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Edição 148 - Jornal Rascunho

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<strong>148</strong> • agosto_2012<br />

16 ruído branCo : : luiz bras<br />

abraço de assombração (2)<br />

Os psicoterapeutas e os psicanalistas<br />

vão querer me matar,<br />

mas sempre encarei a infância<br />

e a adolescência como os primeiros<br />

estágios de um foguete espacial.<br />

Fundamentais, sim. Cheios de combustível,<br />

sim. Mas também os primeiros a serem<br />

descartados após o lançamento. Confesso<br />

que a prática tão comum hoje em<br />

dia de tentar recuperar material antigo<br />

— memórias e afetos — nunca me interessou.<br />

Daí minha surpresa e meu constrangimento<br />

com a descoberta do fantasma<br />

de Ray Bradbury, que secretamente me<br />

assombra há décadas. Esse espírito continua<br />

aqui, petulante, materializando ao<br />

meu redor certa serenidade e certa ternura,<br />

penso eu, muito mais apropriadas<br />

à juventude. Semelhante à experiência<br />

do primeiro amor juvenil. Algo a que um<br />

homem maduro, já açoitado pela crueldade<br />

e pelo cinismo, já vacinado por Freud,<br />

Faulkner e tantos outros, não devia ser exposto.<br />

Nem ficar expondo publicamente.<br />

O primeiro livro que li de Ray Bradbury<br />

não foi seu romance mais célebre,<br />

Fahrenheit 451, publicado em 1953,<br />

de que gosto bastante, apesar de não ser<br />

o meu predileto. Sempre que se fala em<br />

Fahrenheit 451 é lembrada a adaptação<br />

de François Truffaut para o cinema,<br />

de 1966. Mas não recomendo a ninguém<br />

que assista ao longa-metragem, nem<br />

antes nem depois de ler o livro. O filme<br />

envelheceu muito mal — a maioria dos<br />

filmes envelhece muito mal, é de sua natureza<br />

a cristalização no tempo —, certas<br />

cenas tornaram-se constrangedoras e até<br />

risíveis. Salvam-se apenas a música de<br />

Bernard Herrmann e a cena final, em que<br />

aparecem os homens-livro declamando<br />

na floresta as obras-primas queimadas,<br />

cena que não está no romance.<br />

O primeiro livro que li de Ray Bradbury<br />

foi a coletânea de contos F de foguete<br />

(1962). Devorei em uma tarde e<br />

uma noite, e na manhã do dia seguinte,<br />

afortunadamente um sábado, corri à papelaria<br />

— na passagem da década de 1970<br />

para a de 1980 poucas cidades do interior<br />

SEGUNDA-FEIRA<br />

Cronista: Rogério Pereira<br />

Ilustrador: Theo Szczepanski<br />

TERÇA-FEIRA<br />

Cronista: Eliane Brum<br />

Ilustradora: Carolina Vigna-Marú<br />

tinham livraria — pra comprar o outro, E<br />

de espaço (1966), que também li em seis<br />

ou sete horas. De imediato, o que mais me<br />

encantou nos contos de Bradbury foi seu<br />

talento para o enredo, a trama, o entrecho,<br />

a urdidura. Sem saber, eu estava começando<br />

a tomar contato com a tradição<br />

dos grandes contadores de histórias. Bradbury<br />

foi apenas o primeiro de muitos, o<br />

mestre que convidou os outros. Desconfio<br />

que até mesmo Borges, seu vizinho de<br />

prateleira em minha estante, não teria entrado<br />

em casa se não fosse por ele.<br />

Se me pedissem uma lista com os<br />

cem melhores contos que já li na vida,<br />

mais de um terço seriam de Ray Bradbury,<br />

que demonstrou como ninguém que, no<br />

frigir dos ovos, ficção é personagem e enredo.<br />

A linguagem é o que sustenta tudo,<br />

é o que dá forma ao universo narrativo,<br />

mas sem um personagem marcante e um<br />

enredo surpreendente não há epopéia,<br />

drama, romance, novela ou conto que<br />

sobreviva. Essa é a razão de figuras como<br />

ulisses, Dante, Dom Quixote, Hamlet,<br />

Fausto, Raskolnikov, Madame Bovary,<br />

Moby Dick, Capitu, Riobaldo e Diadorim<br />

continuarem até hoje em nosso imaginário.<br />

Lá estava eu, suportando estoicamente<br />

o tédio tão comum nas cidades do interior<br />

paulista, quando Ray Bradbury me<br />

apresentou um bom número de pessoas<br />

incomuns vivendo situações incomuns e,<br />

por isso, inesquecíveis.<br />

Ray Bradbury passou a vida toda<br />

convencendo a si mesmo e a seus leitores<br />

de que o mundo pode ser muito mais<br />

fascinante do que realmente é. Porém,<br />

fascinante do modo mais simples, sem<br />

recorrer à complexidade discursiva de<br />

um Faulkner ou de um Nabokov. Seus<br />

contos são janelas suaves e descomplicadas<br />

pra todo tipo de país das maravilhas,<br />

do mais bizarro ao mais sublime. Que tal<br />

viver num mundo que acelera o metabolismo<br />

das pessoas, comprimindo setenta<br />

anos em sete dias (Gelo e fogo)? Ou num<br />

mundo senciente, ávido por agradar seus<br />

visitantes (Aqui há tigres)? Ou num mundo<br />

fustigado por uma chuva perpétua e<br />

enlouquecedora (A longa chuva)? Que tal<br />

viajar até o sol apenas pra retirar dele um<br />

pedacinho fumegante (Os pomos dourados<br />

do sol)? Ou participar de um safári<br />

pré-histórico e acidentalmente mudar<br />

nosso futuro (Um som de trovão)? Essas<br />

situações pertencem a F de foguete.<br />

O livro seguinte, E de espaço,<br />

não fica atrás. Sua coleção de situações<br />

espantosas e inquietantes é igualmente<br />

boa. Que tal conhecer um homem cujo<br />

corpo está sofrendo uma admirável metamorfose<br />

(Crisálida)? Ou um menino que<br />

está constantemente trocando de família<br />

adotiva, porque simplesmente não consegue<br />

envelhecer (Saudações e adeus)?<br />

Ou as crianças que estão brincando de<br />

“invasão”, sem saber que estão realmente<br />

colaborando com uma grande invasão<br />

(Hora zero)? Que tal tentar manter a calma<br />

quando uma inofensiva plantação de<br />

cogumelos começar a parecer tudo menos<br />

inofensiva (Venha ao meu porão)?<br />

Ou quando ninguém quiser acreditar em<br />

você quando disser que está ouvindo o<br />

pedido de socorro de uma mulher enterrada<br />

viva (A mulher gritando)?<br />

Sempre que penso nos livros que<br />

li na adolescência as impressões surgem<br />

meio turvadas, meio misturadas. É natural.<br />

A memória não trabalha com algoritmos<br />

infalíveis. Recordo vagamente os<br />

personagens e o enredo da maioria dos<br />

contos e romances que li naquela época.<br />

Estão adormecidos na névoa espessa, quase<br />

inalcançáveis. Menos parte da obra de<br />

Ray Bradbury. Lembro muito bem de seus<br />

melhores contos. Esses se fixaram completamente<br />

em minha memória porque<br />

foram lidos mais de uma vez num curto<br />

espaço de tempo. O anão, O próximo da<br />

fila, O emissário, Jack-in-the-box (um de<br />

meus prediletos, sobre um garoto confinado<br />

pela própria mãe superprotetora num<br />

palacete-mundo), A multidão, O vento e<br />

A cisterna, todos da macabra coletânea O<br />

país de outubro (1955). Também está<br />

gravada em minha memória pelo menos<br />

uma dúzia de contos do clássico As crônicas<br />

marcianas (1950).<br />

VOLTAMOS!<br />

O VIDA BREVE ESTÁ DE VOLTA<br />

UMA CRÔNICA. UM ILUSTRADOR<br />

DE SEGUNDA A SÁBADO<br />

QUARTA-FEIRA<br />

Cronista: Fabrício Carpinejar<br />

Ilustradora: Cínthya Verri<br />

QUINTA-FEIRA<br />

Cronista: Luís Henrique Pellanda<br />

Ilustrador: Simon Ducroquet<br />

www.vidabreve.com.br<br />

QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S<br />

Se tudo isso ficou distante do meu<br />

campo de visão por pelo menos duas décadas,<br />

a culpa foi dos caluniadores da oposição:<br />

os scholars. Durante muito tempo<br />

eu dei ouvidos a eles, a suas intrigas de<br />

gabinete. Seguindo seus eruditos conselhos<br />

abandonei os grandes contadores de<br />

histórias. Passei a me dedicar apenas ao<br />

que os especialistas diziam valer a pena: a<br />

alta literatura. É claro que isso foi — tem<br />

sido — muito prazeroso. Não serei injusto.<br />

Graças aos especialistas eu fiz amizade<br />

com gente da mais refinada categoria.<br />

“Fazer amizade” nesse caso significa<br />

enxergar através da pele, sentir empatia,<br />

analisar as vísceras, compreender emocionalmente<br />

as inquietações. Orientado<br />

principalmente pela esfera acadêmica fui<br />

até as fronteiras mais distantes e herméticas<br />

da literatura. E gostei do que encontrei.<br />

Ampliou meus horizontes.<br />

Mas o que os especialistas precisam<br />

compreender e começar a divulgar é que<br />

os grandes contadores de histórias não<br />

devem ser abandonados jamais. Esse foi<br />

o crime dos caluniadores: me fazer acreditar,<br />

por exemplo, que Kafka é mais importante<br />

do que Heinlein. Que a ficção<br />

fantástica e o realismo mágico são mais<br />

importantes do que a fantasia e a ficção<br />

científica. Que a obra de Saul Bellow é<br />

mais importante do que a de Ray Bradbury.<br />

É preciso defender a verdade: não<br />

são mais importantes, não são menos<br />

importantes, apenas cumprem funções<br />

análogas em diferentes regiões de nossa<br />

inteligência. Por que forçar uma escolha,<br />

uma fratura, se não cabe aqui a disjuntiva<br />

ou, mas apenas a aditiva e?<br />

Nossa espécie precisa encontrar um<br />

meio seguro de frear essa selvagem inclinação<br />

para a disjunção, a desunião, a<br />

exclusão, a separação, a cizânia, a discórdia.<br />

Inclinação que perturba não apenas<br />

o sistema cultural, mas todas as esferas<br />

da sociedade, provocando racismo, xenofobia,<br />

homofobia, etc.<br />

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />

SEXTA-FEIRA<br />

Cronista: Humberto Werneck<br />

Ilustrador: Felipe Rodrigues<br />

Continua na prÓxima edição<br />

SÁBADO<br />

Cronista: Marcia Tiburi<br />

Ilustrador: Rafa Camargo<br />

E DOMINGO É DIA DE VISITA.<br />

Aguardem nossos convidados.

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