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artigo árido movie: transversalidade dialética - Cartaz de Cinema

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Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Paraíba<br />

Núcleo <strong>de</strong> Pesquisas em Mídias Digitais e Processos Interativos - Numid<br />

Pólo Multimídia<br />

ARTIGO<br />

ÁRIDO MOVIE: TRANSVERSALIDADE DIALÉTICA<br />

João Pessoa, 26 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2007<br />

Simão Vieira <strong>de</strong> Mairins


Árido Movie: <strong>transversalida<strong>de</strong></strong> <strong>dialética</strong><br />

Contexto sócio-cultural<br />

No início da década <strong>de</strong> 1990, Recife já sentia o agravamento do impacto <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado crescimento econômico que lhe conce<strong>de</strong>u o título <strong>de</strong> metrópole do<br />

Nor<strong>de</strong>ste. Mesmo com um dos maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do Brasil, os<br />

baixos índices <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida conferiram à cida<strong>de</strong> o rótulo <strong>de</strong> mais violenta do<br />

país e <strong>de</strong> um dos piores lugares para a juventu<strong>de</strong> viver (GOUVEIA, Thaís. Diário <strong>de</strong><br />

Pernambuco. Vida Urbana. Disponível em:<br />

. Acesso em: 13 nov.<br />

2007).<br />

Essa época marcou o surgimento <strong>de</strong> uma nova cena cultural na capital <strong>de</strong><br />

Pernambuco. O movimento <strong>de</strong>nominado Manguebeat (ou Manguebit), fundado por<br />

Francisco França - o Chico Science - juntamente do jornalista e músico Fred Zero<br />

Quatro, revolucionou a produção da época, influenciando diversos setores das artes. As<br />

bases da nova estética foram lançadas em alguns jornais <strong>de</strong> Recife, através do Manifesto<br />

Caranguejos Com Cérebro, escrito por Zero Quatro.<br />

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros<br />

sinais <strong>de</strong> esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos<br />

trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da “metrópole”<br />

só tem levado ao agravamento acelerado do quadro <strong>de</strong> miséria e caos urbano. [...]<br />

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre <strong>de</strong> infarto!<br />

(ZERO QUATRO, Fred. In. Manifesto Caranguejos Com Cérebro, 1992)<br />

O cinema do estado, impulsionado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1920 – fase do Ciclo <strong>de</strong><br />

Recife* – pelo espírito <strong>de</strong> preservação dos valores regionais, não ficou ileso, e se tornou<br />

parte constitutiva <strong>de</strong>ssa nova cena. A reconstrução <strong>de</strong> conceitos da cultura pop sob uma<br />

ótica, ao mesmo tempo, cosmopolita e <strong>de</strong> raiz, colocada como uma saída para a apatia<br />

da cida<strong>de</strong> “megalopolizada” (ZERO QUATRO, 1992) encaixou-se como uma constante<br />

na estética da cinematografia recente <strong>de</strong> Pernambuco. De elementos tradicionais das<br />

socieda<strong>de</strong>s nor<strong>de</strong>stinas, como a religiosida<strong>de</strong>, as disputas por po<strong>de</strong>r ligadas à terra e os<br />

dilemas da classe média nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, obras como, <strong>de</strong>ntre outras, o longa Baile<br />

Perfumado – dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira e que conta a história do libanês<br />

que filmou Lampião e seu bando – produzidas no epicentro da agitação cultural da<br />

década passada, extraem reflexões <strong>de</strong>nsas e universais.<br />

A produção<br />

Em 2006, o Manguebit já havia consolidado uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e propagado sua<br />

estética por vários países, colocando Recife <strong>de</strong> volta na rota artístico-cultural do Brasil,<br />

ao passo que o cinema pernambucano já era reconhecido como um dos mais prósperos<br />

da nova safra brasileira (FILHO, Mendonça Kleber. Instituto Cervantes. Coisa <strong>de</strong><br />

<strong>Cinema</strong>: reportagens. Disponível em:<br />

. Acesso em: 09<br />

nov. 2007).<br />

Foi nesse ambiente, explorando as experiências somadas ao longo do tempo<br />

transcorrido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras movimentações da década <strong>de</strong> 90, que Lírio Ferreira


lançou Árido Movie, uma produção <strong>de</strong> baixo orçamento rodada em cida<strong>de</strong>s sertanejas,<br />

como Arcover<strong>de</strong> e Sertânia, além <strong>de</strong> tomadas em Recife e São Paulo.<br />

Seguindo a tendência <strong>de</strong> outros filmes da mesma linha - como o próprio Baile<br />

Perfumado e Amarelo Manga – a escolha dos atores se <strong>de</strong>u com a integração entre<br />

nomes do eixo-sul do Brasil e do Nor<strong>de</strong>ste, com presenças muito importantes <strong>de</strong><br />

pernambucanos e paraibanos. O elenco principal é formado por Guilherme Weber,<br />

Giulia Gam, Renata Sorrah, Selton Melo, Gustavo Falcão, Mariana Lima, José Celso<br />

Martinez Corrêa, Paulo César Pereio, Matheus Nachtergaele, Aramis Trinda<strong>de</strong>, Maria<br />

<strong>de</strong> Jesus Bacarelli, Magdale Alves, José Dumont, Luís Carlos Vasconcelos e Suyane<br />

Moreira, além da participação <strong>de</strong> Lirinha, do grupo musical Cor<strong>de</strong>l do Fogo Encantado.<br />

Vale <strong>de</strong>stacar, aqui, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> figuras consagradas, inclusive, atuando com papéis<br />

curtos, algo que foi alvo <strong>de</strong> várias críticas <strong>de</strong> veículos especializados. Além <strong>de</strong> atores já<br />

bem conhecidos do gran<strong>de</strong> público, como Matheus Nachtergaele, Selton Melo e Giulia<br />

Gam, ter Renata Sorrah e José Celso Martinez em participações bem rápidas acaba<br />

gerando a impressão <strong>de</strong> que houve um esforço no sentido <strong>de</strong> diminuir a sensação <strong>de</strong><br />

hermetismo que filmes <strong>de</strong>sse tipo costumam causar, a fim <strong>de</strong> tornar a obra mais viável<br />

no mercado <strong>de</strong> entretenimento.<br />

Árido Movie tem Lírio Ferreira na direção, na produção e no roteiro, o que<br />

reforça ainda mais a tese <strong>de</strong> que esse é o gran<strong>de</strong> trabalho do co-diretor <strong>de</strong> Baile<br />

Perfumado e Cartola. Além <strong>de</strong>le, há ainda Murilo Salles na produção e fazendo a<br />

fotografia, e Hilton Lacerda, Eduardo Nunes e Sérgio Oliveira no roteiro.<br />

O filme foi rodado em película Super 35, o que lhe confere a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cinemascope, on<strong>de</strong> a imagem é mais alargada e há maior fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> som (Cinedie.<br />

Glossário: cinemascope. Disponível em:<br />

. Acesso em: 09 nov. 2007). Isso<br />

acaba afastando o estereótipo <strong>de</strong> que a filmografia recente tem se engajado muito em<br />

questões reflexivas, trabalhando bastante o roteiro e esquecendo um pouco da qualida<strong>de</strong><br />

técnica. Mesmo sabendo que Árido Movie foi uma produção bastante barata, tal<br />

diferença, por mais que seja positiva, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser mais um indício <strong>de</strong> que existe um<br />

esforço para tornar a produção mais comercial, mesmo sem aten<strong>de</strong>r aos parâmetros do<br />

cinema puramente blockbuster.<br />

A história<br />

Tudo se <strong>de</strong>senvolve com o retorno <strong>de</strong> Jonas (Guilherme Weber) - apresentador<br />

da previsão do tempo em um popular telejornal - à fictícia cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rocha, on<strong>de</strong><br />

nascera - para o enterro do pai, Lázaro (Paulo César Pereio), assassinado pelo índio<br />

Jurandir (Luís Carlos Vasconcelos). A partir disso, o filme <strong>de</strong>bate as relações humanas,<br />

tendo como uma constante a escassez <strong>de</strong> água, ao mesmo tempo, uma metáfora das<br />

tramas da história e uma crítica aberta ao seu uso político.<br />

Durante a viagem <strong>de</strong> Recife - on<strong>de</strong> vive sua mãe (Renata Sorrah) - ao interior,<br />

Jonas encontra, casualmente, Soledad - personagem <strong>de</strong> Giulia Gam – uma<br />

documentarista que registra <strong>de</strong>poimentos sobre o uso político e religioso da água no<br />

interior do Nor<strong>de</strong>ste. É esse encontro que faz o elo entre a história e o discurso subjetivo<br />

do filme, porque a função <strong>de</strong> Soledad nada mais é que uma gran<strong>de</strong> metáfora <strong>de</strong> toda a<br />

reflexão que se dá ao longo da obra.<br />

O protagonista interpretado por Guilherme Weber vive um dilema existencial ao<br />

entrar em contato com a família, que mal conhece e tem valores bastante dissociados<br />

dos seus, questionando-se sobre a vida que tem e tentando compreen<strong>de</strong>r sua própria<br />

origem num lugar on<strong>de</strong> o tempo parece não ter passado. A breve convivência com um<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte indígena, Zé Elétrico - interpretado por José Dumont - durante a estada no


Sertão, é o ponto alto do filme, on<strong>de</strong> os conflitos internos <strong>de</strong> Jonas se tornam mais<br />

claros, tanto para ele quanto para o espectador. E é isso que dá vazão à interpretação <strong>de</strong><br />

cenas distintas que se intercalam como se fossem partes <strong>de</strong> uma só.<br />

Numa cena antológica, em que Jonas tem um clímax alucinógeno, Árido Movie<br />

tem uma quebra do enca<strong>de</strong>amento lógico. Lázaro “ressuscita” e se junta a Wedja<br />

(Suyane Moreira) – a irmã <strong>de</strong> Jurandir que causou a confusão motivo <strong>de</strong> seu assassinato<br />

– que atira em direção à câmera subjetiva, como se, ao mesmo tempo, atirasse em Jonas<br />

e no espectador. E assim, todo o retorno que se faz ao passado do jornalista durante o<br />

período <strong>de</strong> efeito da droga que ele usou é “assassinado”, como se a morte <strong>de</strong> Lázaro<br />

cortasse o último vínculo entre Jonas e a família paterna, assim como encerra o transe<br />

em que a seqüência coloca quem assiste. O peso da origem, que muitas vezes pareceu<br />

ser intransigente e não <strong>de</strong>ixar saídas a não ser ce<strong>de</strong>r às tradições, é, <strong>de</strong>finitivamente,<br />

exorcizado.<br />

Com esse pano <strong>de</strong> fundo, a obra ainda relembra o mo<strong>de</strong>lo glauberiano <strong>de</strong> criação<br />

cinematográfica, discute o papel das mídias na contemporaneida<strong>de</strong>, absorve elementos<br />

da literatura religiosa na construção dos personagens, trabalha a quebra <strong>de</strong> estereótipos<br />

construídos pelo distanciamento <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s próximas e tem a música como parte do<br />

próprio discurso fílmico, algo já visto em Baile Perfumado.<br />

A poética<br />

Árido Movie, por ter sido produzido sobre o aglomerado <strong>de</strong> experiências<br />

realizadas ao longo da década <strong>de</strong> 90 em Recife e toda uma nova experiência<br />

cinematográfica brasileira, é tido, pelo próprio diretor, como uma evolução do que se<br />

viu em Baile Perfumado. Nesse outro longa <strong>de</strong> Lírio Ferreira, dirigido em parceria com<br />

Paulo Caldas, o passado se inseria no futuro, com o cangaço sendo midiatizado por um<br />

estrangeiro numa época em que as forças regionais (no caso do Nor<strong>de</strong>ste, os coronéis)<br />

eram a tônica <strong>de</strong> um país <strong>de</strong> industrialização tardia. Já no filme <strong>de</strong> 2006, Lírio promove<br />

um diálogo da socieda<strong>de</strong> contemporânea - on<strong>de</strong> o acesso à informação é quase<br />

instantâneo e o surgimento <strong>de</strong> novas tecnologias segue a lógica da volatilida<strong>de</strong> imposta<br />

pelo mercado - com as tradições ainda arraigadas no seio <strong>de</strong> pequenas cida<strong>de</strong>s do<br />

interior, como o arcaico mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> disputa por po<strong>de</strong>r encenado na cida<strong>de</strong> fictícia <strong>de</strong><br />

Rocha, mas sempre mantendo a veia <strong>dialética</strong> que tem influenciado a maioria das<br />

produções mais recentes, motivo pelo qual não raras vezes são <strong>de</strong>finidos como “filmes<br />

<strong>de</strong> esquerda”.<br />

Características da <strong>dialética</strong> dos opostos, on<strong>de</strong> partes distintas <strong>de</strong> um todo se<br />

complementam para dar sentido ao que se diz, constroem a ponte entre os núcleos<br />

aparentemente isolados uns dos outros. Por exemplo, a trama <strong>de</strong>senvolvida em Rocha<br />

não teria sentido se Jonas, homem da capital, não estivesse inserido nela. Do mesmo<br />

jeito que a reflexão existencial <strong>de</strong>ste personagem não se daria sem seu retorno à cida<strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> nascera. Até mesmo a própria edição do filme corrobora essa idéia, pela forma<br />

como as seqüências estão dispostas. Longas cenas repartidas em pequenos trechos que<br />

se intercalam entre si, sendo essenciais para a compreensão do discurso.<br />

E é, também, sobre isso que a <strong>de</strong>sconstrução dos estereótipos promovida pelo<br />

filme se assenta. Aparentemente, Árido Movie tem três núcleos <strong>de</strong>sconexos, como se<br />

existissem mais <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um só. Os amigos <strong>de</strong> Jonas (interpretados por<br />

Selton Melo, Gustavo Falcão e Mariana Lima) <strong>de</strong>screvem uma trajetória à parte durante<br />

todo o tempo, algo que, para o simples <strong>de</strong>senvolvimento da história, seria totalmente<br />

dispensável. Mas os <strong>de</strong>talhes dos diálogos, as reações diante <strong>de</strong> um mundo estranho fora<br />

da capital e o contraste que eles criam quando se inserem no contexto dos outros<br />

núcleos são as ações que dão sentido ao ponto central do filme, que é pôr em discussão


as relações humanas em suas mais variadas facetas. Uma seqüência que ilustra bem isso<br />

é a do momento em que o trio encontra uma plantação <strong>de</strong> maconha como se tivesse<br />

<strong>de</strong>scoberto o paraíso. Primeiro, no momento em que os três dançam em meio aos<br />

arbustos da droga, a imagem em slow-motion corrobora a aura <strong>de</strong> encanto que existe em<br />

torno do uso e que foi exposta no início do filme, quando o personagem <strong>de</strong> Selton Melo<br />

<strong>de</strong>strincha os mistérios <strong>de</strong> como se fazer um “bom baseado”. E em seguida, quando se<br />

<strong>de</strong>param com as realida<strong>de</strong>s do tráfico, como a violência e o <strong>de</strong>smando dos capatazes dos<br />

plantadores – os “meninos da CG” – o glamour apresentado no início do filme é<br />

<strong>de</strong>sconstruído. Ou seja, o discurso do filme <strong>de</strong>senvolve todo um trajeto que parte <strong>de</strong> um<br />

pré-conceito e culmina com o impacto da quebra <strong>de</strong>ste.<br />

Nesse mesmo sentido, é colocado o elemento símbolo do filme. A água está<br />

sempre posta como objeto <strong>de</strong> cisão, no entanto, capaz <strong>de</strong> tornar compreensíveis os<br />

paradoxos criados pela sua própria colocação no enredo. Numa cena em que Jonas<br />

dialoga com um taxista, na chegada a Recife, o motorista se indaga sobre como po<strong>de</strong><br />

uma cida<strong>de</strong> cercada por rios e <strong>de</strong> frente para o mar viver sob regime <strong>de</strong> racionamento<br />

hídrico. Ou ainda na cida<strong>de</strong> sertaneja, on<strong>de</strong>, na fazenda do místico Meu Velho (José<br />

Celso Martinez Corrêa), há água em abundância, mas o local é castigado pela seca. No<br />

primeiro caso, a água é o que divi<strong>de</strong> o progresso e o caos. Uma metrópole, com alta<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mográfica e importante centro econômico, tem colocados em lados opostos<br />

o seu <strong>de</strong>senvolvimento e os resultados <strong>de</strong>ste. Em meio à <strong>de</strong>masia <strong>de</strong> bens, falta água,<br />

como ilustra a frase no fim do filme: “excesso <strong>de</strong> informação, falta d’água”. No caso <strong>de</strong><br />

Rocha, o exercício do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, do controle dos recursos<br />

hídricos. A ação política se confun<strong>de</strong> com a religiosa. O lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma seita messiânica<br />

controla as fontes com um discurso persuasivo e ameaçador, aproveitando-se da<br />

vulnerabilida<strong>de</strong> gerada pela miséria dos seus seguidores, mas ven<strong>de</strong> a água, elemento<br />

chave das profecias que faz, mas que também alimenta os carros-pipas dos políticos da<br />

região.<br />

Transversalida<strong>de</strong>s<br />

Árido Movie converge em si elementos dos mais diversos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> traços estéticos<br />

do cinema glauberiano até o <strong>de</strong>bate acerca do avanço da tecnologia na criação <strong>de</strong> novas<br />

mídias.<br />

A subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Glauber Rocha está por toda parte. Por exemplo, logo no<br />

início do filme, quando, nos bastidores do telejornal que apresenta, Jonas aparece<br />

totalmente <strong>de</strong>sfocado, às vezes, por trás da imagem bem visível <strong>de</strong> um copo com água<br />

ou <strong>de</strong> uma tela <strong>de</strong> TV. Ou ainda em uma das últimas cenas, quando a personagem<br />

Wedja olha para a câmera, aponta uma arma e atira. Sem contar com o nome da cida<strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> se passa gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> história, que, segundo o próprio diretor em entrevistas, é<br />

uma homenagem ao falecido cineasta.<br />

Alguns personagens têm função claramente dialógica com meios não<br />

necessariamente cinematográficos, como, por exemplo, a televisão. Jonas, apresentador<br />

da previsão do tempo num telejornal diário, é objeto <strong>de</strong> reflexão sobre a onipresença<br />

<strong>de</strong>ssa mídia no cotidiano das pessoas. Ou ainda o primo do jornalista – Márcio Greick<br />

(personagem <strong>de</strong> Aramis Trinda<strong>de</strong>) – cujo nome é uma homenagem ao músico e<br />

apresentador da extinta emissora Tupi, muito famoso nas décadas <strong>de</strong> 1970-80. Ambos<br />

servem <strong>de</strong> fomento para que o espectador possa refletir sobre a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

penetração da TV até mesmo nos lugares mais dissociados do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

tecnológico. Um lugar pobre, marcado pela escassez <strong>de</strong> água e disputas políticas entre<br />

famílias tradicionais em <strong>de</strong>cadência econômica. Esse é o ambiente da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rocha,<br />

mas po<strong>de</strong> ser a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> muitos outros pequenos municípios do interior nor<strong>de</strong>stino.


Mesmo assim, elementos da realida<strong>de</strong> padronizada da televisão são tão arraigados<br />

quanto as tradições, uma forma diferente <strong>de</strong> abordar o Sertão – associado, comumente, à<br />

seca – já marcante na produção <strong>de</strong> Lírio Ferreira (em Baile Perfumado, a paisagem<br />

ver<strong>de</strong> dissocia a obra da abordagem estereotipada da região, tendo como símbolo a<br />

clássica cena on<strong>de</strong> Lampião pára num penhasco ver<strong>de</strong>jante ao som <strong>de</strong> Chico Science ).<br />

Indo além do <strong>de</strong>bate acerca do papel da televisão na contemporaneida<strong>de</strong>, Árido<br />

Movie trata também a questão da difusão dos recursos tecnológicos. Numa época que se<br />

costuma chamar Era da Informação, ter acesso a certos produtos é sinônimo <strong>de</strong> inclusão<br />

e, portanto, garantia do exercício <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> hegemonia. Não é à toa que o<br />

personagem Márcio Greick mantém sempre consigo um aparelho <strong>de</strong> telefone celular,<br />

enquanto coor<strong>de</strong>na as antiquadas ações em busca do índio Jurandir para vingar a morte<br />

<strong>de</strong> Lázaro.<br />

Já a personagem Soledad exerce uma função peculiar. Ela não só contribui para<br />

o <strong>de</strong>bate sobre a difusão das mídias, mas também produz o discurso metalingüístico do<br />

filme, além <strong>de</strong> ser a chave que estabelece a diferença básica entre Árido Movie e Baile<br />

Perfumado. Durante o percurso na busca por discursos religiosos e políticos sobre a<br />

água, nada ilustra tão bem o muro que há entre o futuro e o passado que convivem lado<br />

a lado num mesmo presente quanto a cena em que a personagem <strong>de</strong> Giulia Gam filma<br />

um homem simples do campo simulando procurar água com uma forquilha enquanto<br />

Jonas quebra seu celular simplesmente porque não consegue realizar uma ligação.<br />

Já a questão da metalinguagem está no fato <strong>de</strong> a personagem interpretada por<br />

Giulia Gam <strong>de</strong>dicar toda sua atuação à realização <strong>de</strong> um ví<strong>de</strong>o-documentário. Mesmo<br />

não sendo exatamente o mesmo formato do filme, tanto por não se tratar <strong>de</strong> ficção<br />

quanto por a mídia usada ser diferente, o ví<strong>de</strong>o se encaixa numa mesma linha. Por mais<br />

que se insista em classificar documentário como realida<strong>de</strong> e cinema como ficção, na<br />

verda<strong>de</strong>, é impossível dissociar os formatos <strong>de</strong> modo tão simplista, sem consi<strong>de</strong>rar as<br />

similarida<strong>de</strong>s.<br />

E no que diz respeito ao paralelo entre os dois longas dirigidos por Lírio<br />

Ferreira, Soledad exerce o papel inverso do libanês que inseriu o passado numa<br />

perspectiva <strong>de</strong> futuro, registrando imagens <strong>de</strong> Lampião num tempo em que câmeras<br />

eram novida<strong>de</strong>s. A documentarista leva a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> aon<strong>de</strong> o tempo parece parado.<br />

Até mesmo no fim do filme, quando ela realiza a exposição do que produziu no Sertão,<br />

não é o conteúdo registrado que vai à capital, é a gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> que a<strong>de</strong>ntra no universo<br />

documentado, fazendo uma viagem pelo mundo das profecias <strong>de</strong> Meu Velho.<br />

Assim, se verifica que o encontro transversal entre cinema e outras mídias não se<br />

dá em apenas um sentido, nem por uma razão somente. Antes <strong>de</strong> tudo, a contribuição do<br />

Manguebeat no que diz respeito à integração entre o novo e o tradicional é visível. A<br />

cena chave do filme que evi<strong>de</strong>ncia o cosmopolitismo presente no discurso através <strong>de</strong><br />

recursos midiáticos é a do momento em que Jonas e Soledad (Giulia Gam) estão em um<br />

bar enquanto outras pessoas assistem a uma transmissão esportiva em tempo real,<br />

admiradas com a diferença <strong>de</strong> fuso-horário e a distância geográfica entre o lugar on<strong>de</strong> se<br />

encontram e o país on<strong>de</strong> acontece o jogo <strong>de</strong> futebol. Para o discurso <strong>de</strong>senvolver a<br />

quebra <strong>de</strong> estereótipos, a inserção do improvável ou absurdo em <strong>de</strong>terminado contexto é<br />

fundamental.<br />

“Repórter da TV - Aqui no Vietnã são oito horas e a seleção canarinho continua<br />

sua lerda adaptação ao fuso-horário.<br />

Dono do bar: Que negócio mais doido: lá é quase oito e aqui é nove da manhã!<br />

Isso é uma ciência!”<br />

(Trecho <strong>de</strong> Árido Movie, 90 min. Direção <strong>de</strong> Lírio Ferreira).


Por fim, outra marca <strong>de</strong> imbricação com outros elementos em Árido Movie, são<br />

as músicas. Com trabalhos do músico pernambucano Otto e a participação <strong>de</strong> Renato e<br />

Seus Blue Caps, a trilha dialoga com o próprio discurso fílmico, certamente pela ligação<br />

com o movimento li<strong>de</strong>rado por Chico Science e Fred Zero Quatro, que tinha como<br />

principal foco a produção musical.<br />

Nota<br />

* Ciclo <strong>de</strong> Recife - Na década <strong>de</strong> 1920, vários centros do Brasil impulsionaram a<br />

produção <strong>de</strong> cinema mudo, através do movimento nacional pró-cinema, incentivado<br />

pelas revistas Para Todos e Selecta – maiores veículos da época – o que ficou<br />

conhecido como ciclos regionais. Em Recife, foram produzidos 13 longas-metragens,<br />

colocando a cida<strong>de</strong> na posição <strong>de</strong> um dos mais importantes núcleos <strong>de</strong> produção<br />

cinematográfica do Brasil.<br />

(Fundação Joaquim Nabuco. <strong>Cinema</strong> Pernambucano. Disponível em: <<br />

http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?p<br />

ublicationCo<strong>de</strong>=16&pageCo<strong>de</strong>=300&textCo<strong>de</strong>=2499&date=currentDate>. Acesso em:<br />

25 nov. 2007).

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