O corpo é discurso ISSN 2236-8221 - Uesb
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A LEVEZA DO CORPO: CAMINHO PARA A TERRA SEM MALES<br />
Ivana Pereira Ivo¹<br />
Importante mito do povo Guarani Mbyá, o aguyjê <strong>é</strong> um estado de<br />
Outro requisito fundamental para se conseguir acesso direto à Yvy marã<br />
e’y <strong>é</strong> tornar o <strong>corpo</strong> leve mediante o jejum e a dança, conforme explicado por<br />
perfeição, condição para se chegar à morada dos deuses e de se tornar um<br />
Nimuendaju (1987, p. 97). Um Mbyá, certa vez, esclareceu-me que sempre<br />
deles sem passar pela morte física. Essa habitação sobrenatural <strong>é</strong> a “terra sem<br />
tentava deixar o <strong>corpo</strong> leve, dançando e comendo conforme as prescrições<br />
males” (Yvy marã e’y), literalmente: “terra que não se estraga”.<br />
No Brasil, o mundo <strong>é</strong> canibal:<br />
religiosas. Como as festas dos Mbyá duram mais de um dia, o propósito <strong>é</strong><br />
o humor negro e o horror na animação<br />
dançar todas as noites, por muitas horas, inspirados pelas palavras do paj<strong>é</strong>, que<br />
Para o Guarani, o aguyjê corresponde ao próprio fim e objetivo da<br />
existência humana. Neste sentido costuma ser concebido de<br />
maneira concreta como felicidade paradisíaca no mundo<br />
sobrenatural, que todos almejam alcançar sem antes morrer e<br />
cuja obtenção depende principalmente do cumprimento de umas<br />
tantas prescrições religiosas, “morais” ou simplesmente mágicas.<br />
(SCHADEN, 1954, p.188).<br />
A ida à Yvy marã e’y envolve alguns requisitos ligados ao <strong>corpo</strong>. Um<br />
deles tem a ver com restrições alimentares – um Mbyá não deve, por<br />
exemplo, comer alimentos dos não índios (juruá), como arroz, açúcar branco,<br />
óleo etc., mas sim alimentos tradicionais como milho (avaxi), batata (jety),<br />
mel (ei), amendoim (manduvi), entre outros. Tempass (2006) elucida que a<br />
preocupação com a alimentação fundamenta-se em uma ideia preliminar de<br />
que o ser humano tem duas almas, uma sagrada e uma terrena. Enquanto a<br />
alma sagrada está nos ossos, a terrena está na carne e no sangue, daí a<br />
necessidade da não ingestão de alimentos não permitidos. Uma senhora<br />
Mbyá explicou-me - que, quando uma pessoa morre e não vai direto para a Yvy<br />
1 Mestranda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Bolsista<br />
CNPq. E-mail: ivana_ivo@hotmail.com.<br />
2 Ser sobrenatural.<br />
3 Ser sobrenatural. Literalmente, “nosso pai”.<br />
marã e’y, seu <strong>corpo</strong> <strong>é</strong> entregue ao Anha, 2 que o colocará em um grande<br />
caldeirão, o cozinhará e comerá suas carnes para, depois, devolver os ossos<br />
para Nhanderu 3 que poderá fazer essa pessoa nascer novamente.<br />
discursa longamente, e pelas músicas que lhes são dadas por meio dos sonhos.<br />
Embora, após a primeira noite, o <strong>corpo</strong> doa, a dor tende a diminuir, sendo<br />
possível dançar, nas noites subsequentes, sem nem mesmo sentir o <strong>corpo</strong>, pois<br />
este ficará cada vez mais leve. Alguns, depois da terceira ou quarta noite,<br />
chegam a desmaiar durante a dança por não suportarem a extenuação. No<br />
entanto, se resistissem um pouco mais, poderiam ser arrebatados, afirmou ele,<br />
“com <strong>corpo</strong> e tudo”. É assim que o Mbyá busca ter um <strong>corpo</strong> leve, para que,<br />
uma vez liberto da alma terrena, consiga chegar à desejada terra sem males.<br />
Referências:<br />
NIMUENDAJU, Curt. As lendas de criação e destruição do mundo como<br />
fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. Trad. Charlotte Emmerich &<br />
Eduardo B. Viveiros de Castro. Editora Hucitec/USP: São Paulo, 1987.<br />
SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. Faculdade de<br />
filosofia, ciências e letras. Boletim nº 188, Antropologia nº 4. Universidade de<br />
São Paulo - USP, 1954.<br />
TEMPASS, Mártin C<strong>é</strong>sar. A alimentação tradicional dos Mbyá-Guarani: saberes e<br />
fazeres. In: 25ª Reunião Brasileira de Antropologia: saberes e práticas<br />
antropológicas – desafios para o s<strong>é</strong>culo XXI. Goiânia: Associação Brasileira de<br />
Antropologia, 2006.