Borgonha
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NO COMEÇO, houve a colheita de 1985, colheita excepcional,<br />
reverenciada desde o momento das vindimas. E de vinhos caros,<br />
dos mais caros dos tempos modernos. Mas, sem qualquer<br />
problema: os cidadãos dos países amantes dos grandes borgonhas,<br />
os suíços, os belgas, os ingleses ou os luxemburgueses, tinham a<br />
carteira bem recheada. Nessa altura, o primeiro choque petrolífero<br />
era já história antiga e o próximo “crash” da bolsa só iria<br />
acontecer em 1987. Os indicadores económicos mostravam sinais<br />
positivos contínuos, os “hippies” transformados em “yuppies”<br />
descobriam, depois dos ares da harmónica do “Poorboy Shuffle”,<br />
dos Creedence Clearwater Revival, o sucesso planetário de<br />
“Money”, dos Pink Floyd. O momento não era de gastar os seus<br />
rendimentos numa viagem sabática à Índia, mas sim na compra<br />
de fatos Yves Saint Laurent, de bonsais centenários e de grandes<br />
vinhos – da <strong>Borgonha</strong>, de preferência – bem mais “chiques” e<br />
extravagantes que os grandes vinhos de Bordéus, os quais se<br />
deixavam de bom grado para os “yankees” e para o seu guru<br />
Robert Parker, que se tinha tornado célebre fazia agora três anos.<br />
Quando se anunciou esta colheita de antologia, a reacção foi<br />
portanto imediata. Os amantes correram em massa e investiram<br />
em numerosas caixas destas garrafas lengárias – para mais tarde<br />
se arrependerem. Jovens e fogosos, começaram a abrir as garrafas<br />
um pouco rápido demais - um Clos de Vougeot aqui, um Corton<br />
Bressandes ou um Romanée Saint-Vivant 1985 acolá - vinhos previstos<br />
para envelhecer até ao ano 2000 – ou ainda mais. Mas,<br />
vamos agora lá esperar 15 anos antes de vestir a nossa nova<br />
camisa Armani!<br />
Então, afinal, quem foi o primeiro a dar-se conta desta<br />
sobrevalorização? Um gastrónomo de renome que prova estes vinhos<br />
de prestígio em casa dos seus anfitriões, príncipes árabes que<br />
não bebem álcool, mas não rejeitam nada que seja dispendioso e<br />
gozam do apogeu antecipado de um grande vinho da <strong>Borgonha</strong>?<br />
Ou um filho de boas famílias que perde a paciência antes de atingir<br />
a idade madura e desce às escondidas para a cave da família<br />
com o fim de verificar se o seu tesouro se porta tão bem quanto a<br />
<strong>Borgonha</strong><br />
sua árvore de cerejas miniatura do Japão, podada com tesouras<br />
douradas? A história não o diz. Mas ela ensina-nos que um<br />
número elevado de grandes borgonhas passou, em apenas três,<br />
quatro anos, da fase de repouso pré-natal à fase de reforma antecipada.<br />
Estes vinhos, comprados para durar toda uma vida, perde -<br />
ram o seu brilho, passando a ter uma cor granada apagada e<br />
reflexos de cognac, um bouquet com cheiro a meias velhas e, na<br />
boca, aromas mais desmaiados que efusivos.<br />
No fim dos anos 80, a <strong>Borgonha</strong> tinha perdido toda a aura. O<br />
seu prestígio estava no nível mais baixo, as vendas caíam e um<br />
cronista vinícola perguntou-se então: “A <strong>Borgonha</strong> está a trair os<br />
seus ‘terroirs’”? Ao que respondeu um colega particularmente<br />
perspicaz: “rendimentos de produção recordes, viticultura inexistente,<br />
fertilização a toda à foça, tratamentos recordes, chaptalização<br />
e acidificação: a receita já não funciona!”<br />
COMO O BETÃO<br />
A cena passa-se em Meursault, no meio dos campos e das vinhas,<br />
numa suave manhã da Primavera de 1989. Despreocupado, um<br />
jovem viticultor passeia o seu bebé no carrinho, ignorando ainda<br />
que esse dia iria decidir o seu futuro e revolucionaria toda uma<br />
região vitícola. Nesse clima (na <strong>Borgonha</strong>, utiliza-se a palavra “climat”<br />
para se referir uma parcela demarcada e com características<br />
únicas) magnífico, onde desde as primeiras gerações se cultivam<br />
cepas que dão uvas de uma riqueza e gosto incomparáveis, esse<br />
recém-promovido pai está simplesmente contente por estar a<br />
passear a sua pequena filha, de nome Léa, e por partilhar com ela<br />
os primeiros raios do sol. Assobiando, cruza-se com um antigo<br />
conhecido, um velho viticultor, cachimbo na boca e boina enfiada<br />
na cabeça e lança-lhe um alegre “Bom-dia!”, para receber de seguida<br />
uma reprimenda: “Mas tu ficaste completamente maluco?<br />
Como é que podes passear a tua pequena nas vinhas! Nós acabámos<br />
de fazer um tratamento! Olha, os homens ainda têm as suas<br />
máscaras!”. “Foi um verdadeiro choque”, conta Dominique<br />
Lafon, herdeiro do prestigiado Domaine des Comtes Lafon, jóia da<br />
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