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KENE MARUBO Raimunda Enes de Oliveira (Shapowã ... - UFF

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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Socieda<strong>de</strong> – www.uff.br/revistavitas<br />

Nº 1, setembro <strong>de</strong> 2011<br />

RESUMO<br />

<strong>KENE</strong> <strong>MARUBO</strong><br />

<strong>Raimunda</strong> <strong>Enes</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> (<strong>Shapowã</strong>) raimunda.acre@gmail.com,<br />

Andréa Martini dauakaro@yahoo.com.br &<br />

Sebastião Francisco <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> (Tamã Imy) 1<br />

O presente artigo registra grafismos chamados kene, entre especialistas da Terra<br />

Indígena Marubo do Rio Ituí, no estado do Amazonas, Brasil. Conhecido pelo<br />

mesmo nome, entre variadas socieda<strong>de</strong>s indígenas da família linguística Pano,<br />

o kene alia história, memória e arte. Cada um tem seu significado próprio. São<br />

usados na forma <strong>de</strong> pintura corporal, em objetos cotidianos e ocasiões rituais.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma linguagem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, tanto para o povo Marubo<br />

como para o patrimônio artístico e cultural. Sugere um intercâmbio necessário,<br />

entre formas <strong>de</strong> observar, experimentar e compreen<strong>de</strong>r o mundo.<br />

Palavras-chave: Grafismos; Kene; Marubo; Povos Indígenas; Rio Ituí;<br />

Amazônia; Brasil.<br />

ABSTRACT<br />

This article registers graphic symbols called kene by specialists of the Ituí River<br />

Indigenous Land, in the Brazilian state of Amazonas. Known by the same name<br />

among several indigenous societies from the Pano linguistic family, kene<br />

connect history with memory and art. Each <strong>de</strong>sign has its own significance.<br />

They are used in body painting, everyday objects and rituals. It is a language of<br />

great importance for the Marubo peoples, as well as for artistic heritage and art<br />

in general. This suggests that an exchange of ways to observe, envision and<br />

un<strong>de</strong>rstand the world is necessary.<br />

1 Este é o resultado da pesquisa <strong>de</strong> iniciação científica (PIBIC/CNPq) <strong>de</strong> <strong>Raimunda</strong> <strong>Enes</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>. <strong>Raimunda</strong> é<br />

discente do curso Formação Docente para Indígenas da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre, Campus Floresta, em Cruzeiro<br />

do Sul – Acre, Brasil. É também atual presi<strong>de</strong>nte da Associação Kapy da Etnia Marubo Tamawavo do Alto Rio Ituí<br />

(KAPY). Andréa Martini é antropóloga, professora do referido curso e instituição (Ufac – Floresta) e doutora em<br />

Ciências Sociais (IFCH/Unicamp). Sebastião <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> é representante em assuntos institucionais, conselheiro ou<br />

hapowãdo <strong>de</strong> seu clã, além <strong>de</strong> tradutor e intérprete <strong>de</strong> línguas Marubo - português.


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Nº 1, setembro <strong>de</strong> 2011<br />

Keywords: graphism; Kene; Marubo; indigeneous people, Itui River; Amazonia;<br />

Brazil<br />

TAMA E O <strong>KENE</strong><br />

Tama é o nome <strong>de</strong> uma árvore muito, muito gran<strong>de</strong>.<br />

Existiram mulheres artistas [na própria tribo]. Os nomes <strong>de</strong> seus clãs são<br />

Vari Shavovo; Tama Shavovo; Shane Shavovo. Os nomes das artistas são: Tamã<br />

Chori; Tamã Peko; Tamã Nai; Tamã Yochi; Tamã Maia; Tamã Vasi. Estes são os<br />

nomes das artistas da antiga geração que faziam pinturas <strong>de</strong> kene. Essas<br />

mulheres pintaram a gran<strong>de</strong> árvore chamada Tama.<br />

A história fala que Tama era um homem encantado em uma árvore; essa<br />

árvore falava. Tama era um homem parente da família das futuras artistas,<br />

como um irmão mais velho transformado em árvore. A história fala que ele<br />

pediu para as mulheres o pintarem nos seus quatros lados; [os lados] da gran<strong>de</strong><br />

árvore. Esse pedido quer dizer, na tradição, que esse homem estava treinando<br />

essas mulheres em artes, o nome <strong>de</strong>ssas mulheres é Tama Shavovo que quer<br />

dizer “toda família do Tama”.<br />

Depois <strong>de</strong> tudo isso, passou-se a pintar o corpo e muitas outras coisas.<br />

Qualquer tipo <strong>de</strong> kene “utiliz{vel”, benéfico ou <strong>de</strong> livre acesso, po<strong>de</strong> ser<br />

empregado em objetos em geral. Há kene que não po<strong>de</strong> ser usado, ou mesmo,<br />

visto (cf. Item Resultados - “Principais Kene”).<br />

Todo esse conjunto <strong>de</strong> kene e <strong>de</strong> colares [ráne] dos Varinawavo<br />

representa um complexo sistema <strong>de</strong> valores (VIDAL, 1992; RIBEIRO, 1986).<br />

Valores artísticos representados na variância <strong>de</strong> linguagens, [na] pela história e<br />

cosmologia e também pela sofisticação das peças (MÜLLER, 1990). Valores<br />

éticos e estéticos nos <strong>de</strong>senhos e na i<strong>de</strong>ntificação com a vida <strong>de</strong> cada Clã e/ou<br />

seção <strong>de</strong> clã (GRUPIONI, 1998; MELATTI, 1987). E também, em valores<br />

organizacionais, como as relações entre grupos étnicos (FEM/CIMI, 2002;


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Nº 1, setembro <strong>de</strong> 2011<br />

CARNEIRO DA CUNHA, 1992/1998) elaborada através da complexa<br />

cosmovisão e história social do(s) grupo(s), <strong>de</strong>ntre os quais, àquele atualmente<br />

<strong>de</strong>nominado Marubo (MONTAGNER, 1995).<br />

É interessante notar que essa <strong>de</strong>vida pintura tinha regras e ainda as têm,<br />

até hoje O kene por nome Vei Kene ou “kene da morte”, foi pintado no lado<br />

escuro da árvore, em que bate o sol poente; on<strong>de</strong> o sol some. Todo kene escrito<br />

naquele lado da árvore não é favorável. Se alguém usa o <strong>de</strong>senho acontecem<br />

aci<strong>de</strong>ntes com a família ou com a própria pessoa que usou.<br />

Vei Kene está relacionado às cobras ou é a própria cobra. Tem um<br />

sentido <strong>de</strong> morte. Por isso é que os velhos especialistas chamam <strong>de</strong> Vei Tama<br />

Kene; palavra também relacionada atualmente às i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> morte e inferno. Um<br />

tipo <strong>de</strong> pajé benéfico encontrado entre os Marubo é chamado <strong>de</strong> Romeya;<br />

consi<strong>de</strong>rado autor <strong>de</strong> todos esses saberes. Ele resguarda os conhecimentos<br />

relativos ao conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos kene. Dizem os Romeya para não prejudicar<br />

a tribo.<br />

Já os kene escritos do outro lado da árvore Tama são benéficos. Tal<br />

conjunto também representa a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da etnia. Os kene benéficos são<br />

chamados <strong>de</strong> Yove Tama Kene e significam a espiritualida<strong>de</strong> do povo Marubo.<br />

E os maléficos, como dito acima: Vei Tama Kene.<br />

Após essas mulheres fazerem kene na árvore, outras mulheres, <strong>de</strong> outros<br />

clãs, chamado Yno Shavovo, chamado Yno Maia e Yno Meto, viram,<br />

apren<strong>de</strong>ram e fizeram também <strong>de</strong>senhos em seus maridos.<br />

Esses maridos, conforme veremos à frente, (Cf. Anexo A), viraram ou se<br />

transformaram em vários tipos <strong>de</strong> onça conforme as pinturas <strong>de</strong> kene<br />

<strong>de</strong>senhadas em seus corpos. Hoje ninguém mais usa tais kene por isso.<br />

Apareceram <strong>de</strong>pois, outras mulheres atuais [contemporâneas] que apren<strong>de</strong>ram<br />

ao ver a árvore e <strong>de</strong>u-se, assim, a continuida<strong>de</strong> da pintura <strong>de</strong> kene no corpo das<br />

pessoas, além <strong>de</strong> objetos, cerâmica e outros suportes.


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Nº 1, setembro <strong>de</strong> 2011<br />

ARTE E COTIDIANO<br />

O principal objetivo do presente trabalho é <strong>de</strong>screver os kene, <strong>de</strong>senhos<br />

ou grafismos hoje conhecidos entre alguns especialistas indígenas do povo<br />

Marubo do Rio Ituí, no município <strong>de</strong> Atalaia do Norte - AM.<br />

Complementarmente, incentivar e fortalecer o trabalho artístico e os<br />

conhecimentos exclusivos <strong>de</strong> especialistas indígenas, assim como, o repasse <strong>de</strong><br />

conhecimentos entre todos os envolvidos na pesquisa.<br />

Dada a associação direta, feita pelo conhecimento Marubo, entre<br />

narrativa, canto e <strong>de</strong>senho, a pesquisadora – bolsista do CNPq <strong>Raimunda</strong> <strong>Enes</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, orientada por seu esposo e co-autor da pesquisa Sebastião<br />

Francisco <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, também transcreveu e traduziu parte <strong>de</strong> quatro<br />

importantes mitos sobre kene. São eles: 1) ONÎ NÃNÃ - Do homem que <strong>de</strong>ixou<br />

as duas mulheres na mata ou Das duas mulheres, o sapo, a cutia, o morcego e a<br />

onça; 2) SHAWE SHOVIA – [O grupo <strong>de</strong> crianças que] Virou Jabuti; 3) KORO -<br />

O mito da maloca [koro] que andava e falava; 4) YNO <strong>KENE</strong> ATIVO - O mito<br />

das onças, curica, cutia e bacurau.<br />

Como tantas outras práticas artísticas entre povos indígenas, os <strong>de</strong>senhos<br />

e pinturas Marubo fazem parte do cotidiano e se combinam a outras ativida<strong>de</strong>s<br />

e afazeres cotidianas (BASTIDE, 1979). É ativida<strong>de</strong> quase que exclusivamente<br />

feminina, não fosse o papel fundamental <strong>de</strong> pajés e outros interessados. Talvez<br />

por isso as mulheres sintam forte responsabilida<strong>de</strong> em apren<strong>de</strong>r e ensinar umas<br />

às outras e também às crianças (OPIAC & APAMIKTARJ, s/d).<br />

A população Marubo da Terra Indígena Rio Ituí, local <strong>de</strong>sta pesquisa,<br />

está estimada em cerca <strong>de</strong> 850 moradores, segundo dados primários da<br />

pesquisadora, distribuídos em quinze malocas. No entanto, a população total<br />

na Terra Indígena é <strong>de</strong> 2.377 habitantes entre grupos Matis, Marubo, Kanamari,<br />

Korubo, Kolina e Mayoruna. Em extensão territorial é a terceira maior Terra<br />

Indígena do Brasil com 8.544.444 hectares <strong>de</strong> terra e localiza-se no município <strong>de</strong>


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Atalaia do Norte, Estado do Amazonas, Brasil (GRUPIONI, 1998; MELATTI,<br />

1987).<br />

Entre os meses <strong>de</strong> janeiro e março, seguindo o calendário Marubo, todos<br />

gostam <strong>de</strong> fazer as pinturas <strong>de</strong> proteção chamando a força para o plantio e para<br />

a saú<strong>de</strong>. Na força da cheia no rio, no inverno amazônico, e sendo mulher, se não<br />

estamos trabalhando, estamos em casa com a família: ensinando a fazer<br />

tecelagem e artesanato como re<strong>de</strong>s e colares. As velhas ensinam as meninas. Os<br />

velhos ensinam os meninos a fazerem arco, flecha, cesto, remo, etc. É tempo <strong>de</strong><br />

contar história. Toda noite tem história cantada e contada. Também tem<br />

conselho dado e cantado, tem mitos contados e cantados.<br />

As mulheres Marubo realizam variadas e cansativas ativida<strong>de</strong>s<br />

cotidianas. Elas fazem artes variadas: cerâmica, cesta, peneira, colar <strong>de</strong> aruá e<br />

<strong>de</strong> cocos <strong>de</strong> palmeiras variadas. Fiam muito bem o algodão. Confeccionam fios<br />

resistentes com tucumã ou algodão para fazerem re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fibra, sacolas, tiaras,<br />

saias, tornozeleiras.<br />

Fazem também todo tipo <strong>de</strong> comida, tiram lenha, carregam água, varrem<br />

a maloca, cuidam dos filhos e netos. Caçam com seus maridos, pegam peixe<br />

com veneno <strong>de</strong> folha e cipó da mata. Tiram banana e macaxeira no roçado,<br />

fazem farinha, plantam varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> plantas comestíveis e úteis. E ainda,<br />

ajudam os homens a limparem os roçados, fazem <strong>de</strong>senhos kene, tecem<br />

peneiras, cestinhos, vassouras, elaboram variados colares, tecem missanga.<br />

Trabalham na palha <strong>de</strong> arumã, murmuru e tucum. Da palmeira tucum<br />

(Bactris setosa) extraem uma fibra forte e útil, além dos cocos para artes variadas<br />

e fio para amarrações. Do arumã, planta da família das marantáceas,<br />

Ischnosiphon ovatus, se fazem balaios, peneiras para carregar cargas <strong>de</strong><br />

macaxeira, farinha, banana, cestos com as talas.<br />

Já do murmuru, a palmeira Astrocaryum murumuru aproveitam do coco<br />

às palhas dos olhos para fins técnicos e artísticos. As mulheres ainda


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confeccionam material <strong>de</strong> estética para toda a família, tinturaria <strong>de</strong> urucum,<br />

Bixa orellana e frutos <strong>de</strong> jenipapeiro, Genipa americana, colares <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />

animais, além dos mais variados adornos. Quando uma maloca é terminada,<br />

são as mulheres quem batem o barro no chão para nivelar o piso.<br />

Já os homens Marubo têm serviços cerimoniais e rituais complexos. São<br />

responsáveis pela confecção <strong>de</strong> adornos como pentes tradicionais, tambores<br />

enfeitados, maletas <strong>de</strong> palha do broto ou olho <strong>de</strong> palmeira, enfeite tradicional na<br />

entrada da maloca. Além disso, constroem a maloca, produzem flautas, buzinas<br />

<strong>de</strong> taboca, lança-colares enfeitados, cocares <strong>de</strong> pena, arcos e roupas tradicionais<br />

masculinas. Fazem também bancos no formato <strong>de</strong> jaboti e lanças compridas<br />

para caçada.<br />

Os homens também têm a responsabilida<strong>de</strong> em matar a caça e <strong>de</strong>ixar<br />

“tudo no ponto <strong>de</strong> cozinhar”: péla-se o animal e tira o couro, trata e corta a<br />

carne. Já nos roçados, os homens gostam <strong>de</strong> fazer as coisas em campanha ou<br />

mutirão. Todos àqueles pertencentes à mesma maloca <strong>de</strong>rrubam, encoivaram<br />

[tirar tocos e paus após a queima], plantam e limpam os roçados [coletivos e/ou<br />

individuais] uns dos outros. Quem colhe os cultivares são as mulheres. Na<br />

pescaria que muito apreciam, em seus variados sistemas, os homens são bons<br />

técnicos, principalmente, no marisco com plantas tóxicas como tingui e na<br />

embicheiro; técnica <strong>de</strong> marisco com mergulho.<br />

Alguns homens, <strong>de</strong> acordo com os dons próprios ao seu clã, po<strong>de</strong>m<br />

apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>senhar e relatar os extensos mitos relacionados ao Kene, como é o<br />

caso <strong>de</strong> Tamã Ymi que tem essa função em seu próprio clã [ver o mito<br />

introdutório da árvore Tama]. Hoje, como ontem, o Kene se faz presente na<br />

vida <strong>de</strong> homens, mulheres e crianças do povo Marubo. Sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se<br />

caracteriza fortemente através <strong>de</strong>ssas linhas, da arte apurada <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>senhos.<br />

É o mesmo que acontece entre outros povos <strong>de</strong> língua Pano (CARNEIRO DA<br />

CUNHA & ALMEIDA, 2002).


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Nas palavras <strong>de</strong> <strong>Raimunda</strong>, “Kene é como um <strong>de</strong>senho, mas, hoje vejo ao<br />

mesmo tempo, as longas histórias e explicações que estão ali presentes. Eu já<br />

não penso o grafismo sozinho, eu penso que está tudo relacionado: os mitos, os<br />

cânticos <strong>de</strong> kene, a história <strong>de</strong> kene, o <strong>de</strong>senho em si, como um todo. Já não é<br />

mais como antes, antes eu pensava numa coisinha “pobre” e *hoje+ eu comecei a<br />

me apaixonar vendo toda a beleza que tem ali <strong>de</strong>ntro... por ter no <strong>de</strong>senho<br />

aquela linda história contada” (Comunicação pessoal, julho 2011).<br />

METODOLOGIA<br />

No primeiro semestre <strong>de</strong> 2009, a professora Msc. Heidi Soraia Berg inicia<br />

uma orientação com <strong>Raimunda</strong> <strong>Enes</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> sobre o tema Kene, na área <strong>de</strong><br />

“Linguagem e Artes”, do curso Formação Docente para Indígenas, doravante<br />

CFDI, vinculado ao CMULT/UFAC-Floresta (CFDI/UFAC-FLORESTA/OPIAC,<br />

2009; CFDI/UFAC-Floresta, 2007). O projeto aprovado passa a receber apoio do<br />

CNPq, ao longo <strong>de</strong> 2010, tendo sido renovado por mais um ano (agosto <strong>de</strong><br />

2011). Com a saída da professora Heidi para seu doutoramento, a orientação<br />

passa a ser realizada pela professora doutora Andréa Martini, da área <strong>de</strong><br />

Ciências Sociais e Humanida<strong>de</strong>s do referido curso, pela proximida<strong>de</strong> com<br />

temas <strong>de</strong> pesquisa já <strong>de</strong>senvolvidos.<br />

Durante o período conhecido por “Fase Intermedi{ria”, no CFDI, ao qual<br />

discente e a atual orientadora estão vinculadas, são realizadas variadas<br />

ativida<strong>de</strong>s interligadas <strong>de</strong> pesquisa e ensino nas al<strong>de</strong>ias. Trata-se <strong>de</strong> dois<br />

períodos anuais, em que discentes como <strong>Raimunda</strong>, atuam nas escolas<br />

localizadas em Terras Indígenas, realizando ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa<br />

complementares à sua formação e estágio supervisionado. No caso do Rio Ituí,<br />

a escola indígena não é diferenciada, ou seja, não é adaptada à realida<strong>de</strong> e às<br />

práticas culturais indígenas como proposto nas pioneiras ativida<strong>de</strong>s no estado<br />

do Acre (KAXINAWA, 2002; CABRAL; MONSERRAT & MONT, 1987).


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A trajetória da pesquisadora influenciou, e positivamente, na escolha do<br />

tema, localida<strong>de</strong>s pesquisadas, colaboradores e também nas metodologias<br />

utilizadas. Falante e escrevente em língua Marubo “comum”, <strong>Raimunda</strong> <strong>Enes</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, pertence ao clã Shane Shavo, clã do pássaro azul – sanhaçu; seu<br />

nome na língua <strong>Shapowã</strong>. Trabalhou conjuntamente com o esposo Sebastião<br />

Francisco <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, pertencente ao clã Tamawavo, cujo nome é Tama Ymi.<br />

Casados há trinta anos, ele é representante Marubo para assuntos<br />

institucionais, políticos e gerais, além <strong>de</strong> conselheiro ou hapowãdo <strong>de</strong> seu clã,<br />

tradutor e intérprete <strong>de</strong> língua Marubo [comum e mítica]. Ela, atual presi<strong>de</strong>nte<br />

da Associação Kapy da Etnia Marubo Tamawavo do Alto Rio Ituí (KAPY) é<br />

discente do CFDI. Todo o trabalho foi realizado inteiramente por ambos, tendo<br />

como orientadores e tradutores, nas duas línguas [mítica e comum], os<br />

especialistas Tama Ymi e sua mãe Varî Vanti, traduções em português,<br />

<strong>Raimunda</strong> Francisca <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>.<br />

Outros colaboradores importantes são o pajé Miguel ou Kenãpa. Além<br />

dos senhores consi<strong>de</strong>rados lí<strong>de</strong>res para o grupo como Felipe da Costa Marubo,<br />

Txoko Tãma e Vicente Doles Marubo, Ivãpa. Outros especialistas que<br />

gostaríamos <strong>de</strong> citar: Maria Vargas Marubo, Satã Mesma, que auxilia <strong>Raimunda</strong><br />

no início das tarefas relacionadas ao kene; Maria Dóles Marubo, Võewa;<br />

Antônio Maia Marubo, Ramê; Eduardo Francisco da Cruz, Shane Panã; Simão<br />

Francisco Marubo, Shane Poyia. Têm entre 35 anos e 90 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, como<br />

Satã Mesma e Varî Vanti, respectivamente.<br />

Foram utilizadas técnicas <strong>de</strong> entrevista aberta, <strong>de</strong>scrições etnográficas e<br />

observação participante em que a convivência acentuada entre o casal <strong>de</strong><br />

pesquisadores e colaboradores facilitou enormemente a tarefa, tanto do ponto-<br />

<strong>de</strong>-vista linguístico como do antropológico, além <strong>de</strong> certa liberda<strong>de</strong> na obtenção<br />

<strong>de</strong> registros audiovisuais, gravações e também registros <strong>de</strong> pequenas biografias.


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Muitas ressalvas linguísticas <strong>de</strong>vem ser feitas. Tomamos [toda] a<br />

liberda<strong>de</strong>. E até o momento não se teve acompanhamento ou revisão<br />

linguística. Gostaríamos <strong>de</strong> solicitar apoio dos colegas neste sentido.<br />

Comentários <strong>de</strong> revisão do artigo escrito, em língua portuguesa e edição,<br />

geralmente são tarefas da orientadora Andréa Martini e seguem diferenciados<br />

no texto, <strong>de</strong>stacados entre parênteses. Não temos, até o presente momento,<br />

acesso ao programa <strong>de</strong> computador que respeite a acentuação da língua<br />

indígena [Marubo]. Portanto, fizemos várias adaptações. On<strong>de</strong> se vê as vogais<br />

“e” e “i” grafadas com acento circunflexo, leia-se um acento til. Por isso falamos<br />

<strong>de</strong> “toda a liberda<strong>de</strong>”.<br />

Segundo V}ri Vãtî, a língua hoje falada pelo Marubo é uma “língua<br />

misturada”, oriunda das fusões, casamentos e também <strong>de</strong> conflitos entre<br />

variados grupos étnicos no passado. Nossa professora explica que existem hoje<br />

duas línguas: a língua Asãki Iki Vana, segundo ela, a “língua misturada” e a<br />

língua dos pajés “língua do passado”, em suas palavras, chamada Yove Vana.<br />

As grafias em português, linguagem mítica e comum, e todo o impressionante<br />

esforço dos colaboradores e autores para fazerem bem feito, à frente Tamã Ymi<br />

e Shopowã Shane Shavo, levou-os a acompanhar dias e noites <strong>de</strong> explicação e<br />

aprendizagem na língua Yove Vana, juntamente com toda a comunida<strong>de</strong>. São<br />

narrativas feitas pelo pajé que atravessam a noite, em que todos <strong>de</strong>vem ouvi-lo.<br />

Ninguém po<strong>de</strong> dormir, nem tampouco, trabalhar.<br />

Tudo isso para apreen<strong>de</strong>r uma história ou mito, memorizar sua<br />

narrativa, seus <strong>de</strong>talhes, os nomes corretos e repassar com qualida<strong>de</strong>, segundo<br />

ensinado, para a língua Asãki Iki Vana e português. Trata-se <strong>de</strong> um serviço<br />

<strong>de</strong>nso composto pelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> audição, transcrição, tradução, [re]<br />

tradução e [re] transcrição em três línguas. Neste esforço [hercúleo] foram<br />

transcritos quatro mitos relacionados ao kene que estão ainda em processo <strong>de</strong><br />

digitalização, além das inúmeras ativida<strong>de</strong>s já <strong>de</strong>senvolvidas pelo casal como


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li<strong>de</strong>ranças e por <strong>Raimunda</strong> como docente do CFDI. Esse conjunto <strong>de</strong><br />

documentos comporá o Trabalho <strong>de</strong> Conclusão <strong>de</strong> Curso (TCC) <strong>de</strong> <strong>Raimunda</strong><br />

no CFDI/UFAC.<br />

Mínima nota antropológica: O texto foi entremeado por uma “fala<br />

conjunta” que é produto da edição final da orientadora Andréa. Nesta<br />

plurivocalida<strong>de</strong> [talvez acentuada] procuro manter o texto que recebi do casal,<br />

porém, por vezes, “integrando-me | narrativa <strong>de</strong>les” num texto que j{ vem <strong>de</strong><br />

uma tripla [?], sêxtupla sessão <strong>de</strong> tradução e re-tradução. Entre me diferenciar<br />

<strong>de</strong>mais do texto, como antropóloga, ou me integrar a ele, fiz a segunda opção.<br />

Ao longo <strong>de</strong> dois anos e ainda que resumidamente, foram realizadas as<br />

seguintes ativida<strong>de</strong>s: 1) Pesquisa bibliográfica inicial; 2) Observações sobre as<br />

leituras; 3) Elaboração <strong>de</strong> roteiro para pesquisa <strong>de</strong> campo e entrevistas; 3)<br />

Reunião preparatória com li<strong>de</strong>ranças; 4) Reunião preparatória com a<br />

comunida<strong>de</strong>; 5) Pesquisa <strong>de</strong> campo e encontros nas al<strong>de</strong>ias visitadas com a<br />

participação <strong>de</strong> professores, agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e outros interessados;<br />

6)Digitalização, transcrição, traduções sucessivas <strong>de</strong> material escrito e gravado;<br />

7) Elaboração <strong>de</strong> artigo e, 8) Apresentação pública dos resultados na Ufac -<br />

se<strong>de</strong>, Ufac - Campus Floresta e na Terra Indígena Marubo do Rio Ituí.<br />

A estudante fez também um intenso acompanhamento dos professores<br />

indígenas Marubo durante seus períodos <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo. A distância até<br />

as al<strong>de</strong>ias é gran<strong>de</strong>, sendo necessário geralmente, mais <strong>de</strong> dois dias <strong>de</strong><br />

caminhada, além <strong>de</strong> transporte por barco. O translado também po<strong>de</strong> ser feito<br />

por avião fretado entre os municípios <strong>de</strong> Cruzeiro do Sul - Acre e/ou Atalaia do<br />

Norte – Amazonas, até a se<strong>de</strong> da comunida<strong>de</strong> - al<strong>de</strong>ia conhecida como Vida<br />

Nova; se<strong>de</strong> do Pólo Base dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).<br />

Foram organizadas e revisadas sucessivas versões das traduções obtidas pela<br />

bolsista.


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Nº 1, setembro <strong>de</strong> 2011<br />

Acreditávamos que todas as transcrições e traduções necessárias seriam<br />

realizadas num único semestre. Mas, o material registrado é abundante e rico<br />

em (re) traduções. Que vem a ser: as traduções feitas sobre as traduções que os<br />

próprios narradores, intérpretes e tradutores, fazem na tentativa <strong>de</strong><br />

compreen<strong>de</strong>r. As traduções foram feitas, portanto, ao longo <strong>de</strong> toda a pesquisa.<br />

E não apenas, durante o período específico das entrevistas.<br />

<strong>Raimunda</strong> também teve <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>senhar kene para saber contar<br />

melhor a história. Segundo afirmam seus professores Marubo, contar, cantar e<br />

<strong>de</strong>senhar kene é tarefa interligada. Vejamos então, alguns resultados <strong>de</strong>stes<br />

aprendizados.<br />

<strong>KENE</strong> DO MAR E TERRA<br />

Segundo nossos colaboradores e a história indígena e oral Marubo, o<br />

kene teve sua origem nos antepassados mais antigos. Vieram através <strong>de</strong> duas<br />

fontes: terra e mar.<br />

Os Kene (s) aprendidos do mar vieram através <strong>de</strong> um homem chamado<br />

Vimi Peya que em seu encanto buscou vários conhecimentos e não só os<br />

<strong>de</strong>senhos kene. Teve conhecimentos sobre a construção <strong>de</strong> maloca, tecelagem,<br />

história, canto, medicina. Quando Vimi Peiya voltou do fundo do mar, ele<br />

ensinou muitas coisas que havia aprendido para seus parentes em terra.<br />

Os Kene <strong>de</strong> Vimi Peiya são os mais fáceis para apren<strong>de</strong>r a fazer. Trata-se<br />

<strong>de</strong> vários tipos <strong>de</strong> amarrilhos que servem na armação da maloca, peneiras,<br />

cestaria e também, na feitura <strong>de</strong> flechas. Amarrilhos que, ao final, tomam a<br />

forma <strong>de</strong> kene. Porém, são muito variados. Exemplos <strong>de</strong> Kene <strong>de</strong>sse Vimi Peiya<br />

é o kene por nome <strong>de</strong> Kapê Shikachi Kene, Ene Pixi Kene, Ene Txitxã Kene,<br />

<strong>de</strong>ntre outros que ele viu, mas, não ensinou para ninguém. É o caso do Ene<br />

Awá Keneyá. Conta-nos a história que esse foi o primeiro kene que Vimi Peyia


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viu numa anta, porém a história também fala que esse kene não foi ensinado<br />

para ninguém.<br />

VIMI PEYA E TAMAWAVO<br />

Os conhecimentos e saberes do povo Marubo relacionados ao kene<br />

apresentam-se como longas histórias, cantos e narrativas míticas. As histórias<br />

principais como fontes orais do kene são: 1) A história <strong>de</strong> Vimi Peiya; 2)A<br />

história <strong>de</strong> Tama (árvore que representa uma pessoa); 3) A história do Pato da<br />

Água (Ene Shõ Aká); 4) A história da onça; 5) A história do jabuti e outras mais.<br />

Quando se fala em conhecimento, não se po<strong>de</strong> excluir Vimi Peiya. Vimi<br />

Peiya foi uma pessoa [encantado] que além <strong>de</strong> buscar os conhecimentos no<br />

fundo do mar foi também construtor, narrador, “dono da história” nas palavras<br />

<strong>de</strong> Sebastião. É conhecido e consi<strong>de</strong>rado “o s{bio do povo Marubo”. Segundo<br />

nossos colaboradores, ele apren<strong>de</strong>u, preservou e repassou saberes e práticas,<br />

além <strong>de</strong> conscientizar seu povo sobre a importância dos mesmos.<br />

Vimi Peiya se inspira no pajé tradicional do passado [primeiros pajés].<br />

Hoje ainda é assim. Vimi Peya, sábio, incentivou seu povo com a arte do kene,<br />

através <strong>de</strong> suas tecelagens e amarrilhos variados <strong>de</strong> cipó. O que resulta numa<br />

arte bonita, algo que nem todos conseguem fazer.<br />

Existem grafismos empregados na tecelagem bem parecidos com kene. E<br />

outros, são consi<strong>de</strong>rados kene, como por exemplo: Kapê Chinkaxi Kene, Ene<br />

Pichin Kene, Ene Kenã Kene, Ene Chomo Kene. Por isso se fala que existe uma<br />

fonte <strong>de</strong> kene que veio do mar e da experiência <strong>de</strong> Vimi Peyia e outra que veio<br />

da terra, conforme a história da árvore Tama.<br />

Tama quer dizer pessoa, essa pessoa é consi<strong>de</strong>rada [hoje os clãs<br />

chamados] Tamawavo, Shane Nawavo, Isko Nawavo que são gerações <strong>de</strong> Vari<br />

Nawavo. Vari Nawavo foi uma primeira geração, ou seja, aqueles que nasceram<br />

da terra propriamente dita, conforme a história <strong>de</strong> seu surgimento. Hoje


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Tamawavo, Shane Nawavo e Isko Nawavo são consi<strong>de</strong>rados a família dos<br />

artistas <strong>de</strong> kene.<br />

O clã chamado Yno Nawavo também era povo <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> kene;<br />

também pintaram as onças (cf. Anexo A. Mito Marubo: “Yno Kene Ativo” - O<br />

mito das onças, curica, cotia, bacurau). Rane Nawavo também eram clãs <strong>de</strong><br />

artistas especialistas em estética do corpo, <strong>de</strong>senhos, pinturas, colares, <strong>de</strong>ntre<br />

outros a<strong>de</strong>reços. Faziam também tecelagem <strong>de</strong> algodão com Rane Pichin Kene,<br />

Rane Kenã Kene, Rane Vatxi Kene <strong>de</strong>ntre outros.<br />

Porém, esses dois clãs, Yno Nawavo e Rane Nawavo, não preservaram<br />

seus conhecimentos, quem preservou tais conhecimentos foi o clã do<br />

Tamawavo. E nesse tempo, Yno Nawavo e Rane Nawavo, ainda não eram<br />

ligados aos Tamawavo. Hoje esses clãs são todos ligados através <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>,<br />

casamento e relações <strong>de</strong> parentesco.<br />

Apesar disso, os Tamawavo e também outros clãs Marubo, evitam trocar<br />

e receber nomes <strong>de</strong> outras famílias; não é consi<strong>de</strong>rado digno.<br />

Eles evitam casar “misturando” os clãs e não recebem nomes <strong>de</strong> clãs que<br />

não sejam os seus próprios. Porém, os Tamawavo têm a função social e ritual <strong>de</strong><br />

conhecerem, preservarem e repassarem os nomes e conhecimentos relacionados<br />

a si próprios e aos outros clãs. Foram os primeiros a nascer sobre a Terra, os<br />

primeiros a se constituírem como gente. [Nascem] Como povo que se chama<br />

Yora Koin, povo verda<strong>de</strong>iro, que nasceu primeiro do que os outros [aqueles<br />

que] emergiram da terra ou brotaram, wenia Yora.<br />

Por isso os Vari Nawavo, que são os mesmos Yora Koin da linguagem<br />

mítica, são consi<strong>de</strong>rados antepassados dos Tamawavo e também raízes <strong>de</strong><br />

outras etnias Pano [atualmente chamadas <strong>de</strong>] como Puyanawa, Shanenawa,<br />

Yawanawa e Huni Kuin. A história fala que Varinawavo é um povo temido por<br />

todos os outros. Varinawavo é hoje o chamado [povo] Marubo.


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<strong>KENE</strong> (S)<br />

Os principais kene apreendidos através da terra e do mar são os <strong>de</strong>scritos a<br />

seguir:<br />

1) Ene Pichî Kene – Kene da palheira d´água que veio do mar – <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong><br />

Vimi Peya. Tecelagem que faz em peneiras, cestos, abanos, esteiras (pichî) e<br />

outros, Pichî traduz como sendo um material, como o papel. Neste material<br />

[suporte] po<strong>de</strong> se fazer qualquer kene que se queira ou se saiba fazer.<br />

Interessante saber que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do kene que esteja escrito ou nele<br />

seja feito, será sempre chamado: Ene Pichî Kene.<br />

2) Ãsî Tae Kene – Desenho do “pé <strong>de</strong> mutum” dito pela senhora Võewa. J{ para<br />

a senhora Varî Vãti é chamado [como sendo igual ao] Shete Voshká Kene. Esse<br />

kene não se usa. O que é confirmado pelo pajé Miguel. Já o kene chamado Ãsî<br />

Tae Kene se usa no corpo inteiro, só em homens.<br />

3) Mîpo Tae Kene – Desenho <strong>de</strong> uma batata nativa, Varî Vãti e também pelo<br />

pajé Kenãpa. Só para mulher, feito no corpo.<br />

4) Kevõ Isã Kene – Isso na versão <strong>de</strong> Maria Vargas, Satã Mema. Kevõ isã é<br />

palmeira por nome bacaba; Oenocarpus circumtextus. Já na versão <strong>de</strong> Varî Vãti<br />

trata-se <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> kene que enrola [envolve, circunda, enovela], chamado<br />

Seví Kene. Usado só em mulheres, nas costas, nas pernas. Serve para as<br />

primeiras aprendizagens em artes das crianças, principalmente, em objetos<br />

como: peneira, abano, pichî (esteiras), cerâmica e outros.<br />

5) Kara Mapo Kene – Quer dizer “<strong>de</strong>senho da cabeça do sapo kara”, um dito<br />

sapo comível apreciado pelos antigos. Aparece aí, em dois mo<strong>de</strong>los – conforme<br />

versão <strong>de</strong> Kenãpa e Varî Vãti. Para homem, só po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senhado no queixo e


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para mulheres nas costas. Já a segunda versão do <strong>de</strong>senho feita por Varî Vãti, é<br />

usada pelos homens no queixo. Ela a chamou <strong>de</strong> Nawã Moka Kene. Segundo os<br />

especialistas, ambas as versões do kene po<strong>de</strong>m ser utilizadas em objetos.<br />

Quando é feito com a garra ou gancho do <strong>de</strong>senho para um lado só, chama-se<br />

Westi Meshtea.<br />

6) Nawich Kene – Kene que significa “riscar” <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> algo, ou riscar pela<br />

frente do corpo <strong>de</strong> alguém. Conforme Vãrî Vãtí, Satã Mema, Tama Ymi. É<br />

usado por homens e mulheres. No homem é feito só da cintura para cima.<br />

7) Txeshê Ashká Kene - Kene que significa “linhas” que separam o <strong>de</strong>senho<br />

como nos riscos pretos sobre fundo branco, como feito e dito por Várî Vãti. Só<br />

se faz em mulheres nas costas e nos objetos em geral. Esse <strong>de</strong>senho, quando<br />

<strong>de</strong>ntro das forquilhas [forquilhas são bifurcações nos traços do grafismo que<br />

separam ou envolvem um <strong>de</strong>senho] é pingado com a cor preta, então, [o kene] é<br />

Txeshê Ashká Kene. O <strong>de</strong>senho que não é pingado nas forquilhas das linhas,<br />

esse é chamado <strong>de</strong> Oshõ Ashká Kene.<br />

8) Paka Mevi Kene/Vei Kene – Dito pelo pajé Kenãpa, Varî Vãtí e Tama Ymi.<br />

Kene da taboca; espécie <strong>de</strong> bambu abundante na região; Guadua sarcocarpa.<br />

Atrai a morte. É com a taboca cortante que se fazem os diversos tipos <strong>de</strong> armas.<br />

Só os guerreiros o podiam ainda usar, embora seu uso estivesse proibido. É<br />

usado hoje nos recipientes para rapé e urucum preparado para pintura.<br />

Segundo Tama Ymi, a taboca já nasceu envenenada. As pessoas usam porque<br />

não enten<strong>de</strong>m.


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9) Kevõ Isã Kene – Kene da palmeira chamada bacaba, conforme a versão <strong>de</strong><br />

Varî Vãtí. Só para mulher usar nas costas. No segundo <strong>de</strong>senho, Kevõ Isã Kene<br />

feito também por Varî Vãti.<br />

10) Tama Kene - Substitui (uma/a) pessoa na área espiritual. Representa a cobra.<br />

Também consi<strong>de</strong>rado como Sheki Toshkã Kene, “<strong>de</strong>senho da mão <strong>de</strong> milho”,<br />

na versão <strong>de</strong> Kanãpa e Varí Vãtî. Desenhado nas costas e objetos. O <strong>de</strong>senho<br />

<strong>de</strong>ve ser feito na diagonal; é a regra. Esse kene estava na árvore Tama e foi<br />

achado lá atrás [no tempo]; significa todos os outros kene.<br />

11) Chîkõmi Váka Kene – Kene da flor da sororoca, versão <strong>de</strong> Võ Ewa [Al<strong>de</strong>ia<br />

Água Branca] e outros informantes. Feito só em mulheres e objetos como<br />

peneiras. No segundo <strong>de</strong>senho, kene literal da flor, pendão da sororoca, feita<br />

por Tama Ymi. Trata-se <strong>de</strong> um “kene contempor}neo <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong>” que<br />

<strong>de</strong>svenda o “sentido camuflado dos segredos antepassados”, nas palavras <strong>de</strong><br />

<strong>Raimunda</strong>.<br />

12) Yawa Merîki Kene – Dito pelo pajé Miguel Kenãpa. Segundo a versão <strong>de</strong><br />

Maria Doles, Vô Ewa, é chamado <strong>de</strong> Nawã Mukã Kene feito para mulher pintar<br />

nas costas. Segundo a versão da anciã Varî Vãtí, também é chamado <strong>de</strong> Yawa<br />

Merîki Kene e serve para a mulher usar nas costas e pernas por ser pequeno.<br />

13) Txonã Îtxo Kene [sendo o estilo rave com duas pontas] ou Westistá Aká<br />

Kene [estilo westi com apenas uma ponta, um gancho, uma garra] – Conforme<br />

Varí Vãtí. Só para mulher <strong>de</strong>senhar nas costas. Kene da “ponta do rabo *îtxo+ do<br />

macaco barrigudo *txonã+” usado em objetos.


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14) Yove Tama Kene – Pintura para homens e mulheres. Não é muito usado no<br />

cotidiano, serve especialmente, nos momentos espirituais e/ou rituais. Dito e<br />

<strong>de</strong>senhado conforme orientação do pajé Kenãpa. Esse kene foi o primeiro a ser<br />

pintado no homem encantado Tama, segundo a mitologia Varinawavo<br />

(Marubo).<br />

15) Matsi Tama Kene – Existe, mas é camuflado pelo pajé para [em] proteção ao<br />

povo. Kene da cobra jibóia ou anaconda; cobra que atrai, engana, mata e carrega<br />

para uma vida que não é boa, segundo explicações <strong>de</strong> <strong>Raimunda</strong> obtidas com<br />

Varî Vãtí. Tal cobra, os Marubo não matam e nem olham.<br />

16) Shete Voshká Kene - Significa a cabeça do urubu, dito por Varî Vãtí e não se<br />

costuma usar o kene. Em versão <strong>de</strong> Satã Mema é conhecido como Tama Meã<br />

Kene e a mulher po<strong>de</strong> usá-lo nas costas.<br />

17) Txonã Îtxao Kene ou ainda, Westichta Aká Sevi Kene - Ou seja, esse kene<br />

est{ misturado/entremeado, h{ “dois kene em um”. Conforme Varî Vãtí. J{ seu<br />

segundo <strong>de</strong>senho é para ser usado por mulheres, pintado nas costas.<br />

18) Shõnõ Shenã Kene - Desenho das lagartas <strong>de</strong> samaúma. Esse kene é<br />

chamado também <strong>de</strong> Chinã Kene, kene das lagartas <strong>de</strong> samaúma. O homem usa<br />

no peito [na região do coração] e nos músculos, sendo um dos mais usados<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong> [dos tempos primordiais] por homens e mulheres. O nome<br />

Shõno é atribuído à árvore que se conhece por samaúma. È um kene que po<strong>de</strong><br />

ser usado por todos. Os homens geralmente usam nas costas, peito e<br />

queixo/rosto. As mulheres, se usarem, só po<strong>de</strong> ser nas costas. Dito por Varî<br />

Vãti, Kenãpa, Satã Mesma.


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19) Kayõ (Atxá) Tae Kene - <strong>de</strong>senho do (passo), pé ou pegada da arara colorida<br />

kayõ, consi<strong>de</strong>rada a “rainha das araras”; seu nome antigo. Para mulheres e se<br />

faz nas costas.<br />

20) Nawã Moka Kene – Faz nas costas da pessoa, mas, não é fácil <strong>de</strong> fazer.<br />

21) Vekê Kene – Símbolo da face da pessoa. Assemelha-se ao formato do rosto<br />

<strong>de</strong> uma pessoa. Esse kene é muito apreciado e usado pelos anciãos, sendo feito<br />

na altura do braço chamado pwyã, j{ próximo ao ombro *na região “das marcas<br />

<strong>de</strong> vacina”+. Ou ainda, próximo ao peito, no queixo e nas costas <strong>de</strong> homens. J{<br />

nas mulheres é feito nas costas e coxas.<br />

22) Peshko Kene - Kene do crescimento. É muito <strong>de</strong>senhado em crianças para<br />

elas crescerem rápido. Por Varî Vãti.<br />

<strong>KENE</strong> (S) DO MAR*<br />

23) Ene Koma Kene – Novo kene [contemporâneo] ensinado pelo pajé Miguel e<br />

feito por Tama Ymi e Shapõwã. Kenapã falou que ninguém acertara em fazer tal<br />

kene. Contado na história <strong>de</strong> Vari Mãpe, Shõ Ati – Shenê Ene [trata-se <strong>de</strong> uma<br />

única história, muito comprida, segundo <strong>Raimunda</strong>].<br />

24) Kapê Shikachi Kene - Significa peito <strong>de</strong> jacaré. Por ser um animal muito<br />

comum na alimentação e ser visto com facilida<strong>de</strong> pelos caçadores indígenas, ao<br />

longo dos rios e igarapés, sua presença no ambiente é motivo <strong>de</strong> inúmeras<br />

observações, histórias e inspiração para a criação artística. Faz parte da história<br />

<strong>de</strong> Vimi Peiya. Só executado em objetos como peneiras, abanos, em pichî e<br />

também em crianças.


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25) Ene Pichi Kene - Esse grafismo é o abano encantado feito pelo povo da água<br />

para uso. Diz a história <strong>de</strong> encantos que Vimi Peya usou abano como cama<br />

enquanto estava no fundo do mar.<br />

CONCLUSÕES<br />

Observamos nesta pesquisa alguns <strong>de</strong>senhos ou grafismos da etnia<br />

Marubo chamados kene. Cada kene tem seu nome e significado próprios. Trata-<br />

se <strong>de</strong> uma linguagem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, material e espiritualmente para o<br />

povo Marubo, faz parte <strong>de</strong> seus saberes, práticas e valores.<br />

Os <strong>de</strong>senhos kene representam e surgem duma profunda interação<br />

gente-natureza. A observação das lagartas, por exemplo, motivou os artistas<br />

ancestrais a realizar um <strong>de</strong>senho kene. Este representa, primeiramente, a<br />

organização das lagartas e, em seguida, a organização das pessoas que<br />

<strong>de</strong>sempenham ativida<strong>de</strong>s artísticas semelhantes como <strong>de</strong>senho, tecelagem.<br />

Não só as lagartas, mas, outros seres e espíritos que vivem nas árvores se<br />

comunicam com os homens, principalmente através dos pajés. O pajé fica<br />

responsável em transmitir para a geração <strong>de</strong> viventes, aquilo que recebe através<br />

<strong>de</strong>stas suas conversas com os espíritos. É assim que o grupo constrói, apreen<strong>de</strong>,<br />

repassa e também reinventa seus conhecimentos.<br />

Os kene são geralmente usados na forma <strong>de</strong> pintura corporal com<br />

jenipapo, pinturas em objetos e ocasiões rituais. Por exemplo, geralmente<br />

quando se realiza um convite para festa. O responsável pelo convite <strong>de</strong>ve estar<br />

enfeitado (a) com qualquer tipo <strong>de</strong> kene, bem entendido, àqueles utilizáveis por<br />

pessoas comuns feitos com jenipapo. Ou, pelo menos <strong>de</strong>ve estar bem enfeitado<br />

com palha <strong>de</strong> buriti. Nunca sem ornamentos e pinturas.<br />

O convite sempre é feito cantado e não falado, para todos ouvirem. Isso<br />

serve também para aquele que fala ser visto por todos, assim como, seus<br />

enfeites e pinturas chamando bem a atenção. Para todos aceitarem, acreditarem<br />

no convite. Como num convite para festa, a história do Kene é contada e


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também cantada. Esse conhecimento faz parte do trabalho, lazer, educação,<br />

história e alimentação, ou seja, é parte da vida cotidiana do povo Marubo.<br />

Arte do kene integra linguagem oral, história, memória e arte. Serve<br />

como uma importante ferramenta na educação linguística, história e filosofia<br />

dos povos falantes <strong>de</strong> línguas Pano. Com essa pesquisa, outros professores<br />

também se animaram em registrar aspectos da cultura Marubo, num registro<br />

bilíngue. Todo esse material registrado é abundante, rico e complexo. Merece<br />

um tratamento a<strong>de</strong>quado à sua especificida<strong>de</strong> cultural, social e linguística.<br />

Não <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> notar quão apreciadas são as tarefas <strong>de</strong> tradução e<br />

interpretação <strong>de</strong> passagens míticas pelos Marubo. <strong>Raimunda</strong> e Sebastião<br />

realizaram inúmeras sessões <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m durar dias. O<br />

especialista fala, posteriormente, outro especialista traduz, comenta, repassa aos<br />

terceiros o que o primeiro diz, e todos <strong>de</strong>vem se certificar <strong>de</strong> que a versão é<br />

realmente convincente.<br />

Alunos Marubo que estudam na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atalaia do Norte, estado do<br />

Amazonas, também auxiliaram nesses processos <strong>de</strong> tradução que para os<br />

Marubo é fundamental, passando da linguagem mítica, para a linguagem<br />

convencional. Um ato <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> dos pajés e, possivelmente, <strong>de</strong><br />

pesquisadores como <strong>Raimunda</strong> e Sebastião. Desse processo estão surgindo<br />

propostas para materiais didáticos<br />

As informações registradas impulsionaram novas investidas por parte <strong>de</strong><br />

outros conhecedores. Várias comunida<strong>de</strong>s começaram seus próprios registros, a<br />

nosso ver, complementando, “retraduzindo” os trabalhos <strong>de</strong> uns e outros. No<br />

início, alguns pensaram que a pesquisa resultaria em furto intelectual. O que<br />

está acontecendo agora é o contrário. Importante é trabalhar conjuntamente pra<br />

resguardar e também saber divulgar esse conhecimento. São necessárias<br />

pessoas <strong>de</strong> confiança, apoio financeiro e técnico para realizar novos e futuros<br />

trabalhos. Para sua proveitosa continuida<strong>de</strong>.


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Anexo A – Mito Marubo<br />

Há várias versões do mito que contamos a seguir. Ele serve para <strong>de</strong>monstrar<br />

como a arte do kene é forma integradora que envolve conduta, linguagem oral,<br />

história, memória.<br />

“YNO <strong>KENE</strong> ATIVO” -<br />

O mito das onças, curica, cutia e bacurau.<br />

Era uma vez um grupo <strong>de</strong> pessoas chamado Yno Nawavo; expressão que<br />

quer dizer um segundo nome para o clã Kamã Nawavo. [Eles] estavam se<br />

preparando para fazer pinturas. Os homens <strong>de</strong>sse grupo eram muito ruins para<br />

suas mulheres. Um dia, elas começaram a pintar seus esposos, um por um. O<br />

primeiro a terminar a pintura chamava- se Ino Wirê. Esse ficou à parte para a<br />

sua pintura secar, um pouco distante dos outros que estavam ainda se<br />

pintando.<br />

Enquanto isso, Ino Wirê percebeu que um bando <strong>de</strong> queixadas estava<br />

passando por ali. Ele, então, correu para avisar seus parentes. Quando chegou<br />

lá no grupo <strong>de</strong> pessoas que estavam se pintando, por sorte os adultos já<br />

estavam prontos, já outros estavam começando a pintura nos rostos para <strong>de</strong>pois<br />

fazerem no corpo todo. Suas mulheres mandaram que eles fossem matar as<br />

queixadas assim mesmo. E também para que passassem urucum em seus<br />

corpos inteiros quando vissem um pé <strong>de</strong>ssa planta, pois na manhã seguinte<br />

terminariam suas pinturas.<br />

Então eles saíram e foram matar as queixadas. Enquanto isso Ynõ Rami,<br />

uma das mulheres disse para as outras: - Vamos embora? Nossos maridos são<br />

muito ruins para nós. Sabemos que da carne que trarão só sobram migalhas<br />

[para nós]. Então uma <strong>de</strong>las respon<strong>de</strong>u: - Eu não quero ir, pois, eles irão nos<br />

perseguir até matar.


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- E então como vamos fazer? Perguntou a terceira mulher. Yno Rami, a dona da<br />

idéia respon<strong>de</strong>u: - Vamos apagar todo o fogo que estiver aceso com água e<br />

vamos sumir. Mas Tao<br />

Kati, uma das mulheres, disse: - Vamos nos separar. E, em seguida,<br />

pegou um pouco <strong>de</strong> fogo aceso num tição e disse: - Eu levarei comigo esse fogo<br />

aqui e vou morar nas árvores, para que nossos maridos não possam alcançar o<br />

fogo. Então, ela se foi e virou uma curica. É por isso que hoje existe curica.<br />

Curica sabe fazer buraco nas árvores para morar [até hoje].<br />

A segunda mulher por nome Yno Rami, a dona da idéia disse: - Eu não<br />

vou para longe, vou ficar nos arredores da maloca para aproveitar e comer a<br />

roça <strong>de</strong>les. E assim aconteceu, [Yno Rami] virou cutia. É por isso que hoje existe<br />

cutia e [ela] come a roça dos agricultores.<br />

A terceira mulher por nome Yno Meto disse: - E eu ficarei aqui por perto<br />

também, nos arredores da maloca e ninguém po<strong>de</strong>rá perceber quem sou eu,<br />

pois vou virar um bacurau e farei susto para nossos maridos e todas as pessoas<br />

<strong>de</strong>sconhecidas e até para meus amigos. E assim ela fez, virou um bacurau. É por<br />

isso que hoje existe bacurau e [ele] assusta as pessoas que passam por perto<br />

<strong>de</strong>le.<br />

Depois <strong>de</strong> tudo isso acontecer, seus maridos chegaram da caçada, mas,<br />

perceberam que suas mulheres não estavam mais ali. Então chamando e<br />

chorando, disseram: - Nós emprestamos os nossos nomes para que vocês<br />

pu<strong>de</strong>ssem ser chamadas e para que juntos, nos tornássemos uma família. Nós<br />

gostamos vocês e agora vocês nos <strong>de</strong>ixaram sós. E, enquanto tristes e com fome,<br />

um <strong>de</strong>les colocou sua carne <strong>de</strong> queixada ao sol para secar e enquanto secava, ele<br />

comia a carne seca e falava para os outros, dizendo: - Meus parentes não fiquem<br />

tristes, façam como eu.<br />

E assim como ele, os outros fizeram, comiam a carne crua, pois não<br />

tinham fogo para cozinhar. Então viraram onças e o homem chamado Yno


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Wirê, hoje é um gato maracajá, e o outro por nome Yno Kuin aquele em que foi<br />

terminada a pintura, virou onça pintada [e outros clãs <strong>de</strong> onças <strong>de</strong> pequeno<br />

porte] como Txashpa Kamã; Shawã Kamã; Ketsivo; Mativo, <strong>de</strong>ntre outros. Estes<br />

são os clãs <strong>de</strong> onças pequenas, regionalmente chamadas <strong>de</strong> gatos, que não<br />

terminaram a pintura. Os outros [homens] que não terminaram a pintura, só<br />

passaram urucum em seus corpos, transformaram-se em onças vermelhas.<br />

Outros ainda se pintaram apenas com jenipapo e viraram onças pretas. É por<br />

isso que hoje existem onças pintadas, onças vermelhas, onças pretas e outros<br />

tipos <strong>de</strong> onças pequenas como o gato maracajá.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BASTIDE, Roger. (1979)Arte e socieda<strong>de</strong>. SP, Nacional.<br />

CABRAL, Ana Suelly; MONSERRAT, Ruth; MONTE, Nietta. Por uma educação<br />

indígena diferenciada. Brasília: CNRC/FNPM, 1987<br />

CARNEIRO da CUNHA, M. M. L. & ALMEIDA, M. W. B. <strong>de</strong>. (orgs.) 2002.<br />

Enciclopédia da Floresta - O alto Juruá: práticas e conhecimentos das<br />

populações. São Paulo: Cia. das Letras.<br />

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (1998) História dos Índios no Brasil. São<br />

Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura/ FAPESP.<br />

Centro Ecumênico <strong>de</strong> Documentação e Informação. Povos Indígenas no Brasil -<br />

Javari. São Paulo: CEDI, 1981.<br />

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