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O telespectador confortado, deslocado - Cartaz de Cinema

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O <strong>telespectador</strong> <strong>confortado</strong>, <strong><strong>de</strong>slocado</strong>: o programa Cena aberta e o<br />

seriado Cida<strong>de</strong> dos homens - Luiz Antonio Mousinho 1<br />

Entre 2002 e 2006 foram produzidas, veiculadas e lançados em DVD dois<br />

projetos <strong>de</strong> ficção audiovisual realizados pela O2 Filmes e a Casa <strong>de</strong> <strong>Cinema</strong> <strong>de</strong> Porto<br />

Alegre, em parceria com a Central Globo <strong>de</strong> Produção. O primeiro projeto resultou no<br />

seriado Cida<strong>de</strong> dos homens, concebido por Fernando Meirelles e o segundo no<br />

programa Cena aberta, projeto <strong>de</strong> Jorge Furtado, dois dos mais importantes cineastas<br />

brasileiros contemporâneos.<br />

Em 2003 foram ao ar os quatro episódios do Cena aberta, roteirizados por Guel<br />

Arraes e Jorge Furtado, dirigido pelos dois e por Regina Casé, todos com direção geral<br />

<strong>de</strong> Furtado. Lançado em dvd em 2004, o programa adaptou o conto Negro Bonifácio, <strong>de</strong><br />

Simões Lopes Neto, A hora da estrela, novela <strong>de</strong> Clarice Lispector, o conto As três<br />

palavras divinas, <strong>de</strong> Tolstói, e Ópera do sabão, romance <strong>de</strong> Marcos Rey, intitulado<br />

Folhetim. No programa, há a presença <strong>de</strong> uma forte levada <strong>de</strong> entretenimento televisivo,<br />

mesclado a telejornalismo, ficção televisiva e opção predominante pelo elemento<br />

cômico.<br />

Filmado e veiculado entre 2002 e 2005, Cida<strong>de</strong> dos homens foi encerrado em<br />

quarta temporada, com último dvd lançado em 2006. Ao todo foram 19 episódios,<br />

protagonizados por Acerola e Laranjinha, personagens criados por Bráulio Montavani<br />

(roteirista <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus), a partir do romance <strong>de</strong> Paulo Lins. O projeto foi<br />

encerrado em 2007 com o lançamento do longa-metragem Cida<strong>de</strong> dos homens – o filme,<br />

dirigido por Paulo Morelli.<br />

O seriado Cida<strong>de</strong> dos homens dialoga com vários textos audiovisuais e literários<br />

que lhe prece<strong>de</strong>ram. O romance Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> Paulo Lins, gerou um curta-<br />

metragem que serviu como ensaio para as filmagens <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Intitulado<br />

Palace II, o curta foi veiculado na série Brava Gente, da Globo, com direção <strong>de</strong><br />

Fernando Meirelles. Nele, os personagens Acerola e Laranjinha foram <strong>de</strong>lineados (a<br />

1 Mestre em Letras pela UFPB e doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professor do<br />

Departamento <strong>de</strong> Comunicação e da Pós-graduação em Letras da UFPB. Autor <strong>de</strong> Uma escuridão em<br />

movimento - relações familiares em Laços <strong>de</strong> família, <strong>de</strong> Clarice Lispector (EDUFPB/ Idéia, 1997) e A<br />

sombra que me move – ensaios sobre ficção e produção <strong>de</strong> sentido (cinema, literatura, tv) (EDUFPB/<br />

I<strong>de</strong>ia, 2011 - prelo). Professor do Curso <strong>de</strong> Comunicação Social da UFPB, pesquisador/ cosultor ad hoc<br />

do CNPq (bolsista <strong>de</strong> Produtivida<strong>de</strong> em pesquisa – PQ), email: lmousinho@yahoo.com.br


partir <strong>de</strong> personagens secundários do romance <strong>de</strong> Paulo Lins). No curta-metragem, no<br />

plano do enredo vêem-se os dois garotos evitando transgredir, se envolver em assaltos<br />

ou narcotráfico, mas seguindo num fio <strong>de</strong> navalha, oscilando ante a possibilida<strong>de</strong><br />

avaliada <strong>de</strong> se envolver com o crime (o que quase acontece em algumas situações), num<br />

ambiente <strong>de</strong> carência total.<br />

Já em Cida<strong>de</strong> dos homens, eles não <strong>de</strong>linqüem, se postam bem afastados do<br />

narcotráfico, mas são vistos em meio às complexas relações entre a comunida<strong>de</strong>, os<br />

traficantes e as estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ntro e fora dos morros. A ênfase, no entanto, é<br />

para a vida comunitária, tendo como elemento central o cotidiano dos dois garotos.<br />

Cena aberta: ficção, adaptação, telejornalismo, entretenimento<br />

Revelando os bastidores <strong>de</strong> produção, apontando abertamente as manipulações<br />

<strong>de</strong> tempo, espaço, personagem, etc, Cena Aberta parece se valer <strong>de</strong> conquistas<br />

metalingüísticas instauradas pela tv brasileira nos anos 80, em programas específicos,<br />

inspiradas em procedimentos <strong>de</strong> vanguardas no cinema <strong>de</strong> décadas anteriores, mas<br />

correndo em faixa própria, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um ambiente <strong>de</strong> consumo para gran<strong>de</strong>s audiências.<br />

E com feições próprias também na mescla entre ficção e telejornalismo, incorporando-<br />

se fortemente o gênero jornalístico entrevista à narrativa, bem como o gênero<br />

reportagem.<br />

Um dos episódios do Cena aberta, As três palavras divinas, é baseado num<br />

conto <strong>de</strong> Tolstói, dirigido por Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé, que<br />

protagoniza o programa, juntamente com o ator Luís Carlos Vasconcelos. No episódio é<br />

narrada uma situação <strong>de</strong> carência total <strong>de</strong> uma família -- um sapateiro, sua mulher e seus<br />

filhos. Minguando seus recursos para evitar a fome e o frio, o sapateiro <strong>de</strong> uma zona<br />

rural russa vai à cida<strong>de</strong> cobrar várias dívidas que lhe são <strong>de</strong>vidas por trabalhos que<br />

realizou e pelos quais não recebeu. Logo <strong>de</strong> início, os bastidores da produção do<br />

audiovisual baseado no conto são <strong>de</strong> certa forma revelados, conforme <strong>de</strong>lineado no<br />

roteiro <strong>de</strong> Furtado e Arraes.<br />

A atriz e diretora Regina Casé faz o papel <strong>de</strong> narradora, diretora e<br />

entrevistadora, na tela e em off/ over. O texto audiovisual, pela fala <strong>de</strong>la, vai revelando<br />

algo do seu fazer, situando a narrativa <strong>de</strong> Tolstói, falando <strong>de</strong> seus laços com a religião e<br />

os pobres da Rússia, colocando as falas do narrador ficcional e matizando-a,


comentando-a, acrescentando à fatura ficcional procedimentos do telejornalismo e do<br />

cinema documentário.<br />

Colando imagens <strong>de</strong> filmes como Ivan, o Terrível e Deus e o diabo na terra do<br />

sol, o episódio traz numa das cenas iniciais uma analogia entre pobreza e religiosida<strong>de</strong><br />

dos povos russo e brasileiro dos interiores, transferindo a narrativa para o frio do Rio<br />

Gran<strong>de</strong> do Sul, numa pequena cida<strong>de</strong>. O personagem é visto migrando da neve russa,<br />

com cenários e maquinário <strong>de</strong> filmagem expostos, e a<strong>de</strong>ntrando agasalhado num<br />

ver<strong>de</strong>jante e esfumaçado campo gaúcho.<br />

Em cena, Regina Casé aparece interagindo em frente à câmera como<br />

entrevistadora; noutros momentos, se faz uma contadora <strong>de</strong> histórias, lendo trechos do<br />

conto num galpão para os moradores do lugarejo, por vezes entrecruzando a narrativa<br />

com a experiência <strong>de</strong>les; ainda noutros instantes, vemos Regina acompanhado o<br />

trabalho amador <strong>de</strong> atuação cênica dos moradores da região e do ator Luiz Carlos<br />

Vasconcelos. Humor e entretenimento televisivo se alternam com o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

dramático, quando o episódio mergulha na ficção e vai acompanhar a dor do<br />

personagem Simão, visto em uma das primeiras cenas do episódio, em sua errância <strong>de</strong><br />

incerteza, embriaguez e fome, numa noite <strong>de</strong>sesperada e fria, on<strong>de</strong> encontra um rapaz<br />

<strong>de</strong>smaiado e nu, Miguel.<br />

Anjo caído por ter <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cido a Deus por pena <strong>de</strong> levar a alma <strong>de</strong> uma mãe<br />

que agonizava junto ao filho recém nascido, Miguel assume a precarieda<strong>de</strong> da condição<br />

humana e sente se<strong>de</strong> e frio e fome até cumprir a missão que lhe foi dada: apren<strong>de</strong>r, em<br />

sendo humano, o sentido das três palavras divinas, conforme revelará ao final o conto,<br />

como a narradora do audiovisual antecipará. As palavras divinas respon<strong>de</strong>riam aos<br />

mistérios sobre “o que existe nos homens, o que não sabem os homens e o que faz viver<br />

os homens”, como está no texto audiovisual.<br />

Duas manipulações <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> vista explicitamente assinaladas enquanto tais<br />

no roteiro vão iconizar o entendimento <strong>de</strong> algo <strong>de</strong>ssa condição, do enigma humano.<br />

Numa <strong>de</strong>las, conforme sugere o roteiro (mas não é integrado ao episódio) é repetida a<br />

cena <strong>de</strong> Simão sofrendo no fim da noite fria, agora visto pelo olhar do anjo.<br />

Noutra situação, incluída no episódio, a visão comovida do anjo mira a<br />

arrogância extremada <strong>de</strong> um coronel que a<strong>de</strong>ntra no casebre <strong>de</strong> Simão e encomenda<br />

ameaçadoramente botas especiais que durem dois anos, sem saber que irá morrer antes<br />

<strong>de</strong> usá-las, na revelação, no episódio, da segunda palavra divina – a ignorância dos<br />

homens quanto às suas necessida<strong>de</strong>s, quanto ao futuro.


Em As três palavras divinas há um uso bastante efetivo da entrevista enquanto<br />

experimentação da percepção do texto literário pelos atores amadores da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Linha Bonita. Isto se dá na maneira como esses atores interagem com as situações<br />

narrativas, atuando, sugerindo, refletindo sobre o processo. Dessa maneira, a<br />

experiência da comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ocorrem as locações é fortemente incorporada ao fazer<br />

ficcional e ao processo <strong>de</strong> adaptação do texto literário para o audiovisual.<br />

A edição explicitada <strong>de</strong> uma entrevista com o dono <strong>de</strong> um armazém potencializa<br />

a revelação do texto audiovisual, enquanto produtor <strong>de</strong> sentidos. A conversa <strong>de</strong> Regina<br />

Casé sobre fome, frio e venda fiado para ricos e pobres é repetida na conversa do<br />

bo<strong>de</strong>gueiro local com o personagem Simão. Ou seja, as respostas dadas pelo bo<strong>de</strong>gueiro<br />

a Casé são apresentadas e em seguida editadas como respostas a perguntas gravadas<br />

posteriormente pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos, em respostas a Simão. E as duas<br />

versões são apresentadas no episódio.<br />

O processo <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> As três palavras divinas incorpora o ponto <strong>de</strong> vista<br />

da comunida<strong>de</strong>, que se apropria do conto natalino e participa da construção da versão,<br />

conforme mesmo sugestão do roteiro. Além das entrevistas e esboços <strong>de</strong> reportagem<br />

integrados ao programa, certas respostas dos moradores dão conta <strong>de</strong> outras entrevistas<br />

não editadas, como quando, perguntada sobre a imagem <strong>de</strong> Deus, uma senhora lembra<br />

que “ontem e também no domingo” isso foi perguntado a várias pessoas, “aqui, lá em<br />

cima”.<br />

O ponto <strong>de</strong> vista da comunida<strong>de</strong> é incorporado ao processo <strong>de</strong> produção, como<br />

já dissemos. E também – por vezes, no texto audiovisual --, o ponto <strong>de</strong> vista no sentido<br />

<strong>de</strong> focalização (ou seja, qual é o personagem cujo ponto <strong>de</strong> vista orienta a perspectiva<br />

narrativa; quem vê, para falar com G. Genette). No caso da incorporação, em certos<br />

momentos, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> membros da comunida<strong>de</strong>, isso configuraria uma<br />

focalização interna múltipla, ou seja, aquela que “consiste no aproveitamento (quase<br />

sempre momentâneo e episódico) da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

personagens da história” (Reis; Lopes, p. 251) 2 .<br />

Na cena final o que seria a subida dos anjos aos céus é substituído por uma<br />

sondagem feita pelos atores Regina Casé e Luiz Carlos Vasconcelos, junto à<br />

2 “A focalização interna correspon<strong>de</strong> à instituição do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma personagem inserida na<br />

ficção, o que normalmente resulta na restrição dos elementos informativos a relatar, em função da<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong>ssa personagem. (...) O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo<br />

que a personagem vê, mas <strong>de</strong> um modo geral o que cabe <strong>de</strong>ntro do alcance do seu campo <strong>de</strong> consciência,<br />

ou seja, o que é alcançado por outros sentidos, além da visão, bem como o que é já conhecido<br />

previamente e o que é objeto <strong>de</strong> reflexão interiorizada” (Reis; Lopes, p.251).


comunida<strong>de</strong>, sobre como representar a imagem <strong>de</strong> Deus. Os moradores <strong>de</strong> Linha Bonita,<br />

no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, afirmam perceber o divino como imerso nas coisas, nas pessoas,<br />

nos elementos da natureza. Tais dados apontados são incluídos no texto fílmico. Isso<br />

sem que se <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> perceber que vários dos encaminhamentos da fala dos personagens<br />

são pré-concebidos pelo roteiro. Ou seja, que tal espontaneida<strong>de</strong> e amarração <strong>de</strong><br />

elementos captados se integram a um constructo discursivo consciente e bem disposto.<br />

O programa coloca a questão da representação <strong>de</strong> Deus e termina indicando a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se encontrar o divino nas pessoas. A câmera se ocupa então em<br />

focalizar as pessoas sendo encontradas em primeiro plano, os créditos nomeando os<br />

atores amadores que representam os papéis na adaptação do conto <strong>de</strong> Tolstói,<br />

adicionando ao final a informação da participação <strong>de</strong> “todos os moradores <strong>de</strong> Linha<br />

Bonita”, numa cena final com presença marcada <strong>de</strong> trilha melódica.<br />

O episódio As três palavras divinas faz uma adaptação produtiva do texto<br />

literário, aclimatando-o <strong>de</strong> forma estimulante ao ambiente da tv contemporânea e à<br />

percepção do espectador <strong>de</strong> televisão, sem se acomodar às rotinas <strong>de</strong> linguagem <strong>de</strong>sse<br />

mesmo ambiente. Ao mesmo tempo, investindo nas “virtu<strong>de</strong>s dialógicas da entrevista”<br />

(Medina, p. 7) As três palavras divinas se aproxima <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>, mergulhando<br />

em sua experiência, reativando nela e na espectação, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar e ouvir<br />

histórias, tecendo numa mesma peça discursiva a voz da narrativa oral e literária, além<br />

<strong>de</strong> ampliar as possibilida<strong>de</strong>s do cinema e da televisão contemporâneos.<br />

No episódio Negro Bonifácio, baseado em Simões Lopes Neto, a relação dos<br />

atores com a comunida<strong>de</strong> aposta nas diferenças e construções prosódicas, com as<br />

entonações e falares gaúchos, a tradução <strong>de</strong> palavras e costumes, costurando a relação<br />

<strong>de</strong> Caroline Dieckmann e Lázaro Ramos com a comunida<strong>de</strong> jovem <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>zinha<br />

gaúcha. Boa parte do tempo narrativo é <strong>de</strong>dicado a essa convivência, com porção bem<br />

menor do tempo do discurso sendo <strong>de</strong>dicado à encenação ficcional propriamente dita.<br />

Já o episódio Folhetim é adaptado do livro Ópera <strong>de</strong> Sabão, <strong>de</strong> Marcos Rey.<br />

Nele há uma paródia das radionovelas e também do melodrama apresentado nas<br />

telenovelas. Dessa vez não é uma comunida<strong>de</strong> que participa da construção do episódio,<br />

como em As três palavras divinas e Negro Bonifácio, nem mesmo um grupo <strong>de</strong> atrizes<br />

selecionados. Funcionários do núcleo <strong>de</strong> dramaturgia da Globo – câmeras, figurinistas,<br />

maquiadores, etc – se apóiam em sua participação <strong>de</strong> bastidores nas novelas globais e<br />

opinam na construção da trama e dos personagens, em diálogo com Regina Casé. O star


system também é parodiado, com Márcio Garcia em papel canastrão e direito até a uma<br />

ponta <strong>de</strong> Xuxa, numa alusão ao filme conto-<strong>de</strong>-fadas que os dois fizeram no cinema.<br />

Um outro texto literário adaptado no Cena aberta é A hora da estrela. O<br />

episódio se constrói <strong>de</strong> cenas <strong>de</strong> ensaios, <strong>de</strong> representações do texto, <strong>de</strong>poimentos da<br />

vida pessoal <strong>de</strong> várias candidatas amadoras que tentam interpretar a protagonista<br />

Macabéa, conduzidas por Regina Casé (que faz algumas personagens, inclusive ela<br />

mesma). A exibição editada <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> construção da personagem e os offs<br />

retirados do texto clariceano e que servem <strong>de</strong> fio condutor em trechos da narrativa,<br />

parecem resgatar dados do narrador da novela clariceana e da discussão assumida em<br />

torno dos impasses do processo mimético. Inclusive <strong>de</strong> seus impasses, mostrados nas<br />

vacilações da direção e das moças que representam. Elas que titubeiam no instante <strong>de</strong><br />

entendimento do personagem, nos momentos em que a narrativa vacila, nas várias<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manipulação, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação e <strong>de</strong>sfecho. Dessa maneira, nesse aspecto<br />

metaficcional, A hora da estrela do Cena Aberta se faz mais próxima da obra <strong>de</strong> Clarice<br />

Lispector do que o filme <strong>de</strong> Suzana Amaral, como assinala em texto recente o crítico<br />

Jean-Clau<strong>de</strong> Berna<strong>de</strong>t 3 .<br />

À sua maneira, aqui estão presentes procedimentos metalingüísticas que,<br />

ousados e até agressivos no passado, por <strong>de</strong>sconstruírem a mímesis clássica,<br />

comparecem ao cinema e à televisão contemporâneos como dados viáveis nas várias<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação ficcional. São procedimentos específicos <strong>de</strong> narrativas<br />

para gran<strong>de</strong>s audiências e que, ao contrário da novela literária adaptada, não apontam<br />

uma crise nas maneiras <strong>de</strong> representar. Apresentam, sim, procedimentos ampla e<br />

intuitivamente percebidos e aceitos pela recepção como possibilida<strong>de</strong>s viáveis e<br />

criativas <strong>de</strong> ativação do jogo <strong>de</strong> luzes e sombras acenado pela representação ficcional.<br />

Mas que se postam em patamar diverso da média <strong>de</strong> ficção televisiva, tendo veiculação<br />

em horários específicos.<br />

Cida<strong>de</strong> dos homens: amiza<strong>de</strong>, vida comunitária, violência<br />

O seriado Cida<strong>de</strong> dos homens tem forte intertexto audiovisual com Palace II e<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Porém, a representação do banditismo social nele é apenas lateral, com<br />

as várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vida comunitária sendo exploradas sobretudo a partir da<br />

3 Cf. BERNADET, Jean-Clau<strong>de</strong>. Caminhos <strong>de</strong> Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


convivência entre os amigos Acerola e Laranjinha e pelo olhar dos dois garotos, numa<br />

trama ficcional on<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e relações familiares sobrevivem em meio ao fogo<br />

cruzado do narcotráfico e das precárias condições <strong>de</strong> sobrevivência. O mentor e<br />

produtor do seriado, Fernando Meirelles, que também dirigiu episódios da série, <strong>de</strong>fine<br />

Cida<strong>de</strong> dos homens como um <strong>de</strong>sdobramento do filme Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Mesmos<br />

criadores, mesma equipe, mesmos atores. Mas po<strong>de</strong>mos dizer também que esse projeto<br />

é o avesso do outro: Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus é um drama com um toque <strong>de</strong> comédia sobre<br />

traficantes no Rio, a comunida<strong>de</strong> aparece apenas como pano <strong>de</strong> fundo. Cida<strong>de</strong> dos<br />

homens é uma comédia, com um toque <strong>de</strong> drama sobre uma comunida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro; os traficantes aparecem apenas como pano <strong>de</strong> fundo (MEIRELLES, 2002).<br />

Porém em alguns episódios, a questão do banditismo social, do narcotráfico,<br />

assume papel importante (embora não exatamente central), a exemplo <strong>de</strong> A cora do<br />

imperador e Correio (1ª temporada), Buraco quente (2ª temporada), Vacilo é um só (3ª<br />

temporada) e A fila (4ª temporada).<br />

Em A coroa do imperador é feito um paralelo entre as estruturas do Império<br />

Napoleônico e as estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r do narcotráfico, isso a partir do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

Acerola, ativado nas aulas <strong>de</strong> História da escola pública. Em uma <strong>de</strong> suas seqüências, o<br />

episódio, ao explicar didaticamente o funcionamento do narcotráfico nos morros do Rio,<br />

também traça um paralelo entre a estrutura do comércio legal no capitalismo e a<br />

estrutura do comércio ilegal, no narcotráfico.<br />

O seriado também tematiza o apoio assistencial dado pelo narcotráfico em<br />

termos <strong>de</strong> remédios e afins, ocupando o papel da socieda<strong>de</strong> organizada, como forma<br />

política <strong>de</strong> boa vizinhança 4 . A coroa do imperador também incorpora um trecho<br />

documental on<strong>de</strong>, em meio à representação ficcional, o tom, a movimentação <strong>de</strong> câmera<br />

e a textura da imagem se modificam, e os atores, com seus nomes em legenda, dão<br />

<strong>de</strong>poimentos sobre o que presenciaram em termos <strong>de</strong> ultra-brutalida<strong>de</strong> na sua<br />

convivência pessoal com a violência nos morros.<br />

Mas uma das seqüências mais bem trabalhadas do mesmo episódio é a da saída<br />

<strong>de</strong> Acerola do prédio do patrão da mãe (empregada doméstica), um prédio <strong>de</strong> classe<br />

média. Enquanto aguarda serem lentamente abertas gra<strong>de</strong>s e mais gra<strong>de</strong>s que darão<br />

acesso à rua, a voz over do personagem, em tom baixo e reflexivo, revela sua visão<br />

4 Tal política <strong>de</strong> boa vizinhança, com traços <strong>de</strong> justiçamento social, é tematizada no contexto do cangaço<br />

em romances como Fogo Morto, Pedra Bonita e Cangaceiros, <strong>de</strong> José Lins do Rego. Paulo Lins, autor <strong>de</strong><br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, aponta a obra <strong>de</strong> Zé Lins como uma das matrizes narrativas <strong>de</strong> seu romance, que<br />

tematiza igualmente o banditismo social.


sobre aquela estranha forma <strong>de</strong> vida, entre gra<strong>de</strong>s, guaritas, guardas pessoais 5 . “Pelo<br />

dinheiro que eles gastam para não ser roubados, você po<strong>de</strong> imaginar o dinheiro que eles<br />

têm para ser roubado”, percebe e também fantasia um pouco o garoto (não parece se<br />

tratar <strong>de</strong> um prédio <strong>de</strong> luxo). De toda forma, na fala, há um <strong>de</strong>svelamento fortíssimo da<br />

cruelda<strong>de</strong> da trama social brasileira.<br />

Pelo dinheiro que eles acham que não é nada, vocês imaginam o<br />

dinheiro que eles acham que é muito. Eles ganham muito, mas<br />

pagam pouco. Eles pagam pouco, e por isso ganham muito. Mas<br />

eu nunca ia querer morar num lugar assim. Parece uma prisão. O<br />

problema daqui é falta <strong>de</strong> segurança. Eles vivem com gra<strong>de</strong>,<br />

câmera, porteiro – que ficam te vigiando. E mesmo assim aqui<br />

tem muito assalto (MEIRELLES, 2002).<br />

Nessa cena do filme a tela é dividida em quatro partes, a partir do monitor da<br />

segurança do prédio. As imagens parecem típicas do sistema <strong>de</strong> segurança, mas o são<br />

apenas parcialmente. Elas extrapolam esse dado realista, comentando a voz over em<br />

ângulos e enquadramentos que nem sempre confirmam referencialmente a imagem <strong>de</strong><br />

um monitor <strong>de</strong> vigilância, potencializando assim a ativação <strong>de</strong> sentidos em articulação<br />

com a fala do personagem. Caminhando entre as fronteiras urbanas e entrando no<br />

ambiente da favela, Acerola continua percebendo e analisando os contrastes.<br />

Na favela não tem porteiro, nem câmera e nem assalto. Aqui é a<br />

fronteira entre lá e aqui. Lá é um país, aqui é outro. Esses aqui,<br />

são os guardas da fronteira <strong>de</strong> lá [apontando policiais]. E esses<br />

daqui [apontando traficantes armados], são os guardas da<br />

fronteira <strong>de</strong> cá. Lá eles escolhem quem manda neles. Aqui eles<br />

já estão escolhidos. Os playboys gostam <strong>de</strong> ver o morro na<br />

televisão, para ver como é ruim aqui e achar melhor morar lá.<br />

Eles só passam daqui para comprar drogas, filmar e fazer<br />

reportagem. Eu acho que se eles gostam <strong>de</strong> drogas, não <strong>de</strong>ve ser<br />

5 Grosso modo, chamamos <strong>de</strong> voz over quando o som não é diegético, a fala do personagem que está ou<br />

não fora da tela não correspon<strong>de</strong> à fala ou ao diálogo <strong>de</strong> uma ação que se <strong>de</strong>senrola naquele momento. O<br />

off daria conta <strong>de</strong> uma situação on<strong>de</strong> o personagem fala, durante uma ação, mas sem estar na tela, por um<br />

afastamento da câmera ou algo assim. Mais generalizadamente se usa a expressão off para as duas<br />

situações.


tão bom morar lá: porque é cheio <strong>de</strong> gra<strong>de</strong>, porteiro, câmera. A<br />

droga para eles é que nem tempero, que eles pagam para achar<br />

melhor viver na prisão.<br />

Esses dois mundos vizinhos vão freqüentemente ser vistos em tensão no seriado.<br />

Em três episódios, inspirados em narrativa literária infanto-juvenil, haverá o aceno <strong>de</strong><br />

uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproximação e encontro entre os protagonistas do seriado e<br />

garotos <strong>de</strong> classe média.<br />

Tem que ser agora: pegar o instante<br />

O episódio Tem que ser agora, da segunda temporada do seriado Cida<strong>de</strong> dos<br />

homens, dá continuida<strong>de</strong> às aproximações e tensões entre classe média e morro, com<br />

mais forte presença no episódio Uólace e João Victor, da temporada anterior. Este<br />

episódio, baseado no livro homônimo <strong>de</strong> Rosa Strausz, traz à cena João Victor,<br />

personagem <strong>de</strong> classe média baixa que vai co-protagonizar Tem que ser agora,<br />

roteirizado por Jorge Furtado, Regina Casé e Rosa Strausz, dirigido por Regina Casé.<br />

Em Tem que ser agora, o espaço principal da ação é a praia, espaço bastante<br />

explorado como ambiente gerador <strong>de</strong> encontros, catalisador <strong>de</strong> tensões na cida<strong>de</strong> do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, emblemática dos contrastes sociais brasileiros. A praia é o espaço aon<strong>de</strong> vai<br />

se <strong>de</strong>senrolar a maior parte da história. Na mistura da areia, o povo do morro comparece<br />

chegando a pé, brancos, pretos e mulatos <strong>de</strong>scendo aos montes dos ônibus, ocupando a<br />

praia <strong>de</strong>cantada nas canções e nas telenovelas, enquanto a moçada <strong>de</strong> classe média se vê<br />

meio perplexa em frente <strong>de</strong> casa no eixo Leblon-Ipanema.<br />

Essa mistura, algo tensa algo distensa no misturado das areias e das ondas e na<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convivência sagrada num tipo <strong>de</strong> vida litorânea é explorada no episódio<br />

nos diálogos e planos rápidos que costuram as pequenas histórias, as várias conversas,<br />

os flertes, as evitações, os interesses, olhares abertos naquele espaço -- espaço, por outro<br />

lado, <strong>de</strong>marcadíssimo.<br />

Os diálogos aparentemente simples <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> dos homens têm a força das<br />

linguagens vivas das ruas e se constroem em roteiros muito bem amarrados, ativados


por um auscultar os atores nos ensaios e um retrabalhar as falas novamente 6 . As falas<br />

soam com um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> germinação que habita na esperteza da levada do uso diário da<br />

língua, dos discursos da vida prática, nos acentos que <strong>de</strong>svelam as relações sociais.<br />

Nessas falas, há com freqüência graça e humor e sempre um revelar <strong>de</strong> conflitos que<br />

confere muito do vigor discursivo do seriado.<br />

Os diálogos dos personagens assinalam a assunção ou o negacear no assumir<br />

interesses, preconceitos, divergências, diferenças, marcação dos espaços na areia. Uma<br />

fala <strong>de</strong> duas meninas da zona sul, enquadradas em primeiro plano, com expressão<br />

<strong>de</strong>sanimada e perplexa, <strong>de</strong>fine a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto ante a invasão da praia.<br />

Duda - Carooolll...<br />

Carol - Duda, o que é que tem essa praia...<br />

Duda - Cê sabe que eu não sou racista, Carol. Não, cê sabe... Eu<br />

não tenho o menor preconceito contra preto... Mas, peraí! Mora<br />

no Vidigal, vai na prainha do Vidigal; mora em São Conrado,<br />

vai no Cantão <strong>de</strong> São Conrado. Agora, com uma praia tão<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas vem em frente à minha casa...<br />

Carol -Fizeram até aquela piscina lá para eles... Eu não tenho o<br />

menor preconceito. Eu sou madrinha do filho da minha<br />

empregada...<br />

Duda - Não, eu só acho que não tem necessida<strong>de</strong>...<br />

Nesse diálogo inicial, muito do que se afirma <strong>de</strong>nuncia imediatamente o que se<br />

cala, numa co-presença <strong>de</strong> vozes sociais, para falar com Mikhail Bakhtin, que vai<br />

trazendo à tona, pela estilização e pela paródia, o dado social recalcado, revelado pela<br />

linguagem e aqui me refiro tanto aos diálogos quanto aos <strong>de</strong>mais elementos do discurso<br />

audiovisual (BAKHTIN, 1981, p.13). A objetivização e <strong>de</strong>formação da linguagem<br />

média na entonação afetada e falseada (“eu não tenho o menor preconceito...”), “revela<br />

<strong>de</strong> maneira abrupta sua ina<strong>de</strong>quação ao objeto” (BAKHTIN, 1993, p.108), pela<br />

expressão <strong>de</strong> repulsa da personagem, pela alusão <strong>de</strong>slocada do compadrio com a<br />

empregada, ou com a expressão “lá para eles”, que <strong>de</strong>marca a distância e contrasta com<br />

6 Movimento que remete ao processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e mostra o quanto esses<br />

audiovisuais elevaram o padrão <strong>de</strong> exigência do cinema e da tv no Brasil.


a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> assinalada antes. O etnocentrismo enrustido e as<br />

hierarquias abissais <strong>de</strong> um Brasil que amontoa Vieira Souto e Rocinha são revelados aí.<br />

Em Tem que ser agora, um casal já está formado, Acerola e a namorada, cuja<br />

iniciação amorosa quase ocorre após a praia, mas é interrompida por um tiroteio no<br />

morro 7 . Outros dois casais vão se formando. O surfista João Victor e uma menina,<br />

evitada por Laranjinha por parecer burguesinha, mas que na verda<strong>de</strong> mora na Rocinha;<br />

ela, que é amiga <strong>de</strong> Camila, moradora da zona sul, que vai terminar quase ficando com<br />

Laranjinha. Em pauta, a urgência da vida e a vergonha da virginda<strong>de</strong>, eles que pensam<br />

na primeira transa para aquele dia, na vida para àquela hora: tem que ser agora.<br />

Antes do encontro, em vários ocorrências <strong>de</strong> voz over, Laranjinha assinala a<br />

praia como um “espaço confuso”, em angústia que gera várias das sacadas <strong>de</strong> humor no<br />

seriado, nos diálogos com Acerola. Laranjinha assinala a ambigüida<strong>de</strong> daquela<br />

convivência na praia e o faz mirando as meninas, tentando adivinhar suas classes<br />

sociais, olhando as pessoas, suas roupas e percebendo como as aparências enganam.<br />

Evitando quem ele pensa ser inviável para ele.<br />

O espaço narrativo é <strong>de</strong>marcado pelo entrecruzamento <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista. Os<br />

grupos se observam e se comentam. A perspectiva narrativa é <strong>de</strong>lineada por esses<br />

olhares, fragmentos <strong>de</strong> imagens e situações formadas pelas personagens e suas falas que<br />

especulam sobre o tipo <strong>de</strong> vida, sobre o status social, sobre as possibilida<strong>de</strong>s afetivas<br />

dos outros, e, em alguns casos, sobre as vantagens que po<strong>de</strong>m ser tiradas <strong>de</strong> uma<br />

aproximação e as possíveis perdas 8 . No rito <strong>de</strong> beira-mar, o espaço permite intercursos,<br />

passagens, mistura -- mas ao mesmo tempo cada um sabe seu lugar na areia.<br />

Mikhail Bakhtin assinala que “classe social e comunida<strong>de</strong> semiótica não se<br />

confun<strong>de</strong>m”. Ou seja, classes sociais diferentes usam uma só e mesma língua, on<strong>de</strong><br />

“confrontam índices <strong>de</strong> valor contraditório” (BAKHTIN, 1988, p.46). No episódio,<br />

essa linguagem compartilhada se mostra em discursos que expõem suas contradições,<br />

sua repulsão e seu <strong>de</strong>sejo. As palavras são compartilhadas assim como os espaços da<br />

areia da praia, convivência geradora da história que vai sendo construída<br />

discursivamente, dialogicamente.<br />

A incorporação do discurso da diferença como moda vai estar inscrita na fala da<br />

menina Camila (“meu pai vai amar, meu pai é antropólogo...”), que termina levando<br />

7 O namoro e a transa <strong>de</strong> Acerola com a menina Lidiane irá progredir em gravi<strong>de</strong>z e casamento, ren<strong>de</strong>ndo<br />

motivos explorados em vários outros episódios do seriado.<br />

8 A personagem Andressa, moradora da favela, <strong>de</strong> olho nos gringos; Duda se afastando dos meninos da<br />

favela.


Laranjinha para o apartamento da família, quando fogem <strong>de</strong> uma briga generalizada<br />

entre surfistas <strong>de</strong> classe média e favelados, confronto que inviabiliza a praia.<br />

Percebendo a intenção <strong>de</strong>la, Laranjinha recusa o convite para subir ao apartamento,<br />

quando já está na portaria do prédio, o que se dá num diálogo tenso.<br />

Laranjinha: -- Já sei. Quer ficar com um neguinho do morro só<br />

para tirar onda com as tuas amiguinhas, né?<br />

Camila: -- Não, cara, não me importo mesmo...<br />

Laranjinha: -- Mas eu me importo. Não vou subir para tu ficar<br />

tirando onda comigo lá em cima não [silêncio] Ah, quer tirar<br />

onda, vai namorar bandido, moleque do movimento, aí sim tu<br />

vai tirar onda!<br />

A briga na praia vai precipitar o surfista João Victor e sua paquerinha<br />

aparentemente classe média (mas que mora no morro), que fogem numa prancha para o<br />

mar e terminam quase se afogando. Salvos pela re<strong>de</strong> do salva-vidas, suspensos no ar, se<br />

beijam e terminam confessando um para o outro -- urgente e timidamente, a virginda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>les, <strong>de</strong> maneira ansiosa, envergonhada, e por fim enternecida. In<strong>de</strong>cisos quanto a si e<br />

quanto ao outro, sobre <strong>de</strong> que forma a inexperiência <strong>de</strong> cada um seria aceita pelo outro.<br />

Quebrando estereótipos masculinos, é ele quem prefere adiar o ato, “para evitar fazer<br />

tudo na pilha, na pressão”. Tranqüilizando ela, que especula sobre o risco <strong>de</strong> correrem o<br />

risco <strong>de</strong> morrerem antes, virgens, como quase acontecera no espaço do mar. Ele:<br />

“<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo que a gente viveu hoje, a gente não morre tão cedo”.<br />

Tal diálogo <strong>de</strong>scrito acima acontece com os dois girando no ar, em plano<br />

fechado, tremendo <strong>de</strong> frio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> e sem que o espectador visualize<br />

completamente a situação espacial, o que acontece só após a câmera ir abrindo o campo<br />

e o helicóptero que puxa a cesta salva-vidas ser enquadrado. O roteiro e a direção<br />

assinalam <strong>de</strong> maneira extremamente bem entramada silêncios, avanços e recuos na fala<br />

dos dois.<br />

Na seqüência final Laranjinha é visto voltando sem perspectiva ao espaço já sem<br />

sentido da praia, após o atrito com Camila que o levara ao apartamento como uma<br />

“atração” a ser exibida a primos e pais. O personagem aparece na mesma seqüência do<br />

início do episódio, <strong>de</strong> bicicleta na ciclovia à beira-mar, voz e ar abafados, especulando


sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dormir na praia por conta do morro ter sido “fechado” pelo<br />

tráfico, a praia migrando <strong>de</strong> um espaço vivo para assumir um ar totalmente hostil.<br />

“Cara, que dia comprido. Parece que eu já acor<strong>de</strong>i há uma semana”. Em segundo plano,<br />

ao longe, no mar, vê-se João Victor e a menina pendurados na re<strong>de</strong> do salva-vidas,<br />

alçados pelo helicóptero.<br />

On<strong>de</strong> coinci<strong>de</strong> o corte da seqüência inicial, é o ponto <strong>de</strong> pegar o instante que<br />

estala no personagem. Ele toma <strong>de</strong> assalto (“tem que ser agora”) o celular <strong>de</strong> uma<br />

senhora, pedala rapidamente, checa o telefone <strong>de</strong> Camila, disca, diz que já ficou com<br />

sauda<strong>de</strong>, reata o contato. Retorna com a bicicleta, vemos o grupo <strong>de</strong> banhistas <strong>de</strong> classe<br />

média especulando nervosamente em torno <strong>de</strong> algum lugar-comum verbal e gestual<br />

sobre on<strong>de</strong>-vamos-bater-com-essa-onda-<strong>de</strong>-assalto. Laranjinha retorna, freia, explica<br />

que foi só uma ligação local, <strong>de</strong>volve o celular, <strong>de</strong>ixa um beijo levemente agressivo e<br />

irônico para a mulher perplexa e vagarosamente se afasta <strong>de</strong> bicicleta. A câmera<br />

estaciona e o enquadra se distanciando, braços abertos no rumo do Morro Dois Irmãos,<br />

pedalando tranqüilamente, quando o espaço <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser hostil e passa novamente a<br />

fazer sentido. Na trilha, O vencedor, da banda Los Hermanos, cuja letra relativiza o<br />

sentido finalista <strong>de</strong> vitória (“Eu que já não quero mais/ser um vencedor/ levo a vida<br />

<strong>de</strong>vagar/ pra não faltar amor”). Na narrativa, os três casais adolescentes terminam<br />

<strong>de</strong>slocando, assim, o sentido <strong>de</strong> urgência.<br />

A imagem habitada<br />

Diana Luz Pessoa distingue dialogismo e polifonia, assinalando que o termo<br />

“dialogismo recobre o princípio dialógico constitutivo da linguagem e <strong>de</strong> todo<br />

discurso”. Enquanto isso, “a polifonia caracterizaria um certo tipo <strong>de</strong> texto, aquele em<br />

que o dialogismo se <strong>de</strong>ixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição<br />

aos textos monofônicos que escon<strong>de</strong>m os diálogos que os constituem” (BARROS, 1997,<br />

p.35).<br />

Em Bakhtin, a palavra é percebida como terreno habitado (BAKHTIN, 1982,<br />

p.176) como arena <strong>de</strong> luta retórica 9 e nela há, po<strong>de</strong>ríamos dizer, uma co-habitação <strong>de</strong><br />

vozes múltiplas on<strong>de</strong> não só há oposições como complementarida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> as posições<br />

mesmo radicalmente opostas levam em conta e se constituem mesmo levando em conta<br />

9 Tomando a expressão aqui obviamente em sentido amplo.


a palavra do outro. “O nosso discurso da vida prática está cheio <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong> outros”<br />

(Bakhtin, 1982, 168).<br />

Esse dado constituinte da alterida<strong>de</strong> será tema e construção <strong>de</strong> linguagem em<br />

boa parte dos episódios <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> dos homens, on<strong>de</strong> diferenças culturais e sociais e<br />

diferenças <strong>de</strong> expectativas e <strong>de</strong> públicos <strong>de</strong> cinema e televisão se fazem presentes. Isso<br />

<strong>de</strong> maneira, consciente, com os dados discursivos ressaltando as recamadas vozes que<br />

convivem em ligação vital, ressaltando contradições e pontos <strong>de</strong> contato, como vimos<br />

nesse Tem que ser agora, que <strong>de</strong>senha um olhar generoso sobre o universo<br />

adolescente 10 .<br />

Da temporada anterior, o episódio Uólace e João Victor é o que adapta<br />

diretamente o livro <strong>de</strong> Rosa Strauzs. Neste episódio, a violência e ou a agressivida<strong>de</strong><br />

como resposta para resolver os conflitos não é sentida como possibilida<strong>de</strong> única. É<br />

contraposta a uma outra possibilida<strong>de</strong>: a <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senhar certa generosida<strong>de</strong> na<br />

convivência, reunindo os cacos <strong>de</strong> humor e solidarieda<strong>de</strong> partilhada ainda possíveis nas<br />

ruas dos gran<strong>de</strong>s centros urbanos brasileiros. Isso sem abrir mão <strong>de</strong> dar a visão <strong>de</strong> um<br />

país exacerbadamente injusto e da solidão que termina minando as relações entre as<br />

pessoas, <strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> cada extrato social.<br />

A narrativa tem, para citar a síntese <strong>de</strong> G. Genette, focalização interna, on<strong>de</strong> o<br />

narrador apenas diz o que certa personagem sabe (GENETTE, s/d, 187). Mas aqui é<br />

interna múltipla, com os focos se alternando. Genette lembra que “uma focalização<br />

externa em relação a uma personagem, po<strong>de</strong>, por vezes, igualmente bem, <strong>de</strong>ixar-se<br />

<strong>de</strong>finir como uma focalização interna sobre outro” (GENETTE, s/d, 190). No caso do<br />

filme e do livro, há a alternância entre as visões <strong>de</strong> mundo dos dois garotos, cujas<br />

mentes filtram a informação diegética 11 . E muito do que tais narrativas revelam advém<br />

<strong>de</strong>ssa alternância, quando pontos <strong>de</strong> vista e <strong>de</strong> cegueira dos narradores se contradizem,<br />

<strong>de</strong>sconstruindo estereótipos, assumindo diferenças e revelando insuspeitáveis<br />

semelhanças nas dores e no <strong>de</strong>sejo dos dois garotos.<br />

No mesmo episódio, a câmera instável que acompanha e recorta a luta nas ruas<br />

do cotidiano <strong>de</strong> Acerola e Laranjinha se alterna com a imagem estável da câmera no<br />

apartamento <strong>de</strong> classe média baixa <strong>de</strong> João Victor. Tal estabilida<strong>de</strong> iconiza -- incrusta<br />

10 Olhar esse também presente em duas comédias românticas à brasileira assinadas por Jorge Furtado (coroteirista<br />

<strong>de</strong> Tem que ser agora e diretor geral do Cena Aberta): Houve uma vez dois verões e Meu tio<br />

matou um cara.<br />

11 Aqui utilizo a distinção entre história ou diegese (o que se conta) e discurso (como se conta).Cf.<br />

Genette, s/d, p.27).


na linguagem, outro tipo <strong>de</strong> tensão, na ansieda<strong>de</strong> sufocante da classe média, construindo<br />

um olhar sobre a convivência entre o garoto e sua mãe.<br />

A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro entre adolescentes <strong>de</strong> dois grupos sociais distintos<br />

vai ser celebrada em tensão, leveza, amiza<strong>de</strong> e humor ainda na segunda temporada. No<br />

episódio Os ordinários, on<strong>de</strong> o surfista classe média João Victor, morador na área que<br />

faz limite com o morro, vai travar amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> férias como Uólace (Laranjinha) e<br />

Acerola, <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>sconfiança e repulsa entre eles, exibida nos outros episódios. A<br />

aproximação vai ser mediada e possibilitada na praia pelo trânsito <strong>de</strong>scompromissado<br />

<strong>de</strong> dois garotos “japoneses”-paulistas, filhos <strong>de</strong> empresário, que se divertem pelas praias<br />

do Rio. A subida <strong>de</strong>les ao morro – percebido como zona neutra (sem assaltos) e espaço<br />

vital <strong>de</strong> convivência comunitária, vai ser feita pela mediação do motorista negro que<br />

está responsável pelos garotos nissei <strong>de</strong> São Paulo. Aqui se afirma no seriado a intenção<br />

em tematizar a favela mostrando que nela co-existem várias formas <strong>de</strong> vida e<br />

organização social e que boa parte da comunida<strong>de</strong> não se relaciona com o mundo do<br />

crime, rompendo com a aproximação estereotipada entre favelado e bandido.<br />

No último episódio da quarta e última temporada <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> dos homens, os<br />

protagonistas são substituídos na vinheta <strong>de</strong> abertura por bonecos <strong>de</strong> animação, pretos.<br />

A história contada é a simulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego dos dois atores que fazem Acerola e<br />

Laranjinha, Douglas Silva e Darlan Cunha, após o término do seriado. Em alguns<br />

momentos usando animação, especula-se sobre as saídas possíveis para a vida dos<br />

garotos. A ascensão social parodia fatos tematizados pelo jornalismo no momento <strong>de</strong><br />

produção do episódio, como o caso mensalão e afins, mostrando como membros <strong>de</strong><br />

classes subalternas po<strong>de</strong>m ascen<strong>de</strong>r ao po<strong>de</strong>r ratificando as relações sociais injustas,<br />

locupletando-se.<br />

Tornando aos atores, eles são vistos <strong>de</strong>sanimados vagando por um PROJAC em<br />

ruínas, sem nenhum glamour e comentando que aquele cenário seria <strong>de</strong> uma gravação<br />

<strong>de</strong> apenas um ano atrás, o que reforça neles – agora interpretando simuladamente a si<br />

mesmos – uma sensação <strong>de</strong> obsolência, <strong>de</strong> serem peças já usadas e <strong>de</strong>scartáveis no<br />

mundo do espetáculo televisivo.<br />

A TV Globo é parodiada, nos clichês <strong>de</strong> seus programas <strong>de</strong> auditório e <strong>de</strong><br />

entretenimento (Faustão e Fantástico) e na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> empregos para negros em<br />

telenovelas. Ao fim, a vinheta <strong>de</strong> encerramento, já familiar ao <strong>telespectador</strong>, produz<br />

outro dado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfamiliarização, substituindo os dois heróis da série por vários garotos<br />

negros e mulatos, esquálidos e anônimos, correndo em aflição e urgência entre os


arracos estilizados. Aparece aí certo sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto no espectador.<br />

O <strong>telespectador</strong> <strong><strong>de</strong>slocado</strong><br />

Além do essencial <strong>de</strong> dar uma contribuição estética interessantíssima à rotina da<br />

tv brasileira, o seriado parece não se enquadrar num mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> diluição <strong>de</strong> tensões,<br />

como certa crítica chegou a afirmar. Cida<strong>de</strong> dos homens representa muito mais um<br />

ruído positivo <strong>de</strong>ntro da programação normal <strong>de</strong> tevê 12 . Trabalho audiovisual filmado<br />

em 16 mm, com um tratamento narrativo esteticamente maduro, o seriado traz<br />

narrativas que se recusam a <strong>de</strong>senhar uma falsa re<strong>de</strong>nção, mostrando claramente “o<br />

imenso <strong>de</strong>samparo dos jovens que não querem a<strong>de</strong>rir ao crime organizado”, como<br />

assinala Maria Rita Khel. Ao comentar o episódio Buraco quente, dirigido e roteirizado<br />

por Paulo Morelli, a autora ressalta que, nele,<br />

os atores que representavam traficantes foram filmados <strong>de</strong> modo<br />

a parecer medonhos, assustadores, <strong>de</strong>tonados. Comecei a me<br />

incomodar com a presença daquelas imagens <strong>de</strong>ntro da minha<br />

casa. O episódio não terminou mal, mas não ofereceu nenhuma<br />

gran<strong>de</strong> esperança <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção; nenhuma perspectiva se abria no<br />

horizonte do protagonista. Fiquei enclausurada, junto com o<br />

adolescente Espeto – ele na tela, eu na frente da tevê. Concluí<br />

que Cida<strong>de</strong> dos homens abre um prece<strong>de</strong>nte importantíssimo na<br />

teledramaturgia brasileira. Não se trata da inclusão dos negros<br />

da favela no mundo do espetáculo (...) Mas o mal-estar que o<br />

episódio me causou mostra que um programa <strong>de</strong> televisão ainda<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar o espectador <strong>de</strong> sua sonolência enfastiada (KHEL,<br />

2006, p.2).<br />

Apontando e incorporando as dores dos becos-sem-saída nos quais<br />

historicamente o Brasil meteu boa parte <strong>de</strong> sua população, o seriado ao mesmo tempo<br />

12 Sigo aqui Hil<strong>de</strong>berto Barbosa Filho, no que o autor pensa o ruído como uma maneira <strong>de</strong> interferência<br />

na comunicação que po<strong>de</strong> vir a gerar novida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>spertar a percepção e a causar o estranhamento 12 . E<br />

estranhamento como efeito <strong>de</strong> sentido que provoca “uma percepção renovada do objeto, uma maneira<br />

especial <strong>de</strong> conhecimento (...) um reconhecimento essencial das coisas”, e o autor está se referindo aos<br />

formalistas russos, em especial a Chklovski.. Cf. BARBOSA FILHO, Hil<strong>de</strong>berto. “Ruído,<br />

estranhamento, comunicação”. In: O giz e a letra. João Pesoa: Manufatura, 2003.


não espera o dia em que todas as questões se resolvam, mas aposta em diversas<br />

harmonias bonitas e possíveis, vendo a vivacida<strong>de</strong> e a força da vida comunitária, com<br />

dados muitas vezes perdidos na vida aburguesada (já dizia Walter Benjamin, o<br />

“comfort” isola...) 13 .<br />

E o gênero escolhido para dar as cores <strong>de</strong>ssa vitalida<strong>de</strong>, é a comédia. Newton<br />

Cannito e Leandro Saraiva ressaltam que “a comédia diferencia-se da tragédia por não<br />

‘bater <strong>de</strong> frente’, ‘buscar as contradições irreconciliáveis’ da época, mas, ao contrário,<br />

por buscar ‘driblar’ essas contradições, estabelecendo pactos que permitem à vida<br />

prosseguir”. Como <strong>de</strong>stacam os autores,<br />

Uma comédia tem que acabar na festa <strong>de</strong> conciliação, porque, se<br />

ela durar até o dia seguinte, a impressão <strong>de</strong> ‘solução’ se <strong>de</strong>sfaz.<br />

(...) Northrop Frye [afirma] que na comédia costuma haver um<br />

ponto (em geral o <strong>de</strong>senlace) no qual tudo está por um fio, sendo<br />

o fim trágico afastado, em geral, por uma reviravolta na história<br />

(...) A ‘comédia séria’ (...) é aquela em que não rimos ou rimos<br />

só às vezes. Acompanhamos os personagens resolvendo seus<br />

problemas, o que, neste caso, <strong>de</strong>ve ser feito com todas as<br />

preocupações <strong>de</strong> preparação e lógica. (...) Neste tipo <strong>de</strong> comédia<br />

temos uma narrativa baseada na compreensão <strong>de</strong> todos os pontos<br />

<strong>de</strong> vista envolvidos (...) Não se trata nem <strong>de</strong> ridicularizar (farsa),<br />

nem <strong>de</strong> confrontar em bloco (tragédia), nem <strong>de</strong> entregar-se à<br />

comiseração (melodrama). Trata-se <strong>de</strong> tomar os pontos <strong>de</strong> vista<br />

em questão e agir para harmonizá-los (CANNITO; SARAIVA,<br />

p.94-95).<br />

Cannito e Saraiva <strong>de</strong>stacam ainda que, nesse caso, a progressão dramática se faz<br />

freqüentemente através do “entrecruzamento <strong>de</strong> focos narrativos ou, pelo menos, pelo<br />

<strong>de</strong>ciframento das perspectivas alheias, a partir <strong>de</strong> um foco situado, nunca absolutizado.<br />

Os personagens da comédia serão apresentados sempre ‘em situação’, agindo em função<br />

da ação e do olhar alheios” (CANNITO; SARAIVA, p.95) .<br />

Sem querer forçar a mão em relação a projetos bem específicos, po<strong>de</strong>mos<br />

13 “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concor<strong>de</strong>m/ apenas sei <strong>de</strong> diversas harmonias bonitas<br />

possíveis sem juízo/ final”. Cf. CAETANO Veloso. [Rio <strong>de</strong> Janeiro] Polygram, 1991. 1 CD.


perceber tanto no programa Cena aberta como em Cida<strong>de</strong> dos homens, esse viés, que<br />

muitas vezes vem do elemento cômico, no que se refere ao movimento <strong>de</strong> assinalar<br />

diferentes pontos <strong>de</strong> vista. Quebrando estereótipos, <strong>de</strong>lineando a compreensão do outro<br />

nas sem escamotear tensões, os dois conjuntos <strong>de</strong> textos audiovisuais permitem e<br />

sugerem um <strong>de</strong>slocamento do olhar, o re<strong>de</strong>senho da paisagem interior dos<br />

<strong>telespectador</strong>es. O que se realiza seja por on<strong>de</strong> e quando o tempo se entretém, a reflexão<br />

se instaura, o <strong>de</strong>sconforto assoma, o riso se espraia.

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