jan-jun/12 - Dialogarts - UERJ
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ISSN 1806 - 9142<br />
Qualis “B2” na tabela CAPES<br />
1994 – 20<strong>12</strong><br />
18 anos de produção
Caderno Seminal Digital – Vol. 17 – Nº 17– (Jan /Jun – 20<strong>12</strong>). Rio de Janeiro: <strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>12</strong>.<br />
ISSN 1806-9142<br />
Semestral<br />
1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -<br />
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />
CONSELHO CONSULTIVO<br />
André Valente (<strong>UERJ</strong> / FACHA)<br />
Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII)<br />
Claudio Cezar Henriques (<strong>UERJ</strong> / UNESA)<br />
Darcilia Marindir Pinto Simões (<strong>UERJ</strong> / PUC-SP)<br />
Edwiges Guiomar Santos Zaccur (UFF)<br />
Eliane Meneses de Melo (UBC-SP)<br />
Flavio Garcia (<strong>UERJ</strong> / UNISUAM)<br />
Jayme Célio Furtado dos Santos (SEE-RJ / SME<br />
Macaé)<br />
José Lemos Monteiro (UFC / UECE / UNIFOR)<br />
José Luís Jobim (<strong>UERJ</strong> / UFF)<br />
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)<br />
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)<br />
Maria Suzatt Biembengut Santad (UMinho-PT<br />
/ FMPFM E FIMI -SP / <strong>UERJ</strong>)<br />
Maria Teresa G. Pereira (<strong>UERJ</strong>)<br />
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />
Regina Michelli (<strong>UERJ</strong> / UNISUAM)<br />
Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />
Vilson José Le a (UCPel-RS)<br />
EDITORA<br />
Darcilia Simões<br />
CO-EDITOR<br />
Flavio Garcia<br />
ASSESSOR EXECUTIVO<br />
Cláudio Cezar Henriques<br />
DIAGRAMAÇÃO<br />
Marcos da Rocha Vieira (Bolsista Proatec)<br />
PROJETO DE CAPA<br />
Carlos Henrique de Souza Pereira<br />
(Bolsista de Extensão)<br />
LOGOTIPO<br />
Gisela Abad<br />
Contato:<br />
caderno.seminal@gmail.com<br />
publicações.dialogarts@gmail.com
Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um Projeto Editorial de Extensão Universitária<br />
da <strong>UERJ</strong> do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a<br />
Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O Objetivo<br />
deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade,<br />
com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto<br />
sociocultural em que está inserida.<br />
O projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela DIGRAF/<br />
<strong>UERJ</strong>. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no momento,<br />
surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenadores do Projeto,<br />
as produções digitais com vista a recuperar a ritmo de suas publicações e<br />
ampliar a divulgação.<br />
Visite nossa página: http://www.dialogarts.uerj.br
APRESENTAÇÃO<br />
SUMáRIO<br />
Flavio García 7<br />
DOSSIÊ TEMáTICO 8<br />
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ TEMáTICO<br />
Marisa Martins Gama-Khalil 13<br />
EM OUTRO PLANO DO SER: UMA POÉTICA DA DUPLICIDADE<br />
NA NARRATIVA FANTáSTICA DE JULIO CORTáZAR<br />
Amanda Pérez Montañés 14<br />
O DIABO NÃO FOI CONVIDADO: CONTO FANTáSTICO<br />
E TRADIÇÃO QUEBEQUENSE<br />
Ana Luiza Ramazzina Ghirardi 26<br />
O ESTRANHAMENTO COTIDIANO: UMA LEITURA DOS<br />
CONTOS DE JULIO CORTáZAR<br />
Laila Karla Lima Duarte<br />
Heloisa Helena Siqueira Correia 46<br />
A EXPRESSÃO DO FANTáSTICO NOS CONTOS “LIGÉIA”, DE<br />
EDGAR ALLAN POE, E “VÉRA”, DE VILLIERS DE L’ISLE-ADAM.<br />
Lígia Pereira de Pádua 53<br />
ASPECTOS DO DUPLO NOS CONTOS “O EX-MáGICO DA<br />
TABERNA MINHOTA”, DE MURILO RUBIÃO, E “CARTA A UMA<br />
SENHORITA EM PARIS”, DE JULIO CORTáZAR<br />
Luciano Antonio 62<br />
NAÇÃO E UTOPIA EM A JANGADA DE PEDRA E O FEITIÇO DA<br />
ILHA DO PAVÃO<br />
Marco Antonio Rodrigues 74
ENCENAÇõES DO FANTáSTICO E DO ABSURDO EM<br />
VERONICA STIGGER<br />
Maria Fernanda Garbero de Aragão 87<br />
POLÍTICA DO FANTáSTICO<br />
Nuno Manna 98<br />
O ECO MATERIALIZADO: CONSIDERAÇõES SOBRE O TEOR<br />
PROFÉTICO DA CANÇÃO DE SIRUIZ<br />
Patrícia Tavares da Cunha Fuza<br />
Ederson Vertuan 113<br />
‘STAGNUS IGNIS’: O APOCALIPSE REESCREVE<br />
HOMERO! “HORIZONTES HOMÉRICOS” NA NARRAÇÃO<br />
RELIGIOSA E MÍTICA DE TEXTOS E CONTEXTOS<br />
APOCALÍPTICOS (AP 20, 14-15)?<br />
Pedro Paulo Alves dos Santos <strong>12</strong>3<br />
O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DO FANTáSTICO NO CONTO<br />
“NATAL NA BARCA”, DE LYGIA FAGUNDES TELLES<br />
Rosana Gondim Rezende Oliveira 133<br />
O FANTáSTICO COMO REPRESENTAÇÃO DO TEMOR AO<br />
ESTRANGEIRO: UMA LEITURA EM CONTRAPONTO DE “O<br />
HORLA”, DE GUY DE MAUPASSANT<br />
Rosângela de Medeiros 146<br />
A REPRESENTAÇÃO DO ESTRANGEIRO E DO ESTRANHO EM<br />
“FRONTEIRA NATURAL”, DE NÉLIDA PINõN<br />
Suely Leite 159<br />
GENETTE E O FANTáSTICO<br />
Wandeir Araújo Silva<br />
Liane Schneider 168<br />
TEXTOS LIVRES 179
APRESENTAÇÃO TEXTOS LIVRES<br />
Flavio García 181<br />
LETRAMENTO, ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTO<br />
DIGITAL<br />
Ana Maria Pires Novaes 182<br />
O DESIGN DE INFORMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE<br />
INCLUSÃO SOCIAL<br />
Maria João Palma<br />
Airton Castagna<br />
Katia Avelar 194<br />
“MESTRES POPULARES” E A ESCOLA NO BRASIL<br />
Ricardo do Carmo<br />
Katia Avelar<br />
Maria Geralda de Miranda 202
APRESENTAÇÃO<br />
Diante da produção de mais um número do Caderno Seminal Digital – sua<br />
17ª edição –, dando continuidade às quatorze edições do Caderno Seminal<br />
anteriormente publicadas em suporte impresso – papel –, ficamos tentados a<br />
retrasar seu lançamento para aproveitar o exuberante excesso de excelentes<br />
trabalhos acerca da “Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais do<br />
insólito”, que foram submetidos à publicação na Revista Letras & Letras, da<br />
Universidade Federal de Uberlândia – UFU, de cuja coordenação do número<br />
temático fazíamos parte.<br />
Havia uma quantidade bastante significativa de trabalhos aprovados, mas que,<br />
pelas limitações de espaço, não poderiam ser absorvidos por aquela Revista.<br />
Sentimo-nos na obrigação de, conforme o espírito extensionistas que move<br />
as Publicações <strong>Dialogarts</strong>, promover parceira com aquele veículo editorial<br />
e acolher parte dos trabalhos aprovados, duplicando, em nosso periódico, o<br />
mesmo dossiê temático. E assim fizemos.<br />
Não podemos, a priori, definir que essa será, daqui para diante, uma política<br />
constante de nossa publicação, mas não podemos, igualmente, negar ou<br />
negligenciar nosso caráter de projeto de extensão universitária, cujo berço<br />
de nascimento coincide exatamente com a vocação de diálogos internos e<br />
externos, de encontros e trocas, de parcerias. Foi atendendo a essa dinâmica<br />
que entendemos por bem receber os artigos inicialmente submetidos à Revista<br />
Letras & Letras, que já contavam com a provação prévia do conselho editorial<br />
daquele periódico e cujos autores aquiesceram com tal ideia. Os artigos que<br />
aqui se publicam foram, suplementarmente, referendados por pareceristas de<br />
nosso Caderno.<br />
A fim de não deixar de atender à publicação de outros trabalhos não vinculados<br />
à temático do dossiê, mas já antes aprovados para publicação, optamos por<br />
dividir o número em duas seções: Dossiê Temático e Textos Livres.<br />
Esperamos, com este modelo experimental, atender às expectativas de nosso<br />
público leitor e cumprir exemplarmente nossas missões, que se sustentam no<br />
dialogismo próprio do tripé que suporta a convivência universitária: Ensino,<br />
Pesquisa e Extensão.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Flavio García<br />
<strong>UERJ</strong><br />
7
DOSSIÊ tEmátICO
APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ TEMáTICO<br />
Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais do insólito<br />
O tema do presente dossiê – “Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais<br />
do insólito” – tem notável importância no campo dos estudos literários, dada a<br />
abrangência que essa área de estudos vem abarcando nos últimos anos em<br />
universidades brasileiras e estrangeiras. No Brasil, essa abrangência é configurada<br />
especialmente por intermédio da atuação de grupos de pesquisas de diferentes<br />
instituições de ensino superior do país, que vêm abrindo espaço para diálogos<br />
produtivos sobre a manifestação do insólito nas artes, principalmente na literária,<br />
através de cursos, oficinas, eventos acadêmicos e publicações variadas.<br />
Para se ter uma ideia da produtividade dos diferentes grupos de pesquisa na área<br />
em enfoque, faremos um brevíssimo histórico em que ficarão pautados alguns<br />
acontecimentos especialmente relevantes. No ano de 2007, na Universidade<br />
Estadual do Rio de Janeiro – <strong>UERJ</strong>, instigado pelos excelentes resultados de<br />
um curso que havia ministrado sobre o maravilhoso, o sobrenatural, o estranho,<br />
o realismo mágico e o absurdo, o Prof. Dr. Flavio García, <strong>jun</strong>tamente com seu<br />
grupo de pesquisa, certificado no Diretório de Grupos do CNPq. hoje denominado<br />
“Nós do Insólito”, promoveram o I Painel: Reflexões sobre o Insólito na Narrativa<br />
Ficcional, evento que atualmente se encontra na sua décima segunda edição,<br />
prevista para se realizar de 25 a 27 de março de 2013. No ano de 2009, contando<br />
com a adesão de novos alunos e professores, e dialogando com outros grupos<br />
de pesquisa do país que trabalham com a literatura fantástica, o mesmo grupo<br />
da <strong>UERJ</strong> organizou o I Encontro Nacional do Insólito como Questão na Narrativa<br />
Ficcional, <strong>jun</strong>tamente com a VI edição dos Painéis, e, em 20<strong>12</strong>, promoveu o<br />
I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, coincidindo com a<br />
XI edição dos Painéis. Enquanto todo esse movimento acadêmico acontecia<br />
na <strong>UERJ</strong>, outro grupo de pesquisa, denominado “Vertentes do Fantástico na<br />
literatura”, certificado, no Diretório de Grupos CNPq em 2008, pela Universidade<br />
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, tendo como líder a Profa. Dra.<br />
Karin Volobuef, também realizava atividades diversas no sentido de dar relevo<br />
aos estudos sobre as manifestações do fantástico na literatura, e por isso, em<br />
2009, promoveu o I Colóquio Vertentes do Fantástico na Literatura na UNESP<br />
de Araraquara; dois anos depois, ocorreu a II edição do evento na UNESP de<br />
São José do Rio Preto. Em 2010, na Universidade Federal de Uberlândia – UFU,<br />
em Minas Gerais, o Grupo de Pesquisas em Espacialidades Artísticas, também<br />
certificado no Diretório de Grupos CNPq, através de uma de suas linhas teóricas.<br />
voltada para os estudos da literatura fantástica, organizou o Colóquio de Estudos<br />
em Narrativa: História e Ficção no Universo do Fantástico.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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Contando com a atuação de docentes e discentes dos três citados grupos e de<br />
outros pesquisadores de diversas universidades de todas as regiões do país,<br />
em julho de 2011, foi criado, <strong>jun</strong>to à Associação Nacional de Pós-Graduação<br />
e Pesquisa Letras e Linguística – ANPOLL, o Grupo de Trabalho “Vertentes<br />
do Insólito Ficcional”, sob a coordenação do Prof. Dr. Flavio García (<strong>UERJ</strong>)<br />
e da Profa. Dra. Karin Volobuef (UNESP – Araraquara), que apresentou, no<br />
encontro nacional da ANPOLL de 20<strong>12</strong>, suas linhas de trabalho, os projetos<br />
de pesquisa a ele vinculados, bem como o cronograma de atividades a serem<br />
realizadas, como publicações e eventos para o biênio seguinte. Até a presente<br />
data, a união de tais grupos de pesquisa propiciou ao público acadêmico a<br />
produção de variados livros, seja como resultados dos eventos supracitados,<br />
sejam inerentes a projetos individuais dos pesquisadores.<br />
Com a intensa produtividade dos estudos sobre a literatura que tem como<br />
elemento estruturador o insólito, os professores Flavio García, Karin Volobuef<br />
e Marisa Martins Gama-Khalil decidiram organizar um numero temático sobre<br />
Literatura Fantástica, na Revista Letras & Letras, da UFU. A submissão de<br />
trabalhos à publicação foi imensa, chegando ao numero de mais de setenta<br />
de artigos inscritos, representando recorde de submissões nessa revista desde<br />
a sua fundação. Com esse número volumoso de artigos de pesquisadores de<br />
todas as regiões do Brasil e de pesquisadores de quatro países estrangeiros,<br />
os organizadores do referido número temático decidiram aproveitar os trabalhos<br />
enviados para a publicação não só na Letras & Letras, como encaminhá-los para<br />
outras revistas, das quais alguns desses organizadores participam na equipe<br />
editorial. Para tanto, houve consulta formal aos autores dos artigos submetidos<br />
à publicação na Letras & Letras, e, somente após o explícito aceite por parte<br />
desses, tal empreendimento foi levado a cabo.<br />
É nesse sentido que o Caderno Seminal, acolhendo a mesma temática para<br />
a qual os trabalhos foram produzidos, abriga, nesta presente edição, artigos<br />
acadêmicos enviados inicialmente para a Letras & Letras, textos esses que não<br />
poderiam deixar de vir a público para enriquecer o diálogo científico sobre as<br />
diversas manifestações do insólito na literatura.<br />
A publicação proposta tem como meta agregar trabalhos que discutam as<br />
manifestações da literatura fantástica, em sentido lato, seja partindo de uma<br />
argumentação de ordem teórica, como também refletindo sobre a construção<br />
dessa literatura por intermédio da análise de narrativas que apresentem em sua<br />
trama a irrupção do insólito ficcional. Consideraremos como princípio norteador<br />
a ideia de a literatura fantástica ser uma grande rede que abriga diversas<br />
formas de construção ou manifestação do insólito. Nesse sentido, alargamos<br />
os limites temporais e estéticos impostos pelos estudos todorovianos, admitidos<br />
como paradigmáticos nos estudos da literatura fantástica, e compreendemos<br />
o fantástico em suas mais diversificadas modalidades, desde suas relações<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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com os mitos, passando pelo maravilhoso, pelo estranho até as mais recentes<br />
manifestações em que o insólito deixa sua marca na narrativa, por solapar as<br />
aparentes seguranças que o mundo pretensamente “real” nos impõe.<br />
A literatura fantástica, com a apresentação de um mundo tão insólito e plural<br />
como esse que nos rodeia, age no sentido de promover o exagero ou o<br />
deslocamento do real e, por isso, sua representação não nos conduz a uma<br />
negação deste, mas incita uma revisão sua. Para que a revisão se concretize,<br />
é preciso mostrar que não existe Verdade, mas verdades – todas, a um só<br />
tempo, possíveis e, simultaneamente, também impossíveis –, e dar um foco<br />
diferenciado aos fatos expostos ordenadamente pelas instituições, que tentam<br />
discipliná-los e arrumá-los, e é por esse motivo que a literatura fantástica<br />
promove constantes deslocamentos – históricos e estéticos.<br />
No presente dossiê, iniciamos com o artigo de Amanda Pérez Montañés<br />
sobre a presença do duplo na narrativa fantástica de Julio Cortázar, sendo o<br />
duplo entendido como sinônimo e correlato da ficção. Para a autora, o outro,<br />
nas narrativas de Cortázar, revela sempre uma nova e complexa realidade,<br />
uma outra possibilidade de o Eu entender a si e a seu entorno. O artigo de<br />
Ana Luiza Ramazzina Ghirardi oferece ao leitor uma outra manifestação do<br />
insólito, aquele relacionado à literatura popular quebequense, tendo como<br />
objeto de estudo central o Conte populaire de Charles Laberge, para mostrar<br />
a relação entre o imaginário popular e a narrativa fantástica.<br />
As autoras Laila Karla Lima Duarte e Heloísa Siqueira Correia trazem de<br />
novo à cena Julio Cortázar tanto enquanto contista como teórico. Aliada à<br />
voz teórica de Cortázar, entra, para auxiliar na análise proposta, a concepção<br />
de neofantástico cunhada por Jaime Alazraki. As duas narrativas cortazianas<br />
postas em destaque analítico pelas autoras para demonstrarem aos leitores<br />
desta revista as teses elencadas são “Continuidade dos parques” e “Todos os<br />
fogos o fogo”. No artigo de Lígia Pereira de Pádua, o conto “Ligeia”, do grande<br />
mestre da literatura fantástica Edgar Allan Poe, é analisado em contraponto ao<br />
conto “Véra”, de Villiers de L’isle-Adam, para evidenciar de que forma o elemento<br />
fantástico é construído como núcleo estruturador das narrativas e que, sem a<br />
presença de tal elemento, ambas perdem seus principais efeitos de sentido.<br />
Seguindo também a linha de estudo comparatista, Luciano Antonio investe<br />
em uma análise de um conto do consagrado escritor da literatura fantástica<br />
brasileira, Murilo Rubião, e de um conto do escritor argentino já analisado em<br />
outros artigos, Julio Cortázar. O aspecto que realiza o eixo comparatista entre<br />
as duas narrativas é a forma como os dois autores trabalham com o duplo<br />
como elemento desencadeador do insólito ficcional.<br />
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Marco Antonio Rodrigues, ainda na perspectiva comparatista, toma como<br />
objetos de análise o romance A <strong>jan</strong>gada de pedra, do português José Saramago,<br />
e O feitiço da Ilha do Pavão, do brasileiro João Ubaldo Ribeiro, com o objetivo<br />
de comprovar que o trabalho com o sobrenatural na contemporaneidade é<br />
acanhado em função de não haver, em nosso tempo, mais espaço para a<br />
utopia. O contemporâneo também entra em foco nas discussões realizadas<br />
por Maria Fernanda Garbero de Aragão sobre dois contos da escritora porto<br />
alegrense Vera Stigger. Nesses contos, a articulista expõe como as cenas de<br />
caos resultante da precária sobrevivência das personagens sugerem que o<br />
sólito é absurda e frequentemente insólito.<br />
Tomando como fundamentação teórica de base algumas noções de Jacques<br />
Rancière, Nuno Manna, por intermédio de narrativas de Edgar Allan Poe,<br />
Nathaniel Hawthorne e Jorge Luis Borges, investiga como a construção da<br />
literatura fantástica se encontra atrelada à noção de política, já que o fantástico<br />
constrói-se a partir das palavras que sobram; ele desfaz leis e desloca os limites<br />
entre a ordem e a desordem. Patrícia Tavares da Cunha Fuza e Ederson<br />
Vertuan enfocam o fantástico pelo viés do discurso da profecia e, para tal<br />
meta, tomam como mote a Canção de Siruiz e a trajetória de Riobaldo, vivida<br />
entre o material e o imaterial, em um solo real dominado pelas leis do místico. O<br />
místico, atrelado ao mítico, também é base das reflexões realizadas por Pedro<br />
Paulo Alves dos Santos, na medida em que elege como tema os diálogos<br />
intertextuais entre a literatura cristã e a literatura clássica. O autor, partindo da<br />
expressão “Lago do fogo”, presente no texto do capítulo 20 de Apocalipse,<br />
elabora uma discussão acerca da intertextualidade do referido enunciado nos<br />
escritos referentes à aventura de Odisseu ao mundo de hádico. Um evento<br />
tipicamente cristão, o Natal, é tema de um conto de Lygia Fagundes Telles<br />
analisado por Rosana Gondim Rezende Oliveira. Em sua análise, a autora<br />
demonstra como as espacialidades que constituem o conto “Natal na barca”<br />
são responsáveis pela deflagração da ambientação fantástica.<br />
Em um dossiê que tem como tema a literatura fantástica, uma análise de<br />
“O Horla”, de Guy de Maupassant, contribui muitíssimo para enriquecer as<br />
discussões. E esse é o caso do artigo de Rosângela de Medeiros que, partindo<br />
das duas versões do referido conto de Maupassant, trata de como o trabalho<br />
com o “outro”, o estrangeiro, é determinante para a configuração do insólito.<br />
Como em alguns artigos anteriores, o tema do estrangeiro relacionado à literatura<br />
fantástica é o mote analítico de Suely Leite em seu artigo sobre o conto “Fronteira<br />
natural” da escritora brasileira Nélida Piñon. Nesse artigo, vemos a associação<br />
entre o estrangeiro e o estranho, por intermédio da leitura que Julia Kristeva faz<br />
da teoria freudiana. O dossiê se encerra com um artigo de cunho essencialmente<br />
teórico, no qual os autores, Wandeir Araújo Silva e Liane Schneider, procuram<br />
compreender como alguns procedimentos narratológicos estudados por Gérard<br />
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Genette são importantes para a construção da literatura fantástica.<br />
Com este dossiê, oferecemos ao leitor quinze visões sobre o fantástico que<br />
demonstram, pela perspectiva teórica e/ou analítica, estratégias discursivas e<br />
temáticas de elaboração estética da literatura que tem o sobrenatural como<br />
elemento de base. Esperamos, nesse sentido, não só contribuir para mapear<br />
algumas formas de compreensão dessa literatura como também instigar novas<br />
possibilidades de interpretação da mesma.<br />
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Marisa Martins Gama-Khalil<br />
UFU / CNPq<br />
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EM OUTRO PLANO DO SER: UMA POÉTICA DA DUPLICIDADE<br />
NA NARRATIVA FANTáSTICA DE JULIO CORTáZAR<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Amanda Pérez Montañés<br />
Diversos relatos de Julio Cortázar apresentam uma predileção pelo excepcional,<br />
seja nos temas ou nas formas expressivas, impondo ao leitor um modo ambíguo<br />
e paradoxal de compreender a realidade, para além da percepção rotineira do<br />
“real”. A situação causal específica, criada a partir de procedimentos narrativos,<br />
projeta uma nova luz sobre o fato banal, que dessa forma é transformado em<br />
acontecimento dual e surpreendente. Nessa operação metafísica se altera o<br />
sentido da percepção para estabelecer uma nova forma de pensamento que é<br />
paradoxal e subversivo do senso comum. Assim, pelo caminho do não sentido,<br />
o autor/leitor adentra num sistema mais complexo de relações, aglutinante de<br />
uma realidade infinitamente mais vasta em que se projetam dois planos do ser:<br />
um profundo e real, outro, multiplicidade infinita do vir a ser, vazio abismal no<br />
qual o duplo é incluído como habitante. A partir das anteriores considerações,<br />
objetiva-se neste estudo realizar uma reflexão poética sobre a presença do<br />
duplo na narrativa fantástica de Julio Cortázar, entendido esse conceito como<br />
sinônimo e correlato da ficção.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Literatura Fantástica; Duplo; Relatos; Julio Cortázar.<br />
1. Na sala dos espelhos<br />
Na multiplicidade de possíveis percursos, a linguagem transforma o finito (a vida)<br />
em vastidão infinita (a ficção). O relato torna-se assim lugar de extravio porque,<br />
em sua errância, a escrita vai de um lugar a outro sem poder jamais se deter<br />
nem sair de seu próprio espaço. Ao chegar ao borde da linguagem, as palavras<br />
se detêm porque do outro lado não há nada, só vazio abismal, silencio. O limite<br />
infranqueável da linguagem é precisamente sua impossibilidade de nomear o<br />
inominável, revelando que o fato narrado só é uma invenção, e pelo mesmo aberto<br />
às possibilidades infinitas de criação e recriação da escrita, ou, como afirma<br />
Paz (1993, p. 580), “Em quanto escrevia o caminho de Galta se apagava ou eu<br />
me desviava e perdia em seus meandros. Uma e outra vez precisava voltar ao<br />
ponto de partida. Em vez de avançar, o texto girava sobre si mesmo”. 1<br />
1 “A medida que escribía, el camino de Galta se borraba o yo me desviaba y perdía en sus vericuetos. Una y<br />
otra vez tenía que volver al punto de comienzo. En lugar de avanzar, el texto giraba sobre sí mismo”.<br />
14
No eterno retorno da linguagem, a ficção aspira confundir-se com a realidade,<br />
porém, só é símbolo de um processo que de antemão tem sido definido como<br />
uma derrota: “realidade e ficção se enfrentam, se aniquilam mutuamente, abrem<br />
um vazio que só pode colmar outro relato possível” 2 (PEZZONI, 1982, p. 45).<br />
No entanto, esse novo relato também é lembrança do vivido num mundo que<br />
só é representação, simulacro do real.<br />
A realidade só existe porque as palavras a nomeiam. A linguagem se converte<br />
em mundo; e o mundo torna-se linguagem. “O mundo e o livro remetem um ao<br />
outro, eterna e infinitamente, suas imagens refletidas. Esse poder infinito de<br />
espelhamento, essa multiplicação cintilante e ilimitada [...] será, então, tudo o<br />
que encontraremos, no fundo de nosso desejo de compreender” (BLANCHOT,<br />
2005, p. 138). No interior do relato se suspende o tempo real para dar lugar ao<br />
tempo fictício, no qual a escrita encontra seu lugar natural; início da linguagem,<br />
espaço virtual aberto a múltiplas possibilidades de representação no espelho<br />
da própria linguagem. Nessa duplicação infinita, a obra encontra sua dobra<br />
originaria que é autorrepresentação e redobramento:<br />
A escrita significando não a coisa, mas a palavra, a obra de linguagem<br />
não faria outra coisa além de avançar mais profundamente na impalpável<br />
densidade do espelho, suscitar o duplo deste duplo que é já a escrita,<br />
descobrir assim um infinito possível e impossível, perseguir incessantemente<br />
a palavra, mantê-la além da morte que a condena, e liberar o jorro de um<br />
murmúrio 3 (FOUCAULT, 1986, p. 9).<br />
Construída na exterioridade do sentido, a escrita representa a fala, encarnação<br />
do logos e da razão, pretendendo assim dar conta da realidade. Porém, a escrita<br />
também é “representação de um território percorrido pelos fantasmas da noite<br />
e da morte, memória de um esquecimento que sempre será esquecimento da<br />
razão” 4 (PEREIRA, 1985, p. 11), espaço do imaginário, do fantástico; labirinto<br />
de espelhos em que o homem pode encontrar seu ser multidimensional.<br />
2. Outros planos da realidade<br />
A literatura fantástica, entendida como uma forma privada da atopia constrói<br />
num mundo próprio e intenso a experiência de transformar o sentido imediato<br />
da realidade. Fundado sobre o lado noturno do homem (e não sobre o diurno), o<br />
fantástico coloca em xeque nossa forma de olhar o mundo ao revelar e representar<br />
a perturbação e a inquietação da experiência humana da modernidade. Fala<br />
sobre a interioridade do ser e a simbologia coletiva, por isso mesmo, carregado<br />
2 “[…] realidad e invención se enfrentan, se aniquilan mutuamente, abren un vacío que sólo puede colmar otro<br />
relato posible”.<br />
3 “[…] la escritura, significando no la cosa sino la palabra, la obra de lenguaje, no haría otra cosa que avanzar<br />
más profundamente en este impalpable espesor del espejo, suscitar el doble de este doble que es ya la escritura,<br />
descubrir de esa manera un infinito posible e imposible, perseguir sin término la palabra, mantenerla más allá de la<br />
muerte que la condena, y liberar el centello de un murmullo”.<br />
4 “[…] escenificación de un territorio recorrido por los fantasmas de la noche y de la muerte, memoria de un<br />
olvido que será siempre el olvido de la razón”.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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de sentido, oculta em seu interior o inconsciente reprimido atrás da aparência<br />
cotidiana dos fatos, “apresentando na forma de problemas, fatos anormais,<br />
irracionais ou irreais, em contraste com os fatos reais, normais ou naturais”5<br />
(BARRENECHEA, 1978, p. 90). O conflito ocorre quando os eventos anormais<br />
colidem contra a ordem da realidade, e é precisamente nessa fissura em que<br />
o fantástico se manifesta.<br />
Na literatura fantástica hispano-americana do século XX, escritores como Jorge<br />
Luis Borges e Julio Cortázar se destacam, entre outros autores, na produção<br />
de obras primas do gênero. “O modo fantástico mostrou, em todo este período,<br />
uma extraordinária vitalidade, e capacidade de inspirar formas sempre distintas<br />
de representação e de estruturação do imaginário” (CESERANI, 2006, p. <strong>12</strong>2-<br />
<strong>12</strong>3), aportando ao gênero instrumentos novos, linguagem e uma concepção<br />
também nova de literatura.<br />
Aceita como fantástica pelo próprio autor, “por falta de melhor nome”, a<br />
narrativa de Julio Cortázar (1914-1984), objeto de reflexão neste estudo,<br />
caracteriza-se pela mudança nos paradigmas literários e culturais ao colocar<br />
em crise os pressupostos epistemológicos do leitor, oferecendo por meio de<br />
seus relatos uma nova forma de percepção da realidade. Construído com<br />
precisão rigorosa, o universo fantástico de Julio Cortázar inicia em 1951, com<br />
a publicação de Bestiário (1982), primeiro livro de relatos no qual já aparece<br />
a tônica do fantástico inserida na realidade objetiva. Presa ao real, a narrativa<br />
de Cortázar caracteriza-se por ser uma “escritura poliédrica, polimorfa, cujos<br />
planos da narração parecem refletir outros planos que reverberam em planos<br />
inesperados” (DAMAZIO, 2000, p.15). Para o próprio Cortázar,<br />
A nossa realidade esconde uma segunda realidade (uma realidade<br />
maravilhosa), que não é nem misteriosa nem teológica, mas, ao contrário,<br />
profundamente humana. Ela por causa de uma longa série de equívocos<br />
permanece infelizmente escondida sob uma realidade pré-fabricada por<br />
muitos séculos de cultura, mas uma cultura pode produzir muitas grandes<br />
descobertas, mas também profundas aberrações, profundas distorções<br />
(apud, CESERANI, 2006, p. <strong>12</strong>3-<strong>12</strong>4).<br />
Em diversos relatos, Julio Cortázar apresenta uma predileção pelo excepcional,<br />
seja nos temas ou nas formas expressivas, impondo ao leitor um modo ambíguo<br />
e paradoxal de compreender a realidade, para além da percepção rotineira do<br />
“real”. A situação causal específica, criada a partir de procedimentos narrativos,<br />
projeta uma nova luz sobre o fato banal que dessa forma é transformado em<br />
acontecimento dual e surpreendente. Nessa operação metafísica se altera o<br />
sentido da percepção para estabelecer uma nova forma de pensamento que é<br />
paradoxal e subversivo do senso comum. Assim, pelo caminho do não sentido,<br />
o autor/leitor adentra num sistema mais complexo de relações, aglutinante de<br />
5 “[...] presentando en la forma de problemas, hechos anormales, irracionales o irreales, en contraste con<br />
hechos reales, normales o naturales”.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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uma realidade infinitamente mais vasta, projetando dois planos do ser: um<br />
profundo e real, outro, multiplicidade infinita do vir a ser, vazio abismal em que<br />
o duplo é incluído como habitante.<br />
A manifestação do excepcional, de uma ordem mais secreta e menos<br />
comunicável, cria um sentimento de ambiguidade no leitor ao se deparar com<br />
forças inexplicáveis provenientes de outros planos da realidade, que irrompem<br />
em nossa cotidianidade como se fossem sonhos ou alterações psíquicas da<br />
mente, para revelarem no espaço da ficção a sutil fronteira entre o real e o<br />
irreal. Na narrativa fantástica de Cortázar, a irrupção do ‘outro’ acontece, como<br />
já assinalamos, de forma trivial e prosaica, por meio de fatos insignificantes e<br />
corriqueiros colocados em situações estranhas, que alteram, por isso mesmo,<br />
nossa percepção do real. Como exemplos desse tipo de manifestações<br />
podemos encontrar em Bestiário (1951) ou Final do Jogo (1956), livros nos<br />
quais as projeções do estranho se expressam desde diferentes perspectivas:<br />
às vezes, como identidades duplicadas (La noche boca arriba, Distante, Axolot,<br />
continuidade dos parques), outras, como revelação da diferença (As portas ao<br />
céu, Ônibus, Bestiário, Depois do almoço), para ficar em alguns exemplos.<br />
A diferença de contos em que se apresenta o estranho como algo inexplicável ou<br />
fora do espaço real, os relatos de Julio Cortázar postulam incerteza e ambiguidade<br />
a partir da justaposição de realidades numa duplicidade do ser. Em Distante<br />
(CORTÁZAR, 1986), por exemplo, o ‘outro’ é representado como dualidade, e o duplo<br />
se manifesta num mundo paralelo, correlato da realidade do relato. Alina Reyes,<br />
narradora protagonista relata sua história de vida num diário no qual registra, em<br />
primeira e terceira pessoa, as vozes e delírios de uma personalidade fragmentada<br />
que se funde e se confunde em Alina/mendiga, duplos de se mesma:<br />
Não, horrível. Horrível porque abre caminho a esta que não é a rainha, e<br />
que outra vez odeio de noite. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do<br />
anagrama; que será qualquer coisa, mendiga em Budapeste, frequentadora<br />
de prostíbulo em Jujuy ou criada em Quetzaltenango, em qualquer lugar<br />
distante e não rainha 6 (CORTÁZAR, 1986, p. 36).<br />
E mais adiante Alina Reyes afirma: “Porque a mim, à distante, não a querem”<br />
(CORTÁZAR, 1986, p. 38), ao se referir a sua própria identidade, revelando a<br />
troca de personalidades num jogo de vozes a partir das quais se constrói o<br />
relato. Dessa divisão emerge a descontinuidade de um sujeito fragmentado,<br />
projetando-se num outro plano da realidade. As personalidades se confundem<br />
na urdidura narrativa alimentando uma à outra e dando ao leitor a possibilidade<br />
de mover-se num horizonte de dimensões duplas no qual as sequências<br />
sistemáticas de “Eu” - “Ela” são vozes em concerto que ordenam a vida da<br />
protagonista e o desenvolvimento da história.<br />
6 “No, horrible. Horrible porque abre camino a ésta que no es la reina, y que otra vez odio de noche. A esa que<br />
es Alina Reyes, pero no la reina del anagrama; que será cualquier cosa, mendiga en Budapest, pupila de mala casa<br />
en Jujuy o sirvienta en Quetzaltenango, cualquier lado lejos e no reina”.<br />
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Dividido em duas partes, o relato narra simultaneamente a vida de Alina Reyes,<br />
mulher rica, frívola, que vive em Buenos Aires num ambiente de festas, luxo e<br />
excentricidades, e seu duplo, a ‘distante’(le<strong>jan</strong>a), uma mendiga de Budapeste<br />
atormentada pela fome e o frio. Alina sente de maneira simultânea a dor e o<br />
sofrimento da mendiga, que é ela mesma,<br />
Lembro-me que um dia pensei: ‘Lá me batem, lá a neve entra em meus sapatos,<br />
e eu sei disto na hora, quando lá está me acontecendo eu fico sabendo<br />
na mesma hora. Mas por que na mesma hora em que está acontecendo?<br />
Talvez chegue tarde, talvez não tenha acontecido ainda. Talvez baterão nela<br />
daqui a quatorze anos, ou já é uma cruz e um número no cemitério de Santa<br />
Úrsula7 (CORTÁZAR, 1986, p. 42).<br />
Ao final da história, produz-se a fusão das personalidades de Alina Reyes para<br />
dar lugar a outra voz que até o momento não tinha se apresentado na narração.<br />
Ao cruzar a ponte (lugar de encontro e separação), cria-se a passagem da<br />
interioridade à exterioridade, e é precisamente o momento da simbiose das duas<br />
personalidades que se acoplam para se dividir de novo de maneira imperceptível<br />
e surpreendente. Como se houvesse uma superposição de identidades, Alina<br />
convertida em mendiga grita:<br />
Ao abrir os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam separado. Agora,<br />
sim, gritou. De frio, porque a neve estava entrando por seus sapatos furados,<br />
porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes, lindíssima em seu<br />
vestido cinzento, o cabelo um pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto<br />
e andando8 (CORTÁZAR, 1986, p. 47).<br />
Em La noche boca arriba (CORTÁZAR, 2004a), relato cuja história faz referência<br />
ao ritual asteca do sacrifício humano na época da ‘guerra florida’, é outro dos<br />
contos no qual Cortázar alude à dualidade do ser, mas a diferencia de Distante,<br />
- nesse caso vemos a duplicidade a partir da interpenetração de realidades<br />
temporais, do salto da interioridade (manifestada pela febre, o sonho, o pesadelo,<br />
a antiguidade pré-hispânica) - e à exterioridade (o acidente, o hospital, a vigília,<br />
a modernidade), revelando, assim, a luta interior do homem para atingir um<br />
desenvolvimento mais excelso de sua consciência.<br />
No relato, os desdobramentos temporais se produzem num ir e vir de realidades<br />
estabelecidas a partir dos estados de sonho e de vigília, instaurando uma atmosfera<br />
onírica e surreal. Um homem do século XX que sofre um acidente de moto é<br />
internado num hospital, e em estado febril sonha ser um índio moteca que está<br />
sendo perseguido pelos astecas para sacrificá-lo aos deuses na guerra florida:<br />
7 “Me acuerdo que un día pensé: ‘Allá me pegan, allá la nieve me entra por los zapatos y esto lo sé en el momento,<br />
cuando me está ocurriendo allá yo lo sé al mismo tiempo. ¿Pero por qué al mismo tiempo? A lo mejor me llega<br />
tarde, a lo mejor no ha ocurrido todavía. A lo mejor le pegarán dentro de catorce años, o ya es una cruz y una cifra en<br />
el cementerio de Santa Úrsula”.<br />
8 “Al abrir los ojos (tal vez gritaba ya) vio que se habían separado. Ahora sí gritó. De frío, porque la nieve le<br />
estaba entrando por los zapatos rotos, porque yéndose camino de la plaza iba Alina Reyes lindísima en su sastre gris,<br />
el pelo un poco suelto contra el viento, sin dar vuelta la cara y yéndose”.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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Como sono era curioso, porque estava cheio de cheiros e odores que nunca<br />
sonhou. Primeiro um cheiro pantanoso, pois do lado esquerdo da estrada<br />
começam os pântanos, o tremor de onde ninguém jamais voltou. Mas o<br />
cheiro cessou e em seu lugar veio uma fragrância composta e escura como<br />
a noite na qual fugia dos astecas. E tudo era tão natural, tinha que fugir<br />
dos astecas, que estavam á caça de homens, e sua única chance era se<br />
esconder no meio da selva, tomando cuidado para não afastar-se da estreita<br />
estrada que só eles, os Motecas, conheciam [...] Então pegou uma baforada<br />
do cheiro terrível que ele temia, desesperado saltou para frente. -Vai cair<br />
da cama, disse o paciente lado- Não pule muito meu amigo9 (CORTÁZAR,<br />
2004a, p.228, tradução nossa).<br />
Porém, em determinado momento do relato, o moteca também sonha ser um<br />
homem do século XX, que sofreu um acidente de moto e é internado num<br />
hospital. Os dois sonham ser outro, que é a mesma pessoa, mas no decorrer<br />
da história os limites entre o real e o sonho se diluem cada vez mais numa<br />
perspectiva em que fica difícil saber quem é o sonhador e quem é o sonhado:<br />
Era difícil manter os olhos abertos, a sonolência foi mais forte do que ele.<br />
Fez um último esforço, com a mão boa esboçou um gesto em direção à<br />
garrafa de água; não chegou a tomá-la, seus dedos se fecharam em um<br />
vazio negro, e a passagem foi interminável, rocha trás rocha, com súbitas<br />
erupções avermelhadas, e ele de cabeça para acima gemeu vagamente<br />
porque o teto estava prestes a terminar, ascendia, abrindo-se como uma<br />
boca de sombra, os acólitos se levantavam e uma lua minguante caiu sobre<br />
seu rosto onde os olhos não queriam vê-la, desesperadamente fechavam-se<br />
e abriam tentando passar para o outro lado, redescobrir o teto de proteção<br />
da sala10 (CORTÁZAR, 2004a, p.234, tradução nossa).<br />
Pelos pesadelos, o homem do século XX sabe da existência do índio moteca<br />
(duplo de si mesmo num outro estado de consciência), mas nega-se a reconhecêlo,<br />
lutando para se manter acordado. Ao mesmo tempo, o índio moteca quando<br />
é caçado e levado à força ao teocalli, e diante da iminência da morte debatese<br />
lutando por despertar, chorando para voltar ao hospital onde ele acredita<br />
estar sua verdadeira existência.<br />
No jogo de temporalidades, podemos perceber duas perspectivas de interpretação:<br />
uma remete a caça dos astecas na guerra florida e os sacrifícios humanos na<br />
antiguidade pré-hispânica, outra representa a luta do homem da modernidade<br />
para sair da materialidade e atingir seu ser superior. O conflito gerado por<br />
9 “Como sueño era curioso porque estaba lleno de olores y él nunca soñaba olores. Primero un olor a pantano,<br />
ya que a la izquierda de la calzada empezaban las marismas, los tembladerales de donde no volvía nadie. Pero el olor<br />
cesó, y en cambio vino una fragancia compuesta y oscura como la noche en que se movía huyendo de los aztecas. Y<br />
todo era tan natural, tenía que huir de los aztecas que andaban a la caza de hombre, y su única probabilidad era la de<br />
esconderse en lo más denso de la selva, cuidando de no apartarse de la estrecha calzada que sólo ellos, los motecas,<br />
conocían […] Entonces sintió una bocanada horrible del olor que más temía, y saltó desesperado hacia adelante.-Se<br />
va a caer de la cama – dijo el enfermo de al lado-. No brinque tanto, amigazo”.<br />
10 “Le costaba mantener los ojos abiertos, la modorra era más fuerte que él. Hizo un último esfuerzo, con la<br />
mano sana esbozó un gesto hacia la botella de agua; no llegó a tomarla, sus dedos se cerraron en un vacío negro, y el<br />
pasadizo seguía interminable, roca tras roca, con súbitas fulguraciones rojizas, y él boca arriba gimió apagadamente<br />
porque el techo iba a acabarse, subía, abriéndose como una boca de sombra, los acólitos se enderezaban y de la<br />
altura una luna menguante le cayó en la cara donde los ojos no querían verla, desesperadamente se cerraban y abrían<br />
buscando pasar al otro lado, descubrir de nuevo el cielo raso protector de la sala”.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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essa luta interior é o desafio existencial da consciência para transcender sua<br />
materialidade. Na persecução vivida pelo moteca, o ‘cheiro da guerra’ é o<br />
cheiro mais temido porque significa o enfrentamento inevitável com a morte,<br />
momento de purificação e revelação da verdade última. A purificação, símbolo<br />
da transcendência, revela a luta do homem por atingir um estado superior. O<br />
caráter antitético da consciência humana se estabelece precisamente nessa<br />
luta interior que surge do questionamento acerca da essência do homem.<br />
Ao final da história, o narrador revela que o sonhador não é o homem do século<br />
XX, mas o índio moteca. No entanto, o caráter ambíguo do final deixa em aberto<br />
um jogo de possibilidades de interpretação em virtude de o próprio sonho<br />
poder representar a consciência do sonhador acidentado ou a consciência<br />
do índio moteca:<br />
Conseguiu fechar suas pálpebras novamente, mas agora ele sabia que não<br />
iria acordar, que estava acordado, que o sonho maravilhoso tinha sido o<br />
outro, absurdo como todos os sonhos; um sonho no qual ele tinha andado<br />
pelas avenidas estranhas de uma cidade surpreendente 11 (CORTÁZAR,<br />
2004a, p.234, tradução nossa).<br />
Nessa bipolaridade entre o sonho e a vigília, não podemos determinar com<br />
clareza quem é o sonhador e quem é o sonhado; sem embargo, sim, podemos<br />
estabelecer um eterno retorno entre sonhador - sonho - sonhador, passando<br />
nesses ciclos de sonho para estados de vigília.<br />
Esse sentimento de estranheza e de angústia, que assalta o homem quando<br />
tem consciência de sua individualidade quando percebe que vive separado<br />
dos outros, também pode ser chamado de otredad. Nas palavras de Octavio<br />
Paz (1993, p. 36), a otredad “é a revelação da perda da unidade do ser do<br />
homem”, sempre pensada como uma busca da identidade, do reconhecimento<br />
do eu. Para encontrar os diferentes fragmentos que conformam o multifacetado<br />
eu, é necessário estabelecer um plano paralelo à nossa realidade na qual o<br />
ser possa se manifestar plenamente.<br />
A partir da consciência da otredad, realiza-se um processo de justaposição<br />
de realidades e transposição temporal que nos enfrenta com o novo, com o<br />
“outro”, sendo forçados a reconhecer sua real existência. É precisamente essa<br />
vivência que acontece em ‘Axolotl’ – um relato que começa com uma terrível<br />
afirmação: “Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotl. Ia vê-los<br />
no aquário do Jardin des Plantes e ficava horas olhando-os, observando sua<br />
imobilidade, seus obscuros movimentos. Agora sou um axolotl” <strong>12</strong> (CORTÁZAR,<br />
2004a, p. 2<strong>12</strong>, tradução nossa).<br />
11 “Alcanzó a cerrar otra vez los párpados, aunque ahora sabía que no iba a despertarse, que estaba despierto,<br />
que el sueño maravilloso había sido el otro, absurdo como todos los sueños; un sueño en el que había andado<br />
por extrañas avenidas de una ciudad asombrosa […]”.<br />
<strong>12</strong> “Hubo un tiempo en que yo pensaba mucho en los axolotl. Iba a verlos al acuario del Jardin des Plantes y<br />
me quedaba horas mirándolos, observando su inmovilidad, sus oscuros movimientos. Ahora soy un axolotl.”<br />
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De pouco em pouco, o narrador vai ficando hipnotizado por esses pequenos<br />
anfíbios, que descobriu “por azar” um dia no aquário do Jardin des Plantes e,<br />
à força de visitá-los diariamente, começa um diálogo mudo e intenso com eles,<br />
obcecado pela ideia de que essas larvas queriam se comunicar com ele, de<br />
que haveria neles qualquer coisa de terrivelmente humano:<br />
Comecei vendo nos axolotl uma metamorfose que não conseguia anular uma<br />
misteriosa humanidade. Eu os imaginei conscientes, escravos de seu corpo,<br />
infinitamente condenados a um silêncio abissal, a uma reflexão desesperada.<br />
Seu olhar cego, o diminuto disco de ouro inexpressivo e sem dúvida, terrivelmente<br />
lúcido, me penetrava como uma mensagem: . Eu me<br />
surpreendia murmurando palavras de consolo, transmitindo ingênuas esperanças.<br />
Eles continuavam me olhando, imóveis [...] Nesse instante eu sentia uma dor<br />
surda; talvez me vissem, captavam meu esforço em penetrar no impenetrável de<br />
suas vidas. Não eram seres humanos, mas em nenhum animal havia encontrado<br />
uma relação tão profunda comigo 13 (CORTÁZAR, 2004a, p. 215, tradução nossa).<br />
Um axolotl, que no passado foi um homem, agora mantém uma estranha<br />
comunicação com seu antigo corpo, transformação, como já vimos, revelada<br />
desde o início do relato. Mas, à medida que a narração avança, a situação<br />
torna-se inquietante e o processo de osmose vai transformando o narrador num<br />
axolotl: “Não há nada de estranho nisso; logo desde o primeiro instante eu senti<br />
que alguma coisa me ligava a eles, algo muito longínquo e esquecido que, no<br />
entanto, continuava a nos unir” 14 (CORTÁZAR, 2004a, p. 2<strong>12</strong>, tradução nossa).<br />
O processo de metamorfoses do homem-axolotl ou do axolotl-homem já se<br />
encontra presente na própria palavra axolotl, que em nahuatl significa larva, e<br />
em latim larva significa também máscara ou fantasma. Máscara ou fantasma<br />
de quem, senão dele próprio. Eis o abismo insondável que o eu deve vencer<br />
para chegar a ser aquele que não é: a “otredad”, a excisão primordial:<br />
Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, ao invés do axolotl vi<br />
minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, eu a vi do outro lado do vidro.<br />
Então ela se distanciou e eu compreendi. Só uma coisa era estranha: continuar<br />
pensando como antes, saber. Dar-me conta disso foi, no primeiro instante, como<br />
sentir o horror de quem é enterrado vivo e logo desperta para seu destino [...] Ou eu<br />
estava também nele, ou todos nós pensávamos como um homem, incapazes de<br />
qualquer expressão, limitados ao resplendor dourado de nossos olhos que olhavam<br />
a cara do homem colada no aquário 15 (CORTÁZAR, 2004a, p. 217, tradução nossa).<br />
13 Empecé viendo en los axolotl una metamorfosis que no conseguía anular una misteriosa humanidad. Los<br />
imaginé conscientes, esclavos de su cuerpo, infinitamente condenados a un silencio abisal, a una reflexión desesperada.<br />
Su mirada ciega, el diminuto disco de oro inexpresivo y sin embargo terriblemente lúcido, me penetraba<br />
como un mensaje: . Me sorprendía musitando palabras de consuelo, transmitiendo pueriles<br />
esperanzas. Ellos seguían mirándome, inmóviles [...] En ese instante yo sentía como un dolor sordo; tal vez me veían,<br />
captaban mi esfuerzo, por penetrar en lo impenetrable de sus vidas. No eran seres humanos, pero en ningún animal<br />
había encontrado una relación tan profunda conmigo”.<br />
14 “No hay nada de extraño en esto, porque desde un primer momento comprendí que estábamos vinculados,<br />
que algo infinitamente perdido y distante seguía sin embargo uniéndonos”.<br />
15 “Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio, en vez del axolotl vi mi cara contra el vidrio, la vi fuera<br />
del acuario, la vi del otro lado del vidrio. Entonces mi cara se apartó y yo comprendí. Sólo una cosa era extraña: seguir<br />
pensando como antes, saber. Darme cuenta de eso fue en el primer momento como el horror del enterrado vivo que<br />
despierta a su destino [...] O yo estaba también en él, o todos nosotros pensábamos como un hombre, incapaces de<br />
expresión, limitados al resplandor dorado de nuestros ojos que miraban la cara del hombre pegada al acuario”.<br />
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O inquietante adquire maior intensidade no último parágrafo do conto quando<br />
se invertem totalmente as perspectivas, deixando o leitor estupefato perante<br />
tão incrível paradoxo. Desta vez é o narrador que se encontra no aquário e<br />
pensa no homem que de vez em quando o vem visitar, cada vez menos agora,<br />
já liberto da sua terrível obsessão: “E nesta solidão final para a qual ele não<br />
voltará mais, resta-me o consolo de pensar que talvez ele escreva qualquer<br />
coisa sobre nós; vai pensar que inventa um conto e vai escrever tudo isso sobre<br />
axolotls” 16 (CORTÁZAR, 2004a, p. 218, tradução nossa).<br />
No desfecho do relato, a ficção torna-se ambígua quando o axolotl, com mente<br />
de homem, conclui que o homem que ele foi, no passado, vai escrever uma<br />
história sobre a transmigração de sua mente tal como se tivesse sido imaginada.<br />
Assim, a visão do narrador do conto se entrelaça com a visão do axolotl do<br />
narrador, e desse entrelaçamento surge a significação do conto.<br />
Um jogo de possibilidades emerge da contemplação que o narrador faz do<br />
outro ser ao ponto de se fusionar com a consciência do sujeito que contempla<br />
e do sujeito contemplado. O eu do narrador é homem e axoltl ao mesmo tempo,<br />
e ao reencarnar no outro compreende sua dupla condição mental, sua nova<br />
forma, em que pode apreciar a sutileza desse seu novo estado de consciência,<br />
eu e outro, essa otredad que sou eu:<br />
Como a única coisa que faço é pensar, pude pensar muito nele. Eu me dou<br />
conta de que desde o princípio permanecemos em comunicação, que ele<br />
se sentia mais do que nunca unido ao mistério que era sua obsessão. Mas<br />
as ligações entre ele e eu estão cortadas, porque o que era sua obsessão<br />
é agora um axolotl, alheio à sua vida de homem. Creio que no princípio eu<br />
era capaz de regressar a ele, de certo modo – ah, apenas de certo modo<br />
– e manter desperto o seu desejo de nos conhecermos melhor. Agora sou<br />
definitivamente um axolotl, e se penso como homem é somente porque<br />
todo axolotl pensa como um homem dentro de sua imagem de pedra rosa 17<br />
(CORTÁZAR, 2004a, p. 217-218, tradução nossa).<br />
A metamorfose vivida pelo narrador do relato explica a estranheza que produz<br />
em nós a leitura do conto. A angústia e a ambigüidade, experimentadas pelo<br />
leitor, surgem da possibilidade de que esse mesmo fato possa suceder em<br />
seu próprio mundo, ao se dar conta que o sinistro nos espreita, e em qualquer<br />
momento pode transpassar os limites do texto, tomando conta de nossa realidade.<br />
Resta ao leitor decidir em qual plano da realidade vai se instalar.<br />
16 “Y en esta soledad final, a la que él ya no vuelve, me consuela pensar que acaso va a escribir sobre nosotros,<br />
creyendo imaginar un cuento va a escribir todo esto sobre los axolotl”.<br />
17 “Como lo único que hago es pensar, pude pensar mucho en él. Se me ocurre que al principio continuamos<br />
comunicados, que él se sentía más que nunca unido al misterio que lo obsesionaba. Pero los puentes están cortados<br />
entre él y yo, porque lo que era su obsesión es ahora un axolotl, ajeno a su vida de hombre. Creo que al principio yo<br />
era capaz de volver en cierto modo a él – ah, sólo en cierto modo – y mantener alerta su deseo de conocernos mejor.<br />
Ahora soy definitivamente un axolotl, y si pienso como hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre<br />
dentro de su imagen de piedra rosa.”<br />
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Considerações Finais<br />
No corpo textual, as vozes se conjugam para dar lugar a uma sucessão de<br />
imagens que revelam e ocultam os sentidos perdidos do texto. Na multiplicidade<br />
de percursos, a linguagem, zona marginal na qual tudo é possível, transforma o<br />
tempo e o espaço “real” em território do imaginário, recuperando em outro plano<br />
o que a realidade nos furta. Assim, a linguagem faz da escrita um espelho cuja<br />
função seria “refletir” ou “representar” a língua. Porém, ao final esse espelho<br />
termina traindo a imagem refletida: <strong>jun</strong>to a ela faz emergir outra imagem, outra<br />
cena que é o espaço do imaginário: “Espaço fantasmático onde o desejo tece<br />
as figuras de sua monstruosidade, fazendo desse denso tecido textual uma<br />
figura monstruosa em si mesmo, que recorta sua diferença contra o fundo<br />
homogêneo de todo saber e discurso” 18 (PEREIRA, 1985, p. <strong>12</strong>, tradução nossa).<br />
No imaginário cortazariano a narrativa potencializa e corporiza fantasmas por<br />
meio de um duplo e contraditório movimento de forças em choque, que não<br />
emergem da luz, mas das obscuras zonas do sonho e da mente projetadas<br />
no espaço da realidade para preservar a possibilidade do ‘real’. Da mesma<br />
forma, o duplo manifesta-se como figura metamorfoseada no texto para fazer<br />
emergir um corpo textual que tenta fusionar-se no tecido virtual da escrita como<br />
identidade ou diferença. Um que é também idêntico e diferente ao mesmo<br />
tempo, reflexo ou sombra de si mesmo. Condição dilacerada do ser, suspensa,<br />
sem poder recobrar sua verdadeira identidade, situada num limite movediço<br />
que divide e separa. Nem cá nem lá, zona de incertezas, lugar do imaginário<br />
e, mesmo assim, real, porque em sua ambiguidade a ficção torna possível a<br />
sua impossibilidade.<br />
As vertigens do duplo cortazariano revelam novas realidades nas quais “eu sou<br />
outro eu”, desdobrado ou transvestido nos fragmentos de mim mesmo. Nessa<br />
poética, não há lugar para as leis da identidade, só contradição e exclusão da<br />
lógica e da razão. Porém, se concebemos o real como uma dimensão em que<br />
também se alberga “o irreal”, a lógica causal primeira transforma-se em “aparição”,<br />
permitindo assim a manifestação de uma presença invisível e silenciosa, antes<br />
oculta pela lógica causal do real, que agora se revela para dar espaço a essa<br />
nova realidade, mas complexa e ilimitada em sua multiplicidade ficcional. Não<br />
um reflexo nem um sonho ou devaneio, simplesmente uma aparição no lugar<br />
impalpável da ficção.<br />
18 “Espacio fantasmático, pulsional, en el que el deseo teje las figuras de su monstruosidad, haciendo a su vez<br />
de ese denso tejido textual una figura monstruosa en sí mismo, que recorta su diferencia contra el fondo homogéneo<br />
de todo saber y todo discurso”.<br />
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ANOTHER PLANE OF BEING: THE POETRY OF DUPLICITY<br />
IN JULIO CORTáZAR’S FANTASTIC NARRATIVE<br />
ABSTRACT:<br />
Diverse reports of Julio Cortázar present a predilection for the exceptional,<br />
whether in themes or the form of expression, imposing upon the reader an<br />
ambiguous and paradoxical manner of comprehending reality, going beyond<br />
the routine perception of “real”. The specific causal situation, created through<br />
narrative processes, projects a new light upon the trivial fact that this form is<br />
transformed into dual and surprising happening. In this metaphysical operation,<br />
the sense of perception towards establishing a new form of thinking which is<br />
paradoxical and subversive of common sense is altered. Thus, along the path<br />
of nonsense, the author/reader enter a more complex relationship system,<br />
bound to an infinitely vaster reality on which two planes of being are projected;<br />
one profound and real and the other the infinite multiplicity of coming to be, an<br />
abysmal emptiness in which the dual is included as an inhabitant. Based on<br />
previous considerations, this study seeks to achieve poetic reflection upon the<br />
presence of the dual in the fantastic narrative of Julio Cortázar, understanding<br />
this concept as a synonym and correlate to fiction.<br />
KEYWORDS:<br />
Fantasy Literature; Dual; Reports; Julio Cortázar.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ALAZRAKI, J. En busca del unicornio: los cuentos de Julio Cortázar. Elementos<br />
para una poética de lo neofantástico. Madrid: Editorial Gredos, 1983. (Coleção<br />
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de la Universidad de México. México: Nueva Época, n. 17, v. XXXVIII, p. 19-23,<br />
set, 1982.<br />
BARRENECHEA, A. M. Ensayo de una tipología de la literatura fantástica.<br />
Caracas: Monte Ávila Editores, 1978.<br />
BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (Coleção Tópicos).<br />
CESERANI, R. O fantástico. [Tradução de Nilton Cezar Tridapalli]. Curitiba:<br />
Editora UFPR, 2006.<br />
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CORTÁZAR, J. Bestiario. 4. ed. México: Editorial Nova Imagen, 1982.<br />
______. Bestiario. Tradução (revista) de Remy Gorga, filho. Rio de Janeiro:<br />
Editora Nova Fronteira S.A. 1986.<br />
______. “La noche boca arriba”. In: CORTÁZAR, J. Los relatos, 1: ritos.<br />
4.reimpressão. Madrid: Alianza Editorial, S.A., 2004a.<br />
______. “Continuidad de los parques”. In: CORTÁZAR, J. Los relatos, 2: juegos.<br />
4.reimpressão. Madrid: Alianza Editorial, S.A., 2004b.<br />
______. “Axolotl”. In: CORTÁZAR, J. Los relatos, 1: ritos. 4. reimpressão. Madrid:<br />
Alianza Editorial, S.A., 2004a.<br />
DAMAZIO, R. “O poliedro Cortázar”. In: Cult, Revista Brasileira de Literatura.<br />
São Paulo: No. 39, ano IV, outubro, 2000, p.14-19.<br />
FOUCAULT, M. El lenguaje al infinito. Córdoba: Ediciones de Dianus, 1986<br />
(Série de Ensayo y Crítica. Otras Inquisiciones).<br />
PAZ, O. Itinerario. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.<br />
______. El Mono Gramático. In: Obra Poética (1935-1988). México: Editora Seix<br />
Barral, S.A., 1990, p.505-582.<br />
PEREIRA, A. Deseo y escritura. México: Premiá Editora de Libros, 1985 (Coleção<br />
La red de Jonás/Estudios).<br />
PEZZONI, Enrique. “Borges: la revuelta sigilosa”. In: Revista de la Universidad<br />
de México. México: Nueva Época, n. <strong>12</strong>, v. XXXVIII, abril, 1982, p. 45-47.<br />
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RESUMO<br />
O DIABO NÃO FOI CONVIDADO:<br />
CONTO FANTáSTICO E TRADIÇÃO QUEBEQUENSE<br />
Ana Luiza Ramazzina Ghirardi<br />
Quando parte do Canadá ainda se chamava Nova França, a língua francesa<br />
encontrava entraves para se consolidar em sua forma escrita e, por isso, a literatura<br />
quebequense conheceu um nascimento tardio. Por aproximadamente um século,<br />
ela se confina quase totalmente à dimensão oral, conhecendo suas primeiras<br />
manifestações escritas apenas quando seu povo começa a resgatar da memória<br />
ancestral canções, contos e lendas. No século XIX, essa literatura escrita revela<br />
uma nova figura narrativa, a do contador. Este é um simples e fiel transcritor que<br />
adapta histórias criadas pela imaginação popular, ocorridas na França ou na<br />
colônia. Elas são objeto de crença popular e revelam o fantástico e o maravilhoso,<br />
descrevendo personagens quotidianos como símbolo de uma cultura que existe e<br />
que resiste. Este artigo se propõe a percorrer brevemente a história do Quebec e<br />
verificar como, inicialmente, prevaleceram as narrativas orais. Em seguida, mostra o<br />
desejo de um povo de estabelecer uma literatura escrita, literatura que irá resgatar<br />
histórias do universo oral. Como fio condutor, analisa-se o Conte Populaire de<br />
Charles Laberge sob a ótica de Propp (2010) e se sugere como essa mudança<br />
da literatura oral para a escrita impactou a criação de uma linguagem fantástica.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Literatura quebequense; literatura fantástica; identidade; literatura oral<br />
O fantástico, a história: identidade cultural e a gênese dos contes<br />
fantastiques quebequenses<br />
O que nos leva a acreditar que no decorrer de uma festa o diabo possa chegar<br />
como um personagem não convidado? Como a narrativa literária nos leva por<br />
caminhos que nos conduzem por situações fantásticas que, normalmente,<br />
dificilmente nos convenceriam? Por meio de quais artifícios o texto nos seduz?<br />
O leitor, apesar de se ver diante de uma situação aparentemente sem qualquer<br />
verossimilhança, encontra-se capturado por uma narrativa capaz de convencêlo<br />
de movimentos extraordinariamente fantásticos. Através de uma linguagem<br />
convincente, o leitor é surpreendido por estratégias discursivas que o levam a<br />
acreditar em diabos, cafeteiras que se transformam em damas, pés de múmias com<br />
vida própria, etc. Que efeitos são esses que nos conduzem ao universo fantástico?<br />
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No Quebec, o mundo fantástico dá seus primeiros passos a partir de uma<br />
tradição oral que tem sua origem nos fatos históricos e na sua crença popular.<br />
As tradições francesas combinadas com o cenário do Novo Mundo e com o<br />
desejo de construir uma nova identidade mesclam-se para construir a base<br />
imaginativa sobre a qual se estruturam os contes fantastiques quebequenses,<br />
de sabor tão particular. Assim, para jogar um pouco de luz nesse universo,<br />
importa fazer um sobrevoo sobre as origens históricas desse povo e de seu<br />
desejo de narrar. De fato, pensar em contos fantásticos dentro da tradição<br />
quebequense, requer, primeiramente, relembrar um pouco da história do Canadá<br />
e sua ligação com a França na época da colonização. 1<br />
A história começa em 20 de abril de 1534 quando Jacques Cartier é incumbido<br />
por François I, rei da França, de explorar o Canadá e a região do rio Saint-Laurent.<br />
Ao chegar à praia de Gaspé, no golfo Saint-Laurent, Cartier finca uma cruz e<br />
reivindica a posse do continente para o rei cristão. Esse gesto que aproxima<br />
religião e território aponta, desde o princípio para uma conexão fundamental<br />
no imaginário do futuro povo do Quebec – como se verá em Conte Populaire.<br />
Na França, o século XVI é um período de guerras entre católicos e protestantes.<br />
Ecos dessa importância crucial da religião (e da violência que se pode fazer em<br />
seu nome) chegam por certo ao Canadá que, no entanto, não oferecia naquele<br />
momento grandes atrativos à nação francesa. Durante um longo período, o<br />
Canadá fica esquecido pelos franceses e é preciso mais de cinquenta anos para<br />
que, em 3 de julho de 1608, o explorador francês Samuel de Champlain funde<br />
a cidade de Quebec. Ao criar a Nova França, Champlain tem como objetivo<br />
primeiro incentivar o comércio de peles. Significativamente, a iniciativa vem em<br />
con<strong>jun</strong>to com a intenção de colocar em prática a conversão dos indígenas. O<br />
encontro da tradição cristã e das lendas dos nativos iria constituir, posteriormente,<br />
o material de base para a construção do fantástico quebequense.<br />
Quase quarenta anos depois, em 1642, é fundada a cidade de Montreal. A<br />
partir daí, os franceses procuram se instalar nesse território da América do<br />
Norte. A cidade de Quebec se desenvolve rapidamente até se tornar mais tarde<br />
a capital da Nova França; inicia-se, então, um período em que o interesse da<br />
França pelo Canadá se intensifica: os hábitos de vestuário do rei Louis XIV e<br />
de sua corte transformam em produto extremamente vailoso a pele de castor.<br />
Em que pese este surto econômico, a população da Nova França em seu total<br />
continua pequena: em 1663, o Canadá abriga pouco mais de três mil habitantes<br />
permanentes. Muitas mulheres eram enviadas da França como “noivas” para<br />
equilibrar a distribuição de gêneros na colônia dominada exclusivamente por<br />
homens. A dança dos jovens contada em Conte Populaire ilustra bem as<br />
tensões e os medos das relações entre os gêneros. A vontade de aumentar<br />
1 Os dados aqui apresentados têm como fonte Morton,D. Breve História do Canadá, São Paulo: Ed. Alfa-<br />
Omega, 1989<br />
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a população é grande porém, é preciso um século para que a Nova França<br />
consiga ampliar seu número de habitantes para sessenta mil.<br />
Mas a lenta expansão demográfica não significa que o interesse por peles<br />
de castor não fosse ter efeitos importantes. Louis XIV concede o território da<br />
colonia a uma companhia, la Compagnie des Indes Occidentales, e reestrutura<br />
a administração sob os moldes das províncias francesas. A Nova França entra<br />
então em um período de expansão e seu território se estende gradualmente<br />
do Atlântico aos Grandes Lagos e da Baia de Hudson ao Golfo do México. Os<br />
franceses se mostram negociantes hábeis com os indígenas, mas lhes falta<br />
uma marinha poderosa e “determinação para igualar o fluxo de milhares de<br />
imigrantes” 2 que chegavam para as Treze Colônias vindos da Grã-Bretanha.<br />
Guerras sucessivas entravam esse crescimento e, ainda em 1689, a Nova<br />
França conta apenas com <strong>12</strong>.000 habitantes espalhados sobre um território<br />
imenso, comparativamente aos 250.000 das colônias inglesas. No momento<br />
em que se inicia a guerra da Conquista (1756-1763), as colonias inglesas são<br />
vinte vezes mais populosas que a colônia francesa. A sensação e solidão,<br />
dos amplos espaços vazios, compõem um pano de fundo sobre o qual a<br />
imaginação dos nativos das amplas planícies irá tecer histórias mesclando as<br />
tradições nativa e cristã.<br />
Em 1760, um evento militar iria ser decisivo para a construção de uma identidade<br />
quebequense distinta daquela que se tornaria mais tarde canadense: a Inglaterra<br />
conquista militarmente a Nova França. Quebec é capturada e Montreal cercada<br />
por britânicos; as tropas francesas voltam para a metrópole. Após um século<br />
e meio de criação da Nova França, os franceses deixam a colônia para trás.<br />
Em 1763, o Tratado de Paris, coloca fim à guerra de Sete Anos e promove<br />
a reconciliação entre França, Grã-Bretanha e Espanha. A sobrevivência da<br />
cultura francesa depende agora desses imigrantes que, por sua vez, farão dela<br />
elemento decisivo para a construção de sua identidade.<br />
Com a Conquista, inicia-se a presença inglesa no Quebec. Os administradores<br />
franceses voltam rapidamente para a França e a elite britânica se instala em seu<br />
lugar. O território que se chamava Canadá se torna a província de Quebec, o<br />
governador francês é substituído por um inglês e, com isso, as peles de castor<br />
começam a ser enviadas para o mercado inglês. Ainda como consequência<br />
do domínio inglês, a fé Católica é substituída pela Protestante. Mesmo com<br />
tudo isso, “os canadiens 3 manteriam seu idioma, sua lei civil e suas instituições<br />
religiosas” 4 . O cenário é favorável aos ingleses. Após a independência dos<br />
Estados Unidos, numerosos Lealistas emigram para a América do Norte britânica<br />
e a proporção anglófona da população passa a aproximadamente 15%.<br />
2 Morton, 1989, p. 25<br />
3 Colonos vindos da França ou seus descendentes.<br />
4 Morton, 1989, p. 27<br />
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Em 10 de <strong>jun</strong>ho de 1791, o Ato constitucional 5 divide a colônia em duas<br />
províncias: O Baixo-Canadá (o Quebec, região oriental) para os canadenses<br />
franceses e o Alto-Canadá (o Ontario) para os colonos ingleses e lealistas ali<br />
desenvolverem uma sociedade britânica. As linhas de divisão entre culturas e<br />
histórias se estabelecem politicamente. Caberá aos canadiens construir uma<br />
narrativa que dê sentido à sua experiência frente ao perigo, sempre presente,<br />
de dominação pela cultura anglófona. Pode-se notar um progresso demográfico<br />
nessa nova civilização, em 1784 os habitantes passam a 110 mil e em 18<strong>12</strong>, a<br />
330 mil. 6 O Baixo-Canadá se angliciza. Em 18<strong>12</strong>, a maioria dos habitantes de<br />
Montreal fala inglês, assim como os moradores de Quebec.<br />
O nascimento da literatura quebequense<br />
• Da literatura oral à escrita<br />
“(...) Longtemps après la Conquête de 1760, le français a continué d’être la<br />
langue des fourrures dans l’espace américain, et le rêve d’une Amérique<br />
française a poursuivi les esprits jusqu’à la fin du XIXe siècle, alimenté par<br />
l’exode des Québecois vers les États-Unis et la fécondité remarquable des<br />
Canadiens français.” (Plourde, 2003, p. XXVII) 7<br />
Após a Conquista inglesa de 1760, a quase totalidade da classe letrada volta<br />
para a França. Nesse momento, havia “um choque de línguas” na colônia:<br />
enquanto que a administração era de língua inglesa, a grande maioria da<br />
população era de língua francesa. Contudo, a distância era grande e os canadiens<br />
ficavam confinados aos modos da língua francesa conforme prevalentes em<br />
seu território, sem nenhuma ligação com a evolução da língua francesa na<br />
metrópole. Mas, semelhante ou diverso do francês metropolitano, o idioma se<br />
revela, a partir daqui, como fator absoluto de afirmação identitária. A literatura<br />
oral, traduzida por histórias contadas, ganha assim enorme importância: ela é<br />
o foco de resistência de uma cultura e de um modo de dizer.<br />
“C’est dans le cadre de la nouvelle constitution de 1791 que la question<br />
linguistique se politise. [...] Les Canadiens défendent alors le français non<br />
parce qu’ils veulent en faire une langue hégémonique, mais parce qu’ils doivent<br />
résister aux pressions anglicisantes qui, elle, veut imposer la domination<br />
absolue de l’anglais. (Monière, Denis in Plourde, 2003, pp. 105-106) 8<br />
5 lei adotada pelo Parlamento britânico cujo principal objetivo era satisfazer os pedidos de lealistas que tinham<br />
deixado os Estados Unidos após a guerra da Independência americana - 1775-1783<br />
6 Morton, 1989, p. 27<br />
7 (...) Muito tempo depois da Conquista de 1760, o francês continuou a ser a língua das peles no espaço americano,<br />
e o sonho de uma América francesa perseguiu os espíritos até o fim do século XIX, alimentado pelo êxodo dos<br />
quebequenses em direção aos Estados Unidos e a fecundidade notável dos canadenses franceses.” (Plourde, 2003,<br />
p. XXVII, tradução nossa)<br />
8 “É no quadro da nova constituição de 1791 que a questão linguística se politiza. [...] Os canadenses defendem<br />
então o francês não porque eles querem fazer dele uma língua hegemônica, mas porque eles devem resistir às<br />
pressões anglicizantes que quer impor o domínio absoluto do inglês.” (Monière, Denis in Plourde, 2003, pp. 105-106,<br />
tradução nossa)<br />
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A língua francesa representará, então, um dos elementos que formará a<br />
nacionalidade canadense e seu uso, a cada dia mais ampliado na década<br />
de 1840-1850, acabará por se tornar o símbolo que unirá uma nação que<br />
se recusa a aceitar a assimilação. 9 A ascensão da Inglaterra como potência,<br />
entretanto, e o declínio relativo do poderio francês fazem com que, a língua<br />
francesa perca seu caché político o que, no território americano, faz com que<br />
ela esteja sempre ameaçada de um desaparecimento total. A França, após a<br />
derrota para os britânicos, como já dissemos, desiste da colônia e cria uma<br />
distância entre sua nação e aquela canadense. 10<br />
No que diz respeito especificamente à sua literatura escrita, quando o Canadá ainda<br />
se encontra sob o domínio de Louis XIV sob o nome de Nova França, encontramos<br />
um con<strong>jun</strong>to de textos da literatura quebequense compostos sob o Antigo Regime:<br />
são os chamados écrits coloniaux. Os escritos coloniais descrevem a gestão do<br />
país e representam, em si mesmos, sua literatura; são obras de exploradores,<br />
de colonos e de nativos do Canadá. Esses textos permitem descobrir as mais<br />
profundas raízes da identidade quebequense. São representantes desse período<br />
Jacques Cartier, Samuel de Champlain (os dois navegadores franceses que<br />
compõem escritos sobre suas expedições), Marie Morin (religiosa, escritos sobre<br />
a história de sua comunidade religiosa e as guerras iroquoises), Gabriel Sagard<br />
(sacerdote, escritos sobre os costumes dos Hurons e as aventuras de sua missão)<br />
e Jean Brébeuf (jesuíta, escrito sobre os ritos de morte dos Hurons). 11 Como se<br />
pode notar, esses textos da primeira literatura gravitavam em torno da colonização<br />
e da religião e tinham um caráter utilitário e não ficcional.<br />
Após essa primeiro período, encontramos um início de comunicação escrita<br />
veículada de pessoa a pessoa e constituída por pessoas anônimas que faziam a<br />
informação circular. Em 21 de <strong>jun</strong>ho de 1764, o primeiro jornal canadense bilíngue,<br />
La Gazette de Québec/The Quebec Gazette, é impresso no Quebec <strong>12</strong> ; Montreal<br />
terá uma imprensa apenas quatorze anos depois. A importância da imprensa se<br />
mostra fundamental nesse período pois impulsiona a literatura de ficção a dar seus<br />
primeiros passos nos rumos daquela fusão de literatura antiga e contemporânea<br />
que se espalhava nos jornais da época (James Huston, Octave Crémazie, Philippe<br />
Aubert, entre outros). A literatura começa então a se diversificar e gêneros literários<br />
como o romance, o conto, a poesia e a crítica literária se desenvolvem. 13<br />
9 Noël, Danièle in Plourde, 2003, pp. 72-79<br />
10 “La distance qui s’est opérée entre le français du Canada et celui de France par suite de l’interruption des<br />
échanges directs entre Canadiens et Fraçais, conséquence de la concession de la colonnie aux Britanniques, a été accentée<br />
par la Révolution française, qui a renouvelé l’expression des idées et provoqué, des changements linguistiques<br />
considérables. (Poirier, Claude in Plourde, 2003, p. 118)<br />
11 Weinmann & Chamberland, 1996<br />
<strong>12</strong> En 1764, la première imprimerie voit le jour à Québec. La nouvelle élite canadienne crée des sociétés littéraires,<br />
anime des journaux et favorise l’éclosion des premières oeuvres d’une littérature proprement canadienne. (Plourde,<br />
2003, p. 57).<br />
De la fondation du premier journal, La Gazette du Québec/ The Quebec Gazette, en juin 1764, jusqu’au tout début du<br />
XIXe siècle, la publication bilingue domine presque sans partage. Sur les neuf titres créés entre 1764 et 1804, huit sont<br />
bilingues. Seule fait exception La Gazette littéraire, premier journal entièrement en français, lancé à Montréal par Fleury<br />
Mesplet em 1778. Elle ne survit qu’un an. (Plourde, 2003, p. <strong>12</strong>3)<br />
13 Ibid, pp. 29-32<br />
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Antes da consolidação da imprensa, contudo, quando ainda não havia tipografia,<br />
o Canadá era fortemente dominado pelas tradições orais: lendas, contos,<br />
fábulas. A lenda, a princípio, tinha sua origem em narrativas religiosas, atos de<br />
santos que pudessem servir de exemplo aos fiéis. Com o tempo, elas perdem<br />
essa primeira conotação e guardam a ideia de maravilhoso. 14 Philippe Aubert<br />
fils define assim a lenda da seguinte maneira: “Tentaria definir [a lenda] como<br />
sendo uma antiga tradição conservada pelos habitantes de um país.” 15<br />
Por essa razão, encontramos no gênero conto uma forma literária que ocupará um<br />
lugar central no século XIX quando a literatura escrita estava se consolidando 16 .<br />
Essa literatura se apresenta povoada pelo imaginário popular e mostra uma<br />
cultura canadense-francesa que surge de forma essencialmente oral. Lendas<br />
povoadas de bruxas, de duendes, de lobisomens (loups-garous), de almas<br />
perdidas e de diabos perpetuam uma moralidade no seio da qual o bem e o mal<br />
são claramente definidos. Verdadeiro imaginário coletivo do qual os contadores<br />
e escritores do século XIX buscaram sua fonte e que traduzirão através de um<br />
misto de conto, lenda e fábula que ajudará a consolidar a literatura quebequense.<br />
• Resgate da memória de um povo<br />
Para assegurar a sobrevida de sua cultura francesa, os Canadenses,<br />
instintivamente, começam a ressucitar da memória ancestral suas canções, seus<br />
contos e suas lendas e daí, fazer frutificar com uma rara energia esta herança<br />
que encontrou no Canadá sua terra de eleição. Essa literatura oral, patrimônio<br />
cultural transmitido boca à boca durante gerações é, de fato, a expressão mais<br />
fiel de matrizes culturais profundamente arraigadas na comunidade, trazendo<br />
para o texto escrito traços de um contador. A expressão literatura oral designa,<br />
em geral, exatamente esse con<strong>jun</strong>to de canções, contos e lendas, sem autores<br />
conhecidos durante algumas gerações.<br />
Le genre est déterminé par la façon dont la communication s’établit entre le<br />
poète et son public. Le conte merveilleux et l’épopée sont des genres hérités,<br />
soumis à des conventions narratives liées à l’oralité. Le souvenir de l’énonciation<br />
orale s’inscrit dans l’image du conteur ou du récitant que le texte présente.<br />
Les genres issus de la tradition orale, même lorsqu’ils s’incarnent dans<br />
des œuvres littéraires écrites et signées, gardent des traces stylistiques et<br />
énonciatives de leur situation de contact initiale entre le récitant physiquement<br />
présent et ses auditeurs. (Rullier-Theuret, 2006, p. 28) 17<br />
14 “Dans son sens premier, le mot légende signifie donc ‘ce qui est lu’. Or, en se libérant de son sens religieux,<br />
la légende se détache de ses liens avec l’écriture tout en gardant son caractère merveilleux.” (ibid, p. 35)<br />
15 “J’essaierai de définir [la légende] comme étant une ancienne tradition conservée par les habitants d’um<br />
pays”. (ibid., p. 36)<br />
16 Au cours de la décennie 1840, plusieurs écrivains s’emploient à relever le défi lancé par lord Durham qui a<br />
déclaré les Canadiens “peuple sans histoire et sans littérature. (Poirier, Claude in Plourde, 2003, p. 131)<br />
17 “O gênero é determinado pelo modo como a comunicação se estabelece entre o poeta e seu público. O<br />
conto maravilhoso e a epopéia são gêneros herdados, submetidos a convenções narrativas ligadas à oralidade. A<br />
lembrança do enunciado oral se inscreve na imagem do contador ou do recitador que o texto apresenta.<br />
Os gêneros saídos da tradição oral, mesmo quando se encarnam nas obras literárias escritas e assinadas, guardam<br />
traços estilísticos e enunciativos de sua situação de contato inicial entre o recitador fisicamente presente e seus ouvintes.”<br />
(Rullier-Theuret, 2006, p. 28, tradução nossa)<br />
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É a ligação cultural que une os pontos extremos da duração da história vivida<br />
e imaginada de um povo, isto é, o passado e o futuro, a geração anterior e<br />
a seguinte, o que há de contínuo e permanente na sucessão dos indivíduos.<br />
Costumeiramente, no universo da literatura oral, não há autores individuais<br />
mas uma produção coletiva. Essas narativas são veículo de aspirações, do<br />
imaginário coletivo por formar a identidade cultural através da língua eleita, no<br />
caso, a francesa. As lendas, os contos, as canções quebequenses de tradição<br />
oral falam de um povo orgulhoso, jovial, hospitaleiro, confiante, bon vivant e<br />
com espírito arisco de independência.<br />
Pode-se notar a importância dessa literatura oral na dinâmica da cultura<br />
quebequense no momento em que os primeiros escritores surgem no século<br />
XIX e se mostram como que simples e fiéis transcritores dessas narrativas<br />
que as gerações transmitiam como parte de sua vida. Eles representam a<br />
narrativa de um fato real amplificado pela imaginação popular e que se tornou<br />
um objeto de crença, e revelam o fantástico e o maravilhoso que constituía<br />
a matéria-prima das histórias orais. É por isso que Malrieu (1992) afirma que<br />
“desde suas origens, o fantástico não parou de oscilar entre literatura formal e<br />
literatura popular”. 18 Com essa explosão de desejo de resgatar uma memória<br />
e vontade de consolidar uma língua através de sua literatura, pode-se contar<br />
mais de 20.000 contos orais na América francófona.<br />
• Conto fantástico ligado à tradição francesa e quebequense<br />
Os contadores desse período, como se disse, se contentavam em adaptar e<br />
em transcrever em língua escrita as lendas fantásticas. Essas versões escritas<br />
fixam de maneira definitiva histórias tanto vindas da França como nascidas em<br />
solo canadense, até então transmitidas unicamente boca à boca.<br />
La frontière entre la légende et le conte, surtout le conte merveilleux, n’est<br />
pas précise. Luc Lacourcière, grand spécialiste québécois des traditions<br />
populaires, note que la plupart des contes du XIXe siècle sont des légendes:<br />
“L’on peut dire sans se tromper que le XIXe siècle nous a laissé beaucoup de<br />
légendes. Les premiers littérateurs canadiens se sont inspirés de la légende<br />
et ont rédigé des légendes qu’is ont appelées des contes.” (Weinmann &<br />
Chamberland, 1996, p. 38) 19<br />
Essas narrativas representam sempre uma visão particular do mundo, elas são<br />
a projeção fora de si das virtudes e dos poderes que os quebequenses queriam<br />
conquistar ou das fraquezas humanas e das angústias das quais eles desejavam<br />
se livrar. Elas são, a um tempo, memória da coletividade e fator de união entre<br />
seus membros. Elas constróem, e não apenas revelam, a identidade comum.<br />
18 Depuis ses origines, le fantastique n’a cessé d’osciller entre littérature formelle et littérature populaire.<br />
(Malrieu, 1992, p. 35)<br />
19 “A fronteira entre a lenda e o conto, sobretudo o conto maravilhoso, não é precisa. Luc Lacourcière, grande<br />
especialista quebequense das tradições populares, nota que a maior parte dos contos do século XIX são lendas:<br />
‘Pode-se dizer sem se enganar que o século XIX nos deixou muitas lendas. Os primeiros literatos canadenses se inspiraram<br />
na lenda e redigiram lendas que chamaram contos” (Weinmann & Chamberland, 1996, p. 38, tradução nossa)<br />
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O conto representa uma narrativa de ficção em geral bem breve, transmitida<br />
oralmente. As ações, provas, peripécias são vividas por um ou mais personagens.<br />
Elas estabelecem uma distância entre o universo do conto e nosso mundo, a ficção<br />
e o real. Tempo e lugar são em geral indeterminados. No caso específico dos<br />
contos fantásticos, há uma profusão de elementos inverossímeis e personagens<br />
maniqueístas, mas ele permanece, em geral, como um gênero otimista, em<br />
que tudo sempre acaba bem. Os contos tradicionais são em grande número<br />
associados ao maravilhoso.<br />
Um conto quebequense: Conte Populaire - Charles Laberge<br />
Para ilustrarmos um pouco dessa história da literatura quebequense e da importante<br />
função que aí tem as narrativas orais com o imaginário de seu povo, apresentamos<br />
aqui um conto fantástico de Charles Laberge – cujo título, Conte Populaire, 20<br />
justamente indica tanto a sua origem oral (conto) e seu enraizamento na cultura<br />
(popular). Esse conto foi publicado no jornal Avenir 21 , em fevereiro de 1848.<br />
Ao analisarmos esse conto, a partir das reações e a natureza dos acontecimento,<br />
veremos que ele se revelará fantástico-maravilhoso. Segundo ressalta Todorov:<br />
[...] no “maravilhoso os elementos sobrenaturais não provocam qualquer<br />
reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma<br />
atitude para os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas<br />
a própria natureza desses acontecimentos”. (Todorov, 2010, p. 60)<br />
Nesse conto encontramos um esquema narrativo bastante comum; há três<br />
momentos chave que, segundo Propp (2010), caracterizam esse gênero: a<br />
situação inicial que, apesar de trazer elementos positivos, tranquilizadores, já<br />
apresenta também elementos negativos, perturbadores. O desenvolvimento<br />
da ação que se dá a partir de um elemento perturbador: aqui a chegada do<br />
diabo. O desenlace final, contudo, será – como de hábito - positivo: aqui, o<br />
cura consegue espantar o diabo e restabelece a ordem.<br />
A dinâmica do texto apresenta uma narrativa veloz e com fatos surpreendentes,<br />
o que nos remete a um tipo de leitura que se promete breve – característica do<br />
gênero conto - e que confirma as expectativas iniciais do leitor ao começar o<br />
texto, como aponta Rullier-Theuret :<br />
Ce ne sont pas les mêmes principes qui gouvernent les textes brefs et les<br />
textes longs, simplicité et complexité sont liées au nombre de pages. La<br />
brièveté prive le lecteur de détails et de développements, la rapidité de la<br />
narration et l’économie des moyens cherchent l’intensité des effets. (Rullier-<br />
Theuret, 2006, p. 11) 22<br />
20 O conto em sua íntegra encontra-se no final desse artigo.<br />
21 Jornal publicado pela Fundação do Instituto canadense de Montreal a partir de 1847 (Plourde, 2003, p. 510)<br />
22 “Não são os mesmos princípios que governam os textos breves e os textos longos, simplicidade e complexidade<br />
estão ligados ao número de páginas. A brevidade priva o leitor de detalhes e de desenvolvimentos, a rapidez da<br />
narrativa e a economia dos meios buscam a intensidade dos efeitos.” (Rullier-Theuret, 2006, p. 11, tradução nossa)<br />
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O enredo de Conte Populaire é exemplar dessa brevidade e simplicidade<br />
narrativas. Durante a festa, no início do conto, a sucessão de fatos se dá com<br />
tamanha velocidade que conduz rapidamente a narrativa para o elemento<br />
perturbador do conto.<br />
• A situação inicial: Terrebonne essencialmente francesa<br />
O conto apresenta uma narrativa em terceira pessoa; o narrador não representa<br />
um personagem que empreenderá alguma ação. Ele se apresenta, entretanto,<br />
como um contador que fará parte da história pois caberá a ele trazer informações<br />
importantes para o desenrolar da trama (a situação geográfica da casa, a<br />
importância da festa, por exemplo).<br />
[...] les récits fantastiques à la troisième personne sont alors l’expression<br />
d’un je. [...] Le narrateur, qu’il s’identifie ou nom au personnage, est celui<br />
qui sait, ou tout au moins qui sait plus de choses que les autres. (Malrieu,<br />
1992, pp. 135-136) 23<br />
Esse narrador/contador inicia sua narrativa fazendo uma comparação entre as<br />
cidades de Paris e Terrebonne. 24 Já nesse primeiro momento, mesmo que de<br />
maneira rápida, o narrador remete o leitor para a cidade francesa retomando<br />
a ligação da história de Quebec com o país dos colonizadores. A cidade, cujo<br />
nome sugere o seu lado positivo (Terra Boa), surge como elemento introdutório<br />
ao conto através de sua característica jovial. A afirmação da identidade local<br />
a partir da identidade referencial francesa se dá com muita clareza embora<br />
seja fácil deixar de perceber esse ponto, uma vez que ele vem envolvido em<br />
relatos de maravilhas e espanto.<br />
Também a descrição da pequena casa cuja localização se encontra em uma<br />
encruzilhada de quatro caminhos é cheia de significado. Essa circunstância se<br />
apresenta relevante pois o narrador nos explica que “é sempre ali que se faz<br />
esse assustador contrato: a venda da galinha preta” 25 . Os elementos populares,<br />
as crendices e medos que povoam a literatura oral encontram abrigo na forma<br />
escrita da ficção. Em seguida, o narrador evoca a festa tradicional francesa<br />
que se tornou importante no Canadá: la Sainte-Catherine 26 ; o contexto histórico<br />
vem <strong>jun</strong>to com a observação de que a festa é “tão antiga quanto a primeira<br />
cruz plantada sobre nosso solo”, fazendo alusão a Jacques Cartier que, como<br />
já apontamos no início desse artigo, plantou uma cruz em solo canadense<br />
reivindicando a posse do continente para o rei francês François I.<br />
23 “[...] as narrativas fantásticas na terceira pessoa são então uma expressão de um eu. [...] O narrador, que<br />
ele se identifique ou não com o personagem, é aquele que sabe, ou ao menos que sabe mais coisas que os outros.”<br />
(Malrieu, 1992, pp. 135-136, tradução nossa)<br />
24 Cidade do Quebec da periferia norte de Montreal, assim batizada em razão da fertilidade de suas terras –<br />
terra boa (http://www.ville.terrebonne.qc.ca)<br />
25 Sacrificando uma galinha preta à meia noite, em uma encruzilhada isolada, pode-se evocar o diabo para<br />
com ele fazer um pacto ( http://www.chouette-noire.com/sorcellerie/poulenoire.htm)<br />
26 25 de novembro, dia das catarinetes: todas as jovens de 25 anos que ainda não se casaram colocam um<br />
chapéu verde e amarelo e saem às ruas na esperança de encontrar um marido (Cretin, 1991, pp. 52-53)<br />
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Aos poucos, esse narrador/contador vai montando uma teia de informações<br />
que compõem um esquema narrativo com dados que remetem à tradição<br />
francesa e é nessa lógica que ele conclui: “Terrebonne era então, como é ainda,<br />
essencialmente francesa”. Ainda que a narrativa seja feita em terceira pessoa,<br />
como já dissemos, desde o início pode-se notar a importância do narrador/<br />
contador que aparece como um personagem que fornece elementos que serão<br />
importantes para a continuação e a compreensão dos fatos que virão a seguir.<br />
• O desenvolvimento da ação: a tira e a música na festa<br />
Também reminiscente da narrativa oral é a forma como os primeiros personagens<br />
que compõem o conto são apresentados: “rapazes belos e altos com aparência<br />
de cavaleiros e jovens moças charmosas”. O narrador, aqui, não apresenta um<br />
personagem individual, mas sim um grupo de jovens reunidos para a festa;<br />
esses personagens representam o pano de fundo da ação, mas nenhum deles<br />
se destacará, nem assumirá um papel importante para a continuação da ação,<br />
nenhum deles agirá de modo individual; todos jovens apresentam as mesmas<br />
ações: “cabeças que se agitavam, pés que sapateavam, sorrisos, olhares,<br />
palavrinhas ditas de forma negligente no ouvido de uma vizinha que passava,<br />
apertos de mão, beijos”.<br />
Cabe aqui o conceito de Propp sobre os atributos dos personagens e sua<br />
significação. Segundo o autor, os personagens da vida real se sobrepõem<br />
aos imaginários pois são mais “brilhantes, coloridos”, já os personagens dos<br />
contos têm “influência da realidade histórica contemporânea, do epos dos<br />
povos vizinhos, e também da literatura e da religião, tantos dos dogmas cristãos<br />
como das crenças populares locais.” (Propp, 2010, p. 85)<br />
Na sequência do conto, em meio à toda a agitação, o clima de festa já estava<br />
instaurado e era causado pelo “fogo que ardia e a melaça obrigatória para as<br />
tiras 27 na Sainte-Catherine.” E novamente a reação do grupo de jovens causada<br />
pelo forte odor do açúcar: “olhos brilhavam de alegria, (...) todos se atiravam<br />
sobre as tiras, arrancavam os pedaços de açúcar das mãos de seus vizinhos<br />
com gargalhadas loucas.” O narrador/contador já nos anuncia que esse<br />
movimento trará alguma mutação: “todo o apartamento foi metamorfoseado<br />
em uma manufatura de tiras.”<br />
As tiras representam momento central da festa, por causa delas as pessoas<br />
brincam e a metamorfose se dá à medida que “cada um se permitia dourar o<br />
rosto de seu vizinho; todo mundo estava açucarado, sujo, tatuado, do modo<br />
mais pitoresco. Era um zunzum na casa que não se ouvia mais nada, uma<br />
balbúrdia ensurdecedora”. Nessa passagem, o narrador/contador nos dá o<br />
tom do meio pelo qual uma transição vai se operando nos jovens convidados.<br />
27 Tira. s.f. Tira de bordo: guloseima obtida por evaporação do xarope de bordo. (Tire n.f. Québec. Tire d’érable:<br />
friandise obtenue par évaporation du sirop d’érable. - Le petit Larousse illustré, 2000)<br />
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A festa apresenta elementos (o odor, a sensação dos convidados, o som, as<br />
ações frenéticas) que se tatuam nos convidados e os transformam tirando-os<br />
de seu cotidiano normal e conduzindo-os a um certo frenesi. A transição rápida<br />
do equilíbrio da situação inicial para a crise do desenvolvimento da ação se dá<br />
com a rapidez característica da oralidade, com a engenhosidade do contador<br />
de feira seduzindo seus ouvintes.<br />
Nessa estratégia, um novo elemento é introduzido na narrativa e faz os convidados<br />
abandonarem a tira: a música. É preciso observar que, em um primeiro momento,<br />
o odor das tiras agita os jovens, em seguida, o som os transforma. O narrador/<br />
contador nos dá várias pistas sobre o estado de espírito dos convidados que,<br />
ao ouvirem a música, “começam a cantarolar e a saltitar.” Já metamorfoseados<br />
e tatuados pela tira, os convidados começam a dançar e “os sapatos e os<br />
coletes voavam de um lado ao outro: era um encantamento, um feitiço. (...)<br />
Os saltos, as cambalhotas, os vivas, as meia-voltas à direita e à esquerda, era<br />
um verdadeiro turbilhão (...) todas as danças animadas, vivas e alegres (foram<br />
tocadas). Todo mundo era transportado. Dançarinos e dançarinas, fora de<br />
si, saltavam, se chocavam, sapateavam a perder a cabeça.” Ainda que nesse<br />
primeiro momento, tudo pareça evoluir normalmente, já encontramos alguns<br />
fatores quase imperceptíveis que começam a preparar espaço para o elemento<br />
perturbador da narrativa. O narrador/contador alerta que através da música os<br />
jovens passavam por um transe que os alucinava.<br />
• Elemento perturbador: situação negativa<br />
“No momento em que a dança estava mais animada, ouve-se subitamente,<br />
uma batida à porta: pa, pa, pa”. A partir dessa batida, percebe-se que a<br />
narrativa é redirecionada; o bater à porta aparece como um recurso sonoro<br />
que acrescenta um novo elemento ao desenvolvimento da ação e o suspense<br />
é introduzido: “Um homem, vestido de preto dos pés à cabeça, figura bela<br />
e interessante, de aparência distinta, entra na casa”. A cena nos reporta ao<br />
ensinamento de Propp:<br />
O estudo dos atributos dos personagens inclui apenas as três rubricas<br />
fundamentais, que são as seguintes: aparência e nomenclatura, particularidade<br />
da entrada em cena e habitat. (Propp, 2010, p. 86)<br />
O personagem que se apresenta à festa tem aparência “distinta” mas ainda não<br />
há uma nomenclatura definida para ele além da característica de sua vestimenta<br />
“de preto dos pés à cabeça”; entra em cena causando uma “certa surpresa”<br />
nas pessoas. Mesmo que essa inesperada visita tenha causado surpresa,<br />
o narrador/contador insiste no traço característico do povo canadense: os<br />
convidados o recebem “com a educação hospitaleira, particularidade nacional<br />
dos Canadenses”. A dança recomeça e, a partir daí, o visitante é chamado<br />
pelo narrador/contador de étranger, termo que pode ter duas conotações,<br />
estrangeiro ou estranho. O visitante se surpreende com “a alegria franca, tão<br />
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ingênua, tão expansiva” dos jovens. O étranger é convidado a dançar, e não<br />
só aceita, como escolhe a moça mais bonita e “a leva por toda parte ao som<br />
de um tambor.”<br />
Tem início aqui uma evolução do personagem na narrativa que culminará<br />
com a revelação de sua identidade. Malrieu indica que a lógica da narrativa<br />
fantástica se revela diferente daquela do cinema em relação aos efeitos que<br />
serão causados no leitor/expectador; enquanto no cinema há a necessidade<br />
de um efeito repentino que cause impacto no expectador, a narrativa fantástica<br />
apresenta uma evolução progressiva do personagem até o momento em que<br />
se revela o desconhecido. 28<br />
Assim, o início de um processo para essa revelação, nesse conto, se dá a<br />
partir de uma dança e do som de um tambor. O tambor, instrumento musical<br />
bastante popular, surge como um artifício desestabilizador para o conto. O<br />
banal e quotidiano se torna potencialmente ameaçador; é como se um ritual<br />
se preparasse: após esta cerimônia e um forte aperto de mão do seu partner a<br />
“dançarina solta um grito que faz estremecer todos os assistentes e desmaia”.<br />
Importante aqui notar que sempre é um elemento ligado aos sentidos que<br />
redireciona o conto: olfato (a tira), audição (a música, o zunzum, o tambor),<br />
visão (a figura do homem de preto), o tato (forte aperto de mão). A relação<br />
do concreto, conhecido, com forças que nos transportam para dimensões<br />
ameaçadoras é carcaterístico do tecido das lendas populares e constitui fator<br />
determinante para o sucesso narrativo de Conte Populaire.<br />
Importante também observar que, mesmo que o visitante tenha escolhido uma<br />
jovem para dançar, em nenhum momento a narrativa identifica esse personagem<br />
individualmente: ela é apenas uma bela dançarina jovem (no início do conto, o<br />
narrador já havia deixado claro que a festa era composta de belos jovens). A não<br />
individuação lembra o caráter geral das narrativas orais que, frequentemente,<br />
tinham uma intenção moralizante. É como se o narrador/contador dissesse:<br />
“Veja, isso pode acontecer com qualquer moça. É preciso ter cuidado”.<br />
Com a dança interrompida e a desconfiança causada pela situação estranha,<br />
as atenções voltam-se para o étranger. Os jovens, surpresos com o ocorrido,<br />
querem saber quem é esse homem singular. Voltando à perspectiva de Propp,<br />
encontramos aqui a esfera dos personagens que realizam funções: o homem<br />
de preto aparece como o personagem Antagonista (ou malfeitor) cuja esfera<br />
“compreende o dano, o combate e as outras formas de luta contra o herói, e<br />
a perseguição.” (Propp, 2010, p. 77)<br />
28 “Contrairement à ce qui se passe au cinéma, qui privilégie pour des raisons évidentes le phénomène et la<br />
recherche de l’effet que celui-ci peut provoquer, le récit fantastique se fonde principalement sur la révélation progressive<br />
par le personnage d’une réalité jusqu’alors inconnue.” (Malrieu, 1992, p. 69)<br />
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Diante da insitência da pergunta dos jovens sobre a identidade do personagem,<br />
vemos uma evolução nesse étranger que se mostra em um “mutismo e parecia<br />
pregado em seu lugar, sem nenhum movimento, apenas seus olhos se tornavam<br />
mais e mais brilhantes.” Os jovens continuam a interrogá-lo e exigem que ele<br />
revele seu nome mas não há resposta. A cena se apresenta semeada de palavras<br />
que criam o clima para o desfecho do momento fantástico: jovens apavoradas<br />
/ ansiedade / cena extraordinária / todos indecisos, quase terrificados / homem<br />
impassível que não se mexia./ Todos hesitam a casa treme.<br />
O étranger continua imóvel, “apenas seus olhos se tornam mais e mais brilhantes<br />
e lançam raios; todos estão fascinados, ninguém consegue sustentar seu olhar de<br />
fogo.” Os jovens tentam tirá-lo à força mas ele fica imóvel “como uma massa de<br />
chumbo.” A ação vai evoluíndo de tal forma que cria a tensão para a conclusão<br />
da descoberta da identidade do homem de preto: “É o diabo! Grita com uma<br />
voz estridente o violinista. Todos repetem: é o diabo! Impossível descrever o<br />
pavor, a inquietação, a confusão” que são traduzidos por fugas, desmaios e<br />
gritos. A confusão envolve todos os moradores da cidade que despertam e se<br />
dão conta do insólito acontecimento. Quando alguns se acalmam, a decisão<br />
é unânime: procurar o cura da cidade. Ainda aqui, a simplicidade com que<br />
se aceita o maravilhoso – o diabo em pessoa vindo participar de uma festa -<br />
aponta nitidamente para a dinâmica das narrativas orais populares.<br />
Diante dessa revelação do diabo a todos os personagens do conto, podemos<br />
aqui fazer uma distinção notando que esse conto se apresenta dentro do<br />
conceito fantástico-maravilhoso. Segundo Malrieu, uma das maiores diferença<br />
entre a narrativa fantástica e o conto maravilhoso é a percepção do fenômeno<br />
pelos personagens:<br />
Là [spécificité du personnage fantastique] réside l’une des plus importantes<br />
différences entre le récit fantastique et le conte merveilleux: le phénomène<br />
à l’œuvre dans le fantastique n’est pas plus ou moins étrange que celui des<br />
contes merveilleux : il n’est même pas nécessairement d’une nature différente ;<br />
en revanche, il n’est pas perçu par tous, pas de la même manière. […] le<br />
personnage victime du phénomène n’est pas fondamentalement différent des<br />
autres : le diable, manifestement, peut apparaître à tous, et son intervention<br />
est vécue de la même manière par chacun. (Malrieu, 1992, p. 67) 29<br />
O diabo surge como elemento perturbador da ordem e é notado por todos<br />
os convidados, sua visão faz com que todos os personagens da festa reajam<br />
do mesmo modo. Em nenhum momento, a sua presença causará uma reação<br />
individual em qualquer personagem.<br />
29 Aqui [a especificidade do personagem fantástico] reside uma das mais importantes diferenças entre a narrativa<br />
fantástica e o conto maravilhoso : o fenômeno em operação no fantástico não é mais ou menos estranho do que<br />
o dos contos maravilhosos : ele não é tão pouco necessariamente de uma natureza diferente ; em contrapartida, ele<br />
não é percebido por todos, não da mesma maneira. […] o personagem vítima do fenômeno não é fundamentalmente<br />
diferente dos outros : o diabo, claramente, pode aparecer a todos, e sua intervenção é vivida da mesma maneira por<br />
cada um. » (Malrieu, 1992, p. 67, tradução nossa)<br />
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• Restabelecendo a ordem: situação final positiva<br />
Voltando a Propp e à esfera dos personagens, o cura realizará a função Auxiliar<br />
cuja ação compreende “o deslocamento do herói no espaço, a reparação<br />
do dano ou da carência, o salvamento durante a perseguição, a resolução<br />
de tarefas difíceis, a transfiguração do herói.” (Propp, 2010, p. 77) Podemos<br />
dizer que esse personagem apresenta os três atributos levantados por Propp:<br />
aparência e nomenclatura: o cura está pálido e desfigurado; particularidade<br />
da entrada em cena: em pé, pálido e desfigurado e seu habitat : o presbitério.<br />
Após ouvir os fatos sucedidos, o cura toma a decisão de ir ao local mas antes<br />
mune-se de seu Petit-Albert, “o livrinho misterioso” 30 . Fica claro que o conto<br />
caminha para o restabelecimento da ordem transgredida pelo diabo e como<br />
esse conto não apresenta um herói individualizado, podemos dizer, como nos<br />
ensina Propp, que o auxiliar vai cumprir a função que seria específica do herói,<br />
ele vai “reparar o dano” (Propp, 2010, p. 81) causado pela visita do diabo.<br />
A cena que vem a seguir e que restabelecerá a ordem é carregada de<br />
intensidade; ao se aproximar da casa, o cura pára e pede para as pessoas<br />
não se aproximarem. “Um clarão ofuscante” parecia espalhar pela casa um<br />
grande incêndio; o cura pode ver dentro da casa, “um homem de fogo sentado<br />
em uma cadeira sempre no mesmo lugar, imóvel.”<br />
Mesmo que o personagem auxiliar apareça como aquele que vai restabelecer<br />
a ordem, o narrador ainda diz que ele “supera o pavor que o dominava, abre o<br />
Petit-Albert e lê em voz alta algumas passagens...” Nada acontece então o cura<br />
recomeça, faz sinais misteriosos e diz em voz alta: “Em nome de Cristo, saia<br />
daqui!” A cena mistura religião e magia, o livro de bruxarias + a evocação de<br />
Cristo + os sinais misteriosos, <strong>jun</strong>tos, conseguem desprender o diabo da cadeira.<br />
A continuação mostra a violência que o narrador imprime às ações: a casa<br />
sacode violentamente, o solo treme, um turbilhão de fogo passa através de<br />
uma parede da casa, todos fogem gritando apavorados. Finalmente, para que<br />
o fato deixe uma marca concreta, o narrador diz que o diabo foge levando com<br />
ele uma parte da parede que nunca mais foi achada. Quanto ao cura, como se<br />
nada tivesse acontecido, volta tranquilamente ao presbitério com o Petit-Albert<br />
em baixo do braço.<br />
Conclusão:<br />
A crença de um povo, a identidade quebequense e a literatura oral<br />
É importante ressaltar como o lado religioso mesclado pela crença popular e sua<br />
história dão o tom a esse conto. Isto importa porque significa mais um elemento<br />
que liga esse conto à tradição oral e às raízes do Quebec francês católico. Assim,<br />
30 Livro de exorcismo contra bruxaria, inspirado pelos escritos de santo Alberto, o Grande; foi impresso pela<br />
primeira vez na França em 1668. (Wikipédia)<br />
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como vimos, temos, a princípio, o motivo desencadeador que dará o pano de<br />
fundo ao conto: o encontro dos jovens para festejar Santa Catarina. Em seguida,<br />
o elemento perturbador: a chegada do diabo, personagem ligado à religião, o<br />
oposto de Deus que vem desestabilizar a ordem. Finalmente, o elemento que<br />
reestabelece a ordem, o cura com o seu Petit-Albert. Três momentos chave e<br />
decisivos do conto estão ligados à religião, à crença do povo quebequense.<br />
Mesmo que o diabo apareça como personagem fantástico-maravilhoso nesse<br />
conto, devemos ligá-lo também à crença de um povo em sua fé quando a<br />
literatura era apenas oral e essa história era contada e não escrita. O diabo<br />
que, nesse conto, representa um elemento perturbador da paz e que gera o<br />
ambiente fantástico-maravilhoso, era, no momento em que foi contado oralmente,<br />
parte da história desse povo e índice da relação estabelecida com a figura de<br />
um elemento cultural da fé cristã. Bozzetto e Huftier ressaltam que até o século<br />
XVII, esse tipo de aparição não perturbava a ordem e era aceita sem ligação a<br />
um fenômeno fantástico e sim como um elemento racional, ligado à religião. 31<br />
O que faz a o universo literário fascinante é a possibilidade de múltiplas leituras<br />
que nos oferece. Não há o modo certo de ler mas sim a descoberta da narrativa<br />
aos olhos do leitor. Um conto fantástico-maravilhoso pode permitir uma enorme<br />
gama de interpretações. O conto de Charles Laberge pode ser lido apenas<br />
como uma história de uma festa em que o diabo chega inesperadamente e cria<br />
uma grande confusão. Mas também pode oferecer muitos caminhos a serem<br />
explorados revelando uma história fantástica-maravilhosa enraízada em uma<br />
tradição secular. O que nos dispusemos a fazer nessa breve análise, foi encontrar<br />
uma entre tantas possibilidades apontando a figura do diabo – com sua dimensão<br />
cultural tão arraigada e tão antiga - estabelecendo o elo que reforça a ideia do<br />
conto oral como elemento de consolidação e resistência cultural.<br />
O Conte Populaire veio não só do folclore e da tradição quebequense mas<br />
também da tradição francesa através da devoção à Santa Catarina e da<br />
crença no Petit-Albert. Essas duas tradições se fundem e encontram a sua<br />
consolidação através da escrita de autores como Charles Laberge, nesse<br />
sentido emblemático do tipo de escrita que marca o Canadá do século XIX.<br />
A relação entre imaginário popular e narrativa fantástica aparece também na<br />
literatura francesa – como, por exemplo, em Nodier – mas, no Quebec, ela faz<br />
parte de um movimento de afirmação nacional tão complexo quanto fascinante.<br />
31 Jusque-là [XVIIe siècle), l’apparition de saints, de fantômes, la présence du diable etc., cela ne violait en rien<br />
un ordre, et donc était accepté sans que surgisse um sentiment de trouble fantastique, mais simplement de la peur ou<br />
de l’émerveillement, car la religion le rendait acceptable pour la raison. (Bozzetto & Huftier, 2004)<br />
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THE DEVIL WAS NOT INVITED : CONTES FANTASTIqUES AND<br />
QUEBECOIS TRADITION<br />
ABSTRACT<br />
Written forms of French took a long time to consolidate in Canada during the<br />
period when part of the country was still la Nouvelle France. This entailed a<br />
corresponding relative delay in the emergence of the first Quebecoise literature.<br />
For around one century after the early occupation of the land, literature in Canada<br />
remained mostly oral. The first written texts would be marked by attempts to<br />
retrieve ancestral folk stories, legends and songs. In the 19 th century, these texts<br />
introduced the character of the narrator/story teller who functioned as the living<br />
memory of stories coming from the time of the early settlers. Such stories, which<br />
may be told as having taken place either in France or in Canada and bring to<br />
the fore folk traditions, are full of fantastical and gothic elements and function<br />
as a piece of cultural identity and resistance for Quebec. This paper analyses<br />
one such text, the Conte Populaire from the theoretical perspective offered by<br />
Propp (2010) by pointing its connections with the story of Quebec, which is<br />
briefly presented here, and with its social function within Quebec society.<br />
KEY WORDS:<br />
Quebec literature; contes fantastiques; cultural identity; oral literature<br />
REFERÊNCIAS<br />
BOZZETTO, R. & HUFTIER, A. Les frontières du fantastique – approches de<br />
l’impensable em littérature. France, Presses Universitaires Valenciennes, 2004<br />
CRETIN, N. & THIBAULT, D. Le livre des fêtes. Italie: Gallimard, 1991<br />
MALRIEU, Joël. Le fantastique. Paris: Hachette, 1992<br />
MORTON, Desmond. Breve História do Canadá. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1989<br />
PLOURDE, Michel (direction). Le français au Québec: 400 ans d’histoire et de<br />
vie. Québec: FIDES, 2003<br />
PROPP, Vladimir I. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro : Editora<br />
Forense Universitária, 2010<br />
RULLIER-THERET, Françoise. Les genres narratifs. Paris: Ellipses Éditions, 2006<br />
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010<br />
WEINMANN, H. & CHAMBERLAND, R. (direction). Littérature québécoise: des<br />
origines à nos jours. Montreal: Éditions Hurtubise, 1996<br />
Sites consultados:<br />
http://www.chouette-noire.com/sorcellerie/poulenoire.htm<br />
http://grandquebec.com/legendes-du-quebec/contes-du-quebec/<br />
Anexo:<br />
Conte Populaire – Charles Laberge (1827-1874) 32<br />
Ce conte est une représentation typique des contes populaires de l’époque,<br />
avec des personnages également typiques.<br />
Paris ne s’est pas fait en un jour, Terrebonne non plus. Or, donc, Terrebonne<br />
qui est aujourd’hui un beau et grand village, étendu de tout son long sur la<br />
côte de la rivière Jésus, n’était, au dernier siècle, qu’un tout petit enfant qui<br />
s’essayait en jouant à grimper sur la côte. Il y avait dans ce petit village une<br />
petite maison, dont l’emplacement se trouve aujourd’hui au pied de la côte,<br />
au beau milieu de Terrebonne. Cette maison se trouvait à la fourche de quatre<br />
chemins, circonstance importante quand on sait que c’est toujours là que se fait<br />
cet effrayant contrat : la vente de la poule noire. Le ciel était beau mais la terre<br />
bien triste. L’automne l’avait jonchée de feuilles mortes, et les pluies l’avaient<br />
recouverte d’une hideuse couche de boue. Pourtant, il n’y avait pas de mauvais<br />
temps, quand il s’agit de chômer une de ces fêtes canadiennes aussi vieilles<br />
que la première croix plantée sur notre sol. Or, c’était la Sainte-Catherine, ce<br />
jour de réjouissances nationales ; c’était la fête de cette sainte dont le nom seul<br />
apporte le sourire sur les lèvres des Canadiens. Terrebonne était alors, comme<br />
il l’est encore, essentiellement français, de sorte que tout ce qu’il y avait de gai<br />
s’était donné rendez-vous à la fourche des quatre chemins. La toilette était au<br />
grand complet ; de beaux grands garçons à la tournure cavalière, et des jeunes<br />
filles charmantes (comme il y en a encore à Terrebonne).<br />
Quand tout ce jeune monde fut disposé dans un local de vingt pieds carrés,<br />
c’était charmant à voir ; toutes ces têtes qui s’agitaient, ces pieds qui trépignaient,<br />
ces sourires, ces oeillades, ces petits mots jetés négligemment dans l’oreille<br />
d’une voisine en passant, tout cela formait le plus joli coup d’œil.<br />
Après qu’on se fut donné force poignées de main, et peut-être quelques<br />
baisers, … ce dont la chronique toujours discrète ne dit rien ; … quand les<br />
32 http://grandquebec.com/legendes-du-quebec/contes-du-quebec/<br />
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jeunes filles eurent bien babillé, et se furent débarrassées de leurs manteaux,<br />
quelque chose frappa d’abord tous les jeunes gens à leur en faire venir l’eau<br />
à la bouche : une forte odeur de sucre était répandue dans la maison. Dans<br />
un coin, il y avait une cheminée que réchauffait un bon feu ; sur ce feu, étaient<br />
disposées méthodiquement deux grandes poêles à frire, qui contenaient, ce<br />
que tout le monde a deviné, de la mélasse ; car que faire à la Sainte- Catherine,<br />
si l’on ne fait pas de la tire ? La liqueur s’élevait à gros bouillons au-dessus des<br />
poêles, pour annoncer que tout serait bientôt prêt. Tous les yeux étincelèrent<br />
de joie. Après quelques minutes d’attente, employées à se prémunir contre les<br />
dangers qu’allait courir la toilette, le sucre fut apporté dans l’appartement. Il n’y<br />
a pas besoin de dire que ce fut une fureur ; tout le monde se jetait dessus, en<br />
arrachait les morceaux des mains de ses voisins, avec des éclats de rire fous;<br />
tout l’appartement fut métamorphosé en une manufacture de tire. Il y en avait<br />
partout, au plancher d’en haut comme à celui d’en bas ; l’appartement en était<br />
saturé. Puis, les lignes se formèrent, on joua à la seine avec de longues cordes<br />
de tire qui pêchaient les gens par le visage, chacun se permettait de dorer la<br />
figure de son voisin ; tout le monde était sucré, barbouillé, tatoué, de la façon<br />
la plus pittoresque. C’était un brouhaha dans la maison à ne plus entendre, un<br />
tintamarre à devenir sourd.<br />
Une seule chose pouvait ralentir l’entrain et, pour un instant du moins, donner<br />
un peu de répit, c’était la musique, ce charme qui entraîne tous les êtres vivants,<br />
quelque grossiers que soient ses accords. Mais ici le roi des instruments venait de<br />
résonner. Un jeune blondin, à figure prétentieuse, assis dans un coin, promenait<br />
à tour de bras son archet sur son violon, en battant la mesure à grands coups<br />
de pied. Tout le monde se mit à fredonner et à sautiller : la tire était vaincue.<br />
Les souliers volent d’un bout à l’autre de la chambre sans qu’on les voit partir,<br />
les gilets en font autant : c’était un enchantement, un sort. Deux couples entrent<br />
en danse, et entament une gigue furieuse, chacun de leur côté. Les sauts, les<br />
gambades, les saluts, les demi-tours à droite et à gauche, c’était un vrai tourbillon,<br />
c’était comme la chanson : sens dessus dessous, sens devant derrière. À la<br />
gigue succédèrent la contredanse, la plongeuse, le triomphe, toutes danses<br />
animées, vives et gaies. Tout le monde était transporté. Danseurs et danseuses,<br />
hors d’eux-mêmes, sautaient, frottaient, piétinaient à en perdre la tête.<br />
Au moment où la danse était le plus animée, on entend tout à coup frapper à<br />
la porte : ta, ta, ta.<br />
– Ouvrez, dit un des danseurs.<br />
Un monsieur, vêtu en noir des pieds jusqu’à la tête, à la figure belle et intéressante,<br />
à la tournure distinguée, entre dans la maison. Chacun des assistants, avec cette<br />
politesse hospitalière, caractère national des Canadiens, s’empresse autour du<br />
nouveau venu ; mille politesses lui sont prodiguées, et on lui présente un siège<br />
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qu’il accepte. Les gens furent un peu surpris ; mais la politesse, l’hospitalité<br />
vraie et cordiale est si naturelle chez nos habitants, fait tellement partie de leurs<br />
mœurs, que l’étonnement fut de courte durée. La danse recommença comme<br />
de plus belle. L’étranger émerveillé regardait avec intérêt cette gaîté franche, si<br />
naïve, si expansive. Après quelques minutes, le monsieur étranger fut poliment<br />
invité à danser ; il ne se le fit pas répéter et accepta l’offre de la meilleure grâce<br />
du monde. Il choisit parmi les jeunes filles une des plus jolies, et la promena<br />
tambour battant dans tout l’appartement. Tout le monde admirait les grâces<br />
et la bonhomie de l’étranger, quand tout à coup la danseuse pousse un cri<br />
qui fait tressaillir tous les assistants et s’évanouit. La main de son partner avait<br />
violemment pressé la sienne. On la transporte dans une chambre, où les soins<br />
lui sont prodigués. La danse fut interrompue, tous les assistants commencèrent<br />
à regarder le monsieur avec soupçon. Le plaisir avait fait place à l’inquiétude.<br />
Un des jeunes gens s’avance vers l’étranger et lui demande son nom. Pas de<br />
réponse. Tout le monde se regarde avec étonnement : quel est cet homme<br />
singulier ? La demande réitérée ne reçoit pas plus de réponse, même mutisme.<br />
L’étranger paraissait cloué à son siège, sans mouvement aucun ; seulement, ses<br />
yeux commençaient à devenir plus brillants. Les jeunes gens tinrent conseil, et<br />
on résolut de le faire sortir. L’un d’eux lui dit tranquillement : monsieur, nommezvous,<br />
ou sortez.- Pas de réponse. Les jeunes filles effrayées se retirèrent dans<br />
un coin de l’appartement, attendant avec anxiété le dénouement de cette scène<br />
extraordinaire. Nommez-vous, ou sortez, répéta un des jeunes gens. - Pas de<br />
réponse. Un silence morne régna pendant quelque secondes. Tous restaient<br />
indécis, presque terrifiés, en voyant cet homme impassible qui ne bougeait<br />
pas. Un des plus résolus dit aux autres : c’est la dernière fois, il faut qu’il sorte.<br />
Chacun hésite à s’approcher le premier. L’étranger ne bouge pas davantage ;<br />
seulement ses yeux deviennent de plus en plus brillants et lancent des éclairs;<br />
tous les assistants en sont éblouis ; personne ne peut soutenir son regard de<br />
feu. – Sortez, sortez. - Pas de réponse. - – Eh bien ! il faut le sortir, dit l’un d’entre<br />
eux. Plusieurs s’approchent de lui en même temps, et le saisissent, l’un par le<br />
bras, l’autre par le revers de son habit. Ils font un violent mais inutile effort ; il<br />
reste ferme et inébranlable sur sa chaise, comme une masse de plomb. Ses<br />
yeux deviennent plus ardents, toute sa figure s’enflamme graduellement ; en<br />
même temps une violente commotion se fait sentir, la maison tremble. – C’est le<br />
diable ! crie d’une voix perçante le joueur de violon, qui lance son instrument sur<br />
le parquet. C’est le diable ! c’est le diable ! répète tout le monde. Impossible de<br />
peindre la frayeur, le trouble, la confusion ; portes, châssis, tout vole en éclats<br />
sous les coups des fuyards ; des cris déchirants se font entendre de tous côtés.<br />
Il n’y a pas assez d’ouvertures pour recevoir à la fois tout ce monde qui se<br />
heurte, se presse, s’étouffe. Les lambeaux de gilets et de robes restent accrochés<br />
aux portes et aux châssis. Les blessures, les meurtrissures font pousser des<br />
gémissements. À droite, à gauche, les jeunes filles tombent évanouies. Les<br />
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plus alertes fuient à toutes jambes, en criant partout : le diable ! le diable ! et<br />
réveillent tout le village avec ces lugubres mots. Tous les habitants se lèvent ;<br />
on sort, on s’informe. Quand le fort de la terreur fut passé, que quelques-uns<br />
eurent recouvré leurs esprits, ils racontent ce qu’ils ont vu. – Allons trouver M.<br />
le curé, dit une voix ; – allons le trouver, répètent les autres.<br />
Ils arrivent au presbytère, et trouvent le curé debout sur le seuil de sa porte,<br />
pâle, défait, ne sachant que penser. On lui raconte l’effrayant événement dans<br />
tous ses détails ; c’est le diable, lui dit-on, c’est le diable.<br />
Quand le curé eut bien pris ses informations : – J’y vais aller, dit-il, attendezmoi<br />
un instant.<br />
Le curé rentre dans son presbytère, se dirige vers sa bibliothèque, et y prend<br />
un petit livre à reliure rouge, le petit livre mystérieux, le Petit-Albert. Il revient<br />
après quelques minutes, et tous se dirigent vers la maison, non sans trembler.<br />
Le curé s’arrête à quelques pas, et fait signe à ses gens de ne plus avancer.<br />
Une clarté éblouissante était répandue dans la maison, on eût dit que l’incendie<br />
y exerçait ses ravages. Le curé regarde dans la maison, et aperçoit un homme<br />
de feu assis sur une chaise toujours à la même place, immobile. Surmontant<br />
la frayeur qui le gagnait malgré lui, il ouvre le Petit-Albert et en lit à haute<br />
voix quelques passages… l’homme de feu ne bouge pas. Il recommence à<br />
lire, accompagnant sa lecture de signes mystérieux, l’homme de feu s’agite<br />
violemment sur son siège. Le curé lit encore quelques mots, puis il dit à haute<br />
et intelligible voix : Au nom du Christ sortez d’ici !<br />
Tout à coup la maison reçoit une violente secousse, le sol tremble sous leurs<br />
pas. Un tourbillon de feu passa à travers un pignon de la maison. Tous s’enfuirent<br />
en poussant des cris effrayants.<br />
Le diable était parti, emportant avec lui un des pans de la maison, que l’on n’a<br />
jamais pu retrouver. Le curé s’en retourna tranquillement à son presbytère, le<br />
Petit-Albert sous le bras.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
(L’Avenir, février 1848)<br />
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RESUMO:<br />
O ESTRANHAMENTO COTIDIANO: UMA LEITURA DOS<br />
CONTOS DE JULIO CORTáZAR<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Laila Karla Lima Duarte 1<br />
Heloisa Helena Siqueira Correia 2<br />
O subprojeto “O estranhamento cotidiano: uma leitura dos contos de Julio<br />
Cortázar”, vinculado ao projeto O fantástico: intersecções críticas, debruça-se<br />
sobre as marcas, procedimentos e ambientação fantásticas dos contos de Julio<br />
Cortázar. A pesquisa objetiva: desvendar as amarras narrativas, buscando suporte<br />
na teoria do fantástico enquanto gênero, elaborada pelo estudioso russo Tzvetan<br />
Todorov e na releitura teórica do gênero realizada pelo crítico argentino Jaime<br />
Alazraki, que se configura no que ele denomina neofantástico. Cortázar busca,<br />
nas cenas do cotidiano, aberturas e fissuras por onde se entrevê o fantástico,<br />
e tal visão desafia o leitor no sentido de criar um paralelo entre ficção e teoria.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Fantástico; neofantástico; Cortázar; simultaneidades temporais; metaficção.<br />
O texto que ora se apresenta tem por objetivo desenredar as amarras contidas<br />
nas narrativas de Cortázar, que envolvem o leitor em várias realidades, mesclando<br />
convenções sociais e culturais para encobrir determinada realidade fantástica.<br />
As narrativas do escritor argentino apresentam um fantástico sutil com narrativas<br />
enigmáticas, dualidades temporais, histórias que cruzam tempo e espaço,<br />
narrativas que influenciam na noção de realidade e ficção do leitor, oferecendo<br />
ao mesmo aporias da existência da humanidade e do universo; essas são as<br />
ocorrências a serem analisadas.<br />
Para auxiliar na compreensão das narrativas de Cortázar, é necessário conhecer<br />
as várias teorias existentes sobre o fantástico e suas vertentes; elas oferecem<br />
elementos para dialogar criticamente com os narradores que guiam o leitor por<br />
meio de idiossincrasias, estratégias de envolvimento e elementos ficcionais,<br />
questões que serão tratadas neste texto. Para embasar o olhar crítico-teórico<br />
perante a obra, o procedimento adotado foi o estudo teórico do fantástico<br />
enquanto gênero, por meio das reflexões de Tzvetan Todorov, e o neofantástico<br />
de acordo com Jaime Alazraki, além de outros textos relevantes para a pesquisa.<br />
1 Pesquisadora Voluntária do PIBIC/UNIR, acadêmica do Curso de Letras/Português da Universidade Federal<br />
de Rondônia - UNIR. Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários. lailinhaduarte@hotmail.com<br />
2 Pesquisadora Orientadora PIBIC/CNPq, docente de Literatura <strong>jun</strong>to ao Departamento de Línguas Vernáculas<br />
da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários. heloisahelenah2@hotmail.com<br />
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A partir da leitura dos livros Bestiário, Todos os fogos o fogo e Octaedro,<br />
realizou-se a escolha do primeiro conto a ser trabalhado: “Todos os fogos o<br />
fogo”, do livro homônimo (CORTÁZAR, 1969). Tal escolha se baseou no fato de<br />
o conto entrelaçar duas narrativas, que se desenvolvem simultaneamente em<br />
duas dimensões temporais e espaciais, o que é feito gradualmente por toda a<br />
estrutura da narrativa. Quando a narrativa provoca a ruptura do equilíbrio, o leitor<br />
é instigado a desvendar a forma como foi conduzido a aceitar a intersecção<br />
de dois planos operada pelo narrador.<br />
Com a leitura dos livros Histórias de Cronópios e Famas e Final do Jogo,<br />
veio o anseio em desvendar as amarras contidas no conto “Continuidade dos<br />
Parques”, presente no livro Final do Jogo (CORTÁZAR, 1969). O interesse em<br />
analisar este conto surgiu pelo fato da narrativa começar como uma cena do<br />
cotidiano, a leitura de um livro pela personagem, e ao final transformar-se em<br />
uma ficção dentro de uma ficção. Em outras palavras, o protagonista da narrativa<br />
do conto de Cortázar que estamos lendo é o protagonista do romance que<br />
a mesma personagem está lendo desde o início da história. Esta interligação<br />
entre realidade e ficção e sua consequente angústia deixa o leitor de Cortázar<br />
instigado a investigar até onde vai a realidade que conhece.<br />
O escritor argentino tem a capacidade de manejar a realidade, o cotidiano e o<br />
invisível aos olhos, de tal forma que o leitor sente que poderá estar frente a um<br />
fato fantástico a qualquer instante ou que ações mais triviais do seu cotidiano<br />
revelarão algo extraordinário.<br />
Antes de conhecer Cortázar como contista, vamos conhecê-lo como ensaísta,<br />
suas concepções acerca das sutilezas e estruturas de um conto. Em seu livro<br />
Valise de Cronópio, no capítulo “Alguns aspectos do conto”, Cortázar afirma<br />
que em um primeiro momento deve-se compreender a idéia de estrutura do<br />
conto, pois, os contos têm seu tempo e espaço limitados. O ensaísta compara<br />
o conto a uma fotografia, nas duas formas de artes o trabalho do artista é “(...)<br />
o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas<br />
de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em<br />
par uma realidade muito mais ampla (...)” (CORTÁZAR, 2006, p.151).<br />
A próxima etapa de criação do conto, segundo Cortazar, é a escolha do tema,<br />
pois tem que ser algo que não apenas toque o escritor, mas o leitor deve sentir<br />
o que levou aquele conto a ser escrito. A tessitura do texto deve fazer o leitor<br />
envolver-se na realidade do conto fazendo com que tudo a sua volta desapareça.<br />
O olhar e a forma de escrever de Cortázar fazem com que o leitor se sinta<br />
preso à leitura, coincidindo com o que defende para todos os escritores de<br />
contos. Segundo Cortázar, os escritores de contos devem buscar seqüestrar<br />
o leitor “(...) mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão (...)”<br />
(CORTÁZAR,2006.p.157). Exatamente como o escritor captura seu leitor no<br />
conto “Todos os fogos o fogo”, com seu tema insólito e fantástico.<br />
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Em seu conto “Continuidade dos Parques’’, Cortázar captura o leitor mediante<br />
uma falsa simplicidade e um elemento fantástico, impossível de se desvendar, que<br />
motiva o leitor a questionar: vivo em um mundo real ou em uma realidade ficcional?<br />
O que ora se chama estilo fantástico de Cortázar é o seu peculiar modo de<br />
olhar o cotidiano. De acordo com as palavras do escritor: “Não há um fantástico<br />
fechado, porque o que dele conseguimos conhecer é sempre uma parte e por<br />
isso o julgamos fantástico” (CORTÁZAR, 2006, p.178). A partir desta afirmação<br />
de Cortázar, pode-se observar como o escritor argentino reflete sobre os<br />
mistérios do cotidiano e como o fantástico está sempre em processo.<br />
Como suporte teórico para o gênero fantástico, a primeira referência trabalhada<br />
encontra-se no livro Introdução à Narrativa Fantástica, de Tzvetan Todorov. Para<br />
definir o fantástico, o autor afirma que três condições devem ser preenchidas.<br />
Primeiramente, que a narrativa conduza o leitor a acreditar no mundo das<br />
personagens e indagar entre a explicação natural e sobrenatural. Em seguida,<br />
esta indagação, que Todorov chama de hesitação, deve ser sentida por uma<br />
personagem. E, por último, o leitor terá que decidir qual interpretação adotará,<br />
se alegórica ou poética (TODOROV, 2003).<br />
Todorov afirma que o fantástico dura apenas os instantes de hesitação do leitor,<br />
que em seguida optará por alguma das quatro vertentes em que Todorov subdivide<br />
o fantástico, o que será apresentado em seguida. São elas: fantástico- estranho,<br />
que se relaciona às narrativas em que ocorrem fatos que possuem todas as<br />
evidências de uma história sobrenatural, mas que recebem uma explicação<br />
racional; estranho – puro, que se refere às narrativas em que os acontecimentos<br />
podem ser explicados pelas leis da razão, embora pareçam extraordinários,<br />
singulares ou chocantes provocando no leitor a mesma fascinação do fantástico<br />
(TODOROV, 2003).<br />
O fantástico-estranho e o estranho-puro não podem ser identificados nos<br />
contos que são objetos de nossa análise (TODOROV,2003). Cortázar procede<br />
de modo diverso, os recursos que utiliza deixam o leitor com dúvida a respeito<br />
da possibilidade da existência de mais de um tempo no mesmo espaço, o que<br />
cria existências bilaterais e/ou a possibilidade de vivermos uma ficção.<br />
Em outra vertente, Todorov aborda o maravilhoso; primeiro: o fantástico –<br />
maravilhoso, que abarca as narrativas que, embora comecem no fantástico,<br />
encaminham-se para uma aceitação do sobrenatural; e o maravilhoso – puro,<br />
o estudioso explica que, no maravilhoso, acontecimentos extraordinários não<br />
causam estranhamento nas personagens e no leitor (TODOROV, 2003).<br />
As últimas concepções de Todorov também não são identificadas nos contos<br />
de Cortázar que foram selecionados. Em “Todos os fogos o fogo”, Cortázar<br />
conduz o leitor a uma hesitação sim, porém, não o faz do modo como explica<br />
Todorov. Em “Continuidade dos Parques” a narrativa começa de modo comum<br />
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e não caminha para o sobrenatural; e a personagem não se percebe como<br />
participante de um acontecimento extraordinário. Nos contos em questão a<br />
hesitação do leitor é criada pela leitura simultânea de duas narrativas também<br />
simultâneas e pela expectativa do leitor frente ao inusitado.<br />
Como vimos acima nem sempre o conto dialoga com a teoria. Certa vez Cortázar<br />
afirmou que seu conto era classificado como fantástico por falta de denominação<br />
melhor. Jaime Alazraki afirma que “La dificultad nace, justamente, de ese esfuerzo<br />
por definir comun denominadores en obras aparentemente heyerogéneas y sin un<br />
nexo afin” (ALAZRAKI, 2001, p. 265). Com estas afirmações, passamos a outra<br />
teoria que buscamos para auxiliar nas análises dos contos de Julio Cortázar.<br />
No texto “Que es lo neofantástico?” Jaime Alazraki apresenta uma nova concepção<br />
para pensarmos o fantástico: o neofantástico. Esta concepção baseia-se em três<br />
elementos que a caracterizam: a visão que tem por definição a característica de<br />
trabalhar com duas realidades; a intenção que diz respeito ao tom da narrativa<br />
que não objetiva causar tensão e medo no leitor, e sim buscar uma semelhança<br />
subentendida nos acontecimentos; e o modus operandi, que diz respeito ao<br />
modo como o escritor trabalha para apresentar o elemento fantástico ao leitor.<br />
Vejamos agora como o conto “Continuidades dos Parques” se relaciona com a<br />
teoria apresentada acima. No conto observa-se o conceito de visão proposto<br />
por Alazraki; percebemos que a primeira realidade abre espaço para a segunda<br />
realidade e notamos que as duas podem estar ligadas. Este conceito também é<br />
observado no conto “Todos os fogos o fogo”. O conceito de intenção também está<br />
presente nos contos, uma vez que o medo não é o propulsor da narrativa fantástica<br />
e a narrativa utiliza da vida cotidiana como metáfora para o enigmático. O modus<br />
operandi como modo específico integrante do neofantástico, ao contrário, não é<br />
encontrado nos contos de Cortázar, em que o elemento fantástico é apresentado<br />
gradualmente, contrariando a proposta de Alazraki (ALAZRAKI, 2001).<br />
No conto, “Todos os fogos o fogo” percebe-se como Cortázar consegue<br />
encaminhar sua narrativa pela linha tênue que divide cada vertente defendida<br />
por Todorov. No entanto, Cortázar quebra todos os preconceitos que o leitor<br />
possa ter sobre a intersecção de planos na estrutura da narrativa, pois a sua<br />
maneira de quebrar as crenças do leitor, em relação à intersecção de duas<br />
narrativas em tempo e espaço diferentes, é quase imperceptível.<br />
A sua estratégia no conto “Todos os fogos o fogo” é: na primeira fase coloca<br />
cada narrativa em um parágrafo, alternando-as; na segunda intercala as histórias<br />
nos mesmos parágrafos com apenas a pontuação proporcionando ao leitor o<br />
limiar de cada narrativa; na terceira fase as duas histórias estão completamente<br />
interligadas a tal ponto que, nas duas narrativas, o ponto de combustão é o<br />
mesmo pedaço de pano. Esta gradual <strong>jun</strong>ção conduz o leitor à aceitação da<br />
multiplicidade dos tempos.<br />
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Para que se possa compreender o cruzamento dos planos narrativos é preciso,<br />
ainda, recorrer ao pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito. Quando na<br />
narrativa do escritor argentino, surge o ditado de números encontra-se uma<br />
alusão ao devir, conceito heraclitiano, que incita a transformação, a mutação<br />
das coisas; os números marcam esta transformação, pois nada é como foi há<br />
um instante. O pré-socrático defendia que tudo veio do fogo e tudo ao fogo<br />
retornará, o que pode ser visualizado no conto de Cortázar, quando as duas<br />
histórias interseccionam-se e acabam em fogo. Lembre-se, que segundo o<br />
filósofo, o fogo é vivo e vai “(...) acendendo segundo a medida e segundo a<br />
medida apagando”, (HERÁCLITO, 1996.).<br />
No conto “Continuidade dos Parques”, Cortázar nos tira do hábito cotidiano<br />
de ler um livro e nos convida a mergulhar em uma realidade ficcional. O leitor<br />
inquieta-se diante do acontecimento de uma ficção da ficção. Jorge Luis Borges<br />
investiga a causa desta inquietação, e afirma que assim como Quixote e Hamlet<br />
podem ser leitores e espectadores de suas histórias, nós também podemos<br />
fazer parte de um romance. (BORGES, 1999, p. 50). Mas a convivência com<br />
esta possibilidade é angustiante para o leitor que passa a imaginar quando a<br />
segunda realidade se apresentará.<br />
Como se pode perceber pelo que foi discutido acima, a narrativa de Cortázar,<br />
demonstrativa de determinado olhar particular sobre o fantástico, não se<br />
“encaixa” nas definições de Todorov. Algumas características dos contos “Todos<br />
os fogos o fogo” e “Continuidade dos Parques” impedem a <strong>jun</strong>ção esquemática<br />
de ficção e teoria.<br />
Mesmo buscando outra teoria acerca do fantástico para melhor compreender<br />
Cortázar, nota-se que o contista gosta não só de jogar com seu leitor, mas<br />
também com os teóricos da área. Cortázar “(...) joga com a matéria de que<br />
somos feitos, o tempo. Em algumas narrativas fluem e se confundem duas<br />
séries temporais” (BORGES, 1999, p. 522). A afirmação de Borges sobre<br />
a literariedade de Cortázar também pode ser usada para exemplificar sua<br />
habilidade peculiar de não se ajustar às teorias: “O estilo não parece cuidado,<br />
mas cada palavra foi escolhida. Ninguém pode contar o argumento de um texto<br />
de Cortázar; cada texto consta de determinadas palavras em determinada<br />
ordem” (BORGES,1999, p. 522).<br />
Pode-se afirmar que o mais fascinante na obra de Cortázar é como ele conduz<br />
nosso olhar, não apenas nas narrativas, nos guiando, mas também fora da<br />
história, quando sugere que o olhar do leitor busque encontrar uma fissura da<br />
realidade para mergulhar, mesmo que por alguns segundos, em um universo<br />
não regido pelas leis convencionais que conhecemos e aceitamos todos os dias.<br />
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DAILY LIFE STRANGENESS: A READING OF CORTAZAR´S<br />
SHORT STORIES<br />
ABSTRACT<br />
In this work we explore the marks, procedures and fantastic setting visible in<br />
Julio Cortazar´s stories. We aim at unraveling the narrative ties, supported by the<br />
theory of fantastic literature as a genre, developed by Russian scholar Tzvetan<br />
Todorov and by the theoretical reinterpretation of the genre by Argentinean critic<br />
Jaime Alazraki, which he calls neo-fantastic. Cortázar searches in everyday<br />
scenes, openings and cracks through which the fantastic is seen. We argue that<br />
this view challenges the reader to create a parallel between fiction and theory.<br />
KEYWORDS:<br />
Fantastic literature; neo-fantastic; Cortázar; temporal simultaneity; metafiction.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ALAZRAKI, Jaime. “Qué es lo neofantástico?” In: ROAS, David (Org.). Teorías<br />
de lo fantástico. Arco/ Libros: Madrid, 2001.(Texto Digitalizado)<br />
BORGES, Jorge Luis.“ Magias Parciais de Quixote ”. In: _____. Obras Completas<br />
II. Globo: São Paulo, 1999.<br />
_____. “Julio Cortázar Contos”. In: _____. Obras Completas IV. Globo: São<br />
Paulo, 1999.<br />
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Brasiliense,<br />
1997. v. 1.<br />
CORTÁZAR, Julio. “Continuidade dos Parques”. In: _____. Final do Jogo.<br />
Expressão e Cultura: Rio de Janeiro, 1971.<br />
_____. “Alguns Aspectos do Conto”, “ Do conto breve e seus Arredores”. In:<br />
_____. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006.<br />
_____. “Todos os fogos o fogo”. In: _____. Todos os fogos o fogo. Record: Rio<br />
de Janeiro, 1969.<br />
GENETTE,Gérard. “Utopia Literária”. In: _____. Figuras. Perspectiva: São Paulo,<br />
1966.<br />
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OS PENSADORES. Pré- Socráticos. São Paulo. Nova Cultural, 1996.<br />
TODOROV, Tzvetan. “A narrativa fantástica”. In: _____. As estruturas narrativas.<br />
São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 147-166.<br />
_____. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />
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A EXPRESSÃO DO FANTáSTICO NOS CONTOS “LIGÉIA”, DE<br />
EDGAR ALLAN POE, E “VÉRA”, DE VILLIERS DE L’ISLE-ADAM.<br />
RESUMO<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Lígia Pereira de Pádua<br />
Mesmo nos séculos em que as luzes da ciência monopolizam todas as áreas<br />
do saber, os homens procuram decifrar o mundo via filosofias menos ortodoxas.<br />
Essa curiosidade leva-os a se refugiarem em doutrinas ocultistas. No domínio<br />
literário, esse ímpeto foi expresso pela literatura cunhada de fantástica e<br />
caracteriza-se pela presença do sobrenatural. A literatura de veia fantástica<br />
remonta à Idade Média, mas como afirma Malrieu (1992), o seu estabelecimento<br />
enquanto gênero literário começa a ser ensejado pelos romances góticos na<br />
França e na Inglaterra no século XVIII, e sua autonomia só encontrou terreno<br />
fértil para florescer com o Romantismo. Assim, o conto fantástico ganha fôlego,<br />
primeiramente, com as obras do alemão E.T.A Hoffmann e, posteriormente,<br />
com as do norte-americano Edgar A. Poe em meados do século XIX. Dessa<br />
forma, o autor francês Villiers de l’Isle-Adam, amplamente influenciado por<br />
Poe, pretende, através do uso dos contornos e conteúdos próprios do gênero<br />
fantástico, evocar a revelação de uma realidade superior, representada pela<br />
busca ascética do Absoluto. Assim sendo, o objetivo do presente estudo é<br />
fazer uma leitura comparativa das obras “Ligéia”, de Poe e “Véra”, de Villiers<br />
no intuito de verificar a presença do fantástico como núcleo estruturador de<br />
ambas as narrativas.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Fantástico; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam; Conto Poético.<br />
O fantástico no século XIX<br />
O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis<br />
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV,<br />
1992, p.31).<br />
A literatura fantástica responde à sede metafísica proveniente da desmistificação<br />
da ideia cartesiana do mundo como um todo inteligível. Hoje, vulgarizado pelo<br />
uso, o termo “fantástico” é aplicável a qualquer situação, porem, no universo<br />
literário, ele caracteriza-se pela presença do sobrenatural, ou seja, pela intromissão<br />
brutal do mistério na vida real. Se a literatura de veia fantástica remonta à Idade<br />
Média, se estabelece como gênero no século XVIII e adquire autonomia com<br />
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a subjetividade aclamada pelo Romantismo e pelas obras do alemão E.T.A<br />
Hoffmann; na França, o fantástico ganha ímpeto em meados do século XIX<br />
com o Simbolismo/ Decadentismo pois, reproduz artisticamente o sentimento<br />
de fin de siècle – sua linguagem foi usada para expressar esteticamente os<br />
aspectos negativos da alma humana, outrora condenados pela estética clássica.<br />
O gênero fantástico configura-se, assim, como um refúgio frente ao império<br />
da razão e se estabelece como uma expressão de resistência à sociedade<br />
da época, impregnada pelos valores burgueses, cujo epicentro era o capital.<br />
Além disso, o cenário literário francês da época encontra no norte-americano<br />
Edgar Allan Poe um grande expoente desse gênero.<br />
Introduzido na França por Charles Baudelaire, os contos de Poe fizeram muito<br />
sucesso na França devido à influência de suas reflexões estéticas na confecção<br />
de suas obras, apesar da “estranheza de suas invenções”. Assim também o é o<br />
escritor francês: põe a lógica a serviço da poesia burilando os conteúdos (desde<br />
os mais assustadores) em função do efeito que quer produzir no seu leitor.<br />
E é justamente nesse contexto que o autor francês Villiers de l’Isle-Adam,<br />
grande inspirador do movimento simbolista, entra em contato com as obras<br />
do autor norte-americano. Villiers encontra em Poe uma referencia, não só<br />
em questões místicas e metafísicas, mas também estéticas. O seu gosto pelo<br />
macabro, herdado de Poe, encontra no gênero fantástico um meio profícuo<br />
para se propagar; também fiel ao seu precursor, Villiers elege o conto – pela<br />
sua brevidade e seu estilo lacônico capaz de engendrar o leitor em um mundo<br />
diferente do real – para exprimir suas criações.<br />
O objetivo do presente estudo é, dessa forma, testemunhar o dialogo entre os<br />
dois autores – embora inseridos em momentos históricos diferentes – no que<br />
toca, especialmente, à expressão do fantástico. Para tanto, foram escolhidos dois<br />
contos “Ligeia” (1838) de Poe e “Véra” (1876) de Villiers que, apesar de suas<br />
diferenças no que concerne a sua estruturação formal e mesmo ao tratamento<br />
do gênero, são exímios exemplos de contos fantásticos cujo discurso poético<br />
evoca o sobrenatural como meio de transportar para o Absoluto os espíritos<br />
inadaptados à realidade burguesa.<br />
A expressão do fantástico em “Ligeia” e em “Véra”<br />
Tanto a trama do conto de Poe, “Ligeia” 1 , como a de “Véra” 2 de Villiers obedecem<br />
a uma mesma dinâmica: o enclausuramento dos protagonistas depois da morte<br />
prematura de suas respectivas amadas esposas; enviuvados, enlutados eles<br />
se isolam em suas moradas e se fecham a qualquer contato com o mundo<br />
exterior. Motivados pelo entorpecimento da consciência causado pela dor da<br />
1 O conto “Ligeia” foi publicado pela primeira vez no Americam Museum of Science, Literature and the Arts em<br />
setembro de 1838, e incluído em 1840 em Tales of the grotesque and arabesque.<br />
2 O conto “Véra” foi publicado em revistas em 1874, 1876 e 1910, e incluído no livro Contes Cruels em 1883.<br />
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perda (e também pelo uso do ópio, no caso do protagonista de “Ligeia”), eles<br />
trazem suas amadas de volta à vida, seja por meio da suposta transfiguração<br />
do cadáver de Lady Rowena, segunda esposa do viúvo, no da falecida Ligéia;<br />
seja pelo delírio sonâmbulo do conde de Athol, saudoso viúvo, que restabelece<br />
sua rotina com o fantasma de Véra “como se a morte nunca tivesse existido”.<br />
A epigrafe do conto “Ligeia” e a frase de abertura de “Véra” servem de mote<br />
para a trama e prenunciam ao leitor os fenômenos extraordinários que estão<br />
prestes a ocorrer. Em “Ligeia”, a epigrafe é supostamente atribuída a Joseph<br />
Glanvil: “ [...] o homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente<br />
à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade (MENDES, 1981, p.64)<br />
ideia que é reiterada pelo poema Conqueror Worm (em português, verme<br />
vencedor) composto pela enferma Ligeia em seu leito de morte; já em Véra, a<br />
frase que encabeça o conto O Amor é mais forte que a Morte, disse Salomão:<br />
sim, seu misterioso poder é ilimitado (DOMINGOS, 2009, p.83) é, como se vê,<br />
atribuída a Salomão , porém, sua versão original diz: O amor é forte, é como<br />
a morte. Assim sendo, o narrador de Véra se apropria da fala de Salomão<br />
transformando-a em favor da coesão da trama. Fica evidente, dessa forma,<br />
o dialogo entre os dois contos, pois, ambos pregam que a força da vontade<br />
e do amor é capaz, até mesmo, de superar a morte. Essa trama mirabolante<br />
encontra, assim, no fantástico o meio propicio para ser concretizada uma vez<br />
que seu intuito é penetrar no lado mais obscuro da mente humana, reconciliando<br />
o mundo material e o espiritual. Os contos em questão responderão, dessa<br />
forma, aos fundamentos básicos relativos à estruturação do gênero fantástico<br />
com o objetivo de levar o leitor a indagar-se sobre a efetiva instauração do<br />
fenômeno sobrenatural.<br />
Segundo Joel malrieu (1992) em Le Fantastique, o gênero conta com dois<br />
elementos constitutivos básicos: uma personagem e um elemento perturbador<br />
(seja um fantasma, um morto-vivo, a presença do duplo, etc.) que se caracteriza,<br />
ou não, por manifestações de loucura, alucinação, que possam desestabilizar<br />
profundamente o equilíbrio da personagem e do leitor. Para facilitar a identificação<br />
entre ambos, a personagem deve ter configurações bem realistas; verificase<br />
que grande parte dessas personagens estabelece uma imediata empatia<br />
com o leitor, já que ela é um membro benquisto pela sociedade (não raro são<br />
figuras ilustres e abastadas), porém, é uma figura ensimesmada que está mais<br />
predisposta ao fenômeno sobrenatural por estar afetiva, intelectual e socialmente<br />
isolada de seu contexto. Em “Ligeia”, essa personagem é o próprio narrador<br />
que, apesar de anônimo, conta e escreve a sua história de amor com Ligeia,<br />
antes e depois de sua morte. Entorpecido pelas penosas lembranças, ele se<br />
revela ensimesmado e prefere o isolamento ao convívio social. É o que acontece<br />
quando, devastado pela morte da amada, resolve refugiar-se em uma velha<br />
abadia em ruínas no interior da Inglaterra:<br />
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Morreu. E eu, aniquilado, pulverizado pela tristeza (...) adquiri e restaurei,<br />
em parte, uma abadia, que não denominarei, em um dos mais incultos e<br />
menos frequentados rincões da bela Inglaterra. (MENDES, 1981, p.72,<br />
grifo nosso).<br />
Em “Véra”, a personagem que presencia o elemento sobrenatural é o protagonista<br />
conde de Athol, que, apesar do título nobiliárquico e das posses, prefere exilarse<br />
com sua amada na sua propriedade. E assim ele é apresentado ao leitor:<br />
um jovem senhor (de trinta a trinta e cinco anos) de origem aristocrática – existe<br />
aqui também o contraste entre o conforto financeiro e impotência perante a<br />
morte e a empatia com o leitor é fomentada pela descrição do conde enlutado<br />
pela recente morte da esposa:<br />
Nos arredores do sombrio bairro Saint-Germain (...) Um homem de trinta<br />
a trinta e cinco anos, de luto, com o rosto mortalmente pálido, desceu<br />
(...). Era o conde de Athol. (DOMINGOS, 2009, p. 90, grifo nosso).<br />
E quando o elemento perturbador entra em cena, os frágeis fios que ligavam<br />
a personagem à realidade se rompem; na maior parte do tempo, todo esse<br />
episódio mostra-se interno à personagem, revelando seus aspectos interiores<br />
mais doentios, o que lhe atribui uma total duplicidade emocional e psíquica.<br />
Em “Ligeia”, a revelação do fenômeno é sugerida gradualmente, mas sem a<br />
presença de nenhum criado e estando a consciência do narrador abalada<br />
pela droga, a percepção do fenômeno é confiada estritamente a ele. Porém,<br />
Lady Rowena, em uma de suas crises, parece também testemunhá-lo, mas<br />
o narrador, incrédulo, não a leva em consideração, uma vez que seu estado<br />
mental estava muito debilitado pela doença.<br />
Já no conto “Véra”, o “delírio” da personagem é testemunhado pelo criado<br />
Raymond. De início, ele fica estupefato com a atitude do conde, mas resolve não<br />
contrariá-lo, temendo que outro choque com a realidade lhe seja fatal, como um<br />
sonâmbulo que é acordado de seu sono, e por fim ele acaba sendo envolvido<br />
pela situação. Raymond parece vivenciar o processo de “verossimilhização”<br />
evocado pela teoria de ROAS (2001): tomado pelo sentimento de piedade,<br />
ele começa por compactuar com o delírio de seu patrão, porém, ao passar<br />
pelo processo de naturalização do fenômeno, ele o vive quase que na mesma<br />
intensidade que o protagonista. Se a obra leva o leitor a sentir empatia pelo<br />
protagonista, pela sua condição miserável (do ponto de vista existencial), o<br />
leitor identifica-se mais que prontamente com Raymond, já que ambos são<br />
espectadores que acompanham de perto as peripécias da alma atormentada<br />
do conde. Já a hesitação em relação ao fenômeno fantástico é levada a cabo<br />
no final da narrativa, com o aparecimento da chave do túmulo onde estava<br />
sepultada Véra, episódio que não é testemunhado pelo criado.<br />
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Para produzir esse efeito de hesitação, muitos autores lançam mão da narração<br />
em primeira pessoa para conferir dubiedade ao relato. Como é consensual,<br />
em uma narração desse tipo, a tonalidade do que está sendo relatado é dada<br />
pela personagem, é ela quem manipula as informações, pois tudo é visto e<br />
sentido pela sua perspectiva. Assim, em “Ligeia” a primeira pessoa insere<br />
diretamente o leitor na narrativa; isso lhe confere o sentimento de dominar toda<br />
narração, reforçando o processo empático com o narrador personagem. Mas,<br />
por outro lado, ele também é engendrado na trama de maneira a dificultar seu<br />
distanciamento crítico frente aos acontecimentos:<br />
Mesmo na infância, eu tomara gosto por tais fantasias, e agora elas me<br />
voltavam como uma extravagância do pesar. Ai! sinto quanto de loucura,<br />
mesmo incipiente pode ser descoberta nas tapeçarias ostentosas e<br />
fantasmagóricas (...). Tornei-me um escravo acorrentado às peias do ópio,<br />
e meus trabalhos e decisões tomavam o colorido de meus sonhos.”<br />
(MENDES, 1981, p.73, grifo nosso)<br />
Aqui, o narrador, em tom confessional, conta que sempre tivera a imaginação<br />
fértil, e que, por conta do seu luto, do uso abusivo do ópio e do ambiente<br />
fantasmagórico do quarto, seus trabalhos e decisões “tomavam o colorido de<br />
(seus) sonhos”. Assim, o leitor é levado a desconfiar do poder de julgamento<br />
do narrador e, em ultima análise, dos fatos por ele narrado. A trama é tecida<br />
de forma a provocar a hesitação, a dúvida.<br />
Já, em “Véra”, a narração é em terceira pessoa do singular. Segundo Grojnowski<br />
(2000), esse tipo de foco narrativo favorece o desaparecimento do narrador<br />
para dar mais destaque ao que está sendo narrado assim, o leitor tem a ilusão<br />
de que os acontecimentos falam por si próprios. O narrador pode, desse modo,<br />
ser caracterizado como onisciente, uma vez que relata as ações da personagem<br />
ao passo que sinaliza seus impulsos interiores. Mas, apesar da narração em<br />
terceira pessoa se pretender mais imparcial, a onisciência garante a hesitação<br />
por parte do leitor, uma vez que o narrador onisciente reporta os fatos segundo<br />
a sua interpretação.<br />
Sendo assim, seja de primeira ou de terceira pessoa, o narrador e o leitor selam<br />
um pacto no qual o fantástico se fundamenta: a hesitação diante do fenômeno<br />
sobrenatural. Ora para que tal hesitação ocorra, o narrador deve ganhar<br />
credibilidade <strong>jun</strong>to ao leitor e, para tanto, ele se vale de atitudes realistas como<br />
a da documentação espacial da trama. Assim, no que se refere ao espaço,<br />
a narração fantástica acontece em locais aparentemente comuns, grandes<br />
cidades ou até mesmo em propriedades rurais, porém em lugares isolados do<br />
convívio social – aí a literatura fantástica não economiza nas referências góticas<br />
(castelos, mansões mal-assombradas, cemitérios). Como afirma Gama-Khalil<br />
(2009), Poe, em seus contos, atribui a todos elementos ficcionais uma função<br />
importante na geração de sentidos e, desse modo, a atmosfera fantástica dos<br />
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contos poeanos é, na maioria das vezes, desencadeada por intermédio da<br />
constituição de espaços onde a história se desenrola; a opção pelo espaço<br />
fechado é determinada, assim, não só em função da aclamada unidade de<br />
lugar, mas também pela necessidade de gerar o sentido de insulamento. O<br />
insulamento espacial, dessa forma, faz eco à personalidade hermética da<br />
personagem e às mudanças conferidas ao ambiente pela presença do elemento<br />
perturbador. O espaço é configurado, então, pelas dimensões do protagonista<br />
em uma perspectiva determinista, em voga no século XIX. Em sentido amplo, o<br />
determinismo geográfico é a concepção segundo a qual o meio ambiente define<br />
ou influencia fortemente a fisiologia e a psicologia humana. Em “Ligeia”, como<br />
já foi dito, o narrador, devastado pela morte da amada, refugia-se em uma velha<br />
abadia em ruínas (referência notadamente gótica) no interior da Inglaterra. A<br />
construção espacial é muito rica e influi diretamente na percepção do fenômeno<br />
sobrenatural, ao restaurar a velha abadia, o quarto onde o protagonista passará<br />
as noites com a sua segunda esposa é reconstruído de modo a criar um cenário,<br />
pleno de sugestões fantasmagóricas como uma câmara mortuária:<br />
O aposento achava-se numa alta torre da abadia acastelada [...]o leito<br />
nupcial –, encimado por um dossel semelhante a um pano mortuário. Em<br />
cada um dos ângulos do quarto se erguia um gigantesco sarcófago de granito<br />
negro tirado dos túmulos dos reis [...]. (MENDES, 1981, p.75, grifo nosso).<br />
Se em “Ligeia” a ambientação fantasmagórica do quarto favorece a aparição<br />
do elemento sobrenatural, em “Véra”, o elemento sobrenatural provoca uma<br />
mudança no ambiente que pode ser visualizada pelo jogo entre claro/escuro<br />
atribuído a adjetivos que simbolizam, respectivamente, a presença e a ausência<br />
de Véra. Como já fora antes citado, a narração se abre com adjetivos que<br />
remetem ao sombrio (“sombrio”, “mortalmente pálido”), porém quando o conde<br />
de Athol sente a presença de Véra, o ambiente se ilumina:<br />
Os objetos, no quarto, estavam agora iluminados por uma claridade até<br />
então imprecisa, a de uma lamparina, azulando as trevas, e que a noite,<br />
erguida no firmamento, fazia aparecer ali como uma estrela (DOMINGOS,<br />
2009, p. 95, grifo nosso).<br />
O personagem fantástico é desse modo, arrastado para um espaço singular de<br />
onde se irradia o sentimento de estranheza que faz eco à sua solidão, à sua<br />
necessidade de escapar da convivência social. Quanto mais ele penetra nesse<br />
espaço mais ele se recolhe, mais ele adentra a penumbra de seu inconsciente.<br />
A experiência vivida pelos heróis se faz sentir também na demarcação temporal.<br />
Quanto a esse aspecto, a narrativa fantástica conta com o tempo histórico real,<br />
que comumente costuma ser recente e historicamente datado em relação ao<br />
momento da narração, porém, quando ocorre o fenômeno sobrenatural, há<br />
uma pausa, o arrêt du temps, ou seja, a suspensão da linearidade temporal,<br />
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conferindo uma ambientação mítica e onírica ao que está sendo narrado.<br />
Assim, a personagem fantástica é desenraizada de seu contexto social e<br />
espaciotemporal, pois prefere viver alienada e exilada.<br />
“Ligeia” é uma metaficção, pois o narrador conta e ao mesmo tempo escreve sua<br />
própria história. Há, assim, a imbricação de dois tempos: o tempo da narrativa,<br />
presente à enunciação, e o tempo da história, do passado, das reminiscências.<br />
Esse recurso narrativo faz com que o narrador não enxergue os fatos contados<br />
com clareza já que a distância temporal entre os acontecimentos e sua narração<br />
reveste o conto de um fog, de uma nebulosidade eloquente.<br />
Em “Véra”, a superposição do irreal e do real faz com que o tempo da narrativa<br />
esteja sempre no limiar entre o histórico real, medido pela linearidade, e o<br />
tempo psicológico, interior à personagem, permeado por pausas, feed-back,<br />
culminando na total paralisação do tempo. O arrêt du temps é levado a cabo<br />
no fim da narrativa, quando o conde de Athol perde, pela segunda vez, a<br />
sua amada quando recobra a sua consciência e se dá conta que ela está,<br />
efetivamente, morta:<br />
[...] o balanço do pêndulo retomou gradativamente sua imobilidade. A<br />
certeza de todos os objetos desapareceu subitamente. A opala morta<br />
não brilhava mais. ( DOMINGOS, 2009, p. 102, grifo nosso).<br />
A hesitação que anuncia o fantástico está justamente no fato de que, assim,<br />
que o conde acorda de seu estado sonâmbulo, a chave do mausoléu onde<br />
estava sepultada Véra cai no tapete do quarto nupcial. Se, para Todorov (1992),<br />
a referida chave preconiza a presença do elemento maravilhoso, o presente<br />
estudo é tentado a defender que, pelo contrário, ela ativa o fenômeno fantástico.<br />
Pois, uma vez que se é levado a acreditar que de fato foi o espectro de Véra o<br />
responsável pelo reaparecimento da chave, como fora sugerido pelo próprio<br />
narrador; o estado de espírito, abalado, do conde pode induzir o leitor de que<br />
tudo não passa de outro delírio, causado pelo impacto, quando confrontado<br />
pela segunda vez com a dura realidade.<br />
Uma vez superada todas as possíveis interpretações dos mais variados leitores,<br />
nos seus diferentes contextos histórico-culturais (o leitor do século XIX poderia<br />
estar mais propenso à explicação sobrenatural de ambos os contos, já o do<br />
século XX, depois do incurso da psicanálise, poderia optar pela explicação<br />
lógica, recorrendo ao entorpecimento da consciência pela dor), o que perdura<br />
é a hesitação. Em qualquer época, o leitor encontra-se em uma corda bamba<br />
suspensa entre a realidade palpável e a impalpável realidade sobrenatural, é<br />
o que, de fato, caracteriza a instauração do gênero fantástico.<br />
Já em “Ligeia”, essa hesitação vai sendo tecida ao longo do texto, seja pelo<br />
recurso à narração em primeira pessoa, seja pelo constante uso de entorpecentes<br />
pelo narrador, pela distância temporal entre os acontecimentos e sua narração,<br />
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pelo ambiente fantasmagórico, ou até mesmo pela declaração do narrador de<br />
que desde criança ele tomara gosto pelas fantasias. Por outro lado, a epigrafe<br />
do conto, reiterada pela filosofia de Ligeia de que “o homem não se rende<br />
inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade”, pode dar<br />
indícios ao leitor de que ela superou a barreira que separa o mundo espiritual<br />
e o material para voltar ao mundo dos vivos se apropriando do falecido corpo<br />
de Lady Rowena.<br />
A presença da morte, desse modo, se faz mister em ambos os contos uma vez<br />
que ela é trabalhada esteticamente pelo gênero fantástico como o elo entre o<br />
mundo material e o espiritual. Porém, se em Poe o fantástico nasce não dos<br />
sonhos, mas de um mórbido poder do terror exercido na consciência; em<br />
Villiers, predomina o fantástico essencialmente simbolista, aquele marcado<br />
pelo apego ao onírico e à espiritualidade.<br />
Conclui-se, dessa maneira, que “Ligeia” e “Véra” são contos elaborados<br />
poeticamente através do discurso fantástico, de teor altamente transgressor.<br />
Assim, eles se comunicam, já que em ambos a presença do amor e da morte<br />
é reivindicada como meio de superação da realidade material para se alcançar<br />
o absoluto, levando o leitor, por meio de um processo catártico de identificação<br />
com a personagem, a evadir-se das concepções positivistas do mundo, taxadas<br />
como verdade absoluta.<br />
EXPRESSION OF THE FANTASTIC IN THE NOVELS “LIGEIA”<br />
BY EDGAR ALLAN POE AND “VÉRA” BY VILLIERS DE L´ISLE-<br />
ADAM<br />
ABSTRACT<br />
Even in the centuries when the lights of science monopolize all the knowledge,<br />
men had been finding decode the world by philosophies less orthodox. This<br />
curiosity leads them to refuge in occult doctrines. In the literature’s domain, this<br />
impulse was express by the literature named fantastic and it is characterized by<br />
the presence of the supernatural. This fantastic literature goes back to Middle<br />
Age but, like Malrieu (1922) says, its establishment as literary genre starts to be<br />
initiated by the gothic´s novel in France and in England in the 18th century, and<br />
its autonomy only found fertile ground to flourish with the Romanticism. Therefore,<br />
the fantastic novel gain breath, first of all, with the novels of the German E.T.A<br />
Hoffmann, and after, with the work of the American Edgar A. Poe in the middle<br />
of the 19th century. In this way the French author Villiers de l’Isle-Adam, largely<br />
influenced by Poe, intend, by the contours and contents of the fantastic genre,<br />
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to evoke the revelation of a superior reality, represented by the ascetic pursuit of<br />
the Absolute. Thus the aim of this study is produce a comparative lecture of the<br />
novels “Ligeia” by Poe and “Véra” by Villiers in order to analyze the fantastic´s<br />
presence like a structuring cadre of both narratives.<br />
KEY-WORDS:<br />
Fantastic; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam; Poetic Novel.<br />
REFERENCIAS<br />
DOMINGOS, N. A tradução poética: Contes Cruels de Villiers de l´Isle –Adam,<br />
2009, 278f, Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências<br />
e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2009.<br />
GAMA-KHALIL, M. “O espaço ficcional e a instauração do terror nos contos<br />
de Edgar Allan Poe”. In: Para Sempre Poe - Congresso Internacional 200 anos<br />
do nascimento de Edgar Allan Poe, 2009, Belo Horizonte - MG. Caderno de<br />
Resumos: Congresso Internacional para Sempre Poe. Belo Horizonte - MG :<br />
Fale - UFMG, 2009.<br />
GROJNOWSKI, D. Lire la nouvelle. Paris : Armand Collin, 2000.<br />
MALRIEU, J. Le Fantastique. Paris : Hachette, 1992.<br />
MENDES, O. “Ligeia”. In: Contos de Terror e Morte. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 1981.<br />
ROAS, D. Introducción, compilación de textos y bibliografia. In: ALAZRAKI, J.<br />
Teorías de lo fantástico. Madrid : Arco/Libros, 2001.<br />
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa<br />
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1992.<br />
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ASPECTOS DO DUPLO NOS CONTOS “O EX-MáGICO DA<br />
TABERNA MINHOTA”, DE MURILO RUBIÃO, E “CARTA A UMA<br />
SENHORITA EM PARIS”, DE JULIO CORTáZAR<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Luciano Antonio<br />
As manifestações do duplo na literatura, ao mesmo tempo em que dificultam o<br />
entendimento unívoco do tema, trazem uma riqueza de leituras bem-vindas ao<br />
meio literário. Procuramos, neste trabalho, cotejar dois contos que apresentam<br />
o duplo de modo distinto. Na narrativa de Murilo Rubião, o Outro aparece no<br />
desdobramento da figura do mágico insatisfeito com seus poderes extraordinários<br />
que se converte em funcionário público para se livrar de tal “problema”<br />
e, assim, ao anular suas magias, mergulha na angústia de uma fastidiosa<br />
existência burocrática. A busca da identidade passa pela atitude de escapar<br />
da consciência de si através do mergulho em um “novo” estar no mundo. De<br />
outro modo, temos no texto de Cortázar um homem que, ao também tentar<br />
refúgio dos seus conflitos particulares, muda-se para o apartamento de uma<br />
amiga e se vê invadido por seu duplo manifestado no insólito ato de vomitar<br />
coelhinhos. Estes pequenos seres alternam sua rotina e tornam-se um grande<br />
obstáculo, tendo o personagem que recorrer ao suicídio para se ver “livre”<br />
deles. Assim, o duplo nesse conto de Cortázar pode ser lido pela perspectiva<br />
de Jaime Alazraki, via estudos da psicanálise freudiana, como sendo uma<br />
espécie de metáfora do inconsciente.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Rubião; Cortázar; duplo; fantástico.<br />
Tema recorrente na literatura, o duplo surgiu e continua a aparecer sob as mais<br />
variadas formas. Diversas também são as abordagens críticas sobre o tema.<br />
Para alguns autores o duplo é assunto cultivado na antiguidade e está ligado à<br />
própria existência do homem que sempre buscou explicar a si mesmo. Contudo,<br />
dentro desse percurso extenso, tal fenômeno pode ser analisado a partir de<br />
dois momentos distintos, como nos aponta Adilson dos Santos:<br />
O percurso de representação do duplo na história da literatura mundial pode<br />
ser dividido em duas fases: na primeira, o duplo aparece como figuração do<br />
homogêneo; na segunda como figuração do heterogêneo. A primeira fase<br />
vai da antiguidade até o final do século XVI, deixa transparecer a concepção<br />
unitária do homem. (...) o duplo simboliza o idêntico e aparece retratado<br />
através de gêmeos ou de sósias: dois personagens dotados de identidade<br />
própria e sustentando uma subjetividade autônoma, apresentam perfeita<br />
62
semelhança física e, às vezes, até comportamental, a ponto de dificultar a<br />
sua identificação. (SANTOS, p. 66, 2009).<br />
Nessa primeira fase há uma tendência ao homogêneo e o duplo passa a ser<br />
um intercâmbio entre duas figuras representadas. Todavia, a partir do final<br />
do século XVI inicia-se o crescente abandono dessa imagem unitária e, em<br />
contrapartida, temos a introdução da subjetividade enquanto motivação desse<br />
fenômeno, como salienta Santos:<br />
(...) ocorre uma abertura para o espaço interior do homem e o duplo passa a<br />
figurar a desagregação da personalidade, assinalando, assim, uma radical<br />
mudança em sua concepção. (...) No século XIX, as investigações sobre a<br />
natureza interna do homem, de um ponto de vista científico, tornam-se mais<br />
agudas. Somadas ao clima favorável do romantismo a explorar e reconhecer<br />
outras esferas de percepção humana, tais especulações se projetam na<br />
criação artística; ou seja, ao colocar o sujeito no centro de suas questões,<br />
o século XIX contribui para a emergência do tema da duplicidade do “eu”<br />
em uma série de narrativas. (SANTOS, p. 68, 2009).<br />
Vale destacar também outra divisão sobre a origem do duplo. Há o duplo exterior<br />
cuja origem é extrínseca ao “eu” e do duplo interior, que ao contrário daquele tem<br />
sua gênese no próprio sujeito. Pode-se dizer que no primeiro caso, o do duplo<br />
exterior, existe um confronto entre o “eu” e o outro. A imagem do ser surge em<br />
contraposição à visão que o externo faz aparecer. Neste embate, o que vem à<br />
tona é a questão da identidade através do choque com o diferente. Assim, está em<br />
jogo a alteridade que significa a aceitação do outro, daquele que é estrangeiro.<br />
O duplo interior surge da divisão interna do “eu” como se fosse um conflito<br />
psíquico que gera sentimentos (ansiedades, perturbações, angústias, medos,<br />
pânicos, etc). Este segundo exterioriza-se como uma sombra. Tal materialização<br />
levaria o sujeito a enxergar esse outro como algo atemorizante e até aparecer<br />
em forma de um antagonista. (SANTOS, 2009). O diferente se manifesta também<br />
numa segunda personalidade que convive e pode surgir em determinados<br />
momentos, fazendo com que haja uma mescla de sujeitos no próprio ser. Tal<br />
perspectiva ganha forças a partir de um ensaio de 1919 em que Freud explica<br />
o conceito de unheimliche em sua língua materna, alertando, especialmente, a<br />
dificuldade de se fixar-lhe um sentido preciso. Depois de percorrer pelas várias<br />
nuances do termo no dicionário, expõe que tal palavra nasce de um paradoxo,<br />
pois, partindo do adjetivo heimliche, o significado corresponderia àquilo que é<br />
familiar, conhecido. Com o acréscimo do prefixo un, fundamental à nova palavra,<br />
há um feixe de sentido contrário, que passa também ao significado de algo<br />
que não é familiar. Nessa fusão, o termo unifica ideias contrárias denotando<br />
o “estranho-familiar”. Portanto, a palavra desliza para um duplo de si mesma<br />
– como se o vocábulo, de algum modo, estivesse frente a um espelho. Assim,<br />
segundo Freud, o nosso outro, uma espécie divisão do indivisível, surge da<br />
projeção dos desejos e medos recalcados no inconsciente.<br />
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Objetivando verificar alguns aspectos do duplo na literatura contemporânea,<br />
pretendemos cotejar aqui dois contos que apresentam esse fenômeno de<br />
modo peculiar. Trata-se do texto “O Ex-mágico da taberna minhota” de Murilo<br />
Rubião e “Carta a uma senhorita em Paris” de Julio Cortázar. E por estes dois<br />
autores estarem ligados à literatura fantástica, apontaremos também como o<br />
duplo pode funcionar como um dos componentes deste gênero.<br />
No conto de Murilo Rubião observa-se desde o início o tom melancólico e<br />
conformista do personagem-narrador. O texto começa com a descrição atual<br />
do sujeito. “Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo<br />
maior”. (RUBIÃO, 1999, p. 7). Estar empregado na burocracia do estado não<br />
parece ser o motivo ou a explicação para o humor do personagem. Na visão<br />
do leitor implícito, a narrativa se encaminha para uma espécie de lamentação<br />
do personagem ou apenas uma descrição dos problemas que o levaram<br />
ao desconsolo. Todavia, a própria identidade do narrador surge como algo<br />
insólito: “(...) Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. Um dia dei<br />
com meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A<br />
descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o<br />
dono do restaurante.” (RUBIÃO, 1999, p. 7). Temos aqui um elemento insólito<br />
que expõe a não-identidade social do narrador. Essa primeira imagem anuncia<br />
as especificidades tanto no modo de narrar a história quanto na construção<br />
do próprio personagem.<br />
Na sequência do texto, respondendo a estranheza revelada pelo dono do<br />
restaurante ao se ver retirado do bolso, o narrador confessa: “O que poderia<br />
responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação<br />
para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado<br />
e entediado.” (RUBIÃO, 1999, p. 7). O espelho, um dos elementos mais comuns<br />
nas narrativas do duplo, funciona como meio para choque entre o eu que não se<br />
via, apenas sentia tédio e aquela imagem de um sujeito com marcas físicas da<br />
passagem do tempo. Temos aqui um encontro do sujeito com si mesmo. Além<br />
de ter se visto pela primeira vez, ou melhor, ter se descoberto enquanto ser<br />
social no espelho da Taberna Minhota, o personagem dá-se conta daquilo que<br />
lhe falta e o incomoda: percebe-se apenas como um homem sem identidade,<br />
vivendo num mundo para ele desprovido de sentido. Todavia, apesar da<br />
“mágica” que foi tirar o dono do restaurante do bolso, ao leitor, o personagem<br />
representaria um funcionário público cansado de sua rotina de trabalho, algo<br />
que se reflete na visão de mundo do narrador.<br />
Contudo, o desdobramento do insólito presente no início do texto surge com a<br />
longa descrição da outra faceta do funcionário público: sua grande habilidade<br />
de fazer mágicas. Temos, assim, um segundo momento da narrativa, ou seja,<br />
retoma-se o que seria a primeira fase do narrador, um homem que tem como<br />
principal ocupação os seus truques de magia. Tal imagem não seria de se<br />
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estranhar caso essa sua prática fosse apenas algo aprendido, uma forma de<br />
ganhar a vida. Embora o dono do restaurante o tenha contratado para fazer<br />
mágicas, como uma profissão, o que vemos na continuidade do texto é o<br />
insólito fato de os truques surgirem de maneira involuntária. O que apareceria<br />
como uma ilusão para o espectador, torna-se “real” e o que é mais absurdo,<br />
sem que o mágico possa controlar esses seus truques. Interessante notar que<br />
a habilidade de fazer mágicas, algo normalmente prazeroso, converte-se para<br />
o personagem-narrador em motivo de tristeza, angústia e depressão. É como<br />
se houvesse um “duplo” que fizesse surgir diferentes objetos e animais nas<br />
horas mais impróprias, como descreve o narrador:<br />
Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando<br />
na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. (...) Se, distraído,<br />
abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me<br />
surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois<br />
outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino<br />
lhes dar. Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por<br />
um socorro que não poderia vir de parte alguma. (...) Também, à noite, em<br />
meio ao sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro<br />
ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido. (RUBIÃO, 1999, p. 9-10).<br />
Não é o mágico que controla ou produz os truques e sim estes que surgem e<br />
incomodam o personagem. Há uma mudança na lógica, pois aquilo que seria<br />
apenas uma ilusão de ótica, algo explicável pela razão, ou seja, a mágica<br />
como criação do homem para enganar o espectador, passa a funcionar neste<br />
texto de Murilo Rubião como algo interno, inerente ao próprio homem. Vale<br />
destacar que o estranhamento se dá na percepção do leitor e não do narrador<br />
que aceita o evento, tentando lidar com seus efeitos. E é neste contexto que<br />
o personagem utiliza sua própria mágica para tentar se livrar do problema. A<br />
saída foi arquitetar a sua própria morte: “Urgia encontrar solução para o meu<br />
desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu<br />
desconsolo.” (RUBIÃO, 1999, p. 10). Porém, todas as tentativas foram frustradas<br />
e o narrador conclui que não tem controle sobre sua vida, chegando ao limite<br />
quando revela: “Rolei até o chão soluçando. Eu, que podia criar outros seres,<br />
não encontrava meios de libertar-me da existência.” (RUBIÃO, 1999, p. 11).<br />
Este desabafo do narrador aponta para o absurdo, o sem saída da existência.<br />
O personagem anula-se enquanto indivíduo ativo, pois não só deixa de ter<br />
controle sobre seus truques, mas, principalmente, descobre-se incapaz de<br />
realizar o seu desejo.<br />
A segunda saída encontrada pelo narrador para dar cabo a sua vida, também<br />
foge ao comum e tem um sentido metafórico: “Uma frase que escutara por<br />
acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida.<br />
Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se ao<br />
poucos. (...) Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.” (RUBIÃO,<br />
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1999, p.11). A prerrogativa do homem triste não foi desmentida pela realidade,<br />
pois a vida do personagem transcorreu como se esperava, ou pior, além de<br />
não morrer sente-se ainda mais entediado. Neste momento do texto temos o<br />
desdobramento da figura do narrador. Surge aqui o duplo interior através de uma<br />
segunda personalidade: a figura do mágico que não controla os seus truques<br />
é bloqueada pela vida burocrática do funcionário público. Se não foi possível<br />
sua morte física, como almejado, ele perdeu seus poderes incontroláveis e<br />
agora é um simples empregado. Tal descoberta se dá quando o personagem<br />
necessita dos seus truques:<br />
Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois<br />
tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo. (...) Para lhe provar<br />
não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que<br />
comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas<br />
um papel amarrotado – fragmento de um poema inspirado nos seios da<br />
datilógrafa. Revolvi os bolsos e nada encontrei. Tive que confessar minha<br />
derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora<br />
anulada pela burocracia. (RUBIÃO, 1999, p. <strong>12</strong>-13) (grifo nosso).<br />
Há aqui a transformação do narrador em cidadão comum, desprovido de qualquer<br />
tipo de poder extraordinário. O sujeito-mágico com truques insólitos se desdobra<br />
em personagem verossímil. Neste caso, o duplo pode funcionar como uma metáfora<br />
crítica do cotidiano do homem contemporâneo, um ser pós-moderno incluso na<br />
multidão. O texto indica que a banalização da vida moderna e a posição do sujeito<br />
inserido nessa sociedade do consumo desembocam no absurdo, ou seja, no<br />
sense do existir. Se o mágico com poderes de mudar a realidade tem banalizado<br />
seus truques pela repetição espontânea, ao funcionário público desprovido dessa<br />
faculdade, o cotidiano é ainda mais sufocante, pois nem mesmo tem-se a ilusão<br />
trazida pela mágica. Assim, os poderes do mágico e com isso a possibilidade de<br />
fuga do cotidiano são interrompidos pela inversão dos sentidos através dos truques<br />
transformados em rotina sufocante, similar à do funcionário público.<br />
De outro modo, a partir da imagem de um duplo interior como recalque do<br />
inconsciente podemos situar o conto “Carta a uma senhorita em Paris” de<br />
Julio Cortázar. Neste texto, o personagem-narrador descreve em forma de<br />
carta a uma amiga que está na França sua rotina no apartamento desta. Já<br />
no início do texto menciona sua tristeza relacionada à imagem dos coelhinhos.<br />
Na sequência, fala das dificuldades ao tentar ficar à vontade em um espaço<br />
impregnado de marcas pessoais. Contudo, essa tristeza que contamina a carta<br />
advém de um evento insólito assim descrito pelo narrador:<br />
(...) Mas fiz as malas, avisei a sua empregada que viria a instalar-me, e entrei<br />
no elevador. Justo entre o primeiro e o segundo andar senti que ia vomitar um<br />
coelhinho. Não havia explicado antes, não acreditava que por deslealdade,<br />
mas naturalmente ninguém vai poder explicar às pessoas que de quando<br />
em quando se vomita um coelhinho. (CORTÁZAR, 1982 p. 23).<br />
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Para novo espanto do leitor há na continuidade do texto a descrição em moldes<br />
realistas de uma cena insólita:<br />
Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, coloco os dedos na boca como<br />
uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe<br />
como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico, transcorre<br />
em um brevíssimo instante. (...) É um coelhinho normal e perfeito, somente<br />
que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco<br />
e inteiramente um coelhinho. (CORTÁZAR, 1982, p. 23-24).<br />
Temos aqui o surgimento do insólito na narrativa e a relação do personagem<br />
com o acontecido é a de não estranhamento ou tentativa de explicá-lo, mas<br />
sim sugere ser algo “natural” que se incorporou à sua vida. A partir desta nova<br />
“realidade”, o narrador descreve como fazia para esconder esses pequenos<br />
seres da amiga que morava com ele. Os coelhinhos possuem vida própria e,<br />
como qualquer outro animal cresce, necessitando de espaço para sobreviver.<br />
Em número inicial de dez, esses bichinhos alteram a rotina do narrador: à noite,<br />
eles correm, brincam, comem, enfim, vivem como coelhos normais. E durante o<br />
dia dormem dentro do guarda-roupa, escondidos do olhar externo. Ou seja, os<br />
animais que agora fazem parte da vida do personagem possuem um cotidiano<br />
inverso à maioria dos homens urbanos, dormem durante o dia e brincam à noite.<br />
Vale destacar que a narração segue descrevendo o modo como o evento insólito<br />
de vomitar coelhinhos é algo rotineiro e se inclui nas ações diárias do personagem:<br />
(...) eu já tinha perfeitamente resolvido o problema dos coelhinhos. Semeava<br />
trevo na sacada da minha outra casa, vomitava um coelhinho, colocava-o<br />
no trevo e ao final de um mês quando suspeitava que de um momento a<br />
outro...então presenteava o coelhinho já crescido à senhora de Molina que<br />
acreditava em um hobbie e se calava. (CORTÁZAR, 1982, p. 24).<br />
À medida que lemos o texto, o evento insólito acaba sendo absolvido como<br />
algo comum à vida do sujeito e aquilo que poderia ser visto como estranho,<br />
torna-se apenas um problema a ser administrado. Embora o personagem<br />
pareça conformado com o caso, as tentativas de “resolver” a questão passam<br />
pela ideia de matar os coelhinhos, como se o extermínio destes fosse a única<br />
saída encontrada. Todavia, a relação entre o narrador e os pequenos seres<br />
que saem de sua garganta impede que ele tome uma atitude radical: “O<br />
[coelhinho] fechei na caixa de primeiros socorros vazia e voltei a desempacotar<br />
desorientado, mas não infeliz, não culpado, não ensaboando minhas mãos para<br />
retirar a última convulsão. Compreendi que não podia matá-lo” (CORTÁZAR,<br />
1982, p.26). A narrativa apresenta as diferentes sensações do narrador a se<br />
ver cada vez mais envolvido com o caso inusitado. Esses pequenos animais<br />
crescem assim como a destruição no apartamento da amiga. O personagem,<br />
preocupado com o incômodo causado por estes visitantes, narra como ficou<br />
o espaço depois de algum tempo de convivência com os novos hóspedes:<br />
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Quebraram as cortinas, a capa das poltronas, a moldura do auto-retrato de<br />
Augusto Torres, estiveram em círculo debaixo da luz do abajur, em círculo e<br />
como abandonando-me de repente gritaram, gritaram como eu não acredito<br />
que gritem os coelhos. (CORTÁZAR, 1982, p.32).<br />
Verifica-se aqui por parte do narrador o abandono dos visitantes, deixados à<br />
própria sorte. O homem parece já não ter mais forças para controlar o cotidiano<br />
dos pequenos dos visitantes. Este desconsolo e fuga da responsabilidade sobre<br />
os coelhinhos apontam para a sua atitude final de livrar-se para sempre do<br />
problema: o suicídio. “Não acredito que lhes seja difícil <strong>jun</strong>tar onze coelhinhos<br />
salpicados sobre o piso, talvez não se fixem neles, atarefados com o outro<br />
corpo que convém levar rápido, antes que passem os primeiros colegiais.”<br />
(CORTÁZAR, 1982, p. 33) (grifo nosso).<br />
Com este final, a carta ganha contornos de confissão, tendo o narrador<br />
descrito os seus últimos passos antes de tirar a vida. Pelo apresentado acima,<br />
os problemas acarretados pelo surgimento insólito dos coelhinhos na vida do<br />
personagem podem ser lidos como materialização dos conflitos psicológicos<br />
que o atormentavam. Contudo, nos interessa observar como esta metáfora do<br />
inconsciente pode ser vista como manifestação do duplo. Assim, os coelhinhos<br />
vomitados seriam a representação do duplo interior, uma espécie de expressão<br />
deformada do unheimliche freudiano que enlaça ideias contrárias significando<br />
o “estranho-familiar”. Essa imagem paradoxal aparece no conto já que vomitar<br />
coelhinhos, além de ser insólito, funciona também como expressão de algo<br />
desconhecido ao narrador-personagem. Por outro lado, o fato de vomitá-los, ou<br />
seja, surgirem de dentro dele passa a significar o que há muito lhe é familiar.<br />
Desse modo, a metáfora presente no texto pode ser associada à palavra<br />
unheimliche, algo que deveria ficar escondido, mas veio à tona. Enfim, o fato<br />
expressa a divisão do indivisível através da projeção dos desejos e medos<br />
recalcados no inconsciente.<br />
O que parece diferenciar o surgimento do duplo neste conto de Cortázar é a<br />
tentativa de naturalizar o evento insólito. O outro que pode ser lido como aquilo<br />
que estava recalcado no interior do sujeito e é materializado nestes pequenos<br />
seres. Não há aqui o recurso da imagem obscura, dos símbolos indecifráveis ou<br />
dos elementos sugestivos que muitas vezes compõe os textos que trabalham<br />
com os eventos insólitos. O que Cortázar traz de novidade é a naturalização<br />
desse duplo que passa ao mesmo tempo a ser diferente e igual ao personagem.<br />
Além disso, o que seria irreal, o fato de um homem vomitar coelhinhos, tornase<br />
apenas mais um evento em sua rotina. A forma encontrada pelo escritor<br />
para representar o duplo, apresenta-se como algo insólito, mas integrado aos<br />
dia-a-dia do personagem.<br />
Assim, o efeito alcançado na representação do duplo através de seres ao<br />
mesmo tempo internos e externos ao homem dificulta uma leitura inequívoca<br />
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dos sentidos do texto. A análise realizada aqui considera os coelhinhos como<br />
duplo do personagem ao mesmo tempo que representa a manifestação<br />
concreta do incomensurável que habita o homem. Esses pequenos animais<br />
podem ser observados como elemento ambíguo que aproxima o real do irreal, o<br />
comum do insólito. Desse modo, embora carregados de múltiplos sentidos, os<br />
coelhinhos possuem sua face concreta, existem como seres reais. Mesmo que<br />
o nascimento destes seja insólito, eles passam a ter uma vida externa igual a<br />
qualquer outro animal. No terreno da ficção esses coelhinhos podem ser lidos<br />
como pertencentes e não ao campo do verossímil. Se pensarmos pelo lado da<br />
origem, há a quebra da verossimilhança, pois nenhum animal nasce do vômito<br />
de um homem. Por outro lado, quando habitam o apartamento, seguem uma<br />
vida normal, muito próxima à realidade. Segundo David Roas é neste ponto<br />
que a metáfora nas narrativas fantásticas contemporâneas explora a irrupção<br />
do insólito através de uma linguagem que se modela à medida que os medos<br />
e a percepção da realidade se modificam.<br />
Neste jogo que envolve a verossimilhança surge o duplo do personagem,<br />
funcionando o ato insólito como reflexo do outro “eu”, da imagem concreta do<br />
desconhecido. Interessante notar que a convivência com esse duplo torna-se<br />
incômoda no início e, com a multiplicação dos pequenos animais, acaba sendo<br />
insuportável. A própria narrativa em forma de carta pode ser lida como confissão<br />
dessa inabilidade do “eu” em relacionar-se com aquilo que paradoxalmente<br />
lhe é estranho e familiar. A revelação do duplo interior lhe causa mal-estar, ou<br />
seja, para tentar se livrar do incômodo do outro, daquilo que surge fora do seu<br />
controle, o personagem anula-se, chegando ao extremo do suicídio. Mesmo<br />
antes de revelar o fim que deveria dar a tal situação, o personagem expõe as<br />
sensações incomunicáveis causadas pelo duplo: “(...) esta mudança me alterou<br />
também por dentro – não é nominalismo, não é magia, somente que as coisas<br />
não podem variar assim de repente, às vezes as coisas viram bruscamente e<br />
quando você esperava a bofetada à direita – assim, Andreé, ou de outro modo,<br />
mas sempre assim.” (CORTÁZAR, 1982, p. 29).<br />
Neste conto, Cortázar transforma a imagem do duplo em metáfora imagética do<br />
inexplicável. O vomitar coelhinhos, ato que a princípio só pode ser entendido<br />
dentro do terreno do insólito, converte-se em um duplo interior que é observado<br />
não pela sua deformação, mas ao contrário, por sua latência psíquica em forma<br />
de pequenos seres “reais” em sua (in)existência verossímil.<br />
Podemos também dizer que o duplo neste texto do escritor argentino expõe<br />
o eixo principal das representações do insólito na narrativa contemporânea,<br />
conforme aponta o crítico Jaime Alazraki. De modo diferente do fantástico<br />
tradicional, esta narrativa de Cortázar modifica a relação entre a realidade e o<br />
elemento insólito. Se na ficção fantástica do século XIX partia-se do real para<br />
o evento fantástico, estranho às leis da razão, nos contos contemporâneos, o<br />
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insólito irrompe primeiro integrando-se à vida do personagem. Enfim, o que<br />
seria irreal passa a fazer parte de uma nova realidade, mais profunda e com<br />
o sentido duplicado.<br />
Analisando este conto de Julio Cortázar, o crítico argentino destaca:<br />
O arbítrio reside no haver escolhido os coelhinhos, como Kafka escolhe um<br />
inseto em “A metamorfose”, mas nada de arbitrário há no ato de vomitá-los, de<br />
sentir que esses pequenos monstros que são parte de um, feitos de nossas<br />
próprias inquietudes, fobias e angústias, se liberam de nosso controle e,<br />
como um demiurgo, se voltam contra nós para nos governar e nos arrastar<br />
em suas brincadeiras e fogos, saltos e sobressaltos. Não é outro o sentido<br />
da frase final: para eliminá-los, o narrador deve também eliminar-se. Cortázar<br />
observou que contos como “Carta e uma senhorita em Paris” teve sobre<br />
ele o efeito de um exorcismo, no sentido de que, ao escrevê-los, curou-se<br />
de certos sintomas neuróticos que então sentia. (ALAZRAKI, 1983, p. 78).<br />
Para o crítico, fica claro que a metáfora usada por Cortázar neste conto revela<br />
o duplo interior, aquilo que existe recalcado e de algum modo veio à tona. O<br />
vomitar coelhinhos funcionaria como ato de exorcismo dos medos, fobias,<br />
traumas que irrompem no cotidiano e só podem ser eliminados com a morte<br />
do sujeito, pois são intrínsecos a ele. Sem entramos no terreno biográfico, a<br />
carta em forma de confissão pode ser lida como um duplo do próprio Cortázar.<br />
Haveria uma mescla entre o narrador-personagem que tenta expor seus conflitos<br />
e o próprio autor que ficcionalmente revela o seu imaginário e com isso se<br />
reflete na construção do texto literário.<br />
Tanto no texto de Rubião quanto no conto do escritor argentino o duplo aparece<br />
de forma diferente daquela canônica. Contudo, há diferenças entre a construção<br />
do “outro” em Murilo Rubião e no escritor argentino. Como observamos, no<br />
conto “o Ex-mágico...” o duplo aparece no desdobramento da personalidade<br />
do narrador. O “eu” do funcionário público surge como tentativa de perda dos<br />
poderes mágicos. Ou seja, o outro, o duplo do personagem é o não-mágico,<br />
o funcionário público entediado com sua rotina burocrática. Neste sentido,<br />
o outro funciona como reflexo da perda de identidade e também ocasiona<br />
um conflito com o mundo. Neste sentido, a burocratização da vida surge<br />
metaforizada nos truques involuntários do narrador. Tal atividade que deveria<br />
ter como base o extraordinário, transforma-se no mais opressor cotidiano, pois<br />
tira do personagem a sua liberdade de criar e o coloca como simples produtor<br />
de mágicas absolutamente involuntárias.<br />
Diferente desta posição do duplo enquanto reflexo da relação entre identidade e<br />
alteridade, o conto “Carta a uma senhorita em Paris” de Júlio Cortázar, trabalha<br />
com a manifestação do duplo interior. Esta perspectiva pertence ao terreno do<br />
subjetivo, da exposição dos medos, fobias e traumas do personagem. Todavia,<br />
como apontamos anteriormente, tal apresentação do duplo converte-se em<br />
metáfora, cujas bases estão na manifestação do insólito enquanto parte do real.<br />
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Por isso, o personagem não questiona o ato inexplicável de vomitar coelhinhos<br />
e sim descreve como fazia para integrá-los à sua rotina, escondendo-os da sua<br />
companheira e dos amigos. O personagem entra em choque com seu estar<br />
no mundo a partir de um problema insolúvel, produzido por um conflito interior<br />
que acaba sendo manifestado exteriormente pelo ato de vomitar coelhinhos. De<br />
modo distinto do personagem de Murilo Rubião, condenado a viver na burocracia<br />
do estado, apontando para um repetir exaustivo da realidade, o sujeito que<br />
escreve a carta no conto de Cortázar sucumbe à própria personalidade, pois<br />
só se livra do seu estado psicológico através do suicídio.<br />
Vale destacar que por outro lado os dois contos se aproximam por alterarem<br />
tanto a manifestação canônica do duplo na literatura como também apontam<br />
para a manifestação do insólito na narrativa contemporânea. O personagem de<br />
Murilo Rubião ao invés de criar os seus truques para iludir o público, torna-se<br />
refém dos seus próprios poderes, já que não tem controle sobre suas ações.<br />
Não muito diferente dessa situação encontra-se o personagem do conto de<br />
Cortázar. A este, o viver é sufocante, pois, além de vomitar coelhinhos, ato<br />
por si só inexplicável pelas leis da biologia, apenas contorna o problema que<br />
ao invés de ser amenizado, aumenta a cada dia a ponto de levá-lo à morte.<br />
Pelo que foi destacado, o duplo nos dois contos analisados se diferencia daquele<br />
comumente apresentado nos textos que tratam deste fenômeno. De um lado,<br />
no conto de Murilo Rubião, um “eu” anula-se para dar lugar a um segundo “eu”.<br />
Porém ambos são acometidos do tédio comum ao homem inserido no mundo<br />
pós-moderno. A diferença entre esses dois lados do personagem são apenas<br />
os truques espontâneos que são próprios do mágico. A questão central neste<br />
conto de Rubião, além do elemento insólito, parece ser a busca da identidade<br />
e o choque causado pelo contato com o outro.<br />
Já no conto “Carta a uma senhorita em Paris” de Júlio Cortázar, o duplo aparece<br />
como projeção daquilo que está no psíquico do personagem. O evento insólito,<br />
um homem que de quando em quando vomita um coelhinho, torna-se metáfora<br />
do desconhecido que é ao mesmo tempo familiar. Ou seja, as projeções do<br />
inconsciente transformam-se em algo concreto que embora seja inexplicável<br />
em sua origem, ganha contornos realistas na sua materialização enquanto<br />
elemento textual. Nos contos de Cortázar, como diz Teodósio Fernandes, a<br />
aparição do fantástico não reside na alteração por elementos estranhos de<br />
um mundo ordenado pelas leis rigorosas da razão e da ciência. Basta que se<br />
produza uma alteração do reconhecível, da ordem ou desordem familiares. A<br />
suspeita de que outra ordem secreta (ou outra desordem) pode por em perigo<br />
a precária estabilidade de nossa visão de mundo.<br />
Para finalizar, destacamos que ambos os textos podem ser lidos como exemplos<br />
do fantástico contemporâneo, pois, através do uso do duplo, os autores constroem<br />
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metáforas que envolvem o estar no mundo do homem contemporâneo. Para David<br />
Roas, tais relatos colocam o sobrenatural diante do leitor como questionamento<br />
dos limites entre o sólito, o racional e o elemento insólito, irreal. O que poderia<br />
suscitar apenas medo do sobrenatural com a segurança de que este estaria<br />
totalmente deslocado da realidade concreta, no relato fantástico contemporâneo,<br />
traz a insegurança do real e o questionamento da sua pretensa estabilidade.<br />
Assim, os aspectos principais que estão na base das transformações do fantástico<br />
e aparecem nos textos aqui analisados seriam a progressiva cotidianização<br />
promovida pelos diferentes autores ao longo do tempo e, principalmente, o uso<br />
de novas formas de comunicar, objetivar esse impossível.<br />
ASPECTS OF DOUBLE IN THE TALES “THE EX-MAGICIAN’S<br />
OF THE TAVERN MINHOTA”, BY MURILO RUBIÃO, AND<br />
“LETTER TO A MISS IN PARIS”, BY JULIO CORTáZAR<br />
ABSTRACT:<br />
The various manifestations of the double in the literature, at the same time that<br />
make difficult the understanding of the topic, bring a wealth of readings that is<br />
welcome to the literary mean. In order to better understand some of the double<br />
projections, we seek, in this work, through different theoretical studies on the<br />
subject, to compare two tales that show the double in a different way. In the<br />
narrative of Murilo Rubião, the Other appears though the figure of the magician<br />
who is dissatisfied with his extraordinary powers and because of it converts to<br />
a public official to get rid of this “problem”. When he nullifies his spells, delves<br />
into the anguish of a tedious and bureaucratic existence. In this brief review,<br />
we believe that the search for identity is the attitude of escaping from selfconsciousness<br />
through the dip in a “new” being in the world. Otherwise, we<br />
have in the Cortázar’s text a figure of a man who, while also trying to retreat<br />
from their private conflicts, moves to an apartment of a friend and finds that<br />
his routine has become his major obstacle, making the character to decide for<br />
killing himself to see “free” from all disturbs. Thus, the double in this Cortázar’s<br />
tale can be read by the prospect of Jaime Alazraki, via studies of Freudian<br />
psychoanalysis, as a kind of metaphor of the unconscious.<br />
KEYWORDS:<br />
Rubião; Cortázar, double; fantastic.<br />
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REFERÊNCIAS<br />
ALAZRAKI, Jaime. En busca del unicornio: los cuentos de Julio Cortázar.<br />
Madrid: Editorial Gredos, 1983.<br />
CORTÁZAR, Julio. Bestiário. México DF: Editora Nueva Imagen, 1982.<br />
FREUD, Sigmund. O estranho In. ______. Obras completas. v VII. Edição<br />
standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.<br />
J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.<br />
ROAS, David. La Realidade Oculta. Cuentos fantásticos del siglo XX. Paléncia-<br />
España: Menoscuarto, 2008.<br />
______. Tras los límites de lo Real: Una definición de lo fantástico. Madrid:<br />
Páginas de Espuma: 2011.<br />
RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Editora Ática, 1999.<br />
SANTOS, Adilson dos. Duplos em Tutaméia: terceiras estórias. 2009. 290 f.<br />
Tese (Doutorado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009.<br />
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NAÇÃO E UTOPIA EM A JANGADA DE PEDRA E O FEITIÇO DA<br />
ILHA DO PAVÃO<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Marco Antonio Rodrigues<br />
O artigo propõe uma leitura comparativa sobre os temas “nação” e “utopia”<br />
em dois romances contemporâneos de língua portuguesa: A <strong>jan</strong>gada de pedra<br />
(1986), de José Saramago, e O Feitiço da Ilha do Pavão (1997), de João Ubaldo<br />
Ribeiro. A análise baseia-se em conceitos de Fredric Jameson sobre a utopia<br />
na pós-modernidade, e na aproximação entre o mecanismo utópico e a nação<br />
como “comunidade imaginada”, de Benedict Anderson. A conclusão destaca<br />
que, mesmo recorrendo ao fantástico, ao sobrenatural, as utopias de Saramago<br />
e de João Ubaldo são acanhadas, e que, como propõe Jameson, talvez não<br />
haja mais espaço para a utopia na contemporaneidade.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Nação; utopia; José Saramago; João Ubaldo Ribeiro; Fredric Jameson.<br />
Introdução<br />
Este artigo propõe uma leitura comparativa sobre os temas “nação” e “utopia”<br />
em dois romances contemporâneos de língua portuguesa: A <strong>jan</strong>gada de pedra,<br />
de José Saramago, e O Feitiço da Ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro.<br />
Para esboçar o entendimento da utopia no contexto da pós-modernidade,<br />
contexto em que as obras de Saramago e João Ubaldo foram produzidas, será<br />
útil resgatar as formulações de um dos principais pensadores do (e sobre o)<br />
período, curiosamente também um dos que mais têm se dedicado à questão da<br />
utopia em tempos atuais, Fredric Jameson. Especificamente, serão retomados<br />
conceitos expressos no artigo “A política da utopia” (JAMESON, 2006), em que<br />
o autor sumariza seu entendimento a respeito do tema na contemporaneidade.<br />
O primeiro desses conceitos é sobre o caráter constructo da utopia, quase<br />
que exercício de bricolagem. O segundo deles refere-se à observação de que a<br />
produção utópica de diferentes períodos sempre esteve associada a momentos<br />
de crise de valores. O terceiro elemento refere-se ao caráter ideológico da<br />
utopia. E, por último, a mais controversa das proposições de Jameson, sobre a<br />
função negativa da utopia, nosso confinamento em um presente não-utópico<br />
sem historicidade nem futuridade. Em outras palavras, nossa incapacidade de<br />
imaginar um mundo melhor.<br />
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A palavra Utopia, cunhada por Thomas More na obra homônima publicada em<br />
1516, funde o advérbio grego ou (não) ao substantivo tópos (lugar) - não lugar, “o<br />
que está em nenhum lugar”. A obra de More trata, porém, de um tema - a melhor<br />
constituição de uma República - já presente em Platão e Aristóteles. (LOGAN e<br />
ADAMS, 2009, p. XXVII) More inova na adoção do relato fictício sobre a utopia,<br />
inaugurando uma temática de grande recorrência na abordagem literária.<br />
Na construção ficcional, a ilha é vista como espaço privilegiado para a utopia,<br />
a começar pela ilha de More. Se não a ilha propriamente dita, a situação de<br />
insulamento, de isolamento:<br />
A utopia é sempre isolada da nossa história, mesmo quando não é uma ilha: a<br />
Cidade do Sol de Campanella, por exemplo, fica “numa vasta planície situada<br />
sob o Equador”. Tal insularismo não é apenas uma ficção geográfica: é uma<br />
atitude mental da qual a ilha clássica é apenas a representação, responde à<br />
exigência de preservar a comunidade da corrupção externa e de apresentar<br />
um mundo fechado, um microcosmo no qual existam leis específicas que<br />
escapam ao campo magnético do real. (BERRIEL et. all. 2008, p. 5)<br />
Centrada na especulação sobre um não-lugar, a utopia é, porém, vinculada a<br />
uma localidade e um tempo historicamente determinados. É, nesse sentido,<br />
datada, por fornecer respostas a problemas contemporâneos à sua elaboração.<br />
Por consequência, a utopia é também ideológica, é “transmitida e expressa<br />
a partir da experiência social do pensador utópico, a qual só pode ser uma<br />
experiência de classe e refletir o ponto de vista de uma classe específica<br />
sobre a sociedade” (JAMESON, 2006, p. 172). Decorre dessa historicidade e<br />
desse ponto de vista de classe que a análise literária de narrativas de caráter<br />
utópico dificilmente poderá prescindir de elementos contextuais, sem grandes<br />
prejuízos para a interpretação.<br />
Utopia e nação<br />
Mantidas as ressalvas de Paulo Arantes (2006, p.28) quanto à motivação<br />
“material” do surgimento das nações, parece bastante óbvia a proximidade<br />
entre a definição de Benedict Anderson (2008), da nação como “comunidade<br />
imaginada”, e o mecanismo da utopia tal como sumarizado até aqui. A utopia<br />
nasce da especulação sobre a melhor constituição da República; como metáfora<br />
pseudo-geográfica em espaço delimitado, assume frequentemente a forma de<br />
país hipotético, com população, leis e instituições próprias. A nação, por sua<br />
vez, ao congregar sujeitos que sequer se conhecem em torno de uma ideia<br />
comum, não deixa de ser em certo sentido uma utopia, cuja expressão mais<br />
evidente é seu “hino nacional”.<br />
A utopia, porém, é uma construção que não tem seu nexo fixado a partir de<br />
experiências como as relatadas por Anderson no processo de “imaginação”<br />
de uma nação, como o trânsito e intercâmbio de funcionários peregrinos e a<br />
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troca de experiências pela leitura de jornais e do romance. Ela é construção<br />
fabular que contribui no processo de formação e formalização das nações.<br />
Jameson (2006, p. 165) identifica a “constituição” como gênero ou tipo de<br />
discurso correlato à utopia.<br />
No contexto deste artigo, interessa descrever e comentar, ainda que brevemente,<br />
como os utopistas ocasionais José Saramago e João Ubaldo reconstroem (ou<br />
desconstroem) literariamente as suas nações, diretamente representadas nos<br />
romances A <strong>jan</strong>gada de pedra e O feitiço da Ilha do Pavão.<br />
Saramago - da inutilidade da palavra “utopia”<br />
Em sua participação no Fórum Social Mundial – 2005, em Porto Alegre – RS,<br />
José Saramago, ao tratar do tema “Quixotes hoje: utopia e política” 1 , foi no mínimo<br />
provocativo ao sugerir que a palavra “utopia” deveria ser eliminada do dicionário.<br />
É preciso interpretar com reserva a fala de Saramago, já que ela é dirigida para<br />
uma plateia específica de “quixotes”, como em um comício. O momento e o<br />
contexto eram propícios a palavras de ordem, a sugestões de novos rumos para<br />
uma esquerda desconcertada. É para esse público que Saramago anuncia,<br />
logo ao início de sua palestra: “Tenho uma má notícia para vos dar: eu não<br />
sou utopista. E pior notícia ainda: considero a utopia, ou o conceito utopia, não<br />
só inútil, como também tão negativo como a ideia de que quando morremos<br />
todos iremos para o paraíso”.<br />
O argumento de Saramago é simples, por isso mesmo cativante: para o autor,<br />
projetamos a utopia em um futuro que não nos será acessível; um futuro talvez<br />
acessível somente a novas gerações, para as quais o necessário atual não<br />
mais o será. A utopia se configura assim, para o romancista português, como<br />
o “discurso sobre o não existente”, já que as palavras, “essas desgraçadas”,<br />
sempre estão a mudar de sentido. Se as utopias fossem projetadas para o dia<br />
de amanhã, iríamos alcançando-as em curto prazo e elas não se chamariam<br />
mais utopia, mas apenas “trabalho”.<br />
Saramago faz, portanto, a defesa do pragmatismo na luta pela igualdade<br />
e justiça, mas é difícil não pensar em desdobramentos contraditórios entre<br />
esse posicionamento e sua ficção, ou mesmo sua atividade política. É que,<br />
para Saramago, o problema está mais na palavra “utopia” que nas posições<br />
e ações que ela suscita. A <strong>jan</strong>gada de pedra é um desses registros ficcionais<br />
de Saramago que guardam estreitas relações com o gênero utópico, como já<br />
tratado em diversas leituras acadêmicas 2 .<br />
1 O vídeo da palestra de Saramago está disponível em<br />
http://www.youtube.com/watch?v=yh2GDMzdMBE&feature=related Acesso em: 07/11/2011.<br />
2 A respeito da utopia em A <strong>jan</strong>gada de Pedra, ver, por exemplo, Martins (2004), Rocha (2009) e Penha (2004).<br />
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A obra é de 1986; anterior, portanto, à queda do Muro de Berlim e ano da inclusão<br />
de Portugal e Espanha na União Europeia. Duas utopias do mundo político, uma<br />
em decadência, outra em ascensão. O autor, Saramago, não era indiferente a<br />
nenhuma delas: “comunista hormonal”, como se autodefiniu em certa ocasião, o<br />
autor era também bastante cético quanto às perspectivas de Portugal na União<br />
Europeia. Uma década após a publicação de A Jangada de pedra, em visita ao<br />
Brasil para receber o Prêmio Camões, Saramago profere a palestra intitulada<br />
“Portugal - Fim de milênio, princípio de quê?” 3 Nada mais esclarecedor de seu<br />
posicionamento a respeito da União Européia do que a passagem a seguir:<br />
Historicamente, aquilo que sempre esteve em causa na Europa – a disputa,<br />
pelas nações mais poderosas, da hegemonia sobre o continente – está hoje<br />
sendo orientado no sentido duma definição de soluções e métodos que,<br />
apresentando-se como qualitativamente novos, permitam chegar a idêntico<br />
resultado quantitativo, sem ter de recorrer pela milésima vez à guerra como<br />
a ultima ratio, por esse modo se instituindo uma concentração de poder<br />
que, aparentemente consubstanciada numa comunidade de povos, é, na<br />
realidade, administrada de facto por alguns países dessa mesma comunidade,<br />
precisamente, mas não por acaso (oh, ironia), aqueles que, até ao passado<br />
mais recente, foram os actores directos ou os promotores indirectos das<br />
terríveis lutas que, ao longo dos séculos, e sob os mais diferentes pretextos,<br />
cobriram de mortos e de ruínas o continente europeu. (SARAMAGO, 1996)<br />
Essa denúncia da falsa comunhão europeia, pela qual não só os países ibéricos,<br />
mas principalmente Grécia e Itália hoje pagam caro, parece ter sido mesmo<br />
um dos mastros principais dessa <strong>jan</strong>gada que, ao desprender-se fisicamente<br />
do continente europeu, retoma o destino navegante de seus ocupantes, não<br />
com a antiga ambição da descoberta do Eldorado, mas simplesmente à deriva,<br />
numa busca involuntária de melhor posicionamento no concerto das nações.<br />
Um socialismo espontâneo em A <strong>jan</strong>gada?<br />
O argumento de A <strong>jan</strong>gada de pedra é bastante conhecido: sem que haja qualquer<br />
explicação plausível para o fato, a Península Ibérica destaca-se (melhor dizer<br />
“descola-se”) da Europa, bem na <strong>jun</strong>ção dos Pirineus, e passa a vagar pelo<br />
Oceano Atlântico em velocidade regular e aparentemente sem rumo definido.<br />
Hipoteticamente relacionados ao grande fato, acontecimentos banais, tratados,<br />
porém, como obscuros, acabam por unir o grupo que protagoniza a narrativa:<br />
Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho, o que “faz” ladrarem os<br />
cães mudos de Cérbere (na França); Joaquim Sassa, um funcionário de escritório,<br />
lança ao mar, a uma grande distância, uma pedra que mal deveria poder suster;<br />
o espanhol Pedro Orce, farmacêutico, sente a terra tremer, intermitentemente; o<br />
professor José Anaiço é acompanhado, em qualquer parte aonde vá, por uma<br />
grande revoada de estorninhos; Maria Guavaira, espanhola como Orce, desfaz<br />
uma meia, puxando um fio que nunca se finda; e o cão Ardent, remanescente<br />
3 Citada por Eduardo Calbucci (1999).<br />
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de Cérbere, salta o abismo da fenda formada inicialmente entre a França e<br />
a ex-península, optando pelas “regiões infernais” e vindo, mais adiante na<br />
narrativa, a servir de guia do grupo em suas aventuras.<br />
Os efeitos imediatos da separação se desdobram em fenômenos sociais (a<br />
fuga em massa dos turistas, a ocupação dos hotéis de turismo por famílias<br />
sem posses, a desocupação do litoral, etc.), econômicos (a fuga do capital<br />
especulativo, <strong>jun</strong>to com as pessoas de posse; a crise no abastecimento interno;<br />
a desvalorização da propriedade privada, principalmente os automóveis sem<br />
combustível) e políticos (a crise <strong>jun</strong>to à União Europeia e a intervenção política<br />
dos Estados Unidos). Diante desses e outros fatos, as pessoas passam a cultivar<br />
valores mais simples, ligados à subsistência diária, enquanto esperam por uma<br />
definição de seus destinos. O grupo de protagonistas, cada qual a seu tempo,<br />
abandona seus lares, suas profissões e passa a se dedicar exclusivamente à<br />
jornada pelo território ibérico. De início, quando o número de via<strong>jan</strong>tes ainda<br />
permite, cruzam o território de automóvel, para depois seguirem adiante em<br />
uma carroça. Vão, de Portugal à Espanha, à procura de Pedro Orce; rumam<br />
para o litoral, com o propósito de ver o rochedo de Gibraltar passar; retornam<br />
ao interior, seguem para Espanha, vão ao que restou dos Pirineus, observar o<br />
abismo, e retornam à Espanha, para o enterro de Pedro Orce.<br />
No âmbito político, o governo português propõe e implanta a formação de um<br />
governo de salvação nacional, com a participação de todas as forças políticas<br />
(p. 184). A medida proposta pelo novo governo de desocupação do litoral<br />
pressupõe a mudança de grandes massas para o interior, a reaproximação<br />
dos lugares de origem e o apelo à solidariedade familiar do “onde comem<br />
dois, comem três”. Já ao final da narrativa, a gravidez simultânea de todas as<br />
mulheres férteis da Península sugere o nascimento de uma nova geração, em<br />
uma nova sociedade, plantada no mesmo território, porém em outro contexto.<br />
Todos esses desdobramentos sinalizam a volta aos valores e costumes de uma<br />
“época de ouro”, espécie de socialismo espontâneo, não planejado, muito embora<br />
seja indispensável destacar que, em todos os casos relatados, a chave da narrativa<br />
é irônica. Ou seja, o anúncio de que “assim será” não significa que de fato tenha<br />
sido, e o narrador de Saramago é mestre no cinismo em passagens como:<br />
A grande maioria, por que não dizê-lo, a maioria esmagadora dos habitantes<br />
de Lisboa não nasceram lá, e os que nela nasceram encontram-se ligados<br />
aqueles por laços familiares. As consequências de um tal facto são amplas<br />
e decisivas, sendo a primeira que uns e outros deverão transferir-se para os<br />
lugares de origem, onde, regra geral, ainda têm parentes, alguns mesmo que<br />
as circunstâncias da vida fizeram perder de vista, assim se aproveitando esta<br />
oportunidade forçada para reintroduzir a harmonia nas famílias, sanando-se<br />
antigos desentendimentos, ódios por heranças más e partilhas péssimas,<br />
rixas de mal-dizer, a grande infelicidade que nos cai em cima terá o mérito<br />
de aproximar os corações. (SARAMAGO, 2006, p. 193)<br />
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A mesma abordagem irônica servirá, logo adiante, para traçar um retrato oposto<br />
a esse, de harmonia e entendimento, desarmando, também, a expectativa do<br />
leitor quanto ao destino de uma utopia clássica:<br />
Quem, por estar longe destes acontecimentos e lugares, imaginou que os<br />
retirantes ibéricos, amontoados em casas, asilos, hospitais, quartéis, armazéns,<br />
barracões, ou nas tendas e barracas de campanha que foi possível requisitar,<br />
mais as que foram cedidas e armadas pelos exércitos, e aquela outra gente,<br />
ainda mais numerosa, que não encontrou alojamento, e vive por aí debaixo<br />
das pontes, ao abrigo das árvores, dentro de automóveis abandonados,<br />
quando não ao puro relento, quem imaginou que Deus veio viver com estes<br />
anjos, saberá muito de anjos e de Deus, mas de homens não conhece nem<br />
a primeira letra. (SARAMAGO, 2006, p. 206)<br />
Em seguida, descreve-se o inferno em terras flutuantes, sob o fundamento<br />
também irônico da crítica do narrador ao ponto de vista idealizante, maniqueísta,<br />
que enaltece os valores morais das classes baixas, em contraponto com o<br />
egoísmo e a ganância das elites, o que suscita “ódios e antipatias, a par desse<br />
mesquinho sentimento que é a inveja, fonte de todos os males” (p. 206). Ora,<br />
se a inveja fosse de fato a fonte de todos os males, ou a ganância, como é<br />
comum às utopias desde More, a construção utópica deveria orientar-se para<br />
a sua extinção ou seu pleno controle, o que nem de perto acontece à Ibéria à<br />
deriva. Onde a utopia, então?<br />
Trans-iberismo na rota da <strong>jan</strong>gada<br />
Portugal e Espanha se desprendem do continente e saem valsando oceano afora.<br />
Na Europa, não deixam saudades. Ao, num primeiro momento, tomarem o rumo<br />
da América do Norte, vêem-se alvos de uma cobiçosa diligência dos EUA em<br />
sua anexação ao território americano. Enquanto isso, na Europa, os jovens de<br />
diversos países saem às ruas a gritar “nós também somos ibéricos”, como que<br />
a exercitar aleatoriamente a sua rebeldia. Nova orientação do movimento faz a<br />
<strong>jan</strong>gada rumar para o Sul, deslizando entre a América Central e a África. Seu<br />
destino final permanece desconhecido, só se sabe que é essa sua orientação<br />
quando, já no desfecho do romance, o movimento se interrompe.<br />
O trajeto da ilha é acompanhado à distância pela agitação política em diferentes<br />
partes do globo, em que os líderes mundiais especulam sobre as possíveis<br />
providências para o restabelecimento da harmonia entre as nações ocidentais.<br />
Essas especulações, por sua vez, são acompanhadas de perto por um anedotário<br />
de cunho nacionalista do tipo “se a Península Ibérica se queria ir embora, então<br />
que fosse, o erro foi tê-la deixado entrar” (p. 38). Ou esta mais sutil: “E não foi<br />
da França que a península se separou, foi da Europa, parece a mesma coisa,<br />
mas faz a sua diferença”. Ou, da parte dos britânicos, quando da afirmação do<br />
Parlamento quanto a sua soberania sobre Gibraltar: “O senhor primeiro-ministro<br />
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incorreu numa grave falta de precisão vocabular quando chamou península<br />
àquilo que já é hoje, sem qualquer dúvida, uma ilha, ainda que sem a firmeza<br />
da nossa, of course”. (44)<br />
Esse anedotário diz muito sobre o nacionalismo dos países europeus, mas o<br />
autor José Saramago teve, em vida, posições mais objetivas, por isso mesmo<br />
polêmicas, sobre a situação de Portugal e Europa no continente europeu.<br />
Sobre o assunto, o autor nos deixou um documento interessante, publicado<br />
em espanhol, quase que com instruções a respeito do tratamento que deveria<br />
merecer o tema “iberismo” em sua obra literária e em sua atuação política:<br />
“cualquier identificación que se haga de mi trabajo literario o de mi intervención<br />
cívica y política con un cuerpo de doctrina, plan de acción o una estrategia<br />
que apunten al resurgimiento o a la reactivación de la cuestión ibérica tendrá<br />
que plegarse, o al menos no ignorar, los argumentos y precisiones aquí<br />
expresados.” (SARAMAGO, 1990)<br />
Inevitável acompanhar, ainda que à distância, seus argumentos a respeito.<br />
Para Saramago, qualquer português, antigo ou moderno, foi ou é instruído com<br />
a convicção de que a Espanha é seu “inimigo natural”, o que teria ajudado<br />
a formar, a robustecer e a consolidar sua própria identidade nacional. Com<br />
o tempo, o interesse e contato direto com a Espanha teriam possibilitado a<br />
Saramago identificar as diversidades nacionais que emergiam da unidade<br />
estatal, o que, por sua vez, teria motivado a aspiração a uma nova relação,<br />
não entre os estados, mas um encontro contínuo entre as nacionalidades da<br />
Península, baseado na harmonização dos interesses, nos intercâmbios culturais,<br />
enfim, na intensificação do conhecimento (SARAMAGO, 1990).<br />
De certa forma, a experiência vivenciada pelo grupo de protagonistas faz as vezes<br />
de “balão de ensaio” desse intercâmbio. O conhecimento de diferentes regiões e<br />
diferentes culturas ocorre simultaneamente ao conhecimento afetivo entre o grupo,<br />
tanto que em certo momento ele passa a figurar uma micro-utopia em viagem pelo<br />
território. Mas o argumento de Saramago em favor do iberismo não para por aí. O<br />
processo de re-conhecimento das “nacionalidades” espanholas teria sido frustrado<br />
pela adesão de Portugal e Espanha à União Europeia, e caberia ao homem desse<br />
tempo jurar à Europa, mesmo sem saber bem que Europa seria essa.<br />
Desencantado com os fatos políticos, ao voltar sua atenção para a América, onde as<br />
pessoas seguem falando e escrevendo português e castelhano, o autor teria chegado<br />
à conclusão de que a própria Península Ibérica não poderá ser hoje plenamente<br />
entendida fora de sua relação histórica e cultural com os povos de ultramar (Saramago,<br />
1990). A metáfora da <strong>jan</strong>gada não deixa de ser também, pois, um gesto de vingança,<br />
a vingança possível para um escritor. Ao mesmo tempo, o trajeto da ilha indica o<br />
caminho a ser tomado pelos povos ibéricos, tanto que o narrador faz questão de<br />
substituir a palavra deriva por “navegação”, na passagem abaixo:<br />
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Ora, esses governos, em vez de nos apoiarem, como seria demonstração de<br />
elementar humanidade e duma consciência cultural efectivamente europeia,<br />
decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas,<br />
intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que,<br />
com mais propriedade e respeito pelos factos, lhe devessem ter chamado<br />
navegação. Esta atitude é tanto mais lamentável quanto é sabido que em<br />
cada hora que passa nos afastamos setecentos e cinquenta metros do que<br />
são agora as costas ocidentais da Europa, sendo que os governos europeus,<br />
que no passado nunca verdadeiramente mostraram querer-nos consigo, vêm<br />
agora intimar-nos a fazer o que no fundo não desejam e, ainda por cima,<br />
sabem não nos ser possível. (SARAMAGO, 2006, p. 146)<br />
A defesa do intercâmbio cultural e da harmonização de interesses transcende,<br />
portanto, o espaço ibérico, abrangendo a América Latina e a África e motivando a<br />
nova expressão com a qual Saramago define seu posicionamento: trans-iberismo.<br />
A <strong>jan</strong>gada de pedra e O feitiço da Ilha do Pavão – exercício comparativo<br />
O exercício comparativo entre Jangada e Feitiço tem como pressuposto teórico, não<br />
uma gênese comum entre as obras, mas principalmente similaridades formais e<br />
temáticas, ou, na caracterização de Claudio Guillén (2005), processos que implicam<br />
“condições socio-históricas comuns”. Compartilhando, as obras, da mesma língua<br />
de expressão e contando com um hiato de uma década entre o surgimento de<br />
uma e outra, não seria motivo de surpresa a leitura e o conhecimento prévio de<br />
João Ubaldo Ribeiro sobre A Jangada de Pedra. No entanto, não se percebem<br />
referências explícitas no romance do autor brasileiro ao texto que o antecede.<br />
Essa ausência de uma gênese comum explícita, se bem observada, não inviabiliza<br />
ou diminui a validade do exercício comparativo, tendo em vista ser a cada dia mais<br />
aceito em literatura comparada o estudo não genético de categorias supranacionais<br />
(GUILLÉN, 2005, p. 115). No contexto deste artigo, são categorias supranacionais<br />
os elementos formais e temáticos que aproximam as obras da narrativa utópica,<br />
bem como o próprio conceito de “nação” por elas problematizado.<br />
Utopia e construção<br />
Uma das similaridades formais entre as obras está na construção do foco<br />
narrativo. Na tipologia de Norman Friedman, sumarizada por Ligia Chiappini<br />
(1985), tanto o narrador de Saramago como o de João Ubaldo se aproximam<br />
do que caracteriza o narrador onisciente intruso, sendo o de Saramago mais<br />
explicitamente digressivo. As características de intrusão e digressão contribuem<br />
para o tom satírico de ambas as narrativas, estando a narrativa de Saramago<br />
mais próxima da sátira intelectual de Swift (sátira ao gênero utópico), e a de<br />
João Ubaldo mais familiarizada com a narrativa rabelaisiana (dessacralizadora,<br />
“baixo ventre”). A sátira, por sua vez, distancia as obras de uma idealização<br />
utópica nos moldes tradicionais.<br />
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No que se refere à ambientação das narrativas, percebe-se em Saramago a<br />
representação de um tempo presente, em sua complexidade social e política.<br />
O espaço representado é o da própria Península Ibérica em assombrosa<br />
transformação. Já em João Ubaldo, o tempo representado está associado a um<br />
passado colonial, com suas instituições (escravidão, aculturação indígena, religião<br />
inquisitória, etc.) e seus costumes. Quanto ao espaço, também uma ilha que existe<br />
ou não e que dá condições ao necessário isolamento da construção utópica. A<br />
Ilha do Pavão é representada como alegoria do Brasil, mas está localizada no<br />
recôncavo baiano e, por decorrência, é parte da Bahia, que é parte do Brasil.<br />
Há também similaridade no protagonismo múltiplo projetado para ambas as<br />
narrativas. Também em O feitiço da Ilha do Pavão um grupo heterogêneo de<br />
heróis sai em peregrinação pela ilha, à procura de solução para os problemas da<br />
comunidade. Balduíno, Io Pepeu, Capitão Cavalo, Degredada, Hans e Crescência<br />
são aparentados ao grupo de portugueses e espanhóis que protagoniza A <strong>jan</strong>gada<br />
de pedra, não só pela heterogeneidade do grupo, mas pela aura de misticismo<br />
e bruxaria que acolhe parte de seus integrantes. É também em meio ao grupo<br />
que surgem os ideais de uma vida mais humana, mais livre e mais justa.<br />
Utopia e crise<br />
Para Fredric Jameson (2006), o surgimento das grandes utopias vincula-se a<br />
“períodos de grande fermentação social, mas aparentemente sem leme, sem<br />
força motriz nem direção”, algo que encontra reflexo em ambos os romances<br />
analisados. No caso de A <strong>jan</strong>gada de pedra, uma crise mais evidente, uma<br />
metáfora da própria (perda da) identidade nacional. Saramago parte de um<br />
contexto histórico adverso para os portugueses e constrói a fábula de um novo<br />
destino para a nação, um contexto, como vimos, trans-ibérico, aproximando<br />
Portugal e Espanha das maiores concentrações de falantes de língua espanhola<br />
e portuguesa – não por coincidência suas principais ex-colônias.<br />
Já a narrativa de João Ubaldo é centrada nos dilemas históricos da formação<br />
da nação brasileira. Qual a organização política mais adequada? As populações<br />
indígenas devem ter acesso à cidadania? Como enfrentar a mácula da escravidão?<br />
Como conviver com o falso moralismo religioso? São essas algumas das grandes<br />
crises enfrentadas pela utopia da Ilha do Pavão. Por ocasião do lançamento<br />
de O feitiço, João Ubaldo assim se refere aos propósitos da obra: “Um Brasil<br />
meio maluco, um Brasil afastado do Brasil, mas brasileiro. Eu quis fazer uma<br />
utopia. Uma utopia relativa a um lugar que não existe. Fazer um cadinho de<br />
Brasil onde o Brasil se desenvolvesse de forma diferente.” 4<br />
Diferente, porém não necessariamente utópica, no sentido de encontrar e propor<br />
a solução para a “raiz de todo o mal” (JAMESON 2006, p. 160).<br />
4 Revista CULT. Nº. 6, <strong>jan</strong>eiro de 1998, p. 32-39.<br />
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Utopia e ideologia<br />
Quais seriam as utopias subjacentes às narrativas? Para Jameson, a utopia está<br />
sujeita a duas formas principais de análise: uma causal, ou diacrônica, a outra<br />
institucional, ou sincrônica. Na abordagem sincrônica, está em causa a utopia como<br />
construção, já abordada em parte. Já na abordagem diacrônica, importa definir<br />
qual a “raiz de todo o mal” que a utopia deve combater. No caso de A <strong>jan</strong>gada<br />
de pedra, Saramago contrapõe à utopia da União Europeia sua própria utopia, a<br />
re-situação dos países ibéricos numa “bacia cultural atlântica” (ROCHA, 2009).<br />
Em O feitiço da Ilha do Pavão, a raiz de todo mal está na escravidão, na tirania<br />
dos líderes e na intromissão da igreja no mundo laico. No combate a essas<br />
forças, parece não ser possível dispensar o uso da força e o derramamento<br />
de sangue. Eis então que se revela qual o feitiço da Ilha: uma porta para os<br />
futuros possíveis que, enquanto acessada por um dos aventureiros, paralisa o<br />
tempo em todo o território da ilha. Os protagonistas têm assim a oportunidade<br />
de fazer parar o tempo, quando os desdobramentos da ação lhes parecem<br />
indesejáveis, e de escolher uma “nova versão” para o futuro entre as versões<br />
que se lhes apresentam.<br />
Subjaz à construção utópica, em ambos os romances, um ideário humanista,<br />
de valorização dos direitos humanos e de condenação ao acúmulo material.<br />
Ao delimitarem, cada qual ao seu modo, a “raiz de todo mal” em torno dessas<br />
questões, os autores reafirmam seus compromissos políticos de enfrentamento<br />
da desigualdade e da injustiça social.<br />
Utopia e negatividade<br />
Em Jameson (2006), o que caracteriza a utopia como essencialmente negativa<br />
é nossa incapacidade de imaginar um mundo melhor, revelando o “fechamento<br />
ideológico do sistema em que estamos, de algum modo, cercados e confinados.”<br />
Por isso não raro as utopias desembocam em seus contrários. Não há qualquer<br />
segurança, por exemplo, no futuro reservado para a ilha ibérica, isolada dos<br />
continentes em pleno Atlântico. Ao final do romance, a vara de negrilho espetada<br />
sobre o túmulo de Pedro Orce “talvez floresça” no ano seguinte. No desfecho<br />
de O Feitiço da Ilha do Pavão o desencanto é também evidente. Tendo em<br />
mãos o próprio futuro, podendo, talvez, aspirar à perfeição, os heróis optam<br />
pelo menor dos males possível, algo que restabeleça o equilíbrio, sem alterar<br />
radicalmente as relações de poder na ilha:<br />
Muito bem, o quilombo viria abaixo por sua própria vontade, D. Afonso Jorge<br />
seria no máximo rei de suas mulheres, as vilas escolheriam seus próprios<br />
destinos, provavelmente tudo iria acontecer como já queria a maioria, Borges<br />
Lustosa seria duque de São João, não mais da ilha, padre Tertuliano seria<br />
grão-bispo também de São João e, mais tarde, talvez de toda a ilha, até<br />
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Conclusão<br />
porque, em seu papado, padres e freiras poderiam continuar consagrandose<br />
à vida religiosa, mas casando-se ao bel-prazer. E Balduíno, detentor de<br />
segredos básicos dos homens e da Natureza, continuaria como despachador,<br />
sempre influindo aqui e acolá e desfrutando da vida que sempre quis ter, com<br />
os outros índios também podendo morar nas vilas. (RIBEIRO, 2011, p. 263)<br />
Diante das acanhadas utopias representadas em ambas as obras, é interessante<br />
retornar ao primeiro parágrafo do texto “A política da utopia”, de Fredric Jameson,<br />
que vimos seguindo até aqui:<br />
A utopia parece ser a demonstração de um daqueles raros fenômenos cujo<br />
conceito é indistinguível de sua realidade, cuja ontologia coincide com sua<br />
representação. Essa entidade peculiar ainda tem função social? Se não a tiver<br />
mais, talvez a explicação esteja naquela extraordinária dissociação histórica<br />
em dois mundos distintos que caracteriza a globalização de hoje. Num<br />
desses mundos, a desintegração do social é tão absoluta – miséria, pobreza,<br />
desemprego, fome, corrupção, violência e morte – que os elaboradíssimos<br />
esquemas sociais dos pensadores utópicos tornam-se tão frívolos quanto<br />
irrelevantes. No outro, a riqueza sem paralelo, a produção computadorizada,<br />
as descobertas médicas e científicas inimagináveis há um século, além de<br />
uma variedade interminável de prazeres comerciais e culturais, parecem ter<br />
tornado a fantasia e a especulação utópicas tão tediosas e antiquadas quanto<br />
as narrativas pré-tecnológicas de vôos espaciais. (JAMESON, 2006, p. 159)<br />
Esses dois mundos de que nos fala Jameson convivem e se confrontam em<br />
vários momentos em A Jangada de Pedra. Convivem e também se separam,<br />
com a fuga das elites para o Continente. Em O feitiço da Ilha do Pavão temos<br />
a gênese desses mundos, ainda sob a influência de uma tecnologia incipiente.<br />
Nos dois romances, o “salto utópico”, isto é, a passagem para a nova realidade,<br />
só é possível mediante a ação do fantástico, do sobrenatural, e mesmo assim<br />
resulta em formulações que estão distantes da ideia original da utopia. Talvez,<br />
de fato, ela não seja mais possível, ou talvez ela tenha se tornado inútil. Ainda<br />
assim, segundo Eduardo Galeano, que debateu com Saramago no Fórum Social<br />
Mundial em 2005, a utopia servirá para algo:<br />
Ventana sobre la utopía<br />
Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri -. Me acerco dos passos, ella<br />
se aleja dos passos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez passos<br />
más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para que sirve la<br />
utopía? Para eso sirve: para caminar. 5<br />
5 GALEANO, Eduardo H. Las palabras andantes. México: Siglo Veintiuno, 1993.<br />
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NATION AND UTOPIA IN A JANGADA DE PEDRA AND<br />
O FEITIÇO DA ILHA DO PAVÃO<br />
ABSTRACT:<br />
This paper proposes a comparative reading about the topics “nation” and<br />
“utopia” in two contemporary romances of portuguese language: A <strong>jan</strong>gada de<br />
pedra (1986), by Jose Saramago and O feitiço da Ilha do Pavão (1997), by João<br />
Ubaldo Ribeiro. The analysis is based on Fredric Jameson’s concepts on utopia<br />
in postmodernity, and the approach between utopia and the concept of nation<br />
as “imagined community,” by Benedict Anderson. The conclusion points out<br />
that, even resorting to the fantastic, the supernatural, the utopias of Saramago<br />
and João Ubaldo are timid, and that, as Jameson suggests, perhaps there are<br />
no more space for utopia nowadays.<br />
KEYWORDS:<br />
Nation; utopia; José Saramago; João Ubaldo Ribeiro; Fredric Jameson.<br />
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______. Portugal – fim de milênio, princípio de quê?,1996. Disponível em: http://<br />
josesaramago.org/6447.html Acesso em: 05/4/20<strong>12</strong>.<br />
______. A <strong>jan</strong>gada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (Companhia<br />
de Bolso).<br />
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RESUMO:<br />
ENCENAÇõES DO FANTáSTICO E DO ABSURDO EM<br />
VERONICA STIGGER 1<br />
Maria Fernanda Garbero de Aragão<br />
Este artigo é uma proposta de análise de dois contos de Veronica Stigger,<br />
tendo como hipótese a criação ficcional de contextos que, ao proporem uma<br />
intensa ruptura com o real, conduzem o leitor ao encontro de uma escritura<br />
fantástica. Para isso, fazem parte deste trabalho os textos “Tristeza e Isidoro”,<br />
de Gran cabaret demenzial (Cosac Naify, 2007), e “Curta-metragem”, contoroteiro<br />
dividido em duas partes, de Os anões (Cosac Naify, 2009). A partir da<br />
ideia de que nessas construções verifica-se uma descrença no diálogo como<br />
possibilidade de interação entre as personagens, observa-se a elaboração<br />
de outras perspectivas de mediações afetivas viáveis a esses cenários que,<br />
de certa forma, conduzem à estranheza. Ademais, uma proximidade entre o<br />
universo narrativo de Stigger e o Teatro do Absurdo também se configura,<br />
pois as inserções da desolação e da incomunicabilidade do homem moderno<br />
rompem com a dramaturgia tradicional e estabelecem novos sentidos. Ao<br />
avesso, as personagens aqui presentes experimentam o caos e encenam<br />
precárias sobrevivências entre acidentes, quedas e cacos.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Ruptura; fantástico; absurdo; contemporaneidade.<br />
Introdução<br />
Começar pelas palavras finais de Tvetan Todorov (1980) 2 , em Introdução à<br />
Literatura Fantástica, parece-nos um caminho interessante para pensar as<br />
fronteiras entre realidade e ficção no texto fantástico. De acordo com o crítico,<br />
“A operação que consiste em conciliar o possível e o impossível pode chegar<br />
a definir a palavra “impossível”. E entretanto, a literatura é: eis aqui seu maior<br />
paradoxo.” (TODOROV, 2003, p. 187).<br />
O paradoxo da literatura, assim, permite rupturas e dissoluções de sentidos<br />
capazes de promoverem novas configurações acerca do provável, logo, das<br />
referências ao mundo real. As ressignificações que se operam no texto literário<br />
conduzem à compreensão de elementos que, na ficção, representam outras<br />
1 Maria Fernanda Garbero de Aragão é doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio<br />
de Janeiro e Professora Ad<strong>jun</strong>ta de Literatura Brasileira na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.<br />
2 A edição analisada neste artigo é de 2003, publicada pela editora Perspectiva.<br />
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formas de ler o que poderíamos considerar, em seu aspecto amplo, diferentes<br />
realidades. Estas, por sua vez, são aceitas nesses textos, ao estabelecerem<br />
um “pacto ficcional”, segundo Umberto Eco (1994), em Seis passeios pelos<br />
bosques da ficção. É dessa aceitabilidade que o texto ficcional se realiza para<br />
o leitor, o qual encontrará verossimilhanças, não verdades, e estará consciente<br />
da suspensão de uma relação direta com o seu mundo real.<br />
As relações construídas com o texto fantástico, com efeito, acarretam perspectivas<br />
de distância e de recriações ainda maiores, pois é preciso crer que é pelo<br />
viés de uma construção insólita, impossível, que as significações se projetam.<br />
O encontro com o fantástico retira o leitor de suas certezas, forçando-o a,<br />
continuamente, reelaborar seus pressupostos acerca das correspondências<br />
com o que se crê como viável e, por que não, verossímil.<br />
É a partir de um olhar dialético, formado por sequenciais dissoluções e reconstruções<br />
de sentido, que vemos nas narrativas da escritora gaúcha Veronica Stigger um<br />
relevante cenário para o trato do fantástico na literatura brasileira contemporânea.<br />
Seus textos conjugam o bizarro e o improvável em situações que, na composição<br />
ficcional, se tornam parte das relações entre as personagens e seus contextos. A<br />
ironia é uma das figuras mais importantes dessa composição: a autora “brinca”<br />
com o intratável, joga com as mazelas e miserabilidades, e as traduz numa<br />
banalidade constitutiva de nossa relação com o outro, inserindo nesses cenários<br />
uma mirada à condição trágica. Incômodas, impertinentes e deslocadas, essas<br />
personagens fantásticas nos questionam através de situações absurdas, e é pela<br />
ruptura com o possível que o paradoxo da literatura se perfaz.<br />
Absurdo e fantástico, encenações teóricas em Veronica Stigger<br />
Fazer uma seleção entre os contos de Stigger, para analisar o fantástico nessa<br />
escritura, é encontrar-se com uma série de possibilidades que, até quando se<br />
mostram menos insólitas, são atravessadas por circunstâncias bizarras. Desde<br />
seu primeiro livro, O trágico e outras comédias (2004), a aposta na criação de<br />
enredos absurdos confirma uma característica indissociável de sua escritura.<br />
Com efeito, algumas composições de personagem ganham relevo, como é o<br />
caso da reincidência de casais que parecem formar uma personagem contígua:<br />
as situações por eles experienciadas se projetam em duplicada e redimensionam<br />
nossa percepção acerca dessas experiências.<br />
Eles aparecem em vários momentos, como em “Rotina” (2004), com o casal que<br />
estabelece um diálogo precário pela adivinhação dos sonhos do parceiro; “O<br />
cubículo” (2007), narrativa nonsense em que, oprimidos pelos abusivos aluguéis,<br />
ambos passam a viver no ânus do amigo; “Escada rolante” (2007), conto em<br />
que uma turista suíça tem seu corpo tragado ao subir a escada de um shopping,<br />
servindo-se de espetáculo ao marido que assiste à cena contemplativamente;<br />
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“200 m²” (2009), biografia fantástica da autora e seu esposo, na qual encenam<br />
uma performance do absurdo; “Os anões” (2009), na composição trágica de<br />
dois anões espancados até o desfalecimento pleno, numa confeitaria, além de<br />
“Tristeza e Isidoro” (2007) e “Curta-metragem” (2009), sobre os quais teceremos<br />
nossas considerações neste estudo.<br />
“Tristeza e Isidoro” e “Curta-metragem” conduzem à releitura do “Teatro do<br />
Absurdo”, principalmente em relação às personagens de Eugène Ionesco.<br />
Segundo a perspectiva do crítico teatral Martin Esslin 3 , o termo “absurdo”<br />
definiria peças cuja união entre comicidade e tragédia delineia a deriva como<br />
condição indissolúvel no trato das personagens, e as inserções da desolação<br />
e da incomunicabilidade do homem moderno rompem com a dramaturgia<br />
tradicional. Por outro lado, embora a ruptura seja a marca da novidade, são as<br />
inserções de elementos tradicionais que tornam essa tendência interessante,<br />
pois o retorno é trazido na diferença. Assim, como exemplo, vemos o resgate da<br />
comédia de nonsense (com falas, a princípio, desconexas); dos mimodramas<br />
(espetáculos gestuais surgidos na antiguidade greco-romana); da commedia<br />
dell’arte (gênero cômico entre os séculos XVI e XVIII) e do vaudeville (mescla<br />
de números musicais burlescos, cômicos e de dança).<br />
O nonsense se sobressai como recurso de Veronica Stigger em grande parte<br />
dessas construções, e o diálogo com as personagens de Ionesco, como o Sr. e<br />
a Sra. Martin, da peça “A cantora careca” (1950) 4 , decorre de uma elaboração<br />
discursiva que, ao não se concretizar como mediadora de compreensões, provoca<br />
o espectador a reelaborar novos sentidos ao que lhe é apresentado. Na cena IV,<br />
vemos o casal discutir se eles se conhecem ou não, e elementos que denotam<br />
a incomunicabilidade em questão são atribuídos às falas, gradativamente:<br />
“(...) SR. MARTIN: Desculpe minha senhora, mas me parece, se não estou<br />
enganado, que a conheço de algum lugar.<br />
SRA. MARTIN: Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum<br />
lugar. (...)<br />
SR. MARTIN: Desde que cheguei a Londres, moro na Rua Bromfield, minha<br />
cara senhora.<br />
SRA. MARTIN: Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha<br />
chegada a Londres, moro na Rua Bromfield, meu caro senhor. (...)<br />
SR. MARTIN: Eu tenho uma filhinha, minha filhinha, ela mora comigo, minha<br />
cara senhora. Ela tem dois anos, é loira, tem um olho branco e um olho<br />
vermelho, é muito bonita e se chama Alice, minha cara senhora.<br />
SRA. MARTIN: Que estranha coincidência! Eu também tenho uma filhinha,<br />
ela tem dois anos, um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e<br />
também se chama Alice, meu caro senhor.<br />
SR. MARTIN: [com a mesma voz arrastada, monótona] Que curioso e que<br />
coincidência! E estranho! Talvez seja a mesma, minha cara senhora!<br />
SRA. MARTIN: Que curioso! É bem possível, meu caro senhor. (...) (IONESCO,<br />
1999, p.27)”<br />
3 Esslin não fala de movimento teatral, mas sim de uma tendência verificada no final dos anos cinquenta, no<br />
contexto Pós-Guerra.<br />
4 A edição presente neste artigo é a de 1999, publicada pela editora Papirus.<br />
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Ao termino da cena, é pela descoberta das personagens – são casados – que<br />
se verifica a inscrição do absurdo, uma vez que é preciso aceitar a proposta de<br />
encenação como construtora de sentidos não aparentes no texto escrito. Assim, o<br />
que não é dito precisa das inferências operadas pelos leitores/espectadores. Na<br />
há dúvidas de que se trata de uma inter-relação cômico-trágica; a ironia viabiliza<br />
a proposta crítica de Ionesco, quanto ao desconhecimento do outro tão próximo,<br />
com o qual já não parecem mais possíveis quaisquer partilhas de entendimento.<br />
Em “Tristeza e Isidoro”, título que conduz a uma inevitável referência à imprecisa<br />
lenda medieval 5 , o questionamento do diálogo/discurso, como construtor de<br />
sentidos entre as personagens, revela que algumas mediações são inviáveis,<br />
pois a comunicação parece interrompida, inconclusa e, sobretudo, codificada por<br />
códigos desconhecidos, a princípio. O reconhecimento desse impasse faz-se ainda<br />
mais latente em decorrência dos gêneros imbricados nessa composição híbrida<br />
de textos que são apresentados como “contos”, como no caso da peça-conto em<br />
análise, a qual, no livro, traz a legenda: “Drama, ato único” (STIGGER, 2007, p. 82).<br />
Como no texto teatral, são pelas rubricas que temos acesso ao contexto em que<br />
as personagens tecem seus diálogos. Neste caso, um acidente automobilístico<br />
inicial é o mote para a composição cênica emergente do caos, aos cacos.<br />
Em vão, Tristeza e Isidoro tentam atabalhoadamente uma conversa capaz<br />
de solucionar a saída do veiculo acidentado. É neste momento que vemos a<br />
con<strong>jun</strong>ção de elementos provenientes do Teatro do Absurdo em enclave com as<br />
teorias a respeito da literatura fantástica. E, se as falas denotam incompreensões,<br />
religando a autora a Ionesco, a série de pequenos incidentes decorrentes desse<br />
diálogo impossível nos remete às narrativas de Kafka; o improvável é elevado<br />
à condição de protagonista, atuando <strong>jun</strong>to às personagens, conduzindo suas<br />
ações. O acidente inicial vai perdendo sua perspectiva de marcação nas cenas<br />
que o sucedem, e outras situações insólitas parecem convergir nesse contexto.<br />
Concomitantemente ao desespero entoado por Tristeza, ao sentir a porta cair<br />
sobre os seus dedos numa das bizarras tentativas de sair do carro, Isidoro canta<br />
canções de bossa nova em que o nome da mulher aparece, misturando-as com<br />
gargalhadas. Uma série de novos machucados se processa e, quando o leitor<br />
espera pelo final trágico de um dos dois, senão de ambos, um novo ciclo de<br />
situações estranhas se inscreve. Ainda que este leitor vacile sobre as certezas<br />
quanto às possibilidades de sobrevivência, ele precisa aceitar que as personagens<br />
saem do carro com vida, bem como uma gravidez – mostrada somente no final<br />
– que não inviabiliza um sem números de contorcionismos, dentro de um espaço<br />
exíguo, desempenhados por Tristeza durante o texto. Além disso, é necessário<br />
pactuar com a não revelação do motivo pelo qual não podem acionar a polícia,<br />
suspendendo, assim, um desfecho capaz de explicar a tensão do casal que parece<br />
5 Embora reconheçamos que a escolha do título não seja fortuita, o enredo de “Tristeza e Isidoro” não propõe<br />
relações com as histórias concernentes à lenda de Tristão e Isolda. No presente texto, isso funciona como um jogo com<br />
os nomes das personagens e, sobre essa inversão, incide mais uma possibilidade de ruptura dos signos.<br />
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fugir de alguém. A peça-conto termina com os dois fora do veículo, e Tristeza<br />
contando histórias trágicas que Isidoro desconhece, porém ouve deitado sobre<br />
seu colo. Assim, as “bizarras canções de ninar” ratificam a incomunicabilidade,<br />
marca da relação entre as personagens e o mundo do qual elas fogem.<br />
O acidente se torna banal, atribuído de elementos estranhos, cujas construções<br />
na ficção são modeladas pela ironia e pelo que de menos usual delas seja<br />
possível prever, além de forçarem a recomposição de cenários fantásticos, onde<br />
o impossível conduz os elementos ali presentes, suspendendo-os, distorcendoos,<br />
para mostrar sentidos pelo avesso. Tristeza e Isidoro podem ser lidos pelo<br />
que neles há de insólito, termo que, em Stigger, revigora a ideia do paradoxo da<br />
literatura (recuperando as palavras finais de Todorov) e confirma um investimento<br />
no absurdo, compreendido como algo desmedido e fora do tom (do latim: ab-,<br />
aquilo que deflagra, e surdus, que não pode, não quer ou não deve ouvir).<br />
A interação (entre si e com os contextos e espaços) só pode ser compreendida<br />
pelo nonsense e pela imagem advinda dos espetáculos de vaudeville, sobretudo<br />
no que tange à representação do “Circo dos horrores”; o aspecto humano é<br />
delineado por sua possibilidade caricatural inscrita na aberração. Distantes<br />
de um olhar moralizante, o que vemos nessa inversão de projeção valorativa<br />
é uma possibilidade de narrar o espanto, percurso que traz, à cena literária<br />
contemporânea, a inserção de um olhar – pela fenda – ao incômodo, através<br />
de questionamentos inevitáveis às miradas de um leitor atento e disposto à<br />
aceitação das mediações propostas no texto.<br />
Em “Curta-metragem”, temos uma divisão em duas partes, as quais se conectam<br />
para reafirmarem estranhezas em reciprocidade e consequência. Escrita como<br />
um roteiro cinematográfico do gênero que dá nome ao conto (também sublinhado<br />
por hibridizações), a história referente à primeira parte começa com uma cena<br />
apta à reprodução corriqueira de uma relação a dois, não fosse pelo que se<br />
anuncia ao leitor: “Ele, então, coloca a perna direita sobre a murada da sacada,<br />
projeta o corpo para frente e diz a ela, sorrindo. ELE: Olha só.” (STIGGER, 2009,<br />
p. 15-16). A aceitabilidade do insólito é requisitada continuamente, e tonifica a<br />
percepção do improvável: “ELA: Você podia, pelo menos, trocar essa calça.<br />
Ela volta a assistir à televisão. A câmera retorna a ele e se aproxima até focá-lo<br />
em plano americano. Ele se joga da sacada.” (STIGGER, 2009, p.16). Ao vêlo<br />
estendido sobre a calçada, seus óculos caem e, novamente, é introduzida<br />
no texto a linguagem do cinema, indicando a posição da câmera, que sai do<br />
plano americano (enquadre do joelho para cima), para a projeção de imagens<br />
turvas, fora de foco, sugerindo que a mulher também tenha se atirado, ação<br />
posteriormente confirmada na descrição da cena.<br />
Como continuação, na segunda parte, “Curta-metragem II”, a proposta imagética<br />
recupera o universo das animações infantis: “A imagem vai aparecendo<br />
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gradualmente, do centro para as bordas, como em alguns desenhos animados<br />
antigos.” (STIGGER, 2009, p. 48). A inserção dessas referências recria a aposta<br />
no nonsense, assim como em “Tristeza e Isidoro”, confirmando a ruptura como<br />
mediadora de significados. Após a descrição cênica, aparece o casal, um sobre<br />
o outro, conversando acerca da quebra dos óculos, cujas lentes israelenses<br />
haviam custado muito caro. Embora eles pouco consigam movimentar-se, é da<br />
irrupção de um diálogo aparentemente impossível àquele contexto que emerge<br />
o aspecto cômico, além de estabelecer com o leitor a concordância de que<br />
não seja dita a altura em que se deram as quedas, informação fundamental<br />
para o deslinde das probabilidades de sobrevivência.<br />
Suspensas as referências requeridas pelo mundo real, a impressão de<br />
estranheza permanece irredutível, corroborando a inscrição do fantástico, pois<br />
a sequência das falas sugere que a queda tenha sido deletéria a “ELE”, que<br />
passa a não sentir as próprias pernas, após o salto de “ELA”. O término reforça<br />
o contexto insólito: estendido na calçada, o casal espera um fusca passar, a<br />
fim de confirmar “o mito do fusca” (sempre que este veículo aparece, outro o<br />
procede), mencionado pela mulher. Incompreensíveis, diálogos e personagens<br />
denotam propósitos desconexos e inviáveis, contudo, é de uma perspectiva<br />
capaz de coadunar absurdo e fantástico, que o leitor aceita o impossível como<br />
possibilidade. Na construção de situações estranhas (concernentes ao universo<br />
do fantástico, e não do estranho como gênero, como propõe Todorov), Stigger<br />
convoca seus leitores à aceitabilidade do incômodo, tão presente na imprecisão<br />
de seus enredos. O leitor continuamente é provocado à disposição de novos<br />
sentidos, à troca de lugares que, como numa dança das cadeiras, depende<br />
de sua atenção e agilidade para não ficar fora do jogo.<br />
O fantástico como diferença<br />
No cenário da literatura brasileira contemporânea, não tem sido raro a presença<br />
de autores cuja aposta no insólito parece escrever uma característica de<br />
nosso tempo. Ao lado de escritores como Santiago Nazarian, Joca Reiners<br />
Terron, Ana Paula Maia, João Paulo Cuenca e Cecília Gianetti, apenas para<br />
citar alguns nomes em que podemos verificar uma proposta de ruptura,<br />
bem como de elementos estranhos inseridos em suas narrativas, vemos, em<br />
Veronica Stigger, essa aposta sublinhar sua escritura. Não se trata aqui de<br />
uma incidência episódica, mas sim de um traço presente na maioria de suas<br />
narrativas. A ironia em relação à nossa capacidade de compreensão do real<br />
conduz à leitura desses elementos revelados por uma crença no impossível<br />
como possibilidade na trama ficcional.<br />
Distantes de uma perspectiva alegórica ou maravilhosa, os traços que revelam o<br />
fantástico nessas composições decorrem do que Todorov considera a respeito<br />
da necessária inserção da estranheza, pois “sem ‘acontecimentos estranhos’<br />
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o fantástico não pode nem sequer dar-se. O fantástico não consiste por certo<br />
nesses acontecimentos, mas estes são para ele uma condição necessária.”<br />
(TODOROV, 2003, p. 136). Logo, verificamos, nas narrativas da autora, uma<br />
elaboração simples e direta no trato dessa condição, a qual conjuga espanto<br />
e perplexidade frente às relações das personagens com aquilo que lhes é<br />
apresentado como realidade na ficção. Não há explicações viáveis à inserção<br />
de fenômenos sobrenaturais, bem como não se encontram engendramentos<br />
alegóricos: tudo é direto, com uma precisão de sentidos distorcidos, próprios<br />
de um forte desejo de imprecisão e subversão do real.<br />
Não é por acaso que, em Ficção brasileira contemporânea (2009), Karl Erik<br />
Schollhammer compara algumas transfigurações propostas por Stigger a Kafka,<br />
em A Metamorfose (1915) e ao que o escritor argentino Cesar Aira diz sobre<br />
Raúl Damonte Botana, mais conhecido como Copi. Em relação à primeira<br />
comparação, Karl Erik escolhe como corpus de sua análise a narrativa “Marta<br />
e o minhocão”, de Gran cabaret demenzial. O paralelo entre Stigger e Kafka é<br />
constituído pela inserção do elemento fantástico que, em ambos os contextos,<br />
é tratado com naturalidade pelas personagens. Assim como o inseto de A<br />
Metamorfose, o extravagante minhocão, habitante da casa de Marta, força o<br />
reconhecimento do real através do que se mostra pelo fio da estranheza e,<br />
como afirma Karl Erik “a realidade ganha dimensões fantásticas e suprarreais”.<br />
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 158).<br />
O absurdo como proposta comparativa decorre da menção a Copi, escritor e<br />
dramaturgo argentino do século XX, integrante da companhia de teatro “Grupo<br />
do Pânico”, ao lado do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, uma das<br />
principais referências ao Teatro do Absurdo, <strong>jun</strong>tamente com Ionesco, Samuel<br />
Beckett, entre outros. Ao citar o livro Copi (AIRA, 1991), Karl Erik destaca a<br />
importância da percepção artística no trato de autores como Copi e Stigger,<br />
e propõe uma conclusão que recupera a ideia do paradoxo da literatura a<br />
que se refere Todorov, mencionado no início do presente artigo: “a felicidade<br />
abandona o campo do possível, onde foi enquadrada pela compreensão comum,<br />
para se instalar na realidade do estranho, com tudo o que traz de absurdo e<br />
extravagante.” (SHOLLHAMMER, 2009, p.158).<br />
Essa recorrente menção ao estranho torna-se relevante para algumas reflexões<br />
acerca do termo, recuperando seu conceito em Freud, ora em diálogo com<br />
o que Todorov nos propõe sobre sua relação com o gênero fantástico. De<br />
acordo com as diferenciações estabelecidas no terceiro capítulo (“O Estranho<br />
e o Maravilhoso”) de Introdução à literatura fantástica, Todorov considera que<br />
o fantástico deva ser tratado como um gênero capaz de abarcar sub-gêneros,<br />
nos quais estaria presente o estranho, bem como o maravilhoso, sem excluir a<br />
possibilidade de textos em que tanto um quanto o outro apareceriam “puros”.<br />
No tocante ao “Fantástico-estranho”, ele destaca:<br />
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“Os acontecimentos que com o passar do relato parecem sobrenaturais,<br />
recebem, finalmente, uma explicação racional. O caráter insólito desses<br />
acontecimentos é o que permitiu que durante comprido tempo o personagem<br />
e o leitor acreditassem na intervenção do sobrenatural. A crítica descreveu<br />
(e frequentemente condenou) esta variedade com o nome de ‘sobrenatural<br />
explicado’.” (TODOROV, 2003, p.38).<br />
Como exemplo dessas narrativas, ele menciona O manuscrito de Saragoça<br />
(18<strong>12</strong>), de Jan Potocki. Nesta narrativa em que se conjugam mistérios e elementos<br />
provenientes da cabala, o leitor imerge num universo onírico, decorrente de<br />
circularidades que irrompem o enredo, para trazerem à cena a inserção de<br />
projeções sobrenaturais. Entretanto, é da explicação racional desses “milagres”,<br />
segundo Todorov, que o gênero “fantástico-estranho” se produz. E, após diversas<br />
diferenciações sobre o que o crítico considera como “estranho puro”, ele afirma:<br />
“o estranho não cumpre mais que uma das condições do fantástico: a descrição<br />
de certas reações, em particular, a do medo. Relaciona-se unicamente com os<br />
sentimentos das pessoas e não com um acontecimento material que desafia<br />
a razão.” (TODOROV, 2003, p.40).<br />
Logo, a partir dessa minuciosa análise, algumas questões sobre os gêneros<br />
enviesados na costura ficcional de Stigger parecem romper com esse esquema,<br />
ao proporem, assim como suas narrativas, um olhar conceitual que permita<br />
novos sentidos à teoria sobre a incidência do texto fantástico. O estranho, a que<br />
tantas correspondências verificamos em seus textos, remete-nos à dubiedade<br />
do termo em Freud, em “Das unheimlich” (1919). Como já tratado pelo próprio<br />
autor, a traduzibilidade desse conceito é bastante complexa, uma vez que<br />
as possibilidades lexicais da língua alemã fazem com que as palavras se<br />
envolvam por aspectos filosóficos, como neste caso. Desta forma, o conceito<br />
de “estranho” traduziria, concomitantemente, aquilo que é – e não é – familiar,<br />
daí o incômodo, o desconforto. Em Stigger, ao se confrontar com recriações<br />
de contextos banais, mas tangenciados pela ruptura com o real, o leitor tem<br />
em mãos uma narrativa que suspende suas conjecturas: tudo pode acontecer,<br />
como algo natural, muitas vezes apresentado como único desfecho plausível<br />
e verossímil frente a tantas situações escabrosas e insólitas.<br />
Morar no ânus do amigo; ser engolida pela própria contemplação do umbigo;<br />
ver uma repentina chuva de variados tamanhos e formas de pênis; retirar o<br />
Papa de uma privada sugadora; ter a cabeça cortada por um descuido e<br />
permanecer como espectador de uma peça de teatro, ou ter o corpo multilado<br />
durante um bizarro passeio cronometrado com o namorado 6 são apenas alguns<br />
dos exemplos que, ao lado de “Tristeza e Isidoro” e “Curta-metragem”, nos<br />
levam a refletir acerca de uma construção fantástico-absurda. A <strong>jun</strong>ção desses<br />
gêneros conecta Stigger às narrativas nas quais experienciamos a estranheza,<br />
6 Respectivamente, os enredos fazem referências aos contos: “O cubículo” (2007), “Janice e o umbigo”<br />
(2004), “A chuva” (2004), “Sheila e Miguelão” (2007), “No teatro” (2004) e “Domitila” (2007).<br />
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ao mesmo tempo em que vemos a convergência de diálogos que remontam<br />
aos textos dos dramaturgos do absurdo.<br />
A elaboração literária insere em sua composição escrita uma perspectiva<br />
discursiva proveniente da incomunicabilidade entre as personagens, sem,<br />
porém, anular a compreensão de um discurso hábil à construção de sentidos<br />
às avessas, em consonância com os contextos da autora. O fantástico atua,<br />
assim, nas situações insólitas, e o absurdo, na projeção cênica das falas<br />
proferidas pelas – e sobre – as personagens, encenadas como artifícios que<br />
Stigger encontra para quebrar ainda mais com nossas certezas quanto aos<br />
limites do bizarro nessas narrativas.<br />
Autora e textos respondem ao que Karl Erik afirma sobre alguns escritores<br />
brasileiros contemporâneos, no que tange à relação própria de uma ruptura com<br />
a realidade histórica reconhecível. Segundo ele, “a realidade não é objeto exterior<br />
à ficção, mas a potência de transformação e de criação que nela se expressa.”<br />
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 159). Essa potência de transfiguração/transformação<br />
na escritura de Stigger evidencia um intento literário que, ao coadunar enredos<br />
fantásticos ao absurdo, desvela o paradoxo tão caro à literatura. Como leitores,<br />
vemos possibilidades de existência para as suas situações maquinadas na<br />
impossibilidade. E é aí, onde tudo parece em desencaixe, que as peças nos<br />
questionam e, por inúmeras vezes, debocham de nossas (in)certezas.<br />
Conclusão<br />
O encontro com os textos de Veronica Stigger, sem dúvidas, conduz-nos a<br />
alguns questionamentos acerca do que experienciamos como leitores. Desde o<br />
princípio, é preciso entrar nesse “bosque”, a que se refere Umberto Eco, disposto<br />
ao contorcionismo de suas personagens, exercitando com elas a recriação<br />
de sentidos para o que se mostra em estado de dissolução. Fragmentadas as<br />
certezas sobre o que iremos encontrar, pois no mundo de Stigger tudo pode<br />
acontecer, aceitamos que aquilo projetado na inverossimilhança possa – e deva<br />
– ganhar significados em ruptura, sempre dispostos a novas ressignificações.<br />
Assim como suas personagens podem sofrer quaisquer metamorfoses, o texto,<br />
como objeto literário, também traz a reboque uma capacidade de hibridização<br />
conceitual, alinhando-se aos pressupostos do texto fantástico e aos procedimentos<br />
discursivos decorrentes do Teatro do Absurdo.<br />
Com efeito, a formação de Stigger – crítica literária e professora de história<br />
da arte – contribui para o trânsito livre e, por que não, despretensioso, entre<br />
perspectivas teóricas, auxiliando-a para que essas inserções sejam traduzidas<br />
em narrativas que, ambivalentemente, incomodam e provocam gargalhadas<br />
em seus leitores. Suas histórias são cômicas, escandalosas, tonificadas pela<br />
infinidade de palavrão que, como diz Karl Erik, é “usado e abusado com a<br />
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alegria de uma criança que descobre a força da palavra proibida e insiste nela<br />
até o esgotamento.” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 156).<br />
Debochada, irônica e mordaz, vemos nessa escritura uma <strong>jun</strong>ção de conceitos e<br />
brincadeiras correspondente ao texto de fruição a que se refere Roland Barthes,<br />
em O prazer do texto (1973). É quando tudo parece sem sentido, sem propósito,<br />
que somos forçados à reelaboração de nossas crenças, inclusive sobre nossas<br />
projeções no trato do texto de ficção. E, nesse “deixar levar-se”, o fantástico e o<br />
absurdo conduzem os leitores à experimentação de circunstâncias nas quais o<br />
bizarro é natural, e o insólito se configura como matéria essencial à fabulação<br />
de novos sentidos. O texto de prazer surge no “momento em que meu corpo<br />
vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias<br />
que eu”. (BARTHES, 1973, p. 24) e, <strong>jun</strong>tos, experienciaremos o paradoxo como<br />
mote, mediação e desfecho.<br />
PERFORMANCES OF THE FANTASTIC AND ABSURD IN<br />
VERONICA STIGGER<br />
ABSTRACT:<br />
This article is an analysis proposal of two tales of Veronica Stigger, considering<br />
the fictional creation of contexts by proposing a severe break with reality,<br />
conduct the reader to meet a fantastic writing. To achieve this aim, the texts<br />
“Tristeza e Isidoro”, of Gran cabaret demenzial (Cosac Naify, 2007) and “Curtametragem”,<br />
script-tale in two parts of Os anões (Cosac Naify, 2009) form part<br />
of this study. Based on the idea that in these constructions there is a distrust of<br />
dialogue as the possibility of interaction between the characters, is noticeable<br />
the development of other viable ways of affective mediations to these scenarios<br />
that somehow suggest the concept of uncanny. In this perspective, it is noticed<br />
also a proximity between the Stigger’s narrative universe and the Theater of the<br />
Absurd, in which the insertions of desolation and incommunicability of modern<br />
man break with the traditional dramaturgy and set new directions. Inside out,<br />
the characters present here experience the chaos and act out precarious forms<br />
of survival among accidents, falls and pieces.<br />
KEYWORDS:<br />
Rupture; fantastic; absurd; contemporaneity.<br />
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REFERÊNCIAS<br />
BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. 5ª edição. São<br />
Paulo: Perspectiva, 2010.<br />
ESSLIN, M. The theater of the absurd. Londres: Randon House IC, 2004.<br />
FREUD, S. Lo siniestro. In: Obras Completas. Tomo III. Trad. Luis Lopes Ballesteros<br />
y de Torre. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.<br />
IONESCO, E. A cantora careca. São Paulo: Editora Papirus, 1999.<br />
SCHOLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 2010.<br />
STIGGER, V. O trágico e outras comédias. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.<br />
______. Gran Cabaret Demenzial. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2007.<br />
______. Os anões. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009.<br />
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Coleção Debates 98. 2ª edição.<br />
São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />
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RESUMO:<br />
POLÍTICA DO FANTáSTICO<br />
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Nuno Manna<br />
Este trabalho busca refletir sobre uma dimensão política implicada no fantástico,<br />
a partir de uma análise sobre a configuração sensível constituída por suas<br />
narrativas e sobre a normatividade do saber moderno. Para isso, evocamos uma<br />
compreensão de política baseada sobretudo na teoria de Jacques Rancière,<br />
e em seus conceitos de partilha do sensível, dissenso, e um entendimento de<br />
democracia baseada não na semelhança, mas nas diferenças. Além disso,<br />
convocamos as contribuições de contos de autores como Poe, Hawthorne e<br />
Borges para uma análise de uma potência política do fantástico.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Fantástico; política; Rancière<br />
“A verdade não penetra num entendimento rebelde.”<br />
(O Aleph, Jorge Luis Borges)<br />
Se por um lado o projeto civilizatório do homem moderno pode ser caracterizado<br />
por um saber fundado em valores como a ordem, a racionalidade, a razoabilidade,<br />
o equilíbrio, o progresso, em noções como as de positividade, de linearidade,<br />
de atualidade, de correspondência entre causas e consequências, por outro<br />
lado, a literatura da modernidade nos oferece um vastíssimo repertório que<br />
coloca em crise tal empreendimento. Ou ainda, mais do que isso, essa literatura<br />
revela que tal empreendimento só existe em função de uma crise constante do<br />
pensamento ocidental. Se à luz o saber moderno é coerente e transparente,<br />
nas sombras ele se escreve ambíguo, misterioso, opaco.<br />
Essas expressões da parte da sombra do pensamento moderno podem ser<br />
encontradas no terror gótico de Marry Shelley ou Bram Stocker, no romantismo<br />
de Hoffmann, Poe ou Maupassant, na werid fiction de Lovecraft, nas parábolas<br />
de Kafka ou Rubião, na ficção científica de Welles e Clarke, no insólito cotidiano<br />
de Borges e Cortázar, no realismo mágico de García Marquez ou Saramago...<br />
Ultrapassando definições e limitações de gênero, todas essas expressões<br />
podem ser reunidas pela insígnia do fantástico, termo que define aqui não uma<br />
generalidade abstrata que abarca uma diversidade de “não-realismos”, mas<br />
aquilo que atravessa cada uma dessas manifestações literárias de maneira<br />
98
fundamental: construções narrativas cujas operações despragmatizantes e<br />
desfamiliarizantes colocam em crise a progressividade da experiência temporal;<br />
e se qualquer narrativa é fundada por um processo dinâmico de concordância<br />
discordante (RICOEUR, 1994), as narrativas fantásticas são aquelas em que<br />
a dimensão discordante – encarnada na sobrenaturalidade, no absurdo, no<br />
irrazoável, no insólito – se põe a desafiar a concordância – a normalidade, a<br />
estabilidade, o equilíbrio, a ordem.<br />
Enquanto cada expressão do fantástico possui uma maneira singular de colocar<br />
tais operações em jogo e, assim, constituir singulares implicações, é inegável a<br />
maneira como todas elas colocam em questão uma visão unívoca da realidade<br />
coletivamente compartilhada, entram em conflito com a normatividade de um<br />
saber que define como as coisas são, como devem ser vistas e compreendidas.<br />
Nesse sentido, como apontam os mais diversos estudos desse universo de<br />
narrativas, o fantástico é caracterizado por um motor transgressivo em relação<br />
a um saber monumental, uma vez que não simplesmente nega ou fantasia o<br />
real, mas oferece novos e desafiadores olhares sobre ele.<br />
Se parece inegável a dimensão poética que tal compreensão do fantástico<br />
implica, em um sentido de ação criadora da poiesis, nos lançamos à possibilidade<br />
de perceber nessa ação transgressiva uma dimensão política do fantástico.<br />
Cabe-nos, nessa breve reflexão, não simplesmente comprovar a efetividade<br />
de tal dimensão, mas precisar que compreensão de política é colocada em<br />
jogo na relação fantástico/política.<br />
No prefácio do livro Políticas da escrita (1994), o filósofo francês Jacques Rancière<br />
nos diz que escrever é um ato que não pode ser realizado sem significar, ao<br />
mesmo tempo, aquilo que realiza: “[...] uma relação da mão que traça linhas ou<br />
signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com<br />
os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade<br />
com a sua própria alma.” (1994, p. 7) Nesse prefácio, podemos encontrar o cerne<br />
de uma compreensão sobre a relação entre estética e política – tema ao qual<br />
Rancière tem se debruçado há décadas –, particularmente ali sobre a conexão<br />
entre a política e a escrita. Segundo ele, a escrita é coisa política não porque é<br />
o instrumento do poder ou a via real do saber. Antes de ser o exercício de uma<br />
competência, a escrita é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a<br />
essa ocupação; e é exatamente esse seu gesto que a torna coisa política, uma<br />
vez que ela “[...] pertence à constituição estética da comunidade e se presta,<br />
acima de tudo, a alegorizar essa constituição.” (1994, p. 7)<br />
O pensamento de Rancière parece-nos valioso para a compreensão de uma<br />
dimensão política implicada na narrativa fantástica, em primeiro lugar, ao oferecer<br />
uma percepção da política que não se restringe ao diagnóstico de que a linguagem<br />
é fundada por ideologia e fundadora de relações de poder – e, nesse sentido,<br />
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qualquer narrativa teria uma dimensão política –; em segundo lugar, o pensamento<br />
rancieriano se desfilia de uma noção de política tradicional que prevê uma troca<br />
pública de razões em uma cena previamente estabelecida, ou, ainda, que supõe<br />
a política pelo simples exercício de/luta por poder. Para Rancière a política opera<br />
no estabelecimento de uma partilha do sensível, em uma divisão dos espaços<br />
reais e simbólicos, na criação de uma forma de visibilidade e de dizibilidade do<br />
que é próprio e do que é comum. Em um sentido ainda mais fundamental, essa<br />
partilha oferece uma divisão entre o que é e o que não é visível, distingue o que<br />
é da ordem do discurso e o que constitui simples ruído dos corpos. É por essa<br />
dimensão que a escrita pode ser política, uma vez que ela “[...] traça, e significa,<br />
uma re-divisão entre as posições dos corpos, sejam eles quais forem, e o poder<br />
da palavra soberana, porque opera uma re-divisão entre a ordem do discurso e<br />
a das condições.” (1994, p. 8)<br />
A tarefa a que nos propomos aqui é a de promover uma reflexão sobre uma<br />
dimensão política em uma modalidade particular de ocupação do sensível, a<br />
qual Rancière parece nunca ter se dedicado em sua obra: a narrativa fantástica<br />
– tomada nesse ensaio em suas expressões literárias. Que configurações do<br />
sensível são tecidas pela narrativa fantástica? Que relações entre modos do fazer,<br />
do ser e do dizer são constituídas? Como o fantástico (re-)distribui os corpos e<br />
entendimentos em relação a suas atribuições e finalidades? Todas essas são<br />
questões que nos animam nesse exercício. Não propomos um apanhado sistemático<br />
de um conceito de política que tem em Rancière um importante teórico, nem<br />
mesmo um apanhado de manifestações ficcionais do fantástico (implicadas,<br />
aqui, por suas cargas teóricas); trata-se da promoção de uma interlocução e um<br />
diálogo teórico entre eles, tentando não dobrar levianamente um ao outro, mas<br />
deixando-nos afetar, nas páginas que se seguem, por um e por outro.<br />
Reductio ad absurdum<br />
Interessado em conhecer de perto um singular método de tratamento da loucura,<br />
um homem decide fazer uma visita à Maison de Santé, uma instituição manicomial<br />
pioneira em tal método. O diretor da instituição Monsieur Maillar resume ao<br />
homem no que consistia a famosa “prática de apaziguamento” na lida com os<br />
pacientes: “Não contradizíamos quaisquer fantasias que entravam na cabeça do<br />
enlouquecido; pelo contrário: não apenas as tolerávamos como as estimulávamos.”<br />
(POE, 2009, s/p, grifos do autor) Em seguida, o diretor exemplifica:<br />
Tivemos homens, por exemplo, que se imaginavam frangos. A cura consistia<br />
em tomar a ideia como um fato, acusar o paciente de estupidez por não<br />
a perceber competentemente como um fato, e assim negar-lhe, por uma<br />
semana, qualquer outro tipo de dieta que não fosse propriamente típica a<br />
um frango. Desse modo, um pouco de milho e cascalho faziam maravilhas!<br />
(2009, s/p, grifos do autor)<br />
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Convidado a ficar para o <strong>jan</strong>tar <strong>jun</strong>to aos funcionários do manicômio, o homem<br />
se vê diante de um grupo de pessoas de comportamento esdrúxulo, que<br />
proseava, ria, cometia milhares de absurdos ao som de violinos que guinchavam<br />
e trombones que berravam como muitos touros de latão de Faláris. “De modo<br />
geral, não podia deixar de pensar que tudo o que via tinha algo de bizarre –<br />
contudo, o mundo é feito de todos os tipos de pessoas, com vários modos de<br />
pensar e diferentes tipos de hábitos convencionais” (2009, s/p, grifos do autor),<br />
ponderou ele. Enquanto isso, Monsieur Maillard explicava-lhe que tal prática de<br />
apaziguamento havia há algum tempo sido suspensa, depois de descobrirem<br />
a duras penas que nunca é seguro deixar um louco livre, sem ser vigiado.<br />
Um lunático pode ser “apaziguado”, como se diz, por algum tempo, mas,<br />
no fim, é muito provável que se torne turbulento. Sua astúcia, além disso, é<br />
grande e notória. Se tem algo em mente, disfarça seu intento com maravilhosa<br />
prudência, e a habilidade com que dissimula sanidade apresenta, ao metafísico,<br />
um dos mais singulares problemas no estudo da mente. Quando um louco<br />
aparenta ser completamente são, já está mais do que na hora de metê-lo<br />
numa camisa de força. (2009, s/p, grifos do autor)<br />
Se a estranha situação parece desde o início contaminada por bizarria e<br />
sarcasmo, ao final descobriremos que Monsieur Maillard, dois ou três anos<br />
antes, por ter sido acometido ele mesmo pela loucura, passara de diretor a<br />
paciente. Como tal, um tempo depois, liderou uma rebelião, quando não só a<br />
situação de dominação se inverteu, como os novos pacientes passaram a ser<br />
tratados a piche e penas, além de um pouco de pão e de água em abundância<br />
– “A última, através de uma boma, lhes era jorrada diariamente.” (2009, s/p). A<br />
situação, no entanto, ao final daquela noite, é contornada com a insurgência<br />
dos presos, e a ordem original é restabelecida.<br />
Tendo presenciado a situação, o visitante conta que o sistema de apaziguamento,<br />
com importantes modificações, foi readotado no château, e comenta: “Contudo,<br />
não posso deixar de concordar com Monsieur Maillard: seu próprio sistema<br />
de ‘tratamento’ era, realmente, de primeira. Como ele mesmo observou com<br />
exatidão, era ‘simples, asseado, sem apresentar problemas – nem mesmo o<br />
menor deles.’” (2009, s/p)<br />
O cômico conto de Poe O sistema do Doutor Pixe e do Professor Penna é<br />
exemplar no sentido de colocar em cena, de maneira bastante radical, uma<br />
redistribuição de lugares e de identidades, um rearranjo na hierarquia que<br />
define quem profere palavra e quem profere ruído. No manicômio, recorte de<br />
comunidade, as relações de poder são fortemente demarcadas, instituem quem<br />
detém a razão e quem sofre sua falta, definem dominadores e dominados.<br />
Nessa ordem, os loucos não constituem o excesso ou a falta, mas, nos termos<br />
de Rancière, a parte dos sem parte. Ao, ironicamente, colocar os loucos como<br />
detentores da palavra e inverter a situação de dominação, Poe promove uma<br />
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confusão na distinção entre sujeitos falantes e animais barulhentos. Mesmo com<br />
o retorno a uma situação inicial de “equilíbrio”, experienciamos a irrazoabilidade<br />
que funda os postos dessa comunidade. De uma realidade saturada, passamos<br />
a percebê-la por algo que lhe falta ou que lhe sobra, um ruído que se instaura<br />
na conta que inicialmente estabelecia o que era possível, pensável, dizível.<br />
Não por acaso, o conto de Poe é mencionado, ainda que em uma pequena nota,<br />
no texto de Rancière O continente democrático (1994). Neste ensaio, Rancière<br />
explicita sua visão de política, particularmente da noção de democracia, a<br />
partir de uma crítica a uma concepção tradicional de democracia das ciências<br />
políticas, que tem os EUA como principal representante e Alexis de Tocqueville<br />
seu grande teórico/entusiasta. Rancière aponta que, para a teoria tocquevilliana, a<br />
igualdade se traduz na democracia estadunidense na medida em que, nos EUA,<br />
todas as leis sairiam do mesmo pensamento, toda a sociedade se baseariam<br />
em um único fato, tudo decorreria de um princípio único. É uma democracia da<br />
luz, de um espaço simbólico da visibilidade integral e da semelhança infinita.<br />
Uma vez mantido o princípio, a igualdade das condições, vê-se tudo. Tudo<br />
é identicamente repetição do princípio. A igualdade é uma estrutura do<br />
visível: a igual visibilidade do semelhante. A América é o lugar da visibilidade<br />
perfeita das condições e é o lugar que se assemelha infinitamente a si<br />
mesmo. (1994, p. 192)<br />
Nessa perspectiva, como aponta Rancière, a democracia não é uma cena<br />
política, mas um estado dos corpos, um estado do social, em que o princípio<br />
da política se realiza esquecendo a si mesmo, absorvendo o excesso, o ser<br />
a mais, o que sobra da visibilidade e que produz a perturbação democrática.<br />
Na concepção tocquevilliana, a democracia estadunidense seria exemplar de<br />
uma boa democracia, boa porque excepcional, excepcional porque virgem,<br />
pura de qualquer antecedência em relação a si mesma, de qualquer mácula<br />
nascida de um combate contra um regime adverso. “A América é a democracia<br />
semelhante a si em toda parte, perfeitamente visível, perfeitamente opaca. Nela<br />
a democracia é absorvida exatamente em sua matéria, o social.” (1994, p. 200)<br />
Rancière critica essa visão de democracia, afirmando que a América para<br />
Tocqueville é uma utopia sociológica, uma utopia da democracia exatamente<br />
semelhante à sua ausência, do visível absolutamente exposto/absolutamente<br />
opaco. Essa “boa” democracia, a democracia anestesiada, ignora uma relação<br />
tensa do visível e do invisível, ignora o que está no âmago da democracia tal<br />
como Rancière busca evidenciar:<br />
[...] a fronteira instável, perpetuamente contestada e perpetuamente cruzada,<br />
às vezes erguida em barricada, a fronteira onde se definem as relações entre<br />
o ver e o não ver, ser visto ou não ser visto, ser visível e ser dizível; a fronteira<br />
onde o ânimo dá a si mesmo um nome que é o de alguma comunidade, onde<br />
o qualquer dá a si mesmo uma forma que é a da multidão, mas também, ao<br />
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contrário, o lugar onde aquilo que estava reunido se dispersa novamente,<br />
condenado à mentira o que era verdade, onde a promessa desfeita corre o<br />
risco de se transformar em ódio que reúne. O lugar da democracia é o da<br />
visibilidade provisória e ambígua, da verdade inverossímil. (1994, p. 200-201)<br />
É esse visível problemático, essa verdade inverossímil que Poe instala em seu<br />
conto, e é por isso que ele é convocado por Rancière. A América (espaço<br />
simbólico) de Poe é uma manifestação dessa democracia viva, essa “má”<br />
democracia, em toda sua plenitude e sua radicalidade, configuração de jogos<br />
do múltiplo que, nos termos de Rancière, se faz e se desfaz nas relações<br />
complexas do visível e do dizível. A América não do consenso, mas do dissenso 1 .<br />
Nesse sentido, aponta Rancière, o lugar da visibilidade do semelhante da “boa”<br />
democracia relatada nas utopias sociológicas pouco se assemelha à América<br />
de seus ficcionistas; este, um território de um visível sempre problemático.<br />
[...] onde há, não apenas um índio ou um bandido virtualmente oculto atrás<br />
de cada arbusto, porém, mais profundamente, um segredo por trás de<br />
cada porta e cada corpo; um alienado escondido em cada diretor de asilo,<br />
um culpado em cada inocente e um inocente em cada culpado, uma turba<br />
histérica em cada multidão de pessoas honestas e [...] uma inverossimilhança<br />
em cada verdade. (1994, p. 192-193)<br />
Quando se refere aos ficcionistas da literatura estadunidense, Rancière menciona<br />
nominalmente Poe e Hawthorne, deste último pontuando seu romance A letra<br />
escarlate. O conto de Poe e o romance de Hawthorne têm lugar importante na<br />
argumentação de Rancière por encarnar a tematização de uma comunidade<br />
ordenada invadida pela ambiguidade, pela diferença, ou mesmo pela inversão.<br />
Ali, vemos de forma claramente manifesta, a ordem que fixa pessoas, suas<br />
palavras e sentidos, no tempo e no espaço, que prevê e limita as capacidades<br />
de atuação e visibilidade, que delimita a parcela dos sem parcela e a vemos<br />
ser invadida pelo jogo que tira corpos e entendimentos do lugar previsto, a<br />
instauração de uma cena dissensual.<br />
No entanto, o fato de que Poe e Hawthorne representam autores emblemáticos<br />
das manifestações literárias do fantástico não parece pesar na análise do<br />
filósofo. As próprias obras mencionadas não são exatamente exemplares por<br />
possuírem aspectos fantásticos marcantes, se levarmos em conta outras inúmeras<br />
outras que se baseariam fortemente em tal dimensão. Perguntamo-nos, então,<br />
ultrapassando um pouco o escopo de Rancière, que configurações podem ser<br />
criadas e que implicações políticas estabelecidas quando o fantástico tem um<br />
papel ainda mais protagonista na constituição de uma narrativa. Não é preciso<br />
ir longe para encontrá-las.<br />
1 Compreende-se aqui porque Rancière é frequentemente associado ao pensamento da democracia radical,<br />
que tem em Chantal Mouffe e Ernesto Laclau alguns de seus representantes, e que é crítico em relação a qualquer<br />
forma de projeto universalista, a formas unívocas de luta (uma vez que as formas de repressão são é múltiplas), que vai<br />
de encontro a noções de identidade e racionalismo e que ressalta a importância da diferença na luta pela igualdade e<br />
pela liberdade.<br />
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O véu negro<br />
A obra de Hawthorne está repleta de exemplares bastante expressivos do efeito<br />
entrópico na concepção da realidade precipitado pela intromissão do insólito.<br />
Seu antológico conto fantástico O jovem Goodman Brown é uma perfeita fábula<br />
de um dano encenado narrativamente. A vida pacata de Goodman (“Bomhomem”)<br />
e sua esposa pura e iluminada Faith (“Fé”) na puritana vila de Salém<br />
é profundamente abalada no momento em que descobre-se que a Salém das<br />
luzes pode ser somente uma face da Salém que se lança às trevas da floresta. O<br />
vislumbramento dessa vida oculta dos habitantes da comunidade, dessas novos<br />
posicionamentos de possíveis em tempos e espaços outros, é o provocador de<br />
um dano que comprometerá para sempre uma percepção de Goodman sobre<br />
a realidade como ordem e transparência. E a dúvida que se sustenta sobre a<br />
natureza daqueles acontecimentos – alucinação?, pesadelo? – será uma eterna<br />
fagulha de dissenso que impedirá qualquer tipo de adesão ou sujeição à realidade<br />
imediata, será uma parcela de vazio que jamais será solapado pela saturação.<br />
Sempre, acordando surpreendentemente no meio da noite, ele abandonava<br />
o peito de Faith; pela manhã ou ao crepúsculo, quando a família se ajoelhava<br />
para orar, ele franzia a testa, sussurrava consigo mesmo, encarando<br />
cortantemente sua esposa, e saía. E depois de viver muito, deixando à cova<br />
um corpo encanecido, secundado por Faith, uma mulher de idade, e pelos<br />
filhos e netos, uma graciosa procissão, além de muitos vizinhos, não foi<br />
esperançoso o epitáfio que gravaram sobre a lápide, pois ele morreu cheio<br />
de culpa e cercado de trevas. (HAWTHORNE, 2008, p. 185)<br />
Impossível não notar que a Salém fissurada de Goodman Brown possui relação<br />
umbilical com a perturbadora Salém de John Hathorne, ancestral de Nathaniel<br />
Hawthorne, juiz e executor nos famosos casos de julgamento por bruxaria<br />
de dezenas de pessoas no final do século XVII – protagonista lembrado<br />
particularmente por ser o único que, em nome do bem e da justiça, nunca se<br />
arrependeu de suas ações.<br />
No conto O véu negro do ministro, Hawthorne encontra uma maneira mais sutil,<br />
mas não menos perturbadora, de precipitar o dissenso no seio de uma ordem<br />
consensual. Dessa vez, Hawthorne não promove grandes deslocamentos<br />
espaço-temporais dos corpos de uma comunidade, mas instaura uma incômoda<br />
alteridade no âmago desse grupo. Na fronte do reverendo, Sr. Hooper, figura<br />
máxima da santidade na comunidade, estendeu-se um véu negro, interrompendo<br />
o trajeto direto do olhar entre ele e seus paroquianos, entre ele e a Divindade.<br />
Nada a princípio sobrenatural ou absurdo; insólito justamente porque inacessível<br />
a qualquer entendimento. O mistério e a opacidade do véu impediam o acesso<br />
a qualquer verdade. Ao mesmo tempo em que fechava o ministro com seus<br />
irrevelados demônios, revelava as trevas no espírito de sua própria comunidade.<br />
Diante do pedaço de crepe, mesmo o iluminado médico da aldeia se assombrava:<br />
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– Na inteligência de Sr. Hooper deve haver alguma deficiência [...] Mas a<br />
parte mais estranha dessa extravagância, é o efeito que causa até mesmo<br />
num homem equilibrado como eu. O véu preto, embora cubra apenas o rosto<br />
do nosso pastor, influencia toda a sua pessoa, torna-o fantasmagórico da<br />
cabeça aos pés. (HAWTHORNE, 1991, p. 38)<br />
Ainda que cumprimentasse bondosamente seus paroquianos, ninguém retribuía<br />
a saudação de Sr. Hooper. Ao lado do reverendo que se escondia nas sombras,<br />
ninguém aspirou a honra de caminhar; e menos ainda a de com ele ficar a sós:<br />
“– Por nada desse mundo eu ficaria a sós com ele. Será que ele não tem medo<br />
de ficar a sós consigo mesmo?” (1991, p. 38) O véu negro do ministro – para<br />
os paroquianos e para o leitor – foi responsável por despertar um profundo<br />
sentimento de horror, “[...] nem claramente confessado nem cuidadosamente<br />
disfarçado” (1991, p. 41) Mesmo os pecadores em agonia da morte que gritavam<br />
pelo ministro eram assolados diante seu rosto velado quando ele se abaixava<br />
para murmurar uma palavra de consolo: “[...] tal era o terror provocado pelo<br />
véu, até mesmo no instante em que a Morte mostrava a sua cara!” (1991, p. 44)<br />
No entanto, é no fim de sua própria vida, sem nunca mais ter retirado da face<br />
o pedaço de crepe preto, que o ministro aponta para o véu oculto na fronte de<br />
cada um que o rodeia. Só ele, com as lentes negras e opacas, parece enxergar<br />
a realidade problemática:<br />
– Por que tremeis apenas quando estais diante de mim? - gritou ele, voltando<br />
a face velada para o círculo de espectadores. - Tremeis também vós, uns<br />
diante dos outros! […] Olho em torno de mim, e eis que vejo em cada rosto<br />
um véu negro igual ao meu! (1991, p. 47)<br />
Nos dois contos de Hawthorne, o insólito funciona como uma espécie de catalisador<br />
para a evidenciação de uma cena dissensual, na medida em que produz um<br />
ruído nas relações significante-significado, causa-consequência, planta na teia<br />
de causalidades efeitos que não eram previstos. A desnaturalização, importante<br />
operação para a constituição da política, é o motor da narrativa fantástica. Seja<br />
uma situação delirante (o possível ritual satânico na floresta) ou a imposição<br />
de um misterioso objeto (o véu negro), o fantástico embaralha qualquer relação<br />
ordenada do saber. Nesse sentido, não é a simples irrupção do insólito que<br />
torna fantásticas tais narrativas, a insuperável sombra no rosto do ministro, mas<br />
o poder que o insólito possui de revelar a parte da sombra da realidade. E essa<br />
revelação nunca é a exposição de uma verdade oculta, mas o vislumbre de que<br />
por de trás da verdade está o mistério, vislumbre esse não pode se dar senão<br />
de forma enviesada e errante, ante a opacidade de um véu negro.<br />
No fantástico de Hawthorne ou de Paul, não encontramos o território dos costumes<br />
suaves e do espaço visível de toda parte e semelhante a si mesmo. O mesmo<br />
podemos dizer sobre os territórios de Ambrose Bierce, de Washington Irving,<br />
de Henry James, de Herman Melville, de Francis Marion Crawford, de Charlotte<br />
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Perkins Gilman, entre tantos outros – se ficamos no fantástico estadunidense<br />
do século XIX, de contemporâneos não só das teorias de Tocqueville, mas de<br />
dispositivos fundamentais que caracterizam a tradição do pensamento político<br />
estadunidense, como o Destino Manifesto e a Democracia Jeffersoniana.<br />
Encontramos nesses autores territórios assombrados por algo de outro, ainda<br />
que as ficções sociológicas insistam em enxergar territórios do mesmo.<br />
Podemos perceber, então, que o insólito não se oferece como uma nova razão<br />
posta em jogo, um novo termo para a conta de uma cena saturada, mas um<br />
elemento estranho que embaralha os entendimentos – não necessariamente<br />
dos personagens, mas necessariamente do leitor. O fantástico caracteriza-se,<br />
portanto, questionando a ordem de significados ao suspender as certezas e<br />
apontar para novos horizontes de possíveis, horizontes esses que surgem aqui<br />
de forma absolutamente incômoda e assustadora, justamente porque revelam<br />
as trevas onde a luz era suposta. A narrativa fantástica vem, então, propor<br />
uma nova cenografia do possível, do visível, do dizível, uma cenografia não<br />
de outro possível mas de possíveis outros. Ele quebra a organização prévia<br />
do comum e promove uma partilha do sensível aberta, porosa, inconclusiva,<br />
na qual a conta jamais fecha.<br />
É nesse sentido que o fantástico é da ordem do suplemento, da promoção da<br />
desidentificação das identidades, da fixidez espaço-temporal. É a expressão de<br />
uma vida que não é a manifestação da lei; ao contrário, é a irrupção de vazios, de<br />
interstícios. Se, em termos rancierianos, o enunciado acompanhado, socorrido,<br />
explicado, conduzido do ponto de partida ao ponto de destino pelo dono é a<br />
matriz de qualquer pedagogia, o fantástico, à sua maneira, vem investir contra<br />
as pedagogias, vem incidir contra a normatividade do saber e embaralhar as<br />
relações ordenadas de uma sociologia, de um fazer, de um ver e de um dizer.<br />
Se o fantástico pode estar pleno de potência política é justamente porque suas<br />
narrativas se constituiem ante o estabelecimento de uma ordem ou do consenso.<br />
O fantástico pode ser político não por ser “engajado”, não por propor pedagogias<br />
de posicionamento, mas por criar situações e relações novas, por povoar um<br />
sensorium espaço-temporal por objetos e por um ritmo que interferem com o<br />
recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do<br />
público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade<br />
política. Retomamos aqui uma precisa definição de Rancière sobre a relação<br />
entre a arte e apolítica, na qual, acreditamos, o fantástico pode tomar parte:<br />
A arte não é política em primeiro lugar pelas mensagens e pelos sentimentos<br />
que transmite sobre a ordem do mundo. Ela também não é política pelo<br />
seu modo de representar as estruturas da sociedade, os conflitos ou as<br />
identidades dos grupos sociais. Ela é política pela distância que toma em<br />
relação a essas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que institui, pelo<br />
modo como recorta esse tempo e povoa esse espaço. (2010, p. 20)<br />
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Por ocupar uma posição de fronteira entre nosso mundo como o normalmente<br />
conhecemos, a realidade prática cotidiana, e o mundo do mistério e do<br />
desconhecido, o fantástico invade a instituição da realidade e injeta nela<br />
capacidade de imaginação. Se a realidade cotidiana é frequentemente formada<br />
por enquadramentos para as interações cujas contradições são passadas<br />
despercebidas e constitui situações fundamentalmente inalteráveis, o dissenso,<br />
como aponta Rancière, é o que permite um intervalo, a descontinuidade entre<br />
a norma e o vivido. As ficções fantásticas, fundamentalmente dissensuais,<br />
colocam o insólito exatamente no percurso naturalizado entre leis e fatos, criando<br />
idiossincrasias irrefutáveis. Assim como acontece com Goodman Brown, nosso<br />
mundo não será o mesmo depois da experiência do fantástico, uma vez que<br />
nossos quadros de sentido foram invadidos por uma fagulha de alteridade.<br />
Em última instância, o fantástico pode ser político ao se propor a questionar a<br />
universalidade pressuposta, ao verificar a verdadeira igualdade, não somente<br />
de indivíduos, mas de possíveis.<br />
A multiplicidade<br />
Ao longo da obra de Rancière, os mais variados exemplos artísticos levantados<br />
para uma evidenciação da relação entre estética e política parecem ter em comum<br />
o fato de “representar” grupos de indivíduos que têm sua comunidade invadida<br />
pelo dissenso. Acreditamos, no entanto, que a potência política das narrativas<br />
fantásticas não se restringe àquelas obras que figuram essa comunidade de<br />
maneira tão direta, como parecem fazer mesmo os exemplos que levantamos de<br />
Poe e Hawthorne, verdadeiras alegorias do dissenso. Propomos, então, um último<br />
apontamento sobre manifestações em que o insólito interfere de maneira ainda<br />
mais sutil – e não menos poderosa – na reorganização da partilha do sensível,<br />
a recorremos a Borges nessa dobra. Isso não implica, necessariamente, em um<br />
afastamento da concepção de política para Rancière. Talvez signifique dar um<br />
passo atrás da ponta mais fina onde o filósofo desenvolve seus diagnósticos<br />
e promove suas análises, para alcançar uma dimensão mais fundamental de<br />
seu pensamento. Nesse gesto, podemos encontrar grandes contribuições em<br />
sua herança foucaultiana, na qual encontramos não só bases para a teoria de<br />
Rancière, mas também pistas valiosas para a compreensão de uma dimensão<br />
política no fantástico.<br />
Quando o protagonista narrador do conto O Aleph desce ao porão da casa<br />
de sua antiga amada, ele se depara com a visão de algo tão absolutamente<br />
fascinante que escapa-lhe a capacidade de relatá-lo de maneira coerente.<br />
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de<br />
escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um<br />
passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito<br />
Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? (BORGES 1998, p. 695)<br />
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Mas o que poderia ser tão assombrosamente inescapável a ponto de atormentar<br />
o narrador? Diante dele, em um mesmo ponto, em um instante gigantesco,<br />
abre-se a mais absoluta multiplicidade das coisas do mundo. Porém, o fato de<br />
serem atos tão prazerosos ou atrozes não o assombraram mais do que o fato de<br />
que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência.<br />
Dessa maravilhosa visão, nós, leitores, temos acesso somente ao relato do<br />
protagonista, que nada pode fazer a não ser transformar sua experiência em<br />
narrativa: “O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo,<br />
pois a linguagem o é.” (1998, p. 695).<br />
No conto de Borges, o dissenso encontra-se diluído na mais profunda estrutura<br />
da representação. Borges, uma das mais brilhantes mentes capazes a dar vida<br />
ao fantástico, nos oferece em seu conto uma expressão fascinante da relação<br />
entre unidade e multiplicidade. No Aleph, em um recorte mínimo de um sensorium<br />
espaço-temporal, encontra-se a mais plena diversidade do universo, que não é a<br />
universalidade ou a totalidade porque sequer constitui um todo. Supor a totalidade<br />
seria encerrar o múltiplo, impor a ele um limite, uma configuração última. Além<br />
disso, a multiplicidade implicada no Aleph não é universal porque não configura<br />
identidade nem apaga as diferenças: é a multiplicidade do universo convivendo<br />
no mesmo tempo, no mesmo espaço, sem transparência ou sobreposição.<br />
Não é a simples aparência do Aleph, exemplar máximo de heterotopia, o que<br />
torna o conto de Borges uma narrativa fantástica, mas sim o fato de que tal<br />
heterotopia é plantada no seio da ordem e da regularidade cotidiana. E o fato de<br />
que o narrador precisa transformar sua própria visão do múltiplo em relato linear<br />
não significa a morte dessa multiplicidade; pelo contrário, é a transposição da<br />
multiplicidade à linearidade da narrativa que faz dela uma narrativa fantástica.<br />
O mundo ficcional do conto, assim, torna-se ele próprio uma heterotopia, uma<br />
vez que passou a abrigar o germe da multiplicidade dentro de si, uma fagulha<br />
potente de alteridade que, mesmo transformado em linguagem, nunca é<br />
aplainado, reduzido ou transformado em mesmo. Essa operação só é possível<br />
pela potencialização da dimensão discordante da narrativa, que, mesmo na<br />
sucessão, coloca em crise a linearidade progressiva.<br />
O descobrimento de heterotopias são temas recorrentes na obra do escritor<br />
argentino. Ela é tema, inclusive, na crônica El idioma analítico de John Wilkins, que<br />
traz a famosa taxinomia do “Empório celestial de conhecimentos benevolentes”,<br />
celebrada por Foucault no prefácio de As palavras e as coisas. Assim a relata<br />
Borges a organização da suposta enciclopédia:<br />
En sus páginas remotas está escrito que los animales se dividen en (a)<br />
pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d)<br />
lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta<br />
clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados<br />
con un pincel finísimo de pelo de camello, (l) etcétera, (m) que acaban de<br />
romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas. (2005, p. 152-153)<br />
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O que tanto fascina Foucault na leitura da taxinomia de Borges não é o simples<br />
caráter “fabuloso” de seus animais, ou mesmo o caráter insólito do encontro<br />
de uma variedade desses seres. O gesto que causa genuína estranheza é a<br />
forma heterogênea como esses seres são dispostos em sua taxinomia, ou seja,<br />
a forma múltipla de relações estabelecidas entre a própria multiplicidade: o e,<br />
o em, o sobre que, em uma enumeração aparentemente lógica, garantem a<br />
possibilidade de uma coexistência. Nesse sentido, o que salta como impossível<br />
na classificação de Borges é “[...] a estreita distância segundo a qual são<br />
justapostas aos cães em liberdade ou àqueles que de longe parecem moscas.<br />
O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente<br />
a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas<br />
categorias.” (FOUCAULT, 2000, p. X).<br />
O que Borges cria, então, em sua enumeração monstruosa é uma configuração<br />
espacial fantástica, em que o impossível “[…] não é a vizinhança das coisas, é<br />
o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se.” (2000, p. X) Nos termos de<br />
Foucault, o que Borges faz é subtrair o solo, o quadro, a tábua que permite ao<br />
pensamento deitar, colocar, dispor os seres e neles operar uma ordenação, uma<br />
repartição em classes, um agrupamento pelo qual são designadas similitudes<br />
e diferenças. Tal subtração provoca, ao mesmo tempo, confessa Foucault, riso<br />
e mal-estar, confrontando-se com a suspeita de que há desordem pior que<br />
aquela do incongruente e da aproximação que não convém: a desordem que<br />
faz cintilar fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão,<br />
ordens que não possuem lei ou geometria.<br />
Em vão nosso pensamento buscará uma coerência, guiado por uma necessidade<br />
constante de ordenação diante da perda de um encadeamento a priori e<br />
conteúdos imediatamente sensíveis, para essa heterotopia criada por Borges,<br />
sobrecarregada de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais<br />
estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações. Ao contrário das<br />
utopias, que se situam na linha reta da linguagem, as heterotopias dessecam o<br />
propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam toda possibilidade<br />
de gramática; elas são tão inquietantes<br />
[…] porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear<br />
isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque<br />
arruínam de antemão a sintaxe”, e não somente aquela que constrói as<br />
frases — aquela, menos manifesta, que autoriza “manter <strong>jun</strong>tos “ (ao lado e<br />
em frente umas das outras) as palavras e as coisas. (2000, p. XIII)<br />
Nesse sentido, fica evidente que a narrativa fantástica é coisa política não<br />
somente ao encenar um dano a uma comunidade de forma figurada, mas ao<br />
desafiar os códigos fundamentais de uma cultura – “[...] aqueles que regem<br />
sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus<br />
valores, a hierarquia de suas práticas” (2000, p. XV). Esses códigos, como<br />
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diagnostica Foucault, tentam fixar logo de entrada as ordens empíricas com<br />
as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar até formar o suporte<br />
positivo do conhecimento. Em última instância, a provocação feita pela narrativa<br />
fantástica vem questionar a ordem que determina qual pensamento é pensável<br />
e quem pode pensá-lo.<br />
No entanto, se é nesse lugar que percebemos a ação do fantástico, é preciso,<br />
mais uma vez, retornar a Rancière para compreender a política não como<br />
máquina de relações de poder, mas como operação rara e com forte potencial<br />
de instituição da diferença. Eis a política do fantástico.<br />
O duplo<br />
Enquanto muitos dos limites dos estudos de Todorov (2004) sobre o gênero<br />
fantástico parecem ter sidos superados pelos estudos recentes, muitas de suas<br />
formulações permanecem valiosas, e auxiliam-nos, inclusive, a concluir de forma<br />
precisa as implicações políticas do fantástico. Dizia Todorov que o fantástico<br />
corre sempre o risco de ser minado no momento da leitura, se for submetido a<br />
uma interpretação “poética” e não literal da narrativa. Com isso, Todorov insistia<br />
que uma leitura que toma o fantástico por sua carga metafórica esvazia-o de<br />
seu mistério. Tais argumentos de Todorov já foram bastante criticados e devem,<br />
de fato, ser questionados, uma vez que a capacidade alegórica é uma das<br />
maiores forças da narrativa fantástica.<br />
Como alegoria, no entanto, é preciso compreender a abertura para significados<br />
outros, uma experiência de intersecção viva entre texto e interpretação do leitor,<br />
verdadeiro momento em que a transgressão do fantástico ganha realidade.<br />
Transformado em metáfora, o fantástico, de possibilidades múltiplas de sentido<br />
e instauração de dissenso, é reconduzido à compreensão fechada, ditada<br />
pela ordenação de um sentido único. Tomemos como exemplo o caso célebre<br />
do conto de Cortázar Casa tomada, que frequentemente é sobressignificado<br />
como uma metáfora rasa da ação do peronismo da Argentina. Não há potência<br />
política que sobreviva à pedagogia da interpretação codificada.<br />
Lembremos ainda do momento em que Todorov afirma que “[...] a literatura<br />
fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX positivista.”<br />
(2004, p. 117) A formulação de Todorov pode apontar para além dos limites de<br />
um gênero restrito e dos seus limites do século XIX. Em todas as expressões<br />
literárias a que nos referimos aqui, o fantástico configura um má consciência<br />
de um regime de saber moderno. E, precisamente, uma má consciência,<br />
e não uma inconsciência ou outra consciência (em um sentido paralelo ou<br />
concorrente). Arriscamos, então, às últimas analogias com o pensamento de<br />
Rancière, parafraseando abertamente seus termos (1995, p. 201): assim como<br />
a “má” democracia, a má consciência oferecida pelo fantástico opera no ponto<br />
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sempre crítico entre o aparecimento e o desaparecimento do múltiplo, sua<br />
inocência e sua culpa, sua verdade e sua inverossimilhança. E é justamente<br />
porque essa analogia nos parece possível, por colocar em cena uma relação<br />
multiplicada do visível e do invisível, que o fantástico possui uma potência<br />
política, colocando em cena uma parcela do pensamento que não está prevista<br />
na conta da racionalidade moderna; uma parcela que, apesar de não estar<br />
prevista nessa conta, é produto das próprias ambiguidades e fraturas do saber<br />
moderno, e não sua negação.<br />
Ao criar ficções baseadas fortemente na discordância, o fantástico encena<br />
o saber moderno diante de uma alteridade que revela-se o si próprio como<br />
outro. Não por acaso, o duplo é uma figura tão frequente e tão expressiva nas<br />
expressões do fantástico. O saber e seus duplos são todos colocados em<br />
uma mesma cena, compartilhando de um mesmo comum, no qual, no entanto,<br />
não há consenso nem sobreposição. Com Rancière, passando por Foucualt,<br />
entende-se porque o fantástico pode ser político: porque lança mão das<br />
palavras que sobram, dos enunciados sem referente e relações que desfazem<br />
qualquer lei de correspondência entre a ordem monumental das palavras e das<br />
coisas; porque, confrontados com o limite de um pensamento outro, atingimos<br />
(alcançamos/investimos contra) o limite do nosso pensamento, pensamento<br />
que é, ao mesmo tempo, próprio e comum.<br />
ABSTRACT:<br />
POLITICS OF FANTASTIC<br />
This paper reflects the political dimension implied in the fantastic, from an<br />
analysis of the sensible configuration constructed in its narratives and of the<br />
normativity of modern knowledge. For that, we evoke an understanding of politiks<br />
based overall on Jacques Rancière’s theory and his concepcts of distribution<br />
of the sensible, dissensus, and an understanding of democracy based not on<br />
similarities, but on differences. Besides, we bring the contributions from tales<br />
of authors such as Poe, Hawthorne and Borges for the analysis of a politik<br />
potencial of the fantastic.<br />
KEYWORDS:<br />
Fantastic; politiks, Rancière<br />
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Buenos Aires: Emecê, 2005.<br />
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Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 2008.<br />
______. O véu negro do ministro. In: HAWTHORNE, Nathaniel; KRAHENBUHL,<br />
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POE, E. A. O sistema do Doutor Pixe e do Professor Penna. Trad. Bruno Penteado.<br />
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Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
RICOUER, Paul. Tempo e narrativa – Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.<br />
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,<br />
2004.<br />
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O ECO MATERIALIZADO: CONSIDERAÇõES SOBRE O TEOR<br />
PROFÉTICO DA CANÇÃO DE SIRUIZ<br />
Patrícia Tavares da Cunha Fuza<br />
Ederson Vertuan<br />
Como os sonhos esfingéticos que acometem José, filho de Jacó, na passagem<br />
bíblica, também Guimarães Rosa, em seu Grande sertão: veredas (1956), “instaura<br />
a completa desordem no coração de Riobaldo” (REINALDO, 2005) a partir de<br />
uma canção entoada por alguém sem rosto, quase ausente, uma voz imaterial<br />
que ecoa pela noite e passa a pulsar em Riobaldo durante toda a sua jornada.<br />
A canção de Siruiz trata da busca do conhecimento de si e do outro através da<br />
decifração de um enigma que engloba o “redemunho” da própria existência de<br />
Riobaldo. Ao ouvi-la, ele tem sua “iniciação”, prova do fruto proibido, mergulha<br />
nos “remansos” do São Francisco, largando a pacata vida abastada ao lado do<br />
padrinho Selorico Mendes para lançar-se ao seu destino, à aventura da vida de<br />
jagunço e do amor proibido por Diadorim, a “moça virgem”. Envereda-se, a partir<br />
de então, no grande sertão que é o mundo. O caminho do jovem Riobaldo está<br />
traçado e nem ele mesmo sabe. Assim como não pode fugir da força arrebatadora<br />
daquela canção, também é impossível fugir de seu destino.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Guimarães Rosa; canção de Siruiz; profecia.<br />
“A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz.<br />
Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.”<br />
Grande Sertão: Veredas<br />
A conversão de energia em matéria, apesar de uma realidade Física 1 , parece<br />
ainda não ter servido de argumento para defender a hipotética noção do<br />
sobrenatural enquanto responsável pelo surgimento do mundo material. Desse<br />
modo, também em Grande sertão: veredas (1956) há uma forte relação entre<br />
material e imaterial 2 , desenvolvendo-se por vias tão complexas quanto a proposição<br />
acima. Uma canção imaterial 3 , uma voz entoada numa ”madrugada dobrada<br />
inteira” (p.103), torna-se o elo profético entre Riobaldo e seu destino, marcado<br />
por forças desconhecidas, que esta mesma canção profetiza. Por conseguinte,<br />
1 Em laboratório, a energia de um fóton de raios gama pode ser convertida, facilmente, em duas partículas<br />
muito pequenas de matéria.<br />
2 Por material, entenda-se concreto, mundano. Imaterial, nesse estudo, refere-se à energia sobrenatural ou<br />
àquilo que com ela mantém estreita relação.<br />
3 A música, o som, obviamente, são inerentes ao mundo físico, tanto no que diz respeito à sua fonte quanto à<br />
sua propagação. Este estudo, no entanto, os considera imateriais, pois se atém apenas às suas propriedades energéticas<br />
e sua consequente relação com forças supranaturais. Muitos consideram o som como uma energia, teoria essa<br />
que se confirma ao se considerar os toques ritualísticos usados por algumas religiões para atrair entidades diversas.<br />
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a energia etérea, adquirida por Riobaldo através do pacto sobrenatural, revelase<br />
em eventos e circunstâncias que o favorecem. Nesse entremeio, a canção<br />
tão familiar toma forma, materializa-se no cavalo Siruiz, símbolo da profecia<br />
antes lançada e do contrato etéreo firmado com o desconhecido.<br />
Muitos pesquisadores defendem a ideia da canção de Siruiz enquanto uma<br />
profecia 4 , similar a outros tantos enigmas existentes na história da literatura e da<br />
civilização. Imagens vagas que povoam sonhos premonitórios, sons que evocam<br />
situações passadas e futuras, frases aparentemente desconexas que escamoteiam<br />
revelações profundas, “neblinas” capazes de revelar outras verdades, outras<br />
“matérias-vertentes”, outras veredas. A história da humanidade, em suas mais<br />
variadas expressões, sejam elas ficcionais ou não, apresenta inúmeras passagens<br />
em que indivíduos testemunham situações de natureza mística e metafísica, nas<br />
quais enigmas lhes são propostos com o intuito de, por meio de sua resposta,<br />
revelar informações sobre o passado e o futuro. Tais revelações<br />
podem ser as profecias, maldições, prenúncios, expectativas, dúvidas,<br />
planos, avisos, pressentimentos, fé e aspirações. O anúncio indica, para o<br />
leitor, uma experiência iminente que um personagem poderá ter ou não...<br />
aponta o que vem adiante, usando as intenções dos personagens de obter<br />
ou realizar um evento futuro (ABEL, 2003, p. 204).<br />
Muitos episódios, de épocas e fontes diversas, constituem exemplos dessas<br />
parábolas enigmáticas propostas a figuras humanas ou míticas ilustres. Em<br />
Édipo Rei, de Sófocles, o personagem principal recorre ao auxílio de entidades<br />
adivinhatórias, como o oráculo de Delfos e a Esfinge, a fim de desvendar sua<br />
origem e seu destino. Na Teogonia, de Hesíodo, também as musas afirmam<br />
que, quando querem, sabem “proclamar muitas verdades”. Ainda tratandose<br />
da tragédia, Orpheu, após ter seu corpo despedaçado pelas Mênades e<br />
lançado ao rio Hebro, tem a cabeça encontrada na Jônia por um pescador,<br />
que a enterra. Naquele lugar, é erigido um templo, ao qual os moradores e<br />
via<strong>jan</strong>tes passam a recorrer em busca de respostas para suas ações futuras.<br />
Na Antiguidade, um sonho esfingético que nos legou a expressão “vacas magras<br />
e vacas gordas” como símbolo de penúria e abundância, é o do faraó do Egito,<br />
referido na Bíblia, no capítulo 41 do livro de Gênesis, que foi interpretado por<br />
José, filho de Jacó, passando à História como José, governador do Egito. No<br />
hinduísmo, praticado na Índia, o quarto livro sagrado, chamado Atarva Veda<br />
(veda = conhecimento, tradição), fonte de inspiração espiritual presumivelmente<br />
escrito no século 25 a.C, também contém um capítulo sobre presságios oníricos.<br />
No entanto, todos esses presságios, sejam eles como forem, não revelam<br />
claramente o conteúdo de suas verdades. Exigem a experiência para que suas<br />
mensagens sejam compreendidas (REINALDO, 2005). Recorrentemente, vemos<br />
situações emblemáticas, muitas vezes decifradas apenas no momento derradeiro<br />
4 Roncari (2001), Moraes (2005), Davi Arriguci Jr. e Pereira (2008).<br />
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da existência. São respostas enevoadas, subjetivas, intimistas, prostradas diante<br />
dos olhos, vistas, mas não enxergadas no seu sentido mais stricto.<br />
Nos três primeiros exemplos citados, embora os presságios sejam enigmáticos,<br />
enevoados, há a presença da materialidade, já que os veículos usados para<br />
a transmissão de tais enigmas e responsáveis pelas adivinhações são seres<br />
humanos ou míticos, como a Esfinge e as sacerdotisas de Delfos. No entanto,<br />
como os sonhos que acometem José na passagem bíblica, Guimarães Rosa,<br />
em seu Grande sertão: veredas, “instaura a completa desordem no coração<br />
de Riobaldo” (REINALDO, 2005) a partir de uma canção entoada por alguém<br />
sem rosto, quase ausente, uma voz imaterial que ecoa pela noite e passa a<br />
pulsar em Riobaldo durante toda a sua jornada.<br />
Certa noite, quando o bando de Joca Ramiro se instala na propriedade do<br />
padrinho Selorico Mendes, Riobaldo, já impressionado pela visão dos capangas<br />
de Joca Ramiro - dentre eles o Hermógenes, seu futuro inimigo -, sente-se tocado<br />
por uma canção entoada pelo desconhecido violeiro-jagunço Siruiz. Quando<br />
os homens, “perto duns cem”, acomodam-se na fazenda de Selorico, “num<br />
fechado, mato caapuão”, seguidos pelos olhos atentos do moleque Riobaldo,<br />
“um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: - ‘Siruiz, cadê a moça virgem?’”<br />
(p. 101). Nesse momento, “algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas”,<br />
para Riobaldo, a “toada toda estranha”:<br />
Urubú é vila alta,<br />
mais idosa do sertão:<br />
padroeira, minha vida<br />
vim de lá, volto mais não...<br />
Vim de lá, volto mais não?...<br />
Corro os dias nesses verdes,<br />
meu boi mocho baetão:<br />
burití — água azulada,<br />
carnaúba — sal do chão...<br />
Remanso de rio largo,<br />
viola da solidão:<br />
quando vou p’ra dar batalha<br />
convido meu coração...<br />
(ROSA, 1986, p. 101)<br />
Instantaneamente, Riobaldo se sente tocado e intrigado com aquela canção.<br />
Ela ecoa dentro dele durante toda a narrativa, mas mantém-se emblemática,<br />
como uma espécie de canto esfingético, uma neblina que, contrariamente a<br />
Édipo, é incapaz de decifrar.<br />
O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira:<br />
os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do<br />
orvalho, a estrela d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a<br />
canção de Siruiz. Algum significado isso tem? (ROSA, 1986, p. 103)<br />
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Marcado profundamente por essa canção, Riobaldo, no entanto, não deixa de<br />
admitir que a considera “estúrdia”. E não é descabido afirmar que o leitor de<br />
Grande sertão: veredas, o mais das vezes, partilha da mesma opinião.<br />
Embora a canção de Siruiz tenha como base uma métrica tradicional simples 5 , ela<br />
nada tem de popular. Uma referência a Dante Alighieri 6 e os significados ocultos na<br />
sonoridade metafórica do poema 7 não fazem muito para mudar isso. Daí Riobaldo ser<br />
o único a ver beleza nos versos, que, de fato, não eram populares entre os demais<br />
jagunços 8 . Consequentemente, a canção de Siruiz não pode ser considerada uma<br />
canção campesina comum, assim como Riobaldo e sua sina não o foram. Toda<br />
a relação da canção com a sugestão do mistério e do oculto vem a servir a outro<br />
propósito: a antecipação da relação de Riobaldo com forças desconhecidas.<br />
A propriedade profética da cancão<br />
A canção de Siruiz trata da busca do conhecimento de si e do outro através da<br />
decifração de um enigma que engloba o “redemunho” da própria existência de<br />
Riobaldo. Ao ouvi-la, ele tem sua “iniciação”, prova do fruto proibido, mergulha<br />
nos “remansos” do São Francisco, largando a pacata vida abastada ao lado<br />
do padrinho Selorico Mendes para lançar-se ao seu destino, à aventura da<br />
vida de jagunço e do amor proibido por Diadorim, a “moça virgem”. Enveredase,<br />
a partir de então, no grande sertão, que é o mundo. O caminho do jovem<br />
Riobaldo está traçado e nem ele mesmo sabe. Assim como não pode fugir da<br />
força arrebatadora daquela canção, também é impossível fugir de seu destino.<br />
O canto, a palavra cantada, que a poesia hesiódica considerava “a mais<br />
elevada expressão da palavra mítica criadora” (REINALDO, 1998), se <strong>jun</strong>ta ao<br />
som de seu acompanhamento, a viola, um instrumento imbuído em fantasia e<br />
ancestralidade 9 , para compor um par sonoro ideal ao anúncio profético.<br />
O canto, o som da viola e, também, os números que se pode extrair do<br />
poema (3 quadras; <strong>12</strong> versos; 7 sílabas 10 ) se reúnem enquanto sinais de uma<br />
5 A redondilha menor, preferida do sertanejo.<br />
6 Os versos da canção foram elaborados de forma a esconder seus temas. Por exemplo, Roncari (2001) considera<br />
o verso “Urubú é vila alta,” que se refere a certa “vila do urubu”, como uma paródia do tema inicial da Divina<br />
Comédia: “No meio do caminho de nossa vida / Encontrei-me numa selva obscura / Que a estrada reta fora perdida”.<br />
O pesquisador afirma que “vila do urubu” representa uma metáfora da metáfora “selva obscura”. Uma vez que selva<br />
assume valor simbólico de “vida terrena”, vila assume o lugar de selva (vida terrena) e urubu substitui “obscura”, donde<br />
se conclui a ideia de “vila do urubu” como metáfora para “vida terrena sombria”.<br />
7 O âmbito estilístico dos versos da canção traz consigo sentidos ocultos. O ditongo nasal “-ão”, por exemplo,<br />
rima que perpassa todo o poema, possui, segundo Nilce Sant’Anna Martins, dois níveis de propriedades sonoras. O<br />
primeiro diz respeito a sons velados, isto é, sons ocultos, escondidos, encobertos, sem timbre puro. O segundo diz<br />
respeito à sua capacidade de expressar alongamento: seu som prolongado serve tanto para evocar distância quanto<br />
lentidão, moleza e melancolia . O som alongado, assim, serve como alusão à escuridão e aos mistérios da selva/vida<br />
de Riobaldo, bem como ao longo tempo durante o qual a travessia de sua sina é realizada.<br />
8 No entanto, a afirmação de Riobaldo sobre ser o único interessado na canção contrasta com um episódio<br />
anterior em que os jagunços, aparentemente familiarizados com a canção, pedem, com entusiasmo, para que Siruiz<br />
entoe a “canção da moca virgem”.<br />
9 Segundo Correa (2000), o universo da viola implica toques ancestrais e versos marcados pela tradição,<br />
o que faz do instrumento um auxiliar na expressão da alma. Para os violeiros antigos, apenas quem possui um dom<br />
divino é capaz de dominar o instrumento, a não ser que o indivíduo que não recebeu tal bênção recorra a um pacto.<br />
10 Números com sentidos simbólicos diversos, mas que tem em comum a associação a ideias de totalidade e<br />
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sacralidade profética que prenuncia, quase em tom sublime, todo o ciclo da<br />
sina de Riobaldo. São esses os elementos que relacionam a canção de Siruiz<br />
com o profético e o sagrado. E que, além disso, constituem pano de fundo<br />
ideal para a condição mágica do envolvimento de Riobaldo com forças ocultas<br />
que, acionadas a seu favor, serão materializadas em episódios e elementos<br />
narrados ao longo do livro, assim como no próprio cavalo.<br />
Os versos entoados pelo jagunço Siruiz perseguem Riobaldo durante sua<br />
peregrinação pelas veredas do sertão e de seus próprios medos, desejos, frustrações<br />
e lembranças. Siruiz não tem rosto, carne, matéria. É apenas uma voz que ecoa<br />
no meio da madrugada, uma névoa… que somente se materializará a partir da<br />
posse do novo cavalo, a quem Riobaldo nomeia Siruiz, ao invés de Barzabú.<br />
O insólito em Siruiz<br />
A canção não vem a ser apenas uma profecia: ela também revela uma face soturna,<br />
imaterial enquanto proferida por uma presença na ausência; porém material, na<br />
medida em que se faz palpável na tomada de posse, por parte de Riobaldo, das<br />
“rédeas” de seu próprio destino através do cavalo batizado de Siruiz.<br />
No transcorrer da narrativa, Riobaldo questiona a existência do Demo e sua real<br />
influência nas ações humanas. Ouve de seus companheiros que Hermógenes<br />
é pactário e, seduzido pela possibilidade de tornar-se tão ou mais poderoso<br />
que o jagunço, abandonando suas dúvidas e receios, Riobaldo decide fazer o<br />
pacto. Numa encruzilhada das Veredas Mortas, à meia-noite, invoca o Tinhoso,<br />
mas acredita não ter resposta. No entanto, volta do vale com a coragem e a<br />
ousadia que sempre almejou. Ao encontrar-se com o bando, outro acontecimento<br />
insólito: os cavalos, ao verem Riobaldo, agitam-se.<br />
A sua influência no meio ambiente foi muito sentida, principalmente, pelos<br />
cavalos- antenas do mundo das trevas. Quando reuniram os cavalos, fez<br />
um “rebuliz”. Os quadrúpedes viram-no chegar, como não podiam escapulir,<br />
“suavam, e já escumavam e retremiam, que com as orelhas apontavam”.<br />
Riobaldo pulou “para o meio deles: - ‘Barzabú! Aquieta, cambada!’” E os<br />
cavalos se aquietaram (ABEL, 2003, p. 304).<br />
Nesse instante, chega seu Habão com um corcel, “gateado formoso” (p. 378)<br />
que “chicoteia alto o ar”, empinando. Riobaldo grita “- Barzabú!” e o “cavalão<br />
lão lão” se acalma. Ao ver que o corcel estranhamente obedece a Riobaldo,<br />
seu Habão resolve presenteá-lo com o cavalo. Os outros jagunços sugerem a<br />
Riobaldo que chame seu presente de Barzabú. No entanto, como uma tentativa<br />
de negar para si o pacto sugerido a pouco, Riobaldo o batiza de cavalo Siruiz.<br />
Com o bem observa Moraes (2001), esse novo cavalo substitui o cavalo morto<br />
Padrim Selorico. De acordo com a pesquisadora, a substituição do nome do<br />
de cumprimento de um ciclo. No contexto da obra, tais números sugerem o cumprimento da vida jagunça de Riobaldo.<br />
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pai-padrinho de Riobaldo, Selorico Mendes, pelo de um desconhecido — o<br />
jagunço Siruiz — representa uma metáfora de rompimento com os laços de<br />
paternidade-apadrinhamento e de pertencência, para que a posição de Riobaldo<br />
enquanto autoridade seja assumida.<br />
No entanto, é importante complementar: é também no plano sobrenatural<br />
que o apadrinhamento divino se desfaz, para que, em seu lugar, se instale o<br />
auxílio de forças desconhecidas. O nome do novo cavalo de Riobaldo assinala<br />
o desligamento de sua anterior condição passiva e subserviente para a de<br />
agente, de dono de seu destino e de entrega a tudo o que a canção de Siruiz<br />
profetizara. O cavalo com que Habão presenteia Riobaldo representa a primeira<br />
insígnia de chefia e de comando que lhe é conferida. Mas essa condição<br />
superior, convém lembrar, só é assumida após o pacto.<br />
E essa relação entre o pacto de Riobaldo e o recebimento do novo cavalo<br />
Siruiz chama a atenção para uma relação existente entre as quatro faces de um<br />
quadrilátero: Riobaldo, seu cavalo, as forças sobrenaturais e a canção de Siruiz.<br />
Com toda a profecia sombria descrita na canção de Siruiz, que já sugeria as<br />
trevas, o desvio e a travessia, inclusive, de ordem espiritual 11 , o batismo do cavalo<br />
como Siruiz não mostra apenas a união com os laços sobrenaturais. É também<br />
uma energia que se materializa e que passa a auxiliar/conduzir Riobaldo em<br />
sua nova fase, mediando suas vontades entre dois mundos. Além disso, uma<br />
vez que o cavalo representa uma insígnia de poder que veio após o pacto, logo<br />
ele marca simbolicamente o contrato sobrenatural feito por Riobaldo. E, assim,<br />
fecha-se a relação entre as faces do quadrilátero Riobaldo/canção/pacto/cavalo.<br />
É o lado estranho, sombrio e oculto da canção que acaba se cumprindo com<br />
as atitudes de Riobaldo enquanto pactário. Montar em Siruiz significa unir-se<br />
intimamente com a canção profética que tanto o intrigara e com seu destino e<br />
identidade jagunças. Mas o destino de Riobaldo e o destino descrito na canção<br />
de Siruiz se confluem apenas com a ajuda do sobrenatural, quando Riobaldo,<br />
ao menos, tem a chance, de estar no controle de sua própria vida.<br />
Pactos e pacto: um contrato sobrenatural REPLETO de brasilidade<br />
Segundo uma lenda bastante conhecida por folcloristas portugueses e brasileiros<br />
e originada no Brasil pela prática de muitos fazendeiros do interior de Minas<br />
Gerais, um pactário pode se utilizar de um diabinho chamado Famaliá <strong>12</strong> para<br />
atingir seus objetivos mundanos. Trata-se de uma prática extraída de um ritual<br />
descrito no livro de São Cipriano, em que o então-feiticeiro Cipriano instruía<br />
a todo interessado a encontrar um ovo de galo, levá-lo sob o braço a uma<br />
encruzilhada, pronunciar algumas palavras a Lúcifer e esperar a eclosão. No<br />
11 Ou seja, a travessia do bem para o mal.<br />
<strong>12</strong> Corruptela de [demônio] Familiar. Essa popular lenda folclórica chegou a servir como enredo para a telenovela<br />
Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa.<br />
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Brasil, apesar de algumas modificações menores, o ritual permanece fiel ao<br />
português. O pactário deve manter um relacionamento estreito com a criatura<br />
resultante da eclosão, um diabinho, algumas vezes, com forma humana. O dono<br />
deve batizá-lo, guardá-lo em uma garrafa, mantê-lo em segredo e alimentá-lo.<br />
Todos os pedidos do pactário devem ser dirigidos a essa criatura, que assume<br />
o papel de mediador entre seus pedidos e o mundo inferior.<br />
O cavalo Siruiz também erige-se como uma espécie de famaliá, selando o pacto.<br />
Um tal presente tinha de ser para o chefe, fatalmente Zé Bebelo se sentiria<br />
ofendido, mas Riobaldo não recusou do presente. Zé Bebelo não passou<br />
recibo e elogiou sua nova montaria. [Riobaldo] entregou o cavalo ao Fafafa,<br />
para que o cuidasse, retirou-se, dando as costas a Zé Bebelo, sem nenhum<br />
receio de levar um tiro nas costas. Nada lhe aconteceria, porque tinha a<br />
proteção do “Drão- o demoninhão (ABEL, 2003, p. 304).<br />
Nesse caso, a escolha do cavalo como aquele que “sela” o pacto de Riobaldo<br />
com o Diabo 13 e, por conseguinte, com seu destino irrefutável, pode ser<br />
compreendida a partir da relação desse animal com o mundo das trevas:<br />
Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos, associa<br />
originalmente o cavalo às trevas do mundo ctoniano, quer ele surja, galopante<br />
como o sangue nas veias, das entranhas da terra ou das abissais profundezas<br />
do mar. Filho da noite e do mistério, esse cavalo arquetípico é portador de<br />
morte e de vida a um só tempo, ligado ao fogo, destruidor e triunfador, como<br />
também à água, nutriente e asfixiante. A multiplicidade de suas acepções<br />
simbólicas decorre dessa significação complexa das grandes figuras lunares<br />
em que a imaginação associa, por analogia, a Terra, em seu papel de Mãe,<br />
a Lua, seu luminar, as águas e a sexualidade, o sonho e a divinação, o reino<br />
vegetal e sua renovação periódica. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 202)<br />
Inúmeros exemplos literários, históricos e religiosos trazem consigo marcas do<br />
aspecto sombrio dessa crença com relação ao cavalo e as forcas que ele pode<br />
sinalizar. Segundo uma lenda popular da Ásia Central, um herói chamado Töshtük,<br />
esposo de Kenjeke, se vê em perigo ao ter sua alma roubada por um cruel feiticeiro.<br />
Para recuperá-la, Töshtük precisa cruzar a fronteira entre o mundo dos vivos e o<br />
mundo subterrâneo. Ciente dos perigos que seu marido estava prestes a enfrentar,<br />
Kenjeke presenteia o herói com um cavalo prodigioso, chamado Tchal-Kuiruk,<br />
que é capaz de entender e de conversar com os humanos. No entanto, antes<br />
da arriscada viagem, o cavalo mágico afirma que o herói precisará renunciar à<br />
sua própria personalidade e confiar em seus poderes sobrenaturais para que<br />
sua busca tenha sucesso. Tchal-Kuiruk, então, auxília o herói na procura por sua<br />
alma, infiltrando-se no mundo inferior e livrando-o de inimigos.<br />
13 O cavalo Siruiz, portanto, é para Riobaldo o que o ‘’cão” de proporções monstruosas Mefistófeles foi para o<br />
Fausto de Goethe, ou seja, a reiteração e a chave para o poder, a coragem, o prazer, que são exercidos por ambos<br />
os protagonistas através da violência e da crueldade. E do mesmo modo que Riobaldo e Fausto se perdem, tem suas<br />
almas salvas ao final de suas travessias. Riobaldo, matando o Hermógenes, sofrendo e expurgando o amor e a morte<br />
de Diadorim, largando a vida de jagunço, reencontrando-se com Zé Bebelo, casando-se com Otacília. Fausto, sendo<br />
raptado por anjos que surgem e espargem rosas odoríferas de efeito narcotizante, fazendo recuar o demônio.<br />
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Assim narra o poema épico quirguiz Er-Töshtük (1885) 14 e que constitui um<br />
exemplo literário e simbólico acerca da natureza não apenas mágica, mas<br />
íntima, da relação entre o cavaleiro e seu cavalo. A lenda de Er-Töshtük foi<br />
construída oralmente em meio às tradições da Ásia Central, onde a influência do<br />
xamanismo se faz intensa. No contexto xamânico, atribui-se ao cavalo poderes<br />
sobre-humanos, além da imagem que o animal possui enquanto clarividente,<br />
guia, intercessor e familiarizado com as trevas e com o outro mundo.<br />
Ao pano de fundo religioso que ajudou a moldar a alegoria das relações<br />
míticas entre o cavalo e o cavaleiro 15 , somam-se outras narrativas históricas<br />
e literárias que alargam o simbolismo entorno da natureza dessas mesmas<br />
relações. Além de Er-Töshtük, a lenda do cavalo Bayard, iniciada no século XII e,<br />
desde então, recorrente em poemas e romances 16 , também trata de um cavalo<br />
com poderes sobrenaturais e que se comunica com humanos 17 . No entanto,<br />
convém relembrar as mais antigas fábulas em torno do cavalo Bucéfalos, que<br />
pertenceu a Alexandre, O Grande. Uma das lendas chega mesmo a afirmar<br />
que os poderes de Bucéfalos ultrapassavam os de Pégaso 18 .<br />
Assim, em várias culturas e fábulas inspiradas por crenças e práticas voltadas ao<br />
sobrenatural, evidencia-se a ideia de que “corcel e cavaleiro estão intimamente<br />
unidos” 19 — assim como Riobaldo e Siruiz — e de que o “cavalo instrui o homem,<br />
ou seja, a intuição esclarece a razão” 20 . Essa crença, convém reafirmar, parece<br />
ter exercido influência nas lendas e na literatura, como atestam as histórias<br />
de Tchal-Kuiruk e Bayard. Trata-se de uma vasta tradição religiosa, lendária e<br />
literária a mostrar o quão simbólica e íntima pode ser a relação entre cavaleiro<br />
e cavalo; ligação esta que não deve ter passado despercebida por Guimarães<br />
Rosa 21 e que, no universo do sertanejo, não deixa de ser bastante comum.<br />
Desse modo, montando naquele que de imaterial materializou-se, Siruiz,<br />
Riobaldo Tatarana assume também seu próprio destino, tornando-se o grande<br />
chefe Urutú-Branco. Trata-se da comunhão íntima do homem com aquilo que<br />
lhe foi traçado, sua trajetória, travessia; do “batismo” do cavalo Siruiz e do<br />
próprio Riobaldo: “E o velho homem-cujo. Ele entendia de meus dissabores?<br />
Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo… E possuía era meu caminho,<br />
nos peitos de meu cavalo. Siruiz. Aleluia só” (ROSA, 1986, p. 460).<br />
14 Epopéia asiática. É considerada um poema épico folclórico muito popular no grupo étnico dos quirguizes,<br />
no Quirguistão.<br />
15 É interessante perceber que a ideia xamânica por trás de Tchal-Kuiruk encontra fundamento similar na<br />
tradição do Vodu haitiano, em que a individualidade do praticante — alcunhado de “cavalo” — deve ser abdicada para<br />
que a personalidade de um espírito superior — que “cavalga” o praticante — se manifeste.<br />
16 Em poemas com temática de cavalaria de Luigi Pulci e Ludovico Ariosto, e, em tom jocoso, com Chaucer em<br />
Troilo e Criseide (1380) e em Contos de Canterbury (<strong>12</strong>86).<br />
17 Como bem observam Chevalier & Gheerbrant (2002, p. 205).<br />
18 Um cavalo alado relacionado às virtudes espirituais.<br />
19 Idem, Ibidem, p. 205.<br />
20 Idem, Ibidem. p. 205.<br />
21 Sabe-se que o escritor possuía vasto conhecimento acerca de práticas religiosas diversas.<br />
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Para Riobaldo, para sempre reverbera aquela canção, certeza de sua<br />
predestinação, de que tudo estava escrito: a vida de jagunço, o amor proibido<br />
e sem medidas, o pacto, a chefia do bando (reiteração da hybris), a morte de<br />
Hermógenes e Diadorim, o abandono da vida de jagunçagem, o reencontro<br />
com Zé Bebelo, o casamento com Otacília.<br />
Fui o chefe Urutú-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço<br />
Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu<br />
quero é a fé, mais a bondade… Assim, aquela outra- que o senhor disse:<br />
canção de Siruiz- só eu mesmo, meu silêncio, cantava (ROSA, 1986, p. 482).<br />
A canção de Siruiz é tão mágica quanto o cavalo Siruiz, e montar neste último<br />
é cavalgar os versos da canção — capaz de percorrer o ar, tal qual Pégaso, e<br />
o submundo, tal qual Tchal-Kuiruk —, assumi-los todos para si, embrenhar-se<br />
em seus desvios obscuros e em sua energia mágica e oculta. A canção é um<br />
cavalo poderoso.<br />
A trajetória do herói está traçada e é impossível fugir dela. Ficam para sempre<br />
as neblinas rosianas, as neblinas de Siruiz.<br />
THE MATERIALIZED ECHO: CONSIDERATIONS ABOUT THE<br />
PROPHETIC PURPORT OF THE SONG OF SIRUIZ<br />
Like the mysterious dreams that disturb Joseph son of Jacob in the biblical<br />
passage, Guimarães Rosa, in his The Devil to Pay in the Backlands (1956), also<br />
“establishes a complete disorder in Riobaldo’s heart” (REINALDO, 2005) with<br />
a song performed by a faceless and almost absent individual; by an immaterial<br />
voice that echoes through the night and pulsates in Riobaldo throughout his entire<br />
journey. The song of Siruiz deals with the search for knowledge about oneself<br />
and others by means of deciphering a puzzle that includes the “dustnado” of<br />
Riobaldo’s own existence. When he hears the song, he has his “initiation”, he<br />
tastes the forbidden fruit and dives into the “backwaters” of the San Francisco<br />
river, leaving behind the quiet life in company of his wealthy godfather Selorico<br />
Mendes to abandon himself to his destiny and to the adventures of both his<br />
henchman life and his forbidden love for Diadorim, the “virgin lady”. Riobaldo,<br />
then, meanders into the great wild which is the world. His path is traced: a path<br />
unknown even to him. He cannot escape from the power of that song and, thus,<br />
from his own destiny.<br />
KEYWORDS:<br />
Guimarães Rosa; song of siruiz; prophecy.<br />
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1998. Dissertação de Mestrado. Disponível em: . Acesso em 2 Jan. 2011.<br />
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LAGES, Susana Kampff Lages. João Guimarães Rosa e a saudade. São Paulo:<br />
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‘STAGNUS IGNIS’: O APOCALIPSE REESCREVE<br />
HOMERO! “HORIZONTES HOMÉRICOS” NA NARRAÇÃO<br />
RELIGIOSA E MÍTICA DE TEXTOS E CONTEXTOS<br />
APOCALÍPTICOS (AP 20, 14-15)?<br />
RESUMO<br />
Pedro Paulo Alves dos Santos<br />
Através da expressão apocalíptica ‘LAGO DE FOGO’, única no Novo Testamento<br />
cristão, pode-se ler no texto grego do último livro canônico cristão formas de<br />
intertextualidade com as temáticas da aventura homérica da viagem de Odisseu<br />
ao mundo hádico, aos subterrâneos da Morte e da memória? De que maneira o<br />
texto do Apocalipse refere-se ou alude ao evento homérico da superação das<br />
fronteiras dos vivos, em busca da palavra profética, encenando o mito, como<br />
palavra que justifica e torna apta a vida e a prática social em busca de novos<br />
efeitos? Pois, se no capitulo 1,18, o protagonista da narração cristão se auto-afirma<br />
como o Senhor (kyrios), que tem as chaves do Hades, (et vivus et fui mortuus et<br />
ecce sum vivens in saecula saeculorum et habeo claves mortis et inferni), que<br />
significado possuiria a alusão do poeta cristão ao mistério do “lago de fogo”<br />
(Lymnes tou pyrou), que conclui a narrativa do Cordeiro, como viagem homérica?<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Literatura crista e cultura Clássica – Hades na literatura apocalíptica –<br />
Intertextualidade e teorias do Insólito<br />
A pretensão de re-ler o mito. Esta comunicação se insere no contexto do<br />
‘Symposium’ “Escrever e reescrever na Antiguidade: Entre a Magia e o Humor,<br />
Terror e Julgamento”, emoldurada na perspectiva mais ampla do Congresso<br />
sobre o Insólito em suas “Vertentes teóricas e ficcionais”. Tocamos aqui em algo<br />
fascinante: O tema sobre os mitos, como modelos geradores do desenvolvimento<br />
‘tradicional’ da literatura antiga. E mais ainda, levantamos a seguinte questão:<br />
De que maneira o mito grego antigo (narração) ultrapassa as fronteiras das<br />
narrações bíblicas? A expressão ‘Lago de Fogo’ em Ap 20 (vv.14-15) seria, por<br />
sua ‘originalidade’, uma possível ‘invasão’ da viagem homérica na trama cristã?<br />
A atual comunicação por isso ocupar-se-á primeiramente da questão da natureza<br />
do mito antigo, como narração que se reinscreve na narrativa antiga, formando<br />
os elos da literatura clássica. Os conceitos de ‘intertextualidade’ (BETTINI,<br />
1989) e ‘alusão’ (CONTE e BARCHIESE, 1989) aplicados a este processo<br />
na “criação poética’ da antiguidade servirão de premissas ao exame dessa<br />
hipótese, analisada na segunda parte: Isto pode ter ocorrido em Ap 20,14-15?<br />
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I. Intertextualidade, Alusão e Mito: Estruturas da Escrita poética?<br />
Reconhecer que processos de ‘reescrituração’ do mito caracterizariam a<br />
literatura na antiguidade clássica se baseia no fato que o mito é ‘uma narração<br />
permanente, aberta, vazada, e aqui reside sua ‘originalidade’.<br />
As relações entre o mito e o desenvolvimento da literatura clássica fundam-se<br />
na tendência estrutural da escrita antiga: insistir na progressiva elaboração de<br />
um ‘corpus’ já conhecido de estórias, os mitos!<br />
Ecco allora la riflessione che potremmo azzardare. Che la letteratura antica, nata<br />
dalla composizione orale e prossima, ancora, alla sua matrice, ne mantenesse<br />
ativa una fondamentale tendenza strutturale: quella di puntare alla progressiva<br />
rielaborazione di un corpus già noto di storie – i miti ... (BETTINI, 1989, p. 24.).<br />
O poeta (autor) antigo reescrevia o mito oralizado, encenado e picturado em<br />
busca de novos ‘efeitos’. Reescreviam-se os próprios temas, combinando em<br />
histórias “novas” elementos e funções já conhecidos e pertencentes ao gênero<br />
em questão, fosse o romance ou a comédia.<br />
É o poeta antigo confiando a eficácia do texto não à ‘originalidade’ da invenção<br />
temática ou de enredo (uma pretensão da criação moderna, alias, romântica),<br />
mas aos efeitos sociais de reescrita do mito.<br />
(...) In altre parole, per ciò che riguardava l’intreccio, l’autore antico generalmente<br />
si preocupava piú di ri-scrivere che non di scrivere.(...). Il fatto è che la<br />
letteratura clássica e una letteratura che vive di mito. Diciamo meglio: è una<br />
letteratura che, non è capace di concepire questa operazione se non nella<br />
forma di chi racconta un mito già noto ((BETTINI, 1989, p. 16).<br />
Temos diante dos olhos não somente aspectos da ‘práxis’ literária clássica,<br />
mas alguns elementos caracterizadores da natureza produtiva e fecunda da<br />
narrativa mítica.<br />
De um lado, o escritor e autor antigos que reescrevem os mitos para mantêlos<br />
vivos, e contá-los novamente. Do outro, sabemos que o ‘discurso mítico’<br />
caracteriza-se exatamente por não existir em ‘forma definitiva’, uma vez por todas:<br />
A sua ‘existência’ é preferivelmente uma existência genérica, uma existência<br />
de ‘corpus’, algo que resulta do con<strong>jun</strong>to de suas variantes.<br />
La letteratura clássica, sì è detto, tende più ad agire su soggetti noti che<br />
non ad inventarne radicalmente dei nuovi. Presa da questo punto de vista<br />
- ma solo da questo punto di vista, è chiaro – essa rassomiglia dunque alla<br />
produzione favolistica. Anche qui, l’arte del narratore consiste più nel sapere<br />
raccontare ogni volta dele fiabe che fanno già parte di um patrimônio noto che<br />
non nell’inventare soggetti nuovi. E anche quando ciò avviene, ci si accorge<br />
facilmente che l’invenzione corrisponde piú a una diversa combinazione di<br />
elementi (o “funzioni”) già presenti nel corpus virtuale degli intrecci che non<br />
creazione di storie assolutamente nuove (BETTINI, 1989, p. 20).<br />
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Eles permanecem como lugares da memória e da cultura que se recriam pela<br />
variação do mesmo, em busca do prazer de novas recepções e interpretações<br />
do mito. Mesmo a potente noção de contar uma história que coincidia com<br />
aquela da comunidade (Nação, classes, Estado) passa por ocasiões fixas,<br />
trazendo sempre à tona novas possibilidades de compreender o que já se<br />
ouvira, já se sabia, mas que se modificava a cada reescritura, na encenação,<br />
na pintura, na mudança de gênero, no humor que invade o desejo de contar<br />
uma nova história.<br />
(...) il testo mítico, con il suo intreccio e i suoi contenuti, nel mondo antico ha<br />
anche un secondo campo di applicazione- non scritto, ma dovremmo dire, o<br />
comunque narrato: ma agito. Nel mondo, infatti, anche molte pratiche della vita<br />
sociale si trovavano ad avere alle spalle un racconto, o insieme di racconti, a<br />
carattere mítico: e nella loro ripetizione, tali pratiche possono essere dunque<br />
analizzate, o viste, come “ri-scritture” di quel complesso mítico che esse per<br />
l’appunto si trovano ad agire (BETTINI, 1989, p. 24).<br />
Recontando o mito, o poeta o reescreve no contexto da ação social, criando<br />
‘variações’, que não existem somente na literatura, mas baseando-se numa<br />
noção ampliada de ‘texto’ (histórias) que comporta a experiência vivida (ação)<br />
em permanente mudança. São as ‘ações’ (situações vitais) que reescrevem<br />
o mito. E aqui, o (relato) mito reescrito exibe sua força própria. Somente ele<br />
suporta esta ‘prática’ social, garantida em sua plena ‘aceitação’, enquanto relato<br />
crível, confiável por uma comunidade interpretante.<br />
O contexto do mito (grego) em suas reescrituras nos referenda a situar toda esta<br />
discussão literária no espaço social romano, de práticas bem determinadas,<br />
nas quais a arte, a literatura e a própria filosofia são entendidas como um<br />
verdadeiro ‘agir estético’.<br />
O mito se apresenta como a lógica da ação social, que no Rito e na Religião<br />
encontram suas reescrituras máximas, de relevância social. Reescreve-se o<br />
mito, como narração socialmente confiável (VERNANT), para reexperimentar<br />
sua cumplicidade com a atualidade de praças diversas, de necessidades de<br />
construção de sentido que se desenvolve em contextos diversos.<br />
Deste modo, o mito haure da natureza de ‘documento cultural’ a sua autoridade<br />
de fonte da ‘reescritura’ de histórias interessantes à diversidade e à variação<br />
de contextos sociais.<br />
Il mito come documento culturale: che agisce e viene “riscritto”, in determinati<br />
comportamenti della vita sociale. Stiamo uscendo, come si diceva, dall’universo<br />
letterario per entrare in quello, più ampio, della cultura, e stiamo alargando la<br />
mostra nozione di “texto” da quella tradizionale a quella lotmaniana, di “testo<br />
di cultura”. Ma è bene fare una precisazione, qui come là, resta comunque<br />
fisso um carattere fondamentale del mito: la sua ‘forza’, il suo essere un testo,<br />
come dire, piú importante degli altri. Il mito è qualche cosa di cui si può fidare,<br />
qualche cosa che può essere utilizzato quando se ne senta la necessità<br />
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(...)Il fato è che, questo vocabolario del discorso mítico, ha la straordinaria<br />
capacità di contenere lessemi buoni tanto per la letteratura quanto per la<br />
vita (BETTINI, 1989, p. 29).<br />
A vida e a literatura (política, ética e religião) se encontram bem confortáveis<br />
nas narrações do mito, como reescritura do passado em sua multiplicidade de<br />
formas e significações. E aqui cabe referir-se não somente à ‘recontextualização’<br />
da narração mítica, que indica um elemento de permanente mudança, mas<br />
àquele da tradição, expresso nas práticas da arte alusiva, tão conhecida na<br />
antiguidade clássica, sobretudo, romana.<br />
Aqui a ‘intertextualidade’ exibindo-se no ‘prazer da alusão’, traz ao rigor das<br />
discussões, os arcabouços teóricos que explicitam a ‘criação literária antiga’,<br />
como ‘reescritura do mito’:<br />
(...) conviene subito ammetere che l’allusione letteraria – lo scrittore che cita un<br />
precedente – è un fatto di passione e sentimento. I poeti tendono a presentarsi<br />
come amanti della poesia che hanno letto e che ricordano. Ricordare un<br />
modelo, nel senso di citarlo, serve a riprodurre nella scrittura la passione, la<br />
sollecitazione, prodotta dalla lettura. O poeta che ama i suoi predecessori<br />
tanto da offrire loro la parola, vuole in realtà essere amato almeno altrettanto<br />
dai suoi lettori. Essi, i lettori, assistono ad un atto di passione, ed imparono<br />
dal poeta che cosi dà un buon esempio (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 81).<br />
Na análise da ‘arte alusiva’ da poética antiga, a memória do poeta é um mecanismo<br />
eficiente de produção de sentido, ou melhor, de reescritura do texto aludido,<br />
mas que depende, para a sua eficácia, da memória dos leitores (ouvintes, na<br />
antiguidade) em vista da ‘produção de efeito’ estético provocado pela ‘arte<br />
alusiva’: ler na ‘paixão’ do transformador (o poeta/tradutor) as vicissitudes do<br />
mito lido e reexperimentado em um novo contexto social e de sentido.<br />
A alusão por isso refere-se a um fenômeno que estabelece não somente uma<br />
operação ‘intersubjetiva’, autor e leitores, mas uma relação intertextual, que<br />
coloca a leitura e a escritura no horizonte do ‘diálogo’ entre textos, alias, entre<br />
‘modelos’ textuais:<br />
L’idea della letteratura come pratica intersoggettiva viene utilmente affiancata<br />
da quella della lettteratura come intertestualità. Ogni testo letterario si configura<br />
allora come assorbimento e assimilazione di altri testi, soprattutto come<br />
trasformazione di quelli (questo ci sembra nell’intertestualità il momento piú<br />
importante: la trasformazione) (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 87).<br />
Seguindo a lógica da alusão, compreende-se melhor que a literatura é um<br />
sistema criativo, na qual cada passagem, isto é, cada reescritura (suposta a<br />
releitura) do texto mítico implica na ação de ‘transformação’ em outro texto.<br />
Houve neste processo da tradição a ‘absorção’ e a assimilação de temas e<br />
propósitos das narrações míticas.<br />
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Do que decorre a necessidade de uma ‘vida literária’. Isto é, do contexto de<br />
produção literária numa sociedade concreta é que os leitores podem ser aptos<br />
à compreensão e ao manuseio de mecanismos literários dos gêneros, que os<br />
torna ‘legíveis’ em vista de uma recepção orientada a efeitos bem precisos.<br />
Dall’altra parte, la definizione di ‘arte allusiva’ è prevalentemente centrata sull’altro<br />
verso del fenômeno: cioè insiste molto sulla cooperazione interpretativa del<br />
lettore. Averne tenuto conto non è fra i meriti piú piccoli del saggio di Pasquali<br />
che ha reso popolare la formula: ‘le reminiscenze possono essere inconsapevoli;<br />
le imitazioni, il poeta può desiderare che sfuggano al pubblico; le allusioni<br />
non producono l’effetto al produtto voluto se non su un lettore che si ricordi<br />
chiaramente del testo a cui si riferiscono (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 87).<br />
Os processos de leitura na antiguidade romana, em particular, exigiam uma<br />
‘cooperação interpretativa’ entre textos aludidos e leitores. Dos mecanismos da<br />
‘alusão’ surgem os ‘efeitos’ (estético-culturais) pretendidos, porque estes supõem<br />
a existência de uma ‘prática de leitura’ que se realiza no âmbito de ‘sistemas<br />
literários’, como guias de leitores (intérpretes) no circuito de espaços literários<br />
e sociais determinados. A ‘alusividade’ pressupõe a competência de leitura:<br />
Di fatto, un’opera può essere letta solo in conessione con altri testi o contro<br />
di loro. L’intertestualità è la dimensione in cui se traspassa dalla “produzione<br />
del texto a mezzo testi” alla ricezione orientata. In questa prospettiva, il<br />
destinatario che si avvicina al testo – lettore o imitatore, che è anche un<br />
tipo di lettore – è già lui stesso una pluralità di altri testi, e anche di codici.<br />
L’intertestualità allora, lungi dall’essere un curioso effetto d’ecco, definisce<br />
la condizione della legibilità letteraria (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 88).<br />
O pressuposto do pensamento intertextual é que uma ‘obra’ só pode ser lida<br />
em conexão com outros textos, mesmo que seja em contraste com estes. Neste<br />
domínio, o leitor, seja ele o poeta, o tradutor, ou o publico alvo são testados<br />
em sua competência de legibilidade literária na medida em que ‘decifram’<br />
esta selva de textos ‘pluri-textuais’, isto é, cada texto é uma ‘rede complexa’<br />
de outros textos:<br />
Al grado in cui un’opera letteraria è intertestuale, essa diventa come distorta,<br />
persino opaca: como un mito, per esempio. Diventa quase una rete stradale<br />
con cartelli indicatori che segnalano paesi, strade, luoghi, che retrocedono<br />
per cosi dire all’infinito. In tal modo nel testo sta nascosta una pluralità di<br />
altri testi, di codici infiniti (o piú esattamente perduti all’evidenza) (CONTE e<br />
BARCHIESE, 1989, p. 88-9).<br />
II. O Lago de Fogo no Apocalipse e Mito Grego?<br />
Nesta segunda parte de nossa comunicação desejo expor a ‘possibilidade’ de (re)<br />
pensar a interpretação de textos bíblicos à luz de teorias literárias contemporâneas,<br />
aplicáveis à produção e aos processos literários antigos. E assim, examinar as<br />
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elações entre a escuta e a repetição do ‘mito’, enquanto narração tradicional<br />
na esfera da ‘produção’ de textos cristãos no fim do primeiro século desta era<br />
(REESE, 1990, THISELTON, 1992, SANTOS, 2008). Escolhi assim intrigante<br />
expressão “Stagnus Ignis” utilizada no contexto de Apocalipse 20, 10-15:<br />
10 et Diabolus, qui seducebat eos, missus est in stagnum ignis et sulphuris,<br />
ubi et bestia et pseudopropheta, et cruciabuntur die ac nocte in saecula<br />
saeculorum.11 Et vidi thronum magnum candidum et sedentem super eum,<br />
a cuius aspectu fugit terra et caelum, et locus non est inventus eis. <strong>12</strong> Et vidi<br />
mortuos, magnos et pusillos, stantes in conspectu throni; et libri aperti sunt.<br />
Et alius liber apertus est, qui est vitae; et iudicati sunt mortui ex his, quae<br />
scripta erant in libris, secundum opera ipsorum. 13 Et dedit mare mortuos,<br />
qui in eo erant, et mors et infernus dederunt mortuos, qui in ipsis erant; et<br />
iudicati sunt singuli secundum opera ipsorum. 14 Et mors et infernus missi<br />
sunt in stagnum ignis. Haec mors secunda est, stagnum ignis. 15 Et si<br />
quis non est inventus in libro vitae scriptus, missus est in stagnum ignis.()<br />
A presença exclusiva da tradição ‘joanina’ na expressão “Lago de Fogo”,<br />
presente por no capítulo 20, permitira que se lesse no texto grego do último<br />
livro canônico cristão uma forte marca de ‘intertextualidade’(KRISTEVA, 1984)<br />
com as temáticas da aventura homérica, na viagem de Odisseu ao mundo<br />
Hádico, aos subterrâneos da Morte e da memória? De que maneira o texto do<br />
Apocalipse refere-se ou alude ao evento homérico da superação das fronteiras<br />
dos vivos, em busca da palavra profética, encenando o mito, como palavra que<br />
avalizava a vida e a prática social, em busca de novos efeitos? (<br />
Pois, se no capítulo 1,18, o protagonista da narração cristão se auto-afirma<br />
como o Senhor (kyrios), que tem as chaves do Hades (... et vivens et fui mortuus<br />
et ecce sum vivens in saecula saeculorum et habeo claves mortis et inferni.),<br />
que significado possui a alusão do poeta cristão ao mistério do “lago de fogo”<br />
(Lymnes tou pyrou), que conclui a narrativa do Cordeiro (Apoc 5-22), como<br />
viagem homérica?<br />
Segundo Lichtenberger (1998) no con<strong>jun</strong>to dos escritos do Cristianismo antigo,<br />
o Novo testamento, o Apocalipse seria aquele mais ‘pirotécnico’, pois das 73<br />
citações entre os 28 livros, 26, pertencem ao último livro do cânon.<br />
O termo fogo (pyros) contempla ao menos dois campos semânticos diversos,<br />
aquele denotativo, sólito, isto é, os campos do artesanato, da agricultura, e<br />
outro metafórico e insólito: o fogo estaria conjugado nestes termos aos temas<br />
do juízo, da purificação e da condenação eterna.<br />
No con<strong>jun</strong>to metafórico, o ‘fogo’ pode ainda dividir-se em duas situações: a)<br />
pertence à identidade divina; b) instrumento da ação da justiçadora de Deus.<br />
As citações do Apocalipse dialogam com a literatura mais antiga do Antigo<br />
Testamento, entre aquela canônica (Dn 7) e os apócrifos de Henoc, o Apoc<br />
Baruc. (STRACK-BILLERBECK, 1994).<br />
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É o que se percebe nas citações de Ap 1,14 em suas relações e diferenças<br />
com as perspectivas de Dn 7,9. O mesmo ocorre na citação de Ap 4,6, na qual<br />
aparece a famosa imagem do mar de cristal mesclado com fogo(!).<br />
O livro do Apocalipse explora de forma excelente o papel do fogo na intervenção<br />
escatológica de Deus. Para o autor ou a tradição do livro, o fogo tem um papel<br />
no processo soteriológico no qual está inserido, como uma linguagem apta à<br />
exploração do imaginário do fim do mal e a eliminação dos agentes maléficos<br />
no campo da história.<br />
Por isso, o fogo está relacionado, não só no Apocalipse joanino, mas nas<br />
passagens escatológicas do Novo Testamento ao inferno. Trata-se do castigo<br />
por antonomásia aos maus: o fogo do inferno.<br />
No limiar da narração épica no livro, a unidade 20-22, epílogo da travessia do<br />
Cordeiro, ocorre então, antes da narrativa do casamento ou festas nupciais do<br />
Cordeiro e da esposa (Ap 21), o anúncio da condenação dos inimigos (I Cor<br />
15): eles serão lançados no lago de fogo (limnen tôu piros) nos versículos14 e<br />
15 do capitulo 20.<br />
Afogar-se no mar de fogo é a ‘segunda morte’ (déuteros thánatos)<br />
In questo quadro viene spiegata l’espressione Et mors et infernus missi sunt<br />
in stagnum ignis. Haec mors secunda est, stagnum ignis ( a segunda morte),<br />
dopo essere già stata adoperata due volte (2,11; 20,6), tramite l’identificazione<br />
con lo “stagno di fuoco” (stagnum ignis) in cui vengono gettati la morte e il<br />
mondo-dei-morti (20, 14b) (DOGLIO, 2005, p.314).<br />
Para a maioria dos autores modernos permanece como ‘ordinário’ ou sólito<br />
buscar as referências de interpretação na soleira dos escritos judaicos,<br />
sobretudo, aqueles insólitos da tradição targúmica e rabínica, isto é, no ‘corpus<br />
interpretans’ dos textos sagrados do Judaísmo (oficial)<br />
Le fond le plus ancien n’était donc autre que les mythes proto-sémitiques<br />
communs à Babylone, à Canaan, et aux ancêtres aramèens des Hébreux.<br />
Plus tard, après la captivité de Babylone, le contact avec les Perses, dont<br />
l’action religieuse s’étendit, avnt Alexandre, très profondément dans l’Asie<br />
Mineure, dut encore enricher les traditions populaires. On croit qu’au moins<br />
l’angelologie d’après l’exil s’en est ressentie. Enfin, dans bien des cas, de<br />
chercher à démêler ces diverses influences. Au reste, l’hellénisme des derniers<br />
siècles s’était mêlé lui-même à tant d’éléments orientaux , comme on le voit<br />
surtout à as mythologie astrale, que le plus sage est de s’em tenir, pour<br />
caractériser les sources du symbolisme em cause (...) (ALLO, 1921, XXXII).<br />
Estes buscam justificar a presença do ‘stagnus ignis’ partir das teorias da<br />
‘Quellesforschung’ (LAPLANCHE, 1992) ou ao menos a compreensão desta<br />
imagem na lógica narrativa dos Capítulos 20-21 do Livro do Apocalipse.<br />
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Le formule per indicare tale negativa condizione escatologica non sono<br />
originali dell’Apocalisse comme aviene per la ‘prima rissurrezione’, ma<br />
appartengono al linguaggio dell’ambiente giudaico di quel tempo. Anzitutto<br />
l’immagine mítica del lago infernale in cui bruccia lo zolfo è comune nella<br />
tradizione apocalittica: esso non indica annientamento, quando piuttosto<br />
perpetua dannazione; è nominato sei volte con insistenza nell’ultima parte<br />
dell’apocalisse e alla fine, chiudendo la sezione 20,1-21,8, sembra svolgere<br />
una funzione di sintesi ammonitiva, mostrando come ‘la parte’ dei peccatori<br />
sia nello stagno di fuoco (...) (DOGLIO, 2005, p.314).<br />
Segundo Doglio, as fórmulas para indicar uma escatologia negativa, baseada<br />
no lago de fogo, não seriam originais do Apocalipse, ao contrário do que ocorre<br />
na seção anterior com a expressão ‘Prima Rissurrezione’ (Beatus et sanctus, qui<br />
habet partem in resurrectione prima! 20,5). Esta atmosfera do Mal condenado<br />
ao ‘lago de fogo’ pertenceria ao ambiente judaico heterodoxo daquele tempo<br />
(COLLINS e KUGLER, 2000).<br />
As considerações eruditas sobre a procedência literária da expressão ‘stagnus<br />
ignis’, sem a compreensão da ‘poetae intentio’ (autor) não servem aos leitores<br />
para ativar-lhes a plena leitura (intertextualizada) do texto. Sobretudo, se eles<br />
não forem judeus, ou ao menos de mentalidade ‘ortodoxa’, quais seriam os<br />
‘efeitos’ desta alusão ao mito (narrativa do fim do mal)? Não seria provável que<br />
os judeus helenizados e os cristãos de origem ‘pagão’ (Ásia Menor) tivessem<br />
familiaridade com o mito homérico (NOCK, 1973)?<br />
‘STAGNUS IGNIS’: THE APOCALYPSE REWRITES HOMER?<br />
«HOMERIC HORIZONS» IN RELIGIOUS AND MYTHICAL<br />
NARRATION OF APOCALYPTIC TEXTS AND CONTEXTS<br />
(REV 20: 14-15).<br />
ABSTRACT<br />
Through the apocalyptic expression ‘LAKE of FIRE’, unique in the Christian New<br />
Testament, can be read in the Greek text of the last canonical book Christian forms<br />
of Intertextuality with the themes of Homeric adventure of Odysseus ‘ journey to<br />
the underground world of the Hades, to Death and memory? That way the text of<br />
Revelation refers or alludes to the Homeric event of overcoming of borders of the<br />
living, in search of the prophetic Word, re-enacting the myth, as Word that justifies<br />
and makes it able to life and social practice in search of new effects? Therefore,<br />
if in Chapter 1.18, the protagonist of the narration Christian self presents as the<br />
Lord (kurios) which has the keys of Hades, (et vivus et went mortuus et ecce in<br />
saecula saeculorum et vivens sum habeo claves mortis et inferni), what would the<br />
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allusion of the Christian poet to the mystery of “Lake of fire” (Lymnes tou pyrou),<br />
that concludes the narrative of the Lambas Homeric journey?<br />
KEYWORDS:<br />
Christian literature, Classical culture; Hades in the apocalyptic literature;<br />
Intertextuality and Unusual theories.<br />
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O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DO FANTáSTICO NO CONTO<br />
“NATAL NA BARCA”, DE LYGIA FAGUNDES TELLES<br />
RESUMO:<br />
Rosana Gondim Rezende Oliveira<br />
O presente trabalho propõe-se a estudar as espacialidades no conto “Natal na<br />
barca”, de Lygia Fagundes Telles, observando suas relações com a instauração<br />
do fantástico. Pretendemos também focalizar a capacidade inventiva da escritora<br />
de mesclar o conto de atmosfera ao conto de personagem, evidenciando que<br />
o espaço/ambiente contribui para acentuar uma atmosfera de solidão e morte,<br />
associada a um perfil de incompletude e solidão das personagens. Se os espaços<br />
são bastante significativos, assim também o são as imagens, articuladas pelo<br />
cromatismo simbólico da narrativa de Lygia Fagundes. O verde, reconhecido pelo<br />
senso comum como cor da esperança, da imaturidade, assume, nesse conto,<br />
um significado ambíguo – fruto da mistura do azul com o amarelo, equilibra-se<br />
entre a vida e a morte, entre a alegria e a morbidez. A presença do fantástico<br />
evidencia que nem tudo pode ser explicado e detalhado. Assim, um misticismo<br />
religioso subjacente se mostra, mas se os fatos religiosos são dogmáticos,<br />
eles acabam por encontrar no fantástico – instaurado substancialmente pelo<br />
espaço – uma análise racionalizada pela lucidez científica. Nossos principais<br />
referenciais teóricos serão os estudos de Michel Foucault, de Mikhail Bakhtin,<br />
de Chevalier e Gheerbrant e de Todorov.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Conto; insólito; espaço narrativo; fantástico.<br />
“Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos<br />
deslizando na escuridão. Contudo estávamos vivos. E era Natal.”<br />
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(LFT)<br />
Um olhar atento sobre as incontáveis análises de obras literárias em prosa revelanos<br />
que, até o século XIX, as preocupações voltavam-se para o tempo narrativo.<br />
A partir do século XX, talvez como um reflexo da preocupação do homem em<br />
diminuir o espaço ocupado pelos objetos para aumentar o espaço humano,<br />
os estudos deslocaram-se para as espacialidades, que, surpreendentemente,<br />
ofereceram-nos um campo rico e vasto de relações nos planos físico e mental.<br />
Michel Foucault, em sua conhecida conferência “Outros espaços”, proferida<br />
no Círculo de Estudos Arquitetônicos, em 1967, afirma: “A época atual seria<br />
133
talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo,<br />
estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado,<br />
do disperso” (2001, p. 411).<br />
Figurar o espaço, em uma análise, é perceber as relações entre os vários<br />
posicionamentos de uma sociedade. O que somos nós senão seres que se<br />
classificam segundo o espaço ocupado? Estruturas de um todo, estabelecemos<br />
con<strong>jun</strong>tos de relações também identificadas pelo espaço. Há de se recordar a<br />
antiga pirâmide hierárquica na sociedade feudal, cujo topo afunilado representava<br />
o poder absoluto. Na Modernidade 1 , mais especificamente a partir do século<br />
XX, incomodados pelas fronteiras da estrutura social, filósofos, sociólogos e<br />
literatos passaram a refletir e questionar, por exemplo, sobre a alteridade, que,<br />
grosso modo, traduz-se pela interferência de um ser no espaço do outro, de<br />
certa forma, intrusa, oblíqua, visando à sobreposição.<br />
Em se tratando de arte, é necessário aceitar que habitamos o espaço da ficção,<br />
portanto, sem compromisso aparente com a realidade, embora possa fazê-la<br />
emergir com ferocidade. Intencionalmente ou não, a literatura trabalha no cotidiano<br />
do homem, transformando comportamentos e relações. Segundo Beatriz Sarlo,<br />
[...] a literatura é, pelo menos desde o século XIX, quase sempre incômoda<br />
e, por vezes, escandalosa. Acolhe a ambigüidade ali onde as sociedades<br />
querem bani-la; diz, por outro lado, coisas que as sociedades prefeririam<br />
não ouvir; com argúcia e futilidade, brinca de reorganizar os sistemas<br />
lógicos e os paralelismos referenciais; dilapida a linguagem porque a usa<br />
perversamente para fins que não são apenas prático-comunicativos; cerca<br />
as certezas coletivas e procura abrir brechas em suas defesas; permite-se<br />
a blasfêmia, a imoralidade, o erotismo que as sociedades somente admitem<br />
como vícios privados; opina, com excessos de figuração ou imaginação<br />
ficcional, sobre história e política; [...] falsifica, exagera, distorce porque não<br />
acata os regimes de verdade dos outros saberes e discursos. Mas nem por<br />
isso deixa de ser, a seu modo, verdadeira. (1997, p.28)<br />
Como espelho das relações humanas, a arte literária nos apresenta obras em<br />
que este elemento narrativo – o espaço – recebe tratamento de destaque. É o<br />
caso de “Natal na barca”, conto que integra a obra Antes do baile verde, de<br />
Lygia Fagundes Telles.<br />
Escrito em 1958, o conto “Natal na barca” é narrado em 1ª pessoa; de acordo<br />
com a terminologia de Gérard Genette, narrador homodiegético, isto é, conta<br />
uma história de que participa e se destaca, mas não como protagonista.<br />
O primeiro período da narração já se apresenta como um recurso para despertar<br />
a curiosidade do leitor, uma vez que a personagem sugere certo grau de mistério<br />
no acontecimento em que esteve envolvida: “Não quero nem devo lembrar aqui<br />
por que me encontrava naquela barca.” (TELLES, 1982, 74)<br />
1 “A modernidade”, escreveu Baudelaire, em seu artigo “Sobre a Modernidade” (publicado em 1863), “é o<br />
transitório, o efêmero, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.” (1996, p. 25)<br />
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Considerando-se que Lygia Fagundes Telles empresta sua voz a personagens<br />
ilhadas em seu sofrimento, pode-se afirmar que o impacto da apresentação do<br />
conto trava uma relação de intimidade entre personagem e leitor, pois o que<br />
se lerá parece tratar-se de um “segredo” revelado, um desabafo, tornando-se<br />
bastante sugestivo esse tom confessional que a narrativa assume. Wolfgang<br />
Iser, ao teorizar sobre o leitor implícito, diz:<br />
Tal ponto de vista (do artista) situa o leitor no texto; desse modo ele consegue<br />
construir o horizonte de sentido, ao qual é conduzido pelas perspectivas<br />
matizadas do texto. Mas como o horizonte do sentido nem copia algo dado<br />
do real, nem do hábito de um público intencionado, o leitor deve imaginálo.<br />
Apenas a imaginação é capaz de captar o não-dado, de modo que a<br />
estrutura do texto, ao estimular uma seqüência de imagens, se traduz na<br />
consciência receptiva do leitor. (1966, p.79)<br />
Uma segunda observação é a aproximação intertextual que pode ser feita entre<br />
esse início e o início do conto “Missa do galo”, de Machado de Assis: “Nunca pude<br />
entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu<br />
dezessete, ela trinta.” (1977, p.75). E as semelhanças não se limitam à apresentação<br />
apenas; em ambos os contos, os narradores-personagens lançam mão de detalhes<br />
significativos que reforçam a relevância daquele momento em suas vidas.<br />
Sabemos que as personagens, presentes na barca, são quatro: um velho – “um<br />
bêbado esfarrapado” (p. 74) que conversava com “um vizinho invisível” (p. 74),<br />
uma mulher “jovem e pálida” (p. 74) que carregava uma criança “enrolada em<br />
panos” (p. 74) e o narrador, uma mulher –, o que só é possível saber quase no<br />
final do conto pela seguinte declaração: “[...] era como se estivesse mergulhada<br />
até o pescoço naquela água.” (TELLES, 1982, p.77) (grifo nosso)<br />
Nessa linha do mistério, observa-se que a barca encerra um cenário lúgubre:<br />
“desconfortável”, “tosca”, “tão despojada”, “tão sem artifício”, “grade de madeira<br />
carcomida”, “chão de largas tábuas gastas”, abria um “sulco negro” no rio, “em<br />
redor de tudo era silêncio e trevas”, os passageiros eram iluminados com a “luz<br />
vacilante” de uma lanterna. Observe-se que a caracterização do ambiente se<br />
dá entremeada à narração do comportamento do protagonista, o que se traduz,<br />
de acordo com Osmar Lins, em uma ambientação franca, “que se distingue<br />
pela introdução pura e simples do narrador” (1976, p.79), e que deste espaço/<br />
ambiente emerge o fantástico.<br />
Aproveitando aqui as observações de Foucault, em sua reflexão “Outros<br />
espaços”, reconhecemos que a barca é uma heterotopia, a saber:<br />
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer<br />
civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na<br />
própria instituição da sociedade, [...] (1984, p.415)<br />
[...]<br />
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[...] se imaginarmos, afinal, que o barco é um pedaço de espaço flutuante,<br />
um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao<br />
mesmo tempo lançado ao infinito do mar [...] ao mesmo tempo não apenas,<br />
certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso<br />
que falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia<br />
por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a<br />
espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários. (1984, p.421-22)<br />
Assim, pela análise do título, podemos afirmar que há nele um jogo significativo<br />
entre tempo e espaço. Tal jogo inscreve ficcionalmente aquilo que Mikhail<br />
Bakhtin concebeu como cronotopia:<br />
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e<br />
temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,<br />
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensificase,<br />
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices<br />
do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é<br />
medido com o tempo. (1990, p. 211)<br />
Com mais ousadia, podemos afirmar que o tempo se encerra em um espaço, pois<br />
se trata de uma data religiosa – Natal – que se passa em uma barca. Guardadas<br />
as devidas proporções, a barca acaba por assumir uma simbologia ambígua:<br />
em primeiro lugar, trata-se de um lugar real, efetivo, um meio de transporte<br />
que liga o subúrbio à cidade ou o interior à metrópole, pois a personagem que<br />
resguarda mistério – uma mulher “jovem e pálida” – residia em Lucena, cidade<br />
do interior da Paraíba, e, a conselho do farmacêutico, levava seu filho a um<br />
médico especialista.<br />
Em outra análise, tal barca pode adquirir um significado místico se a enxergarmos<br />
como símbolo de viagem, travessia realizada por vivos ou mortos. O dicionário<br />
de símbolos nos adverte para interessantes simbologias da barca:<br />
Na arte e na literatura do antigo Egito, acreditava-se que o defunto descia<br />
para as doze regiões do mundo inferior numa barca sagrada. (CHEVALIER<br />
E GHEERBRANT, 1999, p.<strong>12</strong>1)<br />
[...]<br />
Na tradição cristã, a barca dentro da qual os crentes ocupam seus lugares<br />
a fim de vencer as ciladas desse mundo e as tempestades das paixões é a<br />
Igreja. A esse propósito, pode-se evocar a Arca de Noé, que é a prefiguração<br />
da Igreja. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1999, p. <strong>12</strong>2)<br />
Logo, se considerarmos a vida como uma navegação perigosa, a barca é um<br />
símbolo de segurança, afinal, não era a primeira vez que aquela mulher, com<br />
“aspecto de uma figura antiga” a utilizava: “Já tomei esta barca não sei quantas<br />
vezes, mas não esperava que justamente hoje...” (TELLES, 1982, p.75)<br />
Remetendo-nos, ainda, à teoria dos espaços, de Michel Foucault, temos que<br />
as embarcações são, conforme já evidenciamos, espaços que permitem<br />
o desencadeamento dos sonhos. As civilizações sem barcos interditam os<br />
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sonhos e toda a complexa e rica imaginação que deles advém. No caso do<br />
conto analisado, a espacialidade da barca deflagra a ambientação fantástica,<br />
instaurando a possibilidade da emergência do insólito na narrativa. Segundo a<br />
própria narradora, a barca aludia à morte: “ali estávamos os quatro, silenciosamente<br />
como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão.” (TELLES,<br />
1982, p.74). De acordo com a mitologia, como já citado anteriormente, o<br />
defunto descia de doze regiões do mundo inferior numa barca sagrada e se<br />
conseguisse vencer os desafios do inferno, que desejavam se apoderar de sua<br />
alma, concluiria seu percurso subterrâneo. Há, portanto, um terceiro significado<br />
para esse espaço, pois, ainda segundo Foucault, a barca é um “espelho”, uma<br />
espécie de experiência mista entre a “utopia” e a “heterotopia”:<br />
[...] o espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna<br />
esse lugar que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo<br />
tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve,<br />
e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar<br />
por aquele ponto virtual que está lá longe. (1984, p.415)<br />
Desta feita, a viagem subterrânea da barca nos permite intuir uma exploração<br />
do inconsciente, no caso, da narradora-personagem, implícita em suas palavras<br />
iniciais: “Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela<br />
barca.” (TELLES, 1982, p.74), ato falho que sugere certa resistência às revelações<br />
do subconsciente, cujo paradoxo se encerra no ato de revelar as experiências<br />
lá vividas; experiências estas, sobretudo, emocionais, psicológicas, percebidas<br />
em cada gesto, em cada fala que não se conteve:<br />
Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas<br />
olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio. (TELLES, 1982, p.74)<br />
[...]<br />
[...] Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não<br />
podia mais parar. (TELLES, 1982, p.75)<br />
[...]<br />
Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio.<br />
Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num<br />
tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. (TELLES,<br />
1982, p.76)<br />
O caráter polissêmico da barca acentua sua indefinição, o que gera mistério.<br />
Este, por sua vez, abre as portas para o fantástico, causando no leitor a hesitação<br />
própria desse gênero.<br />
Refletindo sobre o tempo, é evidente o predomínio do psicológico, uma vez que<br />
a estória é narrada por meio das lembranças da protagonista. Cronologicamente,<br />
equivale ao tempo gasto na viagem percorrida pela barca: “Pensei em falar-lhe<br />
assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até<br />
aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra.” (TELLES, 1982, p.74)<br />
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Entretanto há outro sinalizador de tempo exposto no título ― Natal ― que nos oferece<br />
observações interessantes. A época do Natal caracteriza-se, tradicionalmente,<br />
como momento de fé, de renovação, de esperança, de perdão; comemorase<br />
o nascimento de Jesus Cristo, o cordeiro de Deus, cujo sangue lavou os<br />
pecados da humanidade que nEle acreditou. Paralelamente, é momento de<br />
muitas luzes, de alegria, de festa, de troca de presentes. Daí a ambiguidade do<br />
texto, haja vista a ambientação soturna da barca e o estado de alma angustiado<br />
da narradora-personagem:<br />
Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a<br />
ociosidade de um diálogo. (TELLES, 1982, p.74)<br />
[...]<br />
Ali estávamos os quatro, como mortos num antigo barco de mortos deslizando<br />
na escuridão. Contudo, estávamos vivos. Era Natal. (TELLES, 1982, p.74)<br />
[...]<br />
Uma obscura irritação me fez sorrir. (TELLES, 1982, p.76)<br />
[...]<br />
E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por que, perturbeime.<br />
(TELLES, 1982, p.76)<br />
Não se expõem os motivos de sua angústia, mas pode-se inferir uma decepção<br />
amorosa, quem sabe o sofrimento por um desenlace. Isso é aventado por um<br />
monólogo interior, em que ela revela seu desejo por estar só e sem lembranças<br />
e se queixa da necessidade incontrolável de laços humanos, e também através<br />
de seu interesse incontido por mais informações quando a tal mulher “jovem<br />
e pálida” revela ter sido abandonada pelo marido:<br />
Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os<br />
laços – os tais laços humanos – já ameaçavam me envolver. Conseguira<br />
evitá-los até aquele instante. Mas agora tinha forças para rompê-los.<br />
– Seu marido está à sua espera?<br />
– Meu marido me abandonou.<br />
Sentei-me novamente e tive vontade de rir.<br />
Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não<br />
podia mais parar.<br />
–Há muito tempo? (TELLES, 1982, p. 74)<br />
Focalizando nossa análise, agora, na mulher “jovem e pálida”, constatamos que<br />
essa personagem, aparentemente secundária, rouba a cena por, assim como<br />
a barca, resguardar todo um mistério, a começar por sua descrição física:<br />
Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que cobria a cabeça<br />
dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. (TELLES, 1982, p.74)<br />
[...]<br />
Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Deparei em suas<br />
roupas, pobres roupas puídas, tinham muito caráter, revestidas de uma certa<br />
dignidade. (TELLES, 1982, p.74)<br />
[...]<br />
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Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era<br />
tranqüilo. (TELLES, 1982, p.75)<br />
[...]<br />
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar<br />
tinha a expressão doce. (TELLES, 1982, p.75)<br />
[...]<br />
(...) aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. (TELLES, 1982, p.76)<br />
[...]<br />
E começou, com voz quente de paixão. (TELLES, 1982, p.76)<br />
[...]<br />
[...] Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto<br />
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa. (TELLES, 1982, p.77)<br />
Além dessas descrições de qualificações por vezes antitéticas, sabemos que<br />
ela carrega nos braços uma criança enrolada em panos. A criança estava<br />
doente, com febre, sendo levada a um médico especialista. A narradora sente<br />
vontade de conversar com ela assim que adentra a barca, mas pensa que o<br />
ambiente lúgubre e precário em que se encontravam não combinava com a<br />
“ociosidade de um diálogo”. (TELLES, 1982, p.74)<br />
Após um comentário espontâneo da narradora que se agacha para pegar sua<br />
caixa de fósforos e mergulha as pontas dos dedos na água, o diálogo se inicia:<br />
– Tão gelada – estranhei, enxugando a mão.<br />
– Mas de manhã é quente.<br />
[...]<br />
– De manhã esse rio é quente – insistiu ela, me encarando.<br />
– Quente?<br />
– Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de<br />
roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem<br />
por estas bandas? (TELLES, 1982, p.74)<br />
Ponderando sobre a espacialidade da água do rio e sua caracterização em<br />
“gelada”, pela narradora e “quente e verde”, pela jovem mulher, entendemos que<br />
a barca torna-se o espaço da união dos opostos, manifestados não somente<br />
por duas mulheres tão díspares em ideias, comportamentos e, principalmente,<br />
crença (fé), quanto pela representação que ela carrega de nascimento e morte,<br />
quente e gelado, manhã e noite. O curso das águas representa a corrente da vida<br />
e sua travessia é o transpor de um obstáculo, daí a narradora, aparentemente<br />
cética, estranhar a água, para ela, “tão gelada”, ao passo que a jovem mãe<br />
refere-se inversamente ao mesmo elemento, considerando-a “quente” e, mais,<br />
“verde”, neste caso, simbolizando esperança, vida. Outra análise do atravessar<br />
as águas, de caráter místico-religioso, envolve a questão do batismo cristão,<br />
após o qual se renasce para uma nova vida.<br />
Uma das significações do verde apontadas por Chevalier e Gheerbrant sustenta<br />
nossa leitura: “O verde é a cor do reino vegetal se reafirmando, graças às<br />
águas regeneradoras e lustrais nas quais o batismo tem todo o seu significado<br />
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simbólico. O verde é o despertar das águas primordiais, o verde é o despertar<br />
da vida.” (1999, p. 939). A barca não era estranha àquela mulher; já a tomara<br />
outras vezes, mas incomodava-lhe ter que estar ali justamente no dia de Natal,<br />
porém tinha fé e, portanto, a certeza de que Deus estaria ao seu lado, mais<br />
que isso, despertaria a criança para a vida:<br />
– [...] Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que<br />
justamente hoje...<br />
[...]<br />
– É. Está doente [...] Ainda ontem ele estava bem, mas de repente piorou.<br />
Uma febre, só febre... [...] – Só sei que Deus não vai me abandonar. (TELLES,<br />
1982, p. 75)<br />
Como se não bastasse esse infortúnio, ao ser questionada pela narradora se<br />
aquele era o filho caçula , a mulher relata outro sofrimento:<br />
– É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava<br />
brincando de mágico, quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A<br />
queda não foi grande, o muro não era alto, mais caiu de tal jeito... Tinha<br />
pouco mais de quatro anos. (TELLES, 1982, p.75)<br />
Embora a narradora tente desviar o assunto para o outro filho, aquele que ali<br />
estava, e vivo, a mulher ainda insiste em contar detalhes do primeiro. Aquela<br />
levanta-se, tentando romper o diálogo, mas ainda pergunta-lhe se o seu marido<br />
(da jovem mãe) ficara à sua espera. É surpreendida pelo terceiro dissabor:<br />
– Meu marido me abandonou.<br />
[...]<br />
– Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem!<br />
Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo<br />
sobre ela, fez até uma brincadeira, a Ducha enfeou, de nós dois fui eu que<br />
acabei ficando mais bonito... E não falou mais do assunto. Uma manhã ele<br />
se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o<br />
menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, (...) recebi a carta à<br />
tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que<br />
alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. (TELLES, 1982, p.75)<br />
Observemos que a fala dessa personagem é marcada por reticências, exatamente<br />
nos momentos acentuados por maior emoção e, por isso, o pensamento é<br />
suprimido, intensificando também a emoção no leitor.<br />
Quanto aos valores sócio-culturais, temos aqui três fatores relevantes, que<br />
retratam as tradições daquela época: o primeiro mostra que, abandonada pelo<br />
marido, a mulher retorna à casa dos pais, no caso, parece que ela não tinha<br />
pai, não se sabe se sua mãe era viúva ou também fora abandonada; o segundo<br />
revela que ela era professora, profissão respeitosa e bem aceita pela sociedade<br />
preconceituosa da época, de valores nitidamente patriarcais; no entanto, suas<br />
roupas – “pobres roupas puídas” (p. 74) e o diminutivo ao se referir ao local<br />
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de trabalho – “escolinha” (p. 76) – aliados ao local em que morava – Lucena<br />
– denunciavam um baixo rendimento financeiro. E, por último, a sua aceitação<br />
passiva e resignada diante do abandono, do fato de ser trocada por outra e,<br />
mais afrontoso ainda, de ser comunicada da traição por uma carta, refletindo<br />
a condição da mulher a quem poucos direitos eram concedidos.<br />
A obra de Lygia Fagundes Telles é, de várias formas, uma obra que vasculha<br />
a alma feminina, o que se comprova pela larga incidência de personagens<br />
femininas em busca de sua identidade, em conflito com o mundo que as rodeia,<br />
em luta por sua liberdade e, como qualquer ser humano, vítimas e cúmplices de<br />
desencontros, de perdas, de traições. Seus contos, em Antes do baile verde, são<br />
testemunhos de um mundo moral em decomposição. A Literatura não reforça,<br />
aqui, esses valores preconceituosos, mas simplesmente coloca-os à mostra.<br />
No entanto, embora a jovem mulher fosse uma provinciana, de parcos recursos<br />
financeiros, que enfrentara o abandono do marido, a morte do filho mais velho<br />
de apenas quatro anos e agora a doença do mais novo e único, emanava de<br />
si caráter, dignidade, tranquilidade, energia, docilidade, vida, paixão, luz, o que<br />
nos remete a uma interpretação mística do conto: essa mulher é a conotação<br />
viva da fé extrema, ao ponto de a narradora sentir-se irritada com tamanha<br />
resignação, mas, logo após, viver um momento de epifania 2 :<br />
– A senhora é conformada.<br />
– Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.<br />
– Deus – repeti vagamente.<br />
– A senhora não acredita em Deus?<br />
– Acredito – murmurei. E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem<br />
saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela<br />
confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... (TELLES,<br />
1982, p. 76)<br />
A imagem daquela mulher “jovem e pálida” (p.74), com um “manto escuro”<br />
(p.74) sobre a cabeça, assemelhando-se a uma “figura antiga” (p.74) com uma<br />
criança no colo, nos faz aludir à Virgem Maria, renovada pela fé que lhe conferia<br />
os atributos mencionados. E, reforçando essa hipótese, ela ainda narra uma<br />
experiência sobrenatural fascinante que vivera em um dia de desespero pela<br />
saudade do filho morto:<br />
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada<br />
que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca,<br />
chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde levava ele para<br />
brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava<br />
tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não<br />
2 Nádia B. Gotlib, em Teoria do Conto, teoriza sobre o “momento especial” presente na maioria dos contos: “Assim<br />
como para Poe o conto depende de um efeito único ou impressão total que causa no leitor, para outros, é o próprio conto<br />
que representa um momento especial em que algo acontece. [...] Um dos momentos especiais é concebido como o que se<br />
chama de epifania. Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é identificada como uma espécie ou grau de apreensão do<br />
objeto que poderia ser identificada com o objetivo do conto, enquanto uma forma de representação da realidade. [...] Para<br />
Joyce, “é uma manifestação espiritual súbita”, em que um objeto se desvenda ao sujeito”. (1991, p. 49-51)<br />
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precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais<br />
uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como<br />
dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele<br />
pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com<br />
o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar<br />
e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tal sua alegria que<br />
acordei rindo também, com o sol batendo em mim. (TELLES, 1982, p.76-7)<br />
Nesse momento, temos a presença do gênero fantástico traduzido pelo sonho, cuja<br />
porta é o jardim, símbolo de paraíso terrestre. Em “Outros espaços”, Michel Foucault<br />
nos esclarece os valores dessa heterotopia – “o que justapõe em um só lugar real<br />
vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”:<br />
O jardim tradicional dos persas era um espaço sagrado que devia reunir<br />
dentro do seu retângulo quatro partes representando as quatro partes do<br />
mundo [...] Quanto aos tapetes, eles eram, no início, reproduções de jardins.<br />
O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem realizar sua perfeição<br />
simbólica, e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço. O<br />
jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo. O<br />
jardim é, desde a mais longínqua Antiguidade, uma espécie de heterotopia<br />
feliz e universalizante (daí nossos jardins zoológicos). (2001, p. 418).<br />
Assim, o jardim aparece muitas vezes nos sonhos como a manifestação feliz<br />
de um desejo puro. Mas se aquele jardim era íntimo e comum aos dois, fora<br />
realmente sonho ou ela vira o filho e fora beijada por ele?<br />
Segundo Tzvetan Todorov, o fantástico equilibra-se exatamente nessa incerteza:<br />
Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou<br />
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse<br />
caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento<br />
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta<br />
realidade é regida por leis desconhecidas para nós.<br />
[...]<br />
O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis<br />
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (2004, p.30-1)<br />
Após a narração dessa experiência, a narradora-personagem, um tanto<br />
sensibilizada e incomodada com os fatos, busca fazer algo que descontraia<br />
aquele clima, assim, levanta a ponta do xale que cobria a criança e constata<br />
que o menino estava morto. Fica totalmente atormentada. A barca chega ao<br />
seu destino e a narradora pensa em descer logo, despistando-se da mulher,<br />
pois não quer compartilhar de mais um momento de perda e dor. Mas aquela<br />
mãe ignora a tentativa de despedida da mulher e vira-se para apanhar a sacola,<br />
ao que a narradora tenta ajudá-la; no entanto ela ignora novamente seu ato e<br />
afasta o xale que cobria a cabeça do filho.<br />
– Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre...<br />
– Acordou?!<br />
Ela teve um sorriso.<br />
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– Veja...<br />
Inclinei-me. A criança abrira os olhos ― aqueles olhos que eu vira cerrados<br />
tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo<br />
corada. (TELLES, 1982, p.77)<br />
Novamente o fantástico se manifesta, instaurando a hesitação sobre o acontecido,<br />
afinal, naquela barca, aconteceram a morte e o milagre da ressurreição ou a<br />
narradora fizera julgamento enganoso a respeito do estado anterior da criança?<br />
Sobretudo as duas mulheres, após a travessia do rio, foram renovadas. A<br />
jovem mãe acentuara sua fé e a narradora mostrara-se incomodada, reflexiva,<br />
o que se evidencia em suas últimas e repetidas palavras, olhando para trás, a<br />
imaginar como seria o rio de manhã: “verde e quente” (p.78), simbolizando o<br />
primeiro o despertar e o segundo, a chama da vida, o que a mantém acesa.<br />
Queremos, ainda, lançar nossos olhos para a relevância do número quatro<br />
nesse conto: são quatro pessoas na barca. Embora não se tenha informado<br />
a idade delas, sabemos que há uma criança, uma jovem mulher, a narradora<br />
– aparentemente madura – e um velho bêbado, portanto, representantes das<br />
quatro fases da vida. A propósito, o quatro é um numeral simbólico; os pontos<br />
cardeais são também quatro: Norte, Sul, Leste e Oeste, bem como as estações<br />
do ano e as fases da Lua. No conto, o filho morto tinha quatro anos quando<br />
morreu, o manto da jovem mãe tinha “as pontas cruzadas”, o que nos remete<br />
à cruz e suas quatro pontas, lembrando que a cruz – em Cristo – simboliza<br />
morte e início de uma nova vida. Na Bíblia, o número quatro aparece inúmeras<br />
vezes, representando o universo: quando se diz que no Paraíso havia quatro<br />
rios (GÊNESIS 4: 10), significa que todo o cosmos era um Paraíso antes do<br />
pecado de Adão e Eva. Ezequiel, ao invocar o Espírito dos quatro ventos para<br />
soprar sobre os ossos secos (EZEQUIEL 37: 9), conclama os ventos de todo<br />
o mundo. E, em “Apocalipse”, o trono de Deus assentado sobre quatro seres<br />
(4: 6) é a imagem de que toda a terra é o próprio trono de Deus.<br />
Portanto, constatamos que as obras de Lygia Fagundes Telles ― em meio a um<br />
misticismo sutil e aparentemente ingênuo, mas de grande ressonância ― perscrutam<br />
o íntimo do ser humano em seus conflitos mais primitivos. Acreditamos que<br />
Lygia Fagundes Telles renova o conto, um gênero cujos recursos pareciam já<br />
ter sido esgotados e estudados. Por meio de frases nominais, falas reticentes,<br />
justeza de adjetivos, frequência do discurso direto, caracterizado muitas vezes<br />
pela oralidade, proporcionando um ritmo dinâmico ao texto, a escritora promove<br />
a condensação da forma, repercutindo no conteúdo, uma vez que detém maior<br />
condensação dramática e maior densidade emotiva.<br />
O trabalho do artista literário é este: recriar a vida cotidiana, recriação esta<br />
que se embrenha nesse terreno de metáforas, de sugestões, de insinuações,<br />
de emoções, pois ele só é capaz de plasmar e dar vida à sua arte, à sua<br />
apropriação do mundo a partir de termos do seu próprio campo simbólico.<br />
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A qualidade literária das narrativas de Lygia Fagundes Telles em imagens visuais,<br />
táteis e oníricas prova que a barca da Literatura abre um sulco verde e quente<br />
no rio da alma humana e, parafraseando Heráclito, depois de nos banharmos<br />
nesse rio, nem ele nem nós jamais seremos os mesmos.<br />
THE SPACE IN THE CONSTRUCTION OF THE FANTASTIC<br />
IN “CHRISTMAS ON THE BARQUE”, BY LYGIA FAGUNDES<br />
TELLES<br />
ABSTRACT:<br />
This study aims to examine the spatialities in the story “Christmas on the barque”,<br />
by Lygia Fagundes Telles, noting its relations with the establishment of the<br />
fantastic. We also intend to focus on the contrivance of the writer to merge the<br />
tale atmosphere to the tale character, showing that the space / ambience helps<br />
to accentuate an atmosphere of loneliness and death, associated with a profile<br />
of incompleteness and loneliness of the characters. If the spaces are quite<br />
significant, so are the images, articulated by chromaticism symbolic narrative<br />
of Lygia Fagundes. Green, recognized by common sense as the color of hope,<br />
immaturity, assumes, in this tale, an ambiguous meaning - the result of mixing<br />
blue and yellow, is balanced between life and death, between joy and morbidity.<br />
The presence of the fantastic shows that not everything can be explained and<br />
detailed. Thus, an underlying religious mysticism shows itself, but if the facts are<br />
religious dogmatists, they eventually find in the fantastic - brought substantially<br />
into space - a reasoned analysis for scientific clarity. Our main theoretical studies<br />
will be Michel Foucault, Mikhail Bakhtin, Chevalier and Gheerbrant and Todorov.<br />
KEYWORDS:<br />
Short story; unusual; narrative space; fantastic.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada – Antigo e Novo Testamento; 2.ed.,<br />
São Paulo, SP; SBB; 1995.<br />
ASSIS, Machado. Missa do Galo. In: Contos Consagrados. Rio de Janeiro:<br />
Ediouro, São Paulo: Publifolha, 1997. (p.75-82).<br />
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.<br />
2.ed. São Paulo: UNESP, Hucitec, 1990.<br />
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BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Coleção Leitura. São Paulo: Paz<br />
e Terra, 1996.<br />
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 14.ed. Rio<br />
de Janeiro: José Olympio, 1999.<br />
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Ditos & Escritos III - Estética: Literatura<br />
e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:<br />
Forense Universitária, 2001.<br />
GENETTE, Gérard. Nouveau discours du récit. Paris: Seuil, 1983.<br />
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 6.ed.. São Paulo: Ática, 1985.<br />
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Vol. 1. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo:<br />
34, 1996.<br />
SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 1997.<br />
TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Livraria José<br />
Olympio, 1982.<br />
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,<br />
2007.<br />
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O FANTáSTICO COMO REPRESENTAÇÃO DO TEMOR AO<br />
ESTRANGEIRO: UMA LEITURA EM CONTRAPONTO DE “O<br />
HORLA”, DE GUY DE MAUPASSANT<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Rosângela de Medeiros<br />
Este artigo realiza uma “leitura em contraponto”, conforme definida por Edward<br />
Said, das duas versões do conto “O Horla” de Guy de Maupassant, visando<br />
revelar o pensamento imperialista e colonialista francês imbricado em suas<br />
tessituras. Para tanto, analisa a maneira como a criatura invisível, o Horla,<br />
configura-se como um “outro” aterrador, elemento basilar na configuração da<br />
Literatura Fantástica, construído em ambos os textos a partir da imagem do<br />
estrangeiro como uma ameaça.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Imperialismo, “leitura em contraponto”, estrangeiro, Literatura Fantástica<br />
Guy de Maupassant escreveu duas versões do conto “O Horla”. Em ambas as<br />
versões a narrativa centra-se no aparecimento de um ser transparente, que<br />
aos poucos domina o protagonista, vampirizando-o. Este ser fantástico, que o<br />
narrador batiza com o nome de Horla, teria chegado à França em uma galera<br />
brasileira. Para investigar e desvelar a presença do discurso idealizante colonial e<br />
imperialista no texto de Maupassant, as duas versões do conto serão analisadas<br />
a partir do que Edward Said cunhou como “leitura em contraponto”. Ou seja,<br />
uma leitura avisada que busca abrir brechas nos textos dando visibilidade ao<br />
imaginário colonial arraigado à escritura de ambas as narrativas. Tal leitura<br />
nasce da provocação realizada por Said em Cultura e Imperialismo:<br />
Devemos ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo o arquivo<br />
da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos para extrair,<br />
estender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente<br />
ou ideologicamente representado em tais obras. (...) Ao ler um texto, devemos<br />
abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído pelo<br />
autor (SAID, 1995, p. 104-5).<br />
Para adentrar os contos de Maupassant a procura dos “rastros” deixados por<br />
“todos aqueles diversos discursos disciplinadores e instituições de saber que<br />
constituem a condição e os contextos da cultura”, (BHABHA, 1998, p. 229) é<br />
preciso contextualizar a realidade francesa do século XIX. Said nos dá valiosas<br />
informações a respeito da condição imperialista francesa:<br />
146
A Guerra Franco-Prussiana de 1870 estimulou diretamente o crescimento<br />
das sociedades geográficas francesas. A exploração e o conhecimento de<br />
geográfico, a partir daí, passaram a se vincular ao discurso (e à conquista)<br />
imperial, e na popularidade de gente como Eugène Etiene (fundador do Groupe<br />
Colonialism 1892) podemos retraçar a ascensão da teoria imperial francesa<br />
até se tornar quase uma ciência exata. A partir de 1872, e pela primeira vez,<br />
desenvolveu-se no núcleo do Estado francês uma doutrina política coerente<br />
de expansão colonial; entre 1880 e 1895, as possessões coloniais francesas<br />
passaram de 1 milhão para 9,5 milhões de quilômetros quadrados, e de 5<br />
milhões para 50 milhões de habitantes nativos. (SAID, 1995, p. 221)<br />
Maupassant, que viveu de 1850 a 1893, é fruto de um país imperialista e sua realidade<br />
de vida está intimamente ligada à memória das colônias dominadas pela França,<br />
que participaram da configuração política e economia do país. Segundo Said:<br />
Para os cidadãos da Inglaterra e da França oitocentista, o império era um<br />
grande tema de atenção cultural sem que houvesse qualquer constrangimento.<br />
As Índias britânicas e o norte da África francês desempenharam um papel<br />
inestimável na imaginação, economia, vida política e trama social das<br />
sociedades britânica e francesa. (SAID, 1995, p. 39)<br />
Conforme Said, o abuso da França sobre a Argélia “e os escândalos resultantes<br />
de obscuros esquemas financeiros, montados por inescrupulosos para quem<br />
a liberdade do lugar permitia que se fizesse praticamente qualquer coisa<br />
imaginável, desde que houvesse promessa ou esperança de lucro” (SAID,<br />
1995, p. 235), são temas que percorrem silenciosamente a literatura francesa,<br />
de Balzac a Psichari e Loti. E a dominação imperialista avança para além dos<br />
limites da dominação direta e da dominação pela força, possuindo meios de<br />
persuasão “de muito maior eficácia ao longo de muito tempo, os processos<br />
cotidianos de hegemonia – com freqüência criativa, inventiva, interessante e<br />
sobretudo prática” (SAID, 1995, p. 153). Além disso, o imperialismo transformou<br />
o ambiente físico e deu origem a novos estilos artísticos como a fotografia de<br />
viagem, a pintura, a poesia, a literatura, as músicas exóticas e orientalistas<br />
e também repercutiu na criação de um estilo jornalístico. Said utiliza como<br />
exemplo a caracterização memorável e jornalística feita por Maupassant em<br />
Bel-Ami, que apresenta um retrato dessa situação, uma vez que no romance<br />
se visualiza a maneira como a experiência colonial e imperialista está arraigada<br />
à produção e à vida do escritor de maneira tão intensa a ponto de não ser<br />
analisada, ou notada. E destaca Said que, os escritores “estão profundamente<br />
ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história<br />
e suas experiências sociais em diferentes graus” (SAID, 1995, p. 23).<br />
As duas versões de “O Horla”<br />
Conto clássico da literatura fantástica a respeito do tema do duplo, na linha<br />
temática do emblemático conto de Edgar Allan Poe, “William Wilson”, “O<br />
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Horla” desvela o estado de insegurança e de angústia de alguém perseguido<br />
pela imagem de um duplo malévolo, apresentando o temor desse estado de<br />
duplicação e divisão. “O Horla” é considerado por muitos críticos como uma<br />
das obras-primas de Maupassant, sendo, com certeza, um de seus contos<br />
mais conhecidos. O escritor inglês Henry James, porém, não via nessa obra o<br />
melhor da produção de Maupassant, chegando à conclusão de que ali o autor<br />
oferece “a única ocasião em que ele tem a fraqueza da imitação, quando nos<br />
dá a impressão de emular com Edgar Allan Poe” (JAMES, 1951, p. XIII).<br />
Em ambas as versões do conto, Maupassant apresenta a figura do narradorprotagonista,<br />
visando criar uma identificação entre o leitor e o personagem.<br />
Contudo, a narrativa em primeira pessoa é extremamente suspeita, uma vez<br />
que o narrador-protagonista “narra de um centro fixo, limitado quase que<br />
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos” (CHIAPPINI,<br />
1994, p. 45). Além disso, a narrativa em primeira pessoa ajuda a instaurar a<br />
hesitação entre uma explicação natural, o narrador está louco e tem alucinações;<br />
ou outra, sobrenatural, o Horla realmente existe. E tal hesitação, conforme<br />
postula Tzventa Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, configura o<br />
cerne do gênero fantástico:<br />
1886 – A primeira versão<br />
En un mundo que es el nuestro, el que conocemos, sin diablos, sílfides, ni<br />
vampiros se produce un acontecimiento imposible de explicar por las leyes<br />
de ese mismo mundo familiar. El que percibe el acontecimiento debe optar<br />
por una de las dos soluciones posibles: o bien se trata de una ilusión de los<br />
sentidos, de un producto de la imaginación, y las leyes del mundo siguen<br />
siendo lo que son, o bien el acontecimiento se produjo realmente, es parte<br />
integrante de la realidad, y entonces esta realidad está regida por leyes que<br />
desconocemos. (...) Lo fantástico ocupa el tiempo de esta incertidumbre. Lo<br />
fantástico es la vacilación experimentada por un ser que conoce más que<br />
las leyes naturales, frente a un acontecimiento aparentemente sobrenatural.<br />
(TODOROV, 1972, p. 34)<br />
Na primeira versão, escrita em 1886, a narrativa é contada como relato de<br />
um caso clínico, possuindo dois narradores: um narrador onisciente e outro<br />
narrador-protagonista. O narrador onisciente relata os acontecimentos no<br />
manicômio e apresenta o Dr. Marradame: “o mais ilustre e eminente dos<br />
alienistas” (MAUPASSANT, 1997, p. 73), e seu paciente: “Ele era muito magro,<br />
de uma magreza cadavérica, como são magros certos loucos obcecados por<br />
uma ideia” (MAUPASSANT, 1997, p. 73). E é o Dr. Marradame quem pede ao<br />
paciente que conte sua história “a três de seus colegas e a quatro sábios”<br />
(MAUPASSANT, 1997, p. 73). Nesse ponto o paciente assume a narrativa<br />
que passa a ser realizada em primeira pessoa, através de um flash-back ele<br />
conta sua extraordinária experiência com o ser invisível que ele batizou de<br />
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Horla. Como pistas da existência do Horla, o narrador-protagonista relata o<br />
desaparecimento da água e do leite, deixados ao lado da cama e a incrível<br />
visão de uma rosa “quebrar-se como se uma mão invisível a tivesse colhido”<br />
(MAUPASSANT, 1997, p.78). É através da narrativa do paciente que os leitores<br />
conhecem os fatos que culminam com a sua internação no manicômio. Para<br />
avalizar a sua história, o narrador-protagonista busca a cumplicidade do Dr.<br />
Marradame, pedindo em diversos momentos que o médico confirme algumas<br />
das informações:<br />
O doutor Marradame, após ter duvidado durante muito tempo, decidiu-se<br />
a fazer - sozinho - uma viagem até minha terra. Atualmente, três dos meus<br />
vizinhos estão com a mesma doença que eu tive. É verdade?<br />
O médico respondeu; “É verdade!”<br />
O senhor aconselhou-os a deixarem água e leite, todas as noites, no quarto<br />
deles, para ver se esses líquidos desapareciam. Fizeram-no. Esses líquidos<br />
desapareceram como em minha casa?<br />
O médico respondeu com uma gravidade solene: “Desapareceram”<br />
(MAUPASSANT, 1997, p. 82)<br />
As respostas do Dr. Marradame dão credibilidade à narrativa e acabam criando<br />
uma hesitação quanto à loucura do narrador-protagonista, pois até mesmo<br />
ele questiona a insanidade de seu paciente: “Não sei se este homem é louco<br />
ou se ambos o somos... ou se... se o nosso sucessor chegou realmente”<br />
(MAUPASSANT, 1997, p. 84).<br />
Nessa versão, a referência à galera brasileira acontece no final da narrativa após<br />
o narrador-protagonista descobrir através de um jornal vindo do Rio de Janeiro<br />
que em São Paulo, “uma espécie de epidemia de loucura parece alastrar-se<br />
há algum tempo. (...) Os habitantes de várias aldeias fugiram, abandonando<br />
suas terras e suas casas, dizendo-se perseguidos e devorados por vampiros<br />
invisíveis que se alimentam da sua respiração durante o sono e que, além<br />
disso, só beberiam água, e às vezes leite!” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). A<br />
notícia o faz lembrar que alguns dias antes de sofrer seus primeiros ataques<br />
avistara perfeitamente “passar uma grande galera brasileira com a bandeira<br />
desfraldada” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). O narrador-protagonista conclui<br />
então que o Horla deve ter viajado escondido nesta embarcação. Ou seja, a<br />
origem do estranho Ser que atormenta a vida do protagonista, é o Brasil.<br />
1887 – A segunda versão<br />
A segunda versão, escrita em 1887, é a mais divulgada, estando presente na<br />
maioria das antologias de contos do escritor. Ao contrário da versão anterior<br />
que utiliza o flashback e antes mesmo do depoimento do narrador-protagonista<br />
já se sabe que ele é paciente de um manicômio; esta versão apresenta os fatos<br />
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narrados linearmente pelo protagonista em forma de diário. O leitor comparte<br />
com o protagonista-narrador o estranhamento gradual frente aos acontecimentos<br />
em sua casa e acompanha o crescimento de sua angústia por sentir-se agindo<br />
como sob a influência de uma hipnose.<br />
A galera brasileira aparece já no primeiro dia do diário: “Diante de duas escunas<br />
inglesas, cujo pavilhão interno ondulava contra o céu, vinha uma soberba galera<br />
brasileira, inteiramente branca, admiravelmente limpa e luzidia” (MAUPASSANT,<br />
1997, p. 86). E a informação sobre a epidemia que assola a província de São<br />
Paulo chega ao narrador-protagonista através da Revue du Monde Scientifique,<br />
que a partir desta notícia relembra a galera brasileira que avistara subindo o<br />
Sena, resignificando assim a referência que fora feita a ela no primeiro dia. Pois<br />
é justamente após a passagem da embarcação que começam o seu mal-estar<br />
e os estranhos acontecimentos, o que o leva a deduzir que o Ser transparente<br />
viajou nesta embarcação até as margens do Sena.<br />
Nesta versão não há o Dr. Marradame, personagem importante para dar<br />
credibilidade ao protagonista na primeira versão. A busca pela credibilidade<br />
se dá através de informações científica. O narrador-protagonista é uma pessoa<br />
ligada à ciência, que lê revistas científicas, se interessa pela hipnose e busca<br />
informações consultando o tratado do fictício Dr. Hermann Herstauss. O<br />
narrador-protagonista resiste muito a uma explicação sobrenatural, buscando<br />
sempre a ciência como contraponto. Mas na narrativa em primeira pessoa,<br />
como já foi salientado, existe sempre uma dúvida a respeito da credibilidade<br />
do narrador. Além disso, por ser a narrativa construída em formato de diário<br />
não há informações exteriores à percepção do narrador, podendo ser tudo<br />
apenas o delírio de um insano.<br />
Perturbado pela sensação de ser dominado pelo Horla, o narrador-protagonista<br />
decide eliminá-lo, criando subterfúgios para prendê-lo e exterminá-lo. Mas no<br />
afã de realizar sua tarefa, ele acaba incendiando a própria casa e esquece de<br />
mandar saírem os criados. E mesmo após esse ato nefasto, ele não se sente<br />
livre do Horla, restando-lhe apenas buscar a própria morte: “Não... não... sem<br />
dúvida alguma, sem duvida alguma...ele não morreu... Então... então... vai ser<br />
preciso que eu me mate!” (MAUPASSANT, 1997, p. <strong>12</strong>0)<br />
O Outro como representação assustadora do inconsciente<br />
Apesar das mudanças de uma versão do conto para outra, o local de origem do<br />
Horla é o mesmo em ambas, o Brasil, distante e exótico país sul-americano. O<br />
Horla surge então como ser estrangeiro que gradativamente domina o narradorprotagonista<br />
de maneira assustadora. Sobrevivendo como um parasita do ser<br />
humano que se alimenta de sua força vital, o Horla assemelha-se ao vampiro,<br />
pois ambos atacam à noite, na escuridão e na treva, que se configura então<br />
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como espaço do estrangeiro. Após sua chegada, o Horla passa a compartilhar<br />
a intimidade do narrador-protagonista, habitando em sua casa e dividindo com<br />
ele o quarto:<br />
Mal me deitava, fechava os olhos e desaparecia. Sim, caía no nada, no nada<br />
absoluto, numa morte de todo o ser da qual era bruscamente, horrivelmente,<br />
arrancado pela horrível sensação de um peso esmagador sobre o peito e<br />
de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por entre os lábios.<br />
(MAUPASSANT, 1997, p. 75)<br />
Sua presença é assustadoramente próxima, possuindo algo que é estranhamente<br />
familiar. Esta familiaridade é fundamenta à estrutura do estranho, pois, conforme<br />
Julia Kristeva, a presença do Outro é a projeção para fora do ego, do “que sente<br />
em si mesmo como perigoso ou desagradável em si, para dele fazer um duplo<br />
estranho ou desagradável, inquietante, sobrenatural, demoníaco” (KRISTEVA,<br />
1994, p. 193). Nas duas versões, o narrador-protagonista exorciza seu inconsciente<br />
imperialista ao projetar no Horla suas próprias atitudes: destronar, subjugar,<br />
dominar. Ou seja, o Horla é o “duplo malévolo onde ele expulsa a parte de<br />
destruição que não pode conter” (KRISTEVA, 1994, p. 193). Na segunda versão<br />
o narrador quase tem consciência de sua relação com o Outro:<br />
Então eu era sonâmbulo, vivia, sem saber, esta misteriosa vida dupla que leva<br />
a pensar se não há dois seres em nós, ou um ser estranho, desconhecido e<br />
invisível, não anima, por momentos, quando a nossa alma está entorpecida,<br />
o nosso corpo cativo que obedece a este outro como a nós mesmos, mais<br />
do que a nós mesmos (MAUPASSANT, 1997, p. 94).<br />
E partindo da colocação de Kristeva de que “o Outro é meu (próprio) inconsciente”,<br />
(KRISTEVA, 1994, p. 190) começa a desvelar-se a relação entre o narrador e o<br />
Horla. Ou seja, a essência da natureza opressora e dominadora do Horla está<br />
presente no inconsciente do homem imperialista. Conforme Kristeva, a busca<br />
em torno da angústia se forma a partir da percepção do estranho. Nas duas<br />
versões isso se realiza claramente, pois é a partir dos acontecimentos estranhos<br />
– a água e o leite que são bebidos, a rosa quebrada como que por uma mão<br />
invisível, o reflexo no espelho que é obstruído pelo Ser transparente – que inicia<br />
a busca do narrador-protagonista pela verdade. O Ser transparente emerge na<br />
realidade do narrador-protagonista instituindo uma situação sobrenatural, mas,<br />
a partir de algo familiar. Como explica Kristeva, a respeito do sobrenatural, no<br />
influxo do pensamento freudiano, que decorre da semelhança semântica do<br />
adjetivo alemão heimlich (familiar) com seu antônimo unheimlich (estranho):<br />
A imanência do sobrenatural no familiar é considerada como uma prova<br />
etimológica da hipótese psicanalítica segundo a qual “o sobrenatural” é essa<br />
verdade particular da coisa assustadora que remota ao há muito já conhecido,<br />
há muito familiar. Assim portanto, o que é sobrenatural seria o que foi familiar<br />
e que, em certas condições se manifesta (KRISTEVA, 1994, p. 192).<br />
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A presença sobrenatural do Horla é criada a partir da identidade imperialista<br />
recalcada, que se volta contra o próprio homem imperialista. Ele não recrimina<br />
as ações de sua nação sobre outras nações, considerando-as necessárias.<br />
Pois, como destaca Said, “o europeu imperialista não queria ou não conseguia<br />
enxergar que era imperialista” (SAID, 1995, p. 213). Mas ser o objeto de uma<br />
dominação, semelhante à exercida por sua nação frente aos países que colonizou,<br />
é uma coisa aterradora. O Horla que se esgueira sobre os ombros do narradorprotagonista,<br />
acompanhando-o como uma sombra, corrobora o que diria Homi<br />
Bhabha a respeito da sensação de estranhamento decorrente dos contatos<br />
interculturais que resignificam o lugar familiar; “O momento estranho move-se<br />
sobre nós furtivamente, como nossa própria sombra (...) Tomando a medida de<br />
nossa habitação em um estado de terror incrédulo” (BHABHA, 1998, p. 30). Tal<br />
colocação descreve perfeitamente os sentimentos do narrador-protagonista de “O<br />
Horla”, que se sente amedrontado dentro de sua própria casa, sentindo a invasão<br />
do estranho. E a presença deste Ser estrangeiro interfere sobre sua auto-imagem,<br />
dificultando seu próprio reconhecimento e colocando sua identidade em crise:<br />
Pois bem!... Enxergava-se como em pleno dia... e eu não me vi no espelho!<br />
Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz. Mina imagem não estava lá...<br />
E eu estava diante dele... Via de alto a baixo o grande vidro límpido! E olhava<br />
para aquilo com um olhar alucinado; e não ousava mais avançar, não ousava<br />
mais fazer qualquer movimento, sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas<br />
que me escaparia de novo, ele, cujo corpo imperceptível havia (absorvido)<br />
devorado o meu reflexo (MAUPASSANT, 1997, p. 81).<br />
Ao interpor-se entre o narrador-protagonista e o espelho, o Horla impede que<br />
ele se enxergue, fazendo-o sentir-se angustiado por perder a própria imagem.<br />
Nas duas versões o episódio é igual, uma das poucas mudanças é a troca do<br />
termo absorvido (absorbé), utilizado na primeira versão, pelo devorado (dévoré),<br />
na segunda. O episódio pode ser visto como uma alegoria da formação das<br />
identidades culturais, uma vez que nenhuma identidade existe por si só e<br />
sempre há o medo de perder a própria identidade quando da interferência de<br />
outras culturas. O Horla, devorador, pressagia a antropofagia brasileira:<br />
Porque nós somos, antes de tudo, antropófagos... Sim, porque nós da América<br />
– Nós, o autóctone: o aborígine – rodeamos o cerimonial antropófago de ritos<br />
religiosos. (...) Porque, que eles viessem aqui nos visitar, está bem, vá lá; mas<br />
que eles, hóspedes, nos quisessem impingir seus deuses, seus hábitos, sua<br />
língua... Isso não! Devoramo-lo. (ANDRADE, 1990, p. 43-4)<br />
Ao trocar a palavra absorver por devorar, Maupassant torna a ação mais<br />
imperativa e a impregna de voracidade e de violência. O Horla pode ser visto<br />
então como o colonizado que se revolta contra o colonizador.<br />
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O temor ao estrangeiro<br />
O nome da criatura, Horla, palavra inexistente na língua francesa, cunhada<br />
pelo autor, parece apontar para a condição estrangeira da criatura. Pois se<br />
para alguns a palavra é apenas uma criação fonética bem sucedida, uma<br />
combinação de sílabas que não corresponde a nenhum nome conhecido, fruto<br />
da imaginação do autor; para outros ela advém do francês hors-là que significa:<br />
de fora, do além, de lá. Levando em consideração os possíveis significados<br />
do nome da criatura, corrobora-se a ideia de que a ameaça vem de um lugar<br />
distante e desconhecido de além mar. Essa preocupação com o estrangeiro<br />
é reforçada ainda pela figura do Dr. Hermann Herestauss, autor ficcional de<br />
um tratado sobre habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno,<br />
cujo nome, criado por Maupassant a partir das palavras alemãs Herr (senhor,<br />
mestre) e Aus (fora de), significa aquele que “é de alhures”, “de um outro lugar”.<br />
Reforçando assim a ideia de que há no conto uma preocupação e um temor<br />
com aquilo ou com quem que vem de fora.<br />
A imagem criada por este “além” configura o imaginário de uma distância<br />
espacial, como esclarece Bhabha: “O imaginário da distância espacial – viver<br />
de algum modo além da fronteira de nossos tempos – dá relevo a diferenças<br />
sociais, temporais, que interrompem nossa noção social conspiratória da<br />
contemporaneidade cultural” (BHABHA, 1998, p. 23). Tal imaginário representa<br />
o desejo de ir “além”, que se configura como um limite e que, portanto, é<br />
temido. Desta forma, o Horla pode ser visto como representação deste desejo,<br />
personificação do “além” que atemoriza, por ser projeto de uma ruptura na<br />
estrutura da identidade em decorrência das possibilidades de mudança que a<br />
presença estrangeira representa. O Horla corporifica a ameaça do estrangeiro<br />
à hegemonia cultural européia que já não pode mais ser negada, gerando ao<br />
mesmo tempo temor e fascínio. Da mesma forma, como em A Morte em Veneza,<br />
de Thomas Mann, a peste que assola a Europa é de origem estrangeira, asiática.<br />
Desde alguns anos, a cólera hindu havia demonstrado uma tendência a<br />
alastrar-se e emigrar. Originada dos pântanos quentes do delta do Ganges,<br />
aparecendo com o alento mefítico daquele exuberante-inútil mundo antediluviano<br />
e ilhas selvagens evitadas pelo homem, em cujos espessos bambuzais<br />
espreitava o tigre, a epidemia desencadeara-se em todo o Indostão, continua<br />
e extraordinariamente violenta, alastrara-se para a China ao oeste, para o<br />
Afeganistão e a Pérsia ao leste e, seguindo as estradas principais do tráfego<br />
de caravanas, levara seus horrores até Astracã, e mesmo até Moscou. Mas,<br />
enquanto a Europa temia de que por terra o fantasma pudesse fazer sua<br />
entrada, este fora desviado pelo mar por comerciantes navegadores sírios,<br />
aparecendo, quase que ao mesmo tempo, em vários portos mediterrâneos,<br />
erguera sua cabeça em Toulon e Málaga, mostrara sua máscara muitas<br />
vezes em Palermo e Nápoles e parecia não mais querer retroceder de toda<br />
a Calábria e Apúlia (MANN, 1979, p. 157).<br />
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A respeito do romance de Mann comenta Said:<br />
A combinação entre medo e esperança, degeneração e desejo, tão bem<br />
exposta na psicologia de Aschenbach, é a maneira de Mann sugerir, a meu<br />
ver, que a Europa, com sua arte, mentalidade e monumentos, não é mais<br />
invulnerável, nem pode mais ignorar os laços que mantém com seus domínios<br />
ultramarinos. (SAID, 1995, p. 242)<br />
A invasão da peste representa a impossibilidade da Europa em manter-se<br />
imune à influência asiática. A própria escolha de Veneza (um lugar limite onde<br />
as identidades estão borradas, um pedaço do Ocidente que possui em si a<br />
forte marca do Oriente, um lugar híbrido de sentidos) como cenário do romance<br />
corrobora essa ideia. A peste é um fantasma, que assombra a Europa, amorfo<br />
e invisível como o Horla.<br />
Seguindo o raciocínio de Said, a origem brasileira do Horla remete à imagem<br />
dos países ultramarinos, que não podem mais ser ignorados, representando a<br />
diferença cultural que confronta e influencia silenciosamente. Assim, é do Novo<br />
Mundo que surge a ameaça ao equilíbrio do antigo mundo europeu. E o temor<br />
dessa ameaça aos padrões etnocêntricos se revela nas entrelinhas de ambas<br />
as narrativas que apresentam o colonizado através da imagem “apagada” desse<br />
Ser, contraditoriamente, invisível e ameaçador. A presença invisível e muda do<br />
Horla é representada através da narrativa angustiada do narrador-protagonista.<br />
E existindo então apenas graças à fala de quem o representa, lhe é negado o<br />
direito a uma voz própria, sendo apenas uma imagem filtrada pela percepção<br />
de quem o representa. Pois, como afirma Said: “Os discursos universalizantes<br />
da Europa e Estados Unidos (...) pressupõem o silêncio, voluntário ou não, do<br />
mundo não europeu” (SAID, 1995, p. 86). Ao negar voz a quem representa, o<br />
colonizador o impede de responder à agressão que sofre e de questionar as<br />
ações colonialistas. Temendo que o dominado, ao possuir o poder da fala, o<br />
utilize para lutar e recuperar sua posição, como diz Caliban em A Tempestade:<br />
“Vós me ensinastes a falar e todo o proveito que tirei, foi saber maldizer. Que<br />
caia sobre vós a peste vermelha, porque me ensinastes vossa própria língua!”<br />
(SHAKESPEARE, 1989, Cena 2). Contudo, o Horla apesar de não possuir voz<br />
ou imagem, influencia o narrador-protagonista: “E o Horla não me deixava<br />
mais. Dia e noite eu tinha a sensação, a certeza da presença desse vizinho<br />
inacessível, e também a certeza de que se apoderava da minha vida, hora<br />
após hora, minuto após minuto” (MAUPASSANT, 1997, p. 80). As intenções de<br />
dominação do Horla são definidas pela fala do narrador-protagonista, é ele<br />
quem verbaliza, baseando-se em sua própria memória imperialista.<br />
A imagem do Horla, que chega impondo sua presença e tomando a terra, é<br />
um reflexo da própria cultura colonizadora do narrador-protagonista. O Horla<br />
configura-se como seu duplo, no qual o protagonista confronta a própria vocação<br />
colonizadora em sua ânsia cultural imperialista que chega, domina e subjuga.<br />
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Pois, para o pensamento imperialista e colonialista a subjugação de povos e<br />
raças consideradas inferiores era uma ação natural, como coloca Said:<br />
Para o imperialismo e o colonialismo (...) Havia um comprometimento por<br />
causa do lucro, e que ia além dele, um comprometimento na circulação e<br />
recirculação constantes, o qual, por um lado, permitia que pessoas decentes<br />
aceitassem a ideia de que territórios distantes e respectivos povos deviam<br />
ser subjugados e, por outro, revigoravam as energias metropolitanas, de<br />
maneira que as pessoas decentes pudessem pensar no imperium como<br />
um dever planejado, quase metafísico de governar povos subordinados,<br />
inferiores ou menos avançados (SAID, 1995, p. 41).<br />
É natural então que o narrador-protagonista, representante de uma elite imperialista,<br />
ao perceber o Horla como superior aos seres humanos, reconheça nele a certeza<br />
da dominação: “Quem é? (...) Aquele que vem nos destronar, nos subjugar, nos<br />
dominar” (MAUPASSANT, 1997, p. 83). Na segunda versão do conto, a memória<br />
da conquista e da dominação é claramente apresentada no episódio em que o<br />
narrador-protagonista imagina a existência de seres inteligentes em algum outro<br />
planeta, projetando para esses o desejo colonialista e imperialista: “Será que<br />
um deles, mais dia menos dia, atravessando o espaço, não aparecerá na nossa<br />
Terra para conquistá-la, como os normandos outrora atravessaram o mar para<br />
subjugar povos mais fracos?” (MAUPASSANT, 1997, p.110)<br />
A angústia do narrador-protagonista em relação à sensação de ser dominado<br />
pelo Horla é demonstrada também por seu temor à hipnose. Na primeira<br />
versão, a referência à hipnose serve para explicar e exemplificar o poder do<br />
Horla: “E tudo que os senhores mesmos fazem há alguns anos, aquilo que<br />
chamam de hipnotismo, sugestão magnetismo – é ele que anunciam, é ele<br />
quem profetizam” (MAUPASSANT, 1997, p. 83). Já na segunda versão há todo<br />
um episódio dedicado à hipnose. Em um <strong>jan</strong>tar, na casa de sua prima, Sra.<br />
Sablé, o narrador-protagonista presencia uma experiência na qual o Dr. Parent<br />
propõe-se a hipnotizar a incrédula anfitriã. A princípio o narrador duvida,<br />
acreditando ser tudo uma brincadeira para enganá-lo, mas no dia seguinte,<br />
quando a Sra. Sablé realiza o que o Dr. Parent havia-lhe programado para fazer,<br />
ele compreende o poder da hipnose. E assim, quando começa a sentir-se<br />
influenciado pelo Horla: “Não consigo mais querer; mas alguém quer por mim;<br />
e eu obedeço” (MAUPASSANT, 1997, p. 107); ele compara a sua sensação ao<br />
domínio hipnótico: “Sem dúvida, era assim que estava possuída e dominada<br />
a minha pobre prima. Ela sofria a influência de um querer estranho que nela<br />
entrara, como uma outra alma, parasita e dominadora” (MAUPASSANT, 1997,<br />
p. 108). Ao incluir esse episódio Maupassant reforça a ideia da angústia criada<br />
pela ação de uma força exterior que controla e subjuga. O colonizado não tem<br />
mais querer, alguém quer por ele, esse alguém é o colonizador. A existência do<br />
Horla faz com que a visão de mundo do narrador-protagonista seja abalada.<br />
A ação deste Ser estrangeiro, cria no narrador o questionamento a respeito de<br />
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seus próprios paradigmas culturais e científicos. E isto será bem demonstrado na<br />
segunda versão do conto, quando o narrador viaja ao Monte Saint-Michel e faz<br />
um passeio no qual é acompanhado por um monge. O diálogo entre o narrador<br />
e o monge centra-se no questionamento do desconhecido e do sobrenatural.<br />
O monge relata ao narrador alguns fatos misteriosos comentados na região.<br />
O narrador resiste a tais informações, questionando a opinião do monge: “Se<br />
existisse na Terra outros seres além de nós, como não os conheceríamos há<br />
muito tempo; como o senhor não os teria visto? Como eu não os teria visto?<br />
(MAUPASSANT, 1997, p.92). Ao que o monge lhe responde: “Será que nós<br />
vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe, eis o vento (...) que<br />
mata, que assobia, que geme, que ruge – já o viu ou poderá ver? E, no entanto,<br />
ele existe! (MAUPASSANT, 1997, p.92)<br />
A inquietação do narrador quanto à incerteza de seus conhecimentos é o próprio<br />
temor do colonizador frente uma realidade cultural diferente da sua, temendo<br />
aquilo que não compreende ele domina e subjuga. O que difere de sua realidade<br />
sócio-cultural é relegado a uma categoria inferior, sendo indigno de atenção<br />
e deve ser apagado e/ou substituído. Pois tentar compreender a diferença é<br />
angustiante e requer abrir mão de pressupostos há muito estabelecidos. O<br />
narrador-protagonista, personagem de uma realidade imperialista, acredita<br />
conhecer tudo, crê que os saberes de sua sociedade são totais, e que o que<br />
se distancia ou diverge de seu conhecimento não existe. Mas sua certeza é<br />
articulada em forma de interrogação; “Como eu não os teria visto?” O monge<br />
age então como contraponto, como voz dissonante, que confronta o narrador,<br />
dialogando com a sua dúvida.<br />
Essa curiosidade/temor em relação ao estrangeiro é reforçada pela preocupação<br />
do narrador em pesquisar o tratado escrito por Hermann Herestauss sobre<br />
habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno, resgatando a memória<br />
européia das inúmeras investigações a respeito de outras raças que habitariam<br />
terras desconhecidas e teriam costumes exóticos.<br />
Esse imaginário imperialista habita também a construção da cena na qual<br />
o narrador-protagonista às margens do Sena observa a passagem das<br />
embarcações estrangeiras. A margem do rio representa o limiar de passagem<br />
atravessado pelo Horla. A imagem da galera brasileira, presente nas duas<br />
versões, faz alusão às relações comerciais entre as nações, além de remeter<br />
à exploração realizada sobre as colônias de ultramar. O fascínio pela galera<br />
brasileira é mais declarado na segunda versão: “Vinha uma soberba galera<br />
brasileira, inteiramente branca, admiravelmente limpa e luzidia. Eu a saudei,<br />
não sei por quê, tal o prazer que senti ao ver este navio” (MAUPASSANT, 1997,<br />
p. 86). Enquanto na primeira versão a descrição é menos efusiva: “Lembro-me<br />
perfeitamente de ter visto passar uma grande galera brasileira com a bandeira<br />
desfraldada (...). Inteiramente branca” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). Mas em<br />
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ambas as versões o narrador-protagonista destacada a brancura da galera<br />
que evoca a ideia de pureza, como se neste país do Novo Mundo houvesse<br />
uma inocência originária, contudo, é nesta galera que viaja o Horla, causa de<br />
todo o mal que o aflige. O que revela uma percepção contraditória em relação<br />
ao estrangeiro.<br />
O rompimento do limite entre o Eu e o Outro, entre o Eu e o estrangeiro, condena<br />
o narrador-protagonista, pois não há como sair ileso ao contato com o estrangeiro.<br />
Seja qual for o fim do narrador-protagonista: o manicômio ou o suicídio reafirmase<br />
a ideia de que, na maioria das vezes, o contato com o estrangeiro leva à<br />
desgraça e à morte. A morte simboliza o questionamento dessas identidades<br />
em conflito e sugere a criação de novas identidades híbridas, fundamentadas<br />
na diferença cultural. Pois, conforme coloca Bhabha:<br />
O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir<br />
da perspectiva da posição significante da minoria, que resiste a totalização – a<br />
repetição que não retornará como o mesmo, o mesmo-na-origem que resulta<br />
em estratégias políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas<br />
serve para perturbar o cálculo de poder e saber, produzindo outros espaços<br />
de significação subalterna. (BHABHA, 1998, p. 228)<br />
Confrontar o Horla representa para o narrador-protagonista enfrentar esta<br />
possibilidade ameaçadora, pois significa a ruptura de padrões e a perda das<br />
certezas arraigadas à sua identidade através de discursos etnocêntricos e<br />
pedagógicos.<br />
THE FANTASTIC AS REPRESENTATION OF THE FEAR OF THE<br />
FOREIGN: A COUNTERPOINT READING OF “THE HORLA”,<br />
BY GUY DE MAUPASSANT<br />
ABSTRACT:<br />
This paper performs a “contrapuntual reading”, as defined by Edward Said,<br />
of the two versions of the tale “The Horla” by Guy de Maupassant, aiming to<br />
reveal the presence of the French colonialist and imperialist thought imbricate<br />
in their texture. Thus, analyzes how the invisible creature, the Horla, figure of<br />
the “other”, fundamental element in the configuration of Fantastic Literature,<br />
built in both texts from the image of the foreigner as a threat.<br />
KEYWORDS:<br />
Imperialism, “contrapuntual reading”, foreign, Fantastic Literature<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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REFERÊNCIAS<br />
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MANN, Thomas. A Morte em Veneza. São Paulo: Editora Abril, 1979.<br />
CHIAPPINI, Lígia. O Foco Narrativo. Série Princípios. 7ª ed. São Paulo: Editora<br />
Ática, 1994.<br />
JAMES, Henry. “Guy de Maupassant”. In: MAUPASSANT, Guy. Novelas e Contos.<br />
Porto Alegre: Editora Globo, 1951.<br />
MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos: O Horla & outras histórias. Porto<br />
Alegre: L&PM, 1997.<br />
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Traduzido por Maria Carlota<br />
Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.<br />
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Traduzido por Denise Bottman. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />
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TODOROV, Tzventa. Introducción a la literatura fantástica. Argentina: Editorial<br />
Tiempo Contemporâneo, 1972.<br />
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A REPRESENTAÇÃO DO ESTRANGEIRO E DO ESTRANHO EM<br />
“FRONTEIRA NATURAL”, DE NÉLIDA PINõN<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Suely Leite<br />
A literatura constitui-se em terreno fértil para a ficcionalização das experiências<br />
humanas, entre elas a interação do indivíduo com o Outro e consigo mesmo. Essa<br />
interação reflete semelhança e estranheza, facetas que compõem a totalidade<br />
múltipla do ser. O conto “Fronteira Natural” de Nélida Piñon, publicado em 1973, na<br />
coletânea intitulada Sala de Armas, é exemplar dessa arquitetura. O protagonista<br />
da narrativa parte de sua aldeia rumo ao inferno, em busca de uma completude<br />
nunca encontrada diante dos seus. Ao regressar, torna-se portador de um todo<br />
indivisível com a natureza, identidade que passa a ser almejada por todos da<br />
aldeia. O texto nos remete a tradição narrativa, pois estrutura-se em torno de<br />
três pilares: o jovem herói, o inferno e a viagem. A figura do jovem carrega o<br />
estereótipo de uma existência destinada a uma busca. O inferno é o espaço<br />
estrangeiro, desconhecido, o reino mais rico, atraente, que oferece ao jovem da<br />
aldeia a completude identitária tão desejada; nele estabelece-se a dicotomia<br />
entre norma e diferença, estrangeiro e estranho. A análise do texto percorrerá<br />
os estudos sobre o duplo exterior, tema recorrente na obra de Julia Kristeva.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Conto maravilhoso; estrangeiro; estranho; Nélida Piñon.<br />
A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se<br />
atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando<br />
acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.<br />
[…] A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores.<br />
Regressamos a nós, não a um lugar.<br />
(Mia Couto, O Outro Pé da Sereia)<br />
A literatura constitui-se em terreno fértil para a ficcionalização das experiências<br />
humanas, entre elas, a interação do indivíduo com o Outro e consigo mesmo.<br />
Não é de hoje que o tema duplo tem sido fonte de inspiração para a pena de<br />
diversos escritores e objeto de deleite de inúmeros leitores. Nicole Fernandez<br />
Bravo, uma das grandes estudiosas do assunto, diz que o conceito de “duplo”,<br />
tal qual o conhecemos no âmbito dos estudos literários, passou a ser difundido<br />
com mais destaque a partir do final do século XVIII. De acordo com a autora,<br />
159
uma das primeiras denominações do duplo é o de alter ego. [...] O termo<br />
consagrado pelo movimento do romantismo [alemão] é o de Doppelgänger,<br />
cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 e que se traduz por “duplo”, “segundo<br />
eu”. Significa literalmente “aquele que caminha do lado”, “companheiro de<br />
estrada”. Endossamos a definição dada pelo próprio Richter: “assim designamos<br />
as pessoas que se vêem a si mesmas”. O que daí se deduz é que se trata,<br />
em primeiro lugar, de uma experiência de subjetividade (2000, p. 261).<br />
Ainda que sua eflorescência tenha ocorrido na Alemanha, durante a era<br />
romântica, é sabido que o duplo remonta a épocas bem mais remotas. Suas<br />
profundas raízes encontram-se presentes na consciência mitológica de povos<br />
antigos. Em O homem e a morte, de Edgar Morin, e, mais especificamente,<br />
em O duplo, de Otto Rank, é possível observar o trabalho dos estudiosos no<br />
sentido de esquadrinhar a questão do duplo no imaginário desses povos, através<br />
de fontes do tipo: folclore, histórias de magia, antigos costumes religiosos e<br />
demais tradições.<br />
Recorrendo a diversos folcloristas, Otto Rank constata que, nas línguas de<br />
variados povos, uma mesma palavra pode significar “sombra”, “espírito”, “alma”,<br />
“imagem”, “reflexo”, “eco” e “duplo”. De acordo com o estudioso, “variada série<br />
de relatórios, apresentados em folclore, põe fora de dúvida o fato de que o<br />
homem primitivo considera [ser, por exemplo,] a sombra seu misterioso duplo,<br />
como um ser espiritual, porém real” (1939, p. 93). Como faz notar Edgar Morin,<br />
não se trata de um elemento que se manifesta apenas depois da morte:<br />
Esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do<br />
indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o,<br />
e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência<br />
quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo,<br />
no seu eco (1988, p. <strong>12</strong>6).<br />
Todo esse material histórico cultural testemunha o eterno problema do homem<br />
que, marcado por um profundo sentimento de incompletude, busca na figura<br />
do Outro a possibilidade de se preencher. O conto “Fronteira Natural”, de Nélida<br />
Piñon, publicado em 1973, na coletânea intitulada Sala de armas, é exemplar<br />
dessa arquitetura. Nos contos ali reunidos, observa-se a poderosa onipresença<br />
do universo mítico. A própria autora, em seu site oficial, define a obra como<br />
um con<strong>jun</strong>to de relatos, uns mais irônicos, outros mais líricos, mas sempre<br />
com esta atmosfera de estranheza, porque o mundo é um grande reino de<br />
confusão. Temos que desconfiar de nossas estruturas emocionais, de nossas<br />
estruturas verbais, pô-las em quarentena e continuar buscando (20<strong>12</strong>).<br />
O conto é marcadamente curto, possui aproximadamente dez páginas, e é<br />
narrado em terceira pessoa, afastando o leitor dos personagens, tirando-lhes a<br />
voz. O enredo proposto pela autora tem como foco uma viagem. O protagonista<br />
da narrativa parte de sua aldeia rumo ao inferno, em busca de uma completude<br />
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nunca encontrada diante dos seus. Ao regressar, torna-se portador de um todo<br />
indivisível com a natureza, identidade que passa a ser almejada por todos os<br />
habitantes da aldeia. O que antes era sinônimo de medo, por ser desconhecido,<br />
passa a ser assumido pelos aldeões como o caminho a ser percorrido para<br />
alcançar o além da fronteira. O silêncio do jovem aldeão ao retornar é o código<br />
indecifrável da magia advinda do inferno.<br />
O texto nos remete à tradição narrativa, pois estrutura-se em torno de três pilares:<br />
o jovem herói, o inferno e a viagem. A figura do jovem carrega o estereótipo<br />
de uma existência destinada a uma busca. O inferno é o espaço estrangeiro,<br />
desconhecido, o reino mais rico, atraente, que oferece ao jovem da aldeia a<br />
completude identitária tão desejada. Nele, estabelece-se a dicotomia entre<br />
norma e diferença, estrangeiro e estranho. A viagem representa a busca da<br />
individuação, o legado que faz com que o jovem desperte a inveja dos outros<br />
habitantes da aldeia. Sua presença, após o regresso, é vista como a de alguém<br />
estranho à cultura que pertencera, estrangeiro no seu modo diferente de viver,<br />
e, por isso, atrai o coletivo, que vê, na figura do estrangeiro, o espelho da<br />
identidade que buscam ter.<br />
O tema da viagem é bastante caro à literatura. Esteve presente nas grandes<br />
epopeias e continua sendo o arquétipo para muitas narrativas. A viagem é um<br />
deslocamento que pode alocar vários significados: pode ser deslocamento<br />
geográfico, temporal, como pode também significar um ritual de passagem.<br />
Enfim, nas suas diversas facetas, é possível encontrar viagens no tempo ou no<br />
espaço, mas, em todas elas, encontra-se a descoberta de si mesmo através do<br />
Outro. Pode-se dizer que a alteridade e a identidade surgem, de uma forma ou<br />
de outra, como elementos indissociáveis em toda a obra literária que tematize<br />
a viagem. Ela não é apenas uma translação no espaço, é também busca por<br />
mudança ou recuperação de uma experiência vivida.<br />
Em “Fronteira Natural”, o destino da viagem empreendida pelo protagonista<br />
é o inferno, adjetivado como reino estranho, do qual emanava um perfume<br />
harmonioso e para onde vários meninos haviam partido. Segundo consta,<br />
nem todos regressavam desse espaço, uma vez que “a maioria lá ficou para<br />
sempre” (Pinõn, 1988, p. 15) 1 . Os que de lá conseguiam retornar, eram tratados<br />
como estrangeiros, estranhos, exóticos, principalmente porque “emitiam sons<br />
de uma língua longínqua, terciária, sem dúvida, o esboço de uma linguagem<br />
buscando expressão” (p. 16). Ao ter empreendido uma viagem de ruptura com<br />
os vínculos da terra de origem, tais indivíduos tornam-se seres estigmatizados<br />
pela impossibilidade de estabelecer comunicação com os demais habitantes.<br />
Além da língua estranha, eles também não reconheciam seus pares e apresentavam<br />
um modo diferente de olhar o mundo. Lê-se no conto que “haviam perdido a<br />
razão, concluíram os da aldeia”. (p. 16). Assim dito, entre os habitantes daquele<br />
1 As demais citações limitar-se-ão ao número de página desta edição.<br />
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local, havia uma legião de estrangeiros que, embora fossem mostrados como<br />
troféus por suas famílias, viviam num mundo à parte, exilados em sua própria<br />
aldeia, “esquecidos da comunidade e nostálgicos de um mundo seguramente<br />
mais rico” (p. 16).<br />
Essa condição de estrangeiro em terra natal nos permite relacionar tais<br />
representações às operações de (re)identificação e, principalmente, aos fatores<br />
de transculturação, visto que os egressos perdem o centro ou o equilíbrio entre<br />
as experiências vivenciadas. Embora a tentativa de interação com a cultura<br />
local fosse interrompida, a travessia da fronteira natural dava aos egressos<br />
um status. Tal como afirma o narrador, “nenhuma casa deixou de ostentar seu<br />
tesouro. Exibiam seus egressos nas varandas construídas especialmente para<br />
recebê-los” (p. 17).<br />
A poética da alteridade privilegia a diferença cultural, a encenação da outridade.<br />
Ao encenar a travessia das fronteiras culturais, o narrador acena para uma<br />
subjetivização dessas fronteiras, aderindo, assim, à perspectiva psicanalítica que<br />
considera a alteridade como parte integrante do mesmo. Freud, no seu célebre<br />
artigo “O ‘estranho’” (1919), defende a tese da imanência do estranho no familiar,<br />
o que leva Julia Kristeva, em Estrangeiros para nós mesmos, a afirmar, na sua<br />
releitura do ensaio freudiano, que o “estrangeiro nos habita”. Em suas palavras,<br />
“o estrangeiro não é nem uma raça nem uma nação. [...] Inquietante, o estranho<br />
está em nós: somos nós próprios estrangeiros – somos divididos” (1994, p. 190).<br />
A condição de estrangeiro, portanto de estranho – tal como proposto por Freud<br />
e revisitado por Kristeva –, provoca nos integrantes da aldeia sentimentos<br />
opostos. Se, por um lado, tais habitantes enalteciam os via<strong>jan</strong>tes, exibindo-os<br />
como troféus, por outro, eles “temiam aquela raça consagrada à divindade”<br />
(p. 17-18). Por representarem o diferente e por terem conseguido dominar um<br />
conhecimento não aprendido no seu local de origem, eram admirados. Segundo<br />
o narrador, tais seres castravam os animais com ciência, alteravam o sistema de<br />
certos rios com propriedade. Todavia, quando essas demonstrações de poder<br />
cessavam, eram recolhidos, visto que sua inquietante estranheza incomodava.<br />
Assim dito, pode-se afirmar que pseudoaceitação dos egressos reforça o<br />
caráter de construção da identidade, pois envolve rejeição e aceitação. Em<br />
outras palavras, poder-se-ia dizer que a rejeição fascinada despertada na<br />
comunidade local pela figura do estrangeiro decorreria, pois, do fato desse<br />
elemento estranho cristalizar, por meio de suas competências extraordinárias,<br />
os anseios internos da coletividade.<br />
O tempo marcado na construção da narrativa nos remete à Idade Média, tempo em<br />
que a sociedade organizava-se em torno da terra e o mundo era essencialmente<br />
agrário. Assim sendo, as pessoas fixavam-se à terra para seu cultivo e pouco<br />
transitavam. Os deslocamentos existentes eram raros e limitados e, quando ocorriam,<br />
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destinavam-se à participação nas guerras, à realização de trocas comerciais<br />
e às peregrinações. Transitar e viajar, naquela época, constituía uma forma de<br />
protesto, contra a servidão à gleba. E é essa a tônica do conto: “Ainda que todos<br />
compreendessem aquela urgência, lamentavam em con<strong>jun</strong>to a insolvência mental<br />
de um homem de vinte anos” (p. 18). A aldeia representa o espaço da tradição<br />
que será quebrado pelo jovem rumo ao inferno. Estabelece-se a dicotomia<br />
entre o velho e o novo. Nesse embate de gerações, a incomunicabilidade da<br />
comunicação representa a incomunicabilidade entre as gerações. A diversidade<br />
semântica que recobre a problemática da viagem na literatura é inegável, mas,<br />
talvez, o mais significativo sentido que a viagem no tempo moderno adquire é o<br />
de romper com o espaço e com o tempo convencionais.<br />
É desse espaço convencional que o protagonista do conto manifesta, aos vinte<br />
anos, o desejo de partir. Ele, “o mais amado da aldeia” (p. 17), empreenderá uma<br />
trajetória, associada à ideia da viagem, por onde trilhará caminhos em busca de sua<br />
própria identidade. Várias são as formas de apropriações do arquétipo da viagem<br />
pela arte literária. Mas o que é básico e permanece e, por isso, denominamos de<br />
mito, é o fato de que a viagem instaura para o via<strong>jan</strong>te uma espécie de pausa em sua<br />
vida, provocando a separação do mundo conhecido desse via<strong>jan</strong>te e colocando-o<br />
frente ao desconhecido, ao novo, à diversidade. Desse modo, o contato com a<br />
cultura do Outro obriga o via<strong>jan</strong>te a tornar-se Outro sem deixar, no entanto, de si<br />
mesmo, oportunizando, assim, a descoberta da própria identidade. Conforme o<br />
narrador, tal jovem, “mais que desvendar terras, buscava a consciência no casulo,<br />
os meandros iniciais” (p. 17). As respostas aos seus muitos questionamentos não<br />
poderiam ser obtidas no espaço da pequena aldeia, era, pois, necessário descerrar<br />
as cortinas de um mistério de transfiguração.<br />
A partida do jovem é cercada por um ritual: vestes partidas e choro da mãe, desfile<br />
pela aldeia, esperança de que na volta dominasse “a riqueza linguística do inferno”<br />
e, ainda assim, “seu verbo haveria de se fazer campesino para a aldeia” (p. 18).<br />
O escritor e professor norte-americano Joseph Campbell, em seu livro O herói<br />
de mil faces, constata que o personagem do herói tem características diferentes<br />
e correspondentes a cada cultura, mas a sua peregrinação, a sua trajetória,<br />
a sua jornada na trama é, basicamente, a mesma e se estruturaria em etapas<br />
bem definidas, embora não necessariamente rígidas: a partida, a iniciação e<br />
o retorno. Normalmente a jornada do herói se constitui de uma aventura que<br />
pode ser tanto real como imaginária, obedecendo ao mesmo roteiro: o herói<br />
vive num mundo estável e recebe um chamado para partir e trilhar outro mundo,<br />
hostil e estranho. Desencadeia-se, então, uma série de ações na narrativa e,<br />
nessa jornada ao extraordinário, o herói terá de enfrentar provas e desafios num<br />
embate de vida e morte, morrer e ressuscitar, retornando ao mundo transformado,<br />
trazendo algo novo, como se fosse um prêmio. O herói, por desejar algo, se<br />
aventura e passa por sucessivas rupturas e deslocamentos. No que se refere<br />
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ao conto, os habitantes da aldeia viviam essa expectativa, “um sacrifício a<br />
pretexto da claridade” (p. 18), e “acompanhavam aquele corpo sofrendo talvez<br />
o dilaceramento da carne, o rosto inocente prestes a decifrar verdades cruéis”<br />
(p. 19). Em seu estudo, Campbell afirma que o retorno é a etapa em que,<br />
terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio<br />
da graça de alguma personificação masculina ou feminina, humana ou animal,<br />
o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida.<br />
O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora<br />
o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a<br />
princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a bênção alcançada<br />
pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez<br />
mil mundos.<br />
Mas essa responsabilidade tem sido objeto de frequente recusa. (2007, p. 195).<br />
Entre as ideias mais próximas do modelo dos ritos de passagem, nas viagens<br />
literárias, as mais relevantes são a aspiração ao aperfeiçoamento do conhecimento,<br />
através do pensamento e da experiência, e o caminho para uma nova ordem social<br />
e espiritual. No caso da aldeia, havia a esperança de que o mais amado trouxesse<br />
“um raciocínio que só em milênios a aldeia haveria de conquistar” (p. 19).<br />
Com o passar do tempo e a ausência do jovem, a aldeia põe-se de luto e a<br />
expectativa da volta dá lugar ao medo. A ausência prolongada do jovem poderia<br />
sinalizar a sua morte, a perda do elo entre a aldeia e o inferno, o que significava<br />
uma ameaça à integridade daquele povo, pois o medo os transformou em seres<br />
passivos que temiam sofrer ainda mais as consequências que tal ato poderia<br />
desencadear: “Recordavam então os belos dias, quando o inferno vivia longe<br />
e não se partia em sua descoberta” (p. 20).<br />
A volta do protagonista se dá num dia de sol, dia no qual ele se mostra “disposto<br />
a um amor de sufocação diferente” (p. 20). Volta, agora, um homem completo,<br />
não mais o jovem inquieto de antes, o que reitera o mito da viagem como uma<br />
caminhada para o autoconhecimento. Sérgio Paulo Rouanet, em seu texto “Viajar<br />
é preciso”, afirma que “só os via<strong>jan</strong>tes são inteiramente humanos” e que “os<br />
via<strong>jan</strong>tes exercem, em sua plenitude, a prerrogativa máxima da espécie; a de<br />
cortar, consciente e voluntariamente, por algum tempo ou para sempre, os vínculos<br />
com o país de origem” (1993, p. 7). A liberdade adquirida durante o tempo em<br />
que passou por aquele reino estranho, é simbolizada pelo seu caminhar sem<br />
esbarrar nas coisas do mundo, a facilidade intemporal dos pássaros, o jeito livre<br />
de pisar, o conhecimento e o domínio da natureza. A viagem conferiu-lhe status<br />
de adulto. Vale ressaltar que o herói inaugurou uma nova fase para aquela aldeia,<br />
livre do medo e das crendices que faziam com que eles fossem escravizados<br />
e subjugados pelo medo de atravessar a fronteira que os separava de um novo<br />
mundo. O momento da narrativa no qual acontece a volta de um homem adulto<br />
simboliza o fim da viagem de autoconhecimento que o herói empreendeu. A<br />
inocência e a inquietude do jovem foram substituídas pela maturidade do adulto.<br />
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Agora, como homem, “senhor do arado” (p. 22), ele assume o papel de líder<br />
daquela aldeia. Sua passagem pelo inferno trouxe-lhe autonomia diante de seus<br />
pares: “Alcançara ele o desembaraço de quem conviveu em excesso com o<br />
milagre e, menos que sua virulência, nada mais devia aceitar” (p. 22). Segundo<br />
Otávio Ianni, “no curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo<br />
que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa” (2000, p. 31).<br />
Ao se tornar mais um egresso da fronteira natural, o protagonista rompe com o<br />
que aldeia já estava acostumada: a linguagem estranha, a falta de comunicação<br />
dos poucos que haviam conseguido retornar da fronteira. A interação do homem<br />
com a terra, o domínio extraordinário que tem sobre a natureza, enfim, todas as<br />
novas características que o emblemam como imortal, o escolhido dos reinos<br />
soberanos, traz consigo o mistério maior: o silêncio: “E ainda que exigissem<br />
do homem qualquer fala, diferente dos outros egressos, ele vivia no silêncio.<br />
Desprezava signos, som, e a linguagem alheia” (p. 23).<br />
O silêncio constitui-se no substrato ontológico do homem, essa tela de fundo,<br />
jamais atingível a não ser pela alusão, instaurando a alteridade dentro dele mesmo.<br />
É o silêncio primordial, aquele que determina as condições de possibilidade<br />
da linguagem. Esse silêncio, inominável, indizível, por ser passível de contato e<br />
de experiência, torna o sujeito seu protagonista. Comentando sobre o silêncio,<br />
tema de seu livro As formas do silêncio, Eni Orlandi, estudiosa da Análise do<br />
Discurso, faz a seguinte afirmação:<br />
Trata-se do silêncio fundador, ou fundante, princípio de toda significação. [...]<br />
É a própria condição de produção de sentido. [...] Não é o vazio, ou o sem<br />
sentido; ao contrário, ele é o indicio de uma instância significativa [...] silêncio<br />
como sentido, como história (silêncio humano), como matéria significante.<br />
O silêncio de que falamos é o que se instala no limiar do sentido. [...] ele é<br />
o que há entre as palavras, entre as notas de música, entre as linhas, entre<br />
os astros, entre os seres [...]. (2007, p.68)<br />
O silenciamento do protagonista provoca uma situação inusitada: o movimento do<br />
texto leva da fala ao silêncio, de maneira que o discurso passa a ser construído<br />
pela ausência, como se a palavra passasse por um esvaziamento. O silêncio<br />
é, no contexto do retorno da viagem à fronteira, um lugar seguro, aquilo que<br />
conserva o homem de forma mais completa e plena.<br />
Quando se fala em viagem como tema de busca de autoconhecimento, o leitor, de<br />
imediato, recorda a descida aos Infernos de Ulisses e Eneias, as peregrinações<br />
dos cavaleiros medievais, o enfrentar de monstros por parte de Ulisses, Eneias,<br />
Beowulf, a passagem de grutas e portões, pelos heróis épicos e pelos cavaleiros<br />
dos romances medievais, conotadas com a viagem labiríntica de descida e subida,<br />
de acesso a uma libertação, a segredos recônditos, a um conhecimento tido por<br />
superior. Essa conotação também se faz presente no conto nelidiano, pois, agora,<br />
dotado de capacidades sobre-humanas que o tornam especial e, sobretudo,<br />
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por sua agudeza de espírito, o protagonista passa a destoar inteiramente dos<br />
demais que, até então, apenas lamentavam a inexorabilidade de seus destinos,<br />
sem buscar os recursos para mudar tal situação.<br />
Os habitantes da aldeia diferenciam o protagonista dos outros egressos. A<br />
identidade, o conhecimento adquirido no inferno passa a ser o objeto de desejo<br />
daquelas pessoas “e ainda que reconhecessem aquele homem por certo distante<br />
da terra, não queriam senão segui-lo” (p. 23). Então, coletivamente, elas se<br />
preparam para abandonar a aldeia rumo à fronteira natural: “Puseram-se em<br />
marcha. A aldeia toda” (p. 24) e encontraram a porta daquele reino fechada com<br />
uma pequena inscrição. O reino havia sido transferido para um local ignorado.<br />
Assim termina o texto de Nélida Pinõn: revelando pouco, silenciando todo o<br />
resto, tudo que pode ser. Suas frases curtas calam sentidos inalcançáveis,<br />
despertam uma sensação profunda de incompletude. O silêncio que transpassa<br />
o texto é inquieto revelando-se potencialmente polifônico.<br />
THE REPRESENTATION OF THE FOREIGN AND THE<br />
UNCANNY IN “FRONTEIRA NATURAL”, BY NÉLIDA PIÑON<br />
ABSTRACT:<br />
The literature is on fertile land for the fictionalization of human experiences,<br />
including the individual’s interaction with the Other and oneself. This interaction<br />
reflects similarity and strangeness, facets that make up the totality of being<br />
multiple. The short story “Fronteira Natural “ of Nelida Piñon, published in 1973<br />
in the collection entitled Sala de Armas, is an example of this architecture.<br />
The protagonist of the narrative leaves from his village to hell in search of a<br />
completeness never found before her. Upon returning, becomes the bearer of<br />
an indivisible whole with nature, identity becomes a goal for all of the village.<br />
The text refers to the traditional narrative and it is structured around three pillars:<br />
the young hero, hell and the journey. The figure of the young man carries the<br />
stereotype of a life devoted to a search. Hell is the space alien, unknown, the<br />
richest kingdom, attractive, offering the youth of the village completeness identity<br />
so desired, it sets up the dichotomy between standard and difference, foreign<br />
and strange. The analysis of the text will cover studies on the double exterior,<br />
a recurring theme in the work of Julia Kristeva.<br />
KEY-WORDS:<br />
Marvellous short story; foreign; strange; Nelida Piñon<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
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KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho<br />
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______. Site oficial: biografia. Disponível em: http://www.nelidapinon.com.br/<br />
autora/aut_biografia.php. Acesso em: 20 <strong>jun</strong>. 20<strong>12</strong>.<br />
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ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1993.<br />
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RESUMO<br />
GENETTE E O FANTáSTICO<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Wandeir Araújo Silva<br />
Liane Schneider<br />
O texto a seguir pretende analisar como importantes tópicos discutidos pelo<br />
teórico francês Gérard Genette em O discurso da narrativa se comportam<br />
perante as teorias da narrativa fantástica, especialmente a apresentada por<br />
Tzvetan Todorov em Introdução à literatura fantástica. De acordo com nosso<br />
ponto de vista, podemos perceber que certos procedimentos apontados por<br />
Genette são úteis na construção do fantástico, tais como a paralipse e demais<br />
recursos relativos ao modo de narrar. Utilizaremos exemplos da literatura<br />
fantástica brasileira a fins de confirmação de nossas especulações.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Gérard Genette; Tzvetan Todorov; teoria do fantástico; conto; Literatura Fantástica.<br />
Todorov e o Fantástico<br />
Temas envolvendo o sobrenatural, o insólito, aquilo que não se pode explicar,<br />
estão presentes em nossa história desde tempos imemoriais. Entretanto, o século<br />
XVIII trouxe o Iluminismo, a era das luzes e do pensamento racional, criando<br />
as principais tendências que mais tarde acabariam por atingir a forma de se<br />
ver a literatura, culminando na escola realista. A predominância desta forma<br />
de ver o mundo acabou por incomodar certa parte dos escritores e criou um<br />
movimento no sentido contrário, fazendo com que o sobrenatural ganhasse<br />
mais força dentro da literatura. O auge do movimento se deu com a força do<br />
romance gótico de Horace Walpole e Ann Radcliffe. Novos escritores foram<br />
surgindo, mas ainda era muito grande a dificuldade em se definir o que seria<br />
o fantástico.<br />
Entre confusões e diversas interpretações que perduram até nossos dias, o<br />
fantástico conseguiu certa sistematização apenas no século XX, a partir dos<br />
estudos de Todorov. O pensador búlgaro-francês trouxe uma rica análise da<br />
narrativa fantástica feita nos séculos XVIII e XIX, formando uma base muito<br />
difícil de ser ignorada, pois é ponto de partida de todo bom trabalho sobre este<br />
gênero narrativo. Isso se deve ao fato de sua teoria do fantástico ser bastante<br />
consistente, exibindo constantes inegáveis da construção do fantástico. Nisto,<br />
Introdução à literatura fantástica apresenta interessantes pontos a se discutir.<br />
168
O primeiro deles diz respeito à necessidade de um evento insólito, isto é, algum<br />
elemento ou acontecimento apresentado que fira a lógica interna da diegese,<br />
algo que destoa e desafia a lógica vigente. Com a irrupção desse evento,<br />
surgirá a situação de dúvida, que propiciará, tanto aos personagens quanto<br />
ao leitor, a sensação de hesitação, perplexidade e – não raro – de medo. Essa<br />
sensação perdurará por toda a narrativa, sem se desfazer ao final, o que faz<br />
com que o desfecho seja também inexplicável. Segundo Todorov apresentar<br />
uma explicação plausível nos afastaria do fantástico, nos levando a um de<br />
seus gêneros vizinhos. Se a explicação for lógica, real, estaremos diante do<br />
estranho, enquanto se, por outro lado, explicássemos o problema com uma<br />
justificativa sobrenatural, adentraríamos o território do maravilhoso. Baseandose<br />
na percepção de seus vizinhos, o estudioso conclui que “O fantástico<br />
ocorre nesta incerteza (...). O fantástico é a hesitação experimentada por um<br />
ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente<br />
sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 31). Tendo sido essa hesitação o segundo<br />
ponto a considerar na construção do fantástico, chegamos ao terceiro, em que<br />
Todorov sugere que haja um pacto entre o leitor e a obra, que o impossibilita<br />
de vê-la como poesia ou alegoria. Isto significa que uma linguagem poética,<br />
metafórica, é insuficiente na instauração do fantástico, pois ela está mais para<br />
uma estilização da realidade, que para uma ruptura desta. Por outro lado, a<br />
alegoria faria com que o leitor captasse algum sentido diante dos fatos narrados,<br />
o que desfaria a sensação de perplexidade causada pela inexplicabilidade dos<br />
eventos. Caso sejam conservadas estas três premissas, o fantástico estaria<br />
garantido à narrativa.<br />
Percebamos que alguns destes pontos são questionáveis, fato que faz com que<br />
novos teóricos venham se dedicando a rever, contradizer ou complementar a<br />
teoria todoroviana, mas não buscaremos este problema neste estudo. Foquemonos<br />
então às correlações entre Todorov e Genette.<br />
Genette e o modo de narrar<br />
Os estudos de Gérard Genette trazem observações pertinentes acerca da<br />
composição dos narradores, sendo expostas de maneira muito ampla e<br />
detalhada. Vejamos então algumas importantes definições.<br />
Observando as possíveis distâncias que aquele que narra pode assumir em<br />
relação ao acontecimento narrado, o autor já estabelece dois tipos básicos de<br />
narrativa. É posto então que a narrativa de acontecimentos é aquela em que<br />
o narrador assume maior distância do ocorrido, o que fica claro ao leitor de<br />
acordo com a condução da narração.<br />
A “imitação” homérica de que Platão nos propõe uma tradução em “narrativa<br />
pura” não comporta mais que um breve segmento dialogado. Ei-lo, primeiro<br />
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na sua versão original: “diz ele, e o velho, à sua voz, ganha medo e obedece.<br />
Vai-se embora em silêncio, ao longo do areal onde rola o mar, e, quando, fica<br />
só instantaneamente o velho implora o senhor Apolo, filho de Leto dos belos<br />
cabelos”. E agora na reescrita platônica: “O velho, ouvindo tais ameaças,<br />
teve medo e foi-se embora sem dizer nada; mas, uma vez fora do campo,<br />
dirigiu a Apolo instantes orações” (GENETTE, 1995, p.163).<br />
A citação acima mostra a comparação que Genette faz entre dois trechos da<br />
narrativa homérica, sendo o segundo uma tradução feita por Platão. O objetivo<br />
é mostrar que, amparado ao que diz o filósofo sobre a mimese, uma narrativa<br />
pode se tornar mais pura, isto é, mais próxima do real, a partir da exclusão de<br />
termos redundantes da narrativa fazendo com que ela se mostre mais. O efeito<br />
acaba criando um paradoxo: menos se detalha, porém mais se apreende com<br />
relação à realidade, ou seja, que se constitui de cenas e, consequentemente,<br />
é mais mimética (Cf. GENETTE, 1995, p. 165).<br />
Assim, o autor destaca, sempre se baseando na mimese grega, a existência de<br />
uma forma narrativa oposta, tida como a narrativa de falas. Elas se diferem das<br />
narrativas de acontecimentos por serem construídas essencialmente das falas,<br />
seja do narrador ou das personagens, evitando uma imitação. À primeira vista<br />
sente-se certa confusão nessas observações, mas elas se tornam mais claras a<br />
partir das tipologias empregadas por Genette ao ver os diferentes tipos de falas.<br />
A primeira diz respeito ao discurso narrativizado ou contado, que equivale ao<br />
que comumente temos como discurso indireto. Já a segunda forma de discurso,<br />
a forma transposta, também é baseada no discurso indireto, mas se mostra<br />
menos distante do acontecimento. Ao observamos os trechos de Em busca do<br />
tempo perdido 1 comentados por Genette, percebemos melhor a diferença entre<br />
estas duas primeiras tipologias. Na primeira: “Informei a minha mãe da minha<br />
decisão de desposar Albertine” (PROUST, apud. GENETTE, 1995, p. 169). Já<br />
na forma transposta: Disse a minha mãe que era absolutamente necessário<br />
para mim desposar Albertine” (PROUST, apud. GENETTE, 1995, p. 169). Por<br />
fim, ainda temos o discurso relatado, ou seja aquele em que a palavra é cedida<br />
literalmente ao personagem, o que o aproxima do modo dramático, facilmente<br />
reconhecido como o discurso direto. Mediante estas classificações torna-se<br />
mais fácil perceber como a distância pode ser variável. Umas “mostram” mais<br />
do que “contam”, mas todas compõem um grande leque de opções ao escritor.<br />
Focalização<br />
Além da distância, Genette também discursa sobre a perspectiva, isto é, do<br />
ponto de vista estabelecido pela narração. O autor sugere alguns tipos de divisão<br />
entre as possíveis perspectivas a adotar. Comentemos um pouco sobre estas.<br />
1 Título do clássico de Marcel Proust, que é usado como base para a apresentação das proposições de Genette<br />
quanto ao modo de narrar.<br />
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A focalização-zero nos parece um tanto difícil de compreender, talvez por<br />
Genette pouco se apegar a ela em seu estudo. A ideia que temos desse tipo de<br />
focalização é de uma “omnisciência do romancista clássico” (GENETTE, 1995,<br />
p. 206), ou seja, a forma de narrar comum do romance do século XIX, em que<br />
o narrador sabe de tudo, porém pouco se aproxima dos fatos, fazendo com<br />
que eles se apresentem da forma mais neutra possível 2 . Em seguida, somos<br />
apresentados à focalização interna, que como o próprio nome propõe, visa expor<br />
as características intrínsecas de um personagem. Esse tipo de focalização pode<br />
ser fixa (quando apenas um personagem é o focalizado), variável (quando se<br />
alterna o foco narrativo entre dois personagens) e múltipla (vários personagens<br />
sendo focalizados). O terceiro tipo de focalização é a externa, que se difere da<br />
interna por não permitir que se tenha acesso à consciência do personagem<br />
em foco 3 . Entender como se comportam estas diferentes perspectivas se<br />
torna mais fácil quando pensamos não somente na literatura, mas também no<br />
cinema. Lembremo-nos de como a câmera consegue adotar diferentes pontos<br />
de vista para causar o impacto desejado no espectador e não perceberemos<br />
muita diferença com o que acontece nos textos literários.<br />
Além do que vimos, é interessante ressaltar o que fala Genette (1995, p. 189-<br />
190) ao concluir sua exposição sobre os tipos de focalização:<br />
A fórmula de focalização nem sempre se aplica ao con<strong>jun</strong>to de uma obra,<br />
portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser<br />
muitíssimo breve. Por outro lado, a distinção entre os diferentes pontos de<br />
vista nem sempre é tão nítida quanto a simples consideração dos tipos puros<br />
poderia fazer supor. Uma focalização externa em relação a uma personagem<br />
pode, por vezes, igualmente bem deixar-se definir como uma focalização<br />
interna sobre outro.<br />
Acima, Genette chama a atenção, de forma bastante inteligente, para que<br />
não tenhamos nenhuma das focalizações descritas por ele como absolutas,<br />
determinantes ou estanques na narrativa, fato que atribui mais flexibilidade à<br />
teoria e nos abre os olhos para que analisemos minuciosamente cada cena<br />
apresentada por determinada obra.<br />
A partir das mudanças de focalização ao longo da narrativa, é natural que<br />
alguns elementos, antes pouco ou não visíveis, se tornem mais evidentes, bem<br />
como o inverso, quando coisas que estavam em nossa vista são ocultadas.<br />
Isso faz com que a quantidade de informação oferecida possa ser regulada,<br />
geralmente para dar mais dinamismo à narração ou gerar expectativa em<br />
2 Vale a pena ressaltar que a definição dada por Genette é bastante vaga ou ambígua. Quando este se refere<br />
ao romancista clássico, por exemplo, não temos com exatidão o que ele quer dizer com esse termo. Sendo assim, a<br />
definição apresentada neste artigo passa também pela nossa interpretação do termo, o que talvez difira da definição<br />
de Genette. Outro questionamento interessante a se fazer sobre a focalização-zero diz respeito a sua posição de neutralidade.<br />
Como acreditamos ser impossível que se adote uma perspectiva neutra, optamos por expor a focalização-<br />
-zero como uma forma narrativa que busca a neutralidade, mas nunca a alcançando por completo.<br />
3 Percebamos que a focalização-zero também pode ser confundida com a focalização externa. Acreditamos<br />
que a principal diferença entre elas se dá no fato de a focalização-zero ser de caráter mais descritivo, enquanto a<br />
externa, embora não nos permita conhecer o interior de um personagem, ainda pode ater-se a ele mais efetivamente.<br />
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quem lê. Assim, o autor nos apresenta dois novos conceitos: o de paralipse<br />
e o de paralepse. O primeiro trata de omissão lateral, isto é, uma subtração<br />
ou escassez de informação 4 cedida ao leitor. Já a paralepse faz com que a<br />
alteração de focalização ceda mais informação do que o possível. Novamente<br />
é possível perceber melhor como essas mudanças se comportam quando<br />
nos lembramos do cinema; em um filme de suspense, por exemplo, tende-se<br />
sempre à paralipse, para que o espectador não tenha certeza do que ocorre,<br />
mantendo a expectativa quanto ao desenrolar da trama.<br />
Expostos os principais conceitos acerca do modo narrativo da teoria de Gérard<br />
Genette, vejamos como estes se comportam diante da teoria do fantástico todoroviano.<br />
O fantástico e a focalização<br />
O conto “Lua crescente em Amsterdã”, de Lygia Fagundes Telles, tem como<br />
protagonista um casal que discute sentado em um banco de jardim em Amsterdã.<br />
Ambos estão fora do lugar onde vivem e, ao chegarem à capital holandesa,<br />
sentem imenso desconforto. Essa angústia se faz mais evidente na moça, Ana,<br />
que chora insistentemente, querendo voltar para casa. A cena inicial nos mostra<br />
o casal sentado no banco, diante de uma criança que porta uma fatia de bolo.<br />
Ana sente fome e pede um pedaço do bolo, mas a garotinha foge assustada:<br />
— Vai me dar um pedaço desse bolo? – pediu a jovem estendendo a mão.<br />
— Me dá um pedaço, hem, menininha?<br />
— Ela não entende – ele disse.<br />
A jovem levou a mão até a boca.<br />
— Comer, comer! Estou com fome – insistiu na mímica que se acelerou,<br />
exasperada. — Quero comer!<br />
— Aqui é a Holanda, querida. Ninguém entende. (TELLES, 1981, p. 59).<br />
Irritados com o local onde mal podem se comunicar com outras pessoas, o<br />
casal começa uma longa discussão, que proporciona um longo devaneio. Nisto,<br />
Ana pensa que seria menor o seu sofrimento caso pudesse, de alguma forma,<br />
nascer ou tornar-se algum outro ser:<br />
Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos. Na boca.<br />
— E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o amor?<br />
Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara<br />
o último?<br />
— Sopra o vento e a gente vira outra coisa.<br />
— Que coisa?<br />
— Sei lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as<br />
pessoas e as pessoas – ele murmurou. – Queria ser um passarinho, vi um<br />
dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de<br />
4 Não confundamos a paralipse com a elipse. Grosso modo, a elipse é uma figura de linguagem que permite<br />
a extirpação de termos redundantes de uma sentença a fim de torna-la mais objetiva, sem que haja qualquer prejuízo<br />
a sua compreensão. Por outro lado, a paralipse omite elementos que são essenciais à trama – o que faz com que o<br />
leitor sinta imediatamente a ausência deles. Evidentemente, a paralipse pode usufruir de elipses (no discurso de um<br />
personagem, por exemplo) para produzir o efeito desejado.<br />
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um passarinho de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser<br />
aquele passarinho.<br />
— Nunca me teria como companheira, nunca. Gosto de mel, acho que quero<br />
ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?<br />
— E curta. (TELLES, 1981, p. 64).<br />
Ao término da narrativa, o evento fantástico acontece, mas de forma sugerida,<br />
bastante sutil: ambos parecem ter sido transformados nos animais com que<br />
devaneavam. A narrativa se apresenta como um bom exemplo para que<br />
observemos uma a uma as nuances e premissas do fantástico sob a ótica de<br />
Todorov. O acontecimento insólito está presente. Entretanto, não há hesitação<br />
sequer por parte dos personagens; o questionamento e hesitação se projeta ao<br />
leitor de uma outra forma, o que pode nos fazer declarar que “Lua crescente<br />
em Amsterdã” “(...) É fantástico tão-somente pela incerteza do acontecimento<br />
inusitado, possibilitado pelas interferências dos índices discursivos e pela sua<br />
inexplicabilidade” (SAMPAIO, 2009, p. 82). Uma vez que não temos a participação<br />
efetiva das personagens na construção do fantástico, seria possível perceber<br />
o que as substituiu? Prestemos atenção à cena final do conto:<br />
O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental<br />
lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do<br />
guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do banco vazio. Procurou por<br />
entre as árvores, voltou até o banco e alongou o olhar meio desapontado<br />
pela alameda também deserta. Ficou esfregando as solas dos sapatos na<br />
areia fina. Guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de<br />
penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava<br />
se esconder debaixo do banco de pedra. (TELLES, 1981, p. 64).<br />
Ao longo da narrativa, temos uma focalização centrada apenas nos dois<br />
protagonistas, podendo ser vista como uma focalização interna e variável (Cf.<br />
GENETTE, 1995, p. 187) a maior parte do tempo, uma vez que temos acesso às<br />
emoções e falas de ambos com certa alternância característica dos diálogos.<br />
Usando nossa já familiar comparação com o cinema, a situação seria facilmente<br />
visualizada como um shot/reaction-shot somado à câmera subjetiva. Conforme<br />
explicita Xavier (2008, p. 34),<br />
A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista de uma das<br />
personagens, observando os acontecimentos de sua posição, e, digamos,<br />
com os seus olhos. O shot/reaction-shot corresponde à situação em que<br />
o novo plano explicita o efeito (em geral psicológico) dos acontecimentos<br />
mostrados anteriormente no comportamento de alguma personagem.<br />
A construção cinematográfica da narrativa não para por aí. Próximo ao desfecho,<br />
a focalização sofre uma mudança drástica, pois é deslocada do casal para a<br />
garotinha que aparecera com o bolo no início da história. Uma vez focando-se<br />
nela, deixamos de ver o momento em que se realizaria a metamorfose do casal.<br />
Toda essa situação nos é ocultada através da paralipse que se forma com o<br />
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deslocamento do foco, que, por sua vez, sustenta a hesitação necessária à<br />
concepção do fantástico. Em outras palavras, a cena da metamorfose é cortada<br />
da narrativa para que fiquemos apenas com a reação da menina. Contudo,<br />
também a menina não apresenta nenhuma reação específica, pois também<br />
ela teve sua visão obstruída em relação à metamorfose, por causa do vento<br />
que lhe atira no rosto o avental. O resultado é uma situação de metamorfose<br />
apenas sugerida, impedindo que o leitor assuma uma explicação (tanto natural<br />
quanto sobrenatural) ao acontecido. Todo este artifício também serve para<br />
que essa principal característica do fantástico, a de hesitação frente a um<br />
acontecimento que desafia a lógica vigente, não precise ser feita a partir de<br />
uma narração em primeira pessoa ou, nas palavras de Todorov (2010, p. 94),<br />
de um narrador representado:<br />
O narrador representado convém ao fantástico, pois facilita a necessária<br />
identificação do leitor com as personagens. O discurso deste narrador<br />
possui um estatuto ambíguo e os autores o tem explorado diferentemente<br />
enfatizando um ou outro de seus aspectos: quando concerne ao narrador,<br />
o discurso se acha aquém da prova de verdade; quando à personagem,<br />
deve se submeter à prova.<br />
Destarte, vemos que há outras possibilidades de realização do fantástico<br />
além das expostas por Todorov, conforme observamos a partir dos artifícios<br />
tangentes à teoria de Genette.<br />
Não só Telles parece ter feito uso destes artifícios. Também é possível encontrar<br />
uma estruturação de cena muito bem feita em “O terceiro reinado”, conto da<br />
escritora contemporânea Georgette Silen. No texto supracitado, conhecemos a<br />
cidade do Rio de Janeiro vista de uma forma bastante peculiar. Ambientando-se<br />
no século XIX, o conto cria um cenário hipotético, em que a monarquia resiste<br />
bravamente e conduz o Brasil a uma prosperidade invejada por muitas potências<br />
europeias, graças aos investimentos tecnológicos do governo Imperatriz Isabel,<br />
filha de D. Pedro II. A tecnologia à base do vapor cria aparatos que melhoram<br />
a vida de toda a população – fato que irrita os republicanos, que perdem cada<br />
vez mais força. Vejamos um exemplo:<br />
Antigas leis, como a Ventre Livre e Sexagenária, foram revogadas. Escravos<br />
idosos demais para se sustentarem em pé eram recondicionados nos<br />
laboratórios do império, tendo partes dos corpos decrépitos substituídas<br />
por próteses, tornando-se a primeira geração de bioescravos , com peçasmotores<br />
funcionando à base de combustíveis gasosos, numa pesquisa e<br />
aplicação pioneira em todo o mundo (SILEN, 2011, p. 74).<br />
Composto todo este ambiente bastante característico do gênero steampunk 5 ,<br />
chegamos ao principal evento do conto: a apresentação da Imperatriz Isabel,<br />
5 Corresponde a uma das vertentes da ficção científica ou especulativa, em que se recria certo período<br />
histórico (em geral o final do século XIX, que corresponde à Era Vitoriana na Inglaterra) amparando-se às tecnologias<br />
da época como o vapor.<br />
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locomotiva de luxo que é produto de um projeto ambicioso, visando a travessia<br />
do Rio de Janeiro a Itabuna, Bahia, em duas horas. A própria Imperatriz do<br />
Brasil de Santa Cruz estaria a bordo na viagem inaugural. Eis que, pouco<br />
antes da partida, o maquinista do veículo, Francisco Zander, recebe a visita de<br />
Moncorvo Filho, reitor de um importante instituto de pesquisa. O reitor especula<br />
se não seria melhor se a viagem fosse feita com os quatro motores ligados,<br />
em vez de dois, como se previa. Segundo nos é explicado, isso tornaria a<br />
viagem surpreendentemente mais curta – com apenas uma hora. A persuasão<br />
tem clara motivação política, tanto para expor o sucesso da Monarquia aos<br />
republicanos quanto aos demais países na corrida pelo desenvolvimento. Depois<br />
de muita conversa, Zander acaba aceitando a recomendação de Moncorvo,<br />
o que conduzirá o leitor ao surpreendente desfecho. Chegando a Itabuna, o<br />
trem surpreende ao abrir suas portas e mostrar quem não havia absolutamente<br />
ninguém mais em seu interior.<br />
Na cabine de comando, encontraram as xícaras e o café preto ainda quente<br />
(...) Mas nenhum sinal de Francisco Zander, da tripulação ou passageiros. O<br />
silêncio soprava mistérios que nunca seriam revelados. O chefe da estação<br />
mirou o painel de comando (...) conferiu os contadores de velocidade. Os pelos<br />
de sua nuca se arrepiaram. Os números não podiam ser reais! Bateu com<br />
o polegar e o indicador sobre o mostrador, mas ele não se moveu. Conferiu<br />
os demais instrumentos, os registros de rota, qualquer dado de navegação<br />
da locomotiva. Todos se detinham na mesma marca, pontuada em vermelho.<br />
Uma velocidade que nenhum homem jamais pensou em alcançar (SILEN,<br />
2011, p. 82).<br />
Após a constatação de que algo inexplicável acontecera, o chefe da estação<br />
de Itabuna pouco demonstra perplexidade, traz apenas a coroa da Imperatriz,<br />
então desaparecida, em suas mãos, apenas pensando na nova realidade que se<br />
apresentaria dali em diante. De maneira similar ao que vimos no conto de Lygia<br />
Fagundes Telles, aqui também pouco há de perplexidade por parte daqueles<br />
que presenciaram a chegada da locomotiva. Talvez a maior demonstração de<br />
susto seja quando o chefe da estação se depara com o velocímetro do trem. No<br />
mais, o público do lado de fora não tem acesso a nada mais, ficando a mercê<br />
apenas da volta do chefe da estação de posse da coroa real. Analisemos como<br />
se comporta então a focalização na concepção desse desfecho.<br />
Ao longo de “O terceiro reinado”, diferente do que acontece em “Lua crescente<br />
em Amsterdã”, temos cenas bastante amplas, em sua maioria, que podem ser<br />
vistas como uma focalização-zero, uma vez que se limitam a descrever o espaço<br />
narrativo, sem muito se ater a eventos mais específicos, em que se poderia<br />
adotar a focalização externa como fonte. A situação só muda às vésperas da<br />
partida do trem, quando temos uma focalização interna e variável no diálogo<br />
em que Moncorvo persuade Zander a ativar os quatro motores durante a<br />
viagem. Percebamos que durante o desenrolar das ações o foco é o trem e<br />
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as pessoas que estão em seu interior. Curiosamente, tal como aconteceram<br />
no conto de Telles, a focalização se afasta do local onde ocorrerá o evento<br />
fantástico, fazendo com que tenhamos acesso apenas a seus resultados – ou<br />
seja, novamente o fantástico é construído por meio de uma paralipse obtida<br />
com a mudança brusca de focalização. Mesmo quando o chefe da estação<br />
adentra a locomotiva, ainda não temos certeza do que ocorrera, fica apenas a<br />
sugestão de que os tripulantes foram deslocados no espaço-tempo devido à<br />
alta velocidade. Também nesta narrativa o fantástico não foi construído a partir<br />
de um narrador representado, o que fica claro ao observarmos as diferentes<br />
facetas da focalização ao alongo da narrativa. Outro questionamento que<br />
podemos levantar diz respeito ao mundo onde ocorre a narrativa de “O terceiro<br />
reinado”. Ao contrário do primeiro conto comentado, estamos diante de uma<br />
versão hipotética do mundo real, não estamos exatamente no mundo real. Tudo<br />
isso pode também nos fazer questionar as principais bases do fantástico, já<br />
que aqui temos uma quebra da lógica vigente, mas não o mundo real como o<br />
conhecemos; temos hesitação e inexplicabilidade projetadas ao leitor, mas o<br />
mundo da narrativa já não é mais o nosso. Enfim, os dois contos acima servem<br />
para mostrar que algumas assertivas sobre o fantástico não se portam como<br />
absolutas, pois novos procedimentos criam novas constantes que não foram<br />
previstas pela teoria de Todorov.<br />
Conclusão<br />
Mediante as exposições das teorias de Gérard Genette e Tzvetan Todorov, e<br />
com a ajuda dos exemplos que analisamos, podemos notar que os principais<br />
tópicos relacionados à teoria de Genette são bastante pertinentes quando<br />
aplicados ao fantástico.<br />
Em um primeiro momento, essas ponderações colaboram com os principais<br />
postulados da teoria de Todorov. Chamamos atenção, inclusive, ao brilhante<br />
papel da paralipse na construção do fantástico. Podemos observar que se,<br />
segundo Todorov, devemos manter no leitor a incerteza e a incapacidade de<br />
explicar os fatos que lê, seja de modo natural ou sobrenatural, a omissão de<br />
dados essenciais para a compreensão total é quase imperativa – pensamento<br />
que induziria o escritor a fazer uso de paralipses, conforme pudemos perceber<br />
à leitura de “Lua crescente em Amsterdã” e “O terceiro reinado”. Resumindo:<br />
convém ao fantástico o uso de um discurso paralíptico.<br />
Por outro lado, a imensa variedade de distâncias que pode ser conseguida<br />
dentro de uma mesma narrativa, conforme é explicitado ao estudarmos os<br />
diversos tipos de focalização, ajuda a mostrar que certas afirmações da teoria<br />
de Todorov não seriam tão importantes – como no caso da narração em primeira<br />
pessoa. Ambas as narrativas usadas como exemplo são em terceira pessoa,<br />
mas conseguem manter o caráter inverossímil do evento fantástico a partir de<br />
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outros recursos. Tais recursos ganham muito com a variação de focalização que<br />
pode, além de chamar a percepção do leitor para a composição espacial da<br />
narrativa, impedir-lhe ou permitir-lhe de ter acesso a determinadas informações<br />
que seriam de suma importância. Evidente que a variação de distância e<br />
focalização não é o único tipo de procedimento que pode proporcionar isso,<br />
mas fica bem claro, a partir dos exemplos comentados, o forte auxílio que<br />
este recurso pode prestar ao escritor que deseja criar novas possibilidades de<br />
criação do fantástico. Destarte, temos em mãos uma excelente ferramenta para<br />
subverter as principais tendências da narrativa fantástica, contribuindo para sua<br />
originalidade e difusão, bem como fazendo com que os estudos teóricos sigam<br />
desbravando novas vertentes do gênero ou novas possibilidades de escrita.<br />
ABSTRACT<br />
GENETTE AND THE FANTASTIC<br />
The following text intends to analyze how important topics discussed by the French<br />
theorist Gérard Genette in his Narrative discourse: an essay in method can be<br />
used with the theories of the fantastic literature, especially the Tzvetan Todorov’s<br />
theory, presented in The Fantastic: a structural approach to a literary genre.<br />
According to our point of view, we can notice that some aesthetical procedures<br />
appointed by Genette are very useful to create the fantastic, such as the paralipsis<br />
and another procedures related to the narrative mood. We will present examples<br />
found in Brazilian fantastic literature in order to confirm our speculations.<br />
KEY-WORDS:<br />
Gérard Genette, Tzvetan Todorov, Theory of the fantastic, short-story, fantastic<br />
literature.<br />
REFERÊNCIAS<br />
GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. 3ª ed. Lisboa: Veja, 1995 (coleção<br />
Veja Universidade).<br />
SAMPAIO, Aíla. Os fantásticos mistérios de Lygia. Fortaleza: Expressão Gráfica<br />
Editora, 2009.<br />
SILEN, Georgette. O terceiro reinado. In: RUIZ, Tatiana (org.). Steampink. Belo<br />
Horizonte: Estronho, 2011, p. 72-83.<br />
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TELLES, Lygia Fagundes. Lua crescente em Amsterdã. Mistérios. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1981, p. 57-64.<br />
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo, Perspectiva,<br />
2010.<br />
XAVIER, Ismail. A decupagem clássica. O discurso cinematográfico: a opacidade<br />
e a transparência. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.<br />
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tExtOS lIvrES
APRESENTAÇÃO TEXTOS LIVRES<br />
Textos Livres<br />
Este número do Caderno Seminal Digital – nº 17, referente a <strong>jan</strong>.-<strong>jun</strong>./20<strong>12</strong> – contém,<br />
em sua segunda e última seção – “Textos Livres” –, três artigos: “Letramento,<br />
oralidade e escrita em contexto digital”, de Ana Maria Pires Novaes; “O design<br />
de informação como instrumento de inclusão social”, de Maria João Palma,<br />
Airton Castagna e Katia Avelar; “‘Mestres populares’ e a escola no Brasil”, de<br />
Ricardo do Carmo, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda.<br />
Esses três diferentes textos garantem, a este número, sua dimensão inter ou<br />
multidisciplinar, fazendo dialogarem, entre si, diversas linguagens, constituindo<br />
semioses múltiplas e promovendo o encontro de saberes oriundos de muitos<br />
campos e áreas dos estudos contemporâneos, com ênfase, especial, na<br />
concentração de pesquisas acerca do desenvolvimento local.<br />
Ana Maria Pires Novaes discute as “formas de letramento ou letramentos” que,<br />
na contemporaneidade, vêm trazendo “mudanças significativas às práticas<br />
de leitura e escrita”. A estudiosa denuncia que “as instituições de ensino não<br />
podem mais limitar o letramento aos chamados gêneros escolarizados, uma<br />
vez que é preciso habilitar os alunos para a produção de outros gêneros<br />
discursivos que circulam na vida social, inclusive aqueles que se constituem<br />
no ambiente digital”. No artigo, ela se propõe-se a refletir sobre o papel da<br />
formação escolar, em especial a universitária, no que tange às habilidades de<br />
leitura e de escrita, apontando, ainda, para “um redirecionamento do ensino<br />
que considere as novas tecnologias de informação e comunicação”.<br />
Maria João Palma, Airton Castagna e Katia Avelar tratam da leitura e da<br />
formação de leitores, focalizando “o design de informação como princípio<br />
básico e facilitador para a aquisição de conhecimento por parte de indivíduos<br />
que necessitam ser incluídos socialmente”. O artigo tem por fio condutor a<br />
discussão acerca do “modo pelo qual o design da informação propicia maior<br />
assimilação de conteúdos”. Assim, propõem que se reflita sobre as relações<br />
da linguagem como forma e conteúdo.<br />
Ricardo do Carmo, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda tentam iluminar a<br />
“importância social dos chamados ‘mestres populares’”, discutindo e investigando<br />
as razões “de sua marginalização histórica” e por que “os seus saberes não<br />
encontram espaço no sistema educacional brasileiro”, mais especificamente<br />
em seu espaço institucional, qual seja a escola. Eles atentam para outras interrelações<br />
da linguagem, estabelecendo laços com a cultura popular e a arte<br />
em geral, nomeadamente, em suas manifestações “marginais”.<br />
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Esses três artigos completam, exemplarmente, o número 17 de nosso Caderno<br />
Seminal Digital, dando fechamento à sua segunda e última seção, conforme<br />
estamos, no momento, experimentado, igualmente, essa nova forma(tação) de<br />
linguagem.<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Flavio García<br />
<strong>UERJ</strong><br />
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LETRAMENTO, ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTO DIGITAL<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Ana Maria Pires Novaes 1<br />
A ampliação contínua de acesso às tecnologias de comunicação e da informação<br />
pelos indivíduos na contemporaneidade tem trazido mudanças significativas<br />
às práticas de leitura e escrita. Na busca de avaliar as implicações dessas<br />
mudanças no ensino/aprendizagem de língua materna, pesquisadores da área<br />
vêm estudando múltiplas formas de letramento ou letramentos, que envolvem,<br />
entre outros tipos, a multimodalidade das mídias virtuais. Por sua vez, as<br />
instituições de ensino não podem mais limitar o letramento aos chamados<br />
gêneros escolarizados, uma vez que é preciso habilitar os alunos para a<br />
produção de outros gêneros discursivos que circulam na vida social, inclusive<br />
aqueles que se constituem no ambiente digital. Este estudo tem como objetivo<br />
discutir as interações síncronas da internet, bem como a interface entre língua<br />
falada e língua escrita no continuum dos gêneros textuais que se produzem<br />
nesse contexto. Pretende, ainda, refletir sobre um redirecionamento do ensino<br />
que considere as novas tecnologias de informação e comunicação.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Gêneros virtuais, oralidade, escrita, letramento, ensino.<br />
Introdução<br />
O acelerado avanço tecnológico da atualidade, em especial a mídia eletrônica,<br />
vem ampliando a noção de texto e favorecendo o surgimento de uma variedade<br />
de novos gêneros. O domínio exclusivo do texto verbal escrito não é mais<br />
suficiente, uma vez que os letramentos hoje exigem conhecimento e capacidades<br />
relativas a diversas linguagens e variadas semioses.<br />
A escrita eletrônica, ao romper com a estrutura convencional de texto, dá lugar<br />
ao hipertexto, que se caracteriza como um processo de escritura/leitura não<br />
sequencial e não linear, que permite ao leitor o acesso, em tempo real, a outros<br />
textos, a partir de escolhas locais e sucessivas. É ele uma “forma híbrida,<br />
dinâmica e flexível de linguagem que dialoga com outras interfaces semióticas,<br />
adiciona e condiciona à sua superfície formas outras de textualidade” (XAVIER,<br />
2004, p.171). Tais características obrigam os estudiosos da linguagem a rever<br />
noções como linearidade, estrutura, coesão, coerência, entre outras, porque, o<br />
1 Doutora em Letras pela UFF. Professora do curso de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvimento<br />
Local e do curso de Letras da UNISUAM / Centro Universitário Augusto Motta.<br />
182
ambiente virtual permite ao leitor definir interativamente o fluxo de sua leitura a<br />
partir do acesso a um número praticamente ilimitado de textos em tempo real.<br />
Essencialmente interativo, o hipertexto é um processo de escritura/leitura<br />
multilinearizado, multisequencial e indeterminado, realizado em um novo espaço<br />
(MARCUSCHI, 2007, p.146). Além da interatividade, da não linearidade, da<br />
acessibilidade ilimitada, caracteriza-se pela multimodalidade/multisemiose,<br />
isto é, pela possibilidade de interconectar simultaneamente a linguagem verbal<br />
com a não-verbal (musical, cinematográfica, visual, entre outras). No hipertexto,<br />
também estão presentes características como a volatilidade, decorrente da<br />
própria natureza virtual do suporte, a topografia, espaço de escrita e leitura sem<br />
limites definidos, e a fragmentariedade, evidenciada na constante ligação de<br />
porções breves, com possíveis retornos ou fugas, determinantes na definição<br />
desse texto que se produz com outro formato e num outro ambiente.<br />
É preciso considerar também que a Comunicação Mediada por Computador<br />
(CMC) determina a existência de um con<strong>jun</strong>to de novos gêneros que emergem<br />
nesse contexto - chats, e-mails, aulas virtuais, blogs, videoconferências interativas,<br />
entre outros, e redefine os limites entre autor e leitor.<br />
Outro ponto importante, quando se discute o ensino/aprendizagem da língua,<br />
é a necessidade de a Escola, nas práticas de letramento, contemplar gêneros<br />
virtuais e variados recursos tecnológicos, como forma de incentivar a produção<br />
de textos e o desenvolvimento de habilidades de novas formas de ler e escrever.<br />
1. Gêneros discursivos e mídia virtual<br />
As esferas das atividades humanas, por mais variadas que sejam, estão sempre<br />
relacionadas com a utilização da língua e a circulação dos discursos. Estes não<br />
são atos isolados, uma vez que são sempre legitimados por alguma instância de<br />
atividade humana socialmente organizada. Assim, todo falante, em função da<br />
especificidade da esfera de comunicação, do modo de produção e recepção<br />
do texto, mobiliza diferentes competências e elabora tipos relativamente estáveis<br />
de enunciados, denominados gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000).<br />
Ao discutir a proposta bakhtiniana de gêneros do discurso, Faraco (2003,<br />
p.1<strong>12</strong>) comenta:<br />
O pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não<br />
se dá independente da interação; nem o dizer fora do agir. Numa síntese,<br />
podemos afirmar que, nessa teoria, estipula-se que falamos por meio de<br />
gêneros no interior de determinada esfera de atividade humana. Falar não<br />
é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas moldar<br />
o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade.<br />
Os gêneros têm sempre um envolvimento social, ou melhor, um caráter<br />
sócio-histórico determinado. “Não se pode tratar o gênero de discurso<br />
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independentemente de sua realidade social e de sua relação com as atividades<br />
humanas” (MARCUSCHI, 2008, p.155). Além disso, todas essas atividades estão<br />
relacionadas ao uso da língua, que se efetiva por meio de enunciados orais e<br />
escritos. Para Bakhtin (2000, p.302), “aprender a falar é aprender a estruturar<br />
enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e,<br />
menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas)”.<br />
Cada domínio discursivo, esfera da vida social ou institucional, desenvolve<br />
práticas características e dá origem a vários gêneros, que nele circulam (discurso<br />
jornalístico, jurídico, religioso, político, militar, pedagógico, entre outros). Ao<br />
tratar dessa questão, Marchushi (2008, p. 194) explica:<br />
[...] os domínios discursivos produzem modelos de ação comunicativa que<br />
se estabilizam e se transmitem de geração a geração, com propósitos e<br />
efeitos definidos e claros. Além disso, acarretam formas de ação, reflexão e<br />
avaliação social que determinam formatos sociais que, em última instância,<br />
desembocam na estabilização de gêneros textuais. E eles também organizam<br />
as relações de poder.<br />
É justamente pelas distintas práticas sociais desenvolvidas nos diversos domínios<br />
discursivos que sabemos que [...] nossa produção textual na universidade<br />
e numa revista de variedades não será a mesma. Consequentemente os<br />
domínios discursivos operam como enquadres globais de superordenação<br />
comunicativa, subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que<br />
resultam nos gêneros.<br />
Há gêneros que circulam, apenas, num domínio específico, como a ordem do<br />
dia, na área militar, as novenas e ladainhas no domínio religioso e a redação<br />
escolar, na sala de aula. Outros se situam na interface entre a fala e a escrita<br />
como os noticiários de TV, os contos populares – produzidos oralmente, mas<br />
transmitidos pela escrita.<br />
Pinheiro (2002, p.278-279), ao analisar os gêneros nos produtos midiáticos, comenta:<br />
As frequentes mudanças provocadas pela velocidade e tecnologização<br />
nos meios de comunicação de massa e o desmoronamento de gêneros já<br />
consagrados nesses meios faz brotar uma variedade de gêneros híbridos,<br />
construídos em decorrência da necessidade de gerar o “novo”: criar,<br />
transformar, modificar, mesclar, inovar o que é, antes de tudo, o mesmo. [...]<br />
Em função das especificidades que envolvem tanto forma como conteúdo,<br />
um programa feminino na televisão, um telejornal ou um editorial em jornais<br />
e em revistas femininas são percebidos pelos receptores como tipos de<br />
textos diferentes em que cada um guarda suas características e constrói<br />
efeitos distintos dentro do processo. Nesse caso, o meio torna-se também<br />
uma variável.<br />
Tais mudanças comprovam que os gêneros, mesmo sendo formas tipificadas,<br />
são dinâmicos, permitem misturas, inter-relações para dar conta de necessidades<br />
da vida social, que se manifestam em novas circunstâncias.<br />
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Os suportes tecnológicos da realidade atual, principalmente a internet, favorecem<br />
o surgimento de uma variedade de novos gêneros como videoconferências<br />
interativas, bate-papos virtuais (chats) em todas as modalidades (chat em aberto,<br />
chat reservado, chat agendado, chat privado), e-mails, aulas virtuais, diários<br />
participativos (blogs), entre outros, com características típicas da oralidade e<br />
da escrita. Esses novos gêneros, desenvolvidos na mídia virtual, possibilitam<br />
uma nova forma de comunicação, com um novo modo discursivo denominado<br />
“discurso eletrônico.”<br />
Para Marcuschi (2008, p.200), a relevância de se tratar dos gêneros emergentes<br />
reside em pelo menos quatro aspectos:<br />
1. São gêneros em franco desenvolvimento e fase de fixação com uso cada<br />
vez mais generalizado;<br />
2. apresentam peculiaridades formais próprias, não obstante terem contrapartes<br />
em gêneros prévios;<br />
3. oferecem a possibilidade de se rever alguns conceitos tradicionais a<br />
respeito da textualidade;<br />
4. mudam sensivelmente nossa relação com a oralidade e a escrita o que<br />
nos obriga a repensá-la.<br />
Uma das características centrais dos gêneros digitais é a alta interatividade, em<br />
muitos casos de forma síncrona, fato que lhes confere um caráter inovador na<br />
relação fala e escrita. Os e-mails, por exemplo, substituíram as cartas pessoais,<br />
comerciais e os bilhetes, seus antecessores. Neles, os interlocutores interagem,<br />
construindo um texto “falado” por escrito. Ao discutir a questão de ser o e-mail<br />
apenas um canal ou um gênero, Paiva (2004, p.77-78) esclarece:<br />
Entendo que o meio de transmissão de mensagens eletrônicas e-mail<br />
gerou um novo gênero textual também denominado e-mail que gera textos<br />
diversos que se distinguem dos demais textos (anúncios, cartas etc) também<br />
transmitidos eletronicamente. [...]<br />
Vejo o e-mail como um gênero eletrônico escrito, com características típicas<br />
de memorando, bilhete, carta, conversa face a face e telefônica, cuja<br />
representação adquire ora a forma de monólogo ora de diálogo e que se<br />
distingue de outros tipos de mensagens devido a características bastante<br />
peculiares de seu meio de transmissão, em especial a velocidade e a<br />
assincronia na comunicação entre usuários de computadores.<br />
Para Violi (2009), o e-mail pode ser considerado como um subgênero do<br />
gênero textual mais geral da troca epistolar. Apresenta características comuns<br />
com o esquema geral que define o gênero, mas também apresenta diferenças<br />
importantes e únicas. Ao comparar o e-mail com o gênero carta, essa autora<br />
argumenta:<br />
Se as cartas regulares são geralmente caracterizadas por uma dupla distância,<br />
tanto em tempo como em espaço, no e-mail, apenas a distância espacial é<br />
preservada, enquanto a distância temporal é reduzida a virtualmente tempo<br />
zero. Apesar de este não ser sempre o caso, e as mensagens poderem<br />
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obviamente tornar-se mais longas, a troca de duas mensagens no ambiente<br />
do correio eletrônico pode ser quase imediata, e esse é frequentemente o<br />
caso, quando duas pessoas estão usando o sistema ao mesmo tempo. [...]<br />
Desse ponto de vista, o ‘agora’ do remetente é assumido como sendo o<br />
mesmo ‘agora’ do destinatário; em outros termos, os dois tempos da elocução<br />
são tomados como coincidentes. Uma situação como essa está muito mais<br />
próxima da conversação oral que das cartas escritas (VIOLI, 2009, p.50-51).<br />
O blog, corruptela de weblog, funciona como uma agenda digital acessível a<br />
qualquer um na rede. É um tipo de diário virtual público que contém informações<br />
sobre determinada pessoa, lugar ou situação e que é usado para expressar<br />
idéias, opiniões e posição em face de determinado assunto. Os blogs são<br />
dinâmicos, interativos; têm uma abertura para receber comentários sobre o que<br />
foi escrito ou recados. Permitem a convivência de textos escritos, de imagens<br />
(fotos, desenhos, animações) e de som (músicas principalmente).<br />
Como explica Komesu (2004, p.113), as condições típicas de enunciação, o<br />
caráter público da atividade, a rápida atualização e manutenção dos escritos em<br />
rede, a interatividade com o leitor das páginas pessoais, entre outros aspectos,<br />
permitem considerar-se o blog um novo gênero, embora possam ser identificados<br />
também, em sua constituição, traços dos diários tradicionalmente escritos.<br />
Ainda que a multimodalidade não seja exclusiva dos gêneros virtuais, no espaço<br />
do hipertexto, ela se acentua, visto que há maior integração entre as semioses<br />
(linguagem verbal, som, imagem, ícones e a própria disposição gráfica do texto<br />
na tela do computador).<br />
Na verdade, os gêneros virtuais não são inovações absolutas, mas formas<br />
discursivas que se ancoram em gêneros já existentes. Segundo Crystal (apud<br />
MARCUSCHI e XAVIER, 2004, p.94), “do ponto de vista dos gêneros realizados, a<br />
Internet transmuta de maneira bastante complexa gêneros existentes, desenvolve<br />
alguns realmente novos e mescla vários outros.”<br />
No chat, a relação dialógica apresenta-se na forma de uma conversação que se<br />
dá por meio de enunciados construídos num texto falado por escrito. Tem muito<br />
de uma conversa espontânea como alto grau de informalidade e descontração,<br />
frequentemente uma escrita abreviada, recorrência de períodos curtos e de<br />
marcadores conversacionais. Tem, ainda, auxiliando a compreensão pragmática<br />
do texto, a presença de emoticons, ícones que traduzem sentimentos e emoções<br />
dos interlocutores, além de outros recursos que suprem a ausência da voz, dos<br />
gestos, da expressão fisionômica, característicos da interação face a face, como,<br />
por exemplo, o uso excessivo dos sinais de pontuação, letras em tamanho maior ou<br />
menor, alongamento de vogais e consoantes, quebra de fronteiras entre as palavras.<br />
Nele, as conversas se estabelecem numa rede de ligações na qual se recebem<br />
mensagens que podem ser respondidas numa alternância ininterrupta de<br />
enunciados. Considerando que, na visão bakhtiniana, “compreender a<br />
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enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu<br />
lugar adequado no contexto correspondente, opor à palavra do locutor uma<br />
contrapalavra” (BAKHTIN,1986, p.131), no chat “concordando, discordando,<br />
completando, opinando sobre um tema que ali se constituiu enquanto objeto<br />
de interlocução discursiva, promove-se uma alternância desejada na qual o<br />
ouvinte não é passivo, porque assume uma atitude responsiva ativa diante do<br />
texto que lê” (BERNARDES; VIEIRA, 2006, p.58-59). Numa leitura que se torna<br />
escritura, o leitor passa a ter um papel mais ativo, e a fronteira entre o escritor<br />
e o leitor se fragiliza, visto que a produção do texto resulta de uma co-autoria.<br />
Na verdade, a internet se constitui como espaço de interação e de produção de<br />
linguagem. Todos os sites possuem links que buscam estabelecer contato com o<br />
visitante, pedem a participação do usuário por meio de uma ação interativa que<br />
se realiza quase sempre pela modalidade escrita da língua. Para Xavier (2006),<br />
a própria idéia de hiperlink já carrega em si o traço interacional, dialógico, visto<br />
que “conduz o leitor a outros sites indexados à net, colocando-o em contato<br />
com uma verdadeira rede de relações interpessoais e interinstitucionais.”<br />
2. Oralidade e escrita no contexto da internet<br />
Entre as diferenças, mais frequentemente mencionadas nos estudos sobre fala e<br />
escrita, apontam os autores a dicotomia contextualização x descontextualização.<br />
Tal fato decorre de se limitar a noção de contexto à situação física em que o<br />
enunciado é produzido. Nesse caso, a fala seria, por sua própria natureza,<br />
contextualizada, e o contexto situacional poderia ser assumido na produção<br />
textual como parte integrante do texto. Por outro lado, como o leitor não dispõe<br />
do contexto de produção do autor, a escrita necessitaria ser plenamente explícita,<br />
isto é, o autor precisaria dar conta linguisticamente dessas condições. O que<br />
ocorre de fato é que, ao produzir um texto, um falante/escrevente não apenas<br />
se situa em relação ao espaço e tempo, mas vai situando seu ouvinte/leitor<br />
dentro de um quadro mais amplo que opera como contextualização, conduzida<br />
por pistas prosódicas, lexicais, estilísticas, dialetais etc. Tais pistas, presentes<br />
tanto nos textos orais como nos textos escritos, guiam os ouvintes/leitores na<br />
interpretação das informações textuais e contextuais (conhecimento de mundo,<br />
conhecimentos situacionais ou enciclopédicos e conhecimento da estrutura<br />
da língua). Assim, contexto não é só a situação interlocutiva, o entorno sóciopolítico-cultural<br />
em que os interlocutores se inserem ou o contexto linguístico,<br />
mas também o contexto sociocognitivo.<br />
Do mesmo modo, a explicitude deixa de ser vista como uma propriedade<br />
exclusiva da escrita, como uma decorrência da descontextualização e da<br />
verbalização. A implicitude, por sua vez, constituída por intenções, inferências e<br />
subentendidos, não se relaciona dicotomicamente com a explicitude, porque, no<br />
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funcionamento discursivo do texto, os sentidos são gerados numa interação. O<br />
que em um texto deve ser explicitado ou o que pode ficar implicitado, depende,<br />
em grande parte, do uso que o produtor faz dos fatores contextuais.<br />
Os estudos mais recentes, ao focalizarem as diferenças entre fala e escrita<br />
no continuum das práticas sociais, comprovam, também, que a interatividade<br />
não é exclusiva de uma modalidade, mas uma propriedade de todo e qualquer<br />
uso da língua. Assim, tanto na fala quanto na escrita, há marcas interativas<br />
que comprovam o princípio do “dialogismo”: ninguém fala/escreve sem ter em<br />
mente um interlocutor. Da mesma forma, essas marcas, ao serem utilizadas<br />
pelo ouvinte/leitor, funcionam como pistas contextualizadoras para a construção<br />
do sentido do texto.<br />
Marcuschi (2001, p.37-38), ao estabelecer as relações entre fala e escrita no<br />
contexto efetivo dos usos linguísticos, defende a hipótese de que as diferenças<br />
entre as duas modalidades da língua se dão dentro de um continuum tipológico<br />
das práticas sociais, o que impediria se situar a oralidade e a escrita em pólos<br />
opostos ou em sistemas linguísticos diversos. As duas modalidades podem ser<br />
tidas como modos complementares de enunciação com interfaces amplas, o<br />
que sugere maior número de semelhanças do que de diferenças. Consideradas<br />
no interior das práticas sociais, fala e escrita identificam gêneros de textos,<br />
concebidos como orais ou escritos em maior ou menor grau. Um discurso<br />
acadêmico, por exemplo, embora seja um texto falado do ponto de vista de<br />
sua realização fônica, está, na sua concepção, mais próximo de um texto<br />
escrito. Embora se apresente oralmente, será sempre um gênero secundário<br />
por pertencer a uma esfera complexa de comunicação, que é a científica. Já<br />
as cartas íntimas e pessoais, ainda que se realizem por escrito, aproximamse,<br />
conceptualmente, de um texto falado. Desta forma, o que justifica o rótulo<br />
primário ou secundário não é a modalidade da língua utilizada, mas a esfera<br />
a que se vincula o gênero (ARAÚJO, 2004, p.93).<br />
Os gêneros virtuais, objeto de estudo deste trabalho, ao se constituírem na<br />
interface oralidade/escrita, tornam possível que uma propriedade, como a<br />
simultaneidade temporal, por exemplo, até há pouco tempo, exclusiva da fala,<br />
esteja presente na prática da escrita a distância. Outro aspecto da oralidade que<br />
se faz presente na conversação on-line é que nesta a atividade conversacional,<br />
mediada pela escrita, também se estabelece em turnos, em que os interlocutores<br />
se alternam. A volatilidade do meio exige turnos predominantemente curtos,<br />
constituídos basicamente de pares adjacentes.<br />
Marcados por “certa informalidade, menor monitoração e cobrança pela fluidez<br />
do meio e pela rapidez do tempo”, os “gêneros emergentes”, resultantes, muitas<br />
vezes, de um certo hibridismo, redefinem os usos da linguagem na atualidade<br />
e desafiam as fronteiras entre oralidade e escrita (MARCUSCHI, 2004, p.29).<br />
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Para esse autor (2004, p.63-64), escrever pelo computador no contexto da<br />
produção discursiva dos bate-papos síncronos (on-line) não é uma nova forma<br />
de escrita, mas uma nova relação com os processos de escrita, um novo<br />
letramento. Cita Halliday (1996) para dizer que “sob o impacto das novas formas<br />
de tecnologia”, presencia-se uma nova situação que “está desconstruindo toda<br />
a oposição entre fala e escrita.”<br />
Ao analisar os novos gêneros do ciberespaço, Costa (2006:26) chama a atenção<br />
não só para a quebra das concepções tradicionais de oralidade e escrita, mas<br />
também para a dissolução das fronteiras entre leitura e escrita e para novos conceitos<br />
de autoria, escritor, leitor. Para esse autor, ao navegar na rede, o usuário não está<br />
se apropriando apenas de “novos códigos sonoro-visuais ou gráfico-auditivos<br />
comunicativos para ler e escrever, mas, sim, construindo um novo objeto conceitual<br />
mediado por novos tipos de interação linguística, social e cultural.”<br />
Com o hipertexto, a leitura se torna simultaneamente uma escritura e os limites<br />
entre leitor e escritor também se alteram. Nesse tipo de leitura, o leitor passa a<br />
ter um papel mais ativo, e a fronteira entre o escritor e o leitor se fragiliza, visto<br />
que a produção do texto resulta de uma co-autoria.<br />
Ao explicar a ruptura de limites entre autor e leitor no hipertexto, Marcuschi<br />
(2007, p.155), comenta:<br />
3. Gêneros digitais e ensino<br />
Ao se mover livremente, navegando por uma rede de textos, o leitor procede<br />
a um descentramento do autor, fazendo de seus interesses de navegador o<br />
fio organizador das escolhas e das ligações. Certamente, o leitor procede por<br />
associações de ideias que o conduzem a sucessivas escolhas, produzindo<br />
uma textualidade cuja coerência tem um toque pessoal. Pode-se até mesmo<br />
dizer que não há, efetivamente, dois textos iguais na escritura hipertextual.<br />
Embora seja lugar comum afirmar que os adolescentes e jovens, em especial,<br />
não têm o hábito da leitura e da escrita, a verdade é que eles passam horas<br />
“navegando” no espaço virtual, lendo e escrevendo no Orkut, no Facebook e<br />
outros sites de relacionamento. Por que, então, não utilizar os gêneros digitais<br />
como ferramentas para novos letramentos, capacitando os estudantes a uma<br />
interação mais participativa no meio social?<br />
Ao afirmar que a geração atual tem adquirido o letramento digital antes mesmo<br />
de ter-se apropriado completamente do letramento alfabético ensinado na<br />
escola, Xavier (2006) assinala:<br />
Defendo que o uso dos gêneros digitais da internet não prejudica a<br />
aprendizagem da escrita pelos adolescentes. Antes deve servir de contraponto<br />
para a escola alertar esses usuários sobre a necessidade de se comportar<br />
diferentemente diante dos vários gêneros e suportes textuais e assim adequar<br />
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a escrita a cada um deles. [...] a internet surge mais como ferramenta de<br />
auxílio à aquisição de habilidades de leitura e escrita do que como um novo<br />
empecilho para o domínio dessas habilidades.<br />
Na contemporaneidade, em função do avanço tecnológico e da expansão das<br />
mídias eletrônica e digital, à prática do letramento da escrita, do signo verbal,<br />
devem ser incorporadas outras práticas de letramento, centradas na imagem,<br />
no signo visual, uma vez que a multimodalidade tornou-se traço constitutivo do<br />
discurso oral e escrito (DIONÍSIO, 2006, p.132). Além disso, os novos formatos<br />
de leitura e escrita e a mudança na concepção de leitor e autor determinados,<br />
em especial, pelo uso do computador e pelos hipertextos, vêm definindo um<br />
novo cenário educacional.<br />
Assim como no final dos anos 90, os Parâmetros Curriculares Nacionais transformaram<br />
os gêneros discursivos em objeto de ensino e possibilitaram uma revisão nas<br />
relações entre oralidade e escrita, os gêneros digitais da atualidade também vão<br />
determinar alterações curriculares e uma nova postura didático-pedagógica, abrindo<br />
o espaço escolar às novas tecnologias de informação e comunicação. Para isso<br />
é urgente capacitar professores e alunos na utilização de ferramentas midiáticas<br />
de forma que essas sejam instrumentos de leitura e escrita.<br />
Rojo, Barbora e Collins (2006, p.109-110), ao tratarem de letramento digital em<br />
projeto de formação continuada de professores, esclarecem:<br />
Quando mediados por computadores como ferramentas cognitivas, os<br />
processos de planejamento e desenvolvimento tradicionais são substituídos<br />
por processos de representação, criação e expressão que só as novas mídias<br />
propiciam. Em vez de usar as tecnologias para limitar e regular os processos<br />
de aprendizagem dos professores-alunos, por meio da utilização de estilos e<br />
dinâmicas pré-concebidas de interação, trata-se de oportunizar um processo<br />
de apropriação das mídias pelos participantes que dela passam a fazer<br />
uso para analisar o mundo, acessar informação, interpretar e organizar seu<br />
conhecimento pessoal e representar o que sabem para outros.<br />
É necessário, portanto, que os sistemas de ensino, em todos os níveis, não<br />
só capacitem os professores para o domínio das ferramentas oferecidas pelo<br />
ambiente virtual, mas promovam, de fato, um redirecionamento das formas<br />
de ensino/aprendizagem. No tocante aos alunos, deve a Escola aproveitar as<br />
habilidades que os mais jovens têm em relação à mídia eletrônica e oportunizar<br />
experiências que os preparem para lidar com novos gêneros discursivos,<br />
novas formas de ler e escrever em sintonia com um mundo em permanente<br />
transformação, onde não mais existem barreiras de tempo e espaço.<br />
Importa salientar que o letramento digital propiciará aos estudantes postura mais<br />
crítica frente ao universo informacional da rede que os auxilie na pesquisa e<br />
avaliação do material coletado, bem como favorecerá o uso consciente das novas<br />
tecnologias. Além disso, o trabalho com os gêneros da mídia virtual pode dinamizar<br />
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as atividades de produção textual para além dos limites estritamente linguísticos,<br />
possibilitando uma análise que considere as formas de composição, circulação<br />
e recepção dos textos bem como os recursos multissemióticos. Como nos alerta<br />
Xavier (2006), a internet pode contribuir na formação intelectual e linguística dos<br />
seus usuários, uma vez que “tende a fazer deles vorazes leitores e autores de<br />
textos sejam verbais, visuais, sonoros ou hipertextuais, habilidades que a escola e<br />
suas milenares ferramentas pedagógicas têm conseguido com muita dificuldade.”<br />
Vale destacar que a apropriação das ferramentas digitais por professores e<br />
alunos atenderá à necessidade de abertura do espaço escolar para a vida<br />
extramuros, onde a tecnologia, já faz algum tempo, é realidade.<br />
Conclusão<br />
Ao longo deste trabalho, procurou-se demonstrar que, com a Internet, novas<br />
formas de comunicação e gêneros em diversos formatos apresentam-se aos<br />
indivíduos e exigem, de todos, competências e habilidades para circular e agir<br />
num mundo dominado por novas tecnologias e diferentes modos de interação.<br />
A partir dessa constatação, buscou-se refletir sobre o hipertexto e as mudanças<br />
no ato de ler por ele provocadas, as especificidades de alguns gêneros digitais,<br />
bem como sobre a possibilidade de considerá-los transmutações de gêneros<br />
mais convencionais que circulam em outras esferas de atividade humana.<br />
Avaliou-se também a interface entre oralidade e escrita nos textos produzidos<br />
na mídia virtual, a existência de uma “escrita oralizada” nas práticas discursivas<br />
mediadas por computador e a redefinição dos papéis de autor e leitor.<br />
Por fim, as reflexões se centraram na necessidade de a Escola, além do<br />
desenvolvimento de atividades com gêneros textuais veiculados no meio impresso,<br />
trabalhar os gêneros digitais como ferramentas de ensino-aprendizagem, de modo<br />
a permitir que os estudantes possam interagir de forma mais consciente, como<br />
leitores e escritores, nas diversas práticas discursivas vivenciadas em seu cotidiano.<br />
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O DESIGN DE INFORMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE<br />
INCLUSÃO SOCIAL<br />
RESUMO:<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Maria João Palma 1<br />
Airton Castagna 2<br />
Katia Avelar 3<br />
Trata-se de estudo no âmbito da leitura e formação de leitores. O foco da<br />
pesquisa é o design de informação como princípio básico e facilitador para a<br />
aquisição de conhecimento por parte de indivíduos que necessitam ser incluídos<br />
socialmente. Será abordado o modo pelo qual o design da informação propicia<br />
maior assimilação de conteúdos por parte dos leitores, de modo a garantir o prazer<br />
da leitura e, assim, torná-la atrativa, favorecendo a absorção de conhecimentos<br />
e a ressignificação e/ou interpretação de conteúdos. Entende-se por design de<br />
informação toda a forma de aplicação e organização da informação, baseada<br />
nos conceitos da diagramação e do planejamento visual. Neste sentido, é<br />
que se torna importante a discussão e a troca de ideias e experiências nesta<br />
área, pois sem o acesso de muitos grupos à leitura, a promoção da cidadania,<br />
no mundo de hoje, torna-se inviável. A facilitação proporcionada pelo design<br />
garante ampliar o volume de leitura das pessoas, na medida em que os meios,<br />
ou recursos, de sua realização são oferecidos.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Design social, leitura, informação, conhecimento, inclusão<br />
ABSTRACT:<br />
It is a study in the ambit of reading the formation and readers. The focus of<br />
the research is the design of information as basic principle and facilitator for<br />
the acquisition of knowledge by individuals that need to be socially included.<br />
Will address the way in which information design provides greater assimilation<br />
of the content from readers, to ensure the enjoyment of reading and thus<br />
make it attractive, favoring the absorption and reframing of knowledge and /<br />
or interpretation of content. It is understood by information design throughout<br />
the application form and information organization based on the concepts of<br />
layout and visual planning. In this sense, is that it is important to discuss and<br />
1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
194
exchange ideas and experiences in this area, because without access to the<br />
reading of many groups, the promotion of citizenship in today’s world, it is not<br />
feasible. The design ensures facilitation provided by expanding the volume of<br />
reading people, in that the means or resources of its realization are offered.<br />
KEYWORDS:<br />
Social design, reading, information, knowledge, inclusion<br />
Introdução:<br />
Em consonância com Abad, Braida e Ponte (2009, p. 2197), cada vez mais, os<br />
designers têm congregado signos táteis, gustativos e olfativos aos seus projetos,<br />
a fim de criar objetos mais complexos e mais acessíveis, que permitam aos<br />
usuários tornarem-se mais interativos e experimentarem momentos de mais<br />
profunda imersão. “Tais projetos tornam-se, portanto, mais sinestésicos, aguçam<br />
uma maior quantidade de sentidos possíveis, ampliam as possibilidades de<br />
representação e possibilitam um aumento da eficácia da comunicação”.<br />
Ainda de acordo com as autoras, “nessas interrelações do sistema sígnico,<br />
traduções intersemióticas são realizadas de matriz para matriz, de meio para<br />
meio, em um processo constante de crescimento e criação.” (ABAD, BRAIDA&<br />
PONTE, (2009, p. 2197). São os sistemas compostos pelos signos sonoros,<br />
visuais, verbais, olfativos, gustativos e táteis, quase sempre misturados e<br />
articulados entre si, materializados nos artefatos resultantes dos processos de<br />
projeto, que se denominam sistemas híbridos do design.<br />
Hierarquia, significado e pragmatismo são caminhos necessariamente percorridos<br />
pelo design de informação, sem priorizar um em detrimento do outro, pois todos<br />
têm a mesma importância, já que, metodologicamente, viabilizam as respostas<br />
às perguntas: o quê, como, e para quê? A hierarquia, ou ordem de importância,<br />
é que determina o assunto que tem mais interesse para um dado auditório,<br />
(PERELMAN, 2005), ou para uma dada comunidade (com características<br />
culturais, ambientais e políticas específicas). Dependendo do auditório, ou da<br />
comunidade, o modo de aceitar ou reter a informação é completamente diferente,<br />
Daí que o modo de comunicá-la também tem importância fundamental.<br />
Neste ponto, chega-se à idéia de significado, pois do ponto de vista semiótico,<br />
o modo como os intérpretes lêem os “signos interpretantes” (PIERCE, 1979),<br />
ou o modo como os signos reunidos produzem sentidos para os intérpretes<br />
depende também do modo como estão dispostos nos artefatos criados, ou<br />
ressignificados. Como observa Walther-Bense (2000, p.85): “o homem não se<br />
relaciona apenas com as coisas, mas também com os signos. Seu conhecimento<br />
é muito mais um mundo de signos do que um mundo de objetos”.<br />
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Sistemas intersemióticos a favor da comunicação<br />
McLuhan (1969), nas décadas de cinquenta e sessenta, estudou e discutiu o<br />
papel e o impacto dos novos meios de comunicação. Afirmava que o jornal<br />
(aqui entendido como veículo propagador de informação) já, naquela época,<br />
tendia para uma forma participante. O autor já chamava a atenção para a<br />
imagem em mosaico. Dizia, contudo, que a relevância não estava tanto na<br />
imagem, mas no recorte que era dado aos acontecimentos. “Como massa de<br />
tópicos descontínuos e desconexos... que acolhe a inclusão de muitas tribos<br />
e a diversidade das visões particulares”, (MCLUHAN, 1969, p. 242).<br />
Significava uma participação efetiva da comunidade leitora ou decodificadora, uma<br />
vez que intensificava a relação entre palavra e imagem, através da valorização<br />
de elementos estéticos. “Na verdade, quando o autor se refere a esse mosaico<br />
como “ícone estrutural do jornal”, forma e conteúdo se congraçam e aí já se<br />
está, nos dizeres de McLuhan, no campo da” poética do jornal”.<br />
Pensar em como interpretar esse processo de comunicação e de que maneira<br />
isso pode representar a vida social, política e econômica da comunidade, bem<br />
como o modo como comunicar um conteúdo - para que fique prazeroso na<br />
leitura - deve ser um atrativo para os designs na composição gráfica. Tratase<br />
da manipulação de aglomerados de signos, no sentido de gerar unidades<br />
significantes, converter necessidade em conceito e conceito em um objeto que<br />
participará do cotidiano da comunidade.<br />
Um design de informação deve-se considerar um tradutor, um materializador de<br />
idéias, capaz de fazer um tipo de interface que torna uma embalagem num código,<br />
que elabora um rótulo que indica o conteúdo daquele volume, sua procedência<br />
e forma de abrir, sugerindo o uso. A ideologia desse diagramador que acaba de<br />
ser chamado de “tradutor”, mas que está mais para um reeditor, é alimentada<br />
pela apropriação de diversas linguagens que vão servir para comunicar algo<br />
a outro. Essas linguagens utilizadas para estabelecer a comunicação são as<br />
ferramentas de uma diagramação que se pode chamar de generosa.<br />
É generosa porque vai estreitar a relação entre indivíduos. Vai facilitar e estabelecer<br />
contato direto, sincero e saudável para um único fim: comunicar, transmitir<br />
e instruir, tendo a generosidade como fio condutor. Até na forma subliminar<br />
pode-se admitir o uso da generosidade para aproximar a mensagem ao leitor.<br />
Quase como sussurrar ao ouvido de alguém a explicação do conteúdo escrito,<br />
da história contada. Pode-se chamar e marcar a diagramação generosa como<br />
uma atividade da comunicação que contribui para o crescimento das pessoas,<br />
por propiciar o conhecimento e aliá-lo à satisfação que gera uma boa leitura.<br />
Na passagem do movimento concreto para o neo-concretismo, artistas brasileiros<br />
como Amilcar de Castro, escultor que marcou a história da diagramação da<br />
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196
notícia, compartilhavam a compreensão comum da interferência da arte na vida<br />
cotidiana, tentavam provar que a arte tinha que ser mais sensível e de maneira<br />
indelével registraram uma época com a geometria sensível. (COUTINHO in<br />
PUCU, 2008, p 225). Assim, esse marco na história da diagramação pode ser<br />
explicado como uma entrada de ar novo, que veio arejar os textos, as notícias,<br />
facilitando a leitura. Tanto entre as colunas de texto que compõem as colunas<br />
ou até mesmo em grandes áreas abertas, os espaços em branco levam o leitor<br />
ao prazer de ouvir o eco das palavras que passeiam na sua mente, enquanto<br />
formam opinião e significado próprios.<br />
Deste modo, podemos entender a generosidade como uma ação que mais<br />
se confunde com um sentimento capaz de inspirar diversas manifestações da<br />
arte. Estaria aqui a grande diferença entre aqueles que defendem que a arte<br />
deveria seguir uma teoria, que posteriormente se aplicaria a situações com<br />
fins utilitários, para o cumprimento de uma função, com aqueles que acreditam<br />
numa fusão entre arte e vida. Sem a preocupação em dar utilidade à arte e sim<br />
tornar o útil artístico. A pretensão é obedecer ao olhar, é alcançar a sensibilidade<br />
estética, através da largueza de percepções e pensamento visual e utilizá-la<br />
a favor da comunicação. É como converter num único ato a experimentação e<br />
experimentar-se. Como se fosse impossível separar o ser do fazer.<br />
A prática da diagramação como inclusão<br />
Conforme Bocchini (2011, p. 4), “a leitura rápida e compreensiva deveria ser um<br />
objetivo do ensino e deveria ser favorecida pelo projeto gráfico dos livros didáticos”.<br />
A autora chama atenção para alguns aspectos que confirmam a relevância das<br />
questões discutidas neste trabalho. Segundo ela, a programação visual do livro<br />
exerce função determinante no processo de ensino/aprendizagem. “Não só a<br />
composição do texto e a diagramação, mas também o formato do livro e a forma<br />
de encadernação podem facilitar ou dificultar a leitura.” (BOCCHINI, 2011, p. 5).<br />
Tendo em vista as palavras de Bocchini sobre a leitura e o conseqüente<br />
aprendizado do que se lê, pode-se afirmar que a diagramação é importante<br />
para a clareza e eficiência da leitura que conduz ao aprendizado, pois existem<br />
elementos sobre os quais é preciso decidir quando se pretende garantir a leitura<br />
confortável para crianças e leitores em desenvolvimento. Entre os elementos<br />
listados pela autora, figuram: o tipo das letras e suas variações (tipologia), a<br />
entrelinha, o comprimento da linha, a regularidade da composição, a relação de<br />
contraste entre o texto e o fundo. Ainda pode-se incluir, como fator importante,<br />
o tipo de alinhamento, adequado ao conteúdo e à quantidade de texto.<br />
Para manter o objetivo principal que é criar interesse visual, o cuidado deve<br />
começar quando se ajustam as proporções das margens, ou quando uma<br />
estrutura assimétrica cria mais espaço em branco, onde os olhos podem<br />
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descansar. Ou ainda, quando tratamos a importância do conteúdo. É possível<br />
afirmar que existe mesmo uma espécie de hierarquia geral dentro de uma<br />
página diagramada. Tal hierarquia poder ser notada em pequenas alterações<br />
no peso dos elementos, na ênfase ou no alinhamento que podem criar enormes<br />
diferenças e, assim, fazer com que o menos seja mais. Isto é, que a conjugação<br />
entre os elementos visuais favoreça o maior aproveitamento da leitura enquanto<br />
forma de apreensão de conteúdos no momento da leitura.<br />
É também necessário analisar os aspectos do livro e as regras básicas da<br />
legibilidade, entre as várias características capazes de tornar um livro mais<br />
ou menos adequado ao que se propõe, podemos listar: curvatura da página,<br />
que pode dificultar a leitura causando desconforto ao aluno; incidência de luz,<br />
o que, a depender do arranjo visual, pode afetar a compreensão; opacidade<br />
e gramatura do papel, o que pode, por exemplo, evitar sombras de textos e<br />
figuras do verso ou da página seguinte; tamanho do livro, para o manuseio,<br />
por exemplo, ou a colocação na mesa, carteira e demais suportes escolares;<br />
peso, que torna o transporte mais ou menos penoso, lembrando que no caso<br />
brasileiro, os estudantes têm que levar e trazer os livros de casa para a escola.<br />
Voltando a McLean (1997, p 44-45), há três regras básicas a serem observadas<br />
quando se pretende uma boa legibilidade. São elas:<br />
o tipo sem serifa (pequenos prolongamentos nas extremidades das letras)<br />
é intrinsecamente menos legível do que o serifado; um tipo romano bem<br />
desenhado em maiúsculas e minúsculas é mais fácil de ler do que suas<br />
variações (itálico, negrito, só maiúsculas, versões condensadas ou expandidas);<br />
as palavras devem estar próximas umas das outras (separadas tanto quanto<br />
a largura da letra “i”) e deve haver mais espaço entre as linhas do que entre<br />
as palavras. Mas acima de tudo garantir que o projeto gráfico antecipe e<br />
complemente o que está representado no conteúdo.<br />
Conforme Jan Tschichold (2007, p. 31), um diagramador de livro deve ser um servidor<br />
leal e fiel da palavra impressa. É sua tarefa é criar um modo de apresentação, cuja<br />
forma não ofusque o conteúdo e nem seja indulgente com ele. O autor faz uma<br />
série de recomendações, tais como: escolher uma fonte bem ajustada ao texto;<br />
projetar uma página primorosa, idealmente legível, com margens harmonicamente<br />
perfeitas, impecável espacejamento de palavras e letras; escolher corpos de tipo<br />
ritmicamente corretos para folhas de rostos e títulos, e compor as páginas em que<br />
há títulos de seção e de capítulos genuinamente belas e graciosas, no mesmo tom<br />
da página de texto. Por esses meios um diagramador de livro pode, segundo o<br />
autor, contribuir muito para a fruição de uma valiosa obra da literatura.<br />
Do mesmo modo, o livro didático precisa ser dinamizado por recursos hipertextuais,<br />
por exemplo, se não quiser perder a atenção do estudante. Hipertexto aqui se<br />
refere à utilização interativa de elementos visuais constantemente associados<br />
a conceitos, tabelas, ilustrações, dados históricos e exemplos.<br />
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Visto como mero recurso facilitador da apreensão da informação, o design da<br />
informação pode ir além, a fim de produzir conhecimento e descodificar ou<br />
traduzir conteúdo específico que antes atendia exclusivamente a especialistas de<br />
determinada área de entendimento e pensamento. O design da informação situa-se<br />
na fronteira ou entroncamento dos saberes, pois pode esmiuçar uma informação<br />
complexa e torná-la simples para, assim, gerar um entendimento geral ou que, de<br />
certa forma, atinja uma grande maioria de leitores ou prováveis leitores.<br />
Ora, quando a leitura forma pessoas capazes de pensar, criar e desenvolver,<br />
é imprescindível que a percepção de mundo do leitor esteja coerente com a<br />
realidade em que ele vive. Assim, para formar um leitor através da linguagem<br />
gráfica é necessário e fundamental verificar a capacidade que este tem de<br />
interpretar e compreender signos. Para então se chegar ao pragmatismo, que<br />
é a finalidade última, o momento em que se destina os sistemas de informação<br />
ao seu público leitor.<br />
Além de perguntar e responder a estas perguntas, o quê, como e para quê,<br />
a intenção desta reflexão é também identificar as principais dificuldades da<br />
leitura que podem estar relacionadas com a diagramação e, ainda, indicar<br />
algumas premissas básicas para um manual de avaliação de material didático<br />
e livros instrutivos. Construir parâmetros e regras que irão conduzir os manuais<br />
de construção da forma desse material.<br />
A leitura entre a educação e a escola<br />
Parte-se do pressuposto de que o hábito da leitura se adquire na escola, através<br />
de sistemas educacionais que, de forma estratégica, hão de ser determinantes<br />
no aprendizado e na formação dos indivíduos, de modo que estes se tornem<br />
socialmente incluídos. A educação, sobretudo em uma sociedade como a<br />
brasileira que ainda possui contingentes fora da escola, ou que, grande parte<br />
se evade antes mesmo de completar os estudos fundamentais, precisa de<br />
estratégias variadas de inclusão e de viabilização do acesso à cidadania e<br />
acesso ao livro é uma delas.<br />
A tão sonhada mobilidade social, no sistema capitalista, depende sobremaneira<br />
da escolarização. Pelo menos a inclusão mais consistente, regular e duradoura. O<br />
aprendizado que se oferece com a escolarização é transmitido em grande parte<br />
através de livros didáticos e paradidáticos. A leitura e consequente absorção<br />
ou apreensão do saber que está nos livros pode ser facilitada ou dificultada<br />
pela forma como se apresentam os textos, ou seja, pela diagramação, pelo<br />
projeto gráfico, arranjo ou programação visual.<br />
Quando se pensa em usar a leitura para promover o saber é necessário estreitar<br />
os laços entre o design de informação e o design instrucional ou educativo.<br />
Há de se usar este novo elemento transformador como aliado na educação<br />
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de cidadãos que, através do conhecimento e da consciência de seus direitos,<br />
compactuem para construir uma igualdade. Como sabiamente pontua De Masi<br />
(2010, p. 119-<strong>12</strong>0), “não vale invocar o retorno ao ‘direito natural’. É preciso<br />
um ‘direito racional’ e uma nova pedagogia que eduque os jovens para se<br />
transformarem em cidadãos, não em súditos.”<br />
Há, todavia, educação sem haver escola, conforme ensina Carlos Brandão (1983,<br />
p. 28). O educador defende o não abandono da educação na sua forma livre por<br />
ser a rede de trocas de saberes mais universal e mais persistente na sociedade<br />
humana. Ele afirma que o aprendizado é adquirido em espaços diversos, onde<br />
pessoas se reúnem e interagem em variadas atividades, ocorrendo assim a<br />
relação entre teoria e prática.<br />
Um canal possível para essa educação livre é a leitura. Pensar em formas de<br />
facilitá-la é garantir a emancipação intelectual das pessoas para levá-las a uma<br />
autonomia prática. Numa visão macro, ainda segundo Brandão (1983, p. 28),<br />
a desigualdade da educação aparece quando surgem e se caracterizam os<br />
diversos tipos e graus de saber - já que com o capitalismo surge a possibilidade<br />
de mobilidade social por meio da educação de massa - isto é, uma situação<br />
provocada pela necessidade e interesse político de controle da sociedade, a<br />
partir do qual verifica-se a dicotomia entre o saber e poder.<br />
Pensar a visão micro da educação que antes produzia a igualdade, e que hoje<br />
promove a desigualdade social como consequência da utilização da escola<br />
e dos sistemas pedagógicos para servir ao poder, é pensar num recomeço<br />
com a criação de novos padrões de organização. “Incorporar as visões e as<br />
razões da sociedade nos assuntos antes reservados aos governos, significa<br />
aumentar a possibilidade e a capacidade de as populações influírem nas<br />
decisões públicas – em poderar as comunidades, distribuir e democratizar o<br />
poder”. (SILVEIRA, ano, p. 46)<br />
É possível sugerir que pessoas se organizem para exigir que lhes chegue às<br />
mãos e aos olhos a informação, inclusive de forma organizada e adequada<br />
às suas realidades? Pode-se caracterizar esta prática como exemplo de uma<br />
nova dinâmica democrática? A perspectiva de ativar as consciências através<br />
de ações como o design de informação é como refutar a importância do<br />
desenvolvimento local, no momento presente.<br />
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REFERÊNCIAS<br />
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sentidos. Anais do 5º Congresso Internacional em Pesquisas em Design. Bauru,<br />
2009. Disponível em < http://www.raquelponte.com/publicacoes/sistemas_<br />
hibridos_design.pdf>, acesso em 05 de setembro de 2011.<br />
BOCCHINI, Maria Otília. Legibilidade Visual e Projeto Gráfico na Avaliação de<br />
Livros Didáticos pelo PNLD. Disponível em , acesso em 9 de outubro de 2011 .<br />
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />
DE MASI, Domenico. O Futuro Do Trabalho. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2010.<br />
MCLEAN, Ruari. The Thames and Hudson Manual of Typography. Londres:<br />
Thames and Hudson, 1997<br />
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.<br />
Traduzido por Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1969.<br />
PEIRCE, C S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />
PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: A nova retórica.<br />
Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2005.<br />
SILVEIRA Caio. “Desenvolvimento local e novos arranjos socioinstitucionais:<br />
Algumas referências para a questão da governança.” In DOWBOR & POCHMANN<br />
(orgs). Políticas para o Desenvolvimento Local. São Paulo: Perseu Abramo, 2010.<br />
TSCHICHOLD, Jan. A forma do livro, ensaios sobre tipografia e estética do livro,<br />
Ateliê Editorial, 2007.<br />
WALTHER-BENSE, E. A teoria geral dos signos: introdução aos fundamentos da<br />
semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000.<br />
Reconhecimentos:<br />
Trabalho desenvolvido no Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento<br />
Local do Centro Universitário Augusto Motta UNISUAM, Rio de Janeiro, Brasil<br />
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RESUMO:<br />
“MESTRES POPULARES” E A ESCOLA NO BRASIL<br />
Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/20<strong>12</strong>) – ISSN 1806 - 9142<br />
Ricardo do Carmo 1<br />
Katia Avelar 2<br />
Maria Geralda de Miranda 3<br />
Pretende-se com o presente trabalho refletir acerca da importância social<br />
dos chamados “mestres populares”, buscando demonstrar as razões de sua<br />
marginalização histórica, bem como investigar as razões pelas quais os seus<br />
saberes não encontram espaço no sistema educacional brasileiro, isto é, na<br />
escola. Por que isso acontece e em que medida a escola se tornaria mais<br />
enriquecida e enriquecedora com o aproveitamento desses mestres é também<br />
uma das questões debatidas neste estudo.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Escola, mestres populares, educação, cultura popular.<br />
ABSTRACT:<br />
This work aims at studying the social importance of the so-called “popular<br />
masters”, by showing the reasons for their historical discrimination as well as<br />
an investigation about why their know-how is not inserted within the Brazilian<br />
educational system, that is, the school. Why this happens and to what extent the<br />
school could be enriched and enriching with the proper use of these masters<br />
are also questions discussed in the present work.<br />
KEYWORDS:<br />
School, popular masters, education, popular culture.<br />
1 - Introdução<br />
Luís Rodolfo Vilhena (1997, p. 284), estudioso da cultura popular, identifica na<br />
dificuldade de se compreender o lugar do popular na sociedade brasileira<br />
o ponto reflexivo crítico para se esclarecer determinados processos de<br />
marginalização que envolvem tudo o que é criado pelos estratos mais humildes<br />
e mais conspícuos do Povo.<br />
1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.<br />
202
O pesquisador alerta que mesmo em um período de sucesso como o chamado<br />
Movimento Folclórico, fase que vai de 1947 a 1964, essa cultura, que representa<br />
os saberes do povo, esteve sistematicamente fora das universidades. Revela<br />
que as pesquisas referentes a esses saberes foram “frequentemente vistas<br />
como uma disciplina ‘menor’ e que o estudioso desse campo de estudo se<br />
tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico” (VILHENA, 1997, p.11).<br />
Tendência recorrente também nas observações de Renato Ortiz (VILHENA,<br />
1997 b, p. 51) ao indicar que “os pesquisadores e as disciplinas dedicadas a<br />
esse estudo, historicamente, costumam ocupar uma posição marginal”.<br />
A posição marginal imposta à cultura popular e o seu não aproveitamento dentro<br />
da escola formal é fruto de preconceito e/ou da discriminação. A sociedade<br />
brasileira e os responsáveis por pensar e elaborar leis relativas à educação<br />
precisam reconhecer e corrigir esse erro, pois os personagens que compõem<br />
o universo do conhecimento não-formal, no mínimo, atualizam o discurso da<br />
cultura em função do desprendimento em relação às leis de mercado e a<br />
mesmice da sociedade de consumo, apenas para citar uma contribuição no<br />
processo de liberdade de criação.<br />
Neste percurso, para além das discriminações e preconceitos, é notório a<br />
riqueza da diversidade cultural do Brasil e a necessidade de interação entre a<br />
cultura erudita e a cultura popular no interior das escolas – local que idealmente<br />
elegemos para aprender – pois uma escola que não interage com o espaço<br />
em que está localizada, ou que não promove o entrelaçamento de saberes, ou<br />
o conhecimento oriundo da prática, está deixando de cumprir a sua função de<br />
formar cidadãos. A escola que temos é centralizadora e sua pedagogia (que<br />
se estiola em métodos muitas vezes obsoletos) não interage com os saberes<br />
dos “mestres populares”, nem valoriza os conhecimentos empíricos.<br />
O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1985, p. 9) ensina que existe educação<br />
sem haver a escola e que “não há uma forma única nem um único modelo de<br />
educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja<br />
o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional<br />
não é o único praticante”. A educação existe também, portanto, segundo<br />
Brandão, onde não há escola, longe do modelo de ensino clássico. Isso quer<br />
dizer que sempre haverá espaço para o pensamento fora da academia e que<br />
os saberes dos “mestres populares” são legítimos.<br />
2 – A velha educação e as novas perspectivas<br />
Das primeiras missões doutrinárias dos padres da Companhia de Jesus à<br />
alfabetização dos cortadores de cana de Pernambuco, segundo o método<br />
transformador de Paulo Freire, quantos avanços e rupturas ocorreram no processo<br />
de formação da educação e da escola no Brasil! Da primeira escola elementar<br />
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asileira, em Salvador, passando pelo primeiro professor nos moldes europeus,<br />
Vicente Rodrigues, que se dedicava ao ensino e à propagação da fé religiosa,<br />
o processo de ensinar e aprender não mudou tanto como se poderia supor. Os<br />
versos de Anchieta o mar apagou, mas é fácil constatar entre nós, ainda hoje,<br />
a influência daqueles padres e o velho método da repetição, memorização e<br />
provas periódicas.<br />
Com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, saem de<br />
cena nossos primeiros “mestes” e a educação brasileira, pela primeira vez, é<br />
organizada pelo Estado, que paga aos professores, proíbe certos livros, cobra<br />
impostos e faz leis. Como não há escolas superiores no país, aqueles que<br />
podiam saiam para estudar na universidade de Coimbra, enquanto o restante<br />
permanecia aqui se dedicando à agricultura e ao funcionalismo público.<br />
O panorama começa a mudar a partir da chegada da Família Real Portuguesa,<br />
em 1808, e durante o Império, com algumas inovações técnicas e institucionais.<br />
Em 1827, o método de aprendizagem é o ensino mútuo: professores orientam os<br />
melhores alunos que repassam aos outros alunos. É criada a primeira Lei Geral de<br />
Ensino que, entre outras coisas, abre as portas da sala de aula para as meninas.<br />
Com a Lei Geral teve início um grande processo de reestruturação da escola e<br />
da formação de professores. “Com a criação das escolas normais, pelo mesmo<br />
Ato, houve uma transformação sociológica. Os professores se obrigavam a se<br />
reestruturar e se preparar profissionalmente para exercer as atividades de um<br />
verdadeiro mestre” (JORDÃO, 2002, p.3). Ainda em 1827, são criadas as duas<br />
primeiras faculdades brasileiras: a de Direito de Olinda e a de São Paulo. A<br />
primeira turma de bacharéis em ciências jurídicas formou-se em 1832.<br />
Entre 1868 e 1876, “profundas mudanças ocorreram dentro das instituições<br />
de ensino, entre elas, a elimininação dos castigos corporais impostos pelos<br />
professores aos alunos. O castigo foi substituido pela “lição de coisas” (JORDÃO,<br />
2002, p. 4 ). A Proclamação da República trouxe nova alteração na grade<br />
curricular e, em 1893, foi introduzido, entre outras disciplinas: “português e<br />
literatura portuguesa e nacional, caligrafia, música, ginástica, trabalho de agulha<br />
e economia doméstica para o sexo feminino” (JORDÃO, 2002, p.4).<br />
Nos anos 30, surge a figura de Anísio Teixeira, pioneiro na implantação de<br />
escolas públicas de todos os níveis. Na sequência, são inauguradas escolas<br />
importantes: Colégio Pedro II (1937), como colégio-modelo, e o SENAI (1942),<br />
instituindo o ensino profissionalizante para formar mão-de-obra para a indústria<br />
crescente no país.<br />
Em 1963, após alfabetizar, em tempo recorde, cortadores de cana no interior do<br />
Rio Grande do Norte, Paulo Freire recebe convite do governo para reformular a<br />
alfabetização de adultos no país. Porém, pouco tempo depois, estaria exilado. Pela<br />
sua importância merece um capítulo a parte na história da educação brasileira.<br />
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Com o Golpe Militar foram retiradas do currículo as disciplinas de História e<br />
Geografia e substituídas por Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica. A<br />
explicação é que eram consideradas reflexivas. Ainda na onda da ditadura<br />
militar criaram o vestibular, como uma forma de limitar o acesso à universidade.<br />
A alegação foi a falta de vagas; criar novas universidades, ninguém pensou. Até<br />
porque para muitos militares as universidades eram um antro de comunistas.<br />
A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), uma das mais importantes<br />
para a educação no Brasil, foi citada pela primeira vez na Constituição de<br />
1934, mas só foi criada em 1961, seguida por um versão em 1971, que vigorou<br />
até a promulgação da mais recente em 1996. Baseada no princípio do direito<br />
universal, a LDB de 1996 trouxe diversas mudanças em relação às leis anteriores:<br />
a inclusão da educação infantil (creches e pré-escolas), o ensino fundamental<br />
obrigatório e gratuito, a formação dos especialistas da educação em curso<br />
superior de pedagogia ou pós-graduação. A lei também obriga a União a gastar<br />
no mínimo 18% e os estados e municípios no mínimo 25% de seus respectivos<br />
orçamentos, na manutenção e desenvolvimento do ensino público.<br />
Em 1998, com o ENEM é criada uma cultura de avaliação no Brasil. Em 2004, o<br />
PROUNI (Programa Universitário Para Todos) vincula a concessão de bolsas em<br />
faculdades e universidades brasileiras ao desempenho do ENEM, popularizando<br />
o exame. Em 2007, o governo cria o IDEB (Índice de Desenvolvimento da<br />
Educação Básica) que atribui notas de 0 a 10 às escolas do País.<br />
Esta rápida trajetória da educação traçada até aqui demonstra que as oportunidades de<br />
acesso à aquisição de conhecimentos oferecidas pela escola formal indubitavelmente<br />
tende a ser acessível a todos. Por outro lado, o movimento da educação não-formal,<br />
embora acontecendo através de diferentes práticas que jamais foram consideradas<br />
como educação – por não obedecerem a uma série de requisitos formais –na<br />
prática, também, construiu e continua construindo diferentes modos de vivências<br />
e saberes que jamais foram aplicados na escola formal.<br />
No entanto, a prática educativa que ocorre nas escolas começa timidamente<br />
a incorporar conhecimentos elaborados fora de sua pedagogia clássica em<br />
função de novas leis, projetos de leis, decretos e ações governamentais que,<br />
embora aparentemente voltadas apenas para a área cultural, se mostram de<br />
grande valor para a educação escolar.<br />
Em 2000, é instituído por meio do Decreto nº 3.551, o Programa Nacional do<br />
Patrimônio Imaterial – PNPI, que viabiliza projetos de inventário, registro e ações<br />
de salvaguarda de proteção aos bens culturais imateriais, ou seja, aquele<br />
que não é feito de matéria, ou intangível, que não pode ser tocado. Segundo<br />
a lei, após identificação através de inventário, os bens culturais de natureza<br />
imaterial deverão ser classificados em Livro de Registro do IPHAN, segundo<br />
os temas: SABERES – para os conhecimentos e modos de fazer enraizados<br />
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no cotidiano das comunidades. CELEBRAÇÕES – para os rituais e festas que<br />
marcam vivência coletiva, religiosidade entretenimento e outras práticas da vida<br />
social. FORMAS DE EXPRESSÃO – para as manifestações artísticas em geral; e<br />
LUGARES – para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas<br />
ou reproduzidas práticas culturais coletivas.<br />
Com a criação do PNPI, o governo brasileiro sinaliza finalmente que começa<br />
perceber a importância do patrimônio imaterial, ao qual se inclui os saberes<br />
oriundos de mestres populares. Mas não para por aí, a promulgação da lei<br />
10.639 de 2003 que prevê o ensino da história e da cultura africanas e afrobrasileira<br />
nos variados níveis de ensino do Brasil é mais uma prova. Com a<br />
intenção clara de reduzir as dívidas históricas do Brasil consigo próprio e<br />
especialmente para com os africanos e afro descendentes, o governo ao criar<br />
a lei demonstra comprometimento com essa parcela fundamental da nossa<br />
história e da nossa cultura que nunca teve espaço dentro das escolas.<br />
Outra iniciativa muito importante é o projeto de lei nº 1176, que institui o<br />
programa de proteção e promoção dos “mestres dos saberes e fazeres das<br />
culturas populares”. De acordo com a medida, aqueles que forem reconhecidos<br />
como mestres receberiam suporte financeiro e técnico para a manutenção das<br />
atividades culturais das quais são portadores. Receberiam também preparação<br />
técnica para que sejam ministradas oficinas e cursos sobre “gerenciamento”<br />
das expressões de que são portadores, entre outros benefícios.<br />
Ações assim, se instituídas, viriam ao encontro daquilo que imaginou Paulo<br />
Freire: a escola como local de diálogo de diferentes formas de expressão<br />
cultural, mas principalmente um lugar conectado com a realidade.<br />
3 – A formação dos mestres populares<br />
Segundo a filosofia popular “um Mestre já nasce feito”. A frase parece partir<br />
de um conceito fechado que inviabiliza o ato de ensinar-e-aprender que<br />
representa a essência da Educação, pois se o mestre já nasce feito é sinal de<br />
que já nasce sabendo e não precisa aprender. A questão parece ser outra. O<br />
pertencimento a uma tradição não quer dizer que o conhecimento de mestres<br />
populares seja algo de nascença, são saberes construídos. Tanto mestres<br />
populares como mestres acadêmicos precisam construir seus saberes para<br />
chegar a ser considerados mestres.<br />
Fazendo as contas, o tempo para a formação de um mestre acadêmico leva em<br />
média uns dezoito anos. Sendo nove no ensino fundamental, três no ensino médio,<br />
mais ou menos quatro na graduação e dois no mestrado. Quanto aos mestres<br />
populares, a história não é diferente. Cáscia Frade, conhecida pesquisadora<br />
de cultura popular, relata a experiência recolhida <strong>jun</strong>to a um Mestre de Folia<br />
de Reis, em palestra proferida na UFRJ, em 25/11/2010.<br />
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Frade expõe os ensinamentos e estudos que criaram as condições para que João<br />
Guedes alcançasse o status de Mestre de Folia de Reis. Relata a pesquisadora<br />
que João Guedes vivia no Catumbi, na cidade do Rio de Janeiro, mas que agora<br />
está em Jacarepaguá. O grupo dele se chama Folia de Reis Estrela do Oriente.<br />
“Ele desde pequenininho acompanhava o avô. O pai também participava do grupo<br />
desse avô. E ele pequenininho saia atrás brincando de ser folião de reis: arranjava<br />
umas latas velhas para fazer os instrumentos de percussão, arranjava papelão<br />
desenhava uma cara para fazer a máscara do palhaço”, (FRADE, 2010, p. 155).<br />
A avó fazia umas roupas de pano velho pra ele e ele saia brincando de folia.<br />
Depois, já maiorzinho, com dez para onze anos, o pai disse você agora já<br />
pode entrar para participar com a gente, mas você vai tocar um instrumento<br />
musical que não interfere muito, como um reco-reco, por exemplo: um<br />
triângulo, que não vai trazer uma interferência musical muito grande. Ele<br />
então já vestido de folião de reis entrou no grupo tocando. Aí a história vai,<br />
até que aos quinze anos, o pai disse para ele tocar viola e disse: você agora<br />
vai começar a estudar. Então ele estudava. Assim como a gente estuda os<br />
textos que a gente tem que apresentar nas nossas aulas, nos nossos trabalhos<br />
acadêmicos, ele estudava. E o pai tomava a lição: Ah, me deixa ver se você<br />
já sabe. Ih, você errou... Então ele estudou. Aí, já com os seus vinte e tantos<br />
anos, o pai o colocou para cantar como contramestre e ele foi acompanhando<br />
o pai. Até que o pai ficou idoso e um dia o pai disse: Você já tem condições<br />
de levar esta folia. Aí ele assumiu essa folia. (FRADE, 210, p. 155).<br />
A formação do mestre João Guedes, segundo depoimento, revela um aprendizado que<br />
vem desde a mais tenra infância, no núcleo familiar consangüíneo. Esse aprendizado<br />
vai se dando de uma forma viva, participativa, ouvindo, fazendo, tocando, cantando,<br />
embora com o aspecto teórico de estudar as profecias e os cânticos.<br />
Vale observar que o precioso na formação informal é o desprendimento e a falsa<br />
impressão de descompromisso que, durante a aprendizagem, gera prazer. Ao<br />
contrário do que acontece na educação clássica, ou seja, na escola, onde tudo<br />
é obrigação, parece penoso e acaba por produzir enfado e falta de vontade<br />
nos alunos, que terminam taxados de preguiçosos e desinteressados. Brandão<br />
(1985, p. 18-9) nos mostra que nas aldeias tribais,<br />
as pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de<br />
quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. (...) São raros os tempos<br />
especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. (...) Todos os<br />
agentes desta educação de aldeia criam de parte a parte as situações que,<br />
direta ou indiretamente, forçam iniciativas de aprendizagem e treinamento.<br />
Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de<br />
camaradagem ou de amor. Quase sempre não são impostas e não é raro<br />
que sejam os aprendizes o que tomam a seu cargo procurar pessoas e<br />
situações de troca que lhes possam trazer algum aprendizado.<br />
As dúvidas quanto à importância desses mestres do povo, pessoas normalmente<br />
muito simples, que acabam sendo obrigadas a restringir sua atuação à comunidade,<br />
vizinhos ou parentes, são recorrentes, mas questionamentos duros que parecem<br />
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estritos à cultura popular e a seus mestres, por vezes, também atingem a<br />
academia e seus mestres e doutores. Com um texto bastante contundente, o<br />
indiano Osho, professor de filosofia que acabou se transformando em guru,<br />
põe em cheque a formação acadêmica vigente, dizendo o seguinte:<br />
É só visitar universidades e ver que tipo de trabalho criativo é feito lá. Milhares de<br />
tratados estão sendo feitos; as pessoas obtêm diplomas de doutor, de mestre,<br />
diplomas importantes. Mas ninguém chega a saber o que acontece com suas<br />
teses; elas não param de aumentar a pilha de lixo das bibliotecas. Ninguém<br />
jamais as lê, ninguém jamais se sente inspirado por elas – sim, algumas pessoas<br />
as lêem; essas são o mesmo tipo de pessoas que farão outra tese. Logicamente,<br />
os pretendentes a títulos de doutor as lerão (OSHO, 1999, p. 92).<br />
Segundo ainda o professor indiano o que ocorre nas universidades é atividade<br />
intelectual. Mas “o intelecto é apenas um jogo mental. Ele não pode ser criativo”.<br />
Criatividade, segundo ele, significa “trazer à existência aquilo que é novo; abrir<br />
caminho para que o desconhecido penetre o conhecido”.<br />
Mas afinal quem são os mestres populares, estes que aprendem tudo fora da<br />
escola? Quais são seus saberes e por que não são aproveitados nas escolas<br />
tradicionais? Por que será que, de outra maneira, mas da mesma forma, os<br />
saberes de mestres acadêmicos também não chegam ou não servem ao povo? Os<br />
saberes dos mestres populares ou acadêmicos se aplicam indiscriminadamente<br />
a qualquer tipo de sociedade?<br />
4 - Os saberes dos mestres populares<br />
Mestres populares são aqueles que detêm o saber fazer, a memória social da<br />
comunidade e das suas tradições. São pessoas dotadas de saber notório, reconhecidas<br />
entre seus pares e por especialistas. Como já dissemos, esses mestres atualizam o<br />
discurso da cultura à medida que suas invenções não estão presas à homogeneização<br />
do mercado. Não que eles não sofram a influência do consumo, sofrem, mas não<br />
produzem tendo o lucro como a principal intenção. O conhecimento desses mestres<br />
normalmente faz parte de um “patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é<br />
defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo.<br />
Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais,<br />
domésticos ou nacionais”, (CASCUDO, 1972, p. 11).<br />
Um exemplo de saber ancestral e de importância notória tem como portadora a<br />
quilombola Maria Joaquina da Silva, conhecida como Dona Fiota. Conhecimento<br />
este que acabou gerando um fato inusitado que vale a pena registrar neste artigo,<br />
não só pelo conteúdo, mas por suas nuanças culturais e seu desdobramento<br />
fatal. Aconteceu num seminário organizado pelo IPHAN.<br />
Dona Fiota, na ocasião, discursou em gira da Tabatinga, uma língua afrobrasileira,<br />
de origem predominantemente banto, falada em parte do município<br />
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de Bom Despacho (MG). Foi a primeira vez que uma língua minoritária de base<br />
africana ocupou espaço público de dimensão nacional, tendo reconhecidas<br />
sua riqueza, sua função histórica e sua legitimidade. (BESSA, 2008, p.85).<br />
Em seu discurso, dona Fiota contou que os moradores da comunidade quilombola<br />
tinham percebido que a língua que os libertara estava ameada de extinção, porque<br />
não era mais usada por crianças e jovens. Por isso, a comunidade, aproveitando<br />
lei sancionada em 2003 que torna obrigatório o ensino de história e culturas<br />
afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, decidiu fortalecer<br />
em sala de aula a língua denominada gira da Tabatinga”. (BESSA, 2008, p. 86).<br />
Aprovando o pedido feito pela comunidade, a Secretaria Municipal de Educação<br />
se dispos a pagar uma professora de gira da Tabatinga. A escolhida foi a Dona<br />
Fiota. Mas o fato curioso senão lamentável aconteceu após o primeiro mês de<br />
trabalho, quando a Dona Fiota ao tentar receber seu pagamento, “ouviu do<br />
funcionário público encarregado do pagamento: “Ah, a professora é a senhora?<br />
Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma professora que é<br />
analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta que só os sábios podem dar: “Eu<br />
não tenho a letra. Eu tenho a palavra”.<br />
Dessa maneira, derrubou a postura quase racista que discrimina os que<br />
vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe saber sem escrita; que na<br />
situação em que se encontra, ela não precisa da letra, porque usa a palavra<br />
para transmitir seus saberes, trocar experiências e desenvolver práticas<br />
sociais. (BESSA, 2008, p. 86).<br />
Em relação ao aproveitamento desses saberes pela sociedade, é fundamental<br />
perceber que o conhecimento é algo sempre contextualizado, ou seja, o que a<br />
escola produz pode ser essencial a uma realidade e não ter nenhum valor em<br />
outra. “Na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode<br />
correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa<br />
que pode fazer” (BRANDÃO, 1985, p. <strong>12</strong>).<br />
Um exemplo interessante de que a educação não serve a todos de uma mesma<br />
maneira ocorreu ao longo do tratado de paz que alguns estados americanos<br />
assinaram com os índios das Seis Nações. Quando os governantes mandaram<br />
cartas aos índios oferecendo suas escolas de branco, os chefes responderam<br />
recusando, com o seguinte argumento:<br />
Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem<br />
para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios<br />
reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e,<br />
sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia<br />
de educação não é a mesma que a nossa. [...] Muitos dos nossos bravos<br />
guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa<br />
ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores,<br />
ignorantes da ida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome.<br />
Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana,<br />
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e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis.<br />
Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.[...]<br />
Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos<br />
aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores<br />
de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens que lhes ensinaremos<br />
tudo o que sabemos e faremos deles homens.” (BRANDÃO, 1985, p. 9).<br />
A carta dos índios aponta para as muitas formas de educação e as múltiplas<br />
visões de mundo. Demonstra como a educação existe de maneira diferente em<br />
mundos diversos. Os índios das Seis Nações disseram que a idéia de educação<br />
americana não é a mais apropriada para o modo de vida deles.<br />
Chegamos então ao ponto em que parece bastante oportuno colocar a questão<br />
já levantada pela professora Cáscia Frade, em artigo intitulado ‘Universidade e<br />
Cultura Popular’: “Se o conhecimento popular floresce à margem das instituições<br />
acadêmicas e se estas atuam a partir de projetos e programas políticos mais<br />
amplos, que importância teria, para ambos, uma possível aproximação?” Ela<br />
própria responde:<br />
5 - Considerações finais<br />
A abertura dos vetustos portais das organizações acadêmicas às expressões<br />
populares é interpretada pelos artistas populares como valorização, aceitação,<br />
legitimação de seu saber, conferindo status. (...) “Para a universidade acolher<br />
o conhecimento que se instaura distante dela soa como uma oportunidade<br />
de repensar suas práticas, de assumir uma postura crítica em face da busca<br />
do tão propalado ‘conhecimento científico’ e das ‘seqüelas’ que costumam<br />
dele decorrer” (FRADE, 2007, p. 162).<br />
Ao final de nosso percurso é possível perceber que a distância entre mestres<br />
populares e a escola formal no Brasil começa a se estreitar à medida que<br />
projetos de lei, decretos, atos e ações governamentais demonstram preocupação<br />
com a preservação e o aproveitamento do conhecimento informal; mas não só<br />
isso, apontam para o reconhecimento, a promoção e a proteção dos mestres<br />
da cultura popular. Por essas razões, parece possível dizer que o suporte para<br />
que esses saberes cheguem às escolas está sendo criado e em breve uma<br />
simbiose envolvendo a escola formal e a escola informal, mestres populares e<br />
mestres acadêmicos resultará num grande ganho para a educação brasileira.<br />
O que não pode é a escola no lugar de somar, dividir, no lugar de produzir<br />
o pensamento crítico, produzir exclusões e preconceitos e continuar fechada<br />
dentro dos seus muros. É preciso reconhecer que a produção do conhecimento<br />
é regida por motivações diversas, que outros saberes são permanentemente<br />
reinventados e que a sociedade e as suas multifacetadas formas culturais,<br />
bem como as suas forças produtivas “andam” e podem “atropelar a escola”,<br />
se esta se mantiver como instituição fechada, conservadora.<br />
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Por isso, <strong>jun</strong>to com Paulo Freire, imaginamos para o futuro uma escola sem os<br />
muros, onde a prática educativa formal e a informal se abasteçam mutuamente numa<br />
troca; onde o encontro de gerações, a mistura de idades, a não obrigatoriedade<br />
de freqüência, a ocorrência de ações e experiências em espaços e tempos mais<br />
flexíveis da prática informal vão ao encontro da escola tradicional, de suas salas<br />
de aula, laboratórios, quadras de esportes, biblioteca, pátio, cantina, refeitório,<br />
reinventando a escola próxima do ideal: de portas abertas à comunidade, com<br />
atividades que possibilitem o funcionamento, inclusive, nos finais de semana,<br />
aproximando a família da escola e trazendo para dentro do ambiente escolar a<br />
comunidade e seus mestres de saberes ancestrais.<br />
7. REFERÊNCIAS<br />
BESSA, José Ribamar. Patrimônio, Língua e Narrativa Oral. In: DODEBEI, Vera e<br />
ABREU, Regina (org.). E o Patrimônio? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. p.73-86<br />
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. 14ª ed. Rio de Janeiro:<br />
Brasiliense, 1985.<br />
CASCUDO, Câmara. Seleta. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1972.<br />
FRADE, Cáscia. Universidade e Cultura Popular. In: CAMPOS, Cleise. LEMOS,<br />
Guilherme e CALABRE, Lia (org.). Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio<br />
de Janeiro. Rio de Janeiro: <strong>UERJ</strong> / Rede Sirius, 2007. p. 157-165<br />
______. Anais do 3º Encontro com Mestres Populares. Rio de Janeiro, UFRJ, 2010.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.<br />
São Paulo: Editora UNESP, 2000.<br />
JORDÃO, Gilberto. O mestre e a escola no período colonial brasileiro. Disponível<br />
em . Acesso em 03/03/20<strong>12</strong>.<br />
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Pluralidade Cultural/ Orientação<br />
Sexual. Brasília: MEC / SEF, 1997.<br />
OSHO. Criatividade. São Paulo: Editora Cultrix, 1999.<br />
PORTAL DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível em . Acesso em 23/02/20<strong>12</strong><br />
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: O Movimento Folclórico Brasileiro 1947-<br />
1964. Rio de Janeiro: FUNART, 1997.<br />
______. Ensaios de Antropologia. Rio de Janeiro: Ed<strong>UERJ</strong>, 1997 b.<br />
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