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O Ofício da Flor Mônica Cardim Era uma vez Jaqueline. Jaqueline ...

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O <strong>Ofício</strong> <strong>da</strong> <strong>Flor</strong><br />

<strong>Mônica</strong> <strong>Cardim</strong> 1<br />

<strong>Era</strong> <strong>uma</strong> <strong>vez</strong> <strong>Jaqueline</strong>. <strong>Jaqueline</strong> tinha orgulho do nome. <strong>Era</strong> legal ser negra e ter<br />

nome de mulher de presidente americano, num tempo em que jamais se imaginou que os<br />

Estados Unidos teriam um presidente negro. <strong>Jaqueline</strong> tinha <strong>uma</strong> espécie de fé no nome, pois<br />

era mais fácil ser negra com nome de primeira <strong>da</strong>ma. <strong>Era</strong> <strong>uma</strong> <strong>da</strong>ma, era <strong>uma</strong> flor.<br />

Bom também era ser irmã de Jonas, caçador. Ela logo soube, n<strong>uma</strong> predisposição maternal,<br />

que ele era um planejador, que aliava cui<strong>da</strong>do e paciência. Mais tarde em sua vi<strong>da</strong> de adulto, o<br />

cui<strong>da</strong>do inerente a ele se tornaria <strong>uma</strong> espécie de timidez e segurança retrátil. A paciência do<br />

menino fora adquiri<strong>da</strong> na observação dos bois do vizinho, que se alimentavam com preguiça e<br />

paz, comendo mato, antes de ir para o matadouro. Por causa dele, <strong>Jaqueline</strong> enamorara-se pela<br />

primeira <strong>vez</strong>. De um passarinho, caçado com destreza na arapuca de caixa de papelão,<br />

barbante, graveto e alpiste.<br />

<strong>Era</strong> um domingo, que pede cachimbo. <strong>Era</strong> domingo dia de visita. Vestido de ren<strong>da</strong><br />

rosa, sapato branco e cabelos esticados a duras penas e pente, no topo <strong>da</strong> cabeça, tipo twister.<br />

Vestido vermelho não, que a família iria comentar. Deu de ombros, colocaria o vermelho no<br />

amanhã, que era a segun<strong>da</strong>-feira. E como ain<strong>da</strong> não estava na escola, não encontraria<br />

nenh<strong>uma</strong> alma comentadora. Ia brincar de ser o que quisesse no dia de segun<strong>da</strong>-feira, com<br />

vestido vermelho, touca e tudo.<br />

Ao levantar a caixa e ver e tocar a cria, os olhos do menino caçador brilharam. Ergueu<br />

as mãos pequenas e sujas, oferecendo, aos olhos dela, aquele presente. De fita vermelha e<br />

infância voraz, <strong>Jaqueline</strong> precipitou as mãos sobre o bichinho.<br />

- Cui<strong>da</strong>do – Jonas gritou – Num precisa pegar, olha na minha mão mesmo.<br />

E <strong>Jaqueline</strong> olhava, impaciente de tanta ternura, aquela pequena coisa viva.<br />

- Deixa eu pegar, vai?<br />

- Tá bom! Abre a mão. Mas não vai apertar, senão você mata ele.<br />

Pela primeira <strong>vez</strong> ela pegara algo vivo que cabia inteiro em suas mãos. Tremeu de frio.<br />

- Ele é tão levinho. E quentinho também. Ih, olha Jonas, está com a perninha quebra<strong>da</strong>.<br />

1 <strong>Mônica</strong> <strong>Cardim</strong> realiza pesquisa sobre a representação do negro na produção fotográfica de Alberto Henschel<br />

no Brasil do século XIX no Programa de Pós-Graduação em Estética e História <strong>da</strong> Arte/USP, sob a orientação <strong>da</strong><br />

Profª Drª Helouise Costa.


- Não tá, não – Reagiu Jonas.<br />

- Tá sim, por isso ele caiu na armadilha. – Disse sem perceber o quanto fazia do caçador mais<br />

frágil do que a presa.<br />

- Você acha que se ele tivesse bom não entrava?<br />

- Claro que não, passarinho é esperto. Não tinha outro jeito de arr<strong>uma</strong>r comi<strong>da</strong>. – Explicou<br />

com convicção de quem sabe explicar.<br />

Antes do almoço cumpliciou com o irmão quais os cui<strong>da</strong>dos para sarar o passarinho. A<br />

quem iriam mostrar. Que nome lhe <strong>da</strong>riam.<br />

Durante a refeição comeu frango assado com espantosa alegria, enquanto admirava a<br />

camara<strong>da</strong>gem do irmão que confiava ao primo André o segredo do domingo. Não tinha<br />

apenas um, mas dois jovens homens ao lado, para dividir o prazer do encontro com a vi<strong>da</strong>.<br />

- Calma, filha, não come tanto! E pra que pressa? – Advertiu a mãe.<br />

- Menina, coma devagar, mas lembre-se que comi<strong>da</strong> não vai faltar. – Esbanjou o pai. – Desse<br />

jeito sua irmã vai pensar que regulamos comi<strong>da</strong> pra nossos filhos. Come à vontade, filha,<br />

come. Mas come devagar!<br />

- Naquele tempo, para ela, as desvantagens de ser menina eram apenas duas: comer direito<br />

sem pressa e usar vestido rosa de babado.<br />

Mas Jonas ao lado do primo gritava <strong>da</strong> porta <strong>da</strong> sala:<br />

- An<strong>da</strong> logo, Jaque!<br />

Olhou rota o irmão refratado pelo copo grande de vidro que em dia de visita saía do<br />

armário para imitar cristal. Tanto frango havia comido que a água não descia.<br />

- Mãe, acabei! - E saltou <strong>da</strong> cadeira tentando evitar que o destino <strong>da</strong>s pessoas à mesa a<br />

laçassem, enre<strong>da</strong>ndo-a cedo na monotonia dominical de frango, macarrão e farofa.<br />

- Não vai chupar sua laranja. - Inquiriu o pai.<br />

- Agora não!<br />

- Filha seu tio descascou para você.<br />

- Depois, pai.<br />

- Ora <strong>Jaqueline</strong>, tenha modos, não faça essa desfeita para o seu tio.<br />

Sentou-se à mesa novamente. Já a enre<strong>da</strong>vam. Mas não cederia facilmente. Chuparia<br />

diligentemente a laranja. Devagar e atenta aos gomos. E, num instante que se estendia,<br />

adivinhou-se alvo de olhares silenciosos.<br />

Diante dela, impecavelmente menina, a prima apreciava com repulsa a boca de<br />

<strong>Jaqueline</strong>, seus olhos enfatizavam que o excesso de zelo não ocultava sua falta de elegância à


mesa. Os braços de prima Mariana se alfinetavam para fora do vestido, mais rosa e com mais<br />

babado que o dela. Vestido mais caro também.<br />

E o olhar <strong>da</strong> páli<strong>da</strong> Karina, que preenchia volumosamente o vestido gêmeo <strong>da</strong> irmã,<br />

simplesmente babava pelo fruto em sua mão.<br />

Stefane. Singela. A prima mais bela, mais velha e ausente, enamorava-se de si própria,<br />

ou tomara de alguém distante. Ao vestido rosa, mais leve de babados e volumes, eram<br />

permitidos arremates delicados de vermelho na cintura e na gola.<br />

No final <strong>da</strong> mesa, na ponta retangular, o tio. Careca. Magro. Notava e anotava tudo:<br />

mãos, boca, cabelos, roupa. Da menina, queria tudo, do visível ao invisível.<br />

De viés, os olhos de <strong>Jaqueline</strong> buscaram a única que não a mirava.<br />

- Come só mais um pouquinho, mãe...<br />

- Chega, não quero mais. – Birrava a avó, que roubara de <strong>Jaqueline</strong> o papel de criança.<br />

- O importante é comer bem. Tendo saúde, minha filha, - Disse o pai para <strong>Jaqueline</strong>, mas<br />

lançando olhos à robusta cunha<strong>da</strong> -, não há homem que resista.<br />

- Humm, mas minha irmã é tão magrinha, - oportunizou a tia, - sua mãe deveria comer mais,<br />

<strong>Jaqueline</strong>.<br />

Em defesa, <strong>Jaqueline</strong> pensou forte e fundo: “Sou feliz e gosto muito de vocês”.<br />

Tentava assegurar nos pensamentos a certeza e o segredo de ser flor, mãe, <strong>da</strong>ma.<br />

Reforçava: “Gosto muito de vocês”, para que ninguém soubesse que ela ain<strong>da</strong> não<br />

compreendia bem o significado de tantas palavras que eram ditas como se fossem óbvias.<br />

“Gosto muito de vocês”, para não revelar que o que desejava era retar<strong>da</strong>r sua entra<strong>da</strong> naquele<br />

mundo ausente de cores, exceto pelo laranja <strong>da</strong> laranja. “Gosto muito de vocês”.<br />

suco.<br />

E o tio, com perícia de açougueiro, descascava mais <strong>uma</strong> laranja que sangrava seu<br />

“Gosto muito de vocês”, - era o pensamento que lhe restava.<br />

E <strong>uma</strong> <strong>da</strong>s mãos de garra estendeu o fruto para <strong>Jaqueline</strong>, que disse não com a cabeça<br />

e reiterou, para que não houvesse dúvi<strong>da</strong>s: “Gosto muito de vocês”.<br />

Tio Afonso apoiou o cotovelo na mesa e olhando num perfil que a assustava enfiou a<br />

laranja inteira na boca, iniciando um indesejável espetáculo.<br />

“Gosto muito”.<br />

E aquele mundo teve cor. <strong>Jaqueline</strong>, que já desperdiçava energia, viu os olhos do tio<br />

ficarem vermelhos. O homem engasgou com a laranja.<br />

“Gosto muito de vocês”.<br />

Olhou ca<strong>da</strong> <strong>uma</strong> <strong>da</strong>s primas, ninguém via a laranja entala<strong>da</strong>.


“Gosto muito de vocês”.<br />

Olhou para o pai. “Gosto muito de vocês”. A tia. “Gosto muito de vocês”. E o mundo<br />

adulto se coloria na hora <strong>da</strong> morte. O homem branco ficava rosa, azul, roxo.<br />

Ninguém via a laranja. A mãe preparava café na cozinha.<br />

Cansado, engasgado, sem voz, cansado de pedir auxílio com os olhos à única que o<br />

via, o tio desviou as garras na direção <strong>da</strong> avó.<br />

- Desgraçado, isso é jeito de me tratar! Olha minhas netas, o desgraçado me batendo.<br />

Balburdia, confusão, morte na certa, mas mesmo assim “Gosto muito de vocês”.<br />

A mãe veio acudir. O pai deu tapas nas costas. A tia e as filhas choravam. Não<br />

Stefane, que serena, segurava a mão do pai enquanto, longe, lhe oferecia um copo de água.<br />

- <strong>Jaqueline</strong>, minha neta, que é que está acontecendo nessa casa? Tá todo mundo maluco?<br />

- Foi o tio vó, que se engasgou.<br />

- Se engasgou foi? Coitado. - Ajustou os olhos como se pudesse enxergar melhor – olhe<br />

menina, arrume um bocadinho de pão para eu comer que hoje não me deram na<strong>da</strong> nessa casa,<br />

nem água. Estou morrendo de fome.<br />

<strong>Jaqueline</strong> cortou o maior pe<strong>da</strong>ço de bolo de chocolate que pôde e colocou no prato <strong>da</strong><br />

avó. Saiu, esbarrando propositalmente em ca<strong>da</strong> <strong>uma</strong> <strong>da</strong>s primas. Queria testá-las, mas também<br />

convidá-las a um mundo diferente. Stefane, admira<strong>da</strong> de si, não notou. Karina, até tentou, mas<br />

seu primeiro impulso de largar o garfo a fez cansar e suar. Mariana arriscava um pensamento.<br />

- Jonas, André! Tô aqui, cadê o passarinho? Onde vocês estão? – Gritava <strong>Jaqueline</strong> liberta do<br />

lado de fora.<br />

- Aqui, Jaque! Dentro do carro do tio Afonso.<br />

<strong>Jaqueline</strong> olhou para trás para saber se as primas a seguiram. Na<strong>da</strong>.<br />

- Deixa eu entrar.<br />

- Tá, mas você vai atrás que a gente dirige.<br />

- Tá bom, an<strong>da</strong> logo. – <strong>Jaqueline</strong> tinha pressa para voltar ao mundo pequeno. Sabia-se <strong>uma</strong><br />

menina de sorte nele. <strong>Era</strong> flor e tinha como companheiros eternos e infalíveis o irmão e o<br />

primo. Um bem igual a ela, quase gêmeo. O outro, igual também, mas na alegria e na pressa<br />

de aproveitar o que é bom. Diferente na cor. Mas na varie<strong>da</strong>de colori<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles instantes,<br />

aquela espécie de cor não era nem nota<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong>. Reintegra<strong>da</strong> ao seu mundo, gritava com<br />

euforia, de pé no banco de trás.<br />

- Cadê o passarinho? Cadê o passarinho? Jonas, André, cadê?<br />

- Tá aí atrás, Jaque... cui<strong>da</strong>do! Disse Jonas que pilotava o carro estático a mais de 100.


<strong>Jaqueline</strong> parou. Sabia que algo havia passado por seus pés. - Demorou a olhar. E não<br />

gritou, não chorou.<br />

- Jonas, por que você não me avisou?<br />

- Jaque?<br />

O caçador nunca chorava, quando muito amuava e escondia-se debaixo dos lençóis ou<br />

atrás <strong>da</strong>s portas. Outras <strong>vez</strong>es, bem longe, no vasto quintal, debaixo do tanque. Dessa <strong>vez</strong>,<br />

Jonas chorou.<br />

- Jaque, o que você fez?<br />

- Desculpa, Jonas.<br />

Dono dos cui<strong>da</strong>dos o caçador menino enxugou as lágrimas e recolheu aquela pequena<br />

coisa morta. Num enterro sem reza, porque isso não era do seu feitio, e porque essa era sua<br />

primeira experiência no assunto, o menino despediu-se do passarinho, debaixo do pé de<br />

manga, sob os olhos sérios de André, e os olhos inespera<strong>da</strong>mente inseguros de <strong>Jaqueline</strong>.<br />

Mais tarde, a família se despedia e <strong>Jaqueline</strong> procurou seu irmão, que certamente se<br />

encolhia em algum dos seus cantos para viver suas tristezas. <strong>Jaqueline</strong> pensava nos caminhos,<br />

nas possibili<strong>da</strong>des do se. Se o tio tivesse morrido, se ela tivesse se deixado enre<strong>da</strong>r, a caça, a<br />

cria, a pequena coisa viva, sua e de Jonas, estaria viva! Se ela fosse igual. E despediu-se de<br />

André e <strong>da</strong> pequena mancha vermelha no estofado do carro. Um dia viria a se acost<strong>uma</strong>r com<br />

a idéia de que medo e dor, como a coragem e a alegria, também faziam parte do seu ofício.<br />

Justo ela, cujo ofício era amar. E lembrou, “eu gosto muito de vocês.”

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