadora,<br />

apenas faculta ao indivíduo a capacidade de codificar e decodificar signos lingüísticos, mas é<br />

insuficiente para permitir, ao indivíduo subalternizado, a capacidade de insurgência contra a<br />

ordem social elitista, que separa homens em classes e lugares de pertencimento. Neste sentido,<br />

as possibilidades disso acontecer são negadas.<br />

Pelo que pude observar nas turmas com as quais trabalhei, uma experiência<br />

negativa, reiterada sucessivamente, deixava marcas significativas na formação daquelas<br />

crianças. O que percebia mais claramente era uma verdadeira aversão ao ato de ler e escrever<br />

em sala de aula. A idéia de ressonância - onde ondas sonoras, inicialmente pequenas,<br />

produzem, reverberam e impulsionam outras, outras e mais outras - ilustra bem este caso.<br />

Revolta e resistência eram sentimentos que pairavam no ar, invadiam os corredores e as salas<br />

de aula, tornando o ambiente muito hostil. Neste sentido, trabalhar as relações de afeto era<br />

fundamental. Mexer com as emoções, sensibilizar e mostrar outros modos de aprender era o<br />

meu desafio.<br />

Olhando sob outro aspecto, a palavra experiência, no sentido apontado por<br />

Larrosa 68 , “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, não o que se passa, não o<br />

que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002:21). Ao longo do texto, fica clara a intenção<br />

do autor em aliar experiência e sentido, duas palavras caras para este autor.<br />

Apoiando-me na perspectiva de Larrosa, que compreende a experiência como algo<br />

individualizado, sendo este o motivo pelo qual as experiências são sempre diferentes,<br />

singulares e plurais, entendo hoje que o Tangolomango (como experiência) buscava<br />

transformar a aula em acontecimento, em situações que nos tocassem e nos atravessassem.<br />

Pelo menos era assim que funcionava o Tangolomango como experiência. Ao nos tornarmos<br />

cada vez mais sujeitos de uma experiência, podíamos mexer com o tempo tão fugidio do<br />

68 Disponível em: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf<br />

CXLIX


apressado mundo ao nosso redor. Compreendo que o Tangolomango buscava oxigenar aquele<br />

mundo de tarefas e obrigações que nos atropelam e não possibilita a abertura para:<br />

parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais<br />

devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir,<br />

sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,<br />

suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da<br />

ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,<br />

falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,<br />

cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e<br />

espaço.(LARROSA,2002:19)<br />

Desejando uma escola diferente da que não “pode parar” (onde o excesso de<br />

informação se tornou erroneamente sinônimo de experiência, como nos fala Larrosa), fomos<br />

aos poucos organizando o nosso tempo, ora esticando, ora colocando um pouco mais de ritmo,<br />

buscando algo que fizesse pulsar sentimentos, valores, conflitos e questões mais vitais para os<br />

seres humanos: o valor da vida; da vida em comunidade.<br />

Uma escola conteudista, sedimentada apenas na perspectiva do excesso de<br />

informação, impossibilitando que vínculos mais profundos sejam construídos entre os sujeitos,<br />

acaba por ilhar e distanciar docentes e discentes, tornando-os desconectados de suas culturas.<br />

A inclusão de palavras como acolhimento, afeto, amorosidade, corporeidade, no currículo<br />

escolar, é dificultada pelas conseqüências desta concepção mecânica do corpo, como salienta<br />

Najamanovich. Assim, o sujeito se transforma em uma “abstração incorpórea”. Em<br />

contrapartida, a autora vai nos desafiando a compreender o corpo “não somente como um<br />

território próprio, mas como um lugar de encontro”. (NAJAMANOVICH, 2002:103).<br />

Um corpo pensado como lugar de encontro, mas também de desencontros. Um<br />

corpo em constante transformação, que participa ativamente, através das possibilidades ou<br />

mesmo impossibilidades, narrando sua história ou histórias. Um corpo carregado de histórias.<br />

Neste sentido, as considerações de Najamanovich são riquíssimas:<br />

Trata-se, então, de formar outros corpos de sentido, de buscar outras<br />

tramas possíveis, de religar o corpo ao sujeito e este aos outros e ao<br />

CL


cosmos, em inúmeras histórias possíveis e, cada vez mais, necessárias. (<br />

NAJAMANOVICH, 2002: 109)<br />

O modelo apresentado acima incorpora a necessidade urgente de nos religarmos.<br />

Corpo e mente já não mais separados, dicotomizados, compartimentados. A escola pode vir a<br />

ser um espaço favorável para que tais mudanças e transformações aconteçam? Acredito que<br />

sim. Entretanto, operar em outra lógica de produção de sentidos requer um olhar mais sensível<br />

do educador(a) que se insurge descobrindo novas possibilidades e linguagens educativas.<br />

Lembro-me de que, certa vez, fizemos um projeto pedagógico sobre o CIEP e<br />

depois de desenharmos nossos lugares preferidos e conhecermos um pouco mais sobre a<br />

história da escola, levei o texto de Paulo Freire que nos ajudou a entender melhor o sentido de<br />

se viver a escola como um espaço de se criar vínculos. Era o que dizia o texto lido:<br />

“Escola é lugar onde se faz amigos,<br />

não se trata só de prédios, salas, quadros,<br />

Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, que estuda,<br />

Que se alegra, se conhece, se estima. (...)<br />

Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,<br />

É também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem,<br />

É conviver, é se ‘amarrar nela’!<br />

Ora, é lógico... numa escola assim vai ser fácil<br />

Estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz.”<br />

(Paulo Freire/A Escola) 69<br />

69 Disponível em: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=62693&cat=Poesias&vinda=S<br />

CLI


Figura 32<br />

O acolhimento, a partir do contato corporal fortalece os laços de amizade entre<br />

educadores e educandos, criando um ambiente de “caramadagem” que gera um sentimento<br />

de confiança importante no processo de “lançar-se ao desconhecido” para permitir-se<br />

novamente aprender.<br />

Lembro-me bem que logo no inicio do ano de 2005, solicitei transferência para uma<br />

escola mais próxima de minha casa. Em pouco tempo, estava trabalhando na Escola Municipal<br />

Professor Gonçalves, em Campo Grande. Deixar as crianças com as quais já havia criado um<br />

forte vínculo, foi difícil não apenas para mim, mas para as crianças também. Sobre este<br />

assunto, as próprias crianças comentam em entrevista a seguir:<br />

Natália (12 anos):- A gente ficou com saudades. Eu chorei... geral chorou. (se referindo ao dia em que<br />

eu deixei a turma e outra professora assumiu no meu lugar)<br />

Natália (12 anos): - O Willian foi até me buscar no corredor porque eu sai correndo atrás da senhora.<br />

(Todo mundo lembra e ri)<br />

Marisa: - Porque vocês ficaram com saudades?!?(Pergunto um tanto surpresa por eles terem levantado<br />

este assunto de uma hora para outra)<br />

Saiara (12 anos): - A gente sentia falta.<br />

Marisa: - Mas vocês conseguem dizer pra mim do que vocês sentiam falta?<br />

Saiara (12 anos): - Porque a senhora era legal com a gente, porque a senhora era delicada, a senhora<br />

falava com mais calma. As outras não. As outras gritava.<br />

Marisa:- Mas às vezes, eu ficava nervosa também...<br />

Saiara (12 anos): - Às vezes...(silêncio)<br />

Aproveitei a oportunidade da entrevista 70 para explicar novamente os motivos pelos<br />

quais me afastei da turma e confessei que eu também senti saudades. Falei sobre a dificuldade<br />

de me adaptar a uma nova escola, a uma nova turma etc. Mas, falei principalmente sobre os<br />

movimentos de “abrir e fechar portas” que a vida nos oferece e da importância de sabermos<br />

avaliar se vale a pena aproveitar estas oportunidades ou não.<br />

70 Entrevista realizada no CIEP Posseiro Mário Vaz/ Guaratiba/RJ no dia 26/02/08.<br />

CLII


3.1 – Ciranda cirandinha, vamos todos cirandar<br />

O Tangolomango no Cotidiano da Escola: Interferências Espaciais em duas Escolas<br />

Públicas do Rio de Janeiro<br />

Sabemos que abrir determinadas brechas afetivas, para que as crianças sentindo-se<br />

queridas possam querer aprender, é uma urgência diante do grande fracasso das escolas<br />

públicas em relação à alfabetização das classes populares. Entretanto, fazer o caminho na<br />

contramão nem sempre é fácil e requer uma atitude de escuta por parte do educador(a) e de<br />

tantos outros atores sociais envolvidos no cotidiano da escola.<br />

Diante destas e outras tantas questões relevantes para a construção de uma outra<br />

escola, mais democrática e humanística, voltamos a defender a idéia do diálogo entre<br />

Educações e Culturas. Quem sabe assim, as intertrocas de saberes que acontecem em<br />

diferentes espaços possam ocorrer também dentro e nas fronteiras dos domínios da escola.<br />

Estaremos, neste sentido, multiplicando nossos olhares – olhar este tão<br />

condicionado a focar em uma só direção, a trilhar um único caminho e a reconhecer somente<br />

um tipo de conhecimento. Buscando romper com este movimento homogeneizador, marcado<br />

pelo sentido ilusório de “universal” que herdamos de uma cultura colonizadora européia,<br />

estaremos buscando fugir à perspectiva definidora e desenvolver propostas educativas mais<br />

plurais e diversificadas em relação às questões imbricadas no processo de ensinar e aprender.<br />

Herança esta, presente profundamente em nossa formação docente também fragmentada e<br />

dicotômica em relação às Educações e Cultura(s), ou entrecruzamentos de Culturas.<br />

Por isso uma opção dinâmica e atual, como declarou Brandão, configura-se na<br />

capacidade e vivacidade da escola ser mais orgânica, mais simbiótica com a comunidade a que<br />

pertence para que o ato de educar consiga gestar e ajudar a atualizar potencialidades infinitas<br />

que cada criança traz consigo ao invés de, como já é feito, enquadrá-la, forçá-la a entrar numa<br />

fôrma pré-moldada.<br />

O Projeto Tangolomango é fruto deste contexto. É também o início de minha<br />

pesquisa junto à alfabetização de classes populares.<br />

Lembro-me de que durante os diálogos que tínhamos em sala, as falas infantis eram<br />

carregadas de várias situações da vida concreta das crianças: no interior do grupo doméstico,<br />

CLIII


na vida fora do horário escolar, nas brincadeiras de rua, assim como o trabalho infantil e as<br />

interações e produções culturais fora do ambiente escolar.<br />

Ouvir as experiências de vida das crianças, aproveitando esses diálogos como<br />

suporte para elaboração de novos conhecimentos e aprendizagens, era uma estratégia<br />

metodológica utilizada por mim para aumentar o sentimento de “pertencimento” em relação<br />

àquele grupo de que faziam parte. Os relatos orais e escritos mostravam um cotidiano<br />

desconhecido para mim e já desconfiava que para ensinar era preciso aprender com eles<br />

também.<br />

Na ilustração que se segue, por exemplo, pude conhecer um pouco mais sobre a<br />

vida cotidiana de Daniel, um menino encantador, que tinha na época muita dificuldade de<br />

aprender a ler e escrever. Sua vida familiar era muito difícil também: morava com a mãe e<br />

mais duas irmãs pequenas, das quais ajudava a cuidar. Quase não via nem falava sobre o pai.<br />

Era um menino extremamente esforçado e carinhoso. Buscava sempre o diálogo para resolver<br />

seus conflitos e adorava desenhar.<br />

Figura 33<br />

(Você trabalha em casa ou na rua? Desenhe e escreva: Eu ajudo a minha mãe lavar prato e<br />

ajudo na casa)<br />

CLIV


Daniel desenha a si próprio ajudando sua mãe nas tarefas de casa. Este trabalho foi realizado a<br />

partir do sub-projeto “Criança não trabalha, criança dá trabalho” 71 que desenvolvemos no Dia das<br />

Crianças no mês de Outubro.(Projeto Tangolomango/Turma do Jabuti/2004)<br />

Ao participarmos do concurso da “Folhinha” do Jornal Folha de São Paulo (2004)<br />

sobre o “Trabalho Infantil Doméstico”, as crianças puderam conhecer a cantiga “Criança não<br />

trabalha, criança dá trabalho” de Arnaldo Antunes 5 . Após lermos e cantarmos seus versos, as<br />

crianças foram convidadas a falarem sobre sua experiência em relação ao trabalho infantil.<br />

Figura 34<br />

(Criança não trabalha/Criança trabalha (no) malabarismo)<br />

Ampliando a discussão sobre os direitos infantis, Daniel expressa sua preocupação com<br />

as crianças que trabalham nas ruas: um menino malabarista ganhando dinheiro nos sinais de<br />

trânsito. Interessante observar que Daniel havia sido avaliado como RM, ou seja, retardado<br />

mental. Daniel não parecia ser retardado mental: aos poucos fui percebendo que a história de<br />

vida daquele menino, havia inibido, por vários fatores, seu desenvolvimento que era “lento”,<br />

mas acontecia. Daniel passou dois anos comigo e hoje, está no Sétimo ano do Ensino<br />

fundamental.<br />

Projeto Tangolomango/ Turma do Jabuti/CIEP/2004.<br />

71 Música” Criança não trabalha” de Arnaldo Antunes. Disponível em: http://letras.terra.com.br/arnaldo-<br />

antunes/91457/ Em, 28/02/08.<br />

CLV


Os relatos de experiências sobre os fazeres domésticos foram bastante<br />

enriquecedores: como a maioria das crianças cozinhavam, arrumavam a casa, passavam e<br />

lavavam roupas e, principalmente, assumiam muitas vezes a responsabilidade precoce de<br />

tomar conta de seus irmãos pequenos. Percebi que caso fossem estimuladas, elas se<br />

expunham, se deixavam conhecer. Ao mesmo tempo, se conheciam, mais também e tinham a<br />

possibilidade de fazer uma análise sobre as condições precárias de sua própria existência.<br />

Estas falas denunciativas de uma situação de vida subalterna destinada às crianças das classes<br />

populares, continham (contêm) saberes e conhecimentos sobre as atividades reais que viviam<br />

fora do ambiente escolar. Falas queixosas sobre os castigos que recebiam de seus pais e ou<br />

responsáveis, mostrando inclusive marcas de queimaduras ou acidentes domésticos que<br />

aconteceram enquanto trabalhavam.<br />

E foi através do diálogo sobre essas e tantas outras questões pertinentes ao universo<br />

infantil, que pude aos poucos conhecer e desenvolver vários outros projetos didáticos em sala<br />

de aula.<br />

A partir de então, um novo movimento também aconteceu: as crianças começaram<br />

a fazer relatos interessantes sobre nosso cotidiano escolar. As crianças começaram a expressar<br />

suas idéias sobre o funcionamento de nossa sala de aula, visto que nossa rotina diária, por ter<br />

um outro ritmo, carecia de explicações sobre nossa rotina escolar. Ao des-construir alguns<br />

hábitos e crenças já padronizados pela cultura da escola, estávamos criando e re-criando<br />

outros.<br />

Este exercício de criação, e por que não dizer de transgressão, era comum em nossa<br />

proposta educativa. Nos relatos infantis, principalmente quando recebíamos um educando(a)<br />

novo(a) na sala ou um visitante que ficaria conosco apenas naquele dia, ficava bastante<br />

acentuado o quanto as próprias crianças, através de suas falas, repassavam o funcionamento<br />

de nosso cotidiano escolar. No início, confesso não ter prestado muita atenção, ou melhor,<br />

confesso não ter percebido a dimensão do que aquelas falas denunciavam: faltava-me uma<br />

lente teórica para melhor compreensão sobre o que aqueles relatos denunciavam. Mas,<br />

intuitivamente, acreditava ser importante que eles mesmos apresentassem o espaço da sala de<br />

aula sem minha interferência, o que por si só já ajudava no desenvolvimento da oralidade e<br />

autonomia.<br />

CLVI


As falas foram muitas e seguiam mais ou menos as mesmas descrições: falavam da<br />

sala de aula, da liberdade de andar e se movimentar pelo espaço quando quisessem (desde que<br />

não machucassem nem atrapalhassem a aula); do armário que era da turma toda – e não<br />

exclusivamente do professor; mostravam o quadro com a rotina diária - que alguma criança já<br />

havia organizado e escrito a partir das sugestões das próprias crianças, como por exemplo:1ª<br />

atividade: música, 2ª atividade: leitura, 3ª atividade: jogos no pátio etc- ; explicavam por que<br />

as cadeiras não estavam em filas e por que podiam me chamar pelo meu nome sem precisar<br />

chamar de “tia” etc.<br />

Em pouco tempo, eles explicavam – com certo orgulho - que nossa turma era<br />

diferente porque tinha um nome e não apenas um número como todas as outras. Nome que as<br />

próprias crianças haviam escolhido. A proposta de desenvolver na meninada o sentimento de<br />

“pertencimento” ao espaço escolar, fazia com que fossem aproveitadas todas as oportunidades<br />

de “enraizar” os meninos e meninas naquele espaço, que era legitimamente deles pelo tempo<br />

que iriam viver ali e pela experiência perene que carregariam para o resto de suas vidas. Um<br />

ambiente que deveria ser acolhedor e integrador de saberes.<br />

A saber: iniciamos com a Turma do Tangolomango (2002), Turma do Parangolé<br />

(2003), Turma do Jabuti (2004), Turma do Papagaio (2005) e também, agora já em outra<br />

escola, Turma da Capoeira (também em 2005).<br />

Os nomes eram escolhidos depois de algum tempo de convivência com o grupo.<br />

Fazíamos uma votação sobre as sugestões dos nomes que tivessem maior identificação com a<br />

turma naquele ano. Podia ser uma brincadeira que gostassem muito, o nome de uma história,<br />

de um personagem, de um lugar etc.<br />

Nosso primeiro nome se transformou em projeto de pesquisa: Tangolomango.<br />

Segue abaixo uma das maneiras de brincar com o Tangolomango que trabalhamos em sala:<br />

Tangolomango<br />

(Domínio Público)<br />

Eram nove irmãs numa casa<br />

Uma foi fazer biscoito<br />

Deu um tangolomango nela<br />

CLVII


E das nove ficaram oito<br />

Eram oito irmãs numa casa<br />

Uma foi amolar o canivete<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das oito ficaram sete<br />

Eram sete irmãs numa casa<br />

Uma foi jogar xadrez<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das sete ficaram seis<br />

Eram seis irmãs numa casa<br />

Uma foi caçar um pinto<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das seis ficaram cinco<br />

Eram cinco irmãs numa casa<br />

Uma foi fazer teatro<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das cinco ficaram quatro<br />

Eram quatro irmãs numa casa<br />

Uma foi estudar inglês<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das quatro ficaram três<br />

Eram três irmãs numa casa<br />

Uma foi andar nas ruas<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das três ficaram duas<br />

Eram duas irmãs numa casa<br />

Uma foi fazer coisa alguma<br />

Deu um tangolomango nela<br />

E das duas restou só uma<br />

Era uma irmã numa casa<br />

Ela foi colher feijão<br />

CLVIII


Deu um tangolomango nela<br />

E acabou-se a geração.<br />

Figura 35<br />

(Tangolomango/Eram 9 irmãs numa casa/Uma foi fazer biscoito/deu um Tangolomango nela/e<br />

das 9 ficaram 8)<br />

Um dos exercícios escritos espontaneamente por uma criança a partir da brincadeira<br />

cantada do Tangolomango. Este exercício era um ditado, só que era um “ditado cantado” e<br />

no final, uma criança vinha ao quadro e escrevia sua produção para que outras crianças<br />

pudessem comparar a grafia correta das palavras, melhorando sua escrita. Projeto<br />

Tangolomango/ CIEP/Turma do Tangolomango/2002<br />

O nome “Turma do Parangolé”(2003) partiu do intenso interesse que as crianças<br />

tiveram com a obra “Parangolé” de Hélio Oiticica. Hélio Oiticica foi um dos artistas plásticos<br />

mais revolucionários e transgressores que na década de 1960 criou a obra “Parangolé”, que<br />

ele chamava de "antiarte por excelência" 72 . Escolhi esta obra de Hélio Oiticica pelo encanto<br />

que tenho por seu trabalho que concebe a arte como algo que depois de criada, pode ser<br />

tocada, experimentada, vestida e sentida com o corpo. Parangolé pode ser definido como uma<br />

capa que revela a diversidade do material de que pode ser feito, conforme os movimentos que<br />

a pessoa que estiver vestida vá fazendo. Neste sentido, é uma obra móvel.<br />

72 Disponível em: http://www2.uol.com.br/antoniocicero/parangole.html<br />

CLIX


Figura 36<br />

Parangolé- Hélio Oiticica 73<br />

Figura 37<br />

Lembro-me que construímos vários Parangolés e andávamos pela escola “vestidos de<br />

arte”. Arte feita pelas próprias crianças. Este trabalho expressa um dos momentos em que<br />

brincávamos com a obra de arte “Parangolé” em nossa sala.<br />

Projeto Tangolomango/ Turma do Parangolé/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003<br />

A “Turma do Jabuti” (2004) foi escolhida a partir da história “O nome da Fruta” 8 e<br />

elege um dos protagonistas principais da história como nome da turma. Estarei mais à frente,<br />

discutindo sobre as contribuições desta narrativa para o projeto Tangolomango. Por hora,<br />

passemos para a próxima turma.<br />

73 Disponível em: http://somdoroque.blogspot.com/2008/03/parangol-helio-oiticica.html<br />

CLX


A “Turma do Papagaio” (2005) foi escolhida por causa da pipa, que é um brinquedo<br />

popular muito usado por crianças e adultos no mundo todo, e muito querido na Zona Oeste<br />

do Rio de Janeiro. Ao fazermos uma pesquisa sobre os vários nomes que este brinquedo<br />

apresenta em diversos territórios brasileiros, as crianças gostaram muito da possibilidade de<br />

brincar com a palavra papagaio, que pode ser bicho ou brinquedo. Ficamos com o brinquedo.<br />

Infelizmente, não tenho nenhum registro deste momento.<br />

A acompanhando a linha do tempo do projeto Tangolomango, a “Turma da<br />

Capoeira” (2005) que aconteceu logo a seguir, na Escola Municipal Professor Gonçalves<br />

(2005) teve sua escolha nas manifestações corporais das próprias crianças que adoravam fazer<br />

capoeira na sala. Seguem-se produções realizadas em sala, explorando diferentes linguagens,<br />

buscando o diálogo entre representações plásticas e escritas.<br />

Figura 38<br />

( A Capoeira vive na roda. Cultura África é educação e ensinamento. A capoeira veio da África.<br />

A capoeira tem ginga, te canto e atabaque e ensina os adolescentes)<br />

Já neste trabalho de produção textual espontânea, encontramos uma relação mais<br />

tranqüila com a capoeira e os ensinamentos sobre a cultura africana e suas ressonâncias no<br />

território brasileiro. Projeto Tangolomango/ Escola Municipal professor Gonçalves/ Turma da<br />

Capoeira/2005<br />

CLXI


Figura 39<br />

Desenho livre sobre o nome da nossa turma. Projeto Tangolomango/ Turma da<br />

Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/2005<br />

Figura 40<br />

(Eu gosto da Capoeira mas meus pais não deixam eu jogar mas eu quero. Eles usam berimbau,<br />

tambor e pandeiro. Tem gente que luta até a morte. Eu não gosto e sou do bem. Eu não vou lutar até a<br />

morte. Eu nunca vou gostar de lutar até a morte)<br />

Neste relato, Lucas (9 anos) expõe seu conflito em relação às aulas de capoeira que<br />

fazíamos em sala e que iam de encontro à religião de seus pais. O menino expressa este<br />

sentimento de “amor e ódio” em relação à capoeira. Produção escrita sobre a identidade de<br />

nossa turma. Projeto Tangolomango/ Turma da Capoeira/ Escola Municipal Professor<br />

Gonçalves/2005<br />

Voltando a falar sobre a importância dos relatos como organizadores de nosso<br />

cotidiano escolar, as falas infantis continuavam anunciando novidades: contavam que não nos<br />

CLXII


movimentávamos em filas (com exceção do refeitório, quando esperávamos o almoço) porém,<br />

tínhamos que andar em grupo e sem correr em lugares como rampas e corredores. Explicavam<br />

que para correr, utilizávamos o pátio, local onde brincávamos diariamente. Ou seja, o que<br />

poderia ser visto como des-ordem criava uma outra ordem. Na prática, acontecia que por<br />

várias vezes eles mesmos esqueciam as regras combinadas. E ai, era hora de conversar<br />

novamente e combinar mais uma vez, e mais uma vez.<br />

Falavam que se alguém não quisesse fazer a atividade proposta no quadro, não<br />

precisava, desde que não atrapalhasse quem estava estudando. Que poderia jogar um jogo do<br />

armário ou da estante, ler um livro, desenhar, estudar etc, mas não poderia fazer isso o dia<br />

inteiro, pois teriam que, no final da aula, apresentar alguma produção escrita.<br />

Se fosse sexta-feira, avisavam logo que, depois do recreio era hora da “Assembléia<br />

da Turma”, onde seriam escritos e depois lidos e discutidos os assuntos importantes da turma:<br />

era hora de falar sobre o que estavam gostando, o que não estavam gostando e dar sugestões<br />

para a próxima semana de estudos.<br />

Na prática a atividade funcionava assim: tínhamos em sala três caixas, encapadas e<br />

etiquetadas com : “Acho Bom”, “Acho Ruim” e “Eu Sugiro”. Durante a semana, íamos<br />

registrando nossas emoções e idéias, frustrações e críticas em relação ao funcionamento de<br />

nossa sala de aula. Abríamos as caixinhas na sexta-feira e fazíamos nossa “assembléia”. Uma<br />

vez ouvi de Lucas, um menino bastante curioso: “É bom isso, né Marisa, porque a gente<br />

escreve e nem percebe” . Sintetizou meu pensamento, que menino esperto, pensei.<br />

Figura 41<br />

Comentário 1: Acho bom que a Marisa passa muito trabalho. Ass: Ruana<br />

CLXIII


Cometário 2: Acho bom que a minha mãe achou a minha avó. Que a minha mãe não a via a<br />

muito tempo que a minha mãe via e a minha mãe ficou feliz para sempre (não assinou)<br />

Comentário 3: Isaías é muito ruim porque ele é (a)tentado. Nome: Ruana<br />

Comentário 4: Está bonito o Lucas e quieto e educado. Nome: Jéssica<br />

Através desta e de tantas outras atividades, as crianças tinham espaço para<br />

registrarem seus sentimentos através deste exercício de escrita semanal sobre as questões que<br />

mais lhe tocaram durante a semana.<br />

As considerações acima, vão ao encontro das aspirações educativas voltadas para a<br />

dialogicidade da educação que se pretende libertadora, como preconizava Freire:<br />

Ora, e falar, falar é a forma nossa de estar sendo no mundo. Quer dizer,<br />

falar está associado a fazer porque, inclusive, historicamente, homens e<br />

mulheres inventaram a linguagem para dar nome às coisas que fizeram, ou às<br />

coisas que faziam. Quer dizer, eu falo e dou nome quando falo ao mundo que<br />

eu transformo. Então, o respeito à fala do outro implica saber escutar o outro<br />

e não posso ser um educador democrático se eu não escuto o outro. Ainda do<br />

ponto de vista do saber ou do aprender a escutar, há uma importância<br />

fundamental no saber escutar diferente. Como é que pode uma professora que<br />

se pensa democrática não dar ouvido à fala do diferente? Quer dizer, você<br />

discrimina o diferente só porque ele é diferente de você. Então, aprender a<br />

escutar o diferente, a cultura diferente, aprender a valorizar o diferente de nós<br />

é absolutamente fundamental para o exercício da autonomia. Quer dizer, a<br />

professora que fecha seus ouvidos à dor, à indecisão, à angústia, à curiosidade<br />

do diferente. É a professora que mata no diferente a possibilidade de ser. 74<br />

Com este trabalho venho buscando desde então, ampliar a compreensão do que<br />

estas falas representavam e começo agora a fazer uma reflexão mais profunda a partir das<br />

pesquisas de Michael de Certeau sobre “relatos de espaço” e a potencialidade narrativa que as<br />

falas das crianças revelavam. Minhas dúvidas e intuições encontram diálogo com o autor, os<br />

relatos organizam os espaços, e foi o que de fato ocorreu através das narrativas das crianças<br />

que participaram do Tangolomango comigo: falas que davam espaço para o diferente, para o<br />

desconhecido e definiam nossa prática cotidiana, configuravam uma nova arquitetura<br />

escolar, ou seja, uma utilização do espaço escola que até então não havia sido explorado. É<br />

possível dizer que a re-apresentação dos espaços da escola, com significados inovadores, re-<br />

configurou espaços internos ontológicos das crianças, assim como suas cosmovisões, suas<br />

74 Disponível em:http://www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/paulo_freire.htm<br />

CLXIV


agagens psicológicas, afetivas e intelectuais. Pelo menos era nesse sentido que fazia<br />

investimento.<br />

3.2 – Tudo que seu mestre mandar? Faremos todos?<br />

O Tangolomango e as questões referentes à alfabetização das classes populares<br />

Quando comecei, em Março de 2002, a trabalhar com a Alfabetização das classes<br />

populares acreditava que os longos anos de docência nas classes de Alfabetização das escolas<br />

particulares por onde havia passado (me formei no antigo Normal no ano de 1986 e desde<br />

então havia passado por diversas escolas particulares na cidade do Rio de Janeiro) serviriam<br />

como experiência para o novo desafio que intuía ter pela frente: alfabetizar as crianças da<br />

escola pública.<br />

Aos poucos, fui descobrindo que minhas experiências anteriores poderiam me<br />

ajudar até a metade do caminho: o restante precisaria ser construído “junto com” as crianças<br />

das classes populares que começava a conhecer. Uma coisa eu já pressentia: esta seria uma<br />

oportunidade para buscar entender não só os motivos que faziam com que estas crianças não<br />

aprendessem, mas também descobrir o que estas crianças sabiam: o que eu sabia que elas<br />

sabiam e, principalmente, o que elas sabiam mas não sabiam que sabiam.<br />

As crianças e adolescentes das Turmas de Progressão traziam em seus corpos as<br />

marcas da repetência e conseqüente exclusão escolar e social: eram crianças estigmatizadas<br />

pela dificuldade de aprender, pelo desinteresse e falta de motivação em relação às aulas.<br />

Juntava-se a isso, os rótulos de que eram crianças e adolescentes agressivos, brigões e “sem<br />

educação”. Muitos deles estudavam no CIEP há muito tempo, e suas famílias eram conhecidas<br />

de longa data. As falas em relação às suas famílias eram basicamente as mesmas: eram<br />

crianças largadas, que os pais não davam atenção e carinho, eram muito pobres, e seus pais e<br />

mães em sua maioria eram analfabetos também.<br />

CLXV


Logo, logo, descobri que as Turmas de Progressão eram “o patinho feio” que<br />

ninguém queria (muito menos as professoras mais experientes da escola que tinham o direito<br />

de escolher as turmas com que iriam trabalhar no início do ano). Lembro-me também do longo<br />

processo de negociação que as diretoras ou coordenadoras da escola faziam para seduzir seu<br />

corpo docente a pegar estas turmas.<br />

Comigo a sedução foi às avessas: quando fui conhecer o CIEP, informei à<br />

coordenadora sobre meu desejo de trabalhar nas classes de alfabetização daquela escola. Falei<br />

um pouco ressabiada, pois não sabia se ela iria concordar. Eu era uma professora nova e<br />

desconhecida para a escola. Pelos motivos que já expus acima, eu havia me enganado. As<br />

crianças, apesar de já estarmos em Março, aguardavam em casa a chegada de novos<br />

professores.<br />

A coordenadora me informou então que a Prefeitura do Rio, estava implantando o<br />

sistema ciclado de ensino e, naquele momento, as únicas turmas de alfabetização que estavam<br />

em casa aguardando professor eram as Turmas de Progressão. Lembro-me que fez questão de<br />

enfatizar que eram crianças muito “boas” de se trabalhar, porém um pouco agitadas, mas eu<br />

teria apoio da coordenação da escola sempre que precisasse e também estaria participando<br />

constantemente de reuniões não apenas dentro da escola mais teria o acompanhamento da 10ª<br />

CRE (Coordenadoria Regional de Educação localizada em Santa Cruz).<br />

Em poucas palavras, ela me explicou que o objetivo principal das Turmas de<br />

Progressão seria auxiliá-los em seu processo de alfabetização para que ao final do ano, as<br />

crianças e adolescentes pudessem ser re-enturmados no sistema regular de ensino, entrando<br />

diretamente na antiga 3ª série, que corresponde hoje ao 4º ano do ensino fundamental.<br />

Não demorei muito a descobrir que os estigmas negativos que aquelas crianças<br />

das Classes de Progressão carregavam de certa forma procediam: eram crianças que brigavam<br />

com facilidade, desatentas, de estrutura familiar comprometida. Apesar de constatar uma<br />

realidade que não dava para “fingir que não acontecia”, acreditava que eram “isso”, mas eram<br />

“outras” coisas também. Faltava, a meu ver, apenas um espaço mais propício para que<br />

CLXVI


demonstrassem o que mais poderiam “ser”. Acreditava que “gente é para brilhar” 75 e este é o<br />

doce mistério da vida, como nos lembra a canção.<br />

Este rótulo negativo encontra-se presente na fala de uma professora do CIEP com<br />

que conversei. Iniciei a conversa, perguntando sobre a impressão que ela tinha sobre as<br />

Turmas de Progressão:<br />

Marisa:- Qual a sua impressão sobre as turmas de Progressão que existiam na escola?<br />

Professora: -Quem está de fora tem uma visão meio rotulada, é uma mentira. São turmas agitadas,<br />

turmas bagunceiras, teve crianças que caminharam e foram. E geralmente, são crianças que vão<br />

ficando e ninguém quer.<br />

Marisa: -E a Turma de Projeto? A Progressão acabou...<br />

Professora: - O cão chupando manga! Se juntaram pra fazer bagunça, indisciplina. A Turma de<br />

Projeto aqui foi uma turma assim, cheia de idéias, com muitas propostas, o projeto era bom, mas o<br />

desenvolvimento em si é que não foi bom. Aí apareceram professoras lá que não conseguiram<br />

encaminhar essa turma. Eu acho que o mínimo pra você trabalhar é a disciplina em sala, as<br />

professoras que vinham de fora não davam conta de manter os alunos dentro de sala, de controlar a<br />

bagunça, eram alunos com quem você tinha que trabalhar com o desrespeito mesmo. 76<br />

Era contra estas idéias pré-concebidas que eu me debatia: Como assim trabalhar<br />

com o desrespeito? De qual conceito de disciplina estamos falando? Como lidar com as<br />

“crianças- problemas” dentro da reguladora instituição escolar?<br />

Diante desses desafios que nasceu o Projeto Tangolomango. Uma experiência<br />

particular, que sensível à polifonia de vozes que circulavam dentro e fora do espaço da sala de<br />

aula, buscava abrir caminhos para se melhor compreender os saberes e fazeres das crianças<br />

das classes populares que não aprendiam e que por isso, eram constantemente rotuladas e<br />

inferiorizadas dentro do espaço escolar.<br />

Para isso, buscava alinhar minha práxis educativa à educação dialógica vivida e<br />

teorizada por Paulo Freire, buscando re-fazer um caminho de interferência pedagógica da<br />

“palavra-ação” e conseqüente humanização daquelas crianças.<br />

É através da dialogicidade que o sujeito se humaniza, visto que para Freire “o<br />

diálogo é uma exigência existencial” (FREIRE, 1983:p.91). Compreendo o diálogo também,<br />

como um ato de criação potencialmente capaz de gerar mudanças e transformações. Na visão<br />

freireana de educação, o diálogo é o combustível que possibilita o homem humanizar-se.<br />

75 Gente - Caetano Veloso letras.terra.com.br/caetano-veloso/44729/<br />

76 Entrevista realizada no CIEP Posseiro Mário Vaz/ Guaratiba/RJ no dia 26/02/08.<br />

CLXVII


Recuperar a possibilidade de diálogo diante de crianças que passaram por diversas situações<br />

em que suas falas foram sendo emudecidas tanto dentro, quanto fora da escola era para o<br />

Projeto Tangolomango, um desafio e um objetivo.<br />

Por este mesmo motivo, só há educação dialógica quando se estabelece um<br />

compromisso amoroso entre educadores e educandos. Baseados neste compromisso,<br />

educadores e educandos vão tecendo ao longo de delicados encontros e desencontros culturais,<br />

múltiplas experiências educativas, criando vínculos afetivos inimagináveis. Mas, para isso, era<br />

indispensável um olhar constante sobre a minha práxis.<br />

Os encontros e desencontros culturais e a superação das situações-limite são<br />

processuais e exigem do educador uma série de posturas pedagógicas que levem o educando a<br />

pensar o que faz, agindo e refletindo sobre a própria ação.<br />

Este movimento de “ação-reflexão” é o responsável por gerar novas tomadas de<br />

consciência e possibilidades de transformação da realidade que se almeja modificar, onde<br />

educador e educandos se educam juntos.<br />

Em um sentido mais amplo, o exercício constante de re-pensar a práxis, que está<br />

sempre recheado de ideologia, de visões de mundo, próprios do universo cultural que cada<br />

pessoa ou conjunto de pessoas está inserido, possibilita desenvolver um sentimento de<br />

acolhimento em relação aos saberes e desejos dos sujeitos encarnados com os quais nos<br />

propomos a trabalhar: sujeitos “inacabados” que como nós, desejam “ser mais”.<br />

Por isso, tais “ações-reflexões” pautavam-se na relevância de uma intervenção<br />

docente que promovesse a investigação do “universo temático” do qual sujeitos concretos, ou<br />

seja, os educandos que convivia, faziam parte:<br />

Esta investigação implica, necessariamente, numa metodologia que não pode<br />

contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente<br />

dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a<br />

apreensão dos “temas geradores” e a tomada de consciência dos indivíduos em<br />

torno dos mesmos. (FREIRE, 1893:103)<br />

CLXVIII


E foi este desejo de “querer saber” que me motivou a propor às crianças algumas<br />

interferências naquele ambiente escolar, abrindo espaço aos poucos para que eles propusessem<br />

suas interferências também.<br />

A primeira interferência que experimentamos foi em relação a ficarmos a manhã<br />

toda dentro da sala de aula, saindo apenas 20 minutos para almoçarmos e recrearmos. Na<br />

verdade, lembrei-me de que quando era criança e estudava na escola pública, o momento que<br />

mais gostava era a hora do recreio. Achei que como isso me fazia feliz, deveria faze-los<br />

também. Além do mais, a sala de aula parecia pequena para comportar tamanha necessidade<br />

de falar e de ser ouvido, de se movimentar e aprender.<br />

Foi assim que, nos primeiros momentos, mudamos a nossa sala para o pátio. Lá, na<br />

liberdade daquele espaço, a narrativa era mais livre e afetuosa, solta feito pipa, movimentada<br />

como bola. E eu, absorta naquela confusão de sons e imagens que se descortinava pra mim,<br />

começava a desconfiar que era possivelmente naquele lugar – o pátio da escola – que as<br />

crianças mais felizes poderiam re-começar a aprender.<br />

Assim, de corpo mais livre, demarcávamos um novo espaço, inventávamos com o<br />

corpo novas histórias que começávamos a construir. Podíamos também ouvir histórias e<br />

rabiscá-las da forma que quiséssemos com gravetos no chão.<br />

Neste novo espaço, podíamos praticar “coisas” que as crianças sabiam fazer e na<br />

sala de aula seria impossível realizar: os jogos – queimado, pique-bandeirinha, taco, polícia e<br />

ladrão, amarelinha, corda, pipa, bola-de-gude, pião – as aulas de música - com latas velhas e<br />

violão.<br />

O espaço do pátio acabava por organizar outros movimentos que de certa forma,<br />

transgredia o conceito de uma “aula” que todos - principalmente as crianças - tinham.<br />

Criávamos uma realidade onde o espaço se materializava de outra maneira: invertida a ordem<br />

“naturalizada” das coisas, o pátio tornava-se o espaço de nossa sala de aula.<br />

CLXIX


Figura 42<br />

Crianças brincando no pátio de “pular corda”<br />

Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2003<br />

Figura 43<br />

(Brincadeira cantada infantil: O homem bateu em minha porta/ E eu abri/Senhoras e<br />

senhores ponham a mão no chão/ senhora e senhores dê uma rodadinha/ E vá pro olho da rua!)<br />

Produção textual a partir das atividades vividas no pátio. Projeto Tangolomango/ Turma da<br />

Capoeira/ Escola Municipal Prof. Gonçalves/2005<br />

No final, cansados, voltávamos para sala, espaço instituído pela cultura escolar<br />

como o “local do saber” e relatávamos no papel – cada um do seu jeito – o que havíamos<br />

experienciado no dia. Surgiam falas animadas – relatos que contavam nosso percurso<br />

cotidiano, onde o tecido narrativo desembocava em novas escrituras: pequenas palavras,<br />

CLXX


ensaios de frases, fragmentos de textos. Experimentávamos juntos nossa corporalidade e<br />

fazíamos do nosso próprio corpo “um relato”.(NAJAMANOVICH, 2002:108)<br />

Podia parecer aos olhos mais apressados de quem passasse e nos visse no pátio,<br />

que era mais uma aula de recreação, mas enganava-se: a proposta era a de nos reconhecermos<br />

enquanto grupo, enquanto amigos, consoante Paulo Freire já referida anteriormente que afirma<br />

ser a escola um “lugar de fazer amigos”.<br />

Afinal, falamos de uma turma em que muitos não se conheciam: crianças desgarradas<br />

de seus amigos (as vezes melhores amigos) que haviam seguido o fluxo das séries, e eles<br />

haviam ficado retidos. Importante explicar que no geral, uma turma de Progressão se organiza<br />

com um grupo de educandos de cada turma do 3º ano do ciclo, fazendo assim uma nova<br />

turma. Também acontecia de entrarem crianças novas na escola, caso sua escola anterior não<br />

tenha formado turmas de Progressão e seus responsáveis acabaram orientados para que<br />

procurassem outra escola.Tinham que migrar de escola. Por isso, muitos tinham medo. E o<br />

sentimento de medo, principalmente do medo de errar, de certa forma os imobilizava.<br />

Também eu, como educadora, vivia momentos de dúvida e medo em relação à<br />

liberdade. Como vivenciar uma educação libertadora, se até então, as experiências educativas<br />

daquelas crianças haviam sido “bancárias”? O que eles fariam com a liberdade que agora se<br />

lhes apresentava? Como reagiriam? De que maneira, conseguiria levá-los ao desenvolvimento<br />

de uma consciência crítica em tão pouco tempo de intervenção pedagógica? Como mudar<br />

hábitos tão arraigados da cultura escolar? Com certeza, os encontros foram muitos, mas os<br />

desencontros e conflitos também. A angustia que sentia era grande e muitas vezes o<br />

sentimento de impotência me tomava, forçando-me a rever combinações e a negociar<br />

constantemente com as crianças o sentido de estarmos ali, o sentido de aprender a aprender.<br />

Lutava para que o medo não nos paralisasse, mas, ao mesmo tempo, percebia que<br />

precisávamos ter mais cuidado e cautela em relação aos equívocos e inexperiência que todos<br />

nós, educadores e educandos, temos em lidar com o conceito de liberdade. Como trabalhar na<br />

perspectiva de uma educação libertadora, se nós mesmos não fomos educados a partir dela?<br />

No livro “Pedagogia do Oprimido” Freire fala sobre o “medo da liberdade” e as<br />

conseqüências paralisantes deste sentimento, além de fazer uma profunda reflexão sobre os<br />

valores desta palavra e suas implicações na vida cotidiana de cada um de nós.<br />

CLXXI


As crianças, condicionadas a um modelo de construção do conhecimento,<br />

recusavam-se em princípio, tinham medo de se lançarem ao desconhecido, a novas<br />

experiências. Era preciso seduzi-las para que tivessem confiança de que se tentassem,<br />

poderiam ter a chance de conseguir de modo que se continuassem reproduzindo aquele<br />

modelo, estariam fadados a repetência mais uma vez. Tinham uma consciência “opressora” e<br />

este confronto com o “não saber” era o primeiro passo para se “desalienarem” como nos<br />

mostra Freire:<br />

Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro<br />

introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem<br />

eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o “opressor” de<br />

dentro de si. Entre se desalienarem, ou se manterem alienados. Entre seguirem<br />

prescrições ou terem opções. Entre serem expectadores ou atores. Entre<br />

atuarem ou terem a ilusão que atuam, na atuação dos opressores. Entre<br />

dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar,<br />

no seu poder de transformar o mundo.(FREIRE, 1983:36)<br />

Mas, qual a postura do(a) educador(a) diante destas questões? Como fazer com que<br />

sujeitos, sejam eles crianças ou não, se predisponham a sair deste acomodado e perigoso<br />

processo de alienação? Como transformar o mundo a partir do mundo da sala de aula? Com<br />

certeza, não existem receitas prontas a serem seguidas que possam dar conta da complexidade<br />

dos processos subjetivos que tais mudanças de consciências exigem. Porém, talvez possamos<br />

arriscar afirmar, que para transformar o sentimento amargo do fracasso escolar em uma<br />

experiência positiva que possibilitasse às crianças voltarem a aprender, algumas posturas e<br />

intervenções pedagógicas se faziam necessárias.<br />

Para isso, o corpo é que ia fazendo o percurso, dando o movimento, fazendo novas<br />

rotas que indicassem os caminhos para a aprendizagem. Um corpo que se desloca no espaço,<br />

ou - por que não? - corpos, criando campos de possibilidades e autorizando “práticas sociais<br />

arriscadas e contingentes”.(CERTEAU,1994: 211)<br />

Os relatos sobre nossa vida cotidiana começaram a aparecer e foram estes relatos,<br />

que abriram brechas para reorganizarmos o espaço: desfizemos as filas das carteiras e<br />

começamos a experimentar outras formas de ser e estar no espaço da sala da aula. O fator<br />

tempo também foi importante: aos poucos, fomos diminuindo a aula do lado de fora e<br />

aumentando o tempo dentro da sala de aula.<br />

CLXXII


Houve estranhamento, visto que estavam acostumados a ter o quadro negro como<br />

referência espacial e isto ia de encontro aos seus saberes e certezas escolares. Não é que eu<br />

não utilizasse o quadro negro para a escritura de textos, cantigas de músicas ou poesia. Muitos<br />

foram os exercícios de re-escritura dos textos das crianças também. Mas, provocava-os para<br />

que eles mesmos escrevessem seus exercícios e tomassem consciência que o espaço do quadro<br />

negro, geralmente destinado aos professores, era deles também.<br />

Pelo fato de o Tangolomango já nascer tendo como fio condutor a cantiga que lhe<br />

empresta o nome, além das brincadeiras, danças, cantos e contos da tradição popular, já<br />

anuncia a atitude transgressora de romper com práticas escolares que negavam a brincadeira<br />

como promotora de novas aprendizagens se fazia constante em nossas atividades.<br />

O Tangolomango considera o brinquedo, o ato de brincar, um momento de grande<br />

possibilidade de produção do conhecimento, quebrando assim, outro paradigma consensual<br />

dentro da cultura escolar: o de que a escola não é lugar de brinquedo e de que os ensinos<br />

sistemáticos e formais são os únicos responsáveis pela produção do conhecimento. Tendo<br />

como referência as falas recorrentes que ouvirmos nas escolas: - “Agora vocês já são da 1ª<br />

série, não precisam mais brincar como na Ed. Infantil!” ou “Vocês pensam que escola é lugar<br />

de brincar? Aqui é lugar de estudar!” ou até mesmo “O parquinho e os brinquedos não são<br />

mais para vocês que já cresceram, são para as crianças pequenas!”. Um fato muito me<br />

impressionou quando cheguei ao CIEP Posseiro Mário Vaz: as crianças não tinham mais<br />

recreio. Não tinham o direito de brincar livremente. Lembrei-me imediatamente de minhas<br />

memórias infantis e o quanto era importante a hora do recreio! Quando questionei a Coord.<br />

Pedagógica do motivo pelo qual o recreio havia sido reprimido do horário escolar, ele me<br />

respondeu que a escola havia crescido muito e não havia espaço físico para que as turmas<br />

tivessem recreio.<br />

Inconformada com aquela situação, institui junto com as crianças, nosso horário de<br />

recreio que acontecia diariamente e quando os outros professores me perguntavam sobre o<br />

assunto, eu dizia que se eles quisessem, eles poderiam fazer o mesmo também. Mas, eles<br />

achavam que não poderiam transgredir uma regra que “naturalmente” havia sido instituído<br />

naquela escola. Elas tinham medo também.<br />

CLXXIII


Defendo a idéia de que as brincadeiras populares, as histórias, os trava-línguas, as<br />

parlendas, as cantigas e toda uma variedade de jogos e brinquedos são tesouros culturais<br />

imateriais da infância e se bem orientados, podem vir a ser um importante aliado do educador<br />

e uma ótima estratégia de ensino e aprendizagem. Uma metodologia de trabalho que envolvia<br />

o acolhimento a uma série de práticas culturais, artísticas e corporais que buscavam sintonizar<br />

com os sujeitos concretos que dividiam o espaço escolar comigo: suas brincadeiras infantis e<br />

suas histórias pessoais. Lutava diariamente para que minha fala não fosse alienante, buscando<br />

perceber o conjunto dos “temas geradores” que possibilitariam esta intervenção pedagógica<br />

transformadora.<br />

Par ilustrar, poderíamos relatar brevemente uma aula em que Rafael, da Turma do<br />

Jabuti/2004,apareceu na sala com um pião feito por sua mãe. O pião era feito com material<br />

reciclável (jornal,palito de churrasco e cola branca) e logo chamou atenção de toda a turma<br />

com sua novidade. Enquanto construíam seus próprios piões, fui sugerindo que cantássemos<br />

músicas que falassem sobre pião. A música mais conhecida entrou na roda anunciando a<br />

brincadeira:<br />

“o pião entrou na roda, roda pião, bambeia pião...”<br />

A palavra pião foi escrita no quadro por um aluno e depois começamos a escrever<br />

várias outras que combinavam com pião. Continuando e ampliando a atividade, mostrei-lhes<br />

uma outra cantiga popular que também falava sobre o mesmo tema:<br />

“A Maria não é capaz, de rodar o pião no chão...”<br />

Com esta nova música propus que brincássemos com a estrutura lingüística do<br />

texto e que reescrevêssemos a partir desta nova experiência lingüística outras possibilidades<br />

textuais.<br />

Assim, a gramática ia aparecendo e o texto ganhava sentidos múltiplos através de<br />

uma brincadeira que incorporava os sujeitos concretos na atividade, como podemos observar<br />

no exercício abaixo:<br />

CLXXIV


Figura 44<br />

(Cantiga Infantil “O pião no chão”: A Maria não é capaz, de botar o pião no chão/Lá<br />

vai, lá vai, lá vai...lá vai o pião no chão)<br />

Produção escrita a partir do brinquedo trazido por uma criança: um pião de<br />

brinquedo reciclado.<br />

Este momento de passagem do mundo imaginário para o mundo real a criança está<br />

formulando e criando conceitos cognitivos e o ato de brincar é um momento possibilitador de<br />

constantes e importantes aprendizagens.<br />

Os brinquedos que os educandos trazem para a escola são por si só objetos de<br />

conhecimento a serem estudados em vários aspectos – históricos, lingüísticos, ecológicos,<br />

lógico-matemáticos, físicos, geográficos etc. São possibilidades de desdobramentos que<br />

frutificam em pequenos sub-projetos, ou centros de interesses e pesquisas por parte dos<br />

próprios educandos. Já sabemos de longa data, que brincando, a criança pode desempenhar<br />

simbolicamente vários papéis onde as regras estabelecidas pelo próprio grupo impõem limites,<br />

direitos e deveres que exige do brincante uma série de competências lingüísticas que servirão<br />

como base para novas descobertas e aprendizagens.<br />

CLXXV


Figura 45<br />

Pedro lança seu Pião de madeira no chão batido do CIEP mostrando à todos seus<br />

conhecimentos e habilidades<br />

Figura 46<br />

Re-construção de brinquedo popular encontrado no livro “Barangandão Arco-íris”<br />

organizado a partir de uma pesquisa sobre os brinquedos construídos e inventados pelas<br />

crianças no sertão de Minas Gerais e da Bahia.<br />

As fotografias acima, ilustram uma dessas re-significaçãos realizadas pelas crianças<br />

em sala de aula. Um pião de tampinha de refrigerante e palito de dentes, mostra-nos o<br />

constante movimento que as manifestações populares apresentam, que se encontram muitas<br />

das vezes, adormecidas, silenciadas dentro do espaço escolar.<br />

CLXXVI


Então acho relevante perguntar: o que as crianças das classes populares têm a nos<br />

ensinar? Como brincam? De que brincam? O que fazem nas ruas, praças e nos quintais? O que<br />

constroem com suas próprias mãos? O que eles já conhecem e o que desejam conhecer?<br />

3.3 – Era uma vez...<br />

O Tangolomango e o universo das histórias infantis<br />

Tendo por base o princípio intuitivo de que quem fala bem teria maior facilidade de<br />

se expressar bem através da escrita o projeto Tangolomango desenvolvido por mim abria<br />

espaço para a fabulação, para a narrativa e os relatos de experiências de vida das crianças<br />

originárias de classes populares contidos de alguma forma, nas vivências descritas até aqui.<br />

Hoje, penso compreender melhor o sentido de se recuperar o poder da fabulação<br />

dentro do espaço escolar. Trago a fala de Joel Rufino que se expressa em relação ao tema<br />

afirmando que:<br />

(...)a criança ao chegar na escola tem grande capacidade de fabulação (...) de<br />

inventar histórias, de ouvir e contar histórias. Isso é anterior à leitura, ao<br />

conhecimento do livro. E a escola (...) tem horror à fabulação, rejeita a<br />

capacidade de fabulação da criança. (...) Quanto mais a criança sobe na<br />

carreira escolar, menos gosto ela tem pela literatura, menos ela gosta de ler,<br />

ouvir e contar histórias. Então, pode-se dizer, nesse sentido específico, que a<br />

escola é o túmulo da literatura. (RUFINO, 1994: 98-99)<br />

Em sentido inverso ao denunciado por RUFINO, tínhamos mais tempo para a<br />

fabulação, as histórias, os sonhos e aspirações de cada um. Tínhamos mais tempo para as<br />

brincadeiras e para aprender com elas. Tínhamos tempo para cantar nossas cantigas mais<br />

amadas e ouvir outras, dançar nossos ritmos preferidos e descobrir outros. Tínhamos por fim,<br />

tempo para “espremer” histórias onde cada um tirava delas o leite possível do conhecimento,<br />

nutrindo-se, cada um ao seu tempo e modos, na vida cotidiana dentro e fora da escola. Não se<br />

trata de afirmar que a oralidade não está presente na escola, entretanto podemos perceber<br />

CLXXVII


frequentemente uma única voz legitimada que cala as demais: a voz da professora ou do<br />

professor. Ou seja, ainda predomina o uníssono que abafa outras vozes desconsiderando a<br />

polifonia que, queiramos ou não, circula dentro do contexto escolar.<br />

Mas, fica a pergunta: como escrever bem, se meu poder de fabular, de contar, de<br />

imaginar está comprometido? Ao mesmo tempo, como fazer com que o menino e a menina<br />

que chega na escola, avance e adquira novos conhecimentos sem esquecer ou abafar sua<br />

capacidade de fabulação? Mas para isso, era preciso a convivência com a cultura escrita e esta<br />

era a ponte que a contação de história possibilitava: o encontro com os livros.<br />

Como buscávamos trabalhar com o tempo de modo não linear, misturávamos<br />

passado e presente, visitando conteúdos formais apresentados nos livros didáticos, mas,<br />

principalmente, ouvindo histórias dos próprios meninos e meninas que denunciavam graves<br />

conflitos sociais intrinsecamente emaranhados no processo de colonização e escravidão no<br />

Brasil. Discutíamos a situação de vida real, na qual nos encontrávamos através do viés<br />

histórico oficial, mas abrindo espaço também para se refletir sobre as histórias não oficiais –<br />

histórias locais que, em tempo real, denunciavam um processo de colonização escravista,<br />

encontradas de diferentes maneiras em nossa sociedade até os dias de hoje.<br />

Assim fomos fazendo nossa caminhada educativa na tentativa de recuperar o prazer<br />

da escrita iniciado na prática, pelo prazer de re-descobrir a fabulação, assim como re-descobrir<br />

o corpo e suas possibilidades, desfazendo a partir das brincadeiras trazidas pelas crianças ou<br />

por mim, experiências negativas de leitura e escrita tão arraigadas na vida daquelas crianças.<br />

Possibilitar espaços de aprendizagem que contemplassem a produção oral, as idéias, saberes e<br />

competências lingüísticas que os educandos têm sobre a língua materna era uma forma de<br />

legitimar as saberes e conhecimentos que as crianças aprendem muito antes de entrar na<br />

escola, legitimar sua “leitura de mundo”.<br />

Neste sentido, os espaços de produção oral aconteciam principalmente através do<br />

relato de experiência de vida que determinados sub-projetos oportunizavam.<br />

Na prática, as atividades voltadas para o desenvolvimento da fabulação dentro do<br />

espaço formal da escola perpassavam pelo hábito constante de ouvir e contar histórias, ou seja,<br />

utilizava a contação de histórias como suporte para trabalhar outras questões curriculares.<br />

Através das atividades diárias de se ouvir e contar histórias, as crianças podiam demonstrar e<br />

CLXXVIII


desenvolver habilidades e competências lingüísticas que possibilitavam a comunicação verbal.<br />

Através de momentos de falar e momentos de ouvir, estimulava o querer responder, interagir<br />

e comunicar. Comunicar através de uma língua que nos alimenta para que possamos<br />

alimentar a vida, que é verbo dentro de nós.<br />

Dentre muitas histórias que ouvíamos e contávamos em sala de aula, gostaria de<br />

lançar uma lente mais reflexiva sobre três narrativas que acompanharam o desenvolvimento<br />

do projeto Tangolomango em todo o seu percurso escolar: O “Boi-Bumbá” do Maranhão, “O<br />

nome da fruta”, recolhida por Sílvio Romero e uma animação infantil chamada “Kiriku e a<br />

feiticeira”. Recupero estas três narrativas na tentativa de fazer uma pequena amostragem dos<br />

processos psicanalíticos e subjetivos, que cada narrativa pode vir a provocar. Arrisco-me a<br />

apresentar algumas considerações de como percebo e interpreto estas narrativas, sem, no<br />

entanto, ter a pretensão de esgotá-las.<br />

Bunba-meu-boi-bumbá<br />

Esta narrativa maranhense, vai ao encontro das vivências e memórias familiares<br />

das crianças: a incidência de famílias vindas do Nordeste dentro das escolas públicas no Rio<br />

de Janeiro é muito grande, o que por si só, já justificava a inclusão de alguns aspectos da<br />

cultura popular nordestina no currículo formal e com isso, a narrativa do auto popular<br />

possibilitava também recuperar um pouco destas lembranças familiares quase esquecidas.<br />

Além de ouvir a história, de fabricarmos boizinhos em sala, de dançarmos,<br />

cantarmos e escrevermos sobre esta história, percebia que ao despedaçarmos o corpo do boi<br />

entre as crianças e outros atores escolares, abria-se espaço para o “brincar com as palavras”,<br />

onde inventávamos versos e rimas num movimento constante de apropriação e re-significação<br />

da palavra. Neste sentido, o processo de vida (fertilidade de Catirina), morte (do boi) e vida<br />

novamente (quando o boi ressuscita) está metaforicamente entrelaçado com os processos de<br />

vida-morte-vida que todos nós, em micro ou macro escala, vivenciamos. A imagem grotesca<br />

do corpo do boi despedaçado é uma forma de (des)construção de um novo corpo.<br />

CLXXIX


Figura 47<br />

Crianças brincam de “tripa de boi” no pátio da escola. Um corpo que se movimenta<br />

contando e recriando uma história.<br />

Na história percebemos que o partir e o repartir do corpo do boi, sempre<br />

acompanhado de risos e comicidade popular por conta da fala do narrador que tem naquele<br />

momento o poder de, através da “brincadeira”, liberar palavras reveladoras de situações ou<br />

conflitos vividos por aquela comunidade, convida a inauguração de uma nova ordem que se<br />

insurge com a força da palavra.<br />

A narrativa abre possibilidades também de pensarmos, a partir da figura grávida e<br />

desejosa de Catirina (mulher de pai Francisco) as expressões de um corpo “fecundado-<br />

fecundante, parido-parindo, devorador-devorado”ou seja, nos aproximarmos de certo modo,<br />

de um corpo grotesco que predomina na arte e linguagem “não oficial” do povo. (BAKTHIN:<br />

1999:278)<br />

De certa forma, acredito que a narrativa traz metaforicamente em seu “não dito” as<br />

discussões sobre a renovação da cultura: uma cultura que morre e se renova cotidianamente.<br />

CLXXX


Figura 48<br />

Mateus e Catirina representados no pátio da escola. Painel pintado pelas crianças do<br />

Projeto Tangolomango. Turma do Tangolomango/ CIEP/ 2002<br />

Figura 49<br />

(Coronel Lourenço manda Pai Francisco cuidar do seu boi de Estrela na testa. Este boi é um<br />

presente do céu. Pai Francisco foi para casa e quando estava chegando Catirina, sua mulher, gritou: - Pai<br />

Francisco, estou esperando um filho seu, mas para seu filho não nascer com cara de bezerro, estou com<br />

desejo de comer língua de boi)<br />

Produção construída após as vivências corporais que a história do Bumba –meu -Boi do<br />

Maranhão nos possibilitava. Autor: Moiséis( 12 anos)<br />

Projeto Tangolomango/Turma do Papagaio/ CIEP Posseiro Mário Vaz/2005<br />

CLXXXI


O Nome da Fruta<br />

Silvio Romero (1851-1914) recolheu da tradição oral e de certa forma, reescreveu<br />

esta narrativa popular que aconteceu no reino da Floresta da Brejaúva, no tempo em que os<br />

bichos falavam. As personagens principais desta história - uma raposa e uma tartaruga -<br />

anunciam uma reflexão sobre o imbricado processo de ensinar e aprender vivenciados<br />

cotidianamente na escola.<br />

Mais uma vez, a narrativa recolhida aponta para o inquietante e curioso desejo<br />

humano de “querer saber” que ao meu ver, está relacionado com o constante “inacabamento”<br />

do ser humano já discutido por Paulo Freire.<br />

Na história, há um saber a ser conhecido: o misterioso nome da fruta. Fruta esta que<br />

ao ser comida, tinha poderes de deixar os bichinhos daquela floresta mais inteligentes e<br />

espertos. Por isso era uma fruta muito cobiçada. A história, como o rio, segue seu curso e aos<br />

poucos, vai sendo revelado que havia um único bicho que conhecia o nome da fruta: a esperta<br />

raposa.<br />

Que por sua vez, não só sabia o nome da fruta, mas ensinava aos outros bichinhos.<br />

Repetia, repetia, mas nenhum bicho aprendia. A questão é que era um nome tão complicado<br />

que por mais que a raposa ensinasse, ninguém aprendia. Repetia, repetia e nada, ninguém<br />

aprendia. Por este motivo, cansada de tanto ensinar e nenhum bicho aprender, a raposa se<br />

mudou para um lugar bem longe daquela árvore com suas frutas desejadas e de nome<br />

misterioso. E então, juntando a dificuldade de aprender o nome da fruta e a distância em que a<br />

raposa propositalmente havia se colocado, nenhum outro bicho daquela floresta, conseguia<br />

degustar da almejada fruta.<br />

A história toda muda de tom, quando a tartaruga acorda decidida a descobrir o<br />

nome da famosa fruta e acabar com o monopólio do saber da raposa. Bem, a história termina<br />

com a tartaruga não só aprendendo o nome da fruta, como ensinando-o a todos os outros<br />

bichos da floresta da Brejaúva que ficaram mais espertos a partir de então, inteligentes pra<br />

valer.<br />

CLXXXII


E sempre que desejavam provar da saborosa fruta, eles diziam seu nome que era:<br />

FRUTA-PÉ, PRETU-PRÁ, PRATA-PÓ, PÁ, PÓ,PÉ! (entendeu?)<br />

O que fica como reflexão após a história é que a tartaruga (a lentinha da tartaruga)<br />

conseguiu ensinar a todos os bichos o que a tão “esperta” raposa não conseguira: fazer circular<br />

um conhecimento que só ela detinha, ou seja,compartilhar seu saber.<br />

Ao apropriar-me desta história, penso nas intrincadas relações entre ensinar e<br />

aprender e como, metaforicamente falando, nós educadores(as) temos dificuldades de pensar<br />

“tartarugamente” e inventar, criar novos meios ou caminhos que favoreçam a aprendizagem de<br />

nossos educandos. Por este motivo, “raposamente” falando, nos mudamos para algum lugar<br />

longe da realidade cotidiana de nossas crianças. O ensinar de forma mecânica e repetidamente<br />

cansativa, não conseguiu fazer, apesar do reconhecido esforço e “boa vontade” da raposa e<br />

também dos bichinhos, promover a aprendizagem do nome da fruta.<br />

Figura 50<br />

(Era uma vez, um jabuti muito sabido. Ele mora na mata. Ele não sabia o nome da fruta. A<br />

raposa ensinou. O nome da fruta é: Frutapé-pretupá-pratapó-pápópé!)<br />

Produção textual sobre a história “O nome da fruta” que deu nome á nossa turma/<br />

Projeto Tangolomango/ Turma do Jabuti/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003<br />

CLXXXIII


Voltando à história, gostaria de trazer um momento chave em que revela um<br />

método, ou melhor, traduzindo um caminho utilizado pela tartaruga neste processo de ensinar<br />

e aprender. É que a tartaruga, lembrando-se que cantando o povo não esquece, teve a<br />

inspiração de criar uma cantiga que facilitasse o processo ensino-aprendizagem seu e do<br />

restante da bicharada. E foi assim, cantando parte por parte do nome da fruta, que os bichinhos<br />

conseguiram aprender. Depois do saber adquirido e compartilhado, a vida ganhou outro sabor.<br />

O sabor de saber e o poder que há no saber. Por isso, não dá para des-politizar o saber que<br />

como nas palavras de BRANDÃO, é o “próprio saber”.(BRANDÃO, 2004:82)<br />

Daí também o prazer da descoberta. Experiência pessoal, singular, sensorial e<br />

intransferível atravessada pelo processo de saber o sabor de saber. Tem uma canção que<br />

dividia com as crianças que fala deste desejo humano de quere saber o sabor das coisas. Diz<br />

assim:<br />

Toda criança quer<br />

Toda criança quer crescer<br />

Toda criança quer ser um adulto<br />

E todo adulto quer<br />

E todo adulto quer crescer<br />

Pra vencer e ter acesso ao mundo<br />

E todo mundo quer<br />

E todo mundo quer saber<br />

De onde vem<br />

Pra onde vai<br />

Como é que entra<br />

Como é que sai<br />

Por que é que sobe<br />

Por que é que cai<br />

Pois todo mundo quer...<br />

Composição: Péricles Cavalcanti 77<br />

Para finalizar, podemos nos perguntar: que “tipo” de educador queremos ser e de qual<br />

modelo de educador nos aproximamos mais neste momento? Como estamos falando de<br />

identidade - ou melhor identidades – quando somos raposa e quando somos tartaruga em<br />

nosso complexo desafio de aprender a aprender? O quanto de raposa ou tartaruga existe dentro<br />

de mim e quando eles se revelam?<br />

77 Disponível em: vagalume.uol.com.br/palavra-cantada/toda-crianca-quer.html<br />

CLXXXIV


Kiriku e a Feiticeira 78<br />

A animação africana “Kiriku e a feiticeira” também é uma narrativa cheia de<br />

mistérios e encantamentos. Um lugar perdido no território africano, tão próximo mais ao<br />

mesmo tempo tão distante de nós: nossa mãe África.<br />

Através da emocionante saga de um menino pequenino, que já nasce falando e<br />

andando demonstrando saberes interiores muito além de seu tamanho, descobre logo ao<br />

nascer, que todas as vicissitudes e males que as pessoas de sua aldeia passam é por causa de<br />

uma terrível feiticeira, de nome Karabá. A narrativa aponta para a possibilidade de<br />

resolvermos nossos próprios desafios, com coragem, inteligência e determinação. Vamos a<br />

ela.<br />

Além de enfeitiçar e seqüestrar todos os guerreiros da sua tribo, e aterrorizar as<br />

mulheres e as crianças ameaçando destruir sua aldeia , a temível feiticeira havia feito secar a<br />

água da fonte tornando a terra infértil e improdutiva. O menino, mesmo pequenino, decide<br />

acabar com os poderes malignos da feiticeira. Seu desejo de querer saber porque a feiticeira<br />

era tão má o leva a uma emocionante saga onde encontra seu avô (Oxalá?) em uma gruta<br />

encantada, que só se abria para quem merecesse nela penetrá-la. Um processo iniciático:o<br />

pequeno Kiriku passa por várias atribulações e perigos antes de chegar ao seu destino. Lá, no<br />

aconchego daquele velhinho vestido de branco, ele descobre o que tanto queria saber.<br />

Descobre que Karabá, no passado não era má, mas havia sido enfeitiçada por homens maus<br />

que cravaram um espinho em suas costas e este era o motivo de sua ira e encantamento. Para<br />

quebrar o feitiço, era preciso retirar o espinho que a atormentava.<br />

Neste momento, o menino Kiriku é tomado de imensa coragem e vai atrás de<br />

Karabá, determinado a quebrar o encanto. Mais uma vez, o pequeno menino é forçado a usar<br />

sua inteligência e astúcia para conseguir retirar a feiticeira de sua gruta. Ao roubar seus<br />

78 Disponível em: www.adorocinema.com/filmes/kiriku/kiriku-e-feiticeira.asp<br />

CLXXXV


tesouros, o menino consegue levar Karabá para fora de seu reinado, e fica em cima de uma<br />

árvore, a espera da feiticeira que não tarda a aparecer. Kiriku surpreende Karabá pulando em<br />

suas costas e com os dentes, retira o espinho enfeitiçado. Na mesma hora, ouve-se um grito de<br />

dor que ecoa pela floresta e depois, o silêncio se faz. É o momento de mudança e<br />

transformação.<br />

Ao livra-la da maldição, Kiriku vê surgir na sua frente uma nova mulher: uma<br />

mulher de fala doce e bondosa, muito bonita e que lhe agradece por haver-lhe retirado o<br />

espinho que a amaldiçoava.<br />

Ao ver tamanha beleza, Kiriku se apaixona e pede Karabá em casamento. Esta não<br />

aceita, Kiriku ainda é um menino. Mesmo assim, Kiriku não desiste e lhe pede como<br />

retribuição que ela lhe dê um beijo. Quando ela o beija, Kiriku cresce, torna-se um belo rapaz.<br />

Mais apaixonado ainda, pede novamente Karabá em casamento.<br />

A história tem um final feliz: apesar das pessoas da aldeia quererem matar Karabá,<br />

voltam atrás ao verem todos os guerreiros sãos e salvos retornarem para a aldeia e acabam<br />

perdoando Karabá por todo sofrimento que ela, por conta do espinho enfeitiçado, havia lhes<br />

feito passar.<br />

Voltando a questão das vicissitudes vividas pelo menino Kiriku, encontramos no<br />

refrão da cantiga que acompanha as vitórias do menino, um alento às dificuldades que possam<br />

aparecer na vida das crianças, que ao ouvirem a história, imediatamente se identificam com os<br />

versos que diz assim: “Kiriku é pequeno/ mas é bem valente/ mas é bem valente”.<br />

Esta é uma história de valentia, enfrentamento e desejo de mudar a ordem pré-<br />

estabelecida, além de abrir espaços para repensarmos a estética e os valores africanos,<br />

conhecendo num desenho animado um pouco da ancestralidade dos alunos.<br />

CLXXXVI


Figura 51<br />

(Kiriku tirou o espinho das costas de Karabá. Kiriku pediu um beijo e Karabá deu um beijo no<br />

pequeno Kiriku. Ele foi crescendo e os dois, karabá e Kiriku voltaram para a aldeia e os homenes foram<br />

libertos e suas mulheres ficaram alegres e karabá e Kiriku viveram felizes para sempre)<br />

Produção escrita de “Kiriku e a feiticeira”. Projeto Tangolomango/ Turma da<br />

Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/ 2005<br />

Discorrendo sobre este assunto, encontramos na entrevista de Joel Zito Araújo 79 ,<br />

que defende a idéia de que o racismo no Brasil é localizado pela estética. No imaginário social<br />

brasileiro, o negro além de feio (como falou Welton de 7 anos e a Saiara de 12), é “subalterno,<br />

potencialmente perigoso, assustador”. Este traço negativo da identidade negra torna-se<br />

relevante se levarmos em consideração de que somos a “2ª maior nação negra”, continua<br />

enfatizando o cineasta. Fizemos em sala muitas atividades de escrita espontânea a partir desta<br />

história.<br />

79 ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil. O negro na telenovela brasileira. ... da branquitude como padrão<br />

estético. audiovisual. Revista USP. Racismo II.www.compos.org.br/files/28ecompos09_Brandao_Fernandes.pdf<br />

CLXXXVII


Figura 52<br />

(Kiriku e a feiticeira/Kiriku é pequeno, mas tem seu valor/Eu gostei quendo ele tira o espinho das<br />

costas dela e também quando ele pediu para nascer e a mãe disse: - Um neném que fala dentro da barriga<br />

pode nascer sozinho.)<br />

Produção escrita de “Kiriku e a feiticeira”. Projeto Tangolomango/ Turma da<br />

Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/ 2005<br />

De certa forma, esta e tantas outras narrativas que ouvíamos em sala, abria um<br />

campo de possibilidades para refletirmos sobre como e por quê a partir de um exercício<br />

constante de des-construção e re-construção de determinadas crenças que circulam<br />

principalmente dentro do cotidiano escolar – inclusive na fala mesmo que “silenciosa” e no<br />

currículo “oculto” de todos os atores sociais da escola pública – devemos, enquanto<br />

educadores, fortalecer o sentimento de pertencimento e enraizamento em relação à sua etnia<br />

negra que muitos brasileiros fazem parte para buscarmos de alguma maneira, modificar este<br />

conflituoso, plural e delicado tecido cultural brasileiro.<br />

Pra falar da questão da pobreza e miséria das classes populares, por exemplo,<br />

recorria a história de “Duula, a mulher canibal” 80 que conta em curtas palavras, conta a<br />

história de como uma pastora enlouquecida pela fome e miséria no deserto africano vai se<br />

80 ROGERIO ANDRADE BARBOSA - Duula, a Mulher Canibal: um Conto Africano/<br />

www.planetanews.com/produto/L/11975/<br />

CLXXXVIII


transformando em um terrível monstro devorador de carne humana. A narrativa aproxima-se<br />

da famosa história de João e Maria onde um casal de gêmeos Askar e Mayran se perdem no<br />

deserto e acabam prisioneiros de Duula. Uma história que fala de abandono e da esperteza das<br />

crianças que precisam se livrar daquele monstro para manterem-se vivos e acharem o caminho<br />

de casa, deslocava nosso olhar para o continente africano, tão longe e tão perto de nossos<br />

corações.<br />

Esta é a realidade presente na vida de muitas crianças que freqüentam a escola<br />

pública e de alguma forma, utilizava estas e tantas outras narrativas para iluminar e refletir<br />

sobre este sentimento de subalternização e os lugares de pertencimento destinados aos pretos,<br />

ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres, recuperando mais uma vez a<br />

canção.<br />

Para finalizar, gostaria de ressaltar que a palavra do contador de histórias busca<br />

levar o educando a aquisição das condições básicas para que o ensino da cultura escrita se<br />

desenvolva de um modo mais eficiente e prazeroso. Através do legado da tradição oral,<br />

podemos gerar em nossa sociedade bons leitores que “surgem de bons falantes, capazes de<br />

recitar, pois a recitação para as crianças é tão natural, ela é narrativa e em grande parte<br />

rítmica”. (MATOS, 2005:161).<br />

Voltamos novamente a falar de movimentos híbridos e fronteiriços que se tentarmos<br />

separar, podemos incorrer em um erro gravíssimo: oralidade e escrita não estão separadas: a<br />

palavra falada é a primeira a possibilitar a tomada de consciência do mundo, e a interação<br />

entre oralidade e escrita não deve ser menosprezada.<br />

O fato é que falamos de formas diferentes da armazenar e valorar conhecimentos,<br />

visto que a relação com a palavra muda completamente quando falamos de oralidade e escrita.<br />

Por isso, compreende-se melhor a cultura escrita a partir dos estudos sobre a oralidade.<br />

(MATOS, 2005:158)<br />

A tradição milenar de contar histórias vem atravessando gerações e gerações, onde<br />

de boca em boca, de ouvido a ouvido, palavras perfumadas vão abrindo – e, por que não,<br />

também fechando - “portas” que num movimento cíclico ativam canais de constante<br />

comunicação entre os homens, levando-nos muitas vezes a ignorados destinos, onde<br />

imaginação e realidade em rebuliço se encontram, promovendo mudanças de ordem<br />

CLXXXIX


emocionais e psíquicas em níveis diferenciados em cada sujeito que desta atividade participa,<br />

seja como ouvinte ou como narrador. Acredito que a contação de histórias tem a função de<br />

perpassar a tradição através da língua, pois “a tradição só pode ser armazenada pela língua, a<br />

qual é memorizada e transmitida de geração a geração” (MATOS, 2005:156). E por falar em<br />

tradição, vejamos a seguir o que o Jongo, ou melhor, a Escola de Jongo possa vir a contribuir<br />

no sentido de des-construção da subalternidade negra em nossa sociedade.<br />

3.4 – Escravos de jó, jogavam caxangá<br />

O Tangolomango e a Escola de Jongo da Serrinha: novas possibilidades de<br />

intervenção cultural na escola<br />

Comigo aconteceu assim: de tanto olhar, parecia que já conhecia.<br />

Assim começou minha relação apaixonada com o Jongo da Serrinha. Aonde tinha<br />

apresentação do Jongo da Serrinha, lá estava eu, dançando e cantando, interagindo de corpo e<br />

alma com aqueles tambores que me emocionavam.<br />

Lembro-me da emoção que senti ao ouvir Lazir Synval - uma das Pastoras do Jongo<br />

– abrindo a “Temporada Jongo da Serrinha 2005” em cena cantando “Semba dos Ancestrais”<br />

. Sentia-me como na canção: o coração disparava, os olhos ficavam marejados, a cabeça<br />

viajava para longe e no fundo, aqueles tambores que me tomavam de “ponta a cabeça”<br />

repercutindo em mim, uma ancestralidade africana há muito negada, silenciada. Eram<br />

ressonâncias e tudo ali, me impressionava, me atravessava. Fui ao teatro repetidas vezes e a<br />

cada dia era como descobrir uma nova emoção.<br />

Transcrevo a seguir, a letra da cantiga que me tomou por inteira e abriu a temporada<br />

do Jongo da Serrinha em Dezembro de 2005 , no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro:<br />

Se teu corpo se arrepiar<br />

Se sentires também o sangue ferver<br />

Se a cabeça viajar<br />

E mesmo assim estiveres num grande astral<br />

CXC


Se ao pisar o solo teu coração disparar<br />

Se entrares em transe em ser da religião<br />

Se comeres fungi, quisaca e mufete de cara-pau<br />

Se Luanda te encher de emoção<br />

Se o povo te impressionar demais<br />

É porque são de lá os teus ancestrais<br />

Pode crer no axé dos teus ancestrais.<br />

(Semba dos Ancestrais Martinho da Vila/Rosinha de Valença) 17<br />

Figura 54<br />

Lazir Synval canta “ Semba dos Ancestrais” na temporada do Jongo da Serrinha no<br />

Teatro Carlos Gomes/2005.<br />

Depois de algum tempo de convivência, vieram os convites para conhecer a Escola<br />

de Jongo e posteriormente, assumir um trabalho educativo junto à coordenação desta mesma<br />

escola. É neste novo espaço educativo que o projeto Tangolomango vem sendo atualmente<br />

desenvolvido: partindo de um espaço não formal de educação e penetrando, por outras vias<br />

mais uma vez no arenoso território escolar.<br />

O trabalho na Escola de Jongo de preservação da memória jongueira nesta<br />

comunidade (assim como promover e dar visibilidade a outras comunidades jongueiras) 18 é<br />

envolvente, desafiador.<br />

CXCI


Fortalecendo ainda mais esse elo com a oralidade local, estamos como Ponto de<br />

Cultura 81 , participando do Projeto “Ação Griôt” 82 que tem como objetivo, a valorização da<br />

Cultura Oral nas comunidades produtoras de cultura(as) como a nossa. E é sobre essa<br />

experiência com a oralidade que gostaríamos de nos debruçar e para isso, escolhia figura da<br />

Tia Maria do Jongo para protagonizar este momento da narrativa.<br />

Tia Maria do Jongo é nossa matriarca e Mestre jongueira. Ao longo de seus 86<br />

anos sabe muitas histórias e cantos sobre a comunidade em que nasceu e foi criada.<br />

Uma história que me faz lembrar outra:<br />

“- As negras velhas – disse Pedrinho-são sempre muito sabidas. Mamãe<br />

conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma<br />

de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se<br />

na varanda e desfiava histórias e mais histórias.Quem sabe tia Nastácia não é<br />

uma segunda tia Esméria?Foi assim que nasceram as Histórias da Tia<br />

Nastácia.”(Monteiro Lobato/Histórias da Tia Nastácia,p.513)<br />

Monteiro Lobato (1882-1948) escrevera com tamanha paixão sobre a história de<br />

nosso povo e a respeito da nacionalidade brasileira, que conseguira atingir índices altíssimos<br />

de popularidade em uma época de parcos recursos comunicativos como os conhecidos<br />

atualmente – o rádio, por exemplo, acabava de ser difundido pouco antes dele falecer. Como o<br />

tempo o comprovou, Lobato estava muitas das vezes à frente de sua época com suas idéias<br />

inovadoras e revolucionárias.<br />

Sua personagem, Tia Nastácia, negra velha, mesmo sofrendo as “pilhérias e<br />

mangações” da boneca Emília, que não poupava ninguém, surge no cenário lobatiano como a<br />

que sabe muitas histórias, só que não são histórias dos livros que D. Benta contava: são<br />

histórias da oralidade popular, histórias do folclore brasileiro. Além disso, era Tia Nastácia<br />

que cozinhava, a que detinha o poder e o conhecimento sobre os alimentos e que por causa<br />

deste saber, foi até mesmo raptada pelo Minotauro que ouviu falar de seus “quitutes”,<br />

forçando todos os outros a viajarem até a Grécia Antiga utilizando o pó de “pir-lim-pim-pim”<br />

para salvá-la das garras do terrível monstro.<br />

81 Maiores informações sobre Pontos de Cultura disponível em: www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/<br />

82 Maiores informações sobre Ação Griot Nacional disponível em:<br />

www.graosdeluzegrio.org.br/html/acao_grio/apresentacao-projeto-texto.htm - 41k -<br />

CXCII


Tecendo uma intertextualidade com outro compositor, agora contemporâneo,<br />

recorro a cantiga de Dorival Caymmi que também ajuda a ressaltar a importância da ama<br />

negra, a exemplo daquela que permeia o universo lobatiano:<br />

Na hora que o sol se esconde/E o sono chega<br />

O sinhozinho vai procurar Hum...hum...hum...<br />

A velha de colo quente /Que conta quadras<br />

que conta estoria para ninar Hum...hum...hum...<br />

Sinha Nastacia que conta historia<br />

Sinha Nastacia sabe agradar<br />

Sinha Nastacia que quando nina<br />

Acaba por cochilar<br />

Sinha Nastacia vai murmurrando estória para ninar 83<br />

Resta-nos, portanto, uma reflexão: o que queriam outras pretas velhas comunicar,<br />

construir, guarnecer e, sobretudo, não deixar esquecer, quando iam peregrinando de engenho à<br />

engenho contando e cantando suas histórias para seus pares?<br />

Encontramos na obra de Monteiro Lobato, especificamente no livro “As histórias de<br />

Tia Nastácia” que dominava como ninguém um rosário de histórias populares de tal modo que<br />

poderíamos classificá-la como Mestre da palavra falada, um posicionamento crítico do autor<br />

em defesa desta rica e milenar tradição humana: a fabulação. A importância da fabulação<br />

aparece freqüentemente revelada através das histórias que conhecia de memória, uma velha<br />

tradição oral trazida da África – relembrando a figura milenar do griot - contador profissional<br />

que ganhava a vida contando histórias de aldeia em aldeia.<br />

Assim, através das histórias de Tia Nastácia, Monteiro Lobato encontrou uma<br />

maneira de articular oralidade e escrita legitimando o que corria na boca do povo, suas<br />

histórias e supertições. Neste sentido, podemos dizer que para Monteiro Lobato criar é<br />

fabular, imaginar, transgredir.<br />

E toda fabulação para ser bem prazerosa precisa ter um tom coloquial, de conversa<br />

informal com o ouvinte, sem se prender a dar muitas explicações e promover descobertas.<br />

Quer antes embalar o corpo e acordar a imaginação, obedecer a uma cadência mole, repetitiva<br />

mesmo, criando suspense diante do que está por vir e apresentando o “desenrolar contínuo e<br />

ritmado das ações de determinado personagem”(RONDELLI, 1989:42)<br />

83 Disponível em: vagalume.uol.com.br/dorival-caymmi/tia-nastacia.html - 27k -<br />

CXCIII


É assim que no início do livro “As reinações de narizinho” Lobato nos convida:<br />

Numa casinha branca, lá no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha<br />

de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta. Quem passa pela<br />

estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de<br />

ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:<br />

- Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto, mas engana-se. D.<br />

Benta é a mais feliz das avós porque vive em companhia de sua neta<br />

Lúcia, a menina do narizinho arrebitado(...) 84<br />

Parodiando o referido autor, escrevi um pequeno texto anunciativo sobre a vida da<br />

Tia Maria do Jongo e seu encantador quintal:<br />

Numa casinha verde, de muro multicor enfeitado, em meio a árvores frondosas e<br />

refrescantes, mora uma velha de mais de oitenta anos. Quem passa pela estrada e a vê<br />

sentada na varanda, lendo seu jornal, segue seu caminho pensando: - Que tristeza viver assim<br />

tão sozinha....Mas engana-se. Tia Maria é uma das pessoas mais felizes daquele lugar porque<br />

vive em companhia de não apenas uma, mas de muitas crianças, que com ela convivem e<br />

carinhosamente a reconhecem como a Tia Maria do Jongo.<br />

E foi justamente por sabermos de sua grande importância e popularidade junto às<br />

crianças, que resolvemos convidá-la para ser nossa Mestre Griôt, visto que ela já cumpria esta<br />

função, muito antes da fundação da Escola de Jongo 85 naquela comunidade. Sobre o assunto, é<br />

a própria Tia Maria que se anuncia dizendo: - Antes de Jongo, de ONG, minha casa sempre foi<br />

cheia de criança. Eles entram, me ajudam. Ainda pouco tinha criança aqui, me ajudaram a<br />

molhar as plantas, conversamos um pouco... Graças a Deus, estamos aí, sempre junto com as<br />

crianças!<br />

Tia Maria do Jongo tornou-se uma das pessoas mais importantes e conhecidas da<br />

Serrinha. Percebemos isso também durante as apresentações do Grupo Cultural Jongo da<br />

Serrinha - momento de muita emoção, onde Tia Maria da Jongo entra com “suas” crianças<br />

como orgulhosa ela mesma apresenta, restituindo simbolicamente um elo entre as gerações,<br />

onde passado e presente se encontram anunciando um futuro mais esperançoso que se<br />

84 Versão na internet disponível em: www.memoriaviva.digi.com.br/mlobato/turma.htm<br />

85 A Escola de Jongo foi fundada em 2001.<br />

CXCIV


descortina a cada ‘tapiado” 86 , sinalizada na cantiga “Preta velha jongueira” de Lazir<br />

Sinval:“Preta velha jongueira, meu Caxambu 25 está lhe chamando, sinto a poeira do chão<br />

levantando com seu tapiado(...)”.<br />

A participação ativa e o olhar atento à narrativa são fortemente ressaltados como<br />

acontece em rodas de contação de histórias em diversas regiões deste país. A interação<br />

narrador-ouvinte é fator importante para que o conto cumpra sua função social de mediador de<br />

experiências vividas e guardadas na memória na forma de histórias, contos, mitos, fábulas,<br />

lendas, cantigas de embalar crianças e uma infinita série de brincadeiras cantadas que -<br />

falando especificamente da natureza humana, de suas necessidades, mazelas e grandezas -<br />

atraem público de todas as idades até os dias de hoje perpetuando, o que defendemos ser um<br />

“evento comunicativo”.<br />

.<br />

Figura 55<br />

Tia Maria do Jongo conta histórias em seu quintal/Projeto Griot/ Arquivo Escola de<br />

Jongo/Outubro/2007<br />

86 De todas as Comunidades Jongueiras (14 ao todo) a Serrinha é a única que dança “tapiando” com o pé forte no<br />

chão.<br />

CXCV


Figura 56<br />

Tia Maria ensina em seu quintal a dança do Jongo ao jongueiro mirim. Vida ao Jongo!<br />

Arquivo Escola de Jongo da Serrinha/Madureira/2007<br />

E o que conta e comunica nossa Tia Maria do Jongo em seu maravilhoso quintal?<br />

De qual valores estamos falando? O que é ser um jongueiro? De que tipo de educação estamos<br />

falando?<br />

Uma das respostas pode ser encontrada no ponto de Jongo descrito abaixo que<br />

saúda o jongueiro velho que veio para ensinar às próximas gerações seus saberes jongueiros,<br />

dando-nos uma dimensão de como estes conhecimentos circulares vem sendo transmitidos de<br />

geração a geração:<br />

Saravá jongueiro velho<br />

Que veio pra ensinar<br />

Que Deus dê proteção<br />

Pra jongueiro novo<br />

Pro Jongo não se acabar!<br />

(Ponto de jongueiro/Guaratinguetá/SP)<br />

Tia Maria, nascida e criada em Madureira, conta que a música e a dança sempre<br />

fizeram parte de sua vida, onde teve o privilégio de ver no quintal de sua casa o nascimento de<br />

uma das mais importantes e tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro, a Império<br />

Serrano e ficava, menina ainda, escondida - tendo a lua como testemunha - por detrás das<br />

árvores ouvindo, cantando e ensaiando os primeiros passos e pontos das rodas de Jongo que<br />

aconteciam altas horas da noite no terreiro de sua casa, - pois naquele tempo, as crianças eram<br />

CXCVI


proibidas de participar das rodas de Jongo, eram reuniões fechadas, envolvidas em<br />

fundamentos e mistérios.<br />

Porém sua “curiosidade espontânea” 87 era tanta, que lá ela ficava só espiando e de<br />

tanto espiar, acabou aprendendo tão bem a arte de ser “jongueira” que em 1977, Mestre Darcy<br />

do Jongo – considerado por todos o ‘pai” do Jongo da Serrinha – a convidou para montar com<br />

ele um grupo de jongo com as crianças: semente que há quase 30 anos cresceu e frutificou,<br />

gerando o Centro Cultural da Serrinha que temos hoje.<br />

Aliás, o romper com as fronteiras dos espaços oficiais do saber, atravessar muros e<br />

paredes e chegar, quem sabe, a legitimar o quintal da Tia Maria como um ecossistema<br />

educativo, é um desafio. O que se passa, quando nada parece se passar?<br />

Uma vez, em uma de nossas Rodas de Conversas em que recebíamos a visita de<br />

cerca de 60 jovens da UNE em nossa Escola de Jongo, um deles lançou na roda a seguinte<br />

pergunta: - O que vocês sentem quando estão dançando o Jongo? No que Kethelyn, de 8 anos<br />

respondeu: Emoção!<br />

Figura 57<br />

Kethelyn – primeira menina à direita –, na roda de Jongo,<br />

batendo palmas e ensinando seus saberes aos jovens visitantes da UNE/Arquivo da<br />

Escola de Jongo/Janeiro/2007<br />

87 Em seu livro “Pedagogia da Autonomia” Paulo Freire discute a necessidade de se transformar a curiosidade<br />

“espontânea” em curiosidade “epistemológica”. Paulo Freire (1996).<br />

CXCVII


È no descobrir-se “jongueiro” que emociona o sujeito. Um sujeito, grande ou<br />

pequeno, que descobre sua necessidade desconhecida: a de pertencer primeiramente a si<br />

mesmo, depois a um grupo - a uma “pátria mãe” que precisa ser amada para se tornar<br />

“conhecida”, como tão bem nos lembra Roger Bastide, que ao olhar as coisas pelo avesso,<br />

afirmou “só se conhece aquilo que se ama”( BASTIDE aput BRANDÃO,2002:172).<br />

Ao penetrar no campo afetivo, onde valores altamente simbólicos são acionados,<br />

este mesmo sujeito começa a gostar, ou seja, a “amar” pelo viés do jongo a si mesmo, as<br />

pessoas e as coisas a sua volta, e amando, busca conhecer, conhecendo quer valorizar,<br />

valorizando não quer perder, não perder significa guardar. Guardar na dimensão poética que<br />

Antônio Cândido anunciou, sem trancar mas fazendo o conhecimento circular.<br />

A necessidade de perpetuação de valores ancestrais, onde o saber dos mais velhos é<br />

repassado aos mais novos, nos leva a refletir nesta “gnose jongueira” que Tia Maria e tantos<br />

outros jongueiros mais velhos nos ensinam, motivam e encantam.<br />

Ela atua no sentido de provocar as curiosidades e aquele menino e menina que<br />

chegam ao seu no seu quintal o tempo todo “de repente aprende”. Portanto, consideramos<br />

relevante o olhar reflexivo para o momento em que vivemos agora, em que os altos índices de<br />

exclusão e repetência escolar continuam a ser o grande desafio a ser vencido se realmente<br />

quisermos democratizar o saber e mudar a imagem subalterna que se acumulou por anos e<br />

anos de história sobre a cultura popular.<br />

O projeto Mestre Griôts apresentado como proposta trabalho junto a Escola de<br />

Jongo da Serrinha em parceria com a Escola Municipal República Dominicana, se propõe<br />

principalmente, a direcionar e aplicar estas reflexões sobre o acervo da tradição oral que<br />

circula na comunidade do Morro da Serrinha no cotidiano escolar propiciando, com isso, que<br />

o ambiente da sala de aula se torne um espaço capaz de permitir uma identificação cultural do<br />

sujeito cognoscente, tanto com o objeto de conhecimento quanto os seus processos<br />

aumentando a rede de transmissão de conhecimentos, descentralizando e democratizando<br />

saberes. Quais os poetas daquela comunidade de jongueiros? Quem é Tia Maria do Jongo? Por<br />

que os nomes das ruas daquela comunidade são Mestre Darcy do Jongo ou Mano Décio da<br />

Viola? Por que o nome da creche ao lado da escola em que eles estudam é “Creche Tia Maria<br />

Joana”? E a casa ao lado, por que se chama “Tia Eulália”? Quem são estas pessoas e o que<br />

CXCVIII


fizeram por sua comunidade? E como o aprendizado deste saberes pode ajudar o menino ou a<br />

menina em seu processo de alfabetização? Quais os símbolos jongueiros, os ritos, os valores<br />

que podem ser utilizados como estratégia alfabetizadora?<br />

Saberes locais que ao dialogarem com o currículo formal da escola, fortalece o<br />

sentimento de pertencimento e enraizamento tão necessários ao desenvolvimento humano,<br />

motivando o sujeito a buscar novos conhecimentos, a ir em busca do que ele ainda não sabe.<br />

Acredito que estas e tantas outras histórias locais, possam também servir de ferramenta de luta<br />

contra projetos globais de subalternização em relação aos saberes das classes populares.<br />

Sem a apropriação da leitura e escrita, como possibilitar ao menino e menina<br />

jongueira a apropriação destes saberes de maneira que ele se sinta encorajado e fortalecido a<br />

procurar outros, visto que, reiterando mais uma vez “se negro é burro, quero burro no<br />

mestrado”? A certeza de que precisamos buscar um diálogo constante com a escola nos anima<br />

a caminhar. Agora, como os caminhos não estão dados, cada dia é dia de reinvenção em nossa<br />

escola que busca romper com este paradigma dicotômico entre cultura e educação.<br />

A inclusão não apenas de livros que problematizam a questão da discriminação<br />

racial brasileira, mas recuperando leituras de matrizes históricas e culturais do negro, mas a<br />

mudança de postura do educador(a) no acolhimento as diferenças e diversidade , a<br />

hibridização e pluriétinica brasileira pode vir a ser um caminho para quebrar e desconstruir<br />

esta visão negativa das identidades negras ou afro-descendentes no Brasil, inaugurando novos<br />

discursos.<br />

Discurso este, que contemple cada vez mais a luta , mas também a poesia, as falas,<br />

as festas e danças, os batuques, o riso e a rebeldia de um povo que quer valer-se de sua própria<br />

história, como na cantiga “Negrume da Noite” 88 - cuja letra aqui transcrevo como um convite<br />

à reflexões futuras e duradouras fazendo com o que está invisível transborde abundantemente<br />

dentro de cada um de nós:<br />

O negrume da noite<br />

Reluziu o dia o perfil azeviche<br />

Que a negritude criou<br />

88 NEGRUME DA NOITE letra (Virgínia Rodrigues) disponível em: letras.terra.com.br/virginia-rodrigues/487519/<br />

CXCIX


Constitui o universo de beleza<br />

Explorado pela raça negra<br />

Por isso o negro lutou<br />

E acabou invejado e se consagrou<br />

Ilê, ilê, ilê<br />

Tu és o senhor dessa grande nação<br />

E hoje os negros clamam<br />

A benção, a benção, a benção<br />

Odécomorodê<br />

Odé are re adé<br />

Comodore odé are re<br />

Desenvolvemos um trabalho de valorização constante da oralidade e escrita, na<br />

medida em que entendemos que aquele espaço, pode ser um espaço onde os educadores ,<br />

como eu, possam ser mediadores de leitura.<br />

Tal pensamento vai ao encontro do pensamento elaborado por Márcia Cabral sobre<br />

os mediadores de leitura:<br />

Os mediadores de leitura, nem sempre estarão, portanto, enraizados<br />

nos meios familiares, nas instituições escolares. Muitas vezes, é em meio<br />

a outras situações, culturalmente significativas, que o sujeito encontrará<br />

alimento para seu pleno desenvolvimento como leitor. (CABRAL,<br />

p.168)<br />

Figura 58<br />

O Griot Aprendiz Carlos Alarcão é um mediador de leitura. Nesta fotografia, crianças escutam<br />

uma história no quintal da Tia Maria do Jongo. No canto acima, o inseparável tambor.<br />

Arquivo Escola de Jongo da Serrinha/Madureira/2007<br />

CC


Desta forma, acreditamos na possibilidade de interferir de forma positiva no<br />

processo de formação identitária destes sujeitos que por estarem em um espaço marcado<br />

referencialmente pelas questões de matriz afro-brasileiras, são potencialmente capazes de se<br />

tornarem multiplicadores deste Patrimônio Imaterial da cidade do Rio de Janeiro: o Jongo da<br />

Serrinha. Para que este processo de aquisição de conhecimentos se complete, o diálogo com<br />

espaços formais de educação é um desafio. Brandão analisa esta questão da seguinte forma:<br />

O diálogo entre o espaço formal e o não formal, me leva a perceber<br />

cada vez mais a necessidade de trabalharmos com os conceitos de<br />

hibridização cultural, onde as fronteiras entre os saberes ou zonas de<br />

intersecção não estão tão claros e definidos como a cultura hegemônica<br />

nos impõe acreditar, e precisam ser compreendidos como movimentos<br />

circulares cujos limites e fronteiras nos convocam a novos desafios e<br />

aprendizagens, que se dão de maneira efetiva dentro e fora da escola.<br />

Então, o que eu acho que nós podemos fazer é criar condições para que,<br />

de uma maneira autônoma, criadores de cultura popular, desde uma<br />

pessoa individualmente até toda uma comunidade, possam recriar e<br />

possam viver da maneira mais livre e autêntica possível as suas<br />

próprias experiências de festas, de criações de cultura imaterial e assim<br />

por diante. 89<br />

Ao atuar hoje na construção de um outro espaço possível de conhecimento e<br />

aprendizagem e buscamos, na contramão das dicotomias e separações culturais da qual sou<br />

fruto, penetrar por outras vias novamente no território escolar, para melhor instrumentalizar<br />

estes jongueiros mirins produtores de cultura(as) em relação a sua imersão na cultura escrita.<br />

Este é o desafio que o projeto Tangolomango se propõe, a partir deste momento, investigar: as<br />

situações culturalmente significativas que promovem a formação do sujeito leitor dentro e fora<br />

da escola. De repente por que não estes meninos e meninas vão poder registrar estas histórias<br />

há tanto tempo circulam na comunidade?<br />

Pela complexidade que as questões por hora levantadas nos suscitam, gostaria de ressaltar<br />

a necessidade de construir “pontes” e não dicotomias e mais uma vez, separações entre os<br />

saberes. Reconheço, entretanto, que o caminho escolhido é delicado, é como andar em “um fio<br />

de navalha”. Se escorregar apenas para um lado, valorizamos os saberes locais, mas, não<br />

89 Disponível em:WWW.tvebrasil.com.br – Entrevista: Carlos Rodrigues Brandão<br />

CCI


promovemos possibilidades do menino e menina se apropriarem de outros saberes; se cairmos<br />

para o outro lado, corremos o risco de enfraquecer e colaborar com o desenraizamento de sua<br />

cultura. Por isso, optamos pela fluidez e pelo fortalecimento do hibridismo cultural. Optamos<br />

pelo caminho que provoque a possibilidade de transitar entre e com as culturas.<br />

CCII


ENTROU POR UMA PORTA E SAIU PELA OUTRA...<br />

Algumas considerações finais<br />

Uma história sem fim<br />

“Vou caminhar que o mundo gira<br />

Vou caminhar que o mundo gira<br />

Gira meu mundo...”<br />

(Ponto de despedida/Jongo da Serrinha)<br />

Muitos contadores de histórias acreditam que as histórias “não tem fim”. Mesmo<br />

quando o contador se despede de seus ouvintes anunciando “entrou pelo pé de pato, saiu pelo<br />

pé de pinto, quem quiser que conte cinco” as histórias, continuam sendo “gestadas” no<br />

coração das pessoas. Estando elas agora, “grávidas” de outras palavras que fazem parte do<br />

mundo subjetivo que cada sujeito carrega consigo, elas se renovam e se reinventam ao serem<br />

re-contadas: de boca em boca as histórias se re-alimentam e neste sentido, elas “não têm fim”.<br />

O que termina não são as histórias e sim os ciclos. A cada ciclo terminado, um novo está por<br />

vir, e assim as histórias são recontadas sempre mais e mais uma vez. Recontar uma história é<br />

revivê-la. Senti-la novamente, emocionar-se mais uma vez.<br />

Talvez, por este motivo, o homem tenha desenvolvido a capacidade de fabular, de<br />

narrar e por que não dizer, de inventar histórias. Fabulam-se, inventam-se, narram-se e<br />

contam-se histórias pela necessidade de reviver novamente a vivência que outrora,<br />

CCIII


positivamente ou mesmo negativamente nos emocionou, nos tocou, nos atravessou, a ponto de<br />

constituir uma experiência.<br />

Daí a necessidade da repetição, recriação e reiteração presente quando se recupera<br />

os fios de uma memória sempre reinventada, buscando compreender uma realidade revivida<br />

através de fragmentos de nossa própria memória que evoca outros fragmentos, acabamos nos<br />

emocionando e de certa forma, vivendo estas experiências mais uma vez. E ao reviver, penso,<br />

reflito e aprendo novamente. Nesse movimento, fiz a opção de recontar o Tangolomango de<br />

modo a revivê-lo novamente, buscando compreender as complexas redes de relações e<br />

vínculos afetivos que tal experiência educativa possibilitou sobretudo a mim e de alguma<br />

forma, que não posso mensurar, as crianças e adolescentes que compartilharam esta pedagogia<br />

cultural comigo.<br />

Por outro lado, acredito que este movimento, o movimento de descoberta de quem<br />

eu sou, foi de certa forma, o que atravessou esta narrativa buscando reflexões para<br />

compreender melhor os educandos com que interagi. Por buscar recuperar a realidade vivida,<br />

acredito que corremos perigo. Como nos fala Ruth Rocha, “mais difícil do que escrever sobre<br />

ficção, é na certa, escrever sobre a realidade” visto que para o pensamento da autora “quando<br />

se escreve, conta-se o que é”. 29 O tangolomango está carregado de minhas memórias mas<br />

também da provocação do que ainda desconheço.<br />

A frase de Clarice Lispector, que muito me emociona e faz pensar, diz assim: “Eu<br />

sei muito pouco, mas tenho a meu favor, tudo que não sei”. Trago este fragmento de texto,<br />

como um pré-texto para acalentar, de certa forma, as fragilidades que ainda minha narrativa<br />

carrega (e sempre?) matizada de algumas contradições e até mesmo, polarizações. A escrita<br />

ainda me trai e neste sentido, reconheço o longo caminho à frente a percorrer. Este é um texto<br />

que me desnuda naquilo inclusive que ainda não sei.<br />

Considerando que a(s) cultura(s) são as “moradas do saber” (BRANDÃO,<br />

2204:108) defendo a hipótese de que ao fortalecer os elos das crianças e adolescentes com<br />

suas práticas culturais e conseqüentemente, seus saberes e dizeres, poderemos enriquecer os<br />

conteúdos escolares de maneira a levar os educandos a uma consciência cada vez maior do seu<br />

“que fazer” no mundo a partir da construção de novos significados.<br />

CCIV


A base de nossa abordagem pedagógica, que aliada às questões, duvidas e conceitos<br />

iluminados por Paulo Freire referentes ao “tipo” humano que queremos formar - buscando<br />

fazer com que crianças e jovens elaborem projetos de vida que incluam suas potencialidades e<br />

habilidades. Que tenham a possibilidade de des-construir o discurso da subalternidade<br />

abrindo-se para outras culturas também. Que os saberes das classes populares possam ser<br />

legitimados e que estes mesmos sujeitos possam ter a possibilidade de construir outros.<br />

Sou tomada de desejo neste momento. Um desejo que há muito me inquieta. Um<br />

desejo, que encontro também cotidianamente nas crianças ao meu redor: o desejo de conhecer<br />

os avessos das coisas. Lembro-me de que, quando criança, tinha o desejo de ser formiga, só<br />

para entrar no formigueiro. Tinha uma curiosidade besta de saber se lá, no interior da casa das<br />

formigas, tinha quarto, sala, banheiro, cozinha, igualzinho como era a casa que eu conhecia.<br />

Buscava entender o conceito de casa que as formiga tinham e sabia que nenhum adulto<br />

poderia me ajudar a descobrir isso. Por isso imaginava. Puro devaneio infantil. Neste sentido,<br />

desejo a construção de uma outra escola: uma escola acolhedora, uma escola dialógica e<br />

libertária, aberta à vida, inclusive à fabulação.<br />

Reconheço, que muito do que sou e escrevo hoje, como pessoa e educadora, está<br />

permeado por estas experiências e curiosidades infantis. E pra deixar esta criança que ainda<br />

vive em mim, sempre acesa, em alerta, resolvi contar esta história: a história de uma<br />

educadora negra, que acredita que uma outra escola é possível.<br />

“Se é imaginário, é” nos fala categoricamente Estamira citando outra fala que se<br />

repete ao longo do filme já mencionado anteriormente. Uma fala que nos possibilita retomar o<br />

fio da fabulação mais uma vez, como elemento indispensável para a construção de uma escola<br />

melhor: imaginar que esta mesma escola seja possível, é o primeiro passo para que este desejo<br />

aconteça.<br />

Falando mais uma vez das questões que costuraram a presente narrativa, a<br />

preocupação especificamente com a criança que ainda não aprendeu a ler e a escrever, me<br />

inquietou a tal ponto, que fomentou a elaboração do projeto pedagógico que priorizou a<br />

diversidade cultural como eixo buscando o diálogo entre saberes e práticas cotidianas.<br />

Buscando incorporar o potencial lúdico e simbólico que as manifestações populares<br />

CCV


apresentam, fomos compondo a partir da competência lingüística dos educandos, um projeto<br />

interdisciplinar de produção e aquisição de novos conhecimentos.<br />

Voltamos mais uma vez a enfatizar a necessidade de provocar nas crianças e<br />

adolescentes o desenvolvimento do sentimento de enraizamento e pertencimento como<br />

estratégia de emancipação das classes populares: comprometer-se com uma classe social que<br />

vem sofrendo violências históricas marcadamente racistas e classistas ao longo da história<br />

política deste país, que desmerece, expropria e subalterniza seus saberes. O caminho escolhido<br />

foi à busca constante e as possibilidades de diálogo entre educações e culturas. Lutava<br />

diariamente para que minha fala não fosse alienante, buscando perceber o conjunto dos “temas<br />

geradores” que possibilitariam esta intervenção pedagógica transformadora.<br />

Na prática, acredito que o Tangolomango deixe como reflexão para futuros<br />

desdobramentos e descobertas, a possibilidade de investir e desenvolver um olhar cada vez<br />

mais sensível às interações e trocas culturais como estratégia de aproximação do sujeito de<br />

seus saberes e raízes. Aponta também para a necessidade de, nós educadores, desenvolvermos<br />

a consciência de que a seleção curricular que por hora separa e dicotomiza o sujeito de sua<br />

vida cotidiana, separando equivocadamente educação e cultura, é uma opção política que tem<br />

a ver com o “tipo” humano e de sociedade queremos ou não formar.<br />

Ao me deslocar de um espaço formal para um espaço informal educativo, carrego<br />

comigo as mesmas inquietações. E este movimento me leva a refletir um pouco mais<br />

profundamente, sobre as fronteiras e os espaços híbridos de construção de saber, ou saberes. O<br />

que está dentro, o que está fora, o que está entre? E mais uma vez, como fica a escola formal<br />

com esta “invasão cultural” que a Escola de Jongo possibilita, visto que os meninos e meninas<br />

que estão lá também estão cá, misturando, selecionando, transformando saberes. Fluidez e<br />

intercâmbio mais uma vez agora sendo percebidos por outro lugar: a Escola de Jongo da<br />

Serrinha.<br />

Reconhecemos a escola formal como “um espaço” dentre tantos outros espaços<br />

sociais que as crianças e adolescentes participam, e por isso, apostamos neste emaranhado de<br />

fios tecidos a partir dos encontros e desencontros culturais que geram fronteiras híbridas entre<br />

os saberes plurais, múltiplos e circulares. Estamos dentro do espaço escolar dançando e<br />

cantando o Jongo, mas também “invadimos” seu espaço curricular através da figura dos<br />

CCVI


Mestres Griots que contam histórias e recuperam o poder da fabulação entre e com as<br />

crianças. Estamos ensaiando novas possibilidades e os desafios em relação ao que seria uma<br />

educação do cotidiano (BRANDÃO,2004:156), na tentativa de abrir as portas da escola para o<br />

mundo que a circunda, é grande porém, promissor. Quem sabe um outro caminho é possível?<br />

Esta é a pergunta que continuo a perseguir.<br />

As questões que se apresentam neste momento seriam: Quais as contribuições que<br />

tais interações culturais podem vir a possibilitar ao cotidiano escolar? O que nós, educadores<br />

da Escola de Jongo, temos a ensinar e aprender com a escola formal e vice versa? Como<br />

promover o fortalecimento da identidade afro-brasileira na escola tendo como suporte a<br />

cultura jongueira local? Como ampliar o conhecimento curricular das crianças e adolescentes<br />

daquela comunidade de modo a fazer com que os seus próprios conhecimentos e saberes não<br />

sejam subalternizados ou esquecidos? Como colaborar para a construção de uma escola viva,<br />

que não seja a escola de “um dia só” mas que potencialize os diferentes saberes culturais<br />

favorecendo e ampliando o conhecimento tanto dos educandos como de seus educadores?<br />

Ou seja, de que maneira podemos dialogar com diferentes saberes, fazendo com que<br />

o menino e a menina aprendam tanto sobre a cultura geral (que é imprescindível para sua<br />

imersão social mais ampla) com ajudar o menino a conhecer e aprofundar seu conhecimento<br />

sobre a cultura local da qual participa? Em síntese: como fazer com os meninos e meninas<br />

aprendam, tudo junto e misturado, tanto os conhecimentos oficiais da escola quanto os nomes<br />

dos poetas populares de seu povo?<br />

Apesar de sabermos que ainda é cedo para respondermos a estes e tantos outros<br />

desafios que a parceria com a escola formal e nossa Escola de Jongo paulatinamente está<br />

construindo, a desconfiança de que a possibilidade de trocas e diálogos culturais como fatores<br />

que interferem diretamente na formação e particularmente em sua alfabetização, nos fortalece<br />

e estimula.<br />

Para finalizar, gostaria de refletir sobre o sentimento de frustração em relação aos<br />

que “não foram”, aos que ficaram no “meio” do caminho. Relembrar de Isaías, de Israel, de<br />

Pedro, de Crispim, da Adriana, do Abraão, da Karen, da Daniela, do Daniel, do Jefferson e<br />

outros que tanto me ensinaram sobre minha incompletude docente.<br />

CCVII


Não sei até que ponto eu interferi na vida destes meninos. O que terá acontecido<br />

com eles? Como anda a sua vida escolar? Em que momento a semente lançada em favor de<br />

sua não submissão se insurgiu? (ou ainda está por se insurgir?) Neste sentido, fico a me<br />

perguntar: valeu a pena?<br />

Para responder a esta pergunta, afirmo que “começaria tudo outra vez”, ou melhor,<br />

como acredito que as histórias “não têm fim” visto que não dá para terminar dizendo que<br />

“todos foram felizes para sempre!”, reconheço, metaforicamente falando, nas crianças e<br />

adolescentes da Escola de Jongo estes mesmos meninos e meninas que passaram pelo projeto<br />

Tangolomango. Meninos e meninas que apresentam dificuldades em se alfabetizar.<br />

A possibilidade de provocar, através do fortalecimento da “leitura de mundo” como<br />

suporte para a aprendizagem da “leitura da palavra” abre brechas, mais uma vez, para<br />

realizarmos pequenos movimentos de quebra da subalternização e insurgência contra os<br />

entraves políticos e culturais que as classes populares sofrem. Fica o convite a futuras<br />

investigações e descobertas.<br />

Por hora, gostaria de me despedir tal e qual como comecei. Gostaria de pedir a<br />

benção a todos os Mestres, brincantes e foliões, aos versadores e cantadores, a todos<br />

aqueles/aquelas que diálogo com diferentes tambores, que levam mensagens aos Deuses<br />

dançando e fincando os pés no chão, e principalmente, às crianças – Erês que me<br />

acompanham no viver de todo dia. Peço a benção também aos leitores e leitoras, que de<br />

alguma forma, compartilharam a experiência rememorada do Tangolomango comigo.<br />

Peço a benção aos meus orixás: a Ogum que sincretizado na figura de São Jorge<br />

Guerreiro, protege e abre meus caminhos e a Iansã - dona dos ventos e das tempestades - que<br />

quando sopra me desloca para lugares antes inimagináveis. EPA HEI! Para todo o sempre!<br />

Axé! Pois estando eu acostumada a entrar na roda e a “sungar” a saia e começar a girar e a<br />

dançar,e a cantar me despeço trazendo um ponto de Jongo que fala por si só:<br />

Adeus, povo bom adeus,<br />

Adeus que eu já vou embora,<br />

Pelas ondas do mar eu vim,<br />

Pelas ondas do mar eu vou me embora...<br />

CCVIII


BIBLIOGRAFIA:<br />

ALENCAR, Francisco. História da Sociedade Brasileira. Ed.Ao Livro Técnico, 2ª Ed.RJ:1981.<br />

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975. A cultura popular na idade média e no<br />

renascimento: o contexto de François Rabelais./ Mikhail Mikhailovitch Bakthin; tradução de<br />

Yara Frateschi Vieira. – São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília,<br />

1999.<br />

BOMENY, Helena. Intelectuais da Educação. Jorge Zahar Editor, 2001.<br />

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização/ Alfredo Bisi. – São Paulo: Companhia das<br />

Letras,1992.<br />

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas, SP: Mercado das<br />

Letras,2002.<br />

___________________________ A educação popular na escola cidadã . - Petrópolis,Vozes,<br />

2002.<br />

BOURDOUKAN, Georges Latif. A incrível história do Capitão Mouro/ Georges Latif<br />

Bourdoukan. – 4ª . edição. – São Paulo: casa Amarela, 1999.<br />

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. Rio de Janeiro.Ed.Ática,2002.<br />

CABRAL, Márcia. A criança e o livro: memória em fragmentos.IN Maria Isabel Leite e Sonia<br />

Kramer (Orgs.) Infância e Produção Cultural. ED. Papirus,1994.<br />

CALDEIRA,Jorge. Viagem pela História do Brasil. Jorge Caldeira. Companhia das<br />

Letras,1997.<br />

CARVALHO, Marcos Antonio Cândido. O desejo na pedagogia do desejo. IN REIS, Ana<br />

Maria Bianchi dos (org.). Plantando Axé: uma proposta pedagógica. São Paulo: Cortez, 2000.<br />

CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Disponível em:<br />

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf<br />

CCIX


CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer/ Michael de Certeau;<br />

tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, Vozes, 1994.<br />

DEWEY, John. Experiência e educação. São Paulo. Ed Nacional, 1976.<br />

FREIRE, Paulo. Educação como prática de Liberdade. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.<br />

_____________ Pedagogia do Oprimido. 49ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.<br />

_____________ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.Rio de<br />

Janeiro: Paz e Terra, 2002.<br />

FREYRE, Gilberto.Casa-grande & senzala. José Olympio,<br />

GADOTTI,Moacir.“Convite à leitura de Paulo Freire”. São Paulo: Scipione,1989.<br />

HANNERZ, Ulf. Fluxos, Fronteiras, Híbridos: palavras–chave da antropologia transnacional/<br />

Ulf Hannerz.- MANA 3/1Estudos da Antropologia Social , Abril de 1997.<br />

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de<br />

Educação,n.19,p.20-28,2002.Disponível em:<br />

http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf<br />

MATOS, Gislayne Avelar. A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na<br />

contemporaneidade/ Gislayne Avelar Matos. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo , Companhia das Letras, 1997.<br />

MIGNOLO. Walter D. Histórias locais/Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e<br />

pensamento liminar. Walter D. Mignolo; Tradução: Solange Ribeiro de Oliveira – Belo<br />

Horizonte: Editora UFMG, 2003.<br />

NAJMANOVICH, Denise. Pensar/viver a corporalidade para além do dualismo. IN: Garcia,<br />

Regina Leite (org.) O corpo que fala dentro da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.<br />

CCX


PRETTO, Nelson de Luca. Educações e Culturas: em busca de aproximações. Separata de:<br />

Cotidiano: diálogos sobre diálogos/Regina Leite Garcia; Edwiges Zaccur; Irene Giambiagi<br />

(orgas.) – Ed. DP&A, Rio de Janeiro: 2005. p.133-148.<br />

RONDELLI, Beth. O narrado e o vivido: o processo comunicativo das narrativas orais, entre<br />

pescadores do Maranhão. – Rio de Janeiro: FUNARTE/IBAC, Coordenação de Folclore e<br />

Cultura Popular,1993.<br />

RUFINO, Joel. In: Mesa-Redonda – Simpósio Nacional de Leitura (1994: Rio de Janeiro/RJ).<br />

Leitura, Saber e Cidadania / Simpósio Nacional de Leitura – Rio de Janeiro: PROLER/Centro<br />

Cultural Banco do Brasil, 1994, p.98-99.<br />

SALLES, Ricardo e Mariza de Carvalho Soares. Episódios da história afro-brasileira. Rio de<br />

Janeiro: DP&A/Fase, 2005.<br />

SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que<br />

naturalizaram a inferioridade dos negros: Gislene Aparecida dos Santos. – São Paulo:<br />

Educ/Faesp;Rio de Janeiro: Palllas, 2002.<br />

TRINDADE, Azoilda Loretto. Do corpo da carência ao corpo da potência: desafios da<br />

docência. IN: Garcia, Regina Leite (org.) O corpo que fala dentro da escola. Rio de Janeiro:<br />

DP&A, 2002.<br />

VILHENA,Luis Rodolfo. “Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-<br />

1964”.Funarte:Fundação Getúlio Vargas,1997.<br />

WEIL,Simone,1909-1943.”A condição operária e outros estudos sobre a opressão/ Simone<br />

Weil;Tradução de Therezinha G.G. Langlada;seleção e apresentação de Ecléia Bosi.Rj/Paz e<br />

terra,1979.(Coleção O Mundo, Hoje:V.32).<br />

Bibliografia de Apoio:<br />

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil.- Belo Horizonte: Ed.Itatiaia,1994.<br />

DANIELS, Harry.Vygotsky e a Pedagogia. Edições Loyola. - São Paulo,2001.<br />

CCXI


HALL, Stuart.A Identidade na pós-modernidade.Rio de Janeiro,2001.<br />

HOBSBAW, Eric.J., 1917 – História Social do Jazz/Eric J., Hobsbawm; Tradução: Ângela<br />

Noromha. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.<br />

LOBATO, Monteiro. Sítio do Picapau Amarelo. Monteiro Lobato.- São Paulo,Ed. Brasiliense,<br />

2003.<br />

_________ Monteiro. As Histórias da Tia Nastácia. – São Paulo, Ed. Brasiliense,2003.<br />

REGO, Tereza Cristina.Vygotsky:uma perspectiva histórico-cultural da educação/Tereza<br />

Cristina Rego. – Rio de Janeiro/ Petrópolis,Vozes, 1995.<br />

ROMERO, Sílvio. Contos Populares do Brasil/ Sílvio Romero. - , Rio de Janeiro, Livraria José<br />

Olympio Editora, 1954.<br />

ROSA, Guimarães, 1908-1967. Grande Sertão:Veredas/ João Guimarães Rosa. – 19ª Ed. – Rio<br />

de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

CCXII

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!