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Somanlu ano 3_ n. 12_ jan.dez. 2003.pdf - Eventos - Ufam

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Apresentação<br />

<strong>Somanlu</strong><br />

Revista de Estudos Amazônicos<br />

<strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

1


PRESIDENTE DA REPÚBLICA<br />

Luís Inácio Lula da Silva<br />

MINISTRO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA<br />

Eduardo Campos<br />

GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS<br />

Eduardo Braga<br />

VICE-GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS<br />

Omar Aziz<br />

SECRETÁRIA DE ESTADO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA<br />

Marilene Corrêa da Silva Freitas<br />

2<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Apresentação<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS<br />

DIRETOR-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DO AMAZONAS<br />

José Aldemir de Oliveira<br />

MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO<br />

Tarso Genro<br />

REITOR<br />

Hidemberg Ordozgoith da Frota<br />

VICE-REITORA<br />

Neila Falcone da Silva Bonfim<br />

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO<br />

José Ferreira da Silva<br />

DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS<br />

Maria Izabel de Medeiros Valle<br />

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA<br />

Elenise Faria Scherer<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Elenise Faria Scherer, Ernesto Renan Freitas Pinto, João Bosco Ladislau de Andrade,<br />

José Aldemir de Oliveira, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, Márcia Perales Mendes<br />

Silva, Marcos Frederico Krüger Aleixo, Maria Izabel de Medeiros Valle, Marilene<br />

Corrêa da Silva, Narciso Júlio Freire Lobo, Nelson Matos de Noronha, Odenildo<br />

Teixeira Sena, Selda Vale da Costa, Walmir Albuquerque Barbosa, Yoshiko Sassaki.<br />

COMISSÃO EDITORIAL<br />

Elenise Faria Scherer<br />

Nelson Noronha<br />

Narciso Júlio Freire Lobo


Apresentação<br />

<strong>Somanlu</strong><br />

Revista de Estudos Amazônicos<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

3


4<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Apresentação<br />

Copyright © 2004 Universidade Federal do Amazonas<br />

EDITOR<br />

Renan Freitas Pinto<br />

COORDENADORA DE REVISTAS<br />

Prof.ª Dayse Enne Botelho<br />

FINALIZAÇÃO DA CAPA<br />

Wilson Prata<br />

CONCEPÇÃO GRÁFICA<br />

Marcicley Rego<br />

FOTO DA CAPA<br />

Andréia Mayumi<br />

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA<br />

Elton Neves/Rogério Cordovil<br />

REVISÃO DE ABSTRACTS<br />

Paulo Renan Gomes da Silva<br />

REVISÃO DE PORTUGUÊS<br />

Renan Freitas Pinto<br />

A exatidão das informações, conceitos e opiniões são<br />

de exclusiva responsabilidade dos autores<br />

Publicada em Julho de 2004<br />

<strong>Somanlu</strong>: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da<br />

Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). —- Manaus: Edua/FAPEAM, 2000 -<br />

v.: il.; 17 x 24cm.<br />

Semestral<br />

Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.<br />

Interrompida em 2001.<br />

ISSN 15118-4765<br />

1. Cultura Amazônica 2. Amazônia - Sociologia 3. Amazônia - Antropologia I. Programa de Pós-Graduação em<br />

Sociedade e Cultura na Amazônia.<br />

Editora da Universidade Federal do<br />

Amazonas<br />

Rua Monsenhor Coutinho, 724 - Centro<br />

Telefax: (0xx) 92 231-1139<br />

e-mail: edua@fua.br<br />

CEP 69.010-110 Manaus/AM<br />

CDU 316.722(811)<br />

Esta obra foi publicada com o apoio financeiro da:<br />

FAPEAM<br />

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas<br />

Rua Recife, n º 3.280 - Parque Dez<br />

fone: (0xx92) 634-3389<br />

CEP 69.057-002 Manaus/AM


Apresentação<br />

Apresentação ............................................................................... 7<br />

Natureza e cultura na Amazônia: evolução e tendências da<br />

pesquisa e da pós-graduação<br />

Nelson Matos de Noronha ........................................................ 13<br />

7<br />

Meditação e devaneio: entre o rio e a floresta<br />

João de Jesus Paes Loureiro ....................................................... 23<br />

Os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbás<br />

Garantido e Caprichoso, heróis do Festival Folclórico de Parintins<br />

Maria Eva Letízia ...................................................................... 35<br />

Escolas indígenas: a que será que se destinam?<br />

Márcio Silva ............................................................................... 67<br />

Uma comunidade da várzea: organização e morfologia social<br />

Marilene Corrêa da Silva/José Fernandes Barros..................... 89<br />

Políticas agrárias e políticas ambientais na Amazônia:<br />

encontros e desencontros<br />

Kátia Helena Serafina Cruz Schweickardt .............................. 111<br />

Políticas energéticas no Estado do Amazonas: implicações e<br />

questões em face do meio ambiente<br />

André Jun Miki .......................................................................... <strong>12</strong>5<br />

Manaus ontem e hoje: transformações do espaço urb<strong>ano</strong> e<br />

memória popular<br />

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6<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Apresentação<br />

Lucynier Omena Melo .............................................................. 139<br />

Cidades desaparecidas: Poiares, século 18<br />

Patrícia Melo Sampaio ............................................................. 157<br />

Pós-modernidade: uma tentativa de reflexão sobre sua<br />

expressão econômica, política e cultural<br />

Marinez Gil Nogueira .............................................................. 181<br />

Filosofia, antropologia: o fim de um mal-entendido<br />

Claude Imbert .......................................................................... 203<br />

Dissertações defendidas até 2001 ................................................... 225<br />

Roteiro para elaboração de artigos ................................................. 239


Apresentação<br />

Apresentação<br />

A revista <strong>Somanlu</strong> se consolida e se afirma como a Revista do Programa de<br />

Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do<br />

Amazonas assegurando assim a sua continuidade como um periódico marcadamente<br />

multidisciplinar, guardando estreita relação com o que se pesquisa e escreve sobre<br />

a Amazônia, principalmente nas Ciências Humanas, mantendo ainda a identidade<br />

com a reformulação do curso de mestrado.<br />

Os artigos selecionados para o presente número levantam indagações e<br />

expressam inquietações substantivas sobre a Amazônia. Essa é a principal<br />

característica da revista: ser múltipla não apenas por abarcar áreas diversas do<br />

conhecimento, mas porque interpreta não uma Amazônia, mas Amazônias, a partir<br />

de diferentes pontos de vista. Portanto, os artigos selecionados constituem um<br />

conjunto de textos de fôlego que aponta para o fato de que a construção da<br />

problemática amazônica, mais do que uma questão local, é mundial.<br />

A reformulação do Programa, estabelecida por meio de uma ação entendida<br />

como a capacidade política e científica de criar uma ordem de coerência, visou a<br />

busca da compreensão dos variados e complexos processos envolvidos na produção<br />

da Amazônia no século 21. Para isso, a realização de estudos pontuais é<br />

extremamente importante como também a criação de condições para o intercâmbio<br />

de idéias numa inter-relação permanente entre o marco teórico conceitual e os<br />

dados objetivos de pesquisas de campo, de modo complementar.<br />

Neste sentido, a publicação de reflexões de pesquisadores de diversos lugares<br />

do Brasil e do mundo possibilita-nos visões diferenciadas da ciência e da Amazônia<br />

que, postas lado a lado com os resultados de pesquisas de alunos e professores<br />

ligados ao Programa, permite o intercâmbio de conhecimentos e de idéias<br />

fundamentais para o crescimento da ciência e para a compreensão de processos<br />

culturais que fazem da Amazônia um complexo e diferenciado espaço sociocultural.<br />

Por outro lado, os artigos aqui apresentados articulam teoria e prática. O foco da<br />

revista é a discussão de temas relacionados à Amazônia a partir da realidade local.<br />

Por isso, mesmo os textos marcadamente teóricos, revelam o pl<strong>ano</strong> do vivido,<br />

explicitando referenciais, identidades e lutas que revelam a produção sociocultural<br />

da Amazônia.<br />

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8<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Apresentação<br />

Partindo desse pressuposto, no artigo de abertura, Nelson Matos de<br />

Noronha analisa o processo que culminou com a transformação do ponto de vista<br />

curricular, pedagógico e conceitual do Programa Natureza e Cultura na Amazônia<br />

para o Programa em Sociedade e Cultura na Amazônia. Mais do que a simples<br />

mudança de denominação, o artigo analisa as tendências e a evolução do programa,<br />

associando o aparecimento do Mestrado as representações que constituem formas<br />

da existência humana na Amazônia.<br />

No artigo seguinte João de Jesus Paes Loureiro, poeta e importante<br />

intelectual da Amazônia envolvido com a difusão dos enigmas da região, articula<br />

arte com a natureza, visando construir a dimensão transfiguradora que preside as<br />

trocas e traduções simbólicas da cultura amazônica. Na mesma linha, mas numa<br />

dimensão pontual, é o texto da pesquisadora portuguesa radicada na França Maria<br />

Eva Letízia que analisa os enredos nativistas dos Bois-Bumbás de Parintins.<br />

Inicialmente a autora traça a origem do boi-bumbá e assinala que o festival de<br />

hoje já tem outros objetivos que não se resumem ao simples reverenciar do boibumbá,<br />

já que no folclore amazônico os ingredientes nativistas ou indigenistas<br />

ultrapassam largamente o quadro do antigo auto popular.<br />

O Prof. da USP Márcio Silva analisa o surgimento das escolas indígenas<br />

nas últimas duas décadas e o modo como a escola oportuniza a aquisição da educação<br />

formal, pelo menos em pé de igualdade com o resto da comunidade nacional. O<br />

autor sustenta que a criação das Escolas Indígenas corresponde a uma das<br />

reivindicações mais freqüentes dos povos e organizações indígenas no Brasil. O<br />

autor aponta a importância das escolas indígenas sem esquecer de destacar as<br />

dificuldades enfrentadas para a superação dos velhos modelos e práticas pedagógicas<br />

associadas à escola tradicional.<br />

O artigo da professora Marilene Corrêa da Silva e do sociólogo José<br />

Fernandes Barros, além de seu mérito sociológico, tem particular relevância por<br />

focalizar uma área de várzea da Amazônia especificamente o município de<br />

Manacapuru no Estado do Amazonas, onde os autores participam de um projeto<br />

de pesquisa-ação – o Projeto Pyra. O texto desvenda a configuração da organização<br />

coletiva, a distribuição do poder político e econômico entre as camadas sociais<br />

locais, remetendo a um diagnóstico analítico do contexto rural, a fim de propiciar<br />

subsídios que contribuam para a formulação de políticas de sustentabilidade para<br />

a várzea da Amazônia.


Apresentação<br />

Dois textos correspondem a pesquisas que deram origem a dissertações de<br />

Mestrado. O primeiro de autoria de Kátia Helena Serafina Cruz Schweickardt<br />

analisa a interface entre as políticas agrárias e as políticas ambientais na Amazônia,<br />

estabelecendo o nexo entre projetos de assentamento rurais e unidades de<br />

conservação estabelecidos em áreas coincidentes. A autora analisa as estratégias<br />

para a produção do espaço na região, tendo como ponto de partida um assentamento<br />

localizado nas cercanias da cidade de Manaus. O segundo, de autoria de André<br />

Jun Miki discute a geração de energia e suas implicações políticas em face da<br />

sustentabilidade econômica, ambiental e social. A conclusão é que a geração de<br />

energia elétrica no Estado do Amazonas ainda valoriza o modelo monomatricial<br />

implantado na década de 60.<br />

Como resultado de pesquisa para realização de trabalho de conclusão de<br />

curso é o texto de Lucynier Omena Melo, que analisa uma festa num bairro na<br />

Manaus. A pesquisa foi desenvolvida a partir de um estudo de caso acerca das<br />

festas populares na cidade sob o prisma das obras de memórias de dois reconhecidos<br />

autores amazonenses: Thiago de Mello e Jefferson Péres. A opção pela comparação<br />

com a Manaus do passado deu-se pelo fato de a comemoração escolhida, uma<br />

festa junina, fundamentar-se na tradição e na repetição, que mostra os elementos<br />

que se perderam ou se modificaram no decorrer do tempo.<br />

O artigo da professora Patrícia Melo Sampaio recupera a trajetória histórica<br />

de uma povoação colonial da Capitania do Rio Negro, Poiares, com a finalidade<br />

de estabelecer indicadores que permitam a compreensão do processo de<br />

aparecimento e desaparecimento de povoações que existiram no rio Negro. A idéia<br />

central desenvolvida no texto é a de que as povoações, criadas à sombra da estruturas<br />

administrativas da Capitania de São José do Rio Negro, eram núcleos marcados<br />

pela artificialidade e pela transitoriedade, porque eram imposições que se<br />

contrapunham às estruturas locais preexistentes e também porque eram<br />

profundamente dependentes dos estímulos oriundos da estrutura estatal.<br />

Dois textos apresentam discussões teóricas generalizantes. No primeiro, a<br />

professora da Universidade Federal do Amazonas Marinez Gil Nogueira discute o<br />

sentido da pós-modernidade como uma situação de transição no interior do próprio<br />

sistema capitalista, direcionada para novas formas de acumulação de capital e de<br />

dominação política. No segundo artigo, Claude Imbert, professora de Filosofia da<br />

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Apresentação<br />

École Normale Supérieure de Paris, apresenta uma instigante discussão da relação<br />

entre Filosofia e Ciências Humanas e como esse processo ocorreu historicamente<br />

desde a herança kantiana, passando por Durkheim, Lévi-Strauss, concentrando-se<br />

especialmente em Merleau-Ponty.<br />

Finalmente a Revista apresenta um resumo das dissertações defendidas no<br />

período de 2000 a 2001. Os próximos números continuarão com a publicação<br />

desses resumos visando mostrar o perfil das pesquisas desenvolvidas no Programa<br />

que buscam abordar diferentes problemas da Amazônia, pondo à tona, discutindo<br />

e, na medida do possível, apontando, a partir do conhecimento científico e prático,<br />

soluções para a melhoria da qualidade de vida dos amazônidas.<br />

Editores


Apresentação<br />

Artigos<br />

Artigos<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Apresentação


Nelson Matos de Noronha<br />

Natureza e cultura na Amazônia: evolução e<br />

tendências da pesquisa e da pós-graduação 1<br />

Resumo<br />

Nelson Matos de Noronha 2<br />

No artigo, analisam-se os propósitos, as linhas de pesquisa e a<br />

estrutura curricular do Programa de Pós-Graduação Natureza e Cultura<br />

na Amazônia tais como se apresentavam no segundo semestre de 2000.<br />

A análise das tendências e da evolução do programa procura associar a<br />

história do aparecimento de um programa de pesquisas voltado para a<br />

investigação das práticas sociais e as representações que constituem as<br />

formas da existência humana na Amazônia à história recente do<br />

aparecimento e das transformações teóricas e metodológicas das ciências<br />

humanas.<br />

Palavras-chave<br />

Amazônia; pesquisa; pós-graduação.<br />

1 Nota do Editor: O texto possibilitou a discussão do Programa de Pós-Graduação ense<strong>jan</strong>do, entre outras,<br />

a mudança do Programa para Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.<br />

2 Doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade<br />

e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

13


Abstract<br />

14 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Natureza e cultura na Amazônia:<br />

evolução e tendências...<br />

The purposes, the research areas and the curriculum structure os the M.A.<br />

Program in Nature and Culture in the Amazon as effective on the second semester<br />

of 2000 are reviewed. The review of trends and the evolution of the program has<br />

tried to associate the history, the proposal of a research program geared towards the<br />

investigation of social practices and the representations which constitute the forms<br />

of the human existence in the Amazon to the recent history of the theoretical and<br />

methodological emergence and transformations in human sciences.<br />

Keywords<br />

Introdução<br />

Amazon region; research; post-graduate programs.<br />

O objetivo do presente artigo é sugerir uma visão geral com a apresentação<br />

dos objetivos, da evolução e das tendências do Programa de Pós-Graduação em<br />

Natureza e Cultura na Amazônia para a discussão pública, no seio da comunidade<br />

universitária, das políticas de pesquisa e pós-graduação na área de ciências humanas<br />

na Universidade Federal do Amazonas.<br />

A idéia de um Programa de Pós-Graduação em Natureza e Cultura na<br />

Amazônia, para além dos papéis de integração e constituição da unidade nacional<br />

que têm sido atribuídos às universidades públicas, nasce a partir da necessidade de<br />

fortalecimento das universidades situadas na Amazônia brasileira com vistas a elidir<br />

as desigualdades entre as instituições de ensino superior e de pesquisa, que dificultam<br />

o acesso dos estudantes, pesquisadores e professores da Região Norte do país aos<br />

cursos de mestrado e doutorado. Além disso, um programa como esse deve<br />

diferenciar-se dos demais pela sua pretensão a desenvolver estudos e pesquisas cujas<br />

problemáticas tenham como objeto a Amazônia.<br />

Ora, como se sabe, a Amazônia é uma representação pela qual se entende<br />

tanto a dimensão geopolítica de uma região do planeta que se espalha por diversos


Nelson Matos de Noronha<br />

países da América Latina quanto as dimensões da biodiversidade e da diversidade<br />

de culturas humanas que estão presentes nessa região.<br />

Com a nomenclatura do Programa, visou-se a destacar o seu caráter<br />

interdisciplinar. O eixo pelo qual se orientarão seus objetivos, sua estrutura disciplinar<br />

e o acervo de trabalhos e pesquisas a ser produzido pelos seus pesquisadores deverá<br />

ser o homem enquanto produtor de sua própria existência, sujeito conhecedor e<br />

constituidor de representações e de formas simbólicas e, ao mesmo tempo, objeto<br />

de conhecimentos e saberes nos quais se focalizam tanto a sua dimensão de ser<br />

empírico, finito, mortal quanto a sua dimensão de ser transcendental, isto é, capaz de<br />

compreender e dar sentido à sua existência, situando-a em um universo ou mundo<br />

no qual ele não se encontra no centro, mas constitui um elemento fundamental para<br />

o equilíbrio ou o desequilíbrio da vida.<br />

Tal eixo deverá permitir a exploração e o desenvolvimento de uma<br />

diversidade muito grande de preocupações. Mas estas podem ser agrupadas em<br />

duas grandes linhas de pesquisa: 1. Espaço e tempo, linguagem e cultura: aí se englobam os<br />

estudos das dimensões do espaço e tempo, dos grupos hum<strong>ano</strong>s e etnias, dos<br />

processos históricos e culturais, dos estudos etnolingüísticos, das representações do<br />

discurso e da comunicação na Amazônia; 2. Sociedade, Estado e Mudanças Estruturais: aí<br />

se englobam os estudos que visam a compreender as políticas públicas e o<br />

desenvolvimento regional, a utilização de recursos, os impactos sócio-ambientais, o<br />

pensamento social, as relações internacionais, a internacionalização da Amazônia e os<br />

processos de trabalho e da cidadania na região.<br />

Em vista dessas linhas de pesquisa, deverão preponderar, no Programa, as<br />

disciplinas classificadas pela CAPES e o CNPq entre as ciências humanas. As disciplinas<br />

e os conteúdos pertencentes aos domínios das ciências da vida, as da matemática<br />

assim como as das ciências da matéria que nele tiverem lugar serão complementares<br />

e atenderão a demandas específicas de pesquisas isoladas.<br />

Além disso, no âmbito das ciências humanas, as disciplinas deverão permitir<br />

a constituição de recursos conceituais, teóricos e metodológicos para a compreensão<br />

das dimensões nas quais se pode concentrar o enfoque dos estudos sobre o homem<br />

na Amazônia. Assim, os grupos hum<strong>ano</strong>s e as etnias não serão considerados apenas<br />

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Natureza e cultura na Amazônia:<br />

evolução e tendências...<br />

pelo enfoque da antropologia social e da antropologia cultural, mas também por<br />

outros enfoques, como o da história social, o da história da literatura, o da história<br />

das práticas sociais etc. Da mesma forma, haverá interdisciplinaridade nas pesquisas<br />

que visarem a compreender as políticas públicas e o desenvolvimento regional, pois<br />

a ciência política e a sociologia deverão lançar mão de conceitos e recursos técnicos<br />

das ciências do ambiente, da economia política, tanto quanto da geografia humana,<br />

da história, da análise dos discursos e outras disciplinas nas quais as relações do<br />

homem com a sociedade e a natureza física e biológica se desdobrem.<br />

A estrutura disciplinar do Programa será organizada de tal modo que a<br />

formação dos discentes e pesquisadores lhes forneça os recursos para o<br />

desenvolvimento de pesquisas nas quais se respondam às questões: a) sobre as<br />

possibilidades, as formas, a abrangência e as relações dos conhecimentos produzidos<br />

na e/ou sobre a Amazônia; b) sobre as intervenções, as práticas, os movimentos e as<br />

formas de organização cultural das populações bem como sobre a produção de<br />

subjetividades individuais e coletivas pelas quais se deram, se alteraram ou se<br />

reformularam e ainda se dão as formas concretas e historicamente determinadas da<br />

existência na Amazônia; c) sobre as diversas formas pelas quais essa existência expressa<br />

suas perspectivas, seus horizontes, seus valores, suas possibilidades, suas opções, seus<br />

obstáculos contornáveis ou não, enfim, os sentidos que ela dá a si mesma e aqueles<br />

que ela pretenderia torná-los seus ou deles se desvencilhar.<br />

Evolução e tendências<br />

As respostas a essas questões deverão, em sua generalidade, fornecer um<br />

amplo conhecimento das relações que os homens teceram e tecem com as sociedades<br />

e com a natureza ao longo da história pela qual a Amazônia tornou-se, para o<br />

pensamento e as sociedades contemporâneos, o universo onde se encontra uma<br />

reserva de recursos biológicos, físicos e químicos e onde se deu e desenvolveu o<br />

encontro de uma pluralidade de culturas que se revelam cruciais para a continuação<br />

da existência da humanidade e para a constituição de uma idéia de sociedade plural<br />

e isonômica.


Nelson Matos de Noronha<br />

A evolução das pesquisas deverá se dar em função da atualidade dos<br />

problemas que a Amazônia oferece ao pensamento contemporâneo. Sem situar-se<br />

alheia ao curso dos acontecimentos pelos quais ela adquiriu e adquire sua significação<br />

universal, a Amazônia encerra uma realidade singular que exige uma compreensão<br />

de suas particularidades e desafia o pensamento europeu ou ocidental a submeter-se<br />

à prova da explicação de fenômenos que não se adaptam às suas categorias<br />

tradicionais.<br />

Ora, as ciências da vida e da matéria percorreram trajetórias marcadas por<br />

hesitações, recuos, deslocamentos, distorções e revoluções que lhes permitiram, a<br />

partir dos séculos 17 e 18, organizarem-se segundo esquemas formais e corpos de<br />

conceitos pelos quais o conhecimento não apenas se vê confirmado pela<br />

experimentação, mas, também, retificado pela introdução de aparelhos teóricos mais<br />

refinados e recursos de observação mais rigorosos. Por isso, elas possuem, a partir<br />

da compreensão de suas próprias atualidades, um conhecimento suficiente sobre as<br />

tendências para as quais se dirigirão suas futuras pesquisas, sobre os problemas que<br />

ainda estão por serem explorados, os métodos, os temas e as teorias que as animam<br />

e aguardam um aproveitamento mais profícuo por parte dos pesquisadores.<br />

Somente a partir do final do século 18 é que surgiram os primeiros sinais de<br />

constituição do que vieram a ser as ciências humanas, com o nascimento da psicologia<br />

pelas mãos de Phillipe Pinel e a formulação da idéia de uma antropologia pragmática<br />

pelo filósofo Immanuel Kant. No século 19, através das obras de Auguste Comte e<br />

de Karl Marx, esboçaram-se os traços de uma ciência do homem que deveria atender<br />

às exigências de objetividade, universalidade e necessidade além de, assim como as<br />

demais ciências, desvincularem-se completamente das concepções teológicas sobre<br />

as quais se assentavam os saberes de épocas passadas. Pode dizer-se que suas matrizes<br />

foram a economia política, a biologia e a filologia, posto que, mediante tais ciências,<br />

surgiram os conceitos de trabalho, vida e linguagem pelos quais as dimensões empíricas<br />

da existência humana tornaram-se, pela primeira vez, objetos de conhecimentos<br />

autônomos e independentes de concepções filosóficas, morais e religiosas.<br />

Até as duas primeiras décadas do século 20, essas ciências se organizaram<br />

segundo um esquema evolucionista e uniforme da história da humanidade. Em tal<br />

perspectiva, as questões da universalidade e da singularidade, das identidades e<br />

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18 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Natureza e cultura na Amazônia:<br />

evolução e tendências...<br />

diferenças culturais, da natureza e da cultura, da civilização e da barbárie foram<br />

abordadas segundo uma escala entre o estágio primitivo e o estágio moderno, a<br />

idade teológica e a idade científica da humanidade.<br />

A partir da década de trinta, diversos fatores contribuíram para a ocorrência<br />

de uma inflexão que se revelou fundamental para a evolução das ciências humanas e<br />

para a análise de suas tendências atuais e futuras. Entre eles, devemos destacar o<br />

desenvolvimento das ciências formais da linguagem pelas quais a lógica se viu diante<br />

de outras possibilidades além daquelas que foram fixadas por Kant a partir do<br />

helenismo. No mesmo movimento, deve situar-se o aparecimento das geometrias<br />

não-euclidianas pelas quais se desmontou o apriorismo das formas da sensibilidade<br />

definidas por Kant. Além desses acontecimentos, devemos incluir os surgimentos<br />

da psicanálise, da lingüística, da etnologia e o das interpretações estruturais das literaturas<br />

e dos mitos, pelos quais o esquema evolucionista e uniforme deu lugar a uma<br />

concepção não uniforme e, ao mesmo tempo, sincrônica e diacrônica dos fatos<br />

sociais e dos fenômenos de cultura. No lugar das continuidades que reuniam, sob a<br />

categoria maior de Humanidade, inúmeros e diversos acontecimentos na ordem da<br />

existência humana, foram desenvolvidas análises pelas quais se determinaram histórias<br />

descontínuas, saberes interrompidos ou substituídos por formas de conhecimento<br />

completamente heterogêneos às suas antigas problemáticas; no lugar da análise das<br />

mentalidades e dos comportamentos, surgiram análises dos sistemas de pensamento<br />

ou das formas arquitetônicas dos discursos, análises dos sistemas de trocas e análises<br />

das formas elementares do parentesco.<br />

Essa inflexão produziu o que atualmente constitui o universo de problemas,<br />

temas, conceitos, métodos e teorias no qual as ciências humanas desenvolvem suas<br />

pesquisas e formulam as questões que lhes parecem cruciais para a consolidação de<br />

seu devir.<br />

Os estudos sobre a existência, atuação e a compreensão do homem na<br />

Amazônia tendem, portanto, a desenvolver-se em consonância com essa inflexão<br />

que se deu na própria história das ciências humanas. Todos eles, entretanto, tendem,<br />

também, a eleger suas formas de procedimento, seus modos de recortar e isolar<br />

seus objetos e suas áreas de abrangência interdisciplinar a partir de questões que, na<br />

atualidade, colocaram ao pensamento impasses no tocante às dimensões cognoscitivas,


Nelson Matos de Noronha<br />

políticas e éticas da existência, tais como, por exemplo, o problema da criação de<br />

mecanismos pelos quais as potencialidades individuais e coletivas possam ser<br />

aumentadas sem que isso implique o fortalecimento dos mecanismos de<br />

uniformização, adestramento, controle e limitação das liberdades e das diferenças.<br />

Certamente haverá uma tendência para a aglutinação das disciplinas e das<br />

pesquisas em torno das linhas já indicadas anteriormente. Isso não deve significar,<br />

entretanto, que tais linhas de pesquisa venham a cristalizar-se como dois<br />

compartimentos estanques e incomunicáveis. Natureza e cultura, palavras e coisas,<br />

sujeito e objeto, linguagem e pensamento, realidade e consciência são termos pelos<br />

quais as sociedades ocidentais dissociaram o homem e o universo ao qual ele pertence.<br />

Mediante o trabalho interdisciplinar que se pretende desenvolver neste Programa de<br />

Pós-Graduação, essa dissociação tenderá a desaparecer.<br />

O que nos permite fazer esse prognóstico é a constatação de que a literatura,<br />

a análise dos mitos e das tradições orais têm se tornado cada vez mais relevantes nas<br />

investigações dos aspectos políticos e éticos da existência humana. Da mesma forma,<br />

tem-se constatado o crescimento do interesse, por parte de historiadores, geógrafos<br />

e cientistas sociais, pela linguagem como fonte de informações e como instrumento<br />

metodológico de suas pesquisas. Parece que, ao invés de tomarem o mundo como<br />

um mecanismo ou como um organismo, as ciências humanas passaram a vê-lo<br />

como um texto.<br />

Essa mudança tem permitido a superação de uma polêmica na qual os<br />

filósofos se detiveram até o início do século 20, quando a fenomenologia e a<br />

hermenêutica mostraram que o homem não é o sober<strong>ano</strong> de sua história, de sua<br />

vida e de sua linguagem, mas que é atravessado e constituído por elas. No lugar de<br />

conceber a natureza como uma dimensão anterior à cultura e esta como o resultado<br />

de uma separação produzida pela intervenção do homem sobre a primeira, os<br />

trabalhos desenvolvidos pela fenomenologia e pela hermenêutica passaram a<br />

considerar natureza e cultura como dimensões indissociáveis da existência humana,<br />

como constituintes do mundo, entendidos como estrutura de subjetivação e de<br />

objetivação na qual o homem se reconhece como doador e portador de sentido,<br />

isto é, como um ser constituído de signos e produtor de signos em um universo de<br />

significações que o antecede e o atravessa, mas que é afetado por suas intervenções.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Natureza e cultura na Amazônia:<br />

evolução e tendências...<br />

As ciências humanas possuem um caráter assaz interpretativo. O que não<br />

implica falta de objetividade nem tampouco relativismo. O uso que elas fazem dos<br />

instrumentos de formalização tomados de empréstimo à lógica, às matemáticas e<br />

mesmo às ciências da informação produz recursos suficientes para a realização de<br />

diagnósticos e análises satisfatórios e conclusivos. Ocorre que os seus enfoques podem<br />

se mover de tal forma que uma determinada realidade pode ser estudada sob aspectos<br />

distintos. Assim, conforme a dimensão para onde se voltar o foco do pesquisador,<br />

surgirão trabalhos com acentuado interesse histórico, geográfico, psicológico,<br />

sociológico, literário ou semiológico, sem que o realce de um desses aspectos signifique<br />

o desaparecimento dos outros. Além disso, elas estão sujeitas a determinadas inflexões<br />

decorrentes da relação do pesquisador com os objetos de suas pesquisas.<br />

Após mais de cem <strong>ano</strong>s de atividades, tornou-se patente para os<br />

pesquisadores das ciências que têm o homem por objeto que o requerido<br />

distanciamento absoluto tomado pelo cientista em relação aos fenômenos é impossível.<br />

No âmbito das ciências humanas, essa constatação é muito mais explícita do que em<br />

outras áreas do conhecimento. Em sua essência, a relação desse pesquisador com<br />

seu objeto é uma relação pela qual aquilo que é isolado, examinado e analisado libera<br />

um conhecimento que, muito mais do que uma cultura, um sistema de pensamento,<br />

um modo de vida ou uma prática social desconhecidos, revela os valores, a forma<br />

de existência, o modo de pensar e as práticas concernentes ao próprio pesquisador.<br />

Além do que, nessa relação, sujeito e objeto produzem um no outro as modificações<br />

e trocas que, ao mesmo tempo, afastam-nos e aproximam-nos, opõem-nos e reúnemnos.<br />

Em vista disso, é preciso considerar a atualidade das ciências humanas, tanto<br />

em sua dimensão epistemológica quanto em suas dimensões política, econômica,<br />

ética e estética. Certamente, os temas e os problemas que se elegerão para a proposição<br />

de projetos de pesquisa decorrerão das urgências locais em consonância com as<br />

questões que tocam as ciências humanas no âmbito de sua generalidade. Tais temas<br />

e problemas obedecerão a uma certa uniformidade, posto que deverão se referir<br />

aos acontecimentos, às práticas, aos comportamentos e às formas de pensamento<br />

que determinaram e aos que constituem atualmente as formas de existência na<br />

Amazônia. Em outras palavras, tais pesquisas adquirirão sua unidade à medida que


Nelson Matos de Noronha<br />

esclarecerem as razões pela quais a Amazônia delineou-se ao longo da história e<br />

tornou-se aquilo que ela é atualmente, explicando os motivos pelos quais algumas<br />

opções foram feitas em detrimento de outras e revelando o leque de possibilidades<br />

que ainda aguardam investimentos bem como aquelas que solicitam transformações,<br />

reformas ou liquidação.<br />

Além de generalidade e unidade, as pesquisas do Programa de Pós-<br />

Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia possuirão uma sistematicidade –<br />

que se dará na própria organização das grades de disciplinas de seus cursos de<br />

Mestrado e Doutorado – fornecida pelas preocupações sobre: a) o que podemos<br />

conhecer, eixo epistemológico; b) sobre o que devemos fazer, eixo político; c) o que<br />

podemos esperar, eixo ético. Assim, a estrutura dos cursos será concebida como um<br />

quadro no qual haverá disciplinas eminentemente propedêuticas, como, por exemplo,<br />

“Seminário de Pesquisa”, “Comunicação Científica”, “As Ferramentas do Discurso”;<br />

disciplinas que, além de apresentarem essa característica preparatória, permitem<br />

investigações de temas e problemas específicos, como “Formação do Pensamento<br />

Social na Amazônia”, “Epistemologia e Metodologia das Ciências Humanas e<br />

Sociais”, “Filosofia da Ciência”, “Educação, Cultura, Comunicação e Semiótica”;<br />

disciplinas que deverão permitir o aprofundamento das pesquisas em questões<br />

específicas, como “A Amazônia na Era da Globalização”, “A cidade e o urb<strong>ano</strong> na<br />

Amazônia”, “Amazônia: Relações Internacionais”, “Amazônia e os Meios de<br />

Comunicação”, “Análise do discurso sobre a Amazônia”, “A questão agrária na<br />

Amazônia”, “Correntes de opinião contemporânea na Amazônia”, “Cultura e<br />

Natureza na Amazônia”, “Estado e Políticas Públicas na Amazônia”, “Formação<br />

Social do Brasil”, “História, Cultura e Movimentos Sociais na Amazônia”, “Imaginário<br />

e Cultura Popular na Amazônia”, “Literatura Amazonense”, “Natureza e Cultura<br />

em Mitos Amazônicos”, “Resíduos Sólidos Urb<strong>ano</strong>s”, “Trabalho e Sociedade”,<br />

“Trabalho, Subjetividade e Cultura”.<br />

A reordenação das disciplinas, a redefinição das linhas de pesquisas e outros<br />

ajustes sempre poderão e deverão ser operacionalizados em função da história<br />

acadêmica e da formação dos professores e dos pesquisadores do Programa. Pelo<br />

momento, uma coisa é certa: os estudos que foram produzidos através das dissertações<br />

recentemente defendidas e aqueles que estão em andamento representam, ao mesmo<br />

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Natureza e cultura na Amazônia:<br />

evolução e tendências...<br />

tempo, os sucessos, as hesitações e as inflexões próprios de um recentemente esforço<br />

característico de todo trabalho científico, especialmente daqueles que dão seus<br />

primeiros passos e se desenvolvem não para confirmar-se o que já se sabe, mas para<br />

permitir as mudanças que se almejam.<br />

Referências<br />

SILVA, Marilene Corrêa da; RICOEUR, Paul; MIGNOLO, Walter. Um estudo de<br />

hermenêuticas racionalistas num campo interpretativo comum. SOMANLU – Revista<br />

de Estudos Amazônicos, Manaus, <strong>ano</strong> 1, n. 1, p. 35-50, 2000.<br />

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas.<br />

Tradução de Salma Tannus Muchail. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.<br />

_______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de<br />

Janeiro: Forense Universitária, 1994.<br />

_______. O que são as Luzes? In: Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e história<br />

dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense<br />

Universitária, 2000. p. 335-351.<br />

MESQUITA, Otoni. Cores de um meteoro. SOMANLU – Revista de Estudos<br />

Amazônicos, <strong>ano</strong> 1, n. 1. Manaus, p. 185-194. 2000.<br />

PINHEIRO, Luís Balkar S. P. De vice-Reino à Província: tensões regionalistas no<br />

Grão-Pará no contexto da emancipação política brasileira. SOMANLU -- Revista de<br />

Estudos Amazônicos, <strong>ano</strong> 1, n. 1. Manaus, p. 83-108. 2000.<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO. Natureza e Cultura na Amazônia. Manaus:<br />

Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas, 1998.


João de Jesus Paes Loureiro<br />

Meditação e devaneio: entre o rio e a floresta 1<br />

João de Jesus Paes Loureiro 2<br />

Resumo<br />

Rio e floresta são enigmas da Amazônia. Dependendo do rio e<br />

da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui desses bens, mas também<br />

os transfigura. Essa mesma dimensão transfiguradora preside as trocas e<br />

traduções simbólicas da cultura, sob a estimulação de um imaginário impregnado<br />

pela viscosidade espermática e fecunda da dimensão estética.<br />

O rio deságua no imaginário onde se pode ler a multiplicidade dos ritmos<br />

da vida e do tempo e observar as indecisões da fronteira entre o real<br />

e o imaginário. Entre o rio e a floresta é preciso saber ver para efetivamente<br />

ver. Um olhar sustentado pela pertença à emoção da terra, com a<br />

sensibilidade disponível ao raro, com a alma posta no olhar.<br />

Palavras-chave<br />

Cultura amazônica; imaginário popular.<br />

Abstract<br />

River and Forest are enigmas of the Amazon region. The Amazon<br />

man, in his dependence on the river and forest for just about everything,<br />

1 Palestra proferida no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia do Instituto de<br />

Ciências e Letras da Universidade Federal da Amazonas.<br />

2 Doutor em Sociologia da Cultura, poeta, professor da Universidade Federal do Pará.<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta<br />

enjoys the usufruct of these assets whilst transfiguring them. This same transfiguring<br />

dimension presides over the symbolic exchanges and translation of the culture under<br />

the stimulation of a way of thinking saturated by the spermatic and fertilizing viscosity<br />

of the esthetic dimension. The river flows into the way of thinking where one can<br />

read the multiplicity of the rhythms of life and time and observe the indecisions of<br />

the frontier between reality and imagination. Between the river and the forest one<br />

has to know how to look to effectively see. A look sustained by the emotional<br />

domain of the land, with the sensibility made available to uniqueness, with the soul<br />

present in the stare.<br />

Keywords<br />

Amazon culture; popular imagination.<br />

A margem do rio, entre o rio e a floresta, é o lugar privilegiado dos<br />

enigmas da Amazônia transfigurados em enigmas do mundo. Oferece<br />

interrogações sobre origens e destinos. É onde o rio deságua no imaginário.<br />

Quando se pode ler a multiplicidade dos ritmos da vida e do tempo, observar<br />

as indecisões da fronteira entre o real e o imaginário, o espontâneo<br />

maravilhamento diante dos acasos. O sentido privilegiado da contemplação<br />

conduz ao jogo estético, pela quimera de olhar as coisas ante o mistério que<br />

delas emana e pelo que nelas se exprime, nesse vago e gratuito prazer da<br />

imaginação que não busca um porto, embora numa viagem de vagos destinos.<br />

Uma viagem que não precisa levar a nenhuma parte. A margem do rio não exige<br />

lógica para ser coerente. Nela estão os mais preciosos arquivos culturais do<br />

mundo amazônico, os manguezais simbólicos de nossa cultura, as raízes submersas<br />

da alma cabocla.<br />

O ritmo das marés, em sua regularidade telúrica, estimula uma visão múltipla,<br />

embora fatalista. Tudo acontece no momento escrito. A consciência dos limites<br />

investiga na busca do ilimitado. Assim como a pororoca, que é a rebeldia cabana do<br />

rio contra as margens que o limitam, engolindo as margens que o oprimem devoradas<br />

com inesperada sofreguidão.<br />

Revelando uma afetividade cósmica, o homem promove a conversão<br />

estetizante da realidade em signos, através dos labores do dia-a-dia, do diálogo com


João de Jesus Paes Loureiro<br />

as marés, do companheirismo com as estrelas, da solidariedade dos ventos que<br />

impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios. É como se aquele mundo fosse<br />

uma só cosmogonia, uma imensa e verde cosmoalegoria. Um mundo único realimaginário.<br />

Nele foi sendo constituída uma poética do imaginário, cujo alcance<br />

intervém na complexidade das relações sociais.<br />

O imaginário estetizante a tudo impregna com sua viscosidade espermática<br />

e fecunda, acentuando a passagem do banal para o poético. É gerador do novo, do<br />

recriado. Valoriza a dimensão auto-expressiva da aparência e sua ambigüidade<br />

significante, nas quais o interesse passa a concentrar-se.<br />

A cultura amazônica talvez represente, neste final de século, uma das mais<br />

raras permanências dessa atmosfera espiritual em que o estético, resultante de uma<br />

singular relação entre o homem e a natureza, reflete-se e ilumina miticamente a cultura.<br />

Cultura que continuará a ser uma luz aurática brilhando, e que persistirá enquanto as<br />

chamas das queimadas nas florestas, a poluição dos rios e a mudança das relações<br />

dos homens entre si, não destruírem, irremediavelmente, o locus que possibilita essa<br />

atitude poético-estetizante, ainda presente nas vastidões das terras-do-sem-fim<br />

amazônico. Formas de vivência e de reprodução que tendem a permanecer vivas e<br />

fecundas, na medida em que sobreviverem no espaço amazônico, as condições<br />

essenciais desse “locus”, no qual a presença humana, do índio ao caboclo atual,<br />

encontraram meios para uma produção poetizante da vida, até o ciclo de um terceiro<br />

milênio.<br />

Entre o rio e a floresta é preciso saber ver para efetivamente ver. Um olhar<br />

sustentado pela pertença à emoção da terra, com a sensibilidade disponível ao raro,<br />

com a alma posta no olhar. A transfiguração do olhar acontece no momento em<br />

que se percebe a diversidade verde do verde; o corpo de baile das açaizeiras; a<br />

volúpia dos pássaros revoando; a vaga ela perdida no olhar do c<strong>ano</strong>eiro; a moça na<br />

<strong>jan</strong>ela como a solitária imagem de uma espera; a igarité balançando nas ondas entre<br />

as estrelas; a dupla realidade da beira do rio refletida nas águas, como cartas de um<br />

baralho de sortilégios.<br />

Na linha da ribanceira, entre o rio e a floresta, estão os arquivos da vida<br />

amazônica. É uma verdadeira escola do olhar. Uma pedagogia da contemplação.<br />

Um aprender a aprender olhar. O olhar que experimenta a vertigem de uma alma<br />

errante. Na margem do rio e da floresta irrompe a vida, em duplo. É o reino das<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta<br />

ambigüidades e da semovência de contornos. É o desenvolvimento de uma ciência<br />

da libido em que o desejo brilha, o jogo estético evidencia-se, o prazer do olhar é<br />

dominante e o partilhamento com a natureza é o prêmio. Um modo de contemplação<br />

que forma um verdadeiro sistema. O sistema a que eu chamo de poética do imaginário<br />

na cultura amazônica.<br />

Entre o rio e a floresta experimenta-se o sentimento do sublime da natureza,<br />

tanto que é imperioso povoar essa realidade elevada com seres da mesma altura, isto<br />

é, divindades habitantes desses olimpos submersos, e no mato adentro, que são as<br />

encantarias. Cada praia encantada é uma ilha de Circe do imaginário a chamar-nos. O<br />

efeito do sublime é um modo de sentir. É a representação do real por meio do<br />

irrepresentável. A boiúna, por exemplo, é o efeito do sublime representando o<br />

irrepresentável do rio.<br />

Entre o rio e a floresta, a experiência transcendente resulta de experiências<br />

vividas. A serenidade que advém das águas tranqüilas, a inquietação pressaga das<br />

noites de tempestade, são experiências do cotidi<strong>ano</strong> e não de leituras romanescas ou<br />

filosóficas. A admiração, o maravilhamento nascem da contemplação das coisas.<br />

Dessas particularidades que brotam das sensações, o espírito chega ao essencial. O<br />

efeito do sublime decorre de um espanto diante das tempestades, das pororocas;<br />

dos alumbramentos diante dos fenômenos da natureza e do cosmo, que se oferecem<br />

como interrogações. A explicação-resposta é metafórica, alegórica, numa poética<br />

iluminada pela religiosidade dos mitos, formas de explicação através do irrepresentável<br />

da representação.<br />

Esse primado do olhar não elimina a posição do sujeito como espectador<br />

participante. Ator que também está na platéia de si mesmo e dos outros.<br />

Dessa meditação devaneante do caboclo explode o entusiasmo da<br />

imaginação, revolucionando as hierarquias lógicas entre o real e o irreal. Numa<br />

paisagem que ainda, em grande parte, não guarda vestígios da intervenção humana,<br />

nem modificadora, nem moralizadora, os rios e a floresta se oferecem como um<br />

espaço aberto aos trabalhos e os dias do caboclo, à criação dessa teogonia cotidiana,<br />

no misticismo de sua vertigem do ilimitado. Para viver de uma forma ilimitada,<br />

convive com seres sobrenaturais, porque somente a imaginação consegue ultrapassar<br />

os horizontes. Foi a boiúna que, ao agitar-se, fez o barranco ruir; o curupira fez o


João de Jesus Paes Loureiro<br />

caçador perder-se na mata; a iara fez afogar-se de sedução aquele que, aparentemente,<br />

não tinha razões para morrer no rio; a tristeza não veio da alma, mas do canto do<br />

acauã.<br />

Diante do rio e da floresta, o homem, incapaz de franjar os seus vastos<br />

limites, insere-se nessa desmedida através de um gesto que o faz superior a essa natureza:<br />

ele cria os encantados, mantendo a grandiosidade esmagadora que o envolve sob<br />

seu controle. Ele passa a ser a razão primeira de tudo. O caboclo: um ser criador das<br />

origens. Essa poética do imaginário não faz dele um poeta. Mas o mantém envolvido<br />

em uma atmosfera estetizada que torna o imaginário a encantaria de sua alma.<br />

O espaço infinito põe a visão e o espírito em repouso. A encantaria é a<br />

quebra dessa regularidade do olhar pela diversidade da imaginação. Além da aparente<br />

“monotonia do sublime” provocada pela natureza magnífica da geografia (dita por<br />

Mário de Andrade), há um mundo revolto de boiúnas, botos, mães-d’água, iaras,<br />

curupiras, porominas, etc. Enquanto o olhar contempla em repouso, o espírito trabalha<br />

incansável nas minas subjacentes da imaginação.<br />

O desejo de companhia sobrenatural é uma resposta ao inevitável sentimento<br />

de solidão a que o homem se expõe diante da natureza magnífica. O equilíbrio<br />

inquieto da solidão o leva a buscar realidades além da superfície, transferindo a<br />

profundidade da alma para a natureza. A crença nos encantados o liberta e isola da<br />

trivialidade de cada dia-a-dia.<br />

Talvez, à semelhança dos românticos, os caboclos ribeirinhos em face do<br />

rio e da floresta tiveram lugar privilegiado para a descoberta de si mesmos. Assim,<br />

também, como kanti<strong>ano</strong>s intuitivos, compreenderam a dimensão estética do sublime<br />

da natureza magnífica e a poetizaram pelo imaginário, numa “infinitização de sentidos”<br />

(que é próprio do poético, na voz de Julia Kristeva). A encantaria não é um paraíso<br />

perdido. Não é um éden e nem um inferno. É um olimpo. Um espaço de quimeras.<br />

Não é aspirado, nem temido. É mundo criado pelo devaneio que é a poesia da<br />

contemplação.<br />

Mergulho na profundidade das coisas por via das aparências, esse é o modo<br />

da percepção, do reconhecimento e da criação pelo veio do imaginário estéticopoetizante<br />

da cultura amazônica. Modo singular de criação e recriação da vida cultural<br />

que se foi desenvolvendo emoldurado por essa espécie de sfumato, que se instaura<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta<br />

como uma zona indistinta entre o real e o surreal. Sfumato, que na pintura e na teoria<br />

de Leonardo Da Vinci, é o contorno difuso da figura para poetizar sua relação com<br />

o todo. Como elemento que estabelece uma divisão imprecisa, à semelhança do<br />

encontro das águas (de cores diferentes) de certos rios amazônicos, como as do<br />

Amazonas com o Negro, ou do Amazonas com o Tapajós e outros. O limite entre<br />

as águas amarelas de um e negras, verdes ou azuladas de outro, não está definido<br />

por uma linha clara e precisa, mas, por águas misturadas, viscosamente interpenetradas,<br />

que criam uma tonalidade imprecisa verde-negro-amarelada, como se essa forma<br />

de sfumato fosse estabelecendo uma realidade única, na física distinção que caracteriza<br />

os dois rios. E é num ambiente pleno de situações como essa que caminha o<br />

bachelardi<strong>ano</strong> homem noturno, da Amazônia. Depara-se este homem noturno com<br />

situações de imprecisos limites, de variadas circunstâncias geográficas que vão<br />

motivando a criação de uma surrealidade real, à semelhança do efeito provocado<br />

pelo maravilhoso épico, que é um recurso de poetização da história, nas epopéias,<br />

resultante da mistura da História real com a dos mitos. Uma surrealidade cotidiana,<br />

instigadora do devaneio, na qual os sentidos permanecem atentos e despertos, porque<br />

é próprio desse estado manter a consciência atuante.<br />

Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui desses<br />

bens, mas também os transfigura. Essa mesma dimensão transfiguradora preside as<br />

trocas e traduções simbólicas da cultura, sob a estimulação de um imaginário<br />

impregnado pela viscosidade espermática e fecunda da dimensão estética.<br />

Essa transfiguração do real pela viscosidade ou impregnação do imaginário<br />

poético acentua uma passagem entre o cotidi<strong>ano</strong> e sua estetização na cultura, através<br />

da valorização das formas auto-expressivas da aparência, nas quais o interesse de<br />

quem observa está concentrado. Interesse que direciona o prazer da contemplação à<br />

forma das coisas marcadas pela ambigüidade significante própria do que é estético.<br />

Sob o olhar do natural, a região se torna um espaço conceptual único, mítico,<br />

vago, irrepetível (posto que cada parte desse espaço não é igual a outro), próximo e, ao<br />

mesmo tempo, distante. Seja para os que habitam as margens desses rios que parecem<br />

demarcar a mata e o sonho, seja para os que habitam a floresta, seja ainda para os que<br />

habitam os povoados, vilas e as pequenas cidades, que parecem estar muito mais num<br />

tempo congelado do que num espaço dos nossos dias. O olhar que se dirige para a<br />

região está impregnado desse próximo-distante que é todo próprio das situações


João de Jesus Paes Loureiro<br />

auráticas, como põe em relevo Walter Benjamin ao estudar a multiplicação da obra de<br />

arte na época atual. Benjamin caracteriza a aura em seu já clássico texto A obra de arte na<br />

época de suas técnicas de reprodução: “A única aparição de uma realidade longínqua, por mais<br />

próxima que esteja”.<br />

Nas várias formas de contacto com a Amazônia, essa é uma impressão<br />

constante, isto é, esse próximo-distante, esse perto-longe, esse tocável-intocável, onde<br />

o homem vive seu cotidi<strong>ano</strong> que se apresenta a ele revestido da atmosfera de uma<br />

coisa rara. Mesmo nos conflitos gerados pela devastação crescente de sua celebrada<br />

natureza, os fatores de auratização ficam evidentes: um bem único e universal, impossível<br />

de ser recuperado, se destruído; riqueza de fauna e flora cujo desaparecimento<br />

representaria uma perda insubstituível; acervo de formas de vida incalculáveis, como<br />

se ela fosse o fecundíssimo útero do universo (em pouco mais de 1 ha de floresta ainda<br />

não afetada pelo homem, encontra-se mais espécies do que em todos os ecossistemas<br />

da Europa juntos); presença constitutiva de valores intransferíveis e intransportáveis.<br />

Para o via<strong>jan</strong>te comum ou o estudioso, este constitui um princípio instaurador, princípio<br />

segundo o qual a Amazônia é concebida como um bem único e irrepetível, revelador<br />

de um hic et nunc que é o resultado de uma acumulação de signos do imaginário universal.<br />

Signo de uma natureza tida como única, original e irrepetível.<br />

Para compreender-se a Amazônia e a experiência humana nela acumulada e<br />

seu humanismo surrealista, deve-se, portanto, levar em conta seu imaginário social,<br />

pois todo o verdadeiro humanismo deve também se fundar além das conquistas da<br />

ciência.<br />

Pode dizer-se que o caboclo – espécie de Hesíodo tropical – no exercício<br />

de sua teogonia cotidiana, ao valorizar espontaneamente esse mundo imaginário<br />

cheio de representações, parece acreditar no realismo primordial das imagens. Para<br />

o caboclo, plantador e pescador de símbolos, a imagem parece estar constituída de<br />

uma força própria, criadora de uma realidade instauradora de novos mundos, capaz<br />

de ultrapassar o simples campo de escombros da memória. O amor, por exemplo,<br />

pode estar expresso pelo tambatajá, uma planta que brotou no lugar onde um<br />

amoroso índio macuxi enterrou sua índia bem-amada; também é o amor um golfinho<br />

encantado, o boto, incorrigível sedutor, que ora aparece sob a forma humana e<br />

vestido de branco, ora volta ao rio sob a forma de animal; pode ainda ser a aparição<br />

fatal de um rosto feminino à flor das águas profundas do rio, a iara, entidade que<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta<br />

atrai os jovens fascinados por ela, para as águas profundas do amor e da morte.<br />

Quer dizer, incontáveis imagens como as do amor, por exemplo, vão se instalando<br />

no vasto mundo em derredor, tornando-o a paisagem significante e sensível e aparente.<br />

A paisagem é a natureza penetrada pelo olhar. Pelo olhar a natureza é criada<br />

na cultura. Diante de uma paisagem regular na aparência o que a faz mudar é a<br />

natureza da alma. Assim, por essa via contemplativa, a paisagem será sempre nova.<br />

Não de uma novidade linear de espaços sucessivos, mas de uma novidade circular,<br />

penetrante, superposta no mesmo espaço.<br />

O caboclo ribeirinho é um via<strong>jan</strong>te imóvel<br />

Navega em busca das origens pelo devaneio. É de Paul Zunthor a afirmação<br />

dizendo que “a paisagem não existe em si mesma”. Ela é uma “ficção”, um “objeto<br />

construído”. Esta ficção, penso, é um efeito do olhar navegante, renovando a<br />

paisagem com paisagens superpostas, à semelhança da contemplação sucessiva de<br />

paisagens, próprio de quem viaja. Via<strong>jan</strong>te imóvel, o caboclo cria pl<strong>ano</strong>s superpostos<br />

de paisagem, construindo plasticamente a sua paisagem ideal. Pelo mito, a paisagem<br />

é um objeto representado que confere à cena o teatro da cultura e a legitimação de<br />

crença. Com essa atitude, constrói-se a paisagem ideal. A beira do rio, a ponte, a<br />

noite, a casa, as árvores em torno e o rumor do silêncio nos lábios do vento. Ao<br />

inventar a sua paisagem, o caboclo inventa-se a si mesmo para essa paisagem. Criando<br />

um mundo novo para sua alma, ele se cria como alma capaz de habitar esse mundo<br />

poetizado. Tudo é governado pelas forças divinas. A natureza participa então do<br />

sagrado, uma paisagem ideal que inclui a lenda na forma de encantaria. Habitada por<br />

divindades, a natureza tem na encantaria o seu lugar ameno.<br />

O imaginário testemunha nossa liberdade de criar. Estamos colocados no<br />

lugar das manhãs do mundo. A margem do rio e da floresta é o sfumato entre o real<br />

e o não-real, o espaço esfumado que contorna as coisas, tornando-as vagas e<br />

misteriosas. O irreal ou não-real deixa de ser o que está escondido, submerso no real.<br />

Ao contrário. Ele revela-se ao trabalho dos sentidos, no sfumato desse livre jogo entre<br />

imaginação e entendimento, que é a poética do imaginário na cultura amazônica.<br />

Mais do que para dar lição, as ficções mitopoéticas ribeirinhas são para revelar a


João de Jesus Paes Loureiro<br />

beleza; menos que estímulo à reflexão do que uma moral a seguir, demonstram mais<br />

o prazer de sentir e ver. O caboclo, por sua mitopoética, não mente ou falta com a<br />

verdade. Ele faz o que Coleridge chama de “suspensão da descrença”.<br />

Temos de aceitar um acordo ficcional, em princípio. O ouvinte aceita que o<br />

que se narra é uma história imaginária, mas, nem por isso, deve pensar que o narrador<br />

está contando mentiras. Esse “acordo ficcional” é o que Umberto Eco menciona no<br />

percurso do seu quarto bosque da ficção. Por esse acordo ficcional fingimos acreditar<br />

no relato ouvido. Liberamos o livre jogo entre imaginação e entendimento. Cremos<br />

como numa verdade. Reconhecemos seu poder ser. Sua verossimilhança. Sua lógica<br />

onírica.<br />

O caboclo, ao narrar, procura fazer-nos crer que conta um fato verdadeiro<br />

que, como tal, ele acredita. Espera uma espécie de simpatia da credibilidade. Cita<br />

detalhes, é rico nos “efeitos do real”. Roland Barthes vincula ações a situações ou a<br />

pessoas conhecidas, indica datas, enfim, confeita de credibilidade seu relato. Temos<br />

de entrar em seu jogo com nossa suspensão de descrença. Ora, se temos crença<br />

espontânea no relato das experiências vividas na realidade real pelo caboclo, não<br />

seria justo separar nele, ao entrar nessa idealizada realidade, duas faces: verdadeiro<br />

para umas coisas e mentiroso para outras. Até porque, muitas vezes, ele é um dedicado<br />

amigo leal ou membro da família. Temos de viver com ele essa ambigüidade como<br />

as duas faces da verdade. Uma de crença, outra de aceitação pactual. A<br />

inverossimilhança vem legitimada por semelhanças. A informação condizente com<br />

elementos da realidade atribui ao inverossímil características do real. O mundo real é<br />

imprescindível para criar a irrealidade. Temos de aceitar que o caboclo tem imaginação,<br />

mas não é um mentiroso.<br />

Diante da praticidade da vida, é um especial e discreto prazer inventar coisas<br />

diferentes da realidade e que nos permitam ser ouvidos. E que, ouvindo-nos, prestem<br />

atenção em nós e não, apenas, no magnífico ambiente que nos cerca. O imaginário,<br />

com a exuberante potência erótica do belo em nossas lendas, é, para o caboclo, o<br />

testemunho de sua liberdade de ser e criar. A lenda inventada pelo caboclo povoando<br />

as encantarias revela sua vontade (ou desejo) de participar de uma realidade superior<br />

que ele reconhece presente na natureza onde habita. O rio e a floresta são como<br />

origens, um ponto zero, o lugar de todo os começos. O lugar das manhãs do mundo,<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta<br />

onde em vez de um passado, busca-se a profundidade das coisas. Consciente de ser<br />

um ser para a morte, ele procura ser para a vida eterna da encantaria.<br />

Entende-se, nesta meditação devaneante, o “imaginário” como capital cultural.<br />

Seguindo Gilbert Durand, o conjunto de imagens não gratuitas e das relações de<br />

imagens que constituem o capital inconsciente e pensado do ser hum<strong>ano</strong>. Não serão<br />

fantasias, no sentido de que o termo tem como irrealidade, mas o substrato simbólico<br />

ou conjunto psicocultural (presente tanto no pensamento primitivo quanto no civilizado;<br />

no racional como no poético; no normal e no patológico), de ampla natureza,<br />

promovendo o equilíbrio psicossocial ameaçado pela consciência da morte. Ainda na<br />

estrada de Durand, o imaginário é entendido aqui como o conjunto de imagens e de<br />

relações de imagens produzidas pelo homem, a partir de um lado, de formas tanto<br />

quanto possíveis universais e invariantes e, de outro, de formas geradas em contextos<br />

particulares historicamente determináveis.<br />

A formação do sentido do imaginário ribeirinho/caboclo resulta de um “trajeto<br />

antropológico” de tensão e troca entre a natureza e a cultura, tendo como síntese o<br />

homem. É a troca incessante entre o subjetivo e o objetivo, integrando o universal e o<br />

singular, o interior e o exterior, o indivíduo e os grupos. O imaginário amazônico é o<br />

pêndulo da resolução das questões entre natureza e cultura em que ele se sustenta. Por<br />

esse trajeto vai-se formando o sentido das coisas, num conjunto de interações entre<br />

opostos. A fantasia passa a ser acionada por transcendência ou sublimação.<br />

Diante da matéria fluente e corrente da água do rio que passa, o caboclo<br />

libera e abre sua imaginação, na liberdade de um temperamento devaneante que<br />

produz a sua passagem para o poético. Por isso, mais do que contemplar, ele sonha<br />

a paisagem que o faz sonhar. Sonha buscando o infinito não no espaço. Ele busca o<br />

infinito na profundidade. Aparentando inércia, o caboclo segue, no incessante trabalho<br />

da imaginação, inventando a sua teogonia. Ou melhor, a sua mitogonia. E espero que<br />

ainda não, a sua mitoagonia.<br />

Não podemos esquecer que são rios de água doce os rios da Amazônia.<br />

Fatal é relembrar aqui Bachelard, quando diz que “a água doce é a verdadeira água<br />

mítica”. Podemos acrescentar, então, que a nossa mitopoética bebe o leite e o mel da<br />

água doce de nossos rios.


João de Jesus Paes Loureiro<br />

A linguagem líquida do rio de água doce revela a oralidade narrativa da<br />

natureza. A linguagem fluída de quem conta. Ela conta ao olhar devaneante do caboclo<br />

as narrativas que ele traduzirá no contar de seus causos e legendas, na líquida e fluida<br />

corrente oralizada, passando nos lábios dos rios, e que é, enfim, como a fonte de<br />

toda linguagem. Uma maré de linguagens que vai contando de botos, boiúnas,<br />

porominas, macunaímas, expulsão de colonos, contaminação fluvial pelo mercúrio,<br />

homens sem terra na terra dos sem fim. E já começa a contar os causos que lhe<br />

contam as antenas parabólicas e a Internet.<br />

A água é um silêncio visível. Ela se oferece à navegação livre do devaneio<br />

como navegação interior, em busca de uma profundidade e não de uma distância. A<br />

lenda, nessa poética do imaginário amazônico, é como a formulação de um desejo.<br />

Os bloqueios da vida prática são retirados, a gratuidade economiza os esforços da<br />

racionalidade. O ser, no repouso do devaneio, libera o sonho que é a fonte desse<br />

desejo de um mundo idealizado. Muito mais do que pelo fatalismo de uma vida<br />

governada pela determinação da natureza, a cultura amazônica, produzida pelo<br />

caboclo, estrutura-se como a lógica do sonho.<br />

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Meditação e devaneio: entre o<br />

rio e a floresta


Maria Eva Letízia<br />

Os enredos caboclos e nativistas nas toadas<br />

dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso,<br />

heróis do Festival Folclórico de Parintins 1<br />

Resumo<br />

Maria Eva Letízia 2<br />

A autora traça a origem do boi-bumbá e assinala que o festival de<br />

hoje já tem outros objetivos que não se resumem ao simples reverenciar<br />

do boi-bumbá, já que no folclore amazônico os ingredientes nativistas ou<br />

indigenistas ultrapassam largamente o quadro do antigo auto popular,<br />

impondo outros mitos regionais e outras lendas locais, vestidas de<br />

roupagens diferentes, que transformam a manifestação dos dois bois de<br />

p<strong>ano</strong> numa complexa ópera folclórica, representada na cidade de Parintins<br />

no Amazonas.<br />

Palavras-chave<br />

Amazônia; boi-bumbá; cultura popular.<br />

1 Manteve-se a grafia do português de Por tugal.<br />

2 Centre de Recherche et d’Etudes Lusophones et Intertropicales C.R.E.L.I.T. – UNIVERSITÉ STENDHAL –<br />

GRENOBLE 3 – França.<br />

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Abstract<br />

36 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

The author traces back the origin of the boi-bumbá ritual bulls and indicates<br />

that today’s festival already has other objectives which cannot be synthesized as the<br />

simple reverence to the ritual boi-bumbá bull, since the native or indigenous ingredients<br />

in the amazon folklore widely surpasses the framework of the ancient popular play<br />

by imposing the manifestation of the two cloth-made ritual bulls into a complex<br />

folk opera, represented in the city of Parintins located in the State of Amazonas<br />

(Brazil).<br />

Keywords<br />

Amazonia; boi-bumba, popular culture.<br />

Os bois em festa na cidade de Parintins<br />

O Festival Folclórico de Parintins, no Estado do Amazonas, já teve trinta e<br />

seis edições, que ao longo de cada <strong>ano</strong> contribuíram para exaltar dois bois de p<strong>ano</strong>,<br />

dois bumbás, como costumam dizer os amazonenses, cujos nomes: Garantido e<br />

Caprichoso, invadem não somente o espaço do bumbódromo e dos bairros<br />

adjacentes, mas também se repetem e se propagam nas páginas dos jornais, nos<br />

painéis publicitários, nas antenas das rádios locais e nos reclames da televisão.<br />

A tradição do boi-bumbá nascera no Nordeste do Brasil, ainda na fase<br />

colonial, mantendo-se até aos nossos dias, no folclore regional. Durante o ciclo da<br />

borracha, as animações protagonizadas por um boi de p<strong>ano</strong> vieram com as levas de<br />

migrantes, corridos pelo flagelo da seca, para a Amazônia, onde cedo caíram nas<br />

graças das populações caboclas, contagiando, ao mesmo tempo, com a sua alegria<br />

festiva os índios pacificados, acabados de entrar na “civilização brasileira” e cujos<br />

antepassados fizeram outrora a história do Norte do Brasil.<br />

No remate da centúria de oitocentos, o povo do Amazonas brincava e<br />

dançava em torno da figura do boi, no mês de junho, em todas as povoações e até


Maria Eva Letízia<br />

nos seringais, situados nos municípios distantes da calha do Madeira, do Purus ou<br />

do Juruá, onde nos enfeites destinados ao lendário bovino folgazão logo se fez<br />

notada a influência do artesanato indígena. No entanto, a festa maior, equiparada a<br />

um carnaval amazonense fora da época, fincou o pé numa pacata cida<strong>dez</strong>inha do<br />

interior, a trezentos e vinte e cinco quilómetros a nordeste de Manaus, chamada<br />

Parintins, topónimo nativo, evocador das longínquas migrações indígenas que<br />

passaram por aí.<br />

Há quase quatro decénios, esta povoação abriga um dos mais espectaculares<br />

festivais folclóricos do país, oriundo da competição, velha de oitenta <strong>ano</strong>s, que se<br />

instalou entre o Bumbá Garantido e o Bumbá Caprichoso.<br />

Para muitas tribos índias, a região de Parintins já fora uma etapa, que marcara,<br />

numa dada altura, a sua existência andarilha, uma existência tangida de um lado para<br />

o outro por causa das incursões dos invasores brancos. Os mitos indígenas às vezes<br />

mencionam aquelas deslocações acompanhadas das lutas pela conquista dos territórios<br />

de caça e de pesca. O deambular incessante dos nativos e os reencontros entre<br />

diversas nações indígenas servem hoje em dia de referência aos poetas e versejadores<br />

populares que compõem as toadas de boi, em que o povo pega e repete até se<br />

tornarem em estribilhos, um pouco como os motes das modinhas de carnaval.<br />

Atualmente, os Bumbás Garantido e Caprichoso já se confundem também<br />

com os mitos dos habitantes primitivos da Amazônia, têm as respectivas torcidas,<br />

suscitam amor e devoção, quando não fascinação e até fanatismo.<br />

Garantido e Caprichoso representam dois toiros da Ilha Tupinambarana,<br />

nascidos por volta de 1913, por ocasião das festividades juninas. Com eles apareceram<br />

outros mitos que também concorrem para a festa. Trata-se das rainhas do folclore,<br />

dos pajés e das cunhãs-poronga, estes últimos ressuscitados das tradições nativas,<br />

mas funcionando como mestre-de-sala e porta-bandeira, personagens emblemáticas,<br />

invejadas e queridas, alvos de todas as atenções, indispensáveis na qualidade de itens<br />

do programa festivo, criadores de lendas azul e branca ou vermelha e branca,<br />

conforme a preferência de cada qual.<br />

O núcleo urb<strong>ano</strong> de Parintins organizou-se em redor da Catedral de Nossa<br />

Senhora do Carmo, um templo imponente de que se orgulha o povo local. Este<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

edifício religioso e os prédios do centro da cidade datam dos <strong>ano</strong>s de 1950. Antes, a<br />

vila não passava de um amontoado de casas de palha. À volta da igreja começaram a<br />

surgir os colégios, as lojas de comércio retalhista, os armazéns e a própria cidade. E<br />

finalmente, em 1966, na quadra paroquial da catedral parintinense, aconteceu o primeiro<br />

festival folclórico. No referido templo, os Bois Garantido e Caprichoso tiveram até<br />

baptismo, porque Parintins é fervorosamente religiosa, católica.<br />

Em que consiste a festa e o desafio do Garantido e do Caprichoso<br />

na Ilha Tupinambarana<br />

Desde 1966, as regras das representações foram modificadas várias vezes,<br />

mas, mesmo assim, o seu princípio básico continua a ser o Auto do Boi, uma história<br />

singela e engraçada em que o protagonista é o bovino, acompanhado pelo casal Pai<br />

Francisco e Mãe Catarina (ou Catirina), a Sinhazinha da Fazenda e o pai da mocinha, o<br />

Fazendeiro, Amo do Boi.<br />

Contudo, o festival de hoje já tem outros objectivos que não se resumem<br />

apenas no simples reverenciar do boi-bumbá, já que no folclore amazônida os<br />

ingredientes nativistas ou indigenistas ultrapassam largamente o quadro dum antigo<br />

auto popular, nascido no Nordeste, e tendem a impor outros mitos regionais e outras<br />

lendas locais, vestidas de roupagens diferentes, que transformam a manifestação dos<br />

dois bois de p<strong>ano</strong> numa complexa ópera folclórica, representada a céu aberto, no<br />

bumbódromo e nas ruas de Parintins.<br />

Segundo a pesquisadora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, do Instituto<br />

de Filosofia e Ciências Sociais junto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o<br />

Festival Folclórico de Parintins apóia cada <strong>ano</strong> com mais força a chamada questão<br />

indígena, através dos rituais nativistas e o quotidi<strong>ano</strong> dos caboclos ribeirinhos, reforçado<br />

pelos temas relacionados com a realidade da população amazônida.<br />

O que foi consideravelmente ampliado é o número de itens que entram<br />

actualmente no certame e na disputa. Repare-se aqui em que, além do boi e dos quatro<br />

personagens que o acompanhavam desde o início, agora aparecem os Pajés, as Cunhãs-<br />

Poronga, os Representantes das tribos indígenas, os Tuxauas, os Porta-Estandartes, as


Maria Eva Letízia<br />

Rainhas do Folclore, os Levantadores de toadas, mostrando trajos e coreografias<br />

oriundas dos rituais nativos, que já mais nada têm que ver com o antigo auto.<br />

Mas seja como for, o fenómeno que verdadeiramente marcara o processo<br />

de transformação dos tradicionais desafios em espectáculos musicais é o surto das<br />

toadas de boi, peças lírico-musicais assinadas pelos compositores de renome.<br />

As letras dessas composições poéticas populares constituem hoje colectâneas<br />

da moderna poesia amazonense à moda dos antigos cancioneiros, que reflectem<br />

toda a propensão do povo para a festa, o seu apego às tradições e também uma<br />

tentativa mais recente de recuperação dos valores ancestrais, além do interesse crescente<br />

pela história e pela civilização das nações nativas, até agora marginalizadas e votadas<br />

ao desprezo e ao esquecimento. Àquilo tudo se acrescenta um tema escaldante de<br />

actualidade: a luta dos defensores da natureza tropical contra o desmatamento cada<br />

vez mais intensivo, contra a devastação da floresta por meio das queimadas<br />

premeditadas, contra a poluição do ar, e contra a inquinação das águas dos rios e<br />

igarapés, em suma, um combate ecologista, condizente com as aspirações e com as<br />

preocupações da nova geração dos moradores na Amazônia.<br />

As remotas origens míticas da festa taurina<br />

Ano após <strong>ano</strong>, nos três últimos dias do mês de junho, na Ilha Tupinambarana,<br />

dois toiros: um branco, com um coração vermelho na testa e um preto, adornado<br />

com uma estrela azul, entre os chifres, recomeçam o antigo confronto, cada um<br />

deles acreditando representar o Bem, deixando para o contrário a encarnação do<br />

Mal.<br />

O toiro negro e azul, Caprichoso, pretende remontar à origem da Constelação<br />

do Touro. Mas a marujada azul e branca lembra-nos a galera de Jasão, cheia de<br />

argonautas.<br />

Na mitologia grega, uma linda moça chamada Europa foi seduzida e amada<br />

pelo deus Zeus, senhor do Olimpo, que para poder aproximar-se dela, usou de uma<br />

artimanha, tomando a forma de um toiro branco. O animal raptou a bela jovem,<br />

numa praia, e levou-a para a ilha mediterrânica, chamada de Creta.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Nas moças vestidas de guerreiras há uma reminiscência das míticas amazonas<br />

gregas, que o padre Carvajal acreditara ter encontrado, no século 16, no rio que<br />

receberia o nome do rio Amazonas.<br />

Desde sempre a figura taurina simboliza a força criadora divina, a potência,<br />

a pu<strong>jan</strong>ça, a justiça e a própria divindade. No antigo Egipto, o toiro Ápis, com um<br />

disco solar entre os chifres, representava a virilidade e a fecundidade, e quando<br />

figurava como encarnação do deus da morte Osíris, simbolizava o poder de<br />

ressurreição, as forças naturais e sexuais.<br />

Na América do Norte, a nação Sioux via no toiro-bisonte Darma o emblema<br />

do universo e a encarnação animal do princípio Terra.<br />

No tocante às cores emblemáticas dos dois currais parintinenses, a simbologia<br />

fornece-nos várias pistas.<br />

O vermelho, cor do sangue e do fogo, remete para a criação do mundo e<br />

também para a ameaça da sua destruição. Tradicionalmente, o vermelho foi a cor da<br />

soberania, muito prezada nas cortes e adorada pela nobreza. Nos brasões simbolizava<br />

a valentia, a fúria guerreira, a chacina, a matança, devido ao sangue derramado, e<br />

também – a crueldade e a ira.<br />

Para muitos, o vermelho é a cor da riqueza e do amor, da força vital e do<br />

eros triunfante.<br />

Na Idade Média, o catolicismo via nela o estandarte do Diabo, sinal do<br />

amor infernal, do ódio e do egoísmo.<br />

A psicologia vê no vermelho a alegria de viver, o optimismo, o vigor e<br />

também a necessidade da conquista, o berço amoroso, a paixão, a pulsão sexual.<br />

Na quiromancia, o vermelho representa a dádiva total ou a crise, a derrota,<br />

quando não a aflição, o infortúnio e a carência.<br />

O branco simboliza a luz, a castidade e a virtude.<br />

No Egipto, representava a morte que liberta, enquanto os europeus<br />

meditavam sobre o seu aspecto maléfico, evocando a livi<strong>dez</strong> cadavérica, o soeiro,<br />

ou seja, lençol mortuário.


Maria Eva Letízia<br />

Entre os hebreus, esta cor tem o significado da pureza e da castidade.<br />

O branco é também a cor da verdade.<br />

E não nos esqueçamos de que, na América, o branco é a cor da Luadivindade,<br />

amiga dos guerreiros nativos.<br />

Também o azul possui uma forte conotação simbólica. Na mitologia egípcia<br />

representava Amon-Rá, deus do Sol, também venerado na Creta. Os gregos antigos<br />

afirmavam que o azul favorecia a meditação e o descanso, identificavam-no com o<br />

vento e com o ar, vendo nesta cor o símbolo da espiritualidade e da contemplação.<br />

Roma reservou esta cor a Júpiter e a Iúnia (Iunon), encarnação da mulher fecunda.<br />

O catolicismo outorgou a cor celeste à Virgem Maria. Os cristãos escolhiam esta cor<br />

como emblema da verdade, da fidelidade, da castidade, da lealdade e da justiça.<br />

O azul pálido simboliza a inacessibilidade, o maravilhoso e a evasão.<br />

Na quiromancia e nos sonhos, o azul é interpretado como revelador da<br />

tolerância, do equilíbrio, o domínio de si, da generosidade e da bondade.<br />

Se o vermelho representa a força vital e a potência, o azul tem para si a<br />

fidelidade, a lealdade, o equilíbrio e a tolerância. No confronto do Garantido e do<br />

Caprichoso, o vigor, a paixão, a alegria e o optimismo enfrentam com fúria guerreira<br />

e com uma entrega total da torcida, a gana da evasão rumo ao maravilhoso, a<br />

espiritualidade aérea, a sinceridade da convicção e a generosidade optimista da<br />

marujada detentora da verdade azul. As boas intenções dos iniciados nos mistérios<br />

dos bumbás adversários e competidores manifestam-se na claridade branco-argêntea<br />

do luar amazónico.<br />

O auto do boi na versão parintinense<br />

O antigo auto lusit<strong>ano</strong> do boi morto e ressuscitado, que atravessara o Atlântico<br />

a bordo das naus dos donatários-povoadores do Brasil Colónia, rapidamente criara<br />

raízes do Nordeste, impondo-se como um importante componente do folclore<br />

local. No século 19, quando começara o ciclo da borracha na Amazónia, o boibumbá<br />

veio fincar o pé nos barrancos e nos beiradões da bacia do Amazonas,<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

graças aos trabalhadores migrantes, recrutados no Nordeste para a extracção do<br />

látex nos seringais da região.<br />

A brincadeira à volta dum boi de p<strong>ano</strong> foi mencionada nas obras dos<br />

escritores que conheciam bem a Amazónia, como o português José Maria Ferreira<br />

de Castro ou o brasileiro de Humaitá, Álvaro Maia, que no entanto chegaram a<br />

reparar na lenta transformação do auto primitivo numa festa folclórica cabocla,<br />

tipicamente amazónida que já virou as costas ao auto primitivo e castiço, adoptando<br />

os trajes e os enfeites inspirados na arte nativa, devedora do meio ambiente dominado<br />

pela selva, com a sua fauna e a sua flora, exuberantes nas formas e nas cores.<br />

No atual festival do folclore de Parintins, o antigo auto serve apenas de<br />

pretexto à festa dos currais vermelho e branco, e azul e branco. Nos dias dedicados<br />

às apresentações dos dois bumbás competidores: Garantido e Caprichoso, as<br />

tradicionais figuras do auto ocupam pouco espaço em comparação com os novos<br />

itens oriundos do folclore ribeirinho e com os vultos espectaculares que representam<br />

a civilização das nações indígenas. Na realidade, os bumbás afiguram-se como<br />

levantadores dos respectivos “shows” que se baseiam na actuação dos grupos de<br />

dançarinos e dançarinas acrobáticos, capazes de elaborar, <strong>ano</strong> após <strong>ano</strong>, coreografias<br />

inovadoras, apresentadas ao som das toadas, compostas para alcançar o objectivo<br />

desejado.<br />

O auto do boi virou emblema duma festa carnavalesca fora do tempo que<br />

galvaniza o povo parintinense e manuara, mas os enredos nativistas, caboclos,<br />

ecologistas, até, assim como o próprio ritual de apresentação e de exaltação dos<br />

bumbás concorrentes fazem esquecer o principal enredo primitivo. Até a antiga<br />

personagem vedeta: a “Sinhazinha da Fazenda” actualmente muitas vezes fica eclipsada<br />

pela Cunhã-Poronga, um puro produto amazónida, devedora da cultura nativa.<br />

Comparando as letras das toadas apresentadas pelos dois bumbás, no festival<br />

de junho de 2001, podemos afirmar que o auto tradicional na sua versão integral<br />

apenas foi lembrado no curral do Caprichoso. A toada intitulada “Auto do Boi”<br />

menciona Pai Francisco, Mãe Catirina, os vaqueiros, o povo morador na fazenda,<br />

Catarina, mãe de Catirina, guerreira, mãe parintina, que queria a língua do boi. Mestre<br />

Chico, apaixonado, resolveu então matar o boi com o facão de gume afiado, tirou a


Maria Eva Letízia<br />

língua do animal de pêlo negro e brilhoso, em que a galera-marujada logo reconhece<br />

o bumbá Caprichoso. Contudo, pelos vistos, a morte do lindo boi foi inútil, já que<br />

na fazenda a comida era abundante, ninguém passava fome, todos os animais estavam<br />

bem alimentados e gordos, tinham ao seu dispor uns magníficos pastos verdes e<br />

muita água para beber. Por isso, dado que o boi morto era o bovino mais lindo da<br />

propriedade, o povo “azul” da fazenda ficou chocado e indignado, e reclamou de<br />

volta o seu boi vivo. Para fazer ressuscitar o animal tão querido de todos, os moradores<br />

da fazenda recorreram à ajuda dum pajé, personagem puramente indígena, chamada<br />

de propósito para aplicar um feitiço sigiloso e forte no cadáver do boi mutilado. O<br />

feiticeiro-curandeiro indígena conseguiu trazer de volta o touro negro, dando uma<br />

grande satisfação aos populares. Não se trata aqui duma intervenção milagrosa de<br />

um santo da Igreja Católica, mas duma figura bem humana, apenas habilitada a<br />

servir-se das forças sobrenaturais, reputada capaz de comunicar com os espíritos e<br />

detentora duma profunda sabedoria e dos ensinamentos deixados aos indígenas<br />

pelos míticos heróis de cultura nativa amazónica. Moralidade da história: quem valeu<br />

ao boi morto, foi um amazônida, representante da cultura local, de que a tradição<br />

nordestina se tornou devedora.<br />

Na toada intitulada “Amo do boi”, de autoria de Beto Carvalho, pertencente<br />

ao curral do mesmo Caprichoso, a figura do dono do animal negro, com uma<br />

estrela a brilhar na testa, chama pelo Bumbá Caprichoso, toca o berrante e tira os<br />

versos que o exaltam: “Meu touro negro é bonito/Com sua estrela a brilhar./O que<br />

vem da baixa, não atinge/Pois minha estrela é do ar”. O Caprichoso, nesta toada,<br />

seria capaz de matar de inveja a galera do contrário. O animal saído do curral azul<br />

faz delirar a sua marujada. O amo do boi aparece sozinho e fica encarregado da<br />

exaltação do bumbá que “faz a galera balançar”.<br />

Quanto à Sinhazinha da Fazenda, esta continua a ostentar um vestido rendado<br />

(à moda colonial), cheio de bordados preciosos, mas o seu padrão de beleza já não<br />

corresponde ao duma donzela branca, filha dos lusit<strong>ano</strong>s. A Sinhazinha da Fazenda<br />

que representa o curral azul do Boi Caprichoso tem um corpo moreno, a pele<br />

cheirosa, devida às essências tiradas da floresta tropical. É uma flor, “adorno em<br />

beleza”, mas também um produto da imaginação amazonense. A menina baila com<br />

o bumbá, conforme a tradição, mas ostenta um sorriso faceiro na arena e “traz a luz<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

da estrela no olhar”, a luz que ilumina a escuridão da noite, que dança, evoluindo no<br />

firmamento de bréu, penetrando nos corações dos seus “aficionados”, emocionandoos<br />

e envolvendo-os numa aura de amor e paixão, lema do curral azul para o <strong>ano</strong> de<br />

2001. A Sinhazinha do Boi Caprichoso já não tem nada de uma menina ingénua,<br />

porque se tornou numa moça sedutora, flor dos trópicos e consciente dos seus<br />

encantos e do poder que exerce sobre a galera.<br />

No seu próprio curral, a Sinhazinha da Fazenda tem uma rival ou pelo<br />

menos uma concorrente temível na pessoa da indigenista Cunhã-Poronga, vedeta<br />

nativa, mulher-farol para a torcida azul.<br />

Na festa deste <strong>ano</strong>, a Cunhã-Poronga é uma criatura de Tupã (veja a toada<br />

competente). Parecida com uma cheirosa flor do mato, recebeu a bênção da divindade<br />

suprema dos nativos, que a moldou com astúcia e subtileza. Afigura-se-nos como<br />

uma guerreira índia, mas de traços aprimorados, uma espécie de estampa de “imortal<br />

beleza”.<br />

A Cunhã-Poronga está atenta pois a sua missão é salvar os guerreiros Tupi,<br />

quer dizer, pugnar pela salva-guarda das culturas nativas menosprezadas, tirá-las do<br />

esquecimento, do abandono. A Cunhã-Poronga, armada com um arco, tal o deus<br />

Cúpido, há-de agradar ao público, mostrar-se atraente, irresistível a fim de convencer<br />

a assistência do valor da cultura indígena de que ela é embaixatriz.<br />

A índia guerreira tem o corpo nu, adornado de penas coloridas de sementes<br />

de sumaumeira e actua lançando as flechas que parecem dançar no ar. A silhueta<br />

linda e leve baila em honra das tradições nativas e expõe a sua beleza selvagem.<br />

Ao mesmo tempo, o compositor Ronaldo Barbosa fez desta Cunhã-Poronga<br />

uma menina-moça da festa tribal ritual, uma adolescente índia que desabrocha em<br />

mulher, que vem aqui comparada com uma rosa linda e única no mundo pela sua<br />

cor azul.<br />

Numa segunda toada da autoria conjunta de Ronaldo Bazi, de Wenderson<br />

Figueiredo e de Mauro de Souza, a cunhã é rainha da floresta, que apresenta um<br />

bailado gostoso e bem caprichoso, dedicado ao bumbá azul. Àquela “Rainha do<br />

Boi”, a natureza amazonense presta uma homenagem manifesta: “Copas verdes se<br />

curvam/Ao encanto desta flor tão bela/No amor da linda rainha/Do meu boi!”.


Maria Eva Letízia<br />

A Rainha da Floresta afigura-se como uma “doce morena”, que também<br />

personifica o desejo, agora adornado de penas e que flutua reencarnada, naquele<br />

corpo perfeito, na arena do bumbódromo. Os compositores inventaram a metáfora<br />

da flor de origem asiática, chamada de lótus, toda perfumada e que excita e seduz,<br />

incendiando o coração de cada brincante de boi azul.<br />

Por seu lado, o curral do Boi Garantido, muito preocupado com a exaltação<br />

do seu bumbá vermelho e branco, quase se esqueceu de mencionar o auto tradicional.<br />

Uma única toada foi dedicada à Sinhazinha da Fazenda (“Sinhazinha do meu Boi”),<br />

que vem juntar-se ao Garantido, já presente na arena, a balancear.<br />

Trata-se duma menina linda, donzela-princezinha da propriedade, apresentada<br />

como uma filha do Amo-Fazendeiro branco. Aqui é sobretudo o sorriso da<br />

sinhazinha a cirandar, que conquista o público à espera da dança da mocinha em<br />

torno do boi de p<strong>ano</strong>.<br />

É forçoso reconhecermos que a figurinha da menina da Fazenda, na versão<br />

vermelha e branca, apresenta-se bem apagada em relação à sua concorrente do<br />

curral azul. O seu único trunfo é a graça juvenil e a frescura de que se desprende a<br />

imagem da inocência e da virgindade homenageadas por Tony Medeiros.<br />

A cunhã, guerreira índia vermelha e branca, protagoniza a toada “Rosa<br />

Vermelha”. Apresenta-se como uma menina por quem a galera se apaixona. Ela vira<br />

o “bem-querer” de todos, graças ao seu sorriso. A cunhã do Garantido, na versão<br />

do <strong>ano</strong> de 2001, tem algo duma Nossa Senhora da Guia: é linda como uma estrela,<br />

guia a sua galera, inspira-a, tornando-se sua musa, é “luz e sedução” da batucada<br />

vermelha. Reina nos corações dos seus torcedores, fá-los felizes, enamorados. A<br />

Cunhã-Poronga é uma guerreira serena, digna, apresenta um gingado de amor e<br />

magia, em lugar da paixão(!) parece leve, executa um bailado de pura poesia,<br />

anunciando a vitória do campeão Garantido, na segurança da sua beleza nada perversa,<br />

antes vaporosa, digna de uma roseira moça de grande virtude. E esta delicadíssima<br />

“rosa vermelha”, quase tímida de tão cheia de compostura, seduziria mais do que a<br />

vistosa rosa azul, guerreira selvagem de corpo provocante.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

O caboclo ribeirinho de Parintins como porta-voz dos defensores<br />

da natureza amazônica<br />

O curral do Boi Garantido resolveu fazer do caboclo ribeirinho de Parintins<br />

o porta-voz do protesto ecologista contra o desmatamento da Amazônia e a<br />

devastação progressiva da selva.<br />

A figura do caboclo é representativa do povo amazônida, que sempre soube<br />

viver/sobreviver em harmonia com o meio ambiente. Os ribeirinhos, estabelecidos<br />

nos barrancos, nas ilhas, à beira dos lagos, dos paranás ou nos beiradões, foram<br />

capazes de aproveitar os recursos oferecidos pela mãe-natureza, sem cometer<br />

depredações, sem prejudicar o próximo nem a fauna local. Os caboclos amazonenses<br />

jamais tinham acalentado grandes ambições com respeito à melhoria do seu padrão<br />

de vida, antes pelo contrário, contentavam-se com pouca coisa e até hoje em dia<br />

continuam a aparentar muita humildade, embora já tenham consciência dos estragos<br />

causados no seio da natureza circundante pelos invasores alienígenas, exploradores<br />

insaciáveis dos recursos naturais encontrados no meio silvestre tropical.<br />

Na toada do bumbá vermelho e branco, intitulada “Lamento caboclo”, o<br />

ribeirinho apresenta-se como um agravado, respeitoso e humilde, cônscio do lugar<br />

que lhe coube neste mundo, mas presente e desejoso de fazer ouvir a voz dele aos<br />

ricos detentores do poder e do saber. A personagem confessa não ter “entendimento”,<br />

quer dizer, não ter instrução, nem habilitações especiais para falar ao público, vivendo<br />

apenas do exercício da sua modesta profissão de pescador, visando somente o<br />

sustendo do núcleo familiar de que fazem parte os cinco curumins que dele dependem.<br />

O item, que monologa na toada, nunca andou na escola e é analfabeto: “nem tão<br />

pouco leio escrita”, mas afirma-se como um devoto de São José, temente a Deus, e<br />

sobretudo bom observador deste seu universo dominado pelas águas e pela selva<br />

verde. O caboclo dirige-se ou interpela um doutor da cidade, homem instruído e<br />

diplomado, que tem uma posição reconhecida na sociedade. O ribeirinho queria que<br />

o seu interlocutor o informasse sobre as razões que levam os homens a destruir a<br />

natureza, esta obra-prima do Criador e que o pescador reconhece como uma “fonte<br />

de vida e beleza”.


Maria Eva Letízia<br />

O caboclo ousa acusar da parvoíce todos aqueles que, tendo muito dinheiro<br />

e podendo correr o mundo inteiro, não sabem ou não querem “conhecer a si”,<br />

conhecer e apreciar esta natureza amazónica, rica em espécies vegetais e animais, que<br />

a gente da cidade costuma desprezar, preferindo-lhe os encantos das terras alheias,<br />

as coisas vistosas e afamadas do estrangeiro. Além disso, o caboclo parintinense<br />

depara com um outro paradoxo: “Como é que o homem/Com tanto conhecimento<br />

(entenda-se: exemplos das outras terras e continentes, instrução, cursos técnicos<br />

superiores, etc.)/Destrói sem ter argumento/O que a natureza fez”, devasta e prejudica<br />

sem motivo aparente o pulmão do mundo que Deus colocou na Amazónia.<br />

Quanto a ele próprio, o pobre pescador-c<strong>ano</strong>eiro, mestiço ribeirinho sem<br />

pretensões e “pobre no dinheiro”, diz-se “rico em paz interior”, porque vive sem<br />

carregar nenhum crime ecológico na consciência, em harmonia com o meio ambiente<br />

que é o cenário e palco da sua existência, sem ofender a Deus nem a ninguém, sem<br />

roubar nada ao próximo, apenas a reivindicar um pouco de respeito pela natureza<br />

amazónica que alimenta a ele e aos seus e no seio da qual ele ganha o seu pão, sem<br />

pedir nada aos poderosos do seu país.<br />

Curiosamente, o lamento do caboclo de Parintins faz-nos lembrar certos<br />

camponeses quinhentistas dos autos e das farsas de Gil Vicente que, já naquela época<br />

remota, não se coibiam de chamar a nossa atenção sobre o desconcerto do mundo<br />

em que viviam<br />

Na toada “Não mate a vida!”, o Boi Garantido, pela boca de Tony e Inaldo<br />

Medeiros, cita-nos em exemplo o indígena, o índio amazónico que um dia “civilizará<br />

o mundo”. O nativo que sempre respeitou a terra-mãe, que soube conviver em<br />

harmonia com a natureza, adoptando um “modus vivendi” ecológico, que ensinava<br />

e transmitia aos filhos e netos, de geração em geração, durante muitos séculos, este<br />

respeito e este princípio de preservação cautelosa. Para o índio, a natureza da Amazónia<br />

faz parte da civilização nativa e o seu respeito representa a cultura do homem da<br />

região, já que o conceito de cultura milenar do amazônida se baseia na preservação<br />

da flora e da fauna local. O indígena é elogiado em antítese com o homem alienígena,<br />

que profanara a floresta, queimara uma parte da selva, poluiu e soterrou os rios. Nas<br />

mãos do invasor, a natureza apenas tenta sobreviver.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

O poeta hiperboliza os estragos causados no seio da natureza pela civilização<br />

industrial: “Dragões de ferro entraram na floresta”, monstros devorando e esmagando<br />

tudo o que encontram na sua frente, que semeiam a desgraça e a morte, porque<br />

matam os nativos, donos legítimos dessas terras invadidas e colonizadas. E o índio<br />

acusa-os da destruição do “chão” da sua tribo e dos seus antepassados. Em conclusão,<br />

o indígena vê o progresso como uma ordem adversa, inimiga da sua gente e da<br />

civilização nativa.<br />

Na mesma toada, encontrámos ainda um recado destinado à nova geração<br />

que incita a juventude a prestar atenção aos conselhos do indígena a fim de evitar<br />

uma futura catástrofe ecológica. A vida só será possível num mundo cujos recursos<br />

naturais forem respeitados e protegidos: “É preservando, seu moço,/Que o homem<br />

vai viver./É destruindo, seu moço,/Que o mundo vai morrer” – avisa o índio<br />

amazonense.<br />

No repertório das toadas escritas para a apresentação do Bumbá Caprichoso,<br />

a natureza amazonense foi exaltada em “Rainha da Floresta”, através das copas<br />

verdes de árvores frondosas da selva, das flores do mato de beleza perfumada e<br />

selvagem, do azul do céu e dos rios, que se curvam para homenagear a Cunhã-<br />

Poronga do curral azul.<br />

No entanto, muito mais original se afigura aos estudiosos do folclore a<br />

toada “Santuário da Estrela”. Com efeito, outrora, a Ilha Tupinambarana fazia parte<br />

da rica e generosa Pindorama, terra-mãe dos índios, terra sagrada dos filhos do sol,<br />

cujas noites eram embaladas pelo brilho fascinante da Lua-Jaci, deusa protectora e<br />

confidente dos povos nativos. Naquele tempo abençoado, as tabas eram emolduradas<br />

pelas matas esmeraldinas, as malocas podiam mirar-se no espelho de prata dos rios<br />

sem poluição.<br />

A memória dos séculos anteriores à chegada do homem branco equiparase<br />

aqui a uma Idade de Ouro ameríndia, ao tempo da paz e da felicidade perdida...<br />

O firmamento, salpicado de estrelas, constituía, então, a abóbada rendilhada da catedral<br />

indígena ao ar livre, obra do Criador do Universo Monán, acabada pelo poderoso<br />

deus Trovão (Tupã). Nesta toada emerge uma religiosidade nativista, singela e genuína,<br />

mas sobretudo tão diferente da religiosidade imposta pelo conquistador católico.


Maria Eva Letízia<br />

A religiosidade nativista nas toadas de boi<br />

A toada “Santuário da Estrela”, composta pela dupla Cyro Cabral e Ronaldo<br />

Bazi, não se limita a exaltar a natureza amazónica, censurando a destruição desse<br />

meio ambiente, injustamente invadido pelos conquistadores bárbaros, que “verteram<br />

o teu sangue”. Na realidade, por detrás do hino à “Terra encantada/Que o verde da<br />

mata/Reflete nos rios/Qual espelho de prata”, é possível descobrir toda a carga de<br />

devoção panteísta indígena à terra-mãe, à “Terra Sagrada/Dos filhos do sol/Do<br />

brilho da lua/Que embala a noite”.<br />

Ao mesmo tempo os autores afirmam que a Amazónia pertence ao deus<br />

Tupã e fica sob a tutela deste deus (“Amazônia é tupana”) e esta importante divindade<br />

indígena, reconhecida pela maioria das nações nativas, é homenageada como “Nosso<br />

Senhor” das tribos tupi, “dos arcos e flechas/da fé, do louvor”. Observamos,<br />

portanto, um manifesto sincretismo religioso, em que o deus Tupã está sobreposto<br />

a Jesus Cristo dos missionários, que tanto se esforçavam por evangelizar os filhos do<br />

mato do Novo Mundo.<br />

A terra da Amazónia é considerada a mais bela criação divina e como tal ela<br />

se tornara sagrada e merece ser celebrada e louvada em canções. Contudo, também<br />

é urgente preservá-la dos assaltos da civilização capitalista e industrial. E a recuperação<br />

do espaço florestal depende sobretudo da paz entre os povos. Por isso, os dois<br />

compositores invocam o espírito de luz, pedindo-lhe que “venha acender a chama<br />

da paz”. As nações indígenas devem esquecer as antigas rivalidades e contendas<br />

porque hoje elas precisam viver unidas e irmanadas. A fraternidade revela-se<br />

imprescindível para manter a paz na terra: “Hoje somos na terra irmãos”. Esta<br />

afirmação contraria manifestamente a lei de Jurupari, que recomendava a matança<br />

dos inimigos, atiçando o ódio, apelando à vingança, e fazendo dela uma das condições<br />

de acesso de um guerreiro nativo ao paraíso-Guajupiá. Porém, torna-se evidente<br />

que também as leis mudam com o tempo que passa, e a globalização fomenta cada<br />

vez mais o sincretismo religioso, mediante a exigência da coexistência pacífica entre<br />

os povos do nosso planeta.<br />

Para a galera azul do Boi Caprichoso, a luz-símbolo da paz na terra da<br />

Amazónia tem por emblema a estrela que o seu bumbá traz na testa. Esta estrela é o<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

sonho azul do povo de Tupã, e igualmente a encarnação do espírito da paz, consagrado<br />

pela natureza. O Boi Caprichoso, tal um mago ou um herói de cultura amazonense,<br />

dotado de poderes sobrenaturais, portanto, divinizado, seria capaz de soltar o encanto<br />

e transformar o mundo em amor, defendendo dessa maneira a Terra-Mãe, obra de<br />

Deus-Trovão.<br />

A religiosidade tupi-guarani transparece ainda na toada intitulada “Capricho<br />

de Monán”, da autoria de Ademar Azevedo e Davi Jerônimo. Os compositores<br />

evocam a criação do mundo nativo e a preferência dada por Monán, enviado do<br />

Ente Supremo Maíra, aos Tupinambá, sua nação predilecta. Os Tupinambá foram<br />

ajudados na sua peregrinação rumo à Amazónia pelas estrelas, faróis celestes, acesos<br />

pela divindade, que piscavam no céu, iluminando os caminhos que trilhavam as<br />

tribos corridas do Sudeste. Os maracás que tocavam sem parar, confirmavam à<br />

nação andarilha a vontade de deus, que lhe traçara o destino. A nação Tupinambá<br />

sobreviveu às intermináveis jornadas através do litoral; das matas e dos sertões,<br />

celebrando casamentos tribais, entre as danças guerreiras, e sempre tomando por<br />

testemunha tanto a Lua – Yaci como o Sol-Coaraci. Naqueles tempos, as belas<br />

borboletas amazónicas, que apareciam no verão tropical, eram mensageiras divinas<br />

e as suas cores: azul e amarelo tiveram a preferência dos Tupinambá.<br />

A luta da vida contra a morte como enredo principal da epopéia<br />

nativista protagonizada pela nação Carajá<br />

O curral do Boi Garantido inseriu na apresentação do bumbá vermelho e<br />

branco várias toadas que recorrem à história e ao lendário dos povos do tronco<br />

Carajá, vindos do Tocantins e do Pará, para evocar o tema das nações indígenas hoje<br />

extintas ou ameaçadas de extinção, como os Kaxinauá, homens-caranguejo. Por toda<br />

a parte, na bacia do Rio Amazonas, as tribos lutaram e continuam a lutar contra a<br />

morte, contra o extermínio físico e também contra a aculturação e a perda definitiva<br />

dos valores ancestrais.<br />

Numa das toadas do Boi Garantido, intitulada precisamente “Nações<br />

Extintas”, os compositores Sidney Resende e João Melo recordam os nativos felizes,


Maria Eva Letízia<br />

nas “florestas sem fim”, nos primórdios do mundo de Deus e, numa antítese que<br />

intensifica a mensagem de protesto, demonstram que hoje as nações sobreviventes<br />

se encontram “sem terra, sem teto, sem grão, sem alma e sem rota”. A perda do<br />

território tribal, a própria destribalização e a fome fizeram dos índios brasileiros um<br />

estrato social condenado ao nomadismo, à miséria por falta de recursos financeiros<br />

e materiais, sem arrimo, sem rumo, sem futuro. Dessa maneira, muitos indivíduos<br />

ficaram marginalizados, sem abrigo, e acabaram por perder a sua identidade. Tudo<br />

isso aconteceu por causa da chegada dos conquistadores-invasores, que semearam o<br />

caos entre os nativos. O desembarque da “cruz”, símbolo da espiritualidade europeia<br />

e ocidental, contribuiu para o agravamento das condições de vida dos indígenas,<br />

freqüentemente descidos ou resgatados pelos missionários, evangelizados e<br />

catequizados à força pelos mesmos sacerdotes, que sistematicamente combatiam os<br />

valores espirituais e culturais ameríndios, em nome da vitória de Jesus Cristo e do<br />

Quinto Império.<br />

A toada enumera trinta e cinco nações nativas extintas no refrão, parecido<br />

com uma melopeia, que se entremeia com a enumeração-declamação ou chamada<br />

dos nativos, os autores lamentam: “Minha terra-mãe/Não tenho mais/Tudo o quanto<br />

amei/Branco já tomou”.<br />

Porém, os colonizadores não foram os únicos factores da destruição do<br />

mundo indígena na América Latina. Na toada “Nação Kaxinauá”, da autoria de<br />

Inaldo Medeiros e de Marlon Brandão, foi evocado um cataclismo que se assemelha<br />

muito a um terramoto. Essa catástrofe natural teria abalado a Amazônia Ocidental<br />

ou andina: “Um grande cataclismo abalou o mundo/Os andes despertaram do<br />

sono profundo/O céu desabou sobre a terra dos Kaxinauá” – anunciam os autores.<br />

“Trovões e relâmpagos estremeceram a floresta, [...] O céu virou terra e a terra virou<br />

céu”.<br />

Em conseqüência desse sismo, o território paradisíaco dos Kaxinauá deixou<br />

de existir, uma boa parte da tribo pereceu. Neste caso concreto foi a própria natureza<br />

“enfurecida” que destruiu a vida da referida nação.<br />

Contudo, nem todos os nativos foram exterminados; sobreviveu a índia<br />

Kaxinauá que ficou fecundada pela arte mágica do deus Trovão para poder repovoar<br />

o mundo em ruínas: “do ventre morno da índia [...] brotou a vida”.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Existe na Amazónia uma lenda que narra a história da destruição do mundo,<br />

em que somente sobreviveu um menino. Essa criança teria passado a viver entre os<br />

caranguejos e acabou por aprender a imitar aqueles animais em tudo. Todavia, depois<br />

de ter crescido e de se ter tornado homem adulto, o jovem índio apercebeu-se da<br />

sua diferença. Após essa descoberta, o moço pediu à divindade suprema (deus<br />

Tupã) que este lhe explicasse as suas origens. Assim instado, Tupã compadeceu-se do<br />

rapaz, órfão do seu povo, e resolveu levá-lo para o céu. Com o jovem índio entraram<br />

no espaço divino alguns caranguejos agarrados ao corpo do moço. Tupã iniciou o<br />

rapaz, que depois de terminada a sua aprendizagem regressou do céu a Terra, como<br />

um grande pajé, um herói de cultura e redentor da humanidade, desejoso de fazer<br />

renascer a sua tribo. O pajé instruído pelo deus Tupã virou repovoador da sua gente,<br />

que passou a apelidar-se: homens-caranguejo, “filhos prediletos do pai do Trovão”.<br />

A partir daquele acontecimento, os Kaxinauá veneram o tótem Caranguejo, rodeado<br />

de tochas acesas que iluminam o terreiro da taba, nas noites de festa. A nação kaxinauá<br />

acredita também no poder duma pintura de Camacaá, susceptível de os proteger da<br />

fúria dos elementos naturais e, da inveja e das maldições das tribos vizinhas. Mas o<br />

mito da catástrofe devastadora dos primórdios da sua história nunca foi esquecido.<br />

No caso dos homens-caranguejo, a vida levou a melhor, afastando os nativos<br />

das garras da morte.<br />

Na toada “Cupendiepes”, os compositores Inaldo Medeiros e Marlon<br />

Brandão evocam os vampiros da selva, ou seja, homens-morcego, sinistros<br />

antropófagos que sugavam a vida dos guerreiros da nação Apinayé.<br />

O homem-morcego passou a simbolizar a morte: “criaturas aladas das<br />

criptas”. Segundo a tradição, esses vampiros da selva habitavam uma gruta maldita,<br />

da qual saíam com a intenção de matar os membros da outra tribo. A perspectiva<br />

do confronto com os homens-morcego criou na taba dos Apinayé um ambiente de<br />

desassossego. Todos tinham medo daqueles seres sanguinários que actuavam de<br />

noite, assaltando as malocas mergulhadas no sono. Os mais velhos da tribo perseguida<br />

chamaram-lhes de “assassinos da floresta”. Contudo, também aqui a nação agredida<br />

decide reagir. Os guerreiros armados de machados de pedra vão declarar a guerra<br />

aos filhos da mata e da escuridão, solicitando a ajuda do Sol. O Astro amigo iluminou


Maria Eva Letízia<br />

a floresta e cegou as feras sanguinárias. Com o auxílio da luz benfazeja, os Apinayé<br />

venceram as trevas e a maldição foi derrotada. Daí em diante, a tribo pôde viver em<br />

paz, no seio da natureza amiga.<br />

O ritual dos Cupendiepes veio para o Amazonas com uma outra tribo do<br />

Pará, oriunda do tronco dos Carajá. Repare-se no zoomorfismo dos canibais,<br />

transformados em feras, uma metamorfose bastante comum, na mitologia indígena<br />

amazónica, em que os hum<strong>ano</strong>s, os animais e os vegetais fazem parte do mesmo<br />

universo, coabitam pacificamente, completam-se e sobretudo trocam os ensinamentos,<br />

as competências, o saber-fazer, comunicando na mesma língua.<br />

Por sua vez, um outro compositor do curral vermelho e branco, Cláudio<br />

Batista, lembra-nos, através da toada intitulada “Maricá”, o mito das flechas<br />

enfeitiçadas-serpentes que também tiveram que declarar a guerra à morte vinda das<br />

trevas. Num cenário nocturno, os outros malditos, macacos enraivecidos, trazem a<br />

destruição e a morte à taba que assaltam, anunciando a sua chegada pelos gritos<br />

medonhos que ecoam na selva. No entanto, das malocas saem os guerreiros,<br />

devidamente preparados e pintados a preceito, para empreenderem a luta salvadora.<br />

Os macacos-assassinos serão derrotados pelas flechas-serpentes, num duelo dos<br />

justos e da luz contra a escuridão traiçoeira e o terror. Ao mesmo tempo, os guerreiros<br />

índios vão vingar a morte dos companheiros caídos no combate para que estes<br />

últimos possam repousar em paz. Assim, os autores da vingança merecerão o paraíso.<br />

No mito amazonense, a flecha-serpente é o atributo do lendário guerreiroherói<br />

Maricá. Esta arma temível foi lançada do céu, como um raio de fogo, capaz<br />

de destruir toda a força do mal. Face à flecha-serpente ergue-se a terrível criatura, a<br />

garganta voraz do macaco furioso, “medonha assombração”, que espalha a maldição<br />

na taba, semeia medo, pesadelo e agonia nas malocas. Desse modo, na grande batalha,<br />

defrontam-se a luz fulminante e a assombração tenebrosa. Para convocar o poderoso<br />

Maricá, os guerreiros, reunidos no terreiro, acenderam uma grande fogueira, confiando<br />

na força benéfica da claridade para se proteger das investidas assassinas dos<br />

sanguinários macacos inimigos.<br />

Depois da refrega, a tribo vitoriosa dançará à volta das fogueiras a sua<br />

dança guerreira, em louvor do mítico herói Maricá.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Segundo a tradição mitológica nativa, as tribos índias também podiam ser<br />

aniquiladas pelas maldições. Este tema foi glosado na toada “O Segredo das<br />

Máscaras”, composta por Demétrios Haidos e Geandro Pantoja. Assim, um jovem<br />

guerreiro, recém-iniciado, revelou à mãe dele o segredo das máscaras que a tribo<br />

diuré possuía, e o facto de o tabu ter sido transgredido provocou uma ira destrutora<br />

dos espíritos, subitamente ofendidos pela profanação dos objectos sagrados milenares.<br />

Também aqui, os espíritos agravados pertencem às trevas e daí fazem os<br />

possíveis para espalhar o medo, que o vento aliado deles se encarrega de levar à taba<br />

dos diuré. Observe-se o silêncio da mata que prenuncia um acontecimento fora do<br />

comum, marcando um momento de retenção dramática, que propaga o mal-estar e<br />

a inquietação entre os espectadores. E como se isso não bastasse, os espíritos vingativos<br />

chamam aos deuses macabros “kuni” por destruição. Estes últimos condenam o<br />

acto do jovem guerreiro e exprimem o seu ódio e a sua fúria, convocando os quatro<br />

elementos (ar, terra, água e fogo) para assolar a aldeia culpada da profanação das<br />

máscaras sagradas.<br />

No meio daquela confusão, surge um poderoso pajé, pronto a enfrentar e a<br />

combater o mal, armado de um maurehé. Mas o esforço dele será vão. Todas as<br />

tentativas fracassam perante as nuvens ameaçadoras e se entrechocam, desencadeando<br />

uma tempestade mortífera. A morte desce sobre a taba num raio de fogo que<br />

invade a ocara, abrindo lá uma cratera. Simultaneamente os ventos devoram as<br />

igaras da tribo condenada. O compositor da toada oferece-nos aqui uma imagem<br />

do apocalipse, na versão ameríndia.<br />

O pajé, em transe, tenta orar, mas nada consegue. É o fim do povo Carajá,<br />

vencido pelas forças da natureza, castigado por ter transgredido a lei. Repare-se no<br />

poder extraordinário dos espíritos, que controlam as forças da natureza e mandam<br />

nos elementos.<br />

Em “O Segredo das Máscaras” os autores incorporaram um cântico fúnebre<br />

indígena, que pode ser cantado em coro, imitando a tragédia grega. É o requiem<br />

cantado à memória dos povos extintos.<br />

O universo nativo, retratado pelos compositores de toadas do curral<br />

vermelho e branco, é um mundo masculino, onde predominam os valores e os


Maria Eva Letízia<br />

atributos puramente guerreiros, e onde se exalta o duelo contra o inimigo mortal.<br />

A única excepção encontrada na colectânea do Bumbá Garantido é a toada<br />

“Dinahi”, composta por Geandro Pantoja e Demétrios Haidos.<br />

Desta vez, deparámos com uma espécie de sereia amazónica, Dinahi, versão<br />

tupinambarana ou manaó da Iara, que nasce do encontro das águas. É provável<br />

que se trate duma personificação poética do Rio Amazonas, nascido na mistura<br />

das águas caudalosas do Solimões e do Negro. Dinahi é uma cunhã morena, linda<br />

de morrer e que “perfuma a aldeia de amor em noites”. Esta Iara manaó fascina<br />

o próprio Tupã, seduz a todos e tornou-se o orgulho da tribo do lendário chefe<br />

Ajuricaba.<br />

Lembre-se aqui que Ajuricaba suicidara-se, caindo no “Rio Largo”, na<br />

proximidade do encontro das águas, pelo que Dinahi também pode ser uma das<br />

encarnações do herói. Por isso, não é de estranharmos, a sereia do Amazonas terse<br />

tornado numa heroína imortal entre os manaós.<br />

Por outro lado, a Dinahi pode igualmente representar a outra Iara<br />

amazonense, em que se metamorfoseara o belo e jovem guerreiro, filho<br />

“progressista” do malvado e autoritário tuxaua Kaúna, que o pai condenara à<br />

morte por afogamento neste mesmo encontro das águas, e que foi salvo pelos<br />

peixes, transformado numa mulher maravilhosa que viria a reinar sobre uma cidade<br />

submersa, algures, nas profun<strong>dez</strong>as aquáticas, chamada Tauacuéra.<br />

Dinahi, na versão do boi vermelho e branco, é uma Princesa das águas,<br />

que aparece aureolada de luz de luar, com os cabelos pretos exalando o cheiro<br />

intenso de jasmim, envolta em magia, com, na cintura, escamas de prata. Dinahi é<br />

a filha predilecta de Tupã, que lhe outorgou imensos encantos e poderes<br />

sobrenaturais.<br />

No mito da Iara de Tauacuéra, a sereia amazonense representaria um<br />

contrapoder feminino, mais hum<strong>ano</strong>, mais fraterno, vindo contrariar e desafiar o<br />

despotismo dos chefes tribais, tirânicos e freqüentemente sanguinários.<br />

A Dinahi, Princesa das águas do Boi Garantido, encarna o desejo de amor<br />

e de paz, apregoado pelo curral vermelho e branco.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Quando o Boi Caprichoso resgata a história da região<br />

Baseando-se no topónimo Ilha Tupinambarana, o curral azul e branco<br />

pretendeu resgatar a história da região parintinense, cujos moradores não se esquecem<br />

da passagem do mítico povo Tupinambá e reivindicam o apelido de “Tupinambás<br />

não autênticos”, ou seja, miscigenados com outras etnias nativas e com os brancos<br />

de que se origina a população cabocla, predominante naquela parte do Amazonas.<br />

Com efeito, algo daquela andarilha nação Tupinambá deve ter ficado em<br />

Parintins. O próprio caboclo do lugar orgulha-se da mestiçagem de que é o fruto,<br />

afirmando ser ele um misto de índio, autóctone ou não, com portugueses, judeus,<br />

marroquinos, sírio-libaneses e descendentes dos povos orientais.<br />

Na primeira fase, os lendários Tupinambá viviam na proximidade da baía<br />

da Guanabara, no litoral carioca. Mas depois da chegada dos brancos foram corridos<br />

do Rio de Janeiro e começaram a viajar, tomando a direcção do Nordeste. Contudo,<br />

a sua fixação no Nordeste também se revelou impossível, e a tribo saiu de lá, rumando<br />

para o Norte e daí para a Amazónia.<br />

Essa jornada levou sessenta ou setenta <strong>ano</strong>s. Uns morriam pelo caminho,<br />

outros nasciam, cresciam, multiplicavam-se e acabavam falecendo, sem nunca terem<br />

conhecido uma vida sedentária. Com tanta caminhada, recheada de perigos, de<br />

escaramuças, de perseguições movidas pelas tribos inimigas, a nação Tupinambá<br />

chegou ao Rio Amazonas muito dizimada.<br />

Segundo o estudioso Florestan Fernandes, oitenta mil índios Tupinambá<br />

deixaram, no século 16, a costa fluminense, percorreram o litoral capixaba, bai<strong>ano</strong>,<br />

pernambuc<strong>ano</strong>, paraib<strong>ano</strong>, potiguar, cearense e maranhense, antes de entrar no interior<br />

do Pará e alcançar o Amazonas, em busca de uma terra prometida ou sonhada. A<br />

jornada de tantos <strong>ano</strong>s foi pontuada pelas lutas com outras nações, que vitimaram<br />

centenas de indivíduos. A peregrinação dos Tupinambá assemelha-se com o êxodo<br />

dos hebreus da Bíblia e foi precisamente esta ideia que inspirou os compositores da<br />

toada azul e branca “Odisséia Tupinambá”. Mostra-se nela que poucos índios<br />

chegaram sãos e salvos à Amazónia, talvez apenas quinze mil tivessem cumprido a


Maria Eva Letízia<br />

penosa caminhada. Porém aqueles que sobreviveram e vieram às margens do “Rio<br />

Largo”, chegaram vitoriosos, porque acreditavam que a Amazônia fosse o Paraíso<br />

indígena, a terra sem males ou o Guajupiá.<br />

No rio menor Nhamundá ter-se-ia dado o encontro dos Tupinambá com<br />

as lendárias guerreiras Icamiabas (Ycamiabas), que tinham por amuleto o muiraquitã,<br />

uma pedra verde-escura, reputada mágica, proveniente do lago que fazia parte do<br />

território tribal daquelas mulheres selvagens. Os homens tupinambá copularam e<br />

fecundaram as Icamiabas, de cujo ventre nasceram os tupinambaranas, povo não<br />

autêntico, não castiço, mas composto de guerreiros fortes e corajosos.<br />

Noutros lugares, a miscigenação nem sempre acontecia duma maneira natural<br />

e pacífica, houve vários choques, refregas devidas à luta intertribal pela dominação<br />

do território, no médio e no baixo Amazonas, e imensas nações nativas acabaram<br />

por ser expulsas da região, como, por exemplo, os Mandurucu ou os Parintintin ou<br />

os Torá.<br />

A toada “Odisséia Tupinambá” começa, aliás, pela imagem duma flecha<br />

errante disparada por um arco indígena, “cravando no ódio que o branco espalhou”.<br />

O primeiro inimigo do índio foi portanto o branco português, mas entre a costa<br />

fluminense e o Amazonas, os Tupinambá tiveram que fabricar e disparar muitas<br />

outras flechas e o inimigo nem sempre era branco.<br />

Os Tupinambá são apresentados como uma nação pacífica, que andou à<br />

procura da estrela da paz.<br />

Na primeira fase daquela migração forçada, o cortejo dos peregrinos nativos<br />

é comparado com as borboletas-monarcas, por causa dos cocares coloridos, tangas<br />

e pinturas corporais dos guerreiros, caçadores e das mulheres. O povo em trânsito<br />

parecia dar mais vida e alegria às regiões sertanejas, quase desérticas. A própria mata<br />

animava-se com o rumor das vozes e das pisadas.<br />

Durante toda a caminhada, a Lua guiava a tribo andarilha. No entanto, os<br />

índios pereciam, os sobreviventes choravam os desaparecidos e o ambiente alegre<br />

estava mudando, pois a jornada parecia não ter fim. os acidentes, o cansaço, a exaustão<br />

davam cabo de muitos viventes, pelo que em cada vereda ficou uma lágrima<br />

tupinambá. O pranto contrasta com o vistoso cortejo de borboletas do início.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Para chegar à Amazónia, os Tupinambá tiveram que transpor muitos rios<br />

caudalosos, correndo o risco de perderem a vida naquelas travessias. Os Rios Cumá,<br />

Ibiapaba, Caeté, Madeira, Uruna (Negro), Tapajós e Amazonas marcavam as<br />

sucessivas etapas da viagem que se arrastava por muitos lustros. Mas os índios<br />

sabiam que ficando em contacto com os brancos iam perder a sua liberdade, seriam<br />

descidos ou resgatados, ou feitos prisioneiros duma “guerra justa” ou mortos por<br />

uma bala de bacamarte ou de açoites de chicote de um feitor da fazenda. Perante<br />

essas perspectivas sombrias, a Amazônia distante representava para eles a liberdade.<br />

Chegados à beira do “Rio Largo”, gostaram dessas águas-vivas, gostaram<br />

da selva, da fauna e da flora e começaram a criar raízes no meio da natureza<br />

amazónica. Com outras tribos vizinhas aprenderam a fazer o cauim, a tradicional<br />

bebida fermentada do Norte, apreciando o sossego, com a “alma tranqüila e serena”.<br />

Mas a paz acabou depressa, porque os lusit<strong>ano</strong>s também conseguiram<br />

descobrir o paraíso terrestre da Amazónia e começaram a penetrar no interior, à<br />

procura das chamadas drogas do sertão. No encalço dos conquistadores leigos<br />

vieram também os missionários e a guerra foi retomada.<br />

Os Tupinambá acabaram por ser massacrados: “a cobiça do descobridor/<br />

A ferro e fogo os exterminou”, com diz a letra da toada. Após a morte em combate,<br />

os guerreiros índios de mérito entraram, com certeza, no paraíso indígena, chamado<br />

de “Guajupiá” para, nas veredas daquela sonhada selva sem males, gozarem a paz<br />

eterna e o descanso, comprado pelo preço da vida.<br />

Felizmente, a nação peregrina deixou uma herança genética e civilizacional<br />

na Ilha Tupinambarana, de que os moradores do lugar se orgulham. A cultura<br />

tupinambá sobrevive nas festas folclóricas, no artesanato, nas danças populares.<br />

Atualmente, o caboclo tupinambarana, que já ganhou consciência da sua<br />

luta pela sobrevivência que dura há cinco séculos (desde a chegada dos colonizadores<br />

lusit<strong>ano</strong>s), também pretende reivindicar o direito de gozar a vida na “sua ilha”.<br />

Quer que os alienígenas o deixem em paz, que não venham até lá para poluir a<br />

natureza e o ar que ele respira, que parem com o desmatamento da selva, que<br />

acabem com a grilagem e a exploração do ribeirinho. Sem aqueles avanços da<br />

pretensa “civilização”, Parintins poderá tornar-se numa nova terra sem males, bem


Maria Eva Letízia<br />

real, que todos poderão saborear, ao contrário do mítico Guajupiá dos sonhos dos<br />

antigos guerreiros nativos.<br />

Os caboclos recordam que outrora os tuxauas ou chefes tribais falavam no<br />

Guajupiá aos seus guerreiros que saíam da taba para combater o inimigo. O Paraíso<br />

indígena constituía a recompensa maior reservada aos valentes e corajosos, tanto<br />

Tupinambá quanto oriundos das outras nações. Com efeito, as narrativas mitológicas<br />

de muitos povos nativos mencionam o tal paraíso ambicionado pelos guerreiros:<br />

Tamoios, Pataxó, Caetê, Potiguares, Timbira, Kaiapó e os demais.<br />

Hoje em dia, para os caboclos dos nossos dias o paraíso fica aqui, na Ilha<br />

Tupinambarana, “Chão de bravos, onde o rio empurra o mar/Onde o pássaro é<br />

mais colorido/Onde a chuva é mais molhada”. No conceito dos moradores do<br />

lugar, o Guajupiá poderia situar-se nesse recanto da Amazônia. E o ambiente festivo<br />

criado pelo festival protagonizado por dois bumbás serve também para aumentar a<br />

ilusão de existir uma terra sem males parintinense[...]<br />

Para completar a informação relativa ao paraíso-Guajupiá, frise-se que os<br />

estudiosos da antropologia, da sociologia e da etnologia, tais como Câmara Cascudo,<br />

Eliade, Florestan Fernandes, Koch-Grünberg, Métraux ou, mais perto de nós,<br />

Giancarlo Stefani, ligam o conceito do Guajupiá ao do imperativo da perseguição<br />

do inimigo (indígena ou branco), decorrente dum dos mandamentos do herói de<br />

cultura nativa, conhecido por Jurupari.<br />

As tribos nómadas ou errantes escondiam-se no cerrado, na selva, cujas<br />

brenhas defendiam a privacidade do índio andarilho, tão cioso da liberdade de<br />

movimentos. A fim de salvaguardar essa mesma liberdade, o nativo apostava na<br />

astúcia e na destreza que lhe permitiam derrotar os inimigos. Essas duas qualidades<br />

eram equiparadas a uma forma de glória.<br />

Um guerreiro merecedor, que conhecera a glória na terra, entrava depois da<br />

morte no Guajupiá, um lugar imaginário, situado além das altas montanhas, certamente<br />

parecidas com os Andes, onde havia de viver feliz, dançando e pulando, em companhia<br />

dos seus antepassados.<br />

Para merecer aquele paraíso, o índio devia mostrar-se valente, destemido e<br />

activo, um verdadeiro “kirumbawa-apigawa”, caçando e matando sem cessar os<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

inimigos da sua gente e dele próprio. Devia igualmente praticar a antropofagia ritual,<br />

sobre as partes vitais do corpo inimigo, porque este tipo de canibalismo lhe garantia<br />

uma recompensa no futuro. Este comportamento era o único conforme aos bons<br />

costumes indígenas, definidos na lei de Jurupari. Desse modo, o ideal hum<strong>ano</strong><br />

tupinambá personificava-se num guerreiro sem pavor, destro e valente, mas, ao<br />

mesmo tempo, bom dono de casa e pai de família, capaz de cultivar a terra para dar<br />

um sustento decente à sua gente. Além disso, devia ser ambicioso e nunca se esquecer<br />

da vingança.<br />

Entre os ameríndios, todos ambicionavam a viagem para o Guajupiá, que<br />

normalmente representava o desfecho feliz da peregrinação terrena do índio e levava<br />

o nativo falecido a integrar-se na sociedade dos antepassados.<br />

Porém, o Guajupiá só era acessível aos eleitos, já que nem todos os índios<br />

apresentavam tantas qualidades guerreiras e tantas habilidades domésticas que fizessem<br />

deles os candidatos perfeitos ao paraíso. Por conseguinte, só os melhores, os mais<br />

valorosos, seleccionados pela divindade suprema, por terem realizado ou posto em<br />

prática, na vida terrena, os ideais definidos na lei de Jurupari. Essa lei privilegiava<br />

obviamente os valores guerreiros e religiosos.<br />

Por outro lado, podemos afirmar que o Guajupiá, apregoado como a meta<br />

definitiva a alcançar por um homem nativo, permitia que os mortos ou a sua lembrança<br />

governassem os vivos, exigindo deles a manutenção dum estado de guerra permanente<br />

por mor da necessidade de vingar a morte dos parentes e amigos e de capturar o<br />

maior número possível de inimigos a eliminar.<br />

A captura dos inimigos-reféns de guerra-escravos-prisioneiros postos a<br />

engordar, nas cercas previamente preparadas para o tal efeito, tornava possível a<br />

prática do canibalismo cerimonial ou ritual, que por sua vez condicionava o acesso<br />

ao Guajupiá.<br />

Simultaneamente, o acto de engolir as partes vitais do corpo do inimigo<br />

vencido, proporcionava aos índios vitoriosos o sentimento de bem-estar na vida e<br />

uma sensação da força. O fundamento emocional do banquete antropofágico era<br />

exactamente este e a boa disposição constituía a prefiguração das delícias do paraíso-<br />

Guajupiá, terra sem males.


Maria Eva Letízia<br />

Um outro tema importante, emprestado ao lendário tupinambá, é o encontro<br />

dos guerreiros da referida tribo com as mulheres guerreiras selvagens, moradoras da<br />

beira do Rio Nhamundá e chefiadas pela rainha Naruma.<br />

Segundo Abguar Bastos, autor do romance Terra de Icamiaba, houve um<br />

tempo em que as icamiabas, jovens guerreiras da tribo das Amazonas, se reuniam, ao<br />

clarão dos fogos, no Lago do Espelho da Lua, nas noites de lua cheia. A tribo<br />

reconhecia a divindade da Lua-Jaci e considerava o tal lago um espaço sagrado da<br />

deusa.<br />

A Lua-Jaci, através das chamas altas das fogueiras acesas pelas moças guerreiras,<br />

fazia descer um manto vermelho até ao sopé da Serra do Copo, onde o lago oscilava<br />

docemente. Havia estrelas no fundo das águas do lago e escamas cor de fósforo que<br />

passeavam, largando na superfície pequeninas centelhas, que abrasavam o espelho de<br />

água e criavam a ilusão óptica de incêndio.<br />

Naquelas noites de lua cheia, as icamiabas mantinham-se com os ouvidos na<br />

terra para escutarem todos os rumores e procurarem distinguir a marcha dos homens<br />

– que vinham, segundo a tradição, do Norte – para fecundá-las.<br />

Logo que percebiam os passos na selva, já de pé, as icamiabas davam<br />

retumbantes brados, sinal de alegria colectiva. As flechas das guerreiras voavam para<br />

o céu, as fogueiras ardiam com mais força e as flechas caíam no lago, batiam nas<br />

estrelas e nas escamas de peixes, enquanto as mulheres selvagens dançavam doidamente.<br />

O amor pressentido fazia milagres e no lago havia peixes sortílegos, cor de<br />

ouro fosco, cinzentos e brancos, azulados, verde-escuros, verde-esmeralda. Sabendo<br />

disso, as icamiabas golpeavam-se com o silex para lançar no lago o seu sangue quente.<br />

Assim os peixes se encantavam e afundavam-se, já metamorfoseados em pedras.<br />

Essas pedras tinham o nome especial: eram os muiraquitãs. Virando pedras, os peixes<br />

perdiam as suas formas primitivas, mas guardavam as cores de origem. As jovens<br />

guerreiras icamiabas costumavam mergulhar para apanhar essas pedras encantadas e<br />

de volta traziam a terra os muiraquitãs. O objectivo era transformar as pedras em<br />

amuletos mágicos. Para alcançar o efeito desejado, os muiraquitãs eram aquecidos<br />

junto do fogo da paz e durante alguns minutos as pedras enchiam-se com a luz<br />

imortal dos olhos selvagens das moças.<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

Depois do coito com os homens do Norte, que tinham um pacto<br />

amoroso com as icamiabas, as amantes-guerreiras presenteavam cada macho<br />

com um muiraquitã, que o havia de proteger.<br />

Na mitologia amazonense, o muiraquitã é a pedra sagrada do amor, da<br />

alegria e da felicidade. Simboliza o amor, sendo o próprio sangue da guerreira,<br />

o pacto da amizade e da paz. A felicidade, no conceito das icamiabas, era aquela<br />

insólita aventura do gozo indizível por ser passageiro, e a felicidade perpetuavase<br />

em pedra jadeíta por todos os séculos do mundo.<br />

Quanto à alegria, esta provinha do encanto recebido em cada pedra das<br />

chamas ardentes da fogueira.<br />

Para os caboclos de Parintins, o muiraquitã é a rãzinha verde da sorte,<br />

uma pedra que fecha o corpo, espanta as cobras, protege o seu dono das doenças,<br />

faz que a flecha do caçador nunca erre o alvo, que o pescador nunca volte à toa<br />

da pescaria. E no amor, o muiraquitã é o olho fulgurante.<br />

A toada “As Ycamiabas”, da autoria de Tony Rossi, presta uma<br />

homenagem calorosa às míticas guerreiras que “Defendem com raça/A sua<br />

sagrada nação”.<br />

No entanto, o encontro dos guerreiros Tupinambá com as Icamiabas<br />

foi uma fatal ilusão para os índios, que não afastou deles o perigo de extermínio.<br />

O muiraquitã não conseguiu levar a melhor sobre o inimigo branco. Os índios<br />

souberam que o amor tem os seus limites. Para muitos, o amor numa noite de<br />

lua cheia é um amor proibido, pecaminoso, que dá azar e não a sorte, pois um<br />

ser hum<strong>ano</strong>, concebido nessas condições, fica maldito.<br />

Como acabamos de ver, o mito das icamiabas vira uma espécie de tabu,<br />

por ser eng<strong>ano</strong>so: “Ycamiaba, teus cabelos cor da noite/São do vento. A tua<br />

pele tem o sol das manhãs” – canta a galera azul e branca.<br />

Apesar de tudo isso, as lendárias guerreiras icamiabas merecem respeito<br />

ao Bumbá Caprichoso e ao seu curral porque essas mulheres, apenas entrevistas<br />

pelos conquistadores, nunca foram vencidas pelo invasor e à sua maneira também<br />

personificam o sonho da liberdade indígena.


Maria Eva Letízia<br />

Os amores infelizes ou impossíveis nos mitos amazônicos<br />

apresentados pelo curral azul e branco<br />

Na Amazônia, há várias lendas protagonizadas pelo Sol e pela Lua, elementos<br />

masculino ou feminino, em que os dois corpos celestes são personificados e dotados<br />

de sentimentos hum<strong>ano</strong>s. Na maior parte dos casos, o Astro toma as feições de um<br />

jovem guerreiro índio, belo e valente, enquanto a lua, conhecida sobretudo pelo<br />

nome de Jaci, encarna no lindo corpo de uma moça índia em busca do amor eterno.<br />

O Boi Caprichoso conta-nos o mito da bela Yandê, lua dos indígenas<br />

amazonenses, que se apaixonara pelo valoroso Coára ou Coaracy, que na realidade<br />

representa o sol. Infelizmente, os dois nunca poderão encontrar-se, nem coexistir no<br />

mesmo momento. O amor que brota do coração de Yandê é, portanto, um amor<br />

impossível, irrealizável e terá que ficar para sempre confinado na esfera dos sonhos<br />

da moça enamorada.<br />

Em vão a jovem Yandê se debruça sobre as águas de um rio a fim de que<br />

estas lhe espelhem a beleza fascinante e a mostrem a Coára, para chamar a atenção<br />

do guerreiro sobre ela e apressar a sua aparição no firmamento. A Yandê ocupa de<br />

noite este firmamento, girando, feito um luzeiro, até à madrugada, faz-se presente à<br />

espera de coração a badalar, toda alvoroçada, aquele “reflexo de luz distante/Rastro<br />

do dia, errante”. Mas o seu sonho de amor será desfeito e transformado em lamento,<br />

já que o sol tarda a surgir.<br />

A Yandê gira, bailando, sempre a procurar “a firmeza de Coára”. O giro da<br />

Yandê enamorada haverá de cessar com o raiar do dia. E então, a lua-Yandê se<br />

desfaz em lágrimas, chorando de aflição porque percebe que seu amor, seu sonho<br />

de mulher apaixonada nunca se concretizará.<br />

O segundo mito desta série intitula-se “Divino canto”. Trata-se aqui da origem<br />

do pássaro amazonense chamado Uirapuru, pequena ave dotada duma voz<br />

extraordinária que é capaz de empolgar qualquer ouvinte, seja ele animal ou hum<strong>ano</strong>.<br />

Segundo o Boi Caprichoso, Uira era, nos primórdios do mundo, uma linda<br />

cunhã moça, na idade de namorar e de casar. Mas na taba, onde Uira vivia com a sua<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

gente, morava também uma outra cunhã da mesma idade, chamada Cerecê. Esta<br />

última era tão linda como Uira, ou talvez mais encantadora ainda. O destino quis que<br />

ambas as cunhãs se apaixonassem por Ipadi, “um forte e valente guerreiro/Cacique<br />

da tribo Tupi”. O jovem índio não podia amar as duas moças, foi obrigado a fazer<br />

a sua escolha e resolveu ficar com a Cerecê, apelidada de “lua da floresta”. Os dois<br />

casaram e a taba toda inteira participou da festa nupcial. Só a Uira não pôde alegrarse<br />

com aquele casamento, sentia-se profundamente infeliz por ter sido desprezada e<br />

compreender que o seu amor nunca ia ser correspondido.<br />

A dor pungente fez chorar a Uira, desesperada. A tristeza sem fim apoderouse<br />

da moça em pranto e naquele momento deu-se um milagre: “as lágrimas/de<br />

Uira/em gotas cristalinas/Tornaram-se notas musicais de amor”. Foi o deus Tupã,<br />

condoído, que, secando essas lágrimas da infelicidade, decidiu que daí em diante a<br />

jovem Uira teria por sina cantar, transformada em ave c<strong>ano</strong>ra, poetisa do amor e<br />

“flauta divina”. Por isso, o canto do pássaro Uirapuru supera em beleza o canto de<br />

todas as outras espécies de aves da floresta amazónica.<br />

Por vontade divina, esse canto é o mais doce, o mais harmonioso, a pura<br />

melodia que faz vibrar todos os corações, faz calarem-se outros viventes da selva e<br />

faz silenciar até o murmúrio da cascata.<br />

Uma singela homenagem à pajelança do feiticeiro nativo<br />

Entre os mitos indígenas que conferem um cunho nativista à apresentação<br />

do Bumbá Caprichoso, figura a homenagem prestada pelo curral azul e branco à<br />

figura do pajé amazónico, feiticeiro, bruxo, curandeiro dedicado, depositário do<br />

saber ancestral e dos mistérios da floresta virgem, pisada pelas tribos errantes.<br />

Na toada “Yaskomo”, o compositor Bené Siqueira faz uma singela apologia<br />

da pajelança, da qual, durante séculos, dependia a sobrevivência das nações nativas.<br />

O pajé representava o esteio da vida tribal e era uma figura muito prestigiada entre<br />

os índios. O pajé ajudava os guerreiros, rezava pelo sucesso das armas da sua gente,<br />

tratava dos doentes e dos feridos e era talvez o conselheiro mais ouvido do próprio


Maria Eva Letízia<br />

tuxaua que, em geral, sempre evitava contrariar esse seu grande aliado, porque o<br />

feiticeiro tinha poderes ocultos e podia comunicar-se com as forças sobrenaturais,<br />

sendo igualmente apto a combater as forças maléficas.<br />

Todas as tribos indígenas amazónicas, como os Tupinambá, os Mundurucu,<br />

os Saterê ou os Curiató respeitavam os pajés e recorriam amiúde aos seus serviços.<br />

Era ele, o Feiticeiro-Curandeiro-Sacerdote, quem presidia as cerimónias rituais, quem<br />

deitava a bênção tutelar e protectora aos guerreiros e caçadores, quem lhes tentava<br />

fechar o corpo a fim de garantir a sua sobrevivência e a vitória da tribo sobre as<br />

demais tribos inimigas.<br />

O pajé orava e espantava as forças maléficas que, segundo os nativos, se<br />

escondiam na selva e atacavam os índios. Uma dessas forças nefandas, que todos<br />

temiam, se encontrava encarnada no corpo do morcego, chamado de Andirá.<br />

Afastando a voz ameaçadora do Andirá, o pajé tornava-se o Libertador da sua<br />

gente. Os gestos sabidos e infalíveis assim como certas danças de passos iniciáticos,<br />

faziam do pajé o filho predilecto do deus Tupã, e o cajado do feiticeiro era como o<br />

ceptro nas mãos de um rei, atributo do seu poder oculto, moral, intelectual e espiritual.,<br />

que nenhum nativo se atrevia a contestar.<br />

Na toada “Yaskomo”, o pajé homenageado afasta da sua tribo o fogo<br />

assolador. Graças a ele e ao poder mágico de nigromante, o Bem vence o Mal. Na<br />

dança inspirada do pajé havia uma força que metia respeito aos demais indígenas,<br />

que depositavam a sua confiança e a sua fé no cajado do feiticeiro, de que esperavam<br />

muitos outros milagres, capazes de aliviar a carga do medo que muito pesava aos<br />

nativos indefesos que tinham que enfrentar diariamente o meio ambiente hostil e<br />

perigoso.<br />

Interessante é também a referência do compositor à faculdade do pajé que<br />

lhe permitia qualquer metamorfose zoomórfica, no caso concreto de Yaskomo,<br />

trata-se da transformação do feiticeiro numa ave nocturna, chamada urutau,<br />

pertencente à família do gavião. Lembre-se aqui que o nativo da Amazónia costumava<br />

divinizar o gavião-real, reconhecendo-lhe todas as qualidades do melhor guerreiro.<br />

Na toada de Bené Siqueiro, a galera de brincantes de boi azul e branco<br />

instiga o pajé a dançar, convencida de que assim a humanidade vai evitar as desgraças<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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66 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Os enredos caboclos e<br />

nativistas nas toadas dos...<br />

provocadas pelas forças adversas e maléficas, esperando ao mesmo tempo que os<br />

poderes mágicos do pajé permitam ao Boi Caprichoso alcançar a vitória sobre o<br />

contrário...<br />

Referências<br />

BASTOS, Abguar. Terra de icamiaba. 3. ed. Manaus: Valer, 2001.<br />

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos-<br />

MEC/INL, 1979.<br />

ELIADE, Mírcea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.<br />

FARIAS, Elson. Tauacuéra, a cidade desaparecida. Manaus: Valer, 1999.<br />

FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. 2. ed. São Paulo:<br />

HUCITEC; UnB, 1989.<br />

PEREIRA, Nunes. Moronguetá, um decameron indígena. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1967.<br />

STEFANI, Giancarlo. Yautí. Na c<strong>ano</strong>a do tempo. Recife: Massangana; Fundação Joaquim<br />

Nabuco, 2000.<br />

TOADAS E BOI-BUMBÁ – Cadernos do Caprichoso e do Garantido – Divulgação<br />

EMBRATUR/Ed. Governo Federal. Revista Oficial do Festival de Parintins-AM. 2000.


Márcio Silva<br />

Escolas indígenas: a que será que se destinam? 1<br />

Resumo<br />

Márcio Silva 2<br />

Nas últimas duas décadas, medidas que assegurem a<br />

oportunidade de aquisição de educação formal, pelo menos em pé de<br />

igualdade com o resto da comunidade nacional, correspondem a uma<br />

das reivindicações mais freqüentes dos povos e organizações indígenas<br />

no Brasil. Este artigo oferece uma visão histórica breve da relação entre<br />

os povos indígenas e as escolas de tradição ocidental em nosso país e<br />

focaliza os desafios atuais, as perspectivas e as dificuldades enfrentadas<br />

por esses povos para a superação dos velhos modelos e práticas<br />

indigenistas associados à questão.<br />

Palavras-chave<br />

Povos indígenas; educação escolar; direito à educação e<br />

autonomia.<br />

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada em palesra no Center for American Studies, da Universidade<br />

da Califórnia – Berkeley, em 23 de outubro de 1999, com o título “Native Brazilian Peoples and the<br />

Right of Education”.<br />

2 Doutor em Antropologia e professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras<br />

e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

67


Abstract<br />

68 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

In the last two decades, measures to ensure the opportunity to acquire formal<br />

education on at least an equal footing with the rest of the national community<br />

correspond to one of the more recurrent claims of the indigenous peoples and<br />

organisations in Brazil. This paper offers a historical overview of the relationship<br />

between the native peoples and the western tradition’s school. It also focuses on<br />

contemporary challenges, perspectives and difficulties faced to overcome old<br />

indigenist models and practices.<br />

Keywords<br />

Indigenous peoples; schooling education; right to education and autonomy.<br />

Um breve sobrevôo pelo passado...<br />

A educação escolar indígena corresponde a um daqueles temas que percorrem<br />

os cinco séculos de nossa História. A submissão política das populações nativas, a<br />

invasão de seus territórios e a pilhagem de seus recursos naturais têm sido, desde o<br />

século 16, o resultado de práticas que souberam aliar métodos de controle político<br />

a algum tipo de atividade escolar. O colonialismo, a educação indígena e o<br />

proselitismo religioso têm, em nosso país, a mesma origem e mais ou menos a<br />

mesma idade. As primeiras escolas são organizadas, em diversos pontos do litoral<br />

brasileiro, por iniciativa de missionários jesuítas, amparados por cartas régias e<br />

regimentos firmados pela Coroa portuguesa, e são frutos da confluência da vocação<br />

missionária da Companhia de Jesus com a política colonizadora inaugurada por D.<br />

João III (BUARQUE DE HOLLANDA, 1981, p. 138-144). Esta parceria entre<br />

missão religiosa e poder secular, todos sabemos, terá longa duração. Do século 16<br />

ao 19, período que recobre tanto o Brasil colônia quanto o Império, é impossível<br />

dissociar a atividade escolar para os índios do próprio paradigma civilizatório,<br />

admiravelmente condensado pelo pe. Manuel da Nóbrega em seis regras de ouro a<br />

serem observadas pelos Tupinambá: “1) defender-lhes de comer carne humana e


Márcio Silva<br />

guerrear, sem licença do Governador; 2) fazer-lhes ter uma só mulher; 3) vestiremse,<br />

pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos; 4) tirar-lhes os feiticeiros;<br />

5) mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; e 6) fazê-los viver quietos,<br />

sem se mudarem para outra parte se não for para entre os cristãos, tendo terras<br />

repartidas que lhes bastem e com estes” (LEITE, 1954, p. 27-28)<br />

Para a realização de metas como essas, os colégios e as casas de rapazes indígenas,<br />

ancestrais em linha direta dos internatos que funcionaram até muito recentemente,<br />

desempenham um papel fundamental além dos algodoeiros, é claro. No Regimento<br />

de 1549, que dá posse a Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, D.<br />

João III, rei de Portugal, declara que “[...] a principal coisa que (o) moveu a mandar<br />

povoar as ditas terras do Brasil foi para que gente dela se convertesse à nossa Santa<br />

Fé Católica [...]” (TAPAJÓS, 1966, p. 261). Naquele mesmo <strong>ano</strong>, missionários jesuítas,<br />

liderados por Nóbrega, fundam, onde é hoje a cidade de Salvador/BA, a primeira<br />

escola para índios de que se tem notícia no Brasil.<br />

Instituições do mesmo tipo florescem, a partir de então, em outros pontos<br />

do litoral brasileiro. Em 1554, por exemplo, o mesmo Nóbrega funda uma escola<br />

nos Campos de Piratininga, em torno da qual se forma a cidade de São Paulo.<br />

Pouco depois, ainda no século 16, começa a funcionar, onde hoje é a cidade do Rio<br />

de Janeiro, uma escola para alunos indígenas candidatos ao noviciado e, nos séculos<br />

seguintes, outras escolas se espalham pelo território brasileiro de norte a sul. No<br />

Regulamento de Aldeias e Missões, elaborado no século 17 pelo pe. Antônio Vieira,<br />

podemos ter uma idéia muito nítida da rotina das atividades desenvolvidas nesses<br />

estabelecimentos:<br />

Todos os dias da semana, acabada a oração, se dirá logo<br />

uma missa que a possam ouvir os índios antes de irem às<br />

suas lavouras [...] a qual acabada, se ensinarão aos índios<br />

em voz alta as orações ordinárias: a saber Padre-Nosso,<br />

Ave-Maria, Credo, Mandamentos da Lei de Deus, e da<br />

Santa Madre Igreja; e os sacramentos, ato de contrição, e<br />

confissão, geralmente os diálogos do catecismo breve, em<br />

que se contém os mistérios da fé. Acabada esta doutrina<br />

irão todos os nosso para a Escola [...] onde aos mais hábeis,<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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70 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

se ensinarão também a cantar, e tanger instrumentos para<br />

beneficiar os ofícios divinos [...] (BEOZZO, 1983, p. 196<br />

apud AMOROSO, 1997).<br />

Pouco a pouco, notadamente nas últimas décadas do período colonial, a<br />

Coroa portuguesa passa a diversificar suas parcerias, transferindo o encargo da<br />

educação escolar indígena não apenas a outras ordens religiosas, mas também a<br />

alguns fazendeiros, milici<strong>ano</strong>s ou moradores comuns de regiões vizinhas das áreas<br />

indígenas, como atestam as Cartas régias de 5 de novembro de 1808, 2 de <strong>dez</strong>embro<br />

de 1808, e 5 de setembro de 1811, assim como a Provisão da Mesa do Desembargo do<br />

Paço, firmada em 3 de agosto de 1819. A introdução desses agentes leigos não significa,<br />

contudo, a emergência de uma educação indígena dissociada da catequese. A civilização<br />

e a conversão dos gentios continuam sendo objetivos explicitamente enunciados nestes<br />

e em outros instrumentos administrativos das primeiras duas décadas do século 19.<br />

Com o advento do Império, em 1822, o p<strong>ano</strong>rama da educação escolar<br />

indígena, em seus aspectos gerais, não muda significativamente, pelo menos no que<br />

diz respeito à sua total imbricação com o esquema missionário 3 . O Projeto<br />

Constitucional elaborado logo após a declaração da Independência, propõe<br />

explicitamente (TÍTULO XIII, art. 254) a criação de estabelecimentos para a Catechese e<br />

civilização dos índios. A primeira Constituição brasileira, de 1824 é, entretanto, omissa<br />

em relação à questão indígena como um todo, só contemplada <strong>dez</strong> <strong>ano</strong>s depois,<br />

pelo Ato Adicional de 1834, Artigo 11, § 5, que atribui competência às Assembléias<br />

Provinciais para promover cumulativamente com as Assembléias e Governos Gerais<br />

a catechese e a civilização do indígena e o estabelecimento de colônias. Pouco depois, o decreto<br />

que regulamenta a catechese e civilisação dos índios (DECRETO n. 426, de 24 de setembro<br />

de 1845, art. 1, § 18, art. 6, § 5 e art. 6, § 6), atribui aos diretores-gerais de índios<br />

designados em todas as Províncias do Império, a competência de “[p]ropor á<br />

Assembléa Provincial a creação de Escolas de primeiras letras para os lugares, onde<br />

não baste o Missionário para este ensino, além disso, dispõe que haverá hum Missionário<br />

nas Aldêas novamente creadas, e nas que se acharem estabelecidas em lugares remotos,<br />

ou onde conste que andão Indios errantes, competindo a ele representar ao Director<br />

3<br />

Sobre a legislação indigenista no século 19, ver Carneiro da Cunha (1992). Sobre a conexão entre as atividades<br />

catequéticas, educacionais e econômicas no século 19, ver Amoroso (1998).


Márcio Silva<br />

Geral[...] se houver nas visinhanças Indios errantes, que seja mistér chamar á Religião,<br />

e a Sociedade e ensinar a lêr, escrever, e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que<br />

sem violência se disposerem a adquirir esta instrução”. Uma resolução do Senado,<br />

neste mesmo período (RESOLUÇÃO de 3 de novembro de 1830, incorporada ao<br />

Decreto da Assembléia Geral Legislativa, art. 4), passa a facultar o acesso à educação<br />

militar para os índios capturados ou voluntariamente entregues durante as guerras<br />

justas.<br />

Com o fim do Império, no final do século 19, os governos estaduais são<br />

definidos como as instâncias responsáveis pela promoção da catequese e civilização dos<br />

índios (DECRETO n. 7, § <strong>12</strong>, de 20 de novembro de 1889). Em 1906, os assuntos<br />

indígenas e, em particular, a educação escolar, passam a ser atribuições do recémcriado<br />

Ministério da Agricultura, instituído pela Lei n. 1.606, que abriga, logo a<br />

seguir, um órgão especialmente dedicado à questão: o Serviço de Proteção ao Índio<br />

e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPI (DECRETO n. 8.072) 4 . Nesse<br />

novo quadro jurídico, surgem as primeiras escolas indígenas no Brasil administradas<br />

pelo poder público, isto é, não diretamente associadas a iniciativas missionárias. A<br />

Constituição de 1934, a primeira que atribui poderes exclusivos da União para legislar<br />

sobre assuntos indígenas, consolida um quadro administrativo da educação escolar<br />

para esses povos, que só vai ser significativamente alterado em 1991. Embora não<br />

focalize especificamente a questão, o texto de 1934 determina genericamente a<br />

competência da União para legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à comunhão<br />

nacional” (ART. 5, XIX, m), princípio reiterado pelas Constituições de 1945 (ART.<br />

5, XV, r) e de 1967 (ART. 8, XVII, o). Neste cenário, as escolas indígenas organizadas<br />

pelo SPI – 66 unidades em 1954 (BARROS, 1994) – assim como as inúmeras escolas<br />

missionárias mantidas por diferentes congregações religiosas, passam a representar,<br />

junto com as frentes de trabalho, os principais instrumentos institucionais desta<br />

“incorporação” prevista em lei. Marcadas por deficiências de todo tipo, essas escolas<br />

indígenas se multiplicam e muitas delas se conservam até hoje. Enquanto isso, em<br />

todos os quadrantes do país, as escolas missionárias continuam adotando o modelo<br />

4<br />

Em 1930, o SPI passou do Ministério da Agricultura, onde foi criado, para o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio;<br />

em 1934, para o Ministério da Guerra, até voltar para o Ministério da Agricultura, em 1939, onde permaneceu até sua<br />

extinção nos <strong>ano</strong>s sessenta.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

71


5<br />

Cf. Convenção n. 169 da OIT, de 27 de junho de 1989.<br />

72 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

curricular considerado por elas o mais conveniente. Este é o p<strong>ano</strong>rama das escolas<br />

indígenas no Brasil da primeira metade do século 20.<br />

Este quadro de referências jurídicas e administrativas que acabamos de<br />

examinar rapidamente se defronta, nos últimos <strong>ano</strong>s da década de cinqüenta, com<br />

um vigoroso contraponto: a Convenção n. 107 da Organização Internacional do<br />

Trabalho, de 1957, que discorre sobre a proteção e a integração das populações<br />

indígenas e tribais de países independentes. Esta Convenção foi incorporada ao cenário<br />

jurídico brasileiro apenas na década seguinte, em 14 de julho de 1966, através do<br />

Decreto n. 58.824.<br />

Uma leitura atenta da Convenção n. 107, para além de sua orientação<br />

assimilacionista, retificada pela própria OIT em documentos posteriores 5 , permite<br />

entrever as principais modificações no quadro de referências jurídicas e administrativas<br />

que vem se perpetuando, praticamente sem alterações, desde o século 16. Neste<br />

documento, são preconizados novos parâmetros da educação escolar indígena,<br />

incorporados a partir dos <strong>ano</strong>s setenta, às agendas reivindicatórias das organizações<br />

indigenistas não-governamentais, do movimento indígena e de setores progressistas<br />

da opinião pública, finalmente absorvidos pela paisagem jurídica brasileira em <strong>ano</strong>s<br />

recentes.<br />

Nesse sentido, convém chamar atenção para os seguintes princípios<br />

consagrados na referida Convenção n. 107 da OIT: 1) a universalização do direito à<br />

educação formal aos povos indígenas; 2) a consideração de realidades sociais,<br />

econômicas e culturais específicas e diferenciadas; 3) a prescrição de modelos de<br />

alfabetização em língua materna e de educação bilíngüe; 4) a incorporação pelo ensino<br />

primário de conhecimentos gerais e aptidões tornados necessários pelo contato; 5) o<br />

combate ao preconceito contra os povos indígenas nos diversos setores da comunidade<br />

nacional, através da adoção de medidas educativas; e, finalmente, 6) o reconhecimento<br />

oficial das línguas indígenas como instrumentos de comunicação com essas minorias<br />

(CONVENÇÃO n. 107 da OIT, respectivamente, ARTS. 21, 22, 23, 24, 25 e 26).


Márcio Silva<br />

Mas é bom que se diga que, se por um lado, o avanço permitido pela<br />

incorporação da Convenção n. 107 da OIT na legislação indigenista brasileira é<br />

inegável, por outro lado, não se pode esquecer que o seu reconhecimento se dá<br />

precisamente em 1966, ou seja, em pleno regime de exceção. O Ato Institucional n.<br />

1, de 1969, reafirma com todas as letras o surrado lema da incorporação dos silvícolas à<br />

comunhão nacional (ART. 8). Nesse mesmo <strong>ano</strong>, o governo cria a Fundação Nacional<br />

do Índio – FUNAI, órgão sucessor do SPI, extinto em 1966, que celebra, em seus<br />

primeiros meses de funcionamento, um convênio com a agência missionária norteamericana<br />

Summer Institute of Linguistics – SIL, instituição subsidiária da poderosa<br />

multinacional da fé, Wicliffe Bible Translators. O SIL transplantará para o Brasil o<br />

seu surrado modelo educacional desenvolvido no México dos <strong>ano</strong>s trinta, que tem<br />

como pedra de toque a alfabetização na língua materna 6 . Entre as décadas de quarenta<br />

e cinqüenta, o SIL promove a expansão deste modelo em direção a outros países<br />

do continente, como Guatemala, Peru, Equador e Colômbia. Em todos esses países,<br />

o SIL encontra, no âmbito das políticas oficiais, um cenário caracterizado pela<br />

indistinção entre escolas indígenas e escolas rurais. E na esteira do SIL, outras tantas<br />

organizações religiosas do mesmo tipo passam a co-existir, nas áreas indígenas de<br />

todo o país, com as missões católicas e fundamentalistas.<br />

Apesar de defender a implantação de programas de educação bilíngüe, os<br />

objetivos últimos do SIL são evidentemente muito distantes do espírito da Convenção<br />

n. 107 da OIT, evocado há pouco. Os fins do SIL não são em nada diferentes dos<br />

de qualquer missão religiosa tradicional: a conversão dos índios e a salvação de suas<br />

almas. Seus meios, entretanto, são de certa forma peculiares, incorporando um modelo<br />

de educação bilíngüe, parte indissociável de sua estratégia evangelizadora. No quadro<br />

deste novo paradigma missionário, a questão não será mais abolir grosseiramente a<br />

diferença, mas sim domesticá-la. Em outras palavras, a diferença lingüística deixa de<br />

representar um obstáculo ao projeto civilizatório, tornando-se um instrumento do<br />

próprio projeto. No entanto, do ponto de vista das aparências, a incorporação do<br />

SIL à paisagem do Estado atende formalmente às prescrições legais.<br />

6<br />

Para uma visão geral do modelo lingüístico-educacional do SIL e de sua atuação no Brasil, ver Leite (1981), Cardoso de<br />

Oliveira (1981), Seeger (1981) e Barros (1994).<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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74 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

Os referenciais jurídicos e administrativos do início dos <strong>ano</strong>s setenta,<br />

condensados no Estatuto do Índio 7 , devem ser portanto interpretados como a<br />

confluência do modelo educacional proselitista preconizado pelo SIL, com os<br />

dispositivos indigenistas instituídos pelo regime militar. Há no Estatuto, por<br />

exemplo, menção explícita à alfabetização dos índios na língua do grupo a que pertençam<br />

(Artigo 49), mas nada consta sobre o reconhecimento oficial dessas línguas como<br />

instrumentos de comunicação com essas minorias etnicamente diferenciadas e<br />

tampouco sobre a adaptação dos programas educacionais às realidades sociais,<br />

econômicas e culturais específicas de cada situação, princípios consagrados na<br />

Convenção n. 107 da OIT, em seus Arts. 22 e 26. Em suma, a alfabetização nas<br />

línguas nativas, inscrita nas leis dos <strong>ano</strong>s 70, reverte-se de um caráter meramente<br />

instrumental da prática missionária.<br />

No mesmo período em que o SIL intensifica suas atividades educacionais<br />

no Brasil, chegam ao país as primeiras notícias do desenvolvimento de algumas<br />

experiências de vanguarda, em outros países da América do Sul, notadamente no<br />

Chile, de Salvador Allende (HERNANDEZ, 1981). No quadro dessas novas<br />

experiências, a educação bilíngüe não é mais tomada como um instrumento de<br />

assimilação das populações indígenas, mas como uma estratégia de conservação<br />

das línguas nativas e de reafirmação de identidades étnicas e culturais. Tributários<br />

da filosofia e do método educacional desenvolvidos por Paulo Freire, estes novos<br />

programas procuram desenvolver metodologias baseadas nas possibilidades<br />

oferecidas pelo próprio bilingüismo, em um contexto onde as línguas e demais<br />

manifestações culturais indígenas correspondem a sinais diacríticos, reprimidos<br />

ou desqualificados. Dessa forma, em uma paisagem continental, marcada pela<br />

desvalorização das manifestações culturais tradicionais, desqualificação dos<br />

processos identitários e por processos de assimilação aos valores dominantes,<br />

um novo paradigma de educação escolar bilíngüe desenvolve-se a partir da<br />

consideração dos povos indígenas como minorias nacionais e vítimas de<br />

mecanismos de discriminação derivados de sua própria condição étnica.<br />

7<br />

Refiro-me à Lei n. 6.001 de 19 de <strong>dez</strong>embro de 1973, v. Arts. 47-52.


O p<strong>ano</strong>rama atual<br />

Márcio Silva<br />

Nos últimos vinte cinco <strong>ano</strong>s, algumas experiências de implantação de<br />

modelos alternativos se desenvolvem em diferentes regiões do país, consolidando<br />

um novo paradigma educacional, finalmente inscrito na legislação em <strong>ano</strong>s recentes.<br />

Paralelamente, o tema vem despertando a atenção de uma variada gama de<br />

especialistas dedicados à questão (indigenistas, lingüistas, antropólogos e pedagogos),<br />

definindo um campo marcado – como qualquer outra área do conhecimento – por<br />

uma série de consensos e controvérsias. Mas ao contrário do que ocorre em outras<br />

áreas, menos marcadas pelo embricamento do debate teórico com a ação militante<br />

(SILVA, A., 1997), o campo de reflexão sobre educação bilíngüe aparentemente não<br />

tem se beneficiado, especialmente nos <strong>ano</strong>s noventa, dos questionamentos relativos<br />

a algumas de suas concepções e práticas. Ao contrário, o debate teórico tem diversas<br />

vezes cedido lugar à proclamação de um certo discurso “politicamente correto”,<br />

com prejuízos para seu aprofundamento 8 . Voltaremos a este discurso adiante.<br />

Apenas a título de exemplo, convém chamar a atenção para os riscos da<br />

generalização cega da premissa de que uma educação verdadeiramente indígena<br />

deve necessariamente incorporar um programa de educação bilíngüe. De fato, o<br />

bilingüismo, fenômeno que pode assumir graus e colorações muito variados,<br />

corresponde a uma paisagem sociolingüística recorrente, mas que está longe de ser a<br />

única na região. As assim denominadas “exceções” a essa paisagem, na Amazônia<br />

por exemplo, ao contrário do que pressupõe a legislação e o discurso militante, não<br />

são meramente anedóticas e numericamente inexpressivas. Apenas a título de ilustração,<br />

poderíamos evocar as populações indígenas do alto rio Negro que, por razões<br />

inerentes às próprias formas tradicionais de sociabilidade, definem-se como<br />

multilíngües e não bilíngües. Enquanto isso, as populações indígenas da região do<br />

médio Solimões e do baixo Madeira, em conseqüência dos processos históricos do<br />

contato, falam exclusivamente o português. Em suma, se o paradigma da educação<br />

8<br />

Assim, por exemplo, uma comparação cuidadosa entre as posições defendidas por Monserrat (1994) e Oliveira (1998)<br />

relativas à contribuição que a Lingüística pode oferecer à educação escolar indígena permitiria entrever um desses debates<br />

que a militância procura de certa forma não encarar.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

75


76 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

bilíngüe pode, em muitos casos, ser perfeitamente adequado a determinadas situações<br />

sociolingüísticas, seu caráter compulsório pode criar embaraços em outras, uma vez<br />

que se desenvolve a partir da dicotomia entre uma língua indígena e a língua nacional,<br />

não prevendo portanto os casos em que co-existem, em um mesmo contexto, mais<br />

de uma língua indígena e os casos em que a língua indígena é a própria língua nacional<br />

(SILVA, 1994, p. 45). Evidentemente, situações como as que acabamos de evocar<br />

não retiram os méritos intrínsecos do paradigma da educação bilíngüe. Tomá-lo, no<br />

entanto, como panacéia para todos os males da educação escolar indígena não nos<br />

parece uma posição cautelosa.<br />

Com o fim do regime militar, novos dispositivos jurídicos e administrativos<br />

foram elaborados sobre a questão, retomando – desta vez vigorosamente – as<br />

orientações formuladas pela OIT e por outros organismos internacionais. Os<br />

principais instrumentos vigentes hoje no Brasil são os seguintes. Em primeiro lugar,<br />

convém mencionar a Constituição Federal de 1988 que, além do disposto no Artigo<br />

231 – que reconhece aos índios “[...]sua organização social, costumes, línguas, crenças<br />

e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam[...]”<br />

– estabelece ainda que<br />

[o] ensino fundamental regular será ministrado em língua<br />

portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também<br />

a utilização de suas línguas maternas e processos próprios<br />

de aprendizagem (ART 210, § 2), que o Estado garantirá a<br />

todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às<br />

fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a<br />

valorização e a difusão das manifestações culturais (ART.<br />

215, caput) e que o Estado protegerá as manifestações das<br />

culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de<br />

outros grupos participantes do processo civilizatório nacional<br />

(ART. 215, § 1).<br />

Além desses dispositivos constitucionais, o cenário atual é balizado pela Lei<br />

n. 9.394, de 20 de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que substitui<br />

a antiga LDB (LEI n. 5.692, de 11 de agosto de 1971), que era omissa em relação às<br />

escolas indígenas. Dois artigos desta nova Lei merecem destaque aqui, uma vez que


Márcio Silva<br />

regulamentam, com um notável grau de detalhamento, os dispositivos constitucionais<br />

relativos à questão da educação escolar indígena. Um deles (Art. 78) reafirma a<br />

diversidade sociocultural e lingüística dos povos indígenas, garantindo a eles uma<br />

educação pautada pelo respeito a seus valores, pelo direito à preservação de suas<br />

identidades e pela garantia de acesso às informações e conhecimentos valorizados<br />

pela sociedade nacional. Outro (ART. 79) atribui à União o encargo do apoio técnico<br />

e financeiro a Estados e Municípios para o desenvolvimento de ações no campo da<br />

educação escolar indígena, com a garantia de incorporação de currículos e programas<br />

específicos e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado 9 .<br />

Um dos efeitos imediatos destes novos instrumentos jurídicos na esfera<br />

administrativa corresponde à criação, intensificada nos últimos <strong>ano</strong>s, de núcleos,<br />

divisões e conselhos de educação indígena em praticamente todos os Estados<br />

brasileiros, o que evidentemente é um passo positivo. Entretanto, é preciso observar,<br />

tendo em vista as próprias características da cultura do setor público no Brasil, que a<br />

criação de instâncias administrativas ou a remodelagem de certas configurações<br />

institucionais não garantem por si mesmas as almejadas transformações de fundo<br />

no cenário das práticas cotidianas das escolas indígenas.<br />

Não parece haver meios de superação do p<strong>ano</strong>rama atual da educação<br />

escolar indígena sem a formulação e a execução de políticas efetivas de formação<br />

de recursos hum<strong>ano</strong>s para a questão, precisamente no sentido proposto pela<br />

Convenção n. 169 da OIT:<br />

Educational measures shall be taken among all sections of<br />

the national community, and particularly among those that<br />

are in most direct contact with the peoples concerned, with<br />

the object of eliminating prejudices that they may harbour<br />

in respect of these peoples. To this end, efforts shall be<br />

made to ensure that history textbooks and other educational<br />

materials provide a fair, accurate and informative portrayal<br />

of the societies and cultures of these peoples.<br />

9<br />

Esta iniciativa de descentralização administrativa, prevista no Art. 79 da Lei n. 9.394/96, não deixa de evocar a paisagem<br />

definida, durante o período imperial, pelo Ato Adicional de 1834, Art. 11, § 5, que atribui competência às Assembléias<br />

Provinciais para promover cumulativamente com as Assembléias e Governos Gerais a educação escolar indígena.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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78 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

Sem a implementação de políticas de sensibilização das agências do próprio<br />

setor público encarregado da implementação dos programas previstos na lei brasileira,<br />

estas conquistas políticas correm o risco de jamais saírem do papel. Evidentemente,<br />

não podemos esperar que os novos referenciais jurídicos produzam os efeitos<br />

almejados – por mais adequados que possam ser tais dispositivos e por melhores<br />

que sejam as intenções dos legisladores e das agências executivas – em uma paisagem<br />

ainda marcada, especialmente em suas esferas locais, por uma enorme carência de<br />

recursos hum<strong>ano</strong>s qualificados para a execução do conjunto de tarefas estabelecidas<br />

na Lei, pela ignorância em relação à questão indígena e até mesmo por preconceitos<br />

de toda ordem.<br />

Conquistas e impasses<br />

Como comentário geral à atual legislação sobre a educação escolar indígena,<br />

podemos afirmar que os instrumentos à disposição são inegavelmente mais<br />

adequados que os do passado, embora merecessem ainda o aperfeiçoamento em<br />

pelo menos um aspecto da questão que não é de natureza meramente metodológica<br />

ou operacional, mas de cunho fundamentalmente político. Insisto no caráter ainda<br />

precário das garantias de participação efetiva (e não meramente retórica) das<br />

populações indígenas no planejamento, execução e gestão dos novos programas de<br />

educação escolar indígena.<br />

A LDB dispõe exatamente que os programas [integrados de ensino e pesquisa<br />

para os povos indígenas] serão planejados com audiência das comunidades. Ora, o termo<br />

audiência tem sido muitas vezes interpretado – e praticado – em um sentido que, de<br />

modo algum, traduz-se em um efetivo controle desses programas por parte das<br />

populações diretamente interessadas. Devemos notar que a Convenção n. 169 da<br />

OIT formula explicitamente que os “education programmes for the peoples<br />

concerned shall be developed and implemented in co-operation with them to address<br />

their special needs[...]” (ART. 27.1). O termo “cooperação” (co-operation), consagrado<br />

na Convenção n. 169 da OIT, traduz uma noção muito diferente daquela que vige<br />

em nosso país: uma verdadeira relação de parceria entre os povos indígenas e o


Márcio Silva<br />

poder público e uma via de mão dupla entre essas instâncias. Enquanto isso, o termo<br />

“audiência” vem dando margem a uma série de impasses. O conceito de “audiência”<br />

não tem assegurado condições de participação efetiva dos povos indígenas nas<br />

políticas oficiais, com garantias mínimas de simetria entre as partes envolvidas.<br />

Se avanços importantes verificam-se no pl<strong>ano</strong> jurídico, não parece haver<br />

meios de superação do dilema administrativo atual da educação escolar indígena<br />

sem a implementação de políticas efetivas de formação de recursos hum<strong>ano</strong>s para a<br />

questão. A execução de políticas de sensibilização, voltadas para os quadros do poder<br />

público, é condição sine qua non para uma alteração no surrado p<strong>ano</strong>rama da educação<br />

escolar indígena no Brasil. Convém, por outro lado, sublinhar que a própria legislação<br />

atual, sensível a esse dilema, insiste expressamente nas responsabilidades da União,<br />

Estados e Municípios quanto ao aprimoramento de seus quadros envolvidos em<br />

atividades de educação escolar indígena (LEI n. 9.394/96, ATRS. 69, 70, 79). Há, no<br />

entanto, quase tudo a ser feito nesse sentido.<br />

A apreciação do p<strong>ano</strong>rama atual da educação escolar traz de volta um tema<br />

recorrente em nossa história indigenista recente. Qualquer observador atento não<br />

deixará de notar que, nos últimos <strong>ano</strong>s, esta questão vem se desenvolvendo em dois<br />

pl<strong>ano</strong>s distintos e contraditórios: de um lado, observa-se o acúmulo sem precedentes<br />

de instrumentos jurídicos e administrativos, que visam uma efetiva transformação<br />

do p<strong>ano</strong>rama da educação escolar indígena; de outro, constata-se a persistência de<br />

enormes obstáculos à consolidação dessas conquistas no cotidi<strong>ano</strong> das escolas, assim<br />

como em suas relações com as instâncias administrativas estaduais e municipais<br />

responsáveis. Somente a superação desse impasse, acredito, permitirá abandonarmos<br />

modelos e práticas indigenistas que nos acompanham desde o século 16, projetando<br />

a relação entre a sociedade brasileira e os povos indígenas em um novo patamar.<br />

Não devemos, portanto, nos iludir com o tirânico clichê antropológico e as frases<br />

de efeito do jargão pedagógico que evocam, por exemplo, o aprender-construindo-em-processo e<br />

a inevitabilidade do ensino bilíngüe, expressões atualmente disseminadas nas repartições<br />

públicas preocupadas com nossos indígenas (KHAN; FRANCHETTO, 1994).<br />

Evidentemente, o mero domínio de clichês e frases de efeito politicamente corretos<br />

não resolvem a questão. E, é bom que se diga, a rápida disseminação do tirânico<br />

jargão nas agências institucionais é incontestável. Não poderíamos ter demonstração<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

79


80 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

mais bizarra da conjunção do verniz antropológico à velha cultura cartorial brasileira<br />

que a prescrição, recentemente defendida no Pl<strong>ano</strong> Nacional de Educação, da<br />

institucionalização, para os professores indígenas, de concurso público de provas e títulos<br />

adequado às particularidades lingüísticas e culturais dos povos indígenas (sic). Convém indagar:<br />

Que provas e títulos seriam esses? Como adequar o rito burocrático do concurso<br />

público a valores indígenas? As lutas de uka-uka alto-xinguanas, as corridas de tora jê<br />

e os jogos de bola aruak, etc. poderiam eventualmente servir de pontes para esta<br />

adequação, se o Estado desejar efetivar os professores indígenas que atuam nesses<br />

contextos? Quais seriam as credenciais necessárias de uma banca de concurso, tendo<br />

em vista as particularidades lingüísticas dessas populações, a fim de garantir que tal<br />

atividade não venha a transformar-se a um só tempo em um mero simulacro dos<br />

ritos administrativos do setor público e em uma paródia de mau gosto de ritos<br />

indígenas? Espera-se que o MEC encontre fórmulas menos anedóticas para a<br />

regulamentação da profissão de professor, no contexto específico das escolas<br />

indígenas.<br />

Evidentemente, não bastam instrumentos jurídicos e administrativos<br />

adequados, se não são garantidas condições mínimas de exeqüibilidade para efetivação<br />

destas conquistas. Como o Sistema de Ensino da União poderá formular Programas<br />

competentes de educação escolar indígena, capazes de respeitar os preceitos<br />

constitucionais evocados acima, se os responsáveis por sua implementação têm ainda,<br />

na maioria dos casos – e, evidentemente, com as honrosas exceções –, enormes<br />

dificuldades de compreendê-los adequadamente? Em suma, retomando a questão<br />

central enunciada acima, como proceder a uma adequada “audiência” dos interessados,<br />

capaz de salvaguardar os interesses das sociedades indígenas em suas escolas? Além<br />

das enormes dificuldades de compreensão do setor público, sabemos muito bem<br />

como têm se processado suas “consultas à comunidade” não apenas em assuntos<br />

educacionais...<br />

Mas a questão não se esgota nas dificuldades e nos métodos do setor público.<br />

Há um outro aspecto fundamental a considerar-se. Sabemos desde Durkheim que a<br />

Educação se define como o conjunto dos processos envolvidos na socialização dos<br />

indivíduos, correspondendo, portanto, a uma parte constitutiva de qualquer sistema<br />

cultural, e englobando mecanismos que visam a sua reprodução, perpetuação e/ou


Márcio Silva<br />

mudança. Articulando instituições, valores e práticas, em integração dinâmica com<br />

outros subsistemas sociais como a economia, a política, a moral, a religião, etc., a<br />

educação tem como referência básica os projetos sociais que lhes cabem realizar em<br />

espaços e tempos sociais específicos. Para tanto, os sistemas educacionais estimulam,<br />

ao longo da vida dos indivíduos, a aprendizagem de conhecimentos e técnicas, além<br />

da internalização de códigos e valores sociais. Neste quadro, a escola corresponde a<br />

uma instituição que procura, no interior de um dado sistema social, transmitir<br />

formalmente um determinado patrimônio cultural. Para atingir a este fim, a escola<br />

condensa um certo perfil institucional, consagrando rotinas, papéis, normas,<br />

equipamentos, especializações, tempos e espaços.<br />

Ora, onde quer que existam escolas, elas sempre correspondem a<br />

instrumentos a serviço de projetos sociais que as transcendem. Projetos que podem<br />

ser das próprias sociedades que as organizam ou estranhos a elas, que as escolas<br />

passam fielmente a reproduzir. As conquistas jurídicas acumuladas até hoje no Brasil<br />

ainda não deram conta deste aspecto crucial da questão, mas ao contrário, tornaramno<br />

ainda mais agudo, com a recente incorporação das escolas indígenas na rede<br />

pública da União, o que implica necessariamente a subordinação dessas escolas às<br />

esferas políticas regionais e locais, nos Estados e municípios. Neste novo contexto,<br />

as possibilidades de autonomia das escolas se defrontam com interesses regionais<br />

quase nunca favoráveis aos povos indígenas, e muitas vezes representados pelo<br />

próprio poder público local. Entende-se por autonomia não o divórcio das escolas<br />

indígenas de tudo o que é exterior aos povos para os quais são destinadas, mas sim<br />

um conjunto de salvaguardas que favoreça uma relação densa entre essas iniciativas<br />

e os projetos de futuro dos povos indígenas.<br />

Este ponto conduz diretamente ao dilema principal dos novos programas<br />

de educação escolar indígenas. Valores como especificidade e diferenciação, atualmente<br />

assegurados em lei, correspondem, por definição, a atributos necessários a esses<br />

novos programas, mas não a condições suficientes. Não bastam, por exemplo, prédios<br />

escolares construídos segundo os padrões arquitetônicos nativos, calendários<br />

aclimatados aos diferentes ciclos ecológicos, ao fluxo das atividades econômicas e<br />

cerimoniais de cada povo, livros didáticos impressos com tintas preto-jenipapo e<br />

vermelho-urucum, etc. Até aí estamos cuidando apenas das aparências ou, na melhor<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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82 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

das hipóteses, de aspectos sem dúvida alguma importantes, mas colaterais às escolas<br />

e às culturas indígenas. As condições de implementação de escolas verdadeiramente<br />

indígenas passam não só pela especificidade e diversidade dos programas de educação<br />

escolar, mas principalmente pela autonomia desses programas. Autonomia que<br />

permita assegurar que esses programas de educação escolar atendam efetivamente<br />

às necessidades definidas em cada povo. Neste quadro, as garantias de autonomia<br />

implicam, entre outras coisas, o desenvolvimento de formas efetivas de controle<br />

social por parte das populações indígenas, diretamente interessadas, nesses programas<br />

escolares. Tal controle inclui forçosamente a participação efetiva dos povos indígenas<br />

em seu desenho, implementação e gestão, e não o seu simulacro.<br />

Se tais garantias de autonomia podem ainda soar como uma reivindicação<br />

muito distante das possibilidades balizadas pelo quadro institucional atual, nem por<br />

isso deixam de ser rigorosamente pertinentes, tendo em vista a recente integração<br />

das escolas indígenas no Sistema de Ensino da União e, conseqüentemente, a<br />

descentralização das responsabilidades do setor público federal e a entrada em cena<br />

das agências educacionais dos Estados e municípios. Sem garantias de controle social,<br />

a descentralização das responsabilidades educacionais poderá ter resultados inversos<br />

aos esperados, como tem ocorrido em outros países da América Latina que aplicaram<br />

o mesmo modelo há mais tempo. Precisamente neste sentido, Muñoz (1990) sublinha<br />

os efeitos perversos de implementação em seu país, a partir dos <strong>ano</strong>s setenta, de um<br />

processo de descentralização semelhante ao que foi adotado recentemente no Brasil.<br />

Segundo o autor,<br />

a educação bilíngüe e bicultural, em virtude de uma política<br />

de descentralização administrativa [passou a ser<br />

implementada pelas], mãos práticas dos poderes regionais.<br />

Contra o esperado, a castelhanização direta e compulsiva<br />

viveu um de seus períodos mais intensos, generalizando-se<br />

através de todos os territórios da indianidade.<br />

Ora, mãos práticas dos poderes regionais não são privilégios do México. Por isso<br />

mesmo, qualquer um que conheça de perto a situação das atuais escolas indígenas,<br />

notadamente na Amazônia Ocidental, concordará que tais garantias são imprescindíveis<br />

para uma alteração efetiva no cenário atual.


Márcio Silva<br />

Em suma, os desafios atuais da educação indígena no Brasil gravitam em<br />

torno de duas grandes questões: a) a implementação dos programas integrados de<br />

ensino e pesquisa para oferta de educação escolar, assegurados na legislação, o que<br />

necessariamente inclui a capacitação de recursos hum<strong>ano</strong>s (professores indígenas,<br />

profissionais das agências técnicas e administrativas envolvidas, etc.), e b) as garantias<br />

de autonomia dos projetos educacionais, escolares ou não, tendo em vista as<br />

características e necessidades definidas pelos povos indígenas em cada caso.<br />

Como vimos há pouco, a implementação de programas para oferta de<br />

educação escolar sensíveis às diferentes paisagens sociolingüísticas e às características<br />

culturais dos povos indígenas decorre diretamente de compromissos constitucionais<br />

assumidos pela União, recentemente regulamentados na Lei de Diretrizes e Bases da<br />

Educação Nacional. Com base nesses referenciais jurídicos, tais programas devem ser<br />

infletidos por parâmetros tais como a recuperação das memórias históricas dos povos<br />

indígenas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e<br />

outras manifestações culturais. Esses programas devem ainda garantir aos povos<br />

indígenas o amplo acesso ao conhecimento. A concretização de tais programas<br />

corresponde portanto a uma tarefa extremamente complexa, tendo em vista o<br />

p<strong>ano</strong>rama atual das escolas indígenas da região, muito distante dos parâmetros evocados<br />

acima, a escassez generalizada de recursos hum<strong>ano</strong>s e financeiros, a ausência de estudos<br />

e levantamentos mais rigorosos sobre os diferentes cenários micro-regionais, além dos<br />

entraves e obstruções de todo tipo.<br />

Apenas para se ter uma idéia em números do p<strong>ano</strong>rama atual das escolas<br />

indígenas no Brasil, consideremos os seguintes dados: Segundo levantamentos oficiais<br />

recentes (MEC/CGAEI, outubro de 2000), existem hoje no Brasil 1.666 escolas<br />

indígenas e um total de aproximadamente oitenta mil alunos matriculados nas séries<br />

que correspondem ao antigo primário. Cerca de 60% das escolas indígenas do país se<br />

localizam na Região Norte. Do total de alunos indígenas desta região registrados pela<br />

FUNAI (1998), 62% encontram-se na fase pré-escolar ou na 1.ª série, 14% na 2.ª série,<br />

10% na 3.ª série e 8% na 4.ª série. Os 6% restantes se distribuem entre a 5.ª e a 8.ª séries.<br />

Os dados da FUNAI (1998) apontam uma queda abrupta do número de alunos, na<br />

passagem entre a 1ª. e a 2.ª séries do curso fundamental, o que revela uma situação<br />

extremamente precária. Apenas 14 escolas situadas na região (ou seja, menos de 2%<br />

deste universo), oferecem o Ensino Fundamental completo, de 1.ª a 8.ª séries. Levando-<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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84 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

se em conta o fato de que uma grande parte dessas escolas desenvolvem<br />

ininterruptamente suas atividades de ensino há várias décadas, qualquer observador<br />

concordará que a situação escolar indígena na região é ainda bastante precária, com<br />

taxas de evasão alarmantes.<br />

Devemos então concluir que se, nos últimos <strong>ano</strong>s, houve avanços importantes<br />

na legislação e na reflexão acadêmica sobre educação escolar indígena, o mesmo não<br />

se pode verificar nas próprias escolas indígenas, aparentemente ainda tão precárias<br />

quanto aquelas que dominavam a paisagem brasileira há cinqüenta <strong>ano</strong>s. O que parece<br />

ser novo neste quadro, para além das leis, dos instrumentos administrativos e das<br />

reflexões, é a participação de professores indígenas nessas escolas. Segundo o Ministério<br />

da Educação, de um total de 2.859 professores atuantes nas escolas indígenas no Brasil,<br />

2.041 (71%) são professores indígenas (MEC, 1998, p. 40-1). Esses professores indígenas<br />

reivindicam cada vez mais o acesso a programas de aperfeiçoamento profissional o<br />

que, em nenhum sentido, contradiz os pontos de vista defendidos pelo movimento<br />

indígena. Au contraire...<br />

A consideração desta demanda, no contexto específico da Amazônia Ocidental,<br />

é fundamental para uma compreensão mais adequada da paisagem atual 10 . Em um<br />

documento produzido recentemente, professores indígenas do Amazonas, Roraima e<br />

Acre fazem um balanço desta articulação de professores, iniciada há doze <strong>ano</strong>s (apud<br />

SILVA, R., 1997). Entre os avanços, o documento destaca as novas possibilidades de<br />

intercâmbio de experiências educacionais realizadas em contextos específicos,<br />

propiciadas, desde os últimos <strong>ano</strong>s da década de oitenta, por assembléias e encontros<br />

periódicos, que possibilitaram o conhecimento mútuo das diferentes culturas indígenas<br />

e das particularidades de cada região, além de favorecerem a construção do que<br />

denominam uma solidariedade interétnica. Além disso, o documento sublinha o adensamento<br />

da reflexão sobre currículos, regimentos e práticas em sala de aula, a criação de uma<br />

comissão permanente, composta por representantes regionais eleitos a cada <strong>ano</strong>,<br />

encarregada da preparação, coordenação e administração desses Encontros. Os<br />

professores ainda evocam o grau de visibilidade, respeitabilidade e reconhecimento<br />

do movimento, traduzidos na representação que ele mantém junto ao Comitê Nacional<br />

10<br />

Uma análise cuidadosa do movimento de professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre é apresentada em Dias da Silva<br />

(1997). Ver também Silva (1994).


Márcio Silva<br />

de Educação Escolar Indígena do MEC, em instâncias consultivas e deliberativas<br />

estaduais (especialmente em Roraima, onde professores indígenas compõem e<br />

coordenam o Departamento de Educação Indígena da Secretaria de Educação), em<br />

freqüentes convites para participação em eventos acadêmicos de diversas universidades,<br />

no interesse da imprensa regional, em iniciativas do poder público, como a criação de<br />

um programa de Magistério Indígena, em Roraima, na ocupação de cargos de direção<br />

em algumas regiões etc. Se tivermos em mente que nada disso existia até 1988, somos<br />

obrigados a concordar que os avanços aqui elencados são notáveis.<br />

Paralelamente a esses avanços, um conjunto de obstáculos e desafios ao<br />

aperfeiçoamento da paisagem escolar são evocados pelos professores indígenas, como<br />

os seguintes. Em várias situações, o ensino de língua materna vem ainda se desenvolvendo<br />

de forma clandestina, isto é, não reconhecido oficialmente. Em outras, a resistência ao<br />

ensino de língua materna parte dos próprios alunos ou de seus pais. Além disso, são<br />

evocados o êxodo de jovens em idade escolar de suas comunidades de origem para a<br />

periferia das cidades, motivado por razões econômicas ou pelo desejo de continuidade<br />

escolar, os entraves administrativos que continuam impedindo o reconhecimento oficial<br />

de novos currículos e regimentos, e as dificuldades com as agências do poder público<br />

responsáveis pelo repasse dos recursos para as atividades escolares. Finalmente, sublinham<br />

a falta de qualquer apoio para a realização de eventos para o aprofundamento da<br />

reflexão e para a participação em fóruns de decisão, capazes de consolidar os novos<br />

modelos escolares. Em síntese, os professores indígenas propugnam o desenvolvimento<br />

de programas educacionais pautados pelos valores (e nessa ordem) da autonomia, diferença,<br />

especificidade, protagonismo, pluricultural [idade], e afirmação da identidade [étnica], como sublinha<br />

em um texto recente 11 o professor indígena Gersem dos Santos Luci<strong>ano</strong>, então secretário<br />

municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira, AM.<br />

Resumindo, o Brasil chega ao século 21 com uma legislação sobre educação<br />

escolar indígena bem mais avançada que aquela de há vinte cinco <strong>ano</strong>s e com a criação<br />

de novos instrumentos administrativos especialmente voltados à questão. Sem qualquer<br />

prejuízo aos méritos dessas conquistas, convém apenas insistir que a emergência de<br />

11<br />

Discurso proferido, em 13 de maio de 1998, quando da criação do Conselho Interinstitucional de Educação Escolar<br />

Indígena do Estado do Amazonas.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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86 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Escolas indígenas: a que<br />

será que se destinam?<br />

novas leis, novas repartições públicas e novos atores não garantem por si só uma<br />

transformação em aspectos mais profundos em um cenário que guarda ainda uma<br />

série de marcas que atravessam cinco séculos de história. Sabemos que situações sociais<br />

objetivas não se transformam por simples tomada de consciência dos atores envolvidos<br />

e muito menos pela publicação de leis, decretos, portarias etc. Bastaria traçarmos um<br />

paralelo com outras questões que desafiam o nosso país às vésperas de seus quinhentos<br />

<strong>ano</strong>s, e cujas origens remontam ao tempo das caravelas, como a situação fundiária,<br />

por exemplo (SILVA, M., 1997), para justificar nosso ceticismo. As possibilidades de<br />

mudança no cenário real não decorrem do surgimento de novos instrumentos jurídicos<br />

ou administrativos, mas dependem, neste caso específico, da implementação de políticas<br />

que visem a sua superação e, principalmente, da ampla participação (e não mera<br />

“audiência”) dos verdadeiros interessados na questão: os povos indígenas.<br />

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Resumo<br />

Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

Marilene Corrêa da Silva1 José Fernandes Barros2 O objetivo deste estudo é refletir sobre as esferas que norteiam a<br />

morfologia social de comunidades rurais amazônicas, localizadas em áreas<br />

de várzea, município de Manacapuru. Busca-se compreender a<br />

configuração de organização coletiva, distribuição do poder político e<br />

econômico entre as camadas sociais locais, remetendo a um diagnóstico<br />

analítico do contexto rural, a fim de propiciar subsídios que contribuam<br />

na formulação de políticas de sustentabilidade.<br />

Palavras-chave<br />

Várzea da Amazônia; organização social; desenvolvimento<br />

sustentável.<br />

1 Doutora em Ciências Sociais, Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-<br />

Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.<br />

2 Bacharel em Ciências Sociais; bolsista do CNPq; pesquisador do Programa Integrado de Recursos Aquáticos<br />

e da Várzea – PYRÁ.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Abstract<br />

90 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

The purpose of this research is a reflection about all levels of social<br />

organization in the Amazonia rural communities, located in the várzea areas of<br />

Manacapuru district. Aim to comprehend and configurate the level of collective<br />

organization, and the political and economical power distribuition between the social<br />

levels, that results in an analitical diagnosis of rural context, which gives subsides to<br />

help in the formulation of sustainable politics.<br />

Keywords<br />

Introdução<br />

Amazonia flooding plan; social arganization; sustaintalle development.<br />

Analisar e refletir sobre a vida dos povoados rurais amazônicos, implica<br />

não somente percorrer um vasto território com densas florestas, mas também<br />

perceber um espaço cheio de contrastes e contradições.<br />

O cenário amazônico reflete o modo pelo qual o homem produz e reproduz<br />

seu espaço. Quando saímos do meio urb<strong>ano</strong> e entramos em contato com o meio<br />

rural, logo percebemos as fronteiras sociais que separam um lugar do outro. De um<br />

lado estão os edifícios, os casarões, a “tecnologia de ponta”, o centro administrativo<br />

e político; o lugar da impessoalidade, do uso racional das emoções e dos valores; de<br />

um outro lado há um ambiente<br />

bem diverso do que era no início do século XX [...] não só<br />

porque as florestas e rios foram profundamente<br />

modificados, mas principalmente porque a cultura mudou<br />

de modo considerável, a partir das transformações de<br />

hábitos e costumes, sobretudo no decorrer das últimas cinco<br />

décadas (OLIVEIRA, 2000, p. 20).


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

Neste meio apresentam-se os casebres e palafitas, caracterizados pela falta<br />

de saneamento e infra-estrutura, isolados e esquecidos pelos representantes<br />

governamentais. Também estão presentes aí as relações baseadas nos valores pessoais,<br />

construídos historicamente; o conhecimento acumulado durante séculos, suas<br />

peculiaridades que são próprias da dinâmica dos acontecimentos socialmente<br />

vivenciados por esses povoados, onde a vista de longe dá a nítida impressão de<br />

tratar-se apenas de uma “monótona” e repousante “figura emoldurada” na paisagem<br />

amazônica. No entanto, quando nos aproximamos e entramos em contato com a<br />

realidade local, o quadro de moldura passa a ter uma outra dimensão.<br />

Segundo José Aldemir de Oliveira (2000):<br />

As cidades amazônicas, pelo menos as localizadas às margens<br />

dos grandes rios, parecem ter sido criadas para serem vistas<br />

de longe, pois de perto toda a dimensão de beleza que existia<br />

no primeiro olhar esvai-se [...]. Talvez fosse melhor que<br />

delas só tivéssemos a primeira impressão.<br />

A abrangência e a complexidade dos problemas socialmente vivenciados<br />

pelos “povos das águas”, especificamente os localizados em um ambiente de várzea,<br />

instigou a analisar e compreender as relações sociais que estão estabelecidas em uma<br />

área na Costa do Canabuoca, médio Amazonas, município de Manacapuru. Esses<br />

povoados situam-se em uma faixa de aproximadamente 20 km, distribuídos em 7<br />

comunidades, a saber: Nossa Senhora da Conceição, Pentecostal do Brasil, São<br />

Francisco de Assis, Cristo Rei, São Francisco de Canindé, Cristo Ressuscitado e<br />

Nossa Senhora do Carmo. Com um porte populacional equivalente a<br />

aproximadamente 262 famílias e cerca de 1.378 habitantes, os sujeitos sociais que<br />

compõem esse cenário caracterizam-se basicamente por agricultores, pescadores,<br />

produtores extrativistas, donas de casa, agentes de saúde, professores, estudantes,<br />

funcionários públicos e aposentados.<br />

Este estudo constitui-se em um dos eixos temáticos da pesquisa intitulada<br />

“Alternativas para o manejo dos recursos aquáticos e conservação da várzea na<br />

Amazônia Central”, desenvolvida pela Universidade Federal do Amazonas, através<br />

do Programa Integrado de Recursos Aquáticos e da Várzea – PYRÁ – financiado<br />

pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

Por estar atuando diretamente em todo o Estado do Amazonas, a<br />

universidade tem se preocupado em desenvolver pesquisas que permitam<br />

compreender o grau de complexidade de suas populações interioranas e urbanas,<br />

já que nas últimas décadas a região tornou-se cenário de um drama ecológico e<br />

social, que tem adquirido dimensões planetárias. Além do mais, o espaço amazônico<br />

vem sendo ocupado e modificado constantemente com a entrada em cena de<br />

novos atores sociais que chegam de fora, com interesses diversos, criando uma<br />

nova ordem social.<br />

Nesse sentido, entendemos que um estudo do ponto de vista sociológico<br />

poderá permitir, vislumbrar e compreender o processo histórico da formação<br />

social, política e cultural dos povoados amazônicos, sem contudo desmerecer a<br />

importância da heterogeneidade cultural.<br />

A pesquisa foi realizada a partir de dados primários e secundários.<br />

Realizaram-se visitas sistemáticas aos povoados eleitos como objeto de estudo,<br />

onde se aplicaram técnicas de intervenção sociológica: observação participante,<br />

história de vida e história oral, aplicação de questionários e realização de entrevistas<br />

com o objetivo de identificar os níveis de organização política institucional, como<br />

também reconstruir a historicidade da Comunidade Nossa Senhora do Carmo,<br />

localidade enfocada pelo Programa, no que tange aos aspectos jurídicos – legalidade<br />

jurídica da comunidade – e aspectos culturais do surgimento dos primeiros povoados.<br />

Os dados secundários foram coletados junto ao Programa Integrado de<br />

Recursos Aquáticos e da Várzea – PYRÁ, que realizou um estudo em forma de<br />

diagnóstico nesta região, com o objetivo de identificar as estratégias cotidianas de<br />

reprodução social e os anseios das populações rurais, em consonância com o<br />

potencial de uso de áreas da várzea. A metodologia empregada para a elaboração<br />

do diagnóstico baseou-se em entrevistas estruturadas, conversas informais com os<br />

comunitários, relatos orais e observação direta; as entrevistas realizadas totalizaram<br />

um universo de 30% das residências. Neste momento da pesquisa deu-se prioridade<br />

aos aspectos de mobilidade social, aspectos políticos, aspectos religiosos, aspectos<br />

demográficos, renda familiar, potencial hum<strong>ano</strong>, serviços básicos de educação e<br />

saúde.


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

A pesquisa empírica obedeceu a um pl<strong>ano</strong> amostral, dada a complexidade<br />

e o tempo necessário para elaboração do estudo. A modalidade de amostragem<br />

adotada neste trabalho consistiu na vertente probabilística, onde os elementos do<br />

universo da pesquisa têm a mesma chance de serem escolhidos aleatoriamente<br />

(BARROS, 1997).<br />

Dentre os 7 povoados localizados na região da Costa do Canabuoca,<br />

elegemos a Comunidade Nossa Senhora do Carmo como foco de atenção prioritária,<br />

por tratar-se do povoado com o maior porte populacional e por compreendermos<br />

que aí se faz presente uma rede de relações sociais que podem ser percebidas nos<br />

demais povoados que fazem parte da área de estudo.<br />

Do universo de 71 famílias localizadas na Comunidade Nossa Senhora do<br />

Carmo, foram aplicados 21 questionários direcionados a três membros de cada<br />

família amostral, perfazendo um total de 10% de famílias, cuja representatividade<br />

supõe-se que seja significativa na pesquisa. Adicionou-se a esse universo pesquisado<br />

as entrevistas realizadas com moradores mais antigos da localidade, bem como as<br />

lideranças administrativas. Optou-se, como apoio teórico, pela abordagem acerca<br />

das Representações Sociais que enfatiza o que os seres hum<strong>ano</strong>s pensam ou gostam<br />

de fazer. Segundo Moscovici (1961), Representação Social pode ser entendida como<br />

um conjunto de conceitos, afirmações e explicações<br />

originadas no quotidi<strong>ano</strong>, no decurso de comunicações<br />

interindividuais. Elas são equivalentes, em nossa sociedade,<br />

aos mitos e sistemas de crença nas sociedades tradicionais;<br />

elas podem até mesmo ser vistas como uma versão<br />

contemporânea do senso comum.<br />

Afirma ainda o autor que “quando estudamos Representação Social, o que<br />

estamos estudando são seres hum<strong>ano</strong>s que pensam, e não apenas manipulam<br />

informação ou agem de uma determinada maneira” (MOSCOVICI, 1961).<br />

A presente pesquisa desenvolveu-se a partir de três momentos. O primeiro<br />

momento diz respeito à fase preliminar da sondagem de campo. O segundo<br />

momento refere-se à montagem do quadro de identificação dos sujeitos da pesquisa,<br />

elaboração de um roteiro mínimo de entrevista aberta e aplicação de questionários.<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

O terceiro momento foi dedicado à análise do material colhido pela equipe do<br />

Projeto Pyrá, dando um tratamento sociológico aos dados dispostos.<br />

Aspectos gerais da Comunidade Nossa Senhora do Carmo<br />

A Comunidade Nossa Senhora do Carmo situa-se na margem direita do<br />

rio Solimões, numa região compreendida entre a Costa do Canabuoca e Paraná<br />

do Jacaré, no município de Manacapuru, Estado do Amazonas. O município de<br />

Manacapuru possui uma área de 48.419 km 2 , com altitude de 34 metros acima do<br />

nível do mar, distante 54 km em linha reta da capital do Estado do Amazonas,<br />

tendo como limites os municípios de Manaus, Iranduba, Novo Airão, Caapiranga,<br />

Anamã, Beruri e Manaquiri.<br />

A localidade pesquisada compreende uma área legal de 400 m de frente<br />

por 150 m de fundo. O reconhecimento enquanto comunidade pela Prefeitura<br />

Municipal data de 23 de fevereiro de 1976, conforme o livro Ata de sua fundação.<br />

Sua população é de aproximadamente 393 habitantes, distribuída em cerca de 71<br />

famílias. Os primeiros moradores chegaram a esta área, provenientes, sobretudo,<br />

de uma localidade pertencente ao município, chamada Terra Preta. O espaço foi<br />

sendo construído a partir da “invasão” e ocupação da área. O que hoje corresponde<br />

à Comunidade Nossa Senhora do Carmo, antes correspondia a uma grande<br />

fazenda, denominada “Fazenda Cortez”, de propriedade particular do Sr. Francisco<br />

Cortez, tenente aposentado do Exército, proveniente do Nordeste, na Segunda<br />

Guerra Mundial.<br />

A configuração ambiental do cenário amazônico dispõe-se basicamente<br />

em dois tipos de ambientes: a terra firme e as áreas alagáveis – várzea, essas áreas<br />

correspondem, respectivamente, a 95% e 5% da paisagem amazônica. O alagamento<br />

das áreas da várzea ocorre periodicamente, pelo fato de este ambiente estar sujeito<br />

ao transbordamento lateral dos rios e lagos.<br />

A área em estudo situa-se numa porção de terra que dificilmente alaga,<br />

compreendida entre dois grandes sistemas lacustres: o sistema lacustre Paracuba-<br />

Jacaré e o sistema lacustre Cururu. O acesso ao sistema é feito pelo Paraná do


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

Jacaré, desembocando no rio Solimões, onde fica localizada a Comunidade Nossa<br />

Senhora do Carmo.<br />

As principais atividades produtivas estão basicamente voltadas para a<br />

agricultura, pecuária de pequena escala, extrativismo vegetal e a pesca. Essas ocupações<br />

econômicas são desenvolvidas em todos os povoados dessa região, acompanhando<br />

o ciclo natural de subida e descida das águas. A pesca é a única atividade praticada na<br />

cheia e na vazante do rio, tanto para fins de subsistência como para comercialização.<br />

Nas entrevistas realizadas e questionários aplicados, a agricultura aparece<br />

como a atividade principal. Este fator está diretamente relacionado com a<br />

representação social que os moradores desta localidade têm em relação ao agricultor<br />

e pescador. A agricultura é reconhecida como a atividade merecedora de respeito e<br />

valorizada por todos, enquanto que a pesca comercial é vista, perante o grupo,<br />

como atividade econômica sem significado valorativo de trabalho. Na visão dos<br />

moradores desta localidade, o trabalhador é aquele que planta, manuseia a terra,<br />

acompanha o processo de fabricação da farinha e seus derivados, colhe a malva,<br />

etc., ou seja, aquele indivíduo que ao empregar a força de trabalho na elaboração da<br />

mercadoria, “vê” a ação humana no produto final que surge da sua relação com o<br />

ambiente, já que em sua visão de mundo, o peixe é um produto que já se encontra<br />

pronto na natureza, portanto não requer a ação do homem na sua elaboração.<br />

Antigamente todo mundo sabia trabalhar, plantava, tirava<br />

castanha, a gente só pescava quando precisava comer. Hoje<br />

ninguém sabe mais plantar, quebrar castanha, só qué saber<br />

de pescar, num sabe fazer outra coisa, só pescar (M. T.).<br />

A organização produtiva dos moradores desta região baseia-se no modelo<br />

de agricultura familiar. Percebe-se que os produtores não levam em conta a jornada<br />

de trabalho dos membros da sua família, ou seja, não embutem no produto final a<br />

força de trabalho empregada na produção e elaboração da mercadoria. Nesse sentido,<br />

o produto do trabalho aparece sem valor hum<strong>ano</strong> agregado, isento de contradições<br />

sociais, onde o agricultor se vê como um simples intermediário entre a matériaprima<br />

e o produto final, que foi cultivada e elaborada por ele. “Logo, o homem,<br />

enquanto parte da natureza, surge como algo descolado de si próprio; estranhamente<br />

separado da sua própria elaboração” (RANCIARO, 1999, p. 22).<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

Do ponto de vista dos problemas vivenciados pelos moradores desta<br />

localidade, os relatos argumentam a falta de uma política agrícola e o descaso do<br />

poder público para com os produtores rurais, ocasionando a instabilidade ou mesmo<br />

a inexistência de uma produção que a torne competitiva no mercado urb<strong>ano</strong>.<br />

Os produtores declararam que não recebem nenhum tipo<br />

de assistência técnica, seja de órgãos governamentais ou<br />

privados. O IDAM (Instituto de Desenvolvimento<br />

Agropecuário do Estado do Amazonas), somente fornece<br />

sementes de malva e algumas hortaliças e doação de<br />

implementos agrícolas para uso comunitário (FABRÉ et al,<br />

1999, p. 17-18).<br />

A conseqüência maior deste processo é o deslocamento dessas populações<br />

em direção ao centro administrativo do município ou em direção à capital do Estado,<br />

ocasionando problemas de infra-estrutura, desemprego, prostituição, mendicância e<br />

inchaço das cidades, como percebemos nos relatos de moradores desta localidade:<br />

“Hoje, meus irmão, minhas irmã foram todo pra Manacapuru, eu fiquei<br />

sozinho aqui.” (P. B.).<br />

“A mamãe tá montando uma lojinha pra mim e minha irmã tomar conta<br />

em Manacapuru, do jeito que tá aqui num tem futuro não pra gente.” (K. V.).<br />

O espaço social comunitário<br />

A localidade Nossa Senhora do Carmo estende-se ao longo de uma faixa<br />

de terra banhada pelo rio Solimões, suas ruas são paralelas e transversais ao rio.<br />

Existem no total 5 ruas, conhecidas como: avenida Nossa Senhora do Carmo, ruas<br />

Francisco Bezerra, São Domingos, Edilberto Menezes e Mário Queiroz.<br />

A avenida Nossa Senhora do Carmo é a principal rua da comunidade, é<br />

onde estão localizadas a Igreja Nossa Senhora do Carmo, a Igreja Assembléia de<br />

Deus, a Escola Lili Vasconcelos, o posto de saúde, o telefone comunitário com uma<br />

torre de transmissão, a casa de força da Companhia de Energia do Amazonas, o<br />

poço Artesi<strong>ano</strong> que distribui água para as casas, o cemitério e a sede social.


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

Os prédios mais imponentes de Nossa Senhora do Carmo são as Igrejas<br />

Católica e Assembléia de Deus, esta última de construção recente, assemelha-se aos<br />

templos encontrados nas grandes cidades. Temos também a Escola Municipal que<br />

foi construída recentemente e é referência tanto em espaço físico quanto nas condições<br />

materiais para as outras escolas da região da Costa do Canabuoca.<br />

Destaca-se em Nossa Senhora do Carmo o número de igrejas, cada uma<br />

representando uma respectiva religião. Com uma população de aproximadamente<br />

393 habitantes, existem 4 igrejas, a saber: Igreja Nossa Senhora do Carmo, Assembléia<br />

de Deus, Igreja Adventista do 7.º Dia e Igreja Pentecostal Unida do Brasil.<br />

A construção das casas obedece a uma exigência dos ciclos naturais (cheia e<br />

vazante do rio), os assoalhos são construídos acima do solo, suspensos a uma altura<br />

de aproximadamente 1 metro, inferior às casas das outras comunidades, pelo fato<br />

de tratar-se de uma área de terra que dificilmente alaga.<br />

Essas casas, tipo palafitas, possuem em sua maioria três cômodos, com<br />

paredes e assoalhos de madeira e telhados cobertos de palha ou zinco. “Atualmente,<br />

os telhados cobertos por zinco são predominantes, apesar de concentrarem o calor<br />

no ambiente intradomiciliar” (FABRÉ, 1999), como se verifica na maioria das casas<br />

da região amazônica. As residências melhores e maiores ficam localizadas na avenida<br />

Nossa Senhora do Carmo, enquanto que as casas menores e em piores condições<br />

físicas estão situadas na rua Edilberto Menezes, nos fundos da comunidade, longe<br />

da vista dos turistas que ali passam em direção aos lagos existentes na região.<br />

Os meios de transportes utilizados pelos moradores da Costa do Canabuoca<br />

são principalmente a c<strong>ano</strong>a, o “motor de rabeta” e o chamado “barco de linha” –<br />

pequenos barcos que fazem o transporte dos moradores da Costa do Canabuoca<br />

para Manacapuru e vice-versa.<br />

A c<strong>ano</strong>a é utilizada para o transporte diário de uma casa para outra; o<br />

“motor de rabeta” realiza percurso de maior distância, no deslocamento entre as<br />

comunidades. O “barco de linha” é utilizado para o transporte dos moradores para<br />

Manacapuru. Geralmente a viagem para Manacapuru ocorre para visitar parentes e<br />

amigos que para lá mudaram de residência, ou para comprar suprimentos para<br />

comercializar nas comunidades. Essas viagens ocorrem de segunda-feira a sábado,<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

perfazendo um tempo médio de 3 horas para descer o rio e 4 a 5 horas para fazer<br />

a viagem de volta.<br />

Os objetos materiais incorporados na comunidade<br />

Quando nos aproximamos da Comunidade Nossa Senhora do Carmo,<br />

logo nos deparamos com uma imagem que ao mesmo tempo parece surreal e<br />

contrastante. No centro da paisagem amazônica, com uma imensidão de água e<br />

floresta que circundam este povoado, destaca-se de longe a torre de telecomunicações,<br />

colocando essa localidade em contato com a sede administrativa do município e<br />

com os centros urb<strong>ano</strong>s de todo o Brasil e do mundo.<br />

Nas casas, percebe-se um número elevado de antenas parabólicas. Na avenida<br />

Nossa Senhora do Carmo, por exemplo, existem 17 antenas.<br />

Quando a noite desponta, a imagem é ainda mais contrastante, lembrando<br />

uma cidade que foi imposta no meio da selva. Isto nos remete para os primeiros<br />

povoados que serviram de embrião para a cidade de Manaus, e que hoje a desponta<br />

como uma das grandes metrópoles da Região Norte.<br />

Segundo Mário Lacerda Melo (1990):<br />

[...] em 1786, mais de um século depois do surgimento do<br />

nódulo que lhe serviu de embrião, Manaus não passava de<br />

um lugarejo de três centenas de habitantes [...], o crescimento<br />

anterior da cidade vinha sendo tão lento, em seus dois séculos<br />

de existência, quanto o próprio processo de povoamento<br />

regional de que dependia.<br />

Enfatiza ainda o autor, que durante o período áureo da borracha, entre<br />

1890 e 1920, a população de Manaus passou de 5.000 para 75.000 habitantes (MELO,<br />

1990).<br />

Na obra A ilusão do fausto: Manaus – 1890-1920, Edinea Mascarenhas Dias<br />

(1999), retrata e reconstrói uma parte da historicidade da cidade de Manaus. A autora


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

destaca a forma como a espacialidade da cidade de Manaus foi sendo construída<br />

e reconstruída de acordo com os interesses do capital.<br />

Na Comunidade Nossa Senhora do Carmo, percebe-se logo, de imediato,<br />

as transformações ocorridas, tanto no espaço físico quanto no modo de vida da<br />

população local, influenciada diretamente pelos valores urb<strong>ano</strong>s capitalistas.<br />

Esses valores urb<strong>ano</strong>s são incorporados, principalmente, através dos meios<br />

de comunicação, que disseminam por todos os cantos e recantos do mundo certos<br />

padrões culturais, diminuindo a distância e as fronteiras entre campo e cidade.<br />

Outro disseminador poderoso dos valores urb<strong>ano</strong>s são os amigos e parentes que<br />

estiveram em contato direto com o universo citadino, que ao retornarem para o<br />

campo trazem consigo as “novidades” e inovações técnicas e culturais que estão<br />

presentes no meio urb<strong>ano</strong>.<br />

Os processos e estruturas de dominação e apropriação<br />

vigentes no mundo urb<strong>ano</strong>-industrial estendem-se pelos<br />

campos e pastagens, compreendendo rodovias e ferrovias,<br />

usinas e fábricas, computadores e antenas parabólicas,<br />

telefones celulares e vídeos, formas de trabalhar e produzir,<br />

modos de ser e agir, possibilidades de pensar e imaginar.<br />

São os próprios horizontes mentais de uns e outros que se<br />

alteram, recriam e alargam. As noções de espaço e tempo<br />

modificam-se com base nas conquistas de novos meios de<br />

comunicação, informação, análise e decisão. Os recursos<br />

da eletrônica e informática transformam os significados<br />

dos dias e noites, semanas e meses, estações e ciclos. O que<br />

é local situa-se simultaneamente na província, nação, região<br />

e mundo; e vice-versa. As divisas e as fronteiras mudam de<br />

significado, deslocam-se ou apagam-se (IANNI, 1996, p.<br />

61-62).<br />

Nas festas e datas comemorativas da comunidade em estudo, percebe-se<br />

logo de imediato a influência dos valores urb<strong>ano</strong>s, principalmente entre os jovens<br />

e adolescentes, que aos poucos vão sendo assimilados pelo grupo e pela<br />

comunidade.<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

Na agricultura, vê-se o uso de agrotóxicos nas lavouras e nos campos,<br />

principalmente de herbicidas, utilizadas para matar plantas daninhas. Esses materiais<br />

incorporados obedecem a uma nova necessidade, que é otimizar o máximo de tempo<br />

possível com o resultado mais imediato, características do sistema capitalista que são<br />

incorporados no meio rural, diferentes das formas culturais particulares que sempre<br />

administraram o seu meio.<br />

Nesse sentido, o modo de produção capitalista passa a ditar as normas e<br />

regras de organização dos agricultores em função de uma ideologia que objetiva sempre<br />

o lucro acima de qualquer coisa, onde a consciência ambiental, no que diz respeito à<br />

conservação de solo, água e floresta, é desconstruída em função de novas alternativas,<br />

provocando um desequilíbrio na relação que esses povos estabeleceram com o seu<br />

meio e com o ambiente em que estão inseridos.<br />

As relações sociais<br />

Nossa Senhora do Carmo, assim como as demais comunidades localizadas<br />

na Costa do Canabuoca, dá a impressão ao visitante de uma sociedade constituída por<br />

grupos homogêneos, de pessoas que pouco diferem uma das outras quanto ao prestígio<br />

social. Em Manaus, como em toda região amazônica, as pessoas costumam classificar<br />

os habitantes de regiões, como a da Costa da Canabuoca, por ribeirinhos, por viverem<br />

às margens dos rios, dedicados à agricultura e pesca, onde as estratificações sociais são<br />

menos nítidas. Entretanto, quando entramos em contato com estas comunidades, logo<br />

percebemos as diferenças sociais ali presentes.<br />

Nesta pequena localidade a posição social depende de vários atributos, dentre<br />

os quais, destaca-se: a família, a ocupação e a educação.<br />

Essas diferenças de posição social que hoje existem, decorrem, de um lado,<br />

do sistema de estratificação da sociedade colonial da Amazônia, sobretudo da ascendência<br />

social dos colonos portugueses, que continua a reproduzir-se em outras conjunturas<br />

das sociedades regionais. Isso pode ser percebido nas falas dos moradores da localidade,<br />

quando, por exemplo, fazem questão de enfatizar que possuem descendência<br />

portuguesa, ou que viveram e conviveram com a velha aristocracia gomífera.


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

Na obra O paiz do Amazonas, Marilene Corrêa da Silva (1996) destaca esse<br />

processo de dominação colonial e a imposição dos hábitos e costumes ibéricos, que<br />

implicou na modificação da estrutura social amazônica em detrimento do modelo<br />

português. Segundo a autora:<br />

A reforma de costumes é, ao mesmo tempo, meta e<br />

processo da dominação colonial; requer denodo,<br />

perseverança, disciplina, suavidade e aplicação dos meios<br />

de aquisição da civilidade: a obrigatoriedade da língua<br />

portuguesa, a educação pelo ensino básico, os estímulos à<br />

ascensão e diferenciação social, a organização da<br />

descendência familiar, a vestimenta e a habitação particular<br />

(1996, p. 71).<br />

Os estímulos à ascensão social e à diferenciação<br />

correspondem a níveis distintos das preocupações políticas<br />

e às medidas de institucionalização das relações dos índios<br />

entre si e dos índios com os brancos. De um lado, a honraria<br />

e o reconhecimento público dos índios que passam a ocupar<br />

cargos de confiança. Devem diferenciar-se dos demais como<br />

portadores de prestígio e privilégios que se estendem às<br />

suas famílias (1996, p. 72).<br />

Não se pode dizer que toda gente de Nossa Senhora do Carmo e da Costa<br />

do Canabuoca tenha plena consciência da estrutura de diferenciações sociais. No<br />

entanto, nas festas e reuniões comunitárias essas diferenciações são facilmente<br />

percebidas. Além do mais, as formas contemporâneas de estratificação social<br />

combinam, ainda, elementos de classe, predominantemente econômicos, com<br />

elementos de casta, predominantemente socioculturais.<br />

Quando o agricultor, o pescador, a dona de casa, o extrativista, vão à festa<br />

da Padroeira, geralmente veste sua melhor roupa, usa os sapatos que ficaram<br />

esquecidos durante o <strong>ano</strong> inteiro. Os jovens escolhem as roupas que estão em evidência<br />

em Manacapuru e em Manaus.<br />

Embora em Nossa Senhora do Carmo a posição social esteja intimamente<br />

relacionada à questão econômica, outros fatores também contribuem para determinar<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

uma “classe” da outra. O nível de instrução é um dos diferenciadores. As pessoas de<br />

maior prestígio social geralmente possuem o nível médio de ensino ou fundamental<br />

completo.<br />

Sendo Nossa Senhora do Carmo uma comunidade pequena e de certa<br />

forma “isolada”, a distância entre os indivíduos de maior e menor prestígio na<br />

escala social não é tão grande como nas grandes cidades. No entanto, o sistema de<br />

diferenciação social é um aspecto importante na vida desta localidade.<br />

Houve época em que a diferença entre os indivíduos da mais alta e da mais<br />

baixa posição social era mais visível. Os moradores contam que num passado, não<br />

muito distante, uma grande família local era uma das maiores detentoras de prestígio<br />

econômico e social de toda região da Costa do Canabuoca. Naquela época essa<br />

família formava a alta sociedade, ou a “aristocracia”. Na qualidade de comerciantes<br />

e donos de terras, controlavam a vida econômica e política do povoado, e ocupavam<br />

todos os cargos de lideranças, seja, a liderança política, a religiosa e a educacional. Na<br />

condição de comerciantes, líderes políticos e religiosos, os membros eram respeitados<br />

e acatados em toda a região do Canabuoca e em Manacapuru, como grupos de<br />

prestígio propriamente dito.<br />

Hoje em dia, essa família continua a controlar e a revezar-se no poder<br />

administrativo, religioso e econômico, formando a “camada” mais alta da comunidade.<br />

A residência representa também uma outra forma de ascensão social,<br />

principalmente os flutuantes e as casas que possuem revestimento de zinco e antenas<br />

parabólicas. Os flutuantes por serem mais caros, pois requerem toda uma estrutura<br />

para acompanhar o nível de descida e subida das águas, e as antenas parabólicas por<br />

propiciar ao indivíduo meios de contato com as demais regiões do Brasil e do<br />

mundo.<br />

Outro critério com que a gente de Nossa Senhora do Carmo estabelece a<br />

posição social de um indivíduo é o montante de dinheiro, ou seja, quem possui uma<br />

renda relativamente fixa, proveniente de salários ou do comércio.<br />

Esses fatores – família, educação, posição econômica – são de grande<br />

importância em Nossa Senhora do Carmo, a linha divisória entre a camada mais<br />

baixa e mais alta da localidade. A transferência de uma camada para outra é difícil e


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

pouco freqüente. Muitas vezes as posições sociais já estão enraizadas na comunidade,<br />

ou seja, muitos deles advêm de “famílias tradicionais”, que foram uma das primeiras<br />

a povoar a comunidade.<br />

As oportunidades educacionais são muito limitadas; as pessoas das camadas<br />

mais baixas têm dificuldades de manter seus filhos na escola, já que são eles que<br />

ajudam na colheita, a fim de complementar a renda familiar. Só podem dar melhor<br />

educação a seus filhos os que têm sólida situação financeira para enviá-los a<br />

Manacapuru ou Manaus, onde as escolas oferecem Ensino Médio e curso superior.<br />

A permanência de métodos poucos eficientes na agricultura, os baixos preços<br />

pagos a seus produtos e a falta de incentivo governamental que proporcione a inserção<br />

desses produtores no comércio regional, garantindo aumento da produção e<br />

qualidade dos seus produtos, dificultam ou mesmo tornam improvável a possibilidade<br />

de o indivíduo subir na escala econômica e social, tanto na Comunidade de Nossa<br />

Senhora do Carmo, como em toda a região da Costa do Canabuoca.<br />

As relações familiares<br />

Analisar e refletir as formas de relações pautadas em torno da família não é<br />

algo simples, principalmente quando se relaciona à família no meio rural, e<br />

especificamente na região amazônica, que envolve uma forma de organização social<br />

e de parentesco que se apresentam com características próprias.<br />

A família é uma instituição social de grande importância para o estudo das<br />

comunidades rurais. A organização do parentesco, presente nos diferentes tipos de<br />

famílias, está construída sobretudo em bases culturais. Apesar de as sociedades<br />

humanas terem se organizado sob alguma base familiar ou de parentesco, estes se<br />

apresentam de diferentes formas, podendo ter significados extremamente diversos<br />

de uma sociedade para outra, variando de acordo com seu padrão cultural. Na<br />

Costa do Canabuoca, assim como em toda região amazônica, o sistema de relações<br />

familiares está construído tanto em bases de laços biológicos de filiação como em<br />

laços de compadrio.<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

Nas comunidades rurais da Costa do Canabuoca, a organização essencial<br />

da vida econômica está concentrada principalmente no seio da família ou do grupo<br />

de pessoas que vivem na casa: cada grupo assegura a produção de certos bens<br />

alimentícios ou outros, que consomem e/ou comercializam com outros bens e<br />

serviços dentro e fora da comunidade.<br />

As características principais da família rural são a centralidade, a autoridade<br />

e a hierarquia, que irão definir suas relações domésticas e extradomésticas, implicando<br />

também na solidariedade dentro e fora do grupo familiar, como por exemplo na<br />

vizinhança.<br />

A hierarquia é importante para a ordem familiar. A relação entre pais e<br />

filhos é marcada por uma espécie de reafirmação constante da autoridade paterna,<br />

que faz a mediação entre a família e a comunidade. A definição de papéis corresponde<br />

à necessidade para um fortalecimento social, cujo homem e pai é visto como o<br />

provedor de alimento, teto, e respeito perante o grupo.<br />

Na região amazônica as famílias são relativamente numerosas, principalmente<br />

na zona rural, exercendo grande importância na política, na economia e na vida<br />

social da região. Pode-se dizer que a família é o centro da vida social (WAGLEY, 1988).<br />

Nos grupos presentes na Costa do Canabuoca, o círculo de família é bastante<br />

amplo, as teias de relações são relativamente simples, configurando-se como o tipo<br />

de família conjugal e patriarcal. O homem engloba hierarquicamente a posição da<br />

mulher dentro das relações familiares, o papel do homem está ligado ao trabalho,<br />

sua imagem pública diante da comunidade é suprir as necessidades da família, enquanto<br />

o papel da mulher está mais relacionado às funções domésticas. No entanto, vale<br />

ressaltar que esta imagem que o homem e a mulher representam no seio da<br />

comunidade, pode ser uma imagem diferente da realidade conjugal, presente no<br />

íntimo do seio familiar, onde os papéis hierárquicos na relação homem/mulher são<br />

facilmente trocados, como ressalta Wagley (1988):<br />

Em Itá, como aliás em todas comunidades do mundo, há<br />

entretanto, uma grande distância entre o ideal e a realidade<br />

– entre o que a gente prega e aquilo que faz. Todavia são<br />

esses padrões ideais de comportamento do marido e pai, e<br />

da mulher e mãe, que determinam, em grande parte, o


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

comportamento na prática. Esses ideais fornecem uma série<br />

de regras que todos almejam seguir – mas que nunca o<br />

conseguem. Como no resto do mundo, poucos são os<br />

maridos e as mulheres ideais. Raros são os homens que<br />

conseguem ser a figura dominadora, central, de sua família<br />

nuclear, como poucas são as mulheres tímidas e passivas<br />

que personificam o tipo ideal. Muitos homens representam<br />

esse papel, dando ordens à mulher e aos filhos diante dos<br />

outros, e muitas mulheres servem seus maridos à mesa,<br />

principalmente quando há visitas. As mulheres abstêm-se<br />

das atividades comerciais, pedindo aos homens que<br />

comprem o alimento, e evitam encontros com outros<br />

homens nas ruas. Em público, tanto um quanto outro<br />

representam os papéis que lhes atribui a sociedade.<br />

Na comunidade Nossa Senhora do Carmo a maioria das famílias está inserida<br />

no modelo de família nuclear: um homem, sua mulher e seus filhos. Em geral, os<br />

parentes consangüíneos moram bem próximos uns aos outros, sem contudo<br />

dividirem a mesma casa. De maneira geral, todos preferem ter seu próprio lar e ser<br />

economicamente independentes dos parentes. Nas casas de uma única família o pai<br />

é, teoricamente, o chefe absoluto, devendo preocupar-se com as finanças da família,<br />

competindo a ele resolver todos os negócios; para as mulheres da região, essas<br />

atividades são de obrigação própria dos homens.<br />

Percebemos que as mulheres se dedicam basicamente às atividades de casa<br />

ou ajudam o marido na roça, subordinadas à sua autoridade. Algumas mulheres<br />

participam das reuniões para discutir questões ligadas ao uso dos recursos naturais,<br />

colaboram nas decisões e discutem política, no entanto, em geral esse papel é<br />

desenvolvido pelos homens. Há casos de mulheres que desempenham o papel de<br />

chefes de famílias, estando à frente dos negócios e das questões políticas locais.<br />

O casamento é uma regra e norma formal da localidade, está inserido nos<br />

preceitos morais e religiosos, geralmente visto como uma forma de o indivíduo ser<br />

conhecido e reconhecido socialmente perante o grupo. Do total de questionários<br />

aplicados, 19 entrevistados afirmaram ser casados e apenas 2 solteiros. Essa freqüência<br />

de casamentos evidencia os valores aceitos pela gente da Comunidade Nossa Senhora<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

do Carmo: um compromisso que quando lavrado deve ser cumprido sob pena de<br />

sanções sociais, que cada um cuida de respeitar, talvez pela necessidade de perpetuar<br />

a unidade do grupo.<br />

Na Comunidade Nossa Senhora do Carmo, como em toda Costa do<br />

Canabuoca, a vida social desenrola-se principalmente no seio da família. Nos torneios<br />

de futebol, na formas de organização para produção, nas festas de aniversários etc.,<br />

tudo gira em torno das famílias, congregando todo um círculo de relações, seja<br />

dentro ou fora da extensão familiar.<br />

O parentesco constitui um fator importante para o estabelecimento de<br />

relações pessoais. Uma forma de estender as relações familiares além dos laços<br />

biológicos se dá por meio do compadrio. O sistema de compadrio é altamente<br />

valorizado e desenvolvido na Costa do Canabuoca e em toda região amazônica,<br />

praticado principalmente por membros da Igreja Católica. Wagley (1988) descreve<br />

como ocorre esse ritual:<br />

De acordo com o ritual da Igreja Católica, os pais de uma criança<br />

convidam um homem e uma mulher para padrinhos de batismo de<br />

seu filho, advindo daí um forte laço de amizade, não só entre o afilhado<br />

e os padrinhos, como também entre os padrinhos e os pais da criança,<br />

que se tornam compadres (pai e padrinho) e comadres (mãe e<br />

madrinha). Essa tripla relação – entre padrinhos e afilhados, entre<br />

pais e filhos e entre pais e padrinhos – é extremamente importante na<br />

maioria dos países da América Latina e nos países latinos da Europa.<br />

Os padrinhos assumem a responsabilidade pelo bem-estar material e<br />

espiritual da criança. E estas devem respeito aos padrinhos. Os pais e<br />

seus compadres devem manter uma relação de respeito e auxílio<br />

mútuos e de íntima amizade. Ajudam-se reciprocamente, dando um<br />

ao outro conforto financeiro e moral. As relações sexuais entre<br />

comadre e compadre são consideradas incestuosas; indivíduos dos<br />

dois sexos, assim relacionados, podem manter relações de amizades,<br />

mas sem qualquer suspeita de má conduta sexual.<br />

Esse tipo de relação está ligado à necessidade do grupo familiar em estender<br />

seus laços e também uma forma de a comunidade manter a ordem social nas suas


Marilene Corrêa da Silva<br />

José Fernandes Barros<br />

relações solidárias. Entre os líderes políticos e a classe comercial, a grande família<br />

com muitos parentes representa uma instituição necessária às suas relações sociais,<br />

comerciais e políticas.<br />

Outro tipo de compadrio muito desenvolvido na região amazônica e presente<br />

na área de estudo é o “compadrio de fogueira” que se realiza nas festas de São João,<br />

Santo Antônio e padroeira local. O ritual se realiza quando duas pessoas passam por<br />

cima da fogueira três vezes, dizendo algum verso que varia de uma região para<br />

outra; na Costa do Canabuoca em geral é proferido o seguinte verso:<br />

“Santo Antônio disse, São João confirmou, que nós há de ser compadre/<br />

comadre, que Jesus Cristo mandou.”<br />

Essas relações feitas “sobre a fogueira” não criam tantos compromissos,<br />

como no batismo, casamento ou crisma, alguns aceitam o convite para padrinho/<br />

madrinha de fogueira apenas pelo “espírito da brincadeira”, outros levam a sério<br />

por respeito à religião e ao “santo protetor”. Esse procedimento proporciona,<br />

principalmente, um meio de consolidar as relações entre as várias camadas da<br />

sociedade. Os compadres geralmente prestam favores políticos e econômicos, uns<br />

aos outros e aos seus afilhados e deste modo formam-se fortes laços entre famílias<br />

importantes da própria comunidade e das comunidades vizinhas.<br />

A força das relações de compadrio, acrescida às de família, manifesta-se<br />

grandemente na vida social, econômica e política das comunidades da Costa do<br />

Canabuoca. A conseqüência disso é a forte concentração de poderes em torno de<br />

famílias, que manipulam e controlam a política e a economia dentro e fora da<br />

comunidade de acordo com seus interesses.<br />

Na Comunidade Nossa Senhora do Carmo esse fato é uma realidade<br />

facilmente percebível. Uma grande família controla a vida social, política e econômica<br />

da comunidade, esse controle ocorre de tal forma, que a incursão de um “estranho”<br />

nessas áreas, representou, para ele, a dura constatação de sentir na pele o que não é<br />

ser do Pedaço. 3<br />

3 Conforme definição de Guilherme Magnani (1998), a categoria Pedaço é, “o local onde se desenvolve uma sociabilidade<br />

básica, mais ampla que os fundados nos laços de família, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais<br />

e individualizadas impostas pela sociedade[...]”<br />

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Considerações finais<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social<br />

A abordagem sociológica inicial que fizemos, pretendeu apresentar um<br />

p<strong>ano</strong>rama geral sobre a composição social da Costa do Canabuoca, município de<br />

Manacapuru, privilegiando, entre outros aspectos, os seguintes focos de atenção:<br />

densidade e distribuição da população local, organização territorial, relações<br />

familiares e relações sociais.<br />

O tema ainda não foi esgotado, já que na região da Costa do Canabuoca,<br />

assim como em todas as sociedades humanas, existem instituições políticas,<br />

econômicas, religiosas; costumes e hábitos locais que precisam ser analisados. Nesse<br />

sentido, tornam-se relevante os estudos e pesquisas voltados para a compreensão<br />

do processo histórico de ocupação territorial, que permitam entender a realidade<br />

política e cultural da região, bem como compreender a maneira como as pessoas<br />

relacionam os recursos naturais disponíveis com o modelo econômico vigente na<br />

sociedade capitalista.<br />

Esperamos que estes estudos possam contribuir como fonte de<br />

fundamentação para aqueles que trabalham com comunidades rurais amazônicas<br />

e que de alguma forma desejam executar programas de transformações sociais e<br />

econômicas, que tenham como objetivo macro a melhoria da qualidade de vida<br />

do homem amazônico.<br />

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Uma comunidade da várzea:<br />

organização e morfologia social


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

Políticas agrárias e políticas ambientais na<br />

Amazônia: encontros e desencontros<br />

Resumo<br />

Kátia Helena Serafina Cruz Schweickardt 1<br />

O artigo é parte de uma pesquisa sobre a interface entre as políticas<br />

agrárias e as políticas ambientais na Amazônia, tentando buscar a conexão<br />

de sentido entre projetos de assentamento rurais e unidades de conservação<br />

estabelecidos em áreas coincidentes. Pretende-se analisar as estratégias para<br />

a produção do espaço na região.<br />

Palavras-chave<br />

Abstract<br />

Espaço; região; Amazônia; políticas agrárias; políticas ambientais.<br />

The article is part of a research on the interface between the<br />

agrarian politics and the environmental politics in Amazonia, trying to<br />

look for the sense connection between rural establishment projects and<br />

units of conservation established in coincident areas. It intends to analyze<br />

the strategies for the production of the space in the area.<br />

1 Engª Agrônoma e Socióloga, Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia<br />

da Universidade Federal do Amazonas.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Keywords<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

Espace; region Amazonia; agrarian politics; environmental politics.<br />

Compreendendo o espaço amazônico<br />

Os governos militares deixaram como herança, na forma de gerir o espaço<br />

na Amazônia, a premissa de uma região desocupada e desintegrada do território e<br />

da economia nacional e mundial. Para isso, basearam todas as suas estratégias políticas<br />

das décadas de 60 e 70, sobretudo, e ainda nos <strong>ano</strong>s 80, para a ocupação<br />

pretensamente ordenada da região fomentando projetos em diversas escalas, de<br />

grandes empreendimentos a projetos de assentamentos rurais. Tais empreendimentos<br />

traziam também a responsabilidade social de desanuviar os conflitos por terra nas<br />

regiões Sul e Centro-Oeste do país, tentando responder à pseudo-impossibilidade<br />

política de se reformar sua estrutura agrária 2 .<br />

Esta estratégia política de produção do espaço vem, hoje, conflitar com<br />

novas atribuições que são dadas à região, não mais de “última fronteira 3 agrícola”,<br />

mas de reserva da biodiversidade e de fonte de recursos naturais, agora não<br />

mais apenas para o país, mas para toda a humanidade. Com isso, prolifera na<br />

região o estabelecimento das chamadas “áreas naturais protegidas” que se<br />

manifestam na criação e implantação de diversas modalidades de Unidades de<br />

2 Para aprofundar a temática conferir: ESTERCI, Neide; MEDEIROS, Leonilde et al. Assentamentos Rurais: uma visão multidisciplinar.<br />

São Paulo: Ed. UNESP, 1994; IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1986; IANNI,<br />

Octavio. Colonização e contra-reforma na Amazônia. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979; MARTINS, José de Souza. Não há terra para<br />

plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. 2. ed.<br />

Petrópolis/RJ: Ed. Vozes, 1988; SILVA, José Grazi<strong>ano</strong>. A questão Agrária. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981; VELHO, Octavio<br />

G. Capitalismo Autoritário e Campesinato. São Paulo: Difel, 1976.<br />

3 Usamos aqui o termo “fronteira”, a exemplo de José Grazino da Silva (1994), não como uma região distante, ou vazia no<br />

aspecto demográfico. Usamos o termo “fronteira” do ponto de vista do capital, entendido como uma relação social de<br />

produção. Adélia Engrácia e Philipe Léna (Amazônia: a fronteira agrícola 20 <strong>ano</strong>s depois. Belém: CEJUP: Museu Paraense<br />

Emílio Goeldi, 1992, p.10) completam esta idéia a par tir de Sawyer dizendo que “O conceito de “fronteira” diz respeito a<br />

situações mais gerais e mais abrangentes, em que ocorre uma desconcentração espacial de certas atividades econômicas,<br />

que encontram condições favoráveis num espaço onde elas estavam antes ausentes ou pouco representadas [...] trata-se<br />

da integração sócioeconômica, no âmbito de uma sociedade nacional, de espaços em geral pouco povoados, cujos<br />

habitantes muitas vezes não pertencem à mesma cultura, e/ou apresentam um quadro econômico que difere daqueles que<br />

caracterizam as regiões mais dinâmicas do país”.


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

Conservação 4 , de uso direto e de uso indireto, algumas vezes se sobrepondo a<br />

projetos de assentamentos rurais “espontâneos” 5 , ou não, já estabelecidos<br />

anteriormente.<br />

Esta nova forma de pensar e planejar a região mantém algumas características<br />

semelhantes àquelas das políticas empreendidas pelos governos militares e seus<br />

antecessores. A região permanece sendo pensada de fora pra dentro e as populações<br />

locais permanecem invisíveis, pouco ou quase nada sendo envolvidas nas maneiras<br />

de pensar o espaço na região.<br />

Antes de prosseguirmos com a reflexão acerca da produção do espaço e<br />

de como o Estado se apropria deste espaço criando territórios que revelam relações<br />

de poder, achamos pertinente refletir a partir de Bourdieu (1998) a idéia de região,<br />

uma vez que parte considerável da relevância de nosso trabalho de pesquisa para a<br />

dissertação de mestrado, se deve ao fato do mesmo estar localizado no que se<br />

convencionou denominar de região amazônica 6 , e mais especificamente no Estado do<br />

Amazonas. A possibilidade de se refazer a história social das idéias, noções e conceitoschave<br />

para a nossa investigação, nos permite discutir os instrumentos através dos<br />

quais estas idéias são pensadas e de como elas se constituem na base de determinadas<br />

políticas públicas.<br />

Para Bourdieu (1998, p. 108), a noção de região não se encerraria num lugar<br />

geográfico determinado que poderia ser apreendido a partir de monografias<br />

4 “Tudo indica que o termo Unidade de Conservação foi utilizado pela primeira vez em documentos oficiais no Diagnóstico do<br />

Subsistema de Conservação e Preservação de Recursos Naturais Renováveis (JORGE-Pádua, Mª Tereza et alii. Pl<strong>ano</strong> do<br />

Sistema de Unidades de Conservação. In: IBDF/Coordenadoria de Planejamento. Diagnóstico do Subsistema de Conservação<br />

e Preservação de Recursos Naturais Renováveis. Brasília: IBDF, p. 81-138) e adotado oficialmente pelo órgão então<br />

responsável pela política governamental relativa ao uso dos recursos naturais do país, IBDF. A extinta SEMA também teria<br />

adotado aquele termo e, ao fazê-lo, promoveu o seu estabelecimento legal através da Resolução n. 11/87 do CONAMA, que<br />

declara como unidades de conservação um conjunto de sítios ecológicos e de relevância cultural criados pelo poder<br />

público.” BARRETO Filho, Henyo T. Construindo a natureza na Amazônia Brasileira: uma análise sócio-antropológica das<br />

Unidades de Conservação de proteção ambiental – Resumo do conteúdo da tese. 1999, [mimeo.]<br />

5 OCTAVIO Velho (citado na nota 33) traz em seu livro uma observação de Alfredo Wagner B. de Almeida por ocasião de sua<br />

pesquisa de campo nos Vales do Tapajós e Xingu em que Almeida ressalta a relatividade do caráter espontâneo uma vez<br />

que esta expressão “mascara as pressões bem concretas que forçam a migração”.<br />

6 Ao fazermos referência à região amazônica e/ou à Amazônia no âmbito deste trabalho, não estamos deixando de considerar<br />

a complexidade de tal conceituação. Usualmente tem-se construído este conceito de acordo com critérios hidrográficos,<br />

ecológicos ou ainda, políticos e administrativos. Em nosso estudo, utilizamos o critério geo-econômico que coloca a região<br />

como Amazônia Legal Brasileira, formada por 9 Estados da Federação, embora saibamos da imprecisão de tal delimitação que<br />

tende a homogeneizar um contexto social múltiplo e polimorfo.<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

descritivas com grande ênfase nos fenômenos físicos como propunham os geógrafos<br />

da década de 40, procedimento este de quem o pensamento ecológico é herdeiro.<br />

Nem, tampouco, seria um espaço tributário de outros espaços com relação ao seu<br />

aprovisionamento e escoamento de seus produtos e recursos, como entendiam os<br />

economistas. Para ele, região seria uma relação. Algo que estaria num campo de<br />

disputas, um objeto polissêmico, de múltiplos significados e que não possui<br />

necessariamente uma dimensão espacial.<br />

A partir dessa proposição conceitual de Bourdieu no sentido de buscar o<br />

significado da noção de região ao invés de defini-la, pura e simplesmente, podemos<br />

começar a visualizar a ponta do novelo de lã que entremeia Projetos de Assentamento<br />

(doravante PA) e Unidades de Conservação (doravante UC), incompatíveis sob a<br />

ótica do uso de seus recursos e consequentemente do impacto de suas ações numa<br />

região determinada, uma vez que o PA para atingir o seu fim tradicionalmente utiliza<br />

intensivamente os recursos naturais de uma determinada área e a UC prevê a<br />

preservação quase que integral deste mesmo ecossistema.<br />

Ao delimitarmos um determinado espaço e tomá-lo como uma categoria<br />

territorial qualquer, quer seja ela PA ou UC, nada mais estamos fazendo que inventando<br />

uma nova realidade. Estamos criando para este espaço existências simbólicas que<br />

são parte do real e não o real propriamente dito. Uma categoria não existe num ato<br />

isolado. Ela só existe articulada num esquema interpretativo. A delimitação de um<br />

espaço é uma invenção e não cria uma articulação com os diversos pl<strong>ano</strong>s da vida<br />

social. As representações práticas produzem a ilusão da realidade objetiva<br />

(BOURDIEU, 1998, p. 1<strong>12</strong>).<br />

Estabelece-se assim, um novo sistema da natureza que, graças ao movimento<br />

ecológico, conhece o ápice de sua desnaturalização, onde “o espaço é hoje um sistema<br />

de objetos cada vez mais artificiais, povoados por sistemas de ações igualmente<br />

imbuídos de artificialidade, e cada vez mais tendentes a fins estranhos, ao lugar e seus<br />

habitantes” (SANTOS, 1996, p. 90).<br />

Etimologicamente, a palavra região (regio) sugere uma divisão, que segundo<br />

Bourdieu “introduz por decreto uma descontinuidade decisória na continuidade<br />

natural” (1998, p. 113). A região e suas fronteiras são vestígios da autoridade que<br />

divide o mundo social.


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

Hoje pensa-se que a categoria região não mais exista uma vez que os espaços<br />

não mais se compõem pela territorialidade absoluta de um grupo, com base nas<br />

características de identidade e nas suas noções de limite. “As formas de intervenção<br />

atual dos grandes organismos internacionais na vida íntima de cada país são um<br />

exemplo” (SANTOS, 1996, p. 99).<br />

Desse modo, ao denominarmos uma determinada área do espaço como<br />

PA ou UC, simultaneamente, estamos apenas criando realidades sociais a partir de<br />

classificações que embora pareçam naturais “nada têm de natural e que são, em<br />

grande parte produto de uma imposição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior<br />

da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima” (BOURDIEU,<br />

1998, p. 115).<br />

Tal categorização a partir de uma autoridade que exerce poder por si, cria<br />

um discurso performativo, produzindo um fenômeno que Bourdieu (1998, p. 116)<br />

denominou de magia social, ou seja, em “trazer à existência a coisa nomeada”. Ao<br />

enunciarmos as expressões PA ou UC, imediatamente nos vêm a mente determinadas<br />

regiões delimitadas com certas características de espacialização, infra-estrutura ou<br />

uso dos recursos naturais conforme quais delas sejam.<br />

Assim sendo, propõe Bourdieu (1998, p. <strong>12</strong>0), “qualquer enunciado sobre a<br />

região funciona como um argumento que contribui – tanto mais largamente quanto<br />

mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o acesso da região<br />

ao reconhecimento e, por este meio, à existência”.<br />

Retornando à análise da relação entre espaço e território, Milton Santos<br />

(1997, p. 24) propõe que se tome o espaço como uma categoria autônoma do<br />

pensar histórico. A técnica, por sua vez, seria o meio pelo qual o homem<br />

instrumentalizaria a natureza e produziria o espaço. Segundo Pierre George (apud<br />

SANTOS, 1997, p. 28), a técnica influencia o espaço basicamente de duas maneiras:<br />

a primeira, por meio da ocupação deste com as infra-estruturas, e a segunda, por<br />

meio das transformações impostas às relações (homem versus homem e homem<br />

versus meio). Desse modo, podemos dizer que os espaços forjados na Amazônia,<br />

mais especificamente as UC’s e os PA’s para fins agrícolas, são muito mais produto<br />

da técnica mediatizada pelas políticas públicas que um produto cultural de autoria<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

dos próprios atores envolvidos. Produz-se na verdade, territórios, mas não<br />

territorialidades, pois são estas que estão relacionadas às práticas dos agentes<br />

envolvidos. Segundo Raffestin (1993, p. 158), a territorialidade reflete a<br />

“multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma<br />

coletividade, pelas sociedades em geral”. O conjunto de técnicas presente e<br />

passadas, atuando na conformação do território, o fazem através de um processo<br />

de desenvolvimento desigual e combinado, ou seja, “a produção do espaço é<br />

um fato técnico em sua aparência, porém, social em sua essência” (BARRIOS,<br />

1986, p. 24).<br />

Nos últimos vinte <strong>ano</strong>s tem-se dado ao espaço o estatuto de noção e ao<br />

território o estatuto de conceito. O espaço é anterior ao território. É a apropriação<br />

do espaço pelo ator que o territorializa (RAFFESTIN, 1993, p. 143).<br />

O território é um espaço em que se projeta um trabalho e que, portanto<br />

revela relações de poder. Ressalta-se aqui, num diálogo com Foucault (1979, p.<br />

XIV), o caráter relacional do poder: “Não existe de um lado o poder e de outro<br />

aqueles que se encontram dele alijados [...] Não existe o poder, existem práticas<br />

ou relações de poder”. O espaço seria um dado, o local das possibilidades. Ao<br />

estabelecer limites no espaço e construir territórios, o poder público tem a ilusão<br />

de que materializa o seu poder através do controle deste espaço. Porém a partir<br />

de Foucault podemos perceber que a materialização deste espaço não acontece<br />

apenas no território, ela acontece sim na produção das territorialidades que são<br />

as manifestações de outras dimensões do poder, o poder local, daqueles que<br />

vivem nestes territórios e que têm a possibilidade real de objetivar políticas públicas<br />

antes pensadas apenas nos gabinetes.<br />

Desconsiderando a contribuição das populações locais, o espaço se<br />

redefine como um “conjunto indissociável no qual os sistemas de objetos são<br />

cada vez mais artificiais e os sistemas de ações são cada vez mais, tendentes a<br />

fins estranhos ao lugar” (SANTOS, 1996, p. 180).<br />

O território se apóia num espaço produzido, apropriado por um campo<br />

de poder, um local de relações. Assim, os projetos sociais, sustentados por um<br />

conhecimento e por uma prática, objetivam o espaço. “É preciso, pois,


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

compreender que o espaço representado é uma relação e que suas propriedades<br />

são reveladas por meio de códigos e de sistemas sêmicos. Os limites do espaço<br />

são os do sistema sêmico mobilizado para representá-lo (RAFFESTIN, 1993,<br />

p. 144).” Desse modo, podemos compreender o porquê destes empreendimentos<br />

não conseguirem atingir os objetivos a que se propuseram em seus planejamentos,<br />

quer estejam eles relacionados ao bem-estar sócio-econômico de famílias de<br />

pequenos agricultores sem terra como no caso dos PA’s, quer estejam relacionados<br />

à preservação de ecossistemas especiais como no caso das UC’s.<br />

Temos assim, como tarefa, desvendar os códigos e sistemas sêmicos<br />

que revelam as propriedades do espaço que está sendo por nós investigado<br />

como sugere Raffestin. É importante analisar a projeção de um lugar sob o<br />

ângulo do poder, isto é, “na perspectiva de uma comunicação social que assegura<br />

a ligação entre os objetivos intencionais e as realizações” (RAFFESTIN, 1993, p.<br />

144). No detalhamento de nosso trabalho, nos deteremos mais em analisar os<br />

objetivos intencionais das diferentes esferas do poder público que criaram os<br />

territórios que por nós estão sendo investigados, seguindo também outra sugestão<br />

metodológica de Raffestin (1993, p. 146) no sentido de analisarmos as grandes<br />

políticas espaciais dos Estados em relação às suas realizações espaciais.<br />

Quando o poder público estabelece um limite num determinado espaço,<br />

criando territórios, quer sejam PA’s ou UC’s, ele o faz , como já dissemos, visando<br />

manifestar o seu poder numa área precisa. Parte-se de uma noção de limite que<br />

exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. Toma<br />

por base a representação do espaço proposta pela Cartografia Moderna, que é<br />

baseada em três elementos fundamentais: o pl<strong>ano</strong>, a reta e o ponto. Não considera<br />

que esse jogo estrutural transcende os objetos representados porque “o espaço<br />

só existe em função dos objetivos intencionais do ator (RAFFESTIN, 1993, p.<br />

147)”. O que se produz na realidade não são territórios propriamente ditos, são<br />

imagens territoriais que podem ser tantas quantos objetivos intencionais diferentes<br />

houver. Desse modo, torna-se possível compreender porque podem ser criadas<br />

imagens territoriais aparentemente antagônicas do ponto-de-vista do uso dos<br />

recursos, como PA e UC, num mesmo espaço.<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

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O (des)encontro entre a reforma agrária e a problemática<br />

ambiental<br />

A discussão em torno do conflito entre questão agrária e a problemática<br />

ambiental teve início a partir da crítica ambiental à Revolução Verde, e culminou<br />

com a sobreposição de áreas protegidas e projetos de assentamento de reforma<br />

agrária em determinados ecossistemas amazônicos e de Mata Atlântica.<br />

Essa industrialização da agricultura é exatamente o que se<br />

chama comumente de ‘penetração’ ou ‘desenvolvimento<br />

do capitalismo no campo’. O importante de se entender é<br />

que dessa maneira é que as barreiras impostas pela natureza<br />

à produção agropecuária vão gradativamente sendo<br />

superadas. É como se o sistema capitalista passasse a<br />

‘fabricar’ uma natureza que fosse adequada à produção<br />

de maiores lucros. Assim, se uma determinada região é<br />

seca, tome lá uma irrigação para resolver a falta de água;<br />

se é um brejo, lá vai uma draga resolver o problema do<br />

excesso de água; se a terra não é fértil, aduba-se; e assim<br />

por diante (SILVA, 1994, p. 14).<br />

O retorno a modos tradicionais de produção sob o emblema da<br />

possibilidade de se produzir produtos mais saudáveis e ecologicamente corretos,<br />

em resposta aos d<strong>ano</strong>s ambientais provocados pela Revolução verde, se torna<br />

“elitista” porque produz menos produtos e produzindo menos, eleva os preços e<br />

impossibilita o acesso de milhares de pessoas ao bem. Dessa forma, Grazi<strong>ano</strong> faz<br />

uma crítica ao ambientalismo “xiita“ e utópico, uma vez que o problema não é a<br />

tecnologia mas sim a forma como é apropriada aos interesses dos grandes capitais.<br />

Associar tecnologia e poder e querer derrubar o poder, destruindo a tecnologia é<br />

uma utopia, uma vez que segundo M. Foucault, o poder está espalhado em toda a<br />

teia da sociedade.<br />

As políticas agrárias e as políticas ambientais são hoje temas cada vez mais<br />

interligados, sobretudo nos Estados da chamada Amazônia. Ambas são estruturadas<br />

no âmbito do Governo Federal, uma na Política Nacional de Reforma Agrária e a


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

outra na Política Nacional de Meio Ambiente, que embora na prática por vezes<br />

pareçam políticas concorrentes, deveriam ser complemantares (INCRA/MG, 2000,<br />

p. 9).<br />

A legislação ambiental recente, transcrita nas Resoluções do CONAMA 7<br />

que tratam do licenciamento ambiental tratam os projetos de assentamento do mesmo<br />

modo que uma empresa mineradora, uma hidrelétrica ou um grande<br />

empreendimento agropecuário, como uma atividade potencialmente causadora de<br />

impacto ambiental, como já dissemos anteriormente, dando a entender que há uma<br />

incompatibilidade, do ponto de vista jurídico, de tal política social e a preservação<br />

do meio ambiente. Porém, existe embutida na política de Reforma Agrária uma<br />

preocupação ambiental que se manifesta no fato de que a “utilização adequada dos<br />

recursos naturais e a preservação do meio ambiente são requisitos constitucionais<br />

determinantes do cumprimento da função social da propriedade rural” (INCRA/<br />

MG, 2000, p. 11). Desse modo, sinaliza-se para uma incompatibilidade entre as<br />

políticas agrárias e ambientais que em essência não deveriam existir.<br />

Art. 2º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à<br />

propriedade da terra, condicionada pela sua função social,<br />

na forma prevista nesta lei.<br />

§ 1º A propriedade da terra desempenha integralmente a<br />

sua função social quando, simultaneamente:<br />

favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores<br />

que nela labutam, assim como de suas famílias;<br />

mantém níveis satisfatórios de produtividade;<br />

assegura a conservação dos recursos naturais;<br />

observa as disposições legais que regulam as justas relações<br />

de trabalho entre os que a possuem e a cultivam8 .<br />

A partir destas questões, a discussão evoluiu para a possibilidade de se<br />

implantar uma espécie de “capitalismo domesticado” tecnicamente denominado de<br />

desenvolvimento sustentável, onde se pretende tratar a questão de desenvolvimento<br />

articulada à conservação dos recursos naturais, sobretudo os não renováveis.<br />

7 RESOLUÇÃO CONAMA n. 001/86 e n. 237/97.<br />

8 LEI 4.504/64 – Estatuto da Terra.<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

Porém se adotarmos como estratégia metodológica perceber as articulações<br />

deste aparente conflito a partir da análise das políticas regionais, poderemos obter<br />

pistas importantes no sentido de compreender a complexidade do mundo<br />

contemporâneo num momento em que as relações Estado e região parecem obsoletas<br />

e que o global e o local é que se tornam as escalas privilegiadas das análises.<br />

Com a tecnologia de satélites que nos permitiu ver a Terra de fora, tomouse<br />

consciência da unidade do planeta e que o seu todo era de responsabilidade<br />

comum, uma vez que qualquer d<strong>ano</strong> em quaisquer uma de suas partes poderia<br />

comprometer a sobrevivência do todo.<br />

Do mesmo modo, destacou-se a Amazônia Sul-Americana como uma<br />

imensa área verde que pode corresponder a: “1/20 da superfície do planeta, 2/5<br />

da América do Sul, 1/5 da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas<br />

mundiais de florestas latifoliadas, e somente 3,5 milésimos da população mundial”<br />

(BECKER, 1997, p. 420), se tornou o grande desafio ecológico no sentido da<br />

“sobrevivência da humanidade” e do planeta e de “valorização do capital natural”.<br />

A grande fronteira nacional assume um novo papel estratégico, agora não<br />

mais em termos apenas nacionais, mas se transforma num campo de investigação<br />

vital para todo mundo. Impõe-se ao Brasil uma nova forma de se relacionar com<br />

a região e de redimensionar suas políticas regionais. Tal política regional<br />

[...] sintetiza de um lado as intensas e rápidas mudanças<br />

do sistema capitalista em curso no final do milênio, e, por<br />

outro lado, o esgotamento do modelo nacionaldesenvolvimentista<br />

dirigido pelo Estado brasileiro nos<br />

últimos cinqüenta <strong>ano</strong>s. Política que revela claramente o<br />

caráter interconectado das arenas políticas nacional e<br />

internacional e a mudança no papel do estado e da<br />

sociedade (BECKER, 1997, p. 422).<br />

Embora pareça baseada na sensação de ameaça à sobrevivência da<br />

humanidade, a politização da natureza se dá mesmo em função do novo modo<br />

de produção, com uma nova divisão territorial do trabalho em escala planetária o<br />

que vem gerando uma nova geopolítica.


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

Há uma espécie de zoneamento em escala planetária onde se identificam<br />

áreas de indústria e de agricultura convencionais, áreas de inovação tecnológica e<br />

áreas a serem preservadas, como a Amazônia. A Amazônia é vista na nova ordem<br />

como reserva de valor, uma forma de controlar o capital natural para o futuro. “Os<br />

países centrais, detentores da tecnologia, pressionam sob diversas formas os países<br />

periféricos detentores da natureza a preservá-la segundo um padrão de<br />

desenvolvimento sustentável cujas bases, contudo, não estão claramente definidas”<br />

(BECKER, 1997, p. 424).<br />

Um componente importante que aparece no processo de politização da<br />

natureza é a agregação internacional que faz concessões com o intuito de pressionar<br />

os países periféricos.<br />

Em resposta às pressões externas e internas, o Estado<br />

brasileiro altera sua política territorial, nela introduzindo a<br />

variável ambiental. Toma uma série de medidas que se<br />

sucedem rapidamente, culminando com a criação do<br />

IBAMA (1989) e do próprio Ministério do Meio Ambiente<br />

e da Amazônia Legal (BECKER, 1997, p. 426).<br />

A partir da consolidação da Cooperação Internacional como estratégia rumo<br />

ao chamado “desenvolvimento sustentável” na Amazônia, dois grandes Programas<br />

se destacam: 1) O Programa Nacional do Meio Ambiente (PNMA 1990/1991) que<br />

prioriza os ecossistemas Pantanal, Costeiro e a Mata Atlântica; e o 2) O Programa<br />

Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7 1990/1991), “por<br />

ação conjunta do Governo Brasileiro, do Grupo dos Sete (G7), uma Comissão da<br />

Comunidade Européia e Organizações não-Governamentais (ONG’s), que atuam<br />

sobretudo na Amazônia, com investimentos previstos de U$ 280 milhões, parte<br />

através de um fundo (mais ou menos 20%), parte correspondendo à contrapartida<br />

brasileira” (BECKER, 1997, p. 427).<br />

Ambos os programas, sobretudo o PPG7 no que se refere à Amazônia<br />

apesar de funcionarem como um poderoso instrumento de desregulação do estadonação<br />

em função da precisão de seus objetivos, preservar a biodiversidade e conter<br />

os desmatamentos, têm a grande virtude de reconhecer a sociedade civil, através das<br />

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Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

ONG’s como novo ator no cenário internacional e nacional e como parceiros<br />

importantes no processo de mudança.<br />

Na Amazônia, a “economia de fronteira” teve seu auge durante o regime<br />

militar (1964-1985) onde o paradigma de progresso é entendido como crescimento<br />

e prosperidade infinitos baseados na exploração dos recursos naturais entendidos<br />

também como infinitos (BECKER, 1997, p. 429).<br />

Desse modo, o Estado impôs sobre o território uma malha de duplo<br />

controle, técnico e político através de um conjunto de programas e pl<strong>ano</strong>s<br />

governamentais. O Estado fez da fronteira um instrumento de seu crescimento e<br />

consolidação, porém, estendeu suas funções empresariais e regulatórias para além da<br />

sua capacidade de controlá-las transformando a fronteira também em “expressão da<br />

sua vulnerabilidade”.<br />

Assim sendo, com a tomada de consciência da finitude dos recursos naturais<br />

e da necessidade de preservá-los para as gerações futuras e com o fortalecimento da<br />

cooperação internacional enquanto instrumento de pressão geopolítica, o vetor tecnoindustrial<br />

(VTI), que se estruturou com base na mobilização de recursos naturais<br />

(minérios e madeiras) tende a se enfraquecer. Com isso, toma fôlego o vetor tecnoecológico<br />

que envolve projetos preservacionistas e conservacionistas (BECKER,<br />

1997, p. 432).<br />

A cooperação internacional junto às Igrejas, às ONG’s e a comunidades<br />

locais, privilegiam a criação de Unidades de Conservação por meio de uma pressão<br />

sobre o estado via financiamentos produzindo territórios e políticas que vão se<br />

sobrepor aqueles herdeiros da economia de fronteira como são a política agrária na<br />

Amazônia e seus Projetos de Assentamento.<br />

(Re)produzindo o espaço<br />

Planejadores das políticas públicas, que produzem territórios, como PA’s e<br />

UC’s, ao deseconsiderar as possibilidades objetivas das populações locais para<br />

intervirem no estabelecimento e implantação desses territórios, inventam realidades


Kátia H. S. C. Schweickardt<br />

espaciais que os leva a se afastarem dos objetivos a que tais empreendimentos se<br />

destinam.<br />

Ao executar tais planejamentos é preciso não apenas considerar o traçado<br />

cartográfico ou as características biofísicas da área em questão. É preciso ter coragem<br />

para se aproximar da noção de espacialidade, qualidade intrinsecamente social da<br />

produção do espaço. A espacialidade trata do espaço socialmente produzido, dentro<br />

e fora do lugar. Assim como não existe sociedade a-espacial, não existe também<br />

espaço inum<strong>ano</strong>.<br />

Embora as determinações de diversas ordens como os programas<br />

governamentais nacionais e/ou o processo de globalização estejam relacionados à<br />

internacionalização dos lugares, das coisas, das idéias e dos indivíduos, os lugares<br />

contêm especificidades e peculiaridades enquanto espaço vivido por todos, que muitas<br />

vezes escapam às determinações mais gerais da história.<br />

Hoje, o que é federativo no nível mundial não é uma<br />

vontade de liberdade. Mas de dominação, não é o desejo<br />

de cooperação mas de competição, tudo isso exigindo um<br />

rígido esquema de organização que atravessa todos os<br />

rincões da vida humana. Com tais desígnios, o que globaliza<br />

falsifica, corrompe, desequilibra, destrói [...] Nestas<br />

condições, o que globaliza separa; é o local que permite a<br />

união [...] É pelo lugar que revemos o Mundo e ajustamos<br />

a nossa interpretação, pois, nele, o recôndito, o permanente,<br />

real triunfam, afinal, sobre o movimento, o passageiro, o<br />

imposto de fora.<br />

O espaço aparece como um substrato que acolhe o novo,<br />

mas resiste às mudanças, guardando o vigor da herança<br />

material e cultural, a força do que é criado de dentro e<br />

resiste, força tranquila que espera, vigilante, a ocasião e a<br />

possibilidade de se levantar (SANTOS, 1996, p. 36-37).<br />

O lugar resiste à homogeneização inerente à globalização e esta resistência se<br />

expressa no cotidi<strong>ano</strong>. O cotidi<strong>ano</strong> simplesmente é e está; é também um campo de<br />

renovação simultânea e receptáculo da passividade, da receptividade enfadonha.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

<strong>12</strong>3


<strong>12</strong>4 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Políticas agrárias e políticas<br />

ambientais...<br />

Possui a dimensão da riqueza não apenas material, concentrada nas mãos de poucos,<br />

mas também a dimensão do virtual que reproduz a vida.<br />

É no lugar do cotidi<strong>ano</strong> que as relações de humanizam e se constróem as<br />

possibilidades, quer sejam elas no sentido da “conservação da natureza” e de seus<br />

recursos naturais renováveis, quer sejam no sentido da implantação de “Projetos de<br />

Desenvolvimento Regional Sustentáveis”, ou não.<br />

Referências<br />

BARRIOS, Sônia. A produção do espaço. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria<br />

Adélia (Org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986.<br />

BECKER, Bertha K. Novos rumos da política regional: por um desenvolvimento<br />

sustentável da fronteira amazônica. In: A geografia política do desenvolvimento sustentável.<br />

Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.<br />

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.<br />

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.<br />

INCRA/MG. Reforma Agrária e Meio Ambiente – Seminário Interno – Metodologia para<br />

tratamento da Questão Ambiental no processo de Reforma Agrária. Brasília: INCRA, 2000.<br />

SANTOS, Milton. Técnica Espaço e tempo. São Paulo: HUCITEC, 1996.<br />

_______. A natureza do espaço. São Paulo: HUCITEC, 1997.<br />

SILVA, José Grazi<strong>ano</strong>. O que é questão agrária. 18. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.


André Jun Miki<br />

Políticas energéticas no Estado do Amazonas:<br />

implicações e questões em face do meio ambiente<br />

Resumo<br />

André Jun Miki 1<br />

Questionar a geração de energia e suas implicações políticas em<br />

face das sustentabilidades econômica, ambiental e social, significa verificar<br />

que as políticas do Estado nacional e local para a produção de energia<br />

elétrica ainda valorizam o modelo monomatricial implantado na década<br />

de 60 com a geração de energia pelas hidrelétricas.<br />

Palavras-chave<br />

Abstract<br />

Geração de energia; Amazonas.<br />

To question the generation of energy and its implications political<br />

face to the economic, environmental and social sustainability, it means to<br />

verify that the politics of the national and local State for the production<br />

1 Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, com área de concentração em Política e<br />

Gestão Ambiental, pelo Centro de Ciências do Ambiente – CCA, da Universidade Federal do Amazonas.<br />

Professor da Universidade do Estado do Amazonas.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

<strong>12</strong>5


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

of electric energy still value an only model. I model this implanted in the decade of<br />

60 with the generation of energy by the hidro power plants.<br />

Keywords<br />

Introdução<br />

Generation of energy; Amazonas.<br />

A geração de energia elétrica é um tema muito discutido na nossa atualidade.<br />

Todas as repercussões envolvem não apenas questões técnicas, mas condiz com<br />

preocupações sócio-ambientais, convergindo com a implementação de políticas<br />

públicas. Mundialmente todos necessitam de energia, tanto para as atividades do<br />

cotidi<strong>ano</strong> até para os mais sofisticados processos de produção. O homem diante de<br />

tal necessidade vem construindo historicamente diversas formas de produzir a energia<br />

elétrica.<br />

Antes o processo era feito através do petróleo e do gás como combustíveis<br />

de iluminação. Em 1878, Tomas Edison trouxe a possibilidade econômica de<br />

utilização da energia elétrica com a sua invenção enquanto sistema completo (geração<br />

– transmissão – distribuição):<br />

<strong>12</strong>6 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

O sistema de Edison era, antes de tudo, um concorrente<br />

das redes de distribuição de gás. Todos os seus cálculos,<br />

com efeito, eram realizados com base no preço de venda<br />

do gás nas cidades, para um serviço idêntico, e não a partir<br />

de um preço de venda que incluísse os custos dos diferentes<br />

fatores. A mesma preocupação leva à descoberta do<br />

filamento de alta resistência, sem o qual calculava suas<br />

despesas de funcionamento, permaneceriam demasiado<br />

elevadas em comparação com o gás (DEBEIR; DELÉAGE;<br />

HÉMERY, 1993, p. 180).


André Jun Miki<br />

As projeções econômicas de Tomas Edison tomam fôlego quando<br />

politicamente o inventor se associa a políticos e banqueiros como o conselheiro<br />

econômico Grosvernor Lowrey, o banqueiro nova-iorquino J. Pierpont Morgan e os<br />

irmãos Siemens (1881). Daí foi criada a Edison General (uma associação técnicofinanceira)<br />

com a finalidade de dar prosseguimento às pesquisas de Edison e implementar<br />

mundialmente todo o sistema de energia elétrica. Depois dessas iniciativas, o sistema<br />

de Tomas Edison foi aperfeiçoado e adaptado tanto nos EUA quanto na Europa.<br />

Houve a modificação de toda a estrutura do sistema energético global. As maiores<br />

resistências encontravam-se nas indústrias, cujos interesses estavam centralizados no<br />

carvão. A invenção do motor a diesel veio consolidar tanto o setor de energia elétrica,<br />

assim como emergiram as companhias de petróleo como potências imperialistas:<br />

No contexto geral dos <strong>ano</strong>s 1930, a eletricidade revela-se<br />

como a forma de energia própria do novo regime de<br />

regulagem do sistema capitalista. Neste sentido, os resultados<br />

de sua implantação não aparecem de imediato, mas após<br />

1945 ela se firma como um dos componentes essenciais da<br />

alternativa à crise do regime de acumulação anterior: de certa<br />

forma, a eletricidade é uma das energias do ‘fordismo’<br />

(DEBEIR; DELÉAGE; HÉMERY, 1993, p. 192).<br />

Tudo demonstra que a energia elétrica nasceu no sistema capitalista, veio<br />

consolidá-lo em suas várias reestruturações, sendo um componente novo, ou seja, do<br />

século 20 e se confirma na entrada do século 21 com uma nova preocupação: os<br />

impactos sócio-ambientais na produção de energia. Tais perspectivas levantam diversas<br />

questões, tanto mundiais quanto locais. Isso significa que o estudo sobre o tema energético<br />

recoloca novos enfoques quanto às viabilidades econômicas, ambientais e sociais da<br />

produção e distribuição da energia elétrica.<br />

A energia e as modificações dos espaços construídos<br />

A partir da década de 30, a sociedade mundializada já possuía condições<br />

objetivas para uma política de desenvolvimento pautada no modelo hidrelétrico, a<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

<strong>12</strong>7


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

exemplo do Estado do Tennesse, nos EUA, onde se implementou a TVA (Tennesse<br />

Valley Authority). A experiência de Artur Ernest Morgan (1933-1935) modificou o<br />

espaço preexistente da Cidade dos Vales, no Tennessee, com a construção de grandes<br />

empreendimentos hidrelétricos, modificando um cenário de pobreza, para um cenário<br />

de prosperidade, cobrindo partes dos setes Estados: Alabama, Geórgia, Kentucky,<br />

Mississippi, Carolina do Norte, Tennessee e Virgínia.<br />

Lugares estes, que antes não possuíam o menor suporte de sobrevivência para<br />

a vida humana, foram transformados em cenários de prosperidade. A modificação<br />

deste espaço com o uso da eletricidade propiciou não só o desenvolvimento industrial,<br />

mas tornou-se um forte pólo irradiador, dada a modernidade em diversas áreas, que<br />

envolveu técnica de produção, comodidade e conforto. O exemplo do Tennesse<br />

configurou na repartição do trabalho vivo e morto, que aconteceu principalmente na<br />

agricultura (transformando o espaço em um pólo agroindustrial). Modificaram-se<br />

também as relações da divisão territorial do trabalho:<br />

<strong>12</strong>8 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

A divisão social do trabalho é freqüentemente considerada<br />

como a repartição (ou no Mundo, ou no Lugar) do trabalho<br />

vivo. Essa distribuição, vista através da localização dos seus<br />

diversos elementos, é chamada de divisão territorial do<br />

trabalho. Essas duas formas de considerar a divisão do<br />

trabalho são complementares e interdependentes. Esse<br />

enfoque, todavia, não é suficiente, se não levarmos em conta<br />

que, além da divisão do trabalho vivo, há uma divisão<br />

territorial do trabalho morto. A ação humana tanto depende<br />

do trabalho vivo como do trabalho morto. O trabalho morto,<br />

na forma de meio ambiente construído (built enviromment),<br />

tem um papel fundamental na repartição do trabalho vivo<br />

(SANTOS, 1997, p. 1<strong>12</strong>).<br />

Semelhante a TVA, o Estado brasileiro fundou uma política hidroenergética<br />

para o Brasil. Dois exemplos são importantes para a compreensão deste quadro. O<br />

primeiro exemplo no Nordeste, através da Companhia Hidrelétrica do São Francisco –<br />

Chesf que, até os dias de hoje, traz implementações de desenvolvimento na região. E o<br />

segundo exemplo, abrangendo a Amazônia brasileira (Pará, Amazonas, Mato Grosso,


André Jun Miki<br />

Rondônia, Roraima, Acre, Amapá, Tocantins e Maranhão), foi implementado através<br />

da Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte. Tanto a Chesf quanto a<br />

Eletronorte possuem as seguintes características:<br />

Principais características entre a Chesf e Eletronorte<br />

CHESF ELETRONORTE<br />

Potencial hidráulico comprovado desde estudos de<br />

1859 (D. Pedro II), sendo criada em 1950 (Getúlio<br />

Vargas) e inaugurada em 1955, gerando 184<br />

megawatts com a Hidrelétrica de Paulo Afonso I.<br />

O complexo energético considerado o maior e<br />

mais moderno em geração de energia elétrica<br />

do país, com 10.704MW de potência nominal.<br />

Potencial hidráulico era desconhecido até a<br />

década de 70, sendo criada em junho de 1973,<br />

como parte da implantação dos Grandes Projetos<br />

com o objetivo da integração da região com os<br />

centros industrializados do país.<br />

Hoje seu potencial é avaliado em 137 mil<br />

megawatts: 4% são aproveitados; 35%<br />

inventariados e 61% estão estimados.<br />

Modificações espaciais dos grandes projetos para a Amazônia<br />

Na Amazônia, a história do desenvolvimento não foi tão frutífera. A implantação<br />

dos grandes projetos é inaugurada com a construção da rodovia Belém–Brasília, com o<br />

objetivo da integração da região com os centros industrializados do país:<br />

Entre 1965-85 o regime militar, com o seu projeto de rápida<br />

modernização da sociedade e do território, levou ao auge a<br />

economia de fronteira. Para tanto, o Estado desenvolveu<br />

uma tecnologia espacial, impondo sobre o território uma<br />

malha de duplo controle, técnico e político – ‘a malha<br />

programada’, constituída do conjunto de programas e pl<strong>ano</strong>s<br />

governamentais –, e abriu múltiplas fronteiras, a maior delas<br />

sendo a Amazônia, considerada prioridade para estabelecer<br />

o equilíbrio geopolítico interno e externo (BECKER, 1997,<br />

p. 429).<br />

Após 30 <strong>ano</strong>s da experiência pela Tennesse Valley Authority, o Brasil deixa<br />

de implementar nos grandes projetos na Amazônia as mesmas características do<br />

período New Deal e evidenciadas no Nordeste com a Chesf. Os grandes projetos<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

<strong>12</strong>9


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

tiveram sempre por argumento principal o Estado por fornecedor de uma infraestrutura<br />

para continuar o processo de industrialização, porém na região amazônica<br />

essa infra-estrutura deixou a desejar.<br />

A construção de hidrelétricas entra neste contexto, já que a eletricidade traria<br />

elementos para os empreendimentos industriais de grande porte, principalmente<br />

voltados para as atividades mineradoras. O atendimento do suprimento de energia<br />

elétrica teve sempre a sua preocupação central na extração e beneficiamento de<br />

diversos minerais, principalmente para a produção do alumínio. Esse tipo de<br />

integração da região caracterizou-se pela abertura ao capital estrangeiro direcionada<br />

para a pesquisa e exploração de recursos naturais, com subvenções públicas.<br />

A construção de uma configuração espacial de controle técnico e político<br />

pela criação de órgãos federais representa a expansão do aparelho estatal, ou seja, a<br />

produção do espaço político estatal. É a formação de uma “Malha Programada”,<br />

tendo o Estado como o único elemento transformador do desenvolvimento para<br />

superar o subdesenvolvimento. Tal quadro refere-se também à reestruturação de<br />

novas centralidades, como<br />

130 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

[...] centros de controle e poder político e a rede hierarquizada<br />

de localidades centrais, visto que as diversas frações da classe<br />

dominante, comerciantes, proprietários fundiários e industriais,<br />

as diversas instituições dos Aparelhos Repressivos e<br />

Ideológicos do Estado, bem como os executivos do Capital<br />

Estrangeiro, exercem um poder que é diferenciado, gerando<br />

uma divisão territorial do poder, de acordo com a localização<br />

no espaço, de onde adquirem e exercem esse poder, isto é,<br />

de acordo com a importância das localidades centrais<br />

(CORRÊA, 1997, p. 31).<br />

Nesse aspecto, a modernização ocupou um espaço tridimensional,<br />

modificando as antigas espacialidades e centros urb<strong>ano</strong>s. Neste sentido, as<br />

modificações espaciais dos grandes projetos para a Amazônia podem ser enumeradas<br />

da seguinte forma:<br />

• Abertura da fronteira agrícola amazônica;<br />

• Pesquisa e exploração dos recursos naturais situados nos campos da mineração;


André Jun Miki<br />

• Energia. A necessidade de produzir-se energia elétrica em grande escala de<br />

forma abundante e barata para atender o fomento das empresas mineradoras, para os<br />

processos de lavra e fundição em grandes sistemas de alto-forno de indução.<br />

A construção de hidrelétricas entra neste contexto, já que a eletricidade traria<br />

elementos para os empreendimentos industriais de grande porte, principalmente voltados<br />

para as atividades mineradoras (principalmente para a produção do alumínio).<br />

Os critérios técnicos e ideológicos que levaram à implantação do modelo<br />

hidrelétrico para a Amazônia são explicados pelo aparelho estatal da seguinte forma:<br />

• Existência de cursos de água perenes (oriundos de extensas bacias hidrográficas);<br />

• Elevados índices pluviométricos;<br />

• A divulgação de utilização de uma energia renovável e perene;<br />

• Tecnologia de construção consolidada, com diversos modelos de plantas no<br />

mundo todo;<br />

• Baixos custos de operação, o que compensariam os custos de implantação e<br />

distribuição;<br />

• Prolongado tempo para manutenção. Seu maquinário chega a um tempo de<br />

cinco <strong>ano</strong>s;<br />

• Grande subvenção da participação da moeda nacional para o seu elevado<br />

custo de construção e pré-operacionalização.<br />

As desvantagens se encontram cristalizadas nos múltiplos impactos ambientais<br />

que resultam da construção das barragens, que repercutem nas políticas territoriais na<br />

rede urbana para Amazônia, devido à economia de fronteira:<br />

• Movimentação de grandes massas de terras;<br />

• Derrubada de grandes áreas de florestas (devido à baixa declividade das<br />

bacias);<br />

• Deslocamento da população local (pouca ou nenhuma condição de adaptação<br />

nas regiões para onde foram deslocadas);<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

131


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

• Geração de gases de Efeito Estufa (CO 2 e CH 4 );<br />

• Grande fermentação anaeróbica de matéria vegetal submersa dos<br />

reservatórios (devido à diminuição da velocidade dos rios em trechos de barragens);<br />

• Possibilidade de disseminação de doenças como malária, amebíase, cólera<br />

e hepatite;<br />

• Problemas sérios de operação do reservatório (aci<strong>dez</strong> da água, material<br />

sólido na água);<br />

• Encurtamento do período de manutenção das pás das turbinas hidráulicas<br />

por efeito da corrosão;<br />

• Custos de transmissão elétrica e o impacto ambiental pela derrubada de<br />

florestas para a construção dessa transmissão;<br />

• Elevada variação na disponibilidade da potência elétrica nos períodos de<br />

seca e chuva (variação no abastecimento de energia de acordo com a sazonalidade);<br />

• Elevado tempo de construção das obras civis e elétricas, aliado a altos<br />

custos;<br />

• Construção de subestações de alta-tensão e sistemas de proteção (em<br />

alguns casos, há necessidade do uso de Conversores Estáticos – High Voltage Direct<br />

Current – HVDC).<br />

A sustentabilidade energética do modelo termelétrico<br />

O desafio para a sociedade moderna é encontrar uma via de desenvolvimento<br />

que apresente menores impactos ambientais. Dessa forma, o modelo energético de<br />

desenvolvimento sustentável para a Amazônia deve seguir um modelo plurimatricial,<br />

de acordo com as peculiaridades de cada microrregião, incorporando incertezas nas<br />

alternativas de suprimentos energéticos descentralizados, compatibilizando a<br />

expectativa de oferta da fonte de energia primária e respeitando os diversos ambientes<br />

naturais amazônicos.<br />

132 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


André Jun Miki<br />

Não se deve seguir um modelo monomatricial, um modelo único de fonte<br />

geradora seja para toda a Amazônia, ou mesmo para o Estado do Amazonas. Há<br />

projeções promissoras para a produção de energia com as termelétricas de ciclo<br />

combinado. A queima do combustível fóssil pode ter impacto reduzido por técnicas<br />

de catalisação e gaseificação integrada de combustíveis sólidos, onde há a retirada<br />

dos produtos nocivos, como os gases óxido de enxofre (SOX) e o óxido nitroso<br />

(NOX), que são transformados em gesso e enxofre. O gesso pode ser utilizado na<br />

área de construção civil, e o enxofre nas indústrias de vulcanização. Neste aspecto, as<br />

termelétricas acionadas por turbinas a gás possuem uma característica muito<br />

importante, que é a adequação a uma ampla faixa de combustíveis, sejam combustíveis<br />

sólidos, liquefeitos e/ou gasosos, oriundos de rejeitos industriais ou da biomassa,<br />

permitindo uma flexibilidade na energia de acionamento mecânico para gerador<br />

elétrico, não sendo a geração de eletricidade comprometida como nas hidrelétricas<br />

nos períodos de estiagem, ou por um fenômeno agravante da sazonalidade climática.<br />

Isso permite que as termelétricas possuam ainda as unidades de co-geração, em<br />

ciclo combinado com o uso de caldeiras de recuperação térmica, com diferentes<br />

níveis de pressão de vapor, acionando um segundo estágio de geração de eletricidade.<br />

A sustentabilidade da termelétrica, como uma viabilidade energética, possui<br />

uma proposta de equacionamento flexível com as diversas variáveis no pl<strong>ano</strong><br />

energético, espacial, econômico e social. As termelétricas possuem melhor adequação<br />

da planta térmica em uma perspectiva espacial, proporcionando o mínimo de<br />

transformações no cenário ambiental e na esfera econômica e social. Sua construção<br />

é sustentável pela alta versatilidade da conversibilidade de energia, tendo maior<br />

adequação aos centros de carga e menor comprometimento pelo fator de localidade<br />

espacializada.<br />

A sustentabilidade técnico-econômico-ambiental está ligada à aplicação das<br />

políticas públicas energéticas. A viabilização de um desenvolvimento que proporcione<br />

tal sustentabilidade, na utilização das termelétricas convencionais de ciclo aberto,<br />

assim como na sua repotencialização em plantas de ciclo combinado, é apenas uma<br />

solução paliativa de progressão redutora e opção equivocada. Quando a absorção<br />

de um mercado estabelecido em suas bases energéticas substitui as fontes de energia<br />

tradicional, sem buscar diversificar os seus recursos energéticos, ocorre o esgotamento<br />

dessas bases.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

133


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

Para que a sustentabilidade dê certo, não podemos perder de vista o uso<br />

racional da energia elétrica como política de conservação de energia. E não podemos<br />

aceitar perspectivas monomatriciais, ou seja, o modelo de uma única matriz energética,<br />

a exemplo do uso do gás natural, que expressa a sua finitude pela possibilidade de<br />

aumento de sua utilização na geração de energia termelétrica.<br />

As implicações econômicas da produção de eletricidade pelas<br />

eletricitiy incorporating<br />

A atuação das eletricitiy incorporating representadas pelos produtores independentes<br />

de energia é subvencionada pelo próprio poder público, no cenário das políticas públicas<br />

energéticas de âmbito nacional no Brasil e, em particular, no Estado do Amazonas. É<br />

uma evolução progressiva do engajamento das políticas públicas de desenvolvimento<br />

patrocinadas pelo Estado com o intuito de promover a modernização.<br />

Desde a década de 60, com a inclusão de capital estrangeiro para promover o<br />

desenvolvimento, ocorre a integração espacializada de uma malha de duplo controle:<br />

técnico e político. Ou seja, a chegada das eletricitiy incorporating é apenas uma extensão da<br />

continuidade temporal de um processo histórico, onde ocorre uma superposição<br />

ideológica, concebendo uma nova forma de apresentação e atuação de novos atores<br />

neste cenário de domínio político, com uma expressão cada vez mais ampliada desta<br />

nova forma de poder de caráter privado, de cunho empresarial e com a intervenção<br />

cada vez mais reformulada do Estado. É a reestruturação do poder de controle para<br />

reafirmar as necessidades das empresas transnacionalizadas, em firmes bases de operação<br />

com perspectiva de sustentabilidade, como forma de gestão para os mais diferentes<br />

problemas. Com isso, as suas atividades são intensificadas de forma mais cômoda e<br />

confortável e menos regulamentadas, sempre encontrando formas de escapar do<br />

controle nacional, ou de qualquer outro dispositivo normativo de conteúdo regulador.<br />

As empresas se estabelecem no país sem a necessidade da apresentação de<br />

uma planta energética ambientalmente correta. As concessões aos produtores<br />

independentes, através das licitações, acabam acontecendo sem uma prévia<br />

determinação sobre os padrões ambientais a serem adotados no fornecimento de<br />

134 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


André Jun Miki<br />

energia elétrica (Lei n. 9.074/95, com redação pela Lei n. 9.648/98). Isso é verificado<br />

em Manaus.<br />

Um ponto atraente para as eletricitiy incorporating (PIE’s) é o lucro, devido ao<br />

custo elevado que é cobrado pela energia elétrica gerada na nossa região. Nos EUA<br />

um megawatt/hora custa à população o equivalente a U$ 6,00, enquanto que no<br />

Amazonas a população paga U$ 35,00 por megawatt/hora. (Conforme pesquisa<br />

de campo na El Paso em nov/98). Outro ponto interessante (verificado em out/98)<br />

é que todo esse dinheiro é recebido pela El Paso, que não se responsabiliza por<br />

nenhum processo de tratamento de efluentes térmicos, tóxicos, assim como pela<br />

transmissão e distribuição desta energia, já que a sua única responsabilidade é somente<br />

pela geração de eletricidade. O que em seus países-núcleo não é mais admissível, na<br />

nossa região a El Paso veio como “salvadora” do caos de energia em Manaus. A<br />

operação é muito impactante. Nos seus países-núcleo, o equipamento trazido seria<br />

condenado. Lá há uma rígida exigência legal, tornando obrigatórios e necessários os<br />

sistemas de antipoluição. A população é consciente dos d<strong>ano</strong>s e os órgãos ambientais<br />

estão familiarizados e devidamente instrumentalizados para exigir, através de medições<br />

e análises confiáveis, com detecções precisas das emissões de gases, oriundos da<br />

queima de combustíveis fósseis, o tratamento adequado.<br />

Para a Manaus Energia (que é uma subsidiária integral da Eletronorte, que<br />

atende consumidores da capital do Amazonas e região), a principal vantagem de<br />

contratar-se um Produtor Independente de Energia (PIE) está na capacidade de<br />

ampliação do fornecimento de energia, sem a necessidade da concessionária em<br />

investir na construção e na reestruturação de centrais de geração. Depois de<br />

implantados, os PIE’s sofrem ajustamentos ambientais conforme exigências dos<br />

órgãos ambientais estaduais.<br />

As alternativas energéticas de produção de energia<br />

Tecnologicamente as alternativas energéticas estão presentes em diversas<br />

experiências para provar sua eficiência e sustentabilidade. Um exemplo que apresenta<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

135


Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

potencialidades alternativas para a zona urbana é a produção de alternativas energéticas<br />

através da reciclagem de lixo industrial como os resíduos de refinaria, pelo uso de<br />

processos de gaseificação integrada, em conjunto com o biogás pela grande<br />

disponibilidade de matéria orgânica produzida pelos habitantes domésticos. No<br />

entanto essa alternativa só seria viável se houvesse uma interligação com os resíduos<br />

domésticos para coletores únicos. Na cidade de Manaus essa alternativa não estaria<br />

disponível em curto prazo, pois 80% dos domicílios não estão ligados à rede de<br />

esgoto da cidade e o processo de biodigestão necessita de instalações especiais para<br />

o seu desenvolvimento. Porém o potencial existe e seria a alternativa mais acertada<br />

para a capital, pelo contingente populacional da cidade com 1.157.193 habitantes na<br />

sede (IBGE/96), onde estão compreendidos todos os rejeitos industriais e domésticos<br />

na zona urbana.<br />

Concernente à opção da energia elétrica gerada com a utilização de sistemas<br />

mistos de geração energética e potencializada por processos de co-geração (com a<br />

adição de módulos com caldeiras de recuperação térmica), já há no Amazonas a<br />

produção independente de combustível, com o uso do biogás produzido por<br />

resíduos de matéria orgânica como o bagaço da casca do guaraná (experiência esta<br />

realizada pelo Prof. Dr. Raimundo Santos na estrada AM-010), assim como a utilização<br />

de óleos vegetais alternativos acompanhados por um pl<strong>ano</strong> de manejo ambiental,<br />

com uma estimativa promissora de autonomia do combustível ecológico, como é o<br />

caso do projeto da Universidade Federal do Amazonas, na comunidade do Roque<br />

– médio Amazonas, com o uso do óleo de andiroba.<br />

Outra experiência importante pela sua sustentabilidade ambiental energética<br />

é o projeto implantado na reserva do rio Preto (RO), com 70 habitantes, onde o<br />

abastecimento de energia é feito por sistemas fotovoltaicos. Este sistema de células<br />

fotovoltaicas é bem aproveitado quando inexiste produção industrial ou uma grande<br />

densidade de habitantes que almeja a obtenção de eletricidade, sendo de grande<br />

relevância se utilizado em lugares com um pequeno contingente populacional, onde<br />

as cargas são constituídas basicamente de luminárias e equipamentos de baixa potência.<br />

Quanto aos aspectos ambientais da energia solar são praticamente nulos os impactos<br />

ambientais diretos. No entanto não se pode dizer o mesmo com os impactos<br />

ambientais indiretos, no processo de fabricação dos painéis fotovoltaicos baseados<br />

136 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


André Jun Miki<br />

na tecnologia do silício, onde há a utilização de materiais altamente tóxicos com<br />

fosfina, o que libera gases tóxicos.<br />

Considerações finais<br />

A política do governo do Estado do Amazonas volta as suas atenções<br />

para um megainvestimento: o gás natural. A dimensão da política pública de<br />

implantação do gás natural é uma fonte primordial de energia monomatricializada,<br />

que o Estado vê como uma solução de via única para o complexo problema da<br />

geração de energia no Amazonas.<br />

Tal situação reporta-nos a uma superposição do modelo hidroelétrico<br />

arquitetado por uma malha programada da década de 60, com a convergência de<br />

uma solução ímpar para geração de eletricidade por fontes de energia primária,<br />

com capacidade de renovabilidade, já que pelo entendimento correto sobre os<br />

recursos hídricos seria de uma fonte de energia primária durável, mesmo porque<br />

com as constantes alterações no meio ambiente, mudou-se a expectativa de alcance<br />

desta fonte considerada quase que infinita.<br />

Um dos grandes problemas consistiu nos desastres ambientais na nossa<br />

região com a implantação das hidrelétricas. Outro ponto a ser colocado é que o<br />

estado atual dos geradores das termelétricas no interior do Estado não comporta<br />

o sistema de produção com o uso do gás natural, seja pelas características das<br />

máquinas existentes e pelo tempo de vida de funcionamento das mesmas.<br />

Verifica-se que as políticas energéticas para o Estado do Amazonas<br />

desconsideram as realidades locais, ao impregnar uma política monomatricial para<br />

um Estado tão imenso e diverso quanto o nosso. Dessa forma, é necessário<br />

redefinir as políticas públicas energéticas, através de sistemas plurimatriciais que<br />

respeitem as realidades ambientais do Amazonas e possibilitem autonomia<br />

principalmente às populações interioranas, como: biodigestor; queima de óleo<br />

vegetal; PCH’s; pequenos geradores hidrocinéticos; e energia solar (painéis<br />

fotovoltaicos).<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

137


Referências<br />

Políticas energéticas no<br />

Estado do Amazonas...<br />

BECKER, Bertha K. A geografia política do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:<br />

UFRJ, 1997.<br />

CORRÊA, Roberto Lobato. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,<br />

1997.<br />

DEBEIR, Jean-Claude; DELÉAGE, Jean-Paul; HÉMERY, Daniel. Uma história da<br />

energia. Brasília: ED. UNB, 1993.<br />

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.<br />

138 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

Manaus ontem e hoje: transformações do<br />

espaço urb<strong>ano</strong> e memória popular 1<br />

Resumo<br />

Lucynier Omena Melo 2<br />

O presente trabalho busca descobrir, na Manaus de hoje, as bases<br />

pelas quais se dão as relações sociais no ambiente urb<strong>ano</strong>. A pesquisa foi<br />

desenvolvida a partir de um estudo de caso acerca das festas populares na<br />

cidade sob o prisma das obras de memórias de dois reconhecidos<br />

amazonenses: Thiago de Mello e Jefferson Péres. A opção pela comparação<br />

com a Manaus do passado deu-se pelo fato de a comemoração escolhida,<br />

uma festa junina, estando fundamentada na tradição e na repetição, mostrar<br />

com mais clareza os elementos que se perderam ou se modificaram no<br />

decorrer do tempo.<br />

Palavras-chave<br />

Manaus; cidade; rua; cotidi<strong>ano</strong>; festa.<br />

1 Trabalho de aproveitamento da disciplina A Cidade e o Urb<strong>ano</strong> na Amazônia, do Programa de Pós-graduação<br />

em Sociedade e Cultura na Amazônia – ICHL/UFAM, 2001.<br />

2 Bacharel em Ciências Sociais pela UFAM, Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na<br />

Amazônia da UFAM.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

139


Abstract<br />

Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

This work tries to discover in the modern Manaus under which bases the<br />

social relationships are carried out within the urban area. The research was established<br />

on the written memories of two recognized amazonenses, Thiago de Mello and<br />

Jefferson Péres. The option for the comparison with the cith of the past is due to the<br />

fact that the chosen celebration – a street party from june festivities – is based on<br />

tradition and repetition, showing more clearly the elements which have been lost or<br />

modified by the time.<br />

Keywords<br />

Introdução<br />

Manaus; city; street; routine; party.<br />

O tema escolhido para este artigo é a cidade e nela a festa. A festa não só<br />

como lazer, mas também como a utilização de um espaço público: a rua, por um<br />

grupo de moradores, no sentido de integração, de envolvimento, de apropriação de<br />

um espaço.<br />

Inúmeros autores trabalham a cidade e diversos são os conceitos que<br />

abrangem o termo. Ela pode ser definida como “o lugar da realização de um projeto<br />

de vida basicamente por meio da possibilidade de emprego estável, da aquisição da<br />

casa própria, do acesso à escola e aos serviços de saúde” (MAGNANI, 1998, p. 23).<br />

Contudo, ela não significa apenas o lado material e prático da vida. No espaço<br />

urb<strong>ano</strong> misturam-se razões e emoções, dramas e comédias, o sagrado e o prof<strong>ano</strong>,<br />

a vida e a morte. É o palco onde existe “uma materialidade de espaços construídos<br />

e vazios, assim como é um tecido de relações sociais [...]” (PESAVENTO, 1999, p.<br />

32). Por outro lado, “é também o lugar de morar, de trabalhar, de circular, e de<br />

cuidar do corpo e do espírito” (OLIVEIRA, 2000, p. 9). Compreender a cidade é<br />

perceber as múltiplas faces que constroem a sua totalidade, que definem, delimitam<br />

e dão identidade a seu espaço. A cidade é uma obra e “não há obra sem uma<br />

140 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

sucessão regulamentada de atos e de ações, de decisões e de condutas, sem mensagens<br />

e sem códigos [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 48).<br />

A cidade escolhida para análise é Manaus, no período em que ocorre o que<br />

se convencionou chamar de festas juninas. Manaus possui os problemas característicos<br />

de seu tempo, e que são comuns às cidades que se introduzem no mundo da fronteira<br />

virtual, do rompimento de valores. A seu modo, procura resgatar sua identidade e<br />

descobrir qual o seu rosto. O que se percebe de imediato é a existência de um semnúmero<br />

de problemas, tanto de ordem social quanto individual. Incrustada na<br />

imensidão dos rios e florestas, palco de momentos de esplendor e isolamento,<br />

mesclada etnicamente, Manaus aparentemente possui as características do urb<strong>ano</strong>,<br />

com os problemas e estilos de vida característicos da cidade no sentido moderno<br />

do termo, sem ter ainda se desfeito totalmente de suas raízes rurais, nos valores, nas<br />

crenças, sobretudo no modo de interagir socialmente.<br />

O ponto de partida do trabalho é a leitura de duas obras de memórias:<br />

Manaus, amor e memória, do poeta Thiago de Mello e Evocações de Manaus: como eu a vi ou<br />

sonhei, do escritor Jefferson Péres. Recorrer à memória teve por finalidade melhor<br />

compreender como foi produzida esta cidade, como foram estabelecidas as relações<br />

sociais no espaço e no tempo, e como se deu sua formação histórica sem estar<br />

atrelada à história em si, pontual, impessoal e compartimentada. O resgate da história<br />

através da memória tem a vantagem de ser enriquecida pela vivência pessoal, recheada<br />

de realizações e frustrações, viva por conter nomes, referências, trânsitos entre pessoas<br />

diferentes, lembranças e saudades.<br />

A intenção em nenhum momento foi de fazer entre os dois autores<br />

comparações; contudo elas acabaram sendo inevitáveis no decorrer da leitura. Se os<br />

dois têm estilos diferentes em suas narrativas e escolheram períodos distintos para<br />

descrever – Thiago de Mello prendeu-se aos <strong>ano</strong>s 30 e 40 e Jefferson Péres descortina<br />

a Manaus dos <strong>ano</strong>s 40 e 50 – o sentimento que os move é o mesmo: tirar do baú da<br />

memória um estilo vivido pela cidade, resgatar personalidades que ajudaram a<br />

construir o cenário da capital do Amazonas, porém descrevendo-as com as tintas<br />

do coração.<br />

Pensar o urb<strong>ano</strong> perpassa multiplicidades de sentimentos. A cidade é dinâmica,<br />

conquanto abrigue em seu interior a rotina e o cotidi<strong>ano</strong>. O vivido que produz o<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

141


Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

espaço é fruto de práticas ao mesmo tempo coletivas e individuais, que determinam<br />

e estão submetidas às relações institucionais, mas que movimentam e dão vida à<br />

cidade.<br />

A festa na rua, neste sentido, apresenta-se como um palco, em que um<br />

grupo de pessoas que compartilham o mesmo cotidi<strong>ano</strong> remodelam seu espaço e<br />

recriam uma forma diferente de interação.<br />

Embora seja uma fuga da rotina, a festa é ao mesmo tempo o refazer de<br />

um ciclo, uma vez que o <strong>ano</strong> está em eterna continuidade: o carnaval, a semana santa,<br />

as festas juninas, etc. Encontramos no calendário brasileiro uma programação bem<br />

vasta. Sendo assim, de tempo em tempo somos convocados a uma comemoração, e<br />

ao participar do ato, de uma certa forma, estamos dando sentido à vida. Ao celebrar<br />

a festa, o indivíduo ao mesmo tempo se comemora, pois ele produz e é a festa, sendo<br />

possível, por esta razão, a superação das dificuldades, dando oportunidade para quem<br />

a vive de alegrar-se, de conviver, de redescobrir-se por pertencente a um grupo.<br />

Para Carlos Rodrigues Brandão (1989, p. 8), existem no Brasil diferenças na<br />

preferência do tipo de festa, entre a cidade e o campo. No ambiente urb<strong>ano</strong>,<br />

predominam as festas cívicas e profanas, de âmbito nacional, como a semana da<br />

pátria e o carnaval, por exemplo. No interior, há um maior envolvimento das pessoas<br />

com as festas locais, como a festa da colheita e as religiosas, na comemoração do<br />

padroeiro da cidade. Nas cidades menores predomina o reconhecimento de um<br />

“nós” coletivo. Nos centros urb<strong>ano</strong>s, em virtude do distanciamento que o próprio<br />

estilo de vida impõe, as comemorações têm um caráter mais individual, como o<br />

festejar do aniversário.<br />

Mas existem determinadas festas que extrapolam os tipos citados. São festas<br />

promovidas por grupos de pessoas que conseguem unir seus membros em torno<br />

de um mesmo objetivo: criar uma situação de bem-estar, sem deixar faltar os<br />

elementos indispensáveis a uma comemoração: a música, a dança e a comida. Deste<br />

modo, a festa é pensada e posta em prática. São distribuídas tarefas, cada um<br />

contribuindo de acordo com suas possibilidades.<br />

De todo este processo, é possível extrair uma verdade: faz-se presente o<br />

espírito de equipe na organização e na expectativa de viver a festa.<br />

142 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

É este urb<strong>ano</strong> sensível, vivo, pleno de sentimentos e de ações, que penso<br />

apreender, redescobrindo no presente, a Manaus do passado dos dois escritores.<br />

A cidade<br />

Manaus e a região amazônica como um todo são uma fonte inesgotável<br />

para o imaginário. A localização geográfica e o contato constante com a natureza<br />

costumam ser uma armadilha ao observador menos atento. Sendo assim, usar a<br />

literatura como ponto de partida incorreu num enorme conflito que, se a princípio<br />

ajudou a compreender um pouco desta cidade, ao mesmo tempo exigiu maior<br />

rigor na análise. Em determinados momentos foi difícil me desvencilhar da influência<br />

de Jefferson Péres e de Thiago de Mello. O conflito dava-se em decorrência do<br />

estilo destes dois amazonenses extremamente poéticos. Era obrigada o tempo todo<br />

a procurar sob o lúdico, desvendar os limites do real e do imaginário. Ao passar suas<br />

memórias para o papel, eles resgatavam a cidade que tinham no pensamento. A<br />

Manaus retratada nas duas obras por vezes era mais “imagens irreais, construídas<br />

pelas sensações do vivido, do percebido e do sonhado” (PESAVENTO, 1999, p.<br />

98), do que um lugar concreto, com limites e contradições. Mas ela existiu de fato,<br />

foi palco de revoltas, como a Revolução Ginasiana; de crimes que chocaram a cidade,<br />

como o caso Delmo. A rígida moral da época e a punição imposta aos que infringiam<br />

os valores vigentes; os loucos que transitavam pelas ruas, como a Carmem e o<br />

Bombalá, não passaram despercebidos aos autores.<br />

Esta viagem pela literatura foi importante para conhecer a Manaus que existia<br />

antes da Zona Franca, o período entre o final do fausto da borracha e a implantação<br />

de indústrias multinacionais na cidade. Mesmo que os autores não tivessem a intenção<br />

de contar a história de Manaus, eles a incorporaram à sua vida, permitindo-me<br />

penetrar no espaço físico de cidade, conhecendo os dramas, as experiências e as<br />

paixões dos escritores e das demais pessoas que povoaram seus mundos.<br />

A cidade narrada pelo poeta Thiago de Mello é um tanto estranha para<br />

mim. Uma cidade semi-marginal, em que “um assassinato, de resto acontecimento<br />

bem raro, era um assombro” (1984, p. 38). Não havia bairros distantes, nem ônibus<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

143


Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

lotados, mas sim bondes, que além do transporte regular, serviam também ao lazer:<br />

as pessoas costumavam, aos domingos, passear nesses veículos pelos lugares mais<br />

distantes.<br />

Não havia o excessivo contingente de desempregados e de menores pedintes<br />

nas esquinas. Nesta cidade, os vizinhos misturam-se à família e é muito forte o<br />

respeito pela idade, pelos laços que os unem, seja de parentesco, seja de vizinhança.<br />

É uma cidade cabocla, de personalidade forte, que, segundo Thiago de Mello, soube<br />

fazer valer seus princípios e valorizar sua cultura. É meiga, calorosa, de valores morais<br />

rígidos. Um lugar em que o tempo, “antes de tudo, era um tempo de tempo. Um<br />

tempo em que o tempo dava” (1984, p. 33). A vida, aparentemente, não tinha pressa,<br />

e o calor, característico de nosso clima, só servia para deixar a cidade mais alegre.<br />

O poeta nos fala de sons e de cheiros, dos cinemas, do colégio onde estudou,<br />

enfim, dos tantos lugares existentes na cidade. A Manaus de Thiago de Mello é uma<br />

cidade repleta de sentimentos. No espaço por ele delimitado, aparentemente, não<br />

havia maldade, fome, fofoca, briga de vizinhos, intriga [...] Predominava a harmonia.<br />

No verbete reservado às ruas, encontrei as referências mais curiosas sobre a<br />

Manaus de sua época. Para o poeta, a rua da sua infância “não era apenas a ‘via<br />

pública’, o caminho de acesso. E nem era só o prolongamento da casa: muito mais,<br />

era um lugar onde a casa fica, o campo mágico onde a vida florescia” (1984 , p.<br />

199). Os moradores eram mais que simples moradores, eram personagens ativos na<br />

construção da história de seu espaço. A rua em que moravam não era um endereço<br />

apenas, mas o lugar da residência, do lar, do coração. Cada dona de casa era uma<br />

mãe, e cada criança na rua era um filho. Os companheiros de brincadeiras eram<br />

irmãos. Os mais velhos detinham a sabedoria e eram respeitados por isto.<br />

O livro de Jefferson Péres, num certo sentido, repete o espírito saudosista<br />

utilizado por Thiago de Mello em sua obra. Sem possuir o lirismo do poeta, à sua<br />

maneira, Jefferson Péres passa para o leitor uma Manaus humana e sensível, sendo<br />

construída numa época, para uma época. A cidade era pequena e todos se conheciam.<br />

Se não gozavam de relativa amizade entre si, conheciam-se de vista. Caminhar pelas<br />

ruas, segundo ele, demandava tempo, pois, a cada passo, encontrava-se um conhecido<br />

e aí se iam horas de prosa.<br />

144 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

As relações de vizinhança eram idênticas às narradas por Thiago de Mello.<br />

Jefferson Péres define essas relações como amizades “que se tornavam íntimas,<br />

francas, sem-cerimônia. Para estes a casa era aberta e podiam entrar sem pedir licença.<br />

Não havia qualquer inibição em mandar buscar, no vizinho na hora do almoço, café,<br />

sal ou açúcar que estivesse faltando” (PÉRES, 1984, p. 22). Havia a solidariedade na<br />

hora da dor – doença ou morte – e nunca faltava boa vontade para ajudar a preparar<br />

festas de casamentos ou aniversários. As vizinhas sentavam-se à noite para conversar<br />

nas calçadas enquanto as crianças, sob o olhar das mães, brincavam de roda, de<br />

manja, correndo em ruas “tão tranqüilas que a presença de um carro sempre despertava<br />

curiosidade” (p. 23).<br />

A partir da narrativa dos dois autores, percebi que a Manaus daquela época<br />

possuía valor de uso. A cidade pertencia a seus moradores. As praças, os cinemas, o<br />

mercado, as ruas e avenidas faziam parte da vida de cada um. As calçadas eram<br />

locais de conversas, o banho, nos igarapés limpos e convidativos, era um direito de<br />

todos depois da semana de trabalho e estudo. Havia, por parte dos moradores, o<br />

sentimento de pertencimento à cidade. Esta sociedade possuía “o poder simbólico<br />

de domínio sobre a cidade, do sentir-se urb<strong>ano</strong>, do ser visto e reconhecido...”<br />

(PESAVENTO, 1999, p. 68). Isto constatei não apenas das leituras, mas por meio de<br />

informações obtidas de pessoas que viveram esta fase da cidade.<br />

A sociedade manauara construiu seu espaço e teceu as relações entre seus<br />

membros a partir do que lhe foi dado viver e sentir pelos hábitos, costumes e<br />

tradições dos que aqui viviam e dos que vieram de fora, processo que teve seu<br />

apogeu com o boom da borracha. Com o declínio deste ciclo econômico, o Estado<br />

voltou-se para a produção extrativista, fazendo com o que a cidade adquirisse um<br />

ritmo mais lento de mudança, ou melhor, de desenvolvimento. Talvez aí se encontre<br />

a explicação para a harmonia que os dois autores captaram, a aparente ausência de<br />

contradições sociais. Manaus, certamente, possuía problemas graves que escaparam<br />

ao olhar um tanto conservador dos dois amazonenses. A preocupação presente nos<br />

trabalhos do sociólogo André Araújo é apenas um dos aspectos demonstrativos da<br />

existência de vários conflitos sociais. A criação de instituições de amparo aos jovens,<br />

sua idéia de combate à marginalidade através de uma política preventiva pela educação<br />

(ARAÚJO, 1967), apresenta um lado da cidade que aparentemente não foi captado<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

pelos dois autores e desmistifica a idéia romântica por eles apresentada. Mas, acredito<br />

que podemos defini-la como uma cidade que foi criada individual e coletivamente,<br />

num cenário distante e exótico, e que conseguiu construir o seu espaço.<br />

Contudo, a cidade é dinâmica. Ela muda, e tudo que a compõe altera-se<br />

também. Manaus não foi exceção. A introdução dos produtos estrangeiros no estilo<br />

de vida dos manauaras, a criação do parque industrial e o crescimento desordenado<br />

em virtude do aumento populacional alteraram significativamente o modo de vida<br />

e, por conseguinte, as relações entre os moradores e destes com o espaço urb<strong>ano</strong>.<br />

Manaus passava por um processo de transformação: o centro, palco da infância e<br />

juventude de Thiago de Mello e Jefferson Péres, aos poucos, dava lugar às casas<br />

comerciais. Os imóveis tinham suas fachadas modificadas, perdendo seu estilo<br />

arquitetônico em função da necessidade de um número cada vez maior de lojas.<br />

Neste contexto, era imprescindível, devido ao aumento do valor imobiliário, o maior<br />

aproveitamento dos espaços disponíveis. A promessa de emprego trouxe para a<br />

cidade um novo contingente de imigrantes. Se no apogeu de extração da borracha o<br />

predomínio foi de nordestinos, desta vez atraiu indiferenciadamente pessoas de todas<br />

as regiões do mundo e do país.<br />

Ao final da década de 60 a diferença começa a se fazer sentir. A cidade<br />

passava a ter características associadas ao urbanismo moderno, em alguns casos, à<br />

frente em certas questões, como exemplo, o parque industrial. Manaus possuía área<br />

de concentração de fábricas sem fumaça, aparentemente sem poluição, num período<br />

em que as preocupações ecológicas ainda eram vozes espaçadas e quase inaudíveis.<br />

O aumento populacional trouxe uma característica do urb<strong>ano</strong> inexistente na<br />

cidade dos dois escritores: o <strong>ano</strong>nimato. Manaus não era mais a mesma, e como à<br />

cidade quem lhe dá vida são seus habitantes, e forma os indivíduos, este processo<br />

fez com que referenciais fossem perdidos, valores fossem substituídos, novas<br />

identidades fossem construídas, reformulando os espaços de representação, ou seja,<br />

os espaços vividos. É através do espaço de representação que se pode ter uma<br />

compreensão da cidade no seu interior, e dela fazer uma leitura, pois é nele que<br />

melhor se observam como se dão as relações na sociedade, principalmente as que<br />

não estão estabelecidas objetivamente. Manaus, neste aspecto, não se diferencia das<br />

demais cidades. Possui em seu interior espaços de representações similares aos de<br />

146 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

outros centros, cabendo aqui a definição que Henry Lefebvre (1986, p. 43) dá ao<br />

termo, extraído de seus estudos sobre cidades em outras regiões do mundo. Segundo<br />

este autor, é nos espaços de representação que encontramos “os símbolos complexos<br />

(com ou sem codificação) ligados ao lado clandestino e secreto da vida social”.<br />

As relações de amizade que num momento anterior se dão pela proximidade<br />

da moradia, pela semelhança das ocupações profissionais, passaram a ser estruturadas<br />

sobre novos parâmetros. A pouca estabilidade no emprego impediu a formação de<br />

laços mais intensos entre colegas de trabalho. O crescimento da cidade para lugares<br />

afastados do Centro e a crescente mobilidade residencial dispersaram as relações. As<br />

pessoas pertenciam a vários grupos sem, contudo, dever fidelidade a nenhum. Suas<br />

relações eram impessoais, superficiais, transitórias e segmentárias. O citadino manauara<br />

acentuou sua reserva em relação ao outro e, por conseguinte, à sua solidão.<br />

É característico da cidade em processo de modernização a existência de<br />

espaços que simultaneamente se constroem e se relacionam de modo diferente. Este<br />

aspecto, que faz parte do caráter multifacetado do urb<strong>ano</strong>, permitiu o surgimento<br />

de grupos que resistiram à adoção de comportamentos padronizados, de uma certa<br />

forma fugindo ao individualismo. Esta pequena parcela pautou suas relações<br />

privilegiando a proximidade, resgatando o compadrio, praticando, como na pequena<br />

comunidade, um policiamento mais rigoroso sobre seus membros, mas ao mesmo<br />

tempo reconhecendo as vantagens do companheirismo, da troca, da presença física<br />

em todos os momentos.<br />

A rua<br />

Podemos iniciar definindo a rua como um lugar de passagem, de trânsito.<br />

Espaço necessário que permite o acesso até à casa. Espaço cuja prioridade é a<br />

circulação. Ela possui diversos aspectos, podendo ser uma grande avenida ou estrada<br />

de terra batida. Pode ser larga ou estreita, comprida ou curta. Ela é também<br />

caracterizada como o oposto da casa. Se a casa representa a segurança, a proteção<br />

contra as intempéries e a violência, o espaço da rua por vezes é hostil, e por mais que<br />

a conheçamos intimamente, ela pode nos amedrontar e não raro, surpreender-nos.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

Contudo, a rua é também a referência. Ela pode constituir-se como identidade<br />

dos indivíduos. Ela tem idade, tem história, pode ser simpática ou inspirar suspeitas.<br />

A rua comporta a casa, que é habitada por pessoas que sonham, fazem pl<strong>ano</strong>s, têm<br />

esperanças, ambições, medos e incertezas.<br />

A rua trabalhada aqui vai além de um espaço de circulação, de um corredor<br />

de acesso à residência. É o lugar em que convivem indivíduos que se interelacionam<br />

quotidianamente, que dividem entre si fragmentos de vida e que é, por vezes, também<br />

uma extensão da casa. Ela é o espaço onde laços de amizades são solidificados, em<br />

decorrência de relações tecidas pelos que moram próximo.<br />

A vida na cidade forjou entre os vizinhos um tipo de relacionamento. É no<br />

morador da casa ao lado que muitas vezes se encontra a ajuda necessária para enfrentar<br />

os problemas diários, bastando para isto que seja estabelecido um elo de confiança<br />

e identificação entre os moradores. Se bem trabalhadas, estas relação podem ser até<br />

mais fortes que as de parentesco.<br />

O espaço que escolhi para pesquisa de campo, à primeira vista, era um local<br />

que possuía as características comuns de um conjunto de casas populares, localizado<br />

na periferia de uma cidade com mais de 1 milhão de habitantes. Parte da cidade de<br />

Manaus, de seu sistema político, mistura de várias histórias, espaço de convívio de<br />

pessoas de diversas origens, que em nada fazia pensar a não ser no conjunto um<br />

fruto deste tempo: pessoas de várias classes sociais, lutando para sobreviver num<br />

mundo em que impera o desemprego, a violência, a falta de perspectiva nos mais<br />

jovens e de esperança nos mais velhos. O campo escolhido foi uma festa no conjunto<br />

Cidade Nova I, realizada na noite de São João. O conjunto, construído pelo governo<br />

do Estado e financiado a longo prazo, através do sistema financeiro para a população<br />

de baixa renda, está situado no bairro do mesmo nome, localizado na Zona Norte<br />

da cidade.<br />

Segundo Luce Giard (1997, p. 37), um bairro pode ser analisado a partir de<br />

duas perspectivas: 1. pelo aspecto físico do espaço e suas configurações administrativas;<br />

2. através de uma análise sócio-etnográfica da vida cotidiana. Em decorrência da<br />

natureza deste trabalho, privilegiarei a segunda definição, conceituando o bairro como<br />

um espaço público, delimitado geograficamente, onde os fatos do cotidi<strong>ano</strong> se<br />

desenrolam.<br />

148 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

Ser de um lugar é ser aceito e a aprovação está vinculada ao cumprimento<br />

de determinadas regras, dentre elas a adoção de comportamentos e posturas que<br />

o identifique com os moradores do lugar. É ser do pedaço, conforme a definição<br />

de Guilherme Magnani, “o local onde se desenvolve uma sociabilidade básica,<br />

mais ampla que os fundados nos laços familiares, porém mais densa, significativa<br />

e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade [...]”<br />

(1998, p. 116).<br />

Esta relação está fundamentada numa espécie de troca. São delimitadas<br />

regras de comportamento a serem seguidas, e cada morador, como condição para<br />

viver bem, obriga-se a cumpri-las, ao mesmo tempo em que exerce sobre os demais<br />

também um policiamento velado. O indivíduo ao adotar um bairro como seu, ao<br />

cumprir estas normas, passa a possuir o direito sobre ele, a criar uma relação de<br />

pertencimento com lugar.<br />

Estas regras, no entanto, não estão vinculadas a um código ético ou moral<br />

vigente na sociedade mais ampla. São “leis” criadas pelos moradores, regras específicas<br />

que comportam linguagens e códigos próprios. A pessoa, ao adotar um bairro<br />

como seu, fá-lo ciente das regras que perpassam os indivíduos e o cotidi<strong>ano</strong> do<br />

lugar.<br />

Os moradores que organizaram a festa residem no local desde o primeiro<br />

semestre de 1981, <strong>ano</strong> em que as primeiras casas do conjunto foram entregues à<br />

população. Dentro do conjunto, constitui-se uma área privilegiada por ser da primeira<br />

etapa, estando suas casas em grande parte reformadas e está localizada num espaço<br />

bastante arborizado. No início, a vida ali era muito difícil, não havia transporte<br />

adequado, policiamento, nem posto médico. Logo se descobriu que o espírito de<br />

solidariedade seria fundamental para a sobrevivência das pessoas dali.<br />

Segundo Pesavento (1999, p. 201), “como uma criança, as ruas nascem,<br />

batizam-se, crescem, desabrocham, plenas de vida. E, tal como as pessoas, são<br />

diferentes entre si”. Os moradores das ruas deste pedaço se diferenciavam<br />

enormemente. Havia relativa coesão entre eles, mas normalmente cada um vivia sua<br />

vida. A rua aonde foi realizada a festa diferenciava-se das demais pelo forte laço de<br />

amizade que foi criado entre os que nela moravam. Nesta rua, especificamente as<br />

relações desenvolveram-se de modo diferente, havendo no princípio uma forte<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

interação entre os vizinhos. Formou-se um time de futebol com os homens, e as<br />

mulheres geralmente se encontravam à noite e aos sábados para fazer trabalhos<br />

manuais, como pintura em tecido, crochê, etc. As crianças brincavam (e brigavam)<br />

juntas, e ao ficar maiores freqüentaram o mesmo Jardim de Infância. As mães, ou<br />

eram tias ou madrinhas. Muitas, entre elas, tornaram-se comadres.<br />

Achei interessante ir ao local ainda pela parte da tarde para ver como as<br />

coisas estavam se desenvolvendo. Assim, por volta das 17 horas, dirigi-me para lá,<br />

portando os refrigerantes que me couberam por contribuição e minha máquina<br />

fotográfica, pensando em retratar a festa desde os seus preparativos. A rua já havia<br />

sido fechada com alguns pedaços de madeira e em seu início uma fogueira havia<br />

sido montada, demonstrando já de longe o sentido da festa que se avizinhava.<br />

Havia chovido muito e a água destruiu as bandeirinhas que decoravam o<br />

local. Foi com surpresa que encontrei as jovens responsáveis pelo trabalho – algumas<br />

garotas entre 14 e 15 <strong>ano</strong>s –, inconsoláveis, por verem o trabalho da semana inteira<br />

destruído em alguns minutos. Além do trabalho perdido, a rua estava feia e suja de<br />

papel de seda despedaçado. Essas jovens organizadoras estavam aflitas, pois já haviam<br />

dado como certa a presença de seu professor de Religião. Pelo que pude perceber,<br />

um convidado ilustre.<br />

Enquanto elas pensavam em resolver o problema da sujeira, os rapazes<br />

sentados na esquina comportavam-se como se tomassem conta da rua. Nenhum<br />

carro entrava, nem dos moradores, mas isto parecia a ninguém incomodar. Quem<br />

chegava, estacionava o carro na entrada, formando uma barreira protetora em volta<br />

da fogueira, impedindo mais ainda o livre trânsito no lugar.<br />

Percebi nesta atitude, além da apropriação da rua por parte dos organizadores<br />

da festa, o reconhecimento dos moradores não só da necessidade de uso do espaço,<br />

mas também do direito de apropriar-se dele. A rua, que é pública, mais do que<br />

nunca pertencia ao conjunto de seus moradores, extrapolando o sentido de espaço<br />

de circulação. Naquele contexto, a rua era a extensão da casa, e na “gramaticidade<br />

dos espaços brasileiros, rua e casa se reproduzem mutuamente, posto que há espaços<br />

na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou<br />

pessoas, tornando-se sua ‘casa’[...]” (DAMATTA, 1997, p. 55).<br />

150 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

E como casa ela precisava ser preparada, enfeitada com bandeirolas, varrida<br />

para ser apresentada não só aos seus moradores – que certamente não se sentiriam<br />

bem numa “casa” suja, desorganizada – como também aos demais convidados, os<br />

de “fora” da rua.<br />

Uma das formas encontradas para superar um pouco a frustração com o<br />

estrago provocado pelo temporal foi a compra de balões que, segundo as jovens,<br />

junto com as palhas, disfarçariam a pouca quantidade de bandeirolas que havia<br />

sobrado. Sem perda de tempo, as garotas, com algumas senhoras, passaram a varrer<br />

o local, tirando os papéis molhados do chão e fazendo com que a rua assumisse o<br />

papel que lhe cabia naquele momento: um local limpo, agradável e alegre, à imagem<br />

de seus moradores. A rua passava a representar os anseios daquele grupo, revelando<br />

o sentido que seus moradores davam a ela: uma continuação do próprio lar.<br />

A festa<br />

As festas possuem duas características: podem ser particulares, como quando<br />

se comemora um aniversário, a colação de grau, ou a celebração do casamento, por<br />

exemplo, e podem ser públicas, como o Natal, a passagem de <strong>ano</strong>, o carnaval ou as<br />

festas juninas. Estas realizadas no mês de junho, de origem cristã, homenageiam<br />

quatro santos da Igreja Católica: Santo Antônio, São João, São Pedro e São Paulo. A<br />

festa trabalhada aqui aconteceu no dia de São João, e, como é comum nesse tipo de<br />

festa, a principal característica é a presença de uma fogueira, de comidas típicas, a<br />

brincadeira com fogos de artifícios e as adivinhações ao redor da fogueira.<br />

A festa pode ser concebida como uma quebra da rotina. Num mundo<br />

onde impera a necessidade de sobrevivência, em que a casa, à noite e nos fins de<br />

semana representa a possibilidade de descanso, de retraimento, talvez de encontro<br />

consigo mesmo, uma festa, tenha ela o sentido individual ou coletivo, é como uma<br />

chamada ao reencontro com amigos, a dividir com eles momentos de descontração,<br />

de alegria. Segundo Brandão (1989), a festa é um lugar simbólico, possuidora de um<br />

código e de uma mensagem. Ou seja, é um local em que está implícito que<br />

determinadas coisas devem ser esquecidas em função da celebração, do acontecimento.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

151


Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

Portanto, quem participa de uma, sabe que deve esquecer os incômodos do dia-adia,<br />

e a ela se entregar sem muitas reservas.<br />

Dirigi-me ao local por volta das 20 horas. A fogueira já ardia e, pelas calçadas,<br />

os convidados e moradores da rua espalhavam-se. Em frente das casas estavam<br />

montadas as mesas com guloseimas. Havia tacacá e duas churrasqueiras repletas de<br />

vários tipos de carnes. Em seguida, duas mesas imensas: na primeira, comidas e<br />

salgados. Havia arroz, vatapá, maionese e farofa, além de pratos, talheres e copos<br />

descartáveis. Na outra mesa, algumas variedades de doces como bolo de macaxeira<br />

e de milho, pudins, etc.<br />

Sentei-me defronte da casa da vizinha que havia me convidado, uma espécie<br />

de líder na rua, e fui conversar com as demais pessoas. Diverti-me bastante com a<br />

forma como algumas das senhoras estavam vestidas: com roupas de quadrilha, de<br />

“maria-chiquinha” no cabelo, davam ao conjunto um tom de comicidade, ao mesmo<br />

tempo em que não deixava de denotar a espontaneidade, uma característica que<br />

percebi, permeou toda festa. Pessoas que no dia-a-dia são reservadas, tímidas,<br />

assumiam um outro comportamento: cantavam acompanhando a música, transitavam<br />

entre os vizinhos. A festa tem este sentido: o de restabelecer laços. O indivíduo, ao<br />

participar de uma comemoração, reafirma a sua ligação com os demais; festeja-se e<br />

é festejado, resultando no final encontrar um sentido de vida. Esta festa a seu modo<br />

reafirmava um estilo de vida, delimitava um território, dando aos moradores domínio<br />

e o sentido de pertencimento à rua, por conseguinte, à cidade. Saíam da rotina,<br />

faziam-no sem necessariamente afastar-se do seu mundo; pelo contrário, tanto as<br />

pessoas quanto o lugar apenas vestiam uma roupagem diferente.<br />

Comecei a prestar atenção nas conversas. Na semana anterior, um dos<br />

moradores do pedaço havia sido vítima de um assalto à mão armada, na própria rua<br />

onde se desenrolava a festa. O assalto, acrescido da morte violenta no trânsito, naquele<br />

mesmo dia, de um outro vizinho, comerciante das imediações, dava às conversas<br />

uma conotação diferente.<br />

A noite foi transcorrendo tranqüila e divertida. Entre um saco de pipoca e<br />

outro, fui ouvindo o drama de uma vizinha com o filho que bebe descontroladamente,<br />

que até já perdeu emprego bom por conta disso. Afastei-me em outra direção e ouvi um<br />

152 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

outro dizer que estava vendendo a casa, por estar atolado em dívidas. Era um senhor,<br />

motorista de táxi, que teve seu carro envolvido num acidente de trânsito. Devido à<br />

morosidade da Justiça, quando o laudo favorável a ele saiu um <strong>ano</strong> depois, não<br />

havia mais como refazer sua vida.<br />

Achei, num primeiro momento, tudo muito contraditório. Ao mesmo tempo<br />

em que havia um clima de alegria e descontração visível, os dramas individuais não<br />

eram esquecidos, nem deixados de lado. Depois, refletindo melhor, concluí que até<br />

nesse aspecto havia uma certa coerência. É através da prática espacial que se percebe<br />

como se dão as relações sociais entre determinados grupos. De acordo com Lefebvre<br />

(1986, p. 42), é a sociedade tal qual ela se apresenta, “que engloba produção e<br />

reprodução lugares especificados e ao mesmo tempo espaços próprios a cada<br />

formação social, que assegura a continuidade numa relativa coesão”.<br />

Penso que não havia naquelas pessoas a intenção de “chorar miséria”, nem<br />

comover o outro. Era a sua realidade que estavam compartilhando com outros<br />

iguais a eles, que se não tinham o mesmo problema, certamente tinham outro de<br />

igual tamanho e importância. Aquela era a rotina deles, a sua vida. A festa talvez<br />

diminuísse a intensidade das angústias e das apreensões, pelo menos<br />

momentaneamente, mas a realidade estava presente mesmo nos momentos de<br />

descontração.<br />

O ponto culminante foi a chegada de uma quadrilha do bairro do M<strong>ano</strong>a,<br />

que vinha dançar para animar a festa. Antes, houve lá no M<strong>ano</strong>a um certo tumulto,<br />

pois não havia carro grande o bastante para comportar todos os membros. O fato<br />

era encarado com pesar, pois os brincantes queriam muito fazer aquela apresentação.<br />

O mais importante para eles, segundo comentários, era dançar, apresentar-se a uma<br />

platéia. Mesmo assim, incompleto, eles conseguiram chegar, fazendo uma apresentação<br />

bastante interessante e animada. Os membros, das mais variadas idades e alturas,<br />

formavam um conjunto heterogêneo que, ao contrário de parecer desproporcional,<br />

deixava claro a quem a eles assistia que havia sido formado por uma única razão:<br />

proporcionar diversão.<br />

Quando a quadrilha saiu, os moradores preparam-se para formar sua própria<br />

dança. Todos participaram: crianças, adultos, homens, mulheres, namorados, enfim,<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

153


Manaus ontem e hoje:<br />

transformações do espaço...<br />

todos entraram na brincadeira, sob a orientação do senhor que havia levado a<br />

quadrilha anterior, sendo este, a meu ver, o ponto alto da noite.<br />

Assim, a festa encaminhou-se para o final. Aos poucos, as pessoas foram<br />

dispersando-se. A comida que sobrou foi repartida entre os que queriam levá-la. As<br />

mesas recolhidas, ainda houve um tempo para comentar os momentos mais<br />

interessantes da noite. Por fim, cansados pelo trabalho do dia e pelas brincadeiras,<br />

com a lembrança do vizinho que seria enterrado no dia seguinte, os retardatários<br />

despediram-se e recolheram-se às suas casas.<br />

Considerações finais<br />

A cidade como hoje se apresenta, em certo sentido, está muito distante<br />

daquela que apreendi com os romancistas. Ela transformou-se, foi vestida com<br />

novas roupagens, que lhe deram novos significados. A população readaptou-se. A<br />

festa narrada é um exemplo concreto disto. O espaço, a rua, os moradores antigos<br />

e novos, que se uniram para a concretização do festejo, fizeram-no em um contexto<br />

diferente do vivido pelos dois autores: a violência, o desemprego, a vida mais difícil<br />

e a morte mais presente no cotidi<strong>ano</strong>. Mas o sentido de apropriação, no que diz<br />

respeito ao pertencimento àquele espaço, este ainda continua presente.<br />

Aquilo que, por princípio, tinha um cunho religioso – a homenagem era a<br />

um santo –, hoje desapareceu substancialmente. O que se percebe é uma celebração<br />

voltada muito mais para um sentido prof<strong>ano</strong>, sem ou quase nenhuma conexão com<br />

os aspectos transcendentais. Apesar da imensa fogueira, não percebi nenhuma<br />

brincadeira de adivinhação ou simpatia. Acredito que este ponto foi bastante<br />

representativo da cidade no sentido contemporâneo, pois se percebe nitidamente “a<br />

pasteurização do urb<strong>ano</strong>, destruindo a memória, substituindo o velho pelo novo”<br />

(PESAVENTO, 1999, p. 16). O novo – diferente no sentido de que adquiriu outras<br />

características – era as coreografias das músicas de boi de Parintins. Os discos do<br />

Caprichoso e Garantido foram os mais tocados e dançados.<br />

Thiago de Mello, num verbete intitulado “P de passar fogueira”, revela a<br />

preferência na festa junina do passado pelas brincadeiras de adivinhação e de criação<br />

154 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Lucynier Omena Melo<br />

de parentesco. A opção pela dança de boi, nos moldes atuais, demonstra o predomínio<br />

de uma prática que esquece ou ignora o passado, que esfacela uma tradição.<br />

Acredito que Manaus ainda possui em sua área urbana nichos cuja<br />

temporalidade não é equivalente ao vivido pela sociedade de modo geral. São relações<br />

que tiveram, na origem, práticas rurais, mas que no contato com o urb<strong>ano</strong> criaram<br />

grupos específicos que conseguiram dar ao espaço que ocupam o predomínio do<br />

valor de uso, transformando o que seria um lugar de passagem, como a rua, num<br />

ponto de referência e de identidade.<br />

Contudo, essa homogeneidade não é permanente: aos poucos ela vai<br />

revelando suas contradições. O grupo tem afinidades, juntos escreveram sua história<br />

naquele lugar. Não só a rua é extensão da casa, mas também a casa do vizinho é<br />

apropriada, a partir do momento que é transposto o espaço da casa reservado aos<br />

de “fora” – a sala na nossa cultura. As diferenças por vezes não se apresentam de<br />

forma velada, mas surgem num comentário aparentemente descontraído. Pode ser<br />

o salário do marido de uma que é maior, o estilo da casa da outra, construída com<br />

maior bom gosto, ou um jovem já colocado no mercado de trabalho. Há entre eles<br />

indicadores de diferenças. Mas essas diferenças são o que os fazem iguais neste<br />

mundo moderno. É o que reafirma possuir a cidade, “não apenas diferenças de<br />

classe e ocupação, mas todo um ethos, uma socialidade e uma carga de valores que<br />

vêm associados àquelas diferenças básicas e originárias, comprovando o quadro de<br />

contraste da cidade” (PESAVENTO, 1999, p. 16).<br />

A rua torna visível os opostos. A festa, por todas as possibilidades que ela<br />

apresenta de vivenciar ciclos, de permitir a transgressão, de escapar à rotina, minimiza<br />

as angústias individuais, faz esquecer os problemas da vida diária. Isso torna possível<br />

perceber a festa não só como uma pausa, uma parada na rotina, mas também como<br />

a consagração do próprio ato de existir.<br />

Referências<br />

ARAÚJO, André Vidal de. Proteção à infância e à juventude no Amazonas de hoje. Manaus:<br />

Imprensa Oficial, 1940.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

155


Manaus ontem e hoje:<br />

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_______. Psicologia e educação. Boletim do IGHA, Manaus, <strong>ano</strong> 1, n. 5, 1972.<br />

_______. Transcendência do problema – Educação. In: Estudos de pedagogia e<br />

antropologia sociais. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1967.<br />

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas: Papirus, 1989.<br />

DAMATTA, Roberto. A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed.<br />

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morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997. v. 2.<br />

LEFEBVRE, Henri. La production de l´espace. 3 ème. éd. Paris: Éditions Anthropos,<br />

1986.<br />

_______. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.<br />

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço – cultura popular e lazer na cidade.<br />

2. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.<br />

MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984.<br />

OLIVEIRA, José Aldemir de. Cidades na selva. Manaus: Valer, 2000.<br />

_______. Manaus dura e doce, em excesso. (texto digitado)<br />

PÉRES, Jefferson Carpinteiro. Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. Manaus:<br />

Imprensa Oficial, 1984.<br />

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade – visões literárias do urb<strong>ano</strong> – Paris,<br />

Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1999.<br />

SARTI, Cyntia Anderson. A família como espelho – um estudo sobre a moral dos pobres.<br />

Campinas: Autores Associados, 1996.<br />

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme<br />

(Org.). O fenômeno urb<strong>ano</strong>. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.<br />

WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme<br />

(Org.). O fenômeno urb<strong>ano</strong>. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.<br />

156 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003


Patrícia Melo Sampaio<br />

Cidades desaparecidas: Poiares, século 18 1<br />

Resumo<br />

Patrícia Melo Sampaio 2<br />

O artigo recupera a trajetória histórica de uma povoação colonial<br />

da Capitania do Rio Negro – Poiares –, com a finalidade de estabelecer<br />

indicadores que permitam a compreensão do processo de<br />

“aparecimento” e “desaparecimento” de povoações que existiram nos<br />

sertões do rio Negro. A idéia fundamental é a de que as povoações,<br />

criadas à sombra da estruturas administrativas da Capitania de São José<br />

do Rio Negro (1750-1755), eram núcleos marcados pela artificialidade e<br />

pela transitoriedade porque eram imposições que se contrapunham às<br />

estruturas locais preexistentes e também porque eram profundamente<br />

dependentes dos estímulos oriundos da estrutura estatal. Desta maneira,<br />

na medida em que cessavam os estímulos provenientes do Estado e,<br />

sobretudo, quando recrudesciam as reações das populações locais ali<br />

estabelecidas, as povoações tendiam ao arruinamento e ao<br />

desaparecimento.<br />

1<br />

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Seminário (Pre)Visões da Amazônia: – Redivisão<br />

Territorial do Amazonas, promovido pela FUNDAJ/IESAM, realizado em Manaus (maio/2001).<br />

2 Doutora em História Social, professora do Depar tamento de História e do Programa de Pós-Graduação em<br />

Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

157


Palavras-chave<br />

Abstract<br />

158 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Cidades; políticas oficiais; história colonial; Amazônia.<br />

This article looks at the historical trajectory of a colonial settlement – Poiares<br />

– in the Rio Negro Captaincy, the intent being to establish indicators that permit a<br />

better understanding of the process involved in the ‘establishment’ and the<br />

‘disappearance’ of settlements in the hinterland of the rio Negro. The main idea is<br />

that the settlements, created under the influence of the administrative structure of<br />

the São José do Rio Negro Captaincy (1750-1755), were characterized by artificialness<br />

and transitoriness because they were impositions that opposed the local pre-existing<br />

structures, and also because they were very much dependent upon incentives from<br />

the state. Thus, as the incentives from the state diminished, and above all when there<br />

was a renewal of reactions from the local populations already established there, the<br />

settlements tended to collapse and disappearance<br />

Keywords<br />

Cities; officers politics; colonial history; Amazon region.<br />

O interesse por Poiares nasceu de uma curiosidade provocada por uma<br />

intrigante fala do governador e capitão-general do Grão-Pará, Francisco Xavier de<br />

Mendonça Furtado (1751-1759). Em uma correspondência enviada a seu irmão,<br />

Sebastião de Carvalho e Mello, dizia que a população aldeada em Santo Ângelo do<br />

Cumaru – origem do lugar de Poiares – deveria toda ela ser reputada como cabeça de<br />

mocambo (MENDONÇA, 1963, p. 845-6).<br />

A declaração relativa a Cumaru estava inserida em um contexto mais amplo.<br />

Na verdade, Furtado tentava inteirar-se da complexa política indígena do rio Negro,<br />

não só mapeando as alianças existentes entre as lideranças indígenas, mas também as<br />

combinando com as notícias relativas ao comportamento rebelde da população da


Patrícia Melo Sampaio<br />

Capitania. Santo Ângelo de Cumaru parecia ser um paradigma exemplar; ali, além<br />

dos aldeados serem cabeças de mocambo, ainda demonstravam possuir articulações com<br />

lideranças não aldeadas que, de seus respectivos territórios, promoviam ataques aos<br />

rarefeitos núcleos coloniais e aliciavam os índios aldeados para que deixassem os<br />

estabelecimentos.<br />

Na tentativa de entender a maneira pela qual Cumaru conseguiu sintetizar<br />

tão bem as contradições da colônia, materializando a impotência e os temores do<br />

administrador colonial, passamos a recuperar algumas informações sobre seu processo<br />

de “aparecimento”. Com alguma surpresa descobrimos que, no curso do Setecentos,<br />

a aldeia “amocambada” se transformara em uma das mais prósperas povoações da<br />

Capitania. Entretanto, a despeito de sua relativa proeminência econômica, desapareceu,<br />

progressivamente, a partir das últimas décadas do século 18, para não mais ser<br />

mencionada nos registros do século 19, senão como mais uma das muitas povoações<br />

desaparecidas do rio Negro. O que poderia ter acontecido?<br />

Porém, surpresa maior ainda estava por vir: Poiares, que todos consideravam<br />

desaparecida, havia renascido em outras paragens com o nome de Tauapessassu 3 , 300<br />

km rio abaixo de onde estava localizada originalmente (PRAT, 1941, p. 43). Aí, as<br />

trajetórias das ruínas amazônicas vão convergir de forma impressionante porque<br />

Tauapessassu protagoniza, junto com Velho Airão, uma outra história de arruinamento<br />

na medida em que é o destino da população que abandonou Airão já em pleno<br />

século 20. Mas essa última parte da história das ruínas já está muito bem contada no<br />

belo trabalho de Victor Leonardi (1999) e, assim, restava-nos refazer os caminhos<br />

que levaram Santo Ângelo a Poiares tentando recuperar sua trajetória<br />

surpreendentemente silenciosa.<br />

Construindo um aldeamento: tensões e deserções<br />

A experiência missionária dos carmelitas na região do rio Negro iniciou-se<br />

a partir do final do século 17 e se consolidaria nas primeiras décadas do 18. Porém,<br />

3<br />

De acordo com E. Stradelli (1929), em nheengatu, Tauapessassu significa taba nova; povoação fundada de fresco.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

os aldeamentos formados constituíam-se em realidades problemáticas porque esses<br />

missionários pouca experiência tinham no trato das missões, se comparados aos<br />

jesuítas. Além de tudo, estavam muito envolvidos em vários negócios do sertão e até<br />

mesmo no próprio tráfico ilícito dos índios. Na verdade, este não era um<br />

comportamento exclusivo dos missionários do Carmelo. Oscar Beozzo afirma que<br />

as diversas ordens religiosas que atuavam na Amazônia envolveram-se, em maior ou<br />

menor grau, com o lucrativo comércio do sertão, chegando a tornarem-se “[...] as<br />

principais organizações econômicas do Maranhão e Grão-Pará” (1983, p. 47).<br />

As primeiras notícias de Santo Ângelo de Cumaru datam do início do século<br />

18. Dirigida pelo frei Brás de Santa Tereza, a missão carmelita de Santo Ângelo<br />

parece ter sido implantada ainda antes de 1720, habitada por índios Manaus e Barés.<br />

As informações – esparsas e incompletas –, dão conta de um estabelecimento inicial<br />

no sítio Carabi, acima de Lamalonga, que logo se trasladaria para o sítio da aldeia de<br />

Cumaru, situada a apenas 7 léguas de Mariuá. Foi na aldeia de Cumaru que se<br />

estabeleceu a missão de Santo Ângelo (PRAT, 1941, p. 36; FERREIRA, 1983, p.<br />

478).<br />

A despeito do relativo silêncio documental, é possível encontrar sinais<br />

importantes de que o relacionamento entre índios aldeados e missionários era marcado<br />

pela tensão. Afinal, não poderia ser outra a razão que levaria o principal Aduana, dos<br />

Manaus, a deixar o aldeamento de Cumaru, em 1739, para formar um mocambo,<br />

arrastando consigo boa parte da gente aldeada.<br />

Até a implantação da Capitania do Rio Negro (1757), as atividades de Aduana<br />

foram particularmente intensas. Ele não se limitou a formar um mocambo; desde<br />

então agia constantemente nas proximidades dos outros aldeamentos, funcionando<br />

como dreno das povoações recém-estabelecidas no Negro, fazendo roubos e todas as<br />

mais extrações que podem (MENDONÇA, 1963, p. 845). Mas isso não era tudo. Aduana<br />

também estabeleceu alianças políticas de larga escala com outras lideranças indígenas<br />

estabelecidas rio acima, como é o caso dos principais Manacaçari, Mabé, Caburé e<br />

Ajamari. Mabé (irmão de Manacaçari) também era um cabeça de mocambo,<br />

estabelecido junto às cachoeiras, de onde sai a insultar os que pretendem passar para<br />

cima ou para baixo dela (MENDONÇA, 1963, p. 845).


Patrícia Melo Sampaio<br />

A aliança com Manacaçari parecia ser produtiva na medida em que esse<br />

principal era a ponte de conexão entre os vários mocambos de índios existentes na<br />

região do Negro. Manacaçari foi um dos principais protagonistas do primeiro<br />

enfrentamento sofrido pelo governador do Grão-Pará no Negro: tudo por conta<br />

de um descimento frustrado, transformado em emboscada e depois em levante<br />

que, evidentemente, tinha granjeado para o aleivoso principal, a animosidade de<br />

Mendonça Furtado que lhe acenava com castigo rigoroso.<br />

Além do mais, o governador tinha notícias seguras de que Manacaçari “se<br />

acha ali protegendo todos estes mocambos, e com gravíssimo d<strong>ano</strong> de todas as<br />

povoações, não só deste rio, mas das outras que se acham fora dele, porque será rara<br />

a de que aqueles mocambos não tenham gente” (MENDONÇA, 1963, p. 845).<br />

Nem sempre a fixação nessas comunidades mocambeiras era definitiva e<br />

algumas delas também podiam ser refratárias a novas práticas de descimentos; esse<br />

parece ter sido o caso de Aduana. Durante sua viagem pela Capitania do Rio Negro,<br />

em 1783, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira afirmou que o lugar de Poiares<br />

foi aumentado pelo descimento de Aduana e de sua gente. O principal Sebastião<br />

Carvalho que assistia na vila quando da viagem do naturalista, era descendente de<br />

Aduana. Não há registro do momento em que Aduana resolveu rever sua estratégia<br />

política, mas não deixa de ser interessante notar que, ao descer, ele passou de “aleivoso”<br />

e “cabeça de mocambo” para um respeitado principal que garantiu, inclusive, o<br />

posto a seus descendentes (FERREIRA, 1983, p. 479).<br />

Essa revisão de estratégia política não era exclusiva dos mocambeiros do<br />

Negro. Nessa direção, em 1760, chegaram notícias de que o governador Mello e<br />

Póvoas considerava alvissareiras vindas das povoações de Olivença, Nogueira, Ega<br />

e Alvelos nas quais vários desertores vindos dos mocambos existentes no Solimões<br />

recolhiam-se àqueles lugares (PÓVOAS, 1983, p. 223-5).<br />

A história do lugar de amocambados parece terminar por aqui, mas a<br />

pergunta subseqüente é inevitável. O que há de novo nessa conjuntura que favoreceu<br />

a mudança de estratégia das lideranças indígenas que resolveram abandonar o<br />

confronto pela negociação? Se há algo novo no cenário político, sem dúvida, parece<br />

estar sinalizado pela implantação da política pombalina.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Política pombalina na Amazônia: a implantação do governo no rio<br />

Negro<br />

A criação da Capitania do Rio Negro em 1755 é um desdobramento<br />

dos reordenamentos políticos metropolit<strong>ano</strong>s. Em 1750, iniciou-se o processo<br />

de implantação da política reformista do marquês de Pombal, dirigida na região<br />

pelo seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nomeado governador<br />

em 1751. 4<br />

Política polêmica, as reformas pombalinas da segunda metade do século 18<br />

baseavam-se, grosso modo, nos princípios da Ilustração. Assim, de suas linhas mais<br />

gerais, podemos destacar o fortalecimento do poder da Coroa, o incentivo às práticas<br />

agrícolas e mercantis e a redução do poder da Igreja. Na Amazônia portuguesa, as<br />

linhas desse programa de trabalho apresentaram algumas especificidades: a penetração<br />

mercantilista do Estado nas atividades econômicas – com a criação da Companhia<br />

de Comércio do Grão-Pará e Maranhão –; o estímulo oficial à miscigenação visando<br />

o crescimento demográfico; e, por fim, a questão indigenista (BELOTTO, 1994, p.<br />

645-8).<br />

A essa altura, o Estado do Grão-Pará e Maranhão possuía sua economia<br />

apoiada no uso do trabalho compulsório dos índios, garantido pelos instrumentos<br />

legais de escravização e, até aquele momento, sob controle missionário. Na aplicação<br />

das novas disposições políticas, de importância estratégica, era a expulsão dos<br />

religiosos da Companhia de Jesus. Essa medida foi tomada após a secularização das<br />

missões e a declaração da lei de “Liberdade dos Índios”.<br />

Essa última ação fez recrudescer a polêmica em torno da questão da mãode-obra,<br />

ponto que sempre se constituiu em um crônico problema para a<br />

administração portuguesa na região. É certo que a ambigüidade da legislação quanto<br />

à liberdade ou escravidão dos índios marcou todo o período anterior à implementação<br />

da política pombalina, entretanto, neste novo marco, o esforço de portugalizar a<br />

4<br />

Para abordagem da política pombalina, um trabalho clássico é Falcon, F. A época pombalina. Além deste, ver Azevedo, J. L.<br />

O marquês de Pombal e sua época, e Maxwell, K. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Quanto à relação entre<br />

miscigenação e crescimento populacional, lembro que esse é o argumento formal da Coroa. Na verdade, não havia a menor<br />

necessidade de “estimular” a miscigenação que corria solta. A diferença é que se institucionaliza uma política de premiação<br />

para os casamentos mistos e isso, de certo modo, demarca uma fronteira específica para as ações que já vinham ocorrendo.


Patrícia Melo Sampaio<br />

região passaria agora não só pela garantia da liberdade dos vassalos de Sua Majestade,<br />

mas também pela aplicação de um instrumento tutelar das populações indígenas<br />

aldeadas: o Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão.<br />

Implementada em 1758, essa legislação ingeriu nos mais diferentes níveis da vida<br />

socioeconômica, cultural e política das populações amazônicas e é considerado como<br />

um dos mais ambiciosos instrumentos da política pombalina no esforço de<br />

portugalizar a região (MOREIRA NETO, 1988, p. 20).<br />

A Capitania de São José do Rio Negro, subordinada ao Estado do Grão-<br />

Pará e Maranhão, foi criada exatamente nesta conjuntura. A sede escolhida foi Mariuá,<br />

elevada à Vila de Barcelos em 1758. Saudando a criação da Capitania em carta a<br />

Pombal, Mendonça Furtado sublinhou importância do novo estabelecimento para<br />

reforçar os reais domínios naqueles sertões:<br />

[que] nunca serviu de outra coisa mais do que asilo de<br />

celerados que aqui faziam quantas atrocidades se pode<br />

imaginar, dando-se sempre uma dificuldade grande para se<br />

evitarem aquelas desordens; porque, além de em muitas<br />

delas, serem seus autores bem apadrinhados, a larguíssima<br />

extensão deste imenso país não permitia que se dessem as<br />

eficazes providências que eram precisas para as evitar<br />

(MENDONÇA, 1963, p. 707).<br />

À época da chegada do capitão-general Francisco Xavier de Mendonça<br />

Furtado em 1754, o rio Negro era uma área de aldeamentos predominantemente<br />

Manaus, população identificada pelos administradores coloniais pelo seu espírito<br />

rebelde e altamente belicoso. Também era uma área com cerca de 50 <strong>ano</strong>s de ação<br />

missionária carmelita, o que nos sugere que as populações indígenas que habitavam<br />

o curso do rio Negro já tinham experimentado todas as faces do processo da<br />

conquista: da espada à cruz, com todas as feridas ainda abertas.<br />

Só para dar a medida do clima latente de enorme tensão na região, se<br />

retomamos as revoltas e rebeliões no rio Negro na segunda metade do século 18, é<br />

suficiente registrar que as mais freqüentes nas fontes referem-se a aldeamentos Manaus.<br />

Esse dado não é desprezível. Afinal, tratamos de uma população que sofreu<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

intensamente os efeitos de uma “guerra justa” na primeira metade do século 18 e<br />

também passou pelos processos de descimento para vários dos aldeamentos existentes<br />

no rio Negro (SWEET, 1974).<br />

A presença do governador significava também a chegada das tropas das<br />

Demarcações relativas ao Tratado de Madri (1750), com suas inúmeras tarefas e<br />

exigências de abastecimento de víveres e mão-de-obra, também não contribuía muito<br />

para melhorar esse quadro. Só para dimensionar o impacto causado pela chegada<br />

das Demarcações, esclareça-se que a comitiva de Mendonça Furtado era composta<br />

por 1.025 pessoas embarcadas em 23 c<strong>ano</strong>as, sem contar as c<strong>ano</strong>as de pescarias<br />

(MENDONÇA, 1963, p. 631).<br />

Reiterando um conjunto de estratégias coloniais, as fronteiras do rio Negro<br />

passariam a conviver, de forma mais sistemática, a partir da segunda metade do<br />

Setecentos, com a instalação de fortificações e a criação/revitalização de novos<br />

estabelecimentos coloniais. A implantação de um governo na região, subordinado a<br />

Belém, faz parte de um conjunto de ações administrativas, com forte caráter<br />

estratégico-militar e, até o final do Gabinete pombalino, serão construídos na região<br />

vários fortes que cobrirão as áreas de fronteira (REIS, 1993, p. 57-8).<br />

Porém, em que pesem as disposições do novo Tratado de Limites e a<br />

necessidade de assegurar a soberania portuguesa na região, é impossível descartar<br />

nesse processo de criação da Capitania a importância do rio Negro como área<br />

prioritária de abastecimento de mão-de-obra – situação essa que remota ao início<br />

do século 18. Também é possível incorporar a esse argumento a questão referente às<br />

próprias características de reprodução interna da economia regional, estreita (mas<br />

não exclusivamente) vinculada à extração de produtos florestais que compunham a<br />

maior parte das exportações regionais do período.<br />

Assim, entre 1757 e 1798, os esforços da administração portuguesa na região<br />

para executar, minimamente, as disposições do projeto pombalino, passariam pelo<br />

reforço militar às áreas de fronteira com a criação de fortificações e pelas inúmeras<br />

tentativas de consolidar tanto a produção de alimentos quanto à coleta de drogas do<br />

sertão, pelo estabelecimento das populações indígenas através dos descimentos,<br />

buscando, com isso, criar ao mesmo tempo “vassalos” e “muralhas” nos sertões.


Patrícia Melo Sampaio<br />

O novo governo instalado no rio Negro teve várias ordens de conflitos para<br />

gerenciar e acomodar, quando isso foi possível. Para tanto, recorrerão a um conjunto<br />

de práticas já suficientemente testadas em outras áreas coloniais: o recurso à catequese,<br />

o emprego da força e das justiças, o estímulo à hierarquização interna das populações<br />

através de uma política de distinções e privilégios às lideranças indígenas. Esses e outros<br />

recursos mais pontuais sofreram modificações significativas. Projetos diferenciados<br />

colocados em confronto, necessariamente, ambos saem modificados. Ainda que esta<br />

seja uma situação de condição colonial, tal como definiu Alfredo Bosi, ela não é<br />

inevitavelmente assimétrica. Pelo menos, não o tempo inteiro (1992, p. 26-7).<br />

Nos confrontos e embates do cotidi<strong>ano</strong> no rio Negro colonial, experimentouse<br />

da força à aliança, da dissimulação à deserção, da sabotagem à traição, da submissão<br />

à guerra. Não poderia ser diferente. Como assinalou Márcio Meira (1997), “essas<br />

populações, ao transformarem a própria colonização, mesmo em condição de<br />

subordinação militar, religiosa e econômica, transformaram-se a si mesmas e, deste<br />

modo, resistiram”.<br />

Construindo Poiares sobre Cumaru<br />

Acompanhando as diretrizes da política pombalina, aldeias missionárias foram<br />

elevadas à categoria de povoações e tiveram suas denominações portugalizadas. É<br />

assim que Cumaru foi transformado em lugar de Poiares em 1758 e isto significava<br />

que era mais uma povoação que viveria sob a égide do Diretório.<br />

Tratava-se de uma legislação com grande espectro de abrangência: proibiu o<br />

uso da língua materna e também do nheengatu, tornou obrigatório o uso de sobrenomes<br />

portugueses, obrigou a construção de moradias no estilo europeu. Do ponto de vista<br />

econômico, deu ênfase à agricultura de exportação (café e tabaco), mas também aos<br />

cultivos alimentares. Estimulava o “comércio dos sertões”, liberando-o em todas as<br />

povoações e padronizando pesos e medidas. As localidades próximas ao mar ou rios<br />

deveriam dedicar-se às feitorias de salgas de peixe destinados ao comércio; naquelas<br />

onde havia disponibilidade de cacau, salsa ou cravo, os índios deveriam ser conduzidos<br />

para sua extração.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Quanto à administração dos núcleos laicizados, as ações seriam mais incisivas<br />

e a figura dos diretores – executores imediatos dessa política – teria um papel-chave<br />

para mediar as relações entre os principais, índios aldeados, colonos e a própria Coroa.<br />

Eram nomeados pelo governador e deveriam ser dotados de bons costumes, zelo, prudência,<br />

verdade e ciência da língua. Além de intermediários nas transações mercantis entre índios e<br />

moradores, seriam eles os responsáveis pelo controle dos aldeamentos, da coleta dos<br />

dízimos, pelo fluxo de trabalhadores para os particulares, para o serviço do Comum,<br />

para o Serviço Real e para as expedições de coleta de drogas do sertão, recebendo por<br />

este trabalho cerca de 16% do que fosse coletado e produzido, excluída a produção<br />

de subsistência. Poiares também logo teria um diretor de índios, investido de todas<br />

essas funções.<br />

Em menos de 20 <strong>ano</strong>s, Poiares já apresentava diferenças importantes. Quando<br />

o ouvidor Sampaio passou em correição pelo lugar, descreveu-o como já habitado<br />

por moradores brancos bem estabelecidos e muitos índios, entre eles, os Passés descidos<br />

do Japurá. As casas estavam em bom estado, ainda que a igreja estivesse em ruínas.<br />

Produzia-se café em fazendas rentáveis, para os padrões da Capitania. Os índios aldeados<br />

compunham a esmagadora maioria da povoação; das 570 pessoas que ali residiam,<br />

eles representavam 89%. O restante era composto pelos homens livres, 7% e pelos<br />

escravos, 4%. Além do café, em Poiares, também se cultivava cacau e tabaco. Também<br />

possuía uma boa c<strong>ano</strong>a destinada para o negócio do sertão e nele eram empregados<br />

25 índios (SAMPAIO, 1985, p. 107 ).<br />

Poiares impressiona bem o ouvidor pela sua situação, pela diligência do diretor<br />

Pedro Faria e pelos resultados da sua produção. Ele não deixa de ter uma certa razão<br />

quanto a esse aspecto: utilizando seus próprios registros, os números <strong>ano</strong>tados para<br />

Poiares permitem situá-la em 3.º lugar no conjunto das outras povoações da Capitania,<br />

abaixo apenas de Barcelos e Thomar. Poiares também era a quarta povoação da<br />

Capitania em termos populacionais. Também é interessante o número de escravos<br />

existentes no lugar: apenas as vilas de Barcelos e Silves possuem mais escravos que<br />

Poiares. Se comparados apenas com o número de 39 habitantes livres residentes no<br />

local, os 23 escravos representam 37% da população.<br />

A situação de Poiares, nas proximidades de Barcelos, parecia explicar o seu<br />

relativo sucesso. Os moradores da capital tendiam a investir ali os seus cabedais na


Patrícia Melo Sampaio<br />

formação de suas propriedades. Acrescente-se ainda a disponibilidade de trabalhadores<br />

materializada em uma significativa presença de índios aldeados e também a qualidade<br />

das terras para a agricultura.<br />

Porém, na passagem do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1786, a<br />

conjuntura já é diversa. A primeira imagem do lugar são as casas do principal dos<br />

Barés, Clemente de Mendonça e dos Manaus, Sebastião de Souza, e ainda a casa do<br />

abalizado João de Mendonça. Via-se imediatamente o curral de gado dos moradores.<br />

No centro da povoação, estava a modesta Igreja de Santo Ângelo e, ao seu lado, ficava<br />

a residência do vigário. Próxima, estava a casa do diretor, anexa ao armazém da<br />

povoação. Os moradores brancos possuíam 3 casas e aquela que pertencia ao homem<br />

mais rico da Capitania, o negociante José Antônio Freire Évora, era a mais arruinada.<br />

As casas dos índios somavam cerca de 40 (FERREIRA, 1983, p. 473).<br />

A produção agrícola apresentava resultados mais modestos. Os moradores,<br />

brancos e índios, dedicavam-se principalmente ao cultivo da mandioca e do café e,<br />

secundariamente, do cacau, tabaco, cana, milho e arroz, mas em quantidades inferiores<br />

àquelas registradas em 1775. As experiências locais com o cultivo de anil não tinham<br />

dado bons resultados porque, mesmo com a concessão de trabalhadores exclusivos<br />

para o trato do produto, os moradores que haviam recebido tal privilégio, desviaram<br />

os índios para outras tarefas. Existia também uma pequena produção de mel e<br />

aguardente. O comércio de drogas do sertão também havia se reduzido.<br />

Os dados populacionais indicam uma acentuada diminuição: em 11 <strong>ano</strong>s,<br />

Poiares perdeu cerca de 30% de sua população. As razões desse decréscimo são<br />

atribuídas a uma forte epidemia de sarampo e também à freqüência das incursões dos<br />

Mura nas proximidades. Além das mortes, a epidemia também provocou uma série<br />

de fugas do núcleo na tentativa de escapar ao contágio (FERREIRA, 1983, p. 480).<br />

Ano Qualidade Brancos Índios Escravos Total<br />

1775 39 508 23 570<br />

1786 23 366 15 404<br />

Fonte: Os dados de 1775 estão em Sampaio, 1985, Mapas n.<br />

IV e VI. Quanto aos do <strong>ano</strong> de 1786, ver FERREIRA,<br />

1983, p. 491.<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

A vida cotidiana em Poiares ainda era tensa. Um grande incêndio ocorrido<br />

no armazém da povoação também serviu para desnudar os antagonismos ali<br />

latentes. Aparentemente, o episódio tinha sido acidental. Durante a noite do dia<br />

20 de setembro, o vigário de Barcelos havia chegado a Poiares e ficou hospedado<br />

na casa do diretor Pedro Faria. Como Pedro estava cuidando de suas roças,<br />

deixou a cargo do padre o cuidado de sua casa e a vistoria de alguns índios que<br />

ali realizavam um serviço. O padre saiu pela povoação para uma visita breve<br />

aos paroqui<strong>ano</strong>s e deixou os índios sozinhos (FERREIRA, 1983, p. 475-6).<br />

Quando retornou, o armazém ardia em chamas, perdendo-se as farinhas,<br />

o cacau, café, a salsa e os potes de manteiga do diretor, de Bento do Rego e<br />

João M<strong>ano</strong>el Rodrigues. Perdeu-se também a pólvora, o sal e o chumbo da<br />

povoação. O armazém e as casas vizinhas foram completamente destruídos. A<br />

casa do diretor também queimou e sua família perdeu a maior parte das roupas,<br />

jóias, móveis e utensílios domésticos. Um dos índios disse que a causa foi “uma<br />

luz acesa nas proximidades de um pau de breu”.<br />

A maior parte dos moradores brancos culpou o padre, aguçando a<br />

animosidade já existente com relação a ele. A devassa, movida pelo ouvidor,<br />

chegou à conclusão de que “não houve malícia, mas sim descuido”. Ainda que<br />

Ferreira não forneça os termos da devassa, é interessante resgatar o fato de que<br />

o diretor Pedro Faria foi o principal prejudicado no incêndio. Ele já era, a essa<br />

altura, diretor de Poiares há 13 <strong>ano</strong>s. Era morador do lugar, casado com uma<br />

índia e considerado como “um bom diretor”. Evidentemente, para que se<br />

mantivesse por tanto tempo no cargo, era fundamental que soubesse lidar bem<br />

com os principais da povoação. Contudo, isso não o isentava de eventuais<br />

animosidades, inclusive por conta de portarias de concessões de índios que<br />

tivessem ferido suscetibilidades locais. 5<br />

5<br />

Talvez não apenas por coincidência, outro grande prejudicado com o incêndio do armazém foi o ex-diretor Bento José do<br />

Rego. Não seria a única vez que os índios tratariam de resolver suas questões diretamente. É o caso, por exemplo, dos dois<br />

prisioneiros enviados a Belém pelo ouvidor Pereira da Costa, em 1762, culpados pelo assassinato de um índio que tinha ido<br />

à suas roças para avisar que tinham sido concedidos em portaria pelo governador. APP, Códice 54, Doc. 96, 29/3/1762.


Patrícia Melo Sampaio<br />

Os moradores brancos, por outro lado, não descartavam a intervenção do<br />

vigário de Barcelos no episódio. Ferreira faz questão de registrar que o vigário não<br />

tratava seus fregueses com “o devido afeto e respeito”, indicando que o incêndio<br />

expunha contradições muito mais amplas que se podia inferir no momento.<br />

Poiares: poderes, políticas e segredos<br />

O ouvidor Sampaio, em 1775, registrou uma peculiaridade acerca da<br />

denominação do lugar: os índios chamavam a situação de Jurupari-Puracé-Rendaua 6<br />

,<br />

indicando a presença de manifestações culturais que a cristianização e a colonização<br />

eram incapazes de apagar. Quando de sua correição, havia na povoação 3 principais<br />

e 3 oficiais índios que participavam da administração local. Esse é um dado importante<br />

e que nos possibilita observar melhor os influxos da política colonial e suas<br />

transformações.<br />

A presença dos índios na administração colonial remete ao um lento processo<br />

de formação de hierarquias internas nas povoações que veio a consolidar-se no<br />

século 18. As disponibilidades geradas pela concessão das patentes militares, pela<br />

eleição para os postos e cargos das Câmaras, pela indicação para os empregos<br />

como meirinhos (bariquaras) 7 e cabos de c<strong>ano</strong>as dos povoados observadas no<br />

cotidi<strong>ano</strong> das vilas pombalinas, deixam entrever a densidade das articulações políticas<br />

e negociações internas em curso que, não necessariamente, passavam pelo uso da<br />

força e da coerção de diretores.<br />

De acordo com as determinações legais, a política colonial empregava uma<br />

estratégia de favorecimento das lideranças indígenas, facilitando a formação de<br />

6<br />

Em nheengatu, significa literalmente “lugar de dança do Jurupari”. Essa divindade tupi reunia elementos característicos<br />

tanto do bem quanto do mal. No entanto, por influência da catequese cristã católica, Jurupari (juru = boca + pari = o<br />

tapume, o que fecha; portanto, “boca fechada, segredo”) passou a representar a figura do diabo. Informação prestada pelo<br />

prof. Auxiliomar Ugarte.<br />

7<br />

Meirinho: “antigo oficial de Justiça que tinha direito de prender, citar, penhorar e de executar outros mandatos judiciais, e<br />

que corresponde ao atual oficial de diligências; beleguim.” Cf. MORAES Silva, A. Grande dicionário da língua portuguesa. 10.<br />

ed., v. VI, Ed. Confluência.<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

hierarquias indígenas. Os principais e oficiais índios eram distinguidos com honrarias<br />

e privilégios, extensíveis à sua família. Podiam ocupar cargos na estrutura de poder<br />

local, enviar índios na c<strong>ano</strong>a destinada à coleta de drogas do sertão para realizar a coleta<br />

para si, eram isentos da repartição para o trabalho e deveriam ser ouvidos nas decisões<br />

relativas à localidade tais como a construção de edifícios públicos e eleição de cabos<br />

de c<strong>ano</strong>a. Por contrapartida, deveriam cuidar de promover constantes descimentos<br />

de novas populações para aumentar as localidades coloniais.<br />

O descimento era a estratégia indicada para a ampliação demográfica das<br />

novas vilas e lugares e isto estava expresso nas determinações do Diretório. Essa era<br />

a chave de sua disponibilidade para a execução dos projetos coloniais; se falhavam<br />

os descimentos, comprometia-se o projeto como um todo. E porque falhavam?<br />

Aqui residia uma das maiores angústias dos administradores coloniais. Várias eram<br />

as causas. Contudo, tanto o seu recorte quanto o grau de sua intensidade refletiam,<br />

em larga medida, o lugar do observador que os selecionava. Para os ouvidores, o<br />

maior problema residia nos inúmeros abusos de diretores e governadores,<br />

desrespeitando o Diretório; para os diretores, nos inúmeros “arranjos” que eram<br />

compelidos a aceitar e negociar com os principais índios e abalizados para a obtenção<br />

dos trabalhadores.<br />

O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira asseguraria que as vilas e povoações<br />

eram, na verdade, “ducados e marquesados dos diretores, onde os índios sofrem<br />

atados à cruel coluna dos sofrimentos”. Em 1797, interessadíssimo em abolir o<br />

Diretório, o governador do Pará, Francisco de Souza Coutinho, não teria dúvidas<br />

em chamá-los de tir<strong>ano</strong>s senhores absolutos dos índios.<br />

Com tantas atribuições concentradas em um único funcionário colonial,<br />

não é estranho que todas as críticas às falhas e descaminhos do Diretório sejam a eles<br />

atribuídas. Evidentemente, não se trata de negar que esses funcionários, muitas vezes,<br />

utilizaram-se das prerrogativas que as leis (e também a distância delas) lhes asseguravam<br />

e, a esse respeito, são inúmeros os exemplos. A questão, contudo, reside no fato de<br />

que uma política desse alcance não poderia ser considerada fracassada apenas pela<br />

falta de homens capacitados para sua execução como já quis argumentar toda uma<br />

historiografia.


Patrícia Melo Sampaio<br />

Como bem advertiu Barbara Sommer (1997), é preciso cautela na observação<br />

da política interna das povoações pombalinas e também na articulação das bases de<br />

sustentação política dos principais e oficiais no contexto dos aldeamentos por eles<br />

administrados. Em vários momentos, os principais irão valer-se de suas bases de<br />

poder para tentar estabelecer limites às ações de diretores. Essas estratégias podem<br />

assumir formas variadas que vão desde o confronto direto – a rebelião; passam pela<br />

recusa e pela simulação; incluem a negociação e a barganha, sem excluir o recurso à<br />

autoridade superior colonial e, em alguns casos, até os ouvidos reais. Se nem sempre<br />

essas tentativas eram bem-sucedidas, ao mesmo tempo, elas não eram obrigatoriamente<br />

fracassadas. Em muitos casos, as lideranças indígenas, solidamente fundadas sobre<br />

suas redes de parentesco, estabeleceram limites concretos à ação indiscriminada desses<br />

funcionários reais, obstaculizando, no limite de suas possibilidades, o acesso ao trabalho<br />

de seus próprios “vassalos” 8 .<br />

A ausência era uma dessas estratégias e se constituía em uma das mais eficazes<br />

empregadas pelas populações aldeadas na defesa de seus propósitos. Retirar-se do<br />

núcleo colonial e aguardar o curso dos acontecimentos em um mocambo ou mesmo<br />

ao abrigo de outra povoação era um comportamento comum entre os índios aldeados.<br />

Podiam ser individuais e também coletivas, as ausências eram uma tática de recusa<br />

explícita. Elas representaram, na prática, um limite importante na convivência cotidiana<br />

no âmbito das povoações, colocando diretores em difícil situação para atender as<br />

demandas de mão-de-obra e até mesmo para manter sua integridade física.<br />

Se se considerar a ausência articulada a partir das lideranças residentes e não<br />

apenas como uma estratégia individual, observa-se que no caso de principais e oficiais<br />

índios, existem indicações quanto à sua longa permanência nos respectivos cargos<br />

em comparação a rotatividade de diretores. Em Poiares, como já observamos até<br />

aqui, está-se lidando com uma hierarquia indígena relativamente longeva. Clemente<br />

de Mendonça já era principal Baré na povoação em 1766 e a família de Sebastião de<br />

Souza vinha exercendo o principalato dos Manaus desde o descimento de Aduana.<br />

8<br />

Quanto às guerras e rebeliões indígenas, ver SANTOS, F. J. Além da conquista. Manaus: EDUA, 1998. Quanto às diferentes<br />

faces das políticas indígenas, ver Sommer, B. Negociated settlements: native Amazonians and portuguese policy in Pará,<br />

Brazil, 1758-1798. Phd Thesis – University of New Mexico, New Mexico, 2000 e SAMPAIO, P. Espelhos partidos: etnia,<br />

legislação e desigualdade na colônia. Tese de Doutorado – Universidade Federal Fluminense – Rio de Janeiro, 2001.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Enquanto isso, os diretores já somavam oito, dos quais, o mais duradouro era Pedro<br />

Faria que, ressalte-se, era casado com uma índia da povoação, o que permite supor<br />

que tenha sido integrado às redes de parentesco preexistentes, mas também arcando<br />

com as eventuais afinidades e rivalidades decorrentes dessas alianças parentais.<br />

Acrescente-se ainda o fato de que a população de Poiares havia recebido<br />

novos contingentes de índios: os Passés, vindos do Japurá. A despeito do que se<br />

possa pensar a princípio que a povoação pombalina “dissolvia” as diferenças étnicas<br />

existentes, as pesquisas revelam que elas se mantinham e mesmo recrudesciam no<br />

interior dos núcleos coloniais. Mesmo que não estejamos lidando com etnias que<br />

mantenham rivalidades históricas, é necessário ponderar que a chegada de novos<br />

contingentes – sejam eles quem for – obrigava a rearranjos políticos internos que<br />

não estavam isentos de tensões e contradições.<br />

A formação e consolidação das “hierarquias indígenas”, tal como aponta B.<br />

Sommer, parece ser um dos grandes resultados da política do Diretório e, em certa<br />

medida, “[...] os oficiais absolutos e os ausentes recalcitrantes são símbolos da relativa<br />

independência e não homogeneidade dos protagonistas na interface dinâmica da<br />

política indigenista e da política indígena” (1997, p. 19).<br />

Observando o contexto mais amplo, o que pode perceber-se claramente é<br />

que o projeto de civilização pombalino foi modificado por conta das condições<br />

coloniais de sua aplicação e pela intervenção direta dos personagens desse mundo,<br />

fossem considerados como agentes de execução, fossem vistos como objetos dessas<br />

intervenções civilizadoras. Acompanhando as conclusões de B. Sommer, ao final, o<br />

impedimento central para os projetos coloniais na Amazônia foi o simples fato de<br />

que seus habitantes tinham suas próprias prioridades. No limite, isso significa que a<br />

maior modificação resultante das intervenções das populações nativas sobre a<br />

legislação pombalina foi a sua própria extinção.<br />

Deserções e ruínas no final do século 18<br />

Após a abolição do Diretório e sua substituição por uma nova política<br />

indigenista implementada pela carta régia de 1798, é possível perceber mudanças


Patrícia Melo Sampaio<br />

importantes nas povoações. Em primeiro lugar, cresceu em relevo o papel das Câmaras<br />

locais no controle dos índios residentes nas povoações. Cabia às Câmaras reconhecer<br />

e autorizar duas das três modalidades legais para obtenção de mão-de-obra: o registro<br />

dos termos de educação e instrução e a concessão de índios alistados no Corpo Efetivo de<br />

Serviço – os chamados Ligeiros.<br />

Também relevou o papel desempenhado pelas milícias coloniais, ampliadas<br />

em função de uma conjuntura internacional conflituosa, que levou a uma política de<br />

alistamento sistemático e à criação de novas tropas para reforçar as defesas das fronteiras.<br />

A mudança da legislação indigenista promoveu, de imediato, um processo de<br />

saída dos núcleos coloniais. Livres da tutela dos diretores, era possível recuperar a<br />

mobilidade e daí a saída das povoações, estratégia especialmente usada por populações<br />

descidas recentemente.<br />

Contudo, a conjuntura no Negro era complexa. A possibilidade aberta pela<br />

carta de 1798 de que os particulares podiam descer os índios, bastando para isso<br />

registrá-los na Câmara, com o termo de educação e também a implementação de formas<br />

violentas de recrutamento para as tropas ou para os trabalhos reais na Capitania,<br />

colocadas em prática pelos novos administradores do Negro (agarrações), contribuíram<br />

muito para que as populações desertassem dos núcleos coloniais.<br />

A leitura dos livros das Câmaras deixa entrever as preocupações reiteradas da<br />

administração com o esvaziamento progressivo das povoações. É certo que, nos sertões,<br />

as saídas dos índios tinham mais a ver com o incremento das agarrações em curso na<br />

Capitania. Essa é uma constatação comum a vários informantes como é o caso do<br />

morador de Moreira (Rio Negro), Manuel da Costa Gama. Diz este, em 1822, que<br />

tanto a vila de Barcelos, quanto Moreira, estavam em grande ruína de moradores,<br />

desde a mudança da sede da Capitania para a Barra (1808). Mais do que a mudança de<br />

moradores e suas respectivas famílias, muito contribuíam para o decaimento daqueles<br />

lugares as constantes mudas de índios que, semestralmente, requisitavam-se dali. Muitos<br />

dos índios requisitados acabavam desertando para a Capitania do Pará ou formando<br />

mocambos, “refugiados em sítios”. 9<br />

9<br />

IHGB – Lata 356, Doc. 24. Pl<strong>ano</strong> que faz o morador do Lugar de Moreira, M<strong>ano</strong>el da Costa Gama. 11/4/1822.<br />

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173


10<br />

IHGB – Lata 287, Livro 2, p. 15-17, 16/3/1821.<br />

11<br />

IHGB – Lata 287, Livro 2, p. 17 e v. 18, 24/3/1821.<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Comentário semelhante fez o pe. André Souza ao avaliar as últimas<br />

administrações coloniais. Pelo seu relato, percebe-se que o clima de apreensão das<br />

populações do rio Negro era permanente devido aos abusos de autoridade de todos<br />

os governadores desde 1801 até 1820, destacando-se o recrudescimento dos<br />

apresamentos dos índios, a cobrança exacerbada dos impostos, a sobreposição dos<br />

poderes e as indisposições com as Câmaras municipais, além do uso indevido das<br />

rendas reais. O resultado dessas gestões, para Souza, era a extrema pobreza dos<br />

moradores do rio Negro e, em segundo, o estado “pisado e acabrunhado” do vassalo<br />

tapuio, apesar de todos os “esforços que Suas Majestades Fidelíssimas tenham feito<br />

por favorecê-los” (SOUZA, 1848, p. 476).<br />

Em 1821, é a vez da Junta Provisória do Negro, sob a presidência de José de<br />

Brito Inglês, diagnosticar que uma das causas fundamentais do incontrolável decaimento<br />

do rio Negro, pelo definhamento de “suas forças vitais que são a agricultura e o<br />

comércio”, é a questão dos milici<strong>ano</strong>s ligeiros – crônica em todo o Estado do Pará.<br />

Na condição de trabalhadores preferenciais e recrutáveis para os serviços<br />

públicos e particulares, os ligeiros sofriam com a excessiva jurisdição das autoridades<br />

militares sobre eles. No rio Negro, a Junta avaliava que isso se tornava ainda mais<br />

grave, porque além de provocar a deserção, a extensão indiscriminada do tempo de<br />

serviço obrigatório prejudicava o trabalho particular dos ligeiros e daí decorria o<br />

decaimento da agricultura e do comércio que esses mesmos indivíduos deveriam<br />

dedicar-se nos intervalos do serviço real/nacional 10 .<br />

A junta propõe-se a cortar o mal pela raiz: ordena o recolhimento de todos<br />

aqueles que estivessem distribuídos para quaisquer que fossem os serviços e que todos<br />

os comandantes seriam responsabilizados se os milici<strong>ano</strong>s fossem designados para<br />

atender outras demandas que não a do serviço nacional. Não parece ter conseguido<br />

muito nessa direção; dias depois, faz circular recomendações semelhantes àquelas<br />

feitas pelo conde dos Arcos em 1803: enquanto não estivessem no serviço real, estavam<br />

sujeitos apenas às autoridades civis 11 .


Patrícia Melo Sampaio<br />

As discussões que mobilizam as autoridades em função dos milici<strong>ano</strong>s<br />

estavam relacionadas com os novos reordenamentos do poder, em nível local,<br />

acentuando-se a capacidade de ingerência das Câmaras no controle dos trabalhadores.<br />

As disputas entre os diversos níveis das autoridades civis e militares dão conta de<br />

que, permanecendo como mão-de-obra fundamental, o controle dos índios<br />

continuava sendo o principal motor das disputas, ainda que no contexto de uma<br />

nova legislação indigenista, bem como de toda uma nova conjuntura política.<br />

Não é improvável que a Junta de 1821 tivesse certa razão quanto assegurava<br />

que o decaimento do rio Negro devia-se, parcialmente, à opressão dos milici<strong>ano</strong>s.<br />

Certamente, essa deve ter sido uma conseqüência importante da inegável pressão a<br />

que essas populações estavam submetidas, mas não se deve descartar dessa avaliação,<br />

que o esvaziamento das povoações era, antes de tudo, uma decisão que só cabia aos<br />

índios.<br />

Refazendo destinos: Poiares no século 19<br />

Os sinais da ruína de Poiares já são visíveis aos olhos dos via<strong>jan</strong>tes no início<br />

do século como é o caso de Spix e Martius, naturalistas alemães que realizam uma<br />

extensa viagem pelo Brasil, entre 1817 e 1820. Descrevem Poiares como uma<br />

outrora florescente povoação principal da Província do Rio<br />

Negro, [que] hoje apresenta somente a ruína dos edifícios<br />

pertencentes ao Estado e, ao todo, não mais de algumas<br />

centenas de habitantes, tanto a devastaram as contínuas<br />

febres intermitentes (1981, p. 264).<br />

O relato do padre André Fernandes de Souza (1848), baseado em seus 37<br />

<strong>ano</strong>s de trabalho na Capitania, também não é menos preocupante. Sem pároco há<br />

vários <strong>ano</strong>s e assolada pelas febres desde 1814, acha-se muito decaída de gente. A<br />

decadência de Poiares, na leitura do padre, também foi uma decorrência da<br />

transferência da capital de Barcelos para a Barra, no início do século 19. Depois<br />

dessa transferência, decaíram Barcelos e também as suas povoações anexas: Poiares<br />

e Moreira.<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

Escrevendo em 1823 uma memória sobre a Capitania, o padre José Maria<br />

Coelho corrobora a ruína de Poiares, com seu peculiar estilo telegráfico:<br />

As nações Manau, Baré e Passé foram seus fundadores<br />

antigamente. 1.830 fogos e 1.500 arcos ou homens capaz<br />

pela guerra, hoje 9 casas caídas, os habitantes moram nos<br />

seus sítios 2-3 dias de jornada distantes. Algodão – Tabaco<br />

– Mandioca – Castanheiras – Gado vacum puro – só juiz<br />

de paz e meirinho moram nesta vila (1949, p. <strong>12</strong>6).<br />

A descrição feita por Antônio Baena não é diferente: um lugar antes<br />

densamente povoado e hoje (1835),<br />

patenteia um painel de 10 casas palhaças circunfusas de<br />

uma Igreja de palha com paredes desaprumadas e<br />

desbranqueadas, e um mato denso clausurando em seu colo<br />

inúmeras laranjeiras, limoeiros, bananeiras, castanheiras e<br />

outras árvores que são outros tantos monumentos de<br />

habitáculos inexistentes. O mesmo acontece com o gado<br />

vacum que ali cresceu pelos bons pastos e que está sendo<br />

morto a tiro pelos viandantes que dele se aprovisionam<br />

sem estorvo de ninguém (1840, p. 425-7).<br />

Com esse quadro, não há surpresas quando a Câmara de Barcelos reuniu-se<br />

em 20 de <strong>jan</strong>eiro de 1834, para tomar conhecimento do ofício do presidente da<br />

Província do Pará, onde participava que Poiares, por sua incapacidade, perdera a<br />

categoria de freguesia (REIS, 1934, p. 118). A trajetória da já centenária povoação<br />

colonial, que se situava a 7 léguas de Barcelos, encerrou-se oficialmente neste ponto.<br />

Sem o predicamento de freguesia, tecnicamente, ela não mais existia e sua população<br />

deveria ser incorporada por outra. Em 1845, João Henrique de Matos fez um balanço<br />

geral da decadência do rio Negro. Pelos seus dados, das 32 povoações existentes em<br />

1758, restavam apenas 18. Desapareceram várias. Na sua lista, está Poiares, já<br />

desaparecida do mapa do Império (MATOS, 1979, p. 146-7).<br />

Contudo, não parecia ser esse o desejo de sua já diminuta população. Em<br />

algum momento, entre 1834 e 1835, eles empreenderam uma longa jornada de 300<br />

km rio abaixo e se estabeleceram em um novo local: na margem direita do rio


Patrícia Melo Sampaio<br />

Negro, entre Manaus e o Jaú, 28 léguas acima da confluência do rio Negro. Como<br />

registrou Lourenço Amazonas, durante algum tempo, os seus moradores,<br />

descendentes de Manaus, Barés e Passés, ainda manteriam a antiga denominação de<br />

Poiares (AMAZONAS, 1982, p. 60).<br />

Distribuídos em 30 fogos na morada nova, seus 228 habitantes plantavam<br />

café e algodão, teciam redes e p<strong>ano</strong>s de algodão, pescavam, extraíam salsa, breu e<br />

madeira para marcenaria, além de manipular manteigas e azeites. Desses, 28 eram<br />

brancos, 50 mamelucos, 150 índios e não há mais registro de nenhum escravo. Se<br />

comparados com os números do ouvidor Sampaio, em 65 <strong>ano</strong>s, a população de<br />

Poiares reduziu-se em 60%.<br />

Não foi possível determinar, com precisão, quando a velha Poiares passou<br />

a denominar-se Tauapessassu – a nova morada. Apesar dessa lacuna, não restam<br />

dúvidas de que se trata da mesma localidade. É possível que a mudança de nome<br />

tenha ocorrido quando da implantação da Província do Amazonas (1852) e da nova<br />

distribuição dos termos e freguesias subordinadas. Nesse momento, Tauapessassu<br />

aparece como uma das freguesias ligadas ao termo de Manaus e, em 1856, já registrava<br />

uma população de 566 pessoas.<br />

Por fim, é preciso mencionar que, em sintonia com sua tradição “rebelde”,<br />

a população de Tauapessassu aderiu à Cabanagem e também foi palco de sangrentos<br />

embates: lá, os cab<strong>ano</strong>s foram derrotados pelas tropas de Miguel Nunes Benfica,<br />

em 1836 (LEONARDI, 1999, p. 98-9).<br />

Considerações finais<br />

Poiares é apenas um exemplo possível da trajetória de uma povoação<br />

marcada pela artificialidade e pela transitoriedade. Em certa medida, suas experiências<br />

foram vividas, com maior ou menor intensidade, pelas povoações estabelecidas<br />

pela Coroa portuguesa ao longo da extensa Capitania do Rio Negro. São artificiais<br />

porque foram implantadas sobre as estruturas locais preexistentes e porque tinham<br />

sua vida orientada na contramão dos interesses da maior parte de suas populações.<br />

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Cidades desaparecidas:<br />

Poiares, século 18<br />

São, por isso mesmo, transitórias inclusive porque essas mesmas populações tinham<br />

suas próprias leituras e outros encaminhamentos para seus respectivos destinos.<br />

Nestas circunstâncias, mesmo a prosperidade poderia ser ilusória e efêmera<br />

porque dependente dos influxos da estrutura do Estado, de suas demandas e projetos<br />

políticos ou econômicos. Os descimentos que alimentavam Poiares e todas as outras<br />

povoações, fundamentais para o sucesso do projeto pombalino, faziam crescer os<br />

povoados, mas também faziam diminuir os povos. As novas modalidades de culturas<br />

implementadas, a despeito do apoio estatal e concessão de privilégios, não avançavam<br />

muito porque entravam em choque com o fluxo da vida econômica já estabelecida,<br />

orientada para a extração das drogas e também para os processos rotineiros inerentes<br />

aos outros cultivos de gêneros. A experiência dos moradores de Poiares demonstra<br />

isso; em vez de cultivar o estimado anil, os particulares receberam as sementes,<br />

índios e outros incentivos, mas os empregaram em culturas que já dominavam como<br />

a mandioca, o café e o cacau. O projeto do Estado fazia água por todos os lados<br />

(FERREIRA, 1983, p. 486-7).<br />

Nem mesmo a proximidade da capital – Barcelos, foi capaz de conter o<br />

processo de declínio de Poiares anunciado já nos <strong>ano</strong>s de 1780, portanto ainda em<br />

plena vigência do Diretório pombalino e muito antes de ser transferida a sede da<br />

Capitania para a Barra do rio Negro. Observando esse aspecto, o argumento do<br />

morador de Moreira e do padre Souza de que Poiares decaiu porque Barcelos<br />

deixou de ser o centro político e econômico do Negro fica frágil e reforça mesmo<br />

o posicionamento aqui defendido.<br />

É evidente que a mudança da capital implicou em deslocamentos políticos<br />

e econômicos de peso ponderável. Os efeitos da intervenção se fizeram sentir na<br />

área de onde antes emanavam as diretrizes políticas da Capitania e onde,<br />

aparentemente, havia se concentrado a sua maior dinâmica econômica. Observando<br />

esse aspecto, reforçam-se as características de transitoriedade e artificialidade das<br />

povoações que subsistiam à sua sombra.<br />

A Poiares criada pelo Estado colonial desapareceu do mapa. Tauapessassu,<br />

produto das decisões de seus moradores, sobreviveu até o momento em que novas<br />

diretrizes que a transmutariam em Novo Airão vieram sinalizar outras possibilidades<br />

de sobrevivência para as populações do rio Negro.


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SOMMER, Barbara. Os Absolutos e os Ausentes: Indigenous Society and a State Policy<br />

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Comunicação apresentada.<br />

SOUZA, André Fernandes de. Notícias Geográficas da Capitania do Rio Negro no<br />

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1848.<br />

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Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. v. 3.<br />

STRADELLI, Ermanno. Vocabulários da língua geral português-nheengatu e<br />

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SWEET, David. A rich realm of nature destroyed: the middle Amazon valley. 1640-<br />

1750. Madison: University of Wisconsin, 1974. (Ph.D. Thesis)


Marinez Gil Nogueira<br />

Pós-modernidade: uma tentativa de reflexão<br />

sobre sua expressão econômica, política e cultural<br />

Resumo<br />

Marinez Gil Nogueira 1<br />

Analisa o sentido da chamada pós-modernidade como uma<br />

situação de transição no interior do próprio sistema capitalista para novas<br />

formas de acumulação de capital e de dominação política. Busca refletir<br />

sobre a expressão econômica e política da pós-modernidade, visando<br />

analisar, também, as implicações destas mudanças socio-econômicas no<br />

pl<strong>ano</strong> político-cultural.<br />

Palavras-chave<br />

Pós-modernidade; reestruturação produtiva; neoliberalismo;<br />

acumulação flexível.<br />

Abstract<br />

It Analyses the meaning of the so-called post-modernity as a<br />

moment of transition within the capitalist system itself for new forms of<br />

1 Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, professora do<br />

Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas e coordenadora do Núcleo de<br />

Atividades de Pesquisa em Políticas Sociais e Serviço Social – NAPPSS.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

tentativa de reflexão sobre...<br />

capital accumulation and political domination. It tries to reflect on the economic and<br />

political expression of post-modernity, aiming at analyzing, also, the implications of<br />

such socio-economics changes at the political and cultura level.<br />

Keywords<br />

Post-modernity; productive re-structuring; new liberalism; flexible<br />

accumulation.<br />

Vivemos na contemporaneidade uma situação socioeconômica, política e<br />

cultural analisada por muitos autores como uma situação de crise, vazio, conformismo<br />

político e ideológico, inquietude e desilusão no que se refere ao progresso da<br />

humanidade. Essa época de crise e desesperança vem sendo caracterizada como<br />

pós-moderna.<br />

Refletir o sentido do termo pós-modernidade exige uma análise do próprio<br />

significado da modernidade. Do ponto de vista do desenvolvimento sócio-histórico<br />

da humanidade, a modernidade tem seu início no século 18 com o desenvolvimento<br />

do modo de produção capitalista. Esse desenvolvimento passa a ter sua base em<br />

um projeto sociocultural de “autonomia” no campo político-social e cultural,<br />

assentado no progresso racional. A razão passa a ser a arma principal contra as<br />

tradições e dogmas, ou seja, a todo pensamento dominante da Idade Média.<br />

Conforme Castoriadis:<br />

A razão – de fato, o entendimento – apresenta-se então como<br />

o fundamento auto-suficiente da atividade humana, a qual não<br />

possui qualquer fundamento outro a não ser ela mesma [...]<br />

Resultado final: o capitalismo, o liberalismo e o movimento<br />

revolucionário clássico dividem o imaginário do progresso<br />

e a crença de que a potência material técnica como tal é a<br />

causa ou a condição decisiva da felicidade ou emancipação<br />

humana (1982, p. 21).


Marinez Gil Nogueira<br />

Neste sentido, o caráter essencial da época histórica concebida como<br />

“moderna” está no projeto de autonomia individual e social e de domínio racional.<br />

Para Santos, “o paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes do modo<br />

capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes deste último deixar de se<br />

tornado dominante” (1993, p. 182). Para este autor, a modernidade constituiu-se<br />

de um projeto ambicioso em suas promessas, cumprindo muitas delas em excesso,<br />

no que se refere ao desenvolvimento racional técnico-científico. Entretanto, comporta<br />

um déficit irreparável no cumprimento de outras, no que se refere ao<br />

desenvolvimento social no âmbito da igualdade e fraternidade, isto é, eqüidade<br />

social.<br />

A situação socioeconômica e política contemporânea, apresentada como<br />

uma situação de crise e de vazio, pode ser analisada como resultado da relação de<br />

excesso e déficit do cumprimento das promessas do projeto da modernidade.<br />

Para analisar o sentido da chamada pós-modernidade faz-se necessário<br />

demarcar o seu início no processo de desenvolvimento do capitalismo. É sob este<br />

prisma que utilizaremos a periodização proposta por Santos (1993), que divide o<br />

desenvolvimento capitalista em três estágios: o primeiro é o período que cobre<br />

todo o século 19, chamado de capitalismo liberal. O segundo tem início no final do<br />

século 19 e alcança seu pleno desenvolvimento no período entre guerras e nas<br />

primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial. O terceiro período inicia-se<br />

no final da década de 60 e é o que vem sendo chamado de pós-moderno. Algumas<br />

análises teóricas (HARVEY, 1992; BRUNHOFF, 1991) caracterizam esse período<br />

como um contexto de domínio do “capitalismo financeiro”. Offe (1989) o<br />

caracteriza como período do “capitalismo desorganizado” em contraste com a<br />

organização do período anterior.<br />

O contexto atual do desenvolvimento capitalista vem sendo caracterizado<br />

como “pós-moderno”. Compreendemos que é um período em que se vem<br />

processando mudanças no modo de acumulação capitalista, configurando uma<br />

transição para novas formas de acumulação. Concordamos com Santos quando<br />

observa que a situação político-econômica da contemporaneidade deve ser analisada<br />

como:<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

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Uma situação de transição. Como todas as transições são<br />

simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível<br />

nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão<br />

lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade.<br />

Mas, à falta de um melhor, é um nome autêntico em sua<br />

inadequação (1993, p. 182).<br />

Este artigo visa refletir o sentido da chamada pós-modernidade como um<br />

processo de mudança sócio-histórica e político-cultural no sistema capitalista da<br />

sociedade contemporânea. Entendemos que o termo “pós-moderno” é considerado,<br />

na maioria das análises teóricas recentes, como um conceito obscuro, sem clareza<br />

teórica para designar a fase histórica contemporânea. Entretanto, consideramos que<br />

mesmo sendo um conceito sem um consenso teórico quanto ao seu significado, ele<br />

é uma tentativa de expressar-se o processo de reestruturação produtiva na dinâmica<br />

do capitalismo a partir da grande crise capitalista da década de 70. Essa reestruturação<br />

resultou em um novo quadro sócio-político e cultural na sociedade. Para Castoriadis<br />

(1982), esse novo quadro pode ser caracterizado como a “época do conformismo<br />

generalizado”.<br />

Este artigo está constituído de duas partes. Na primeira, buscamos analisar<br />

a pós-modernidade como uma situação de transição no interior do próprio sistema<br />

capitalista para novas formas de acumulação de capital e dominação política. No<br />

nível econômico, essa mudança tem sua expressão na chamada acumulação flexível<br />

e, no político, pela ofensiva da ideologia neoliberal. Na segunda parte, tentamos<br />

refletir as implicações destas mudanças socioeconômicas no pl<strong>ano</strong> político-cultural.<br />

Pós-modernidade: a transição para uma nova forma de acumulação<br />

de capital e de dominação política<br />

Como vimos, o projeto sociocultural da modernidade está intrinsecamente<br />

ligado ao trajeto do desenvolvimento capitalista, assentado no ideal de “autonomia”<br />

e “domínio racional” da sociedade. Segundo Castoriadis: “O capitalismo torna-se<br />

assim um movimento perpétuo de auto-reinstituição da sociedade por assim dizer


Marinez Gil Nogueira<br />

‘racional’, mas essencialmente cega, por causa do uso irrestrito de meios (pseudo)<br />

racionais tendo em vista um só fim (pseudo) racional (1982, p. 20).<br />

A racionalidade da sociedade capitalista moderna é analisada por Castoriadis<br />

como uma pseudo-racionalidade no que diz respeito ao progresso hum<strong>ano</strong>, visto<br />

não só em termos técnico-cientificos, mas, também, no sentido do desenvolvimento<br />

social. Essa análise remete-nos a pensar o significado do balanço feito por Santos<br />

(1993) a respeito do excesso e déficit de cumprimento das promessas da modernidade.<br />

O desenvolvimento tecnológico propiciou ao homem não só ir a lua, como, também,<br />

um desenvolvimento industrial militar que expõe o mundo ao perigo nuclear e à<br />

catástrofe ecológica. Entretanto, no campo social, o homem não conseguiu resolver<br />

o problema da fome e da falta de eqüidade social. É neste sentido que o projeto da<br />

modernidade é deficitário no cumprimento de suas promessas.<br />

Podemos observar que no processo histórico do desenvolvimento capitalista<br />

há o predomínio sucessivo de duas concepções político-econômicas. Uma que defende<br />

a auto-regulação do mercado e outra que defende a regulação econômica pelo<br />

Estado. Segundo Brunhoff, “de maneira simplificada, podemos indicar o predomínio<br />

sucessivo de duas concepções diferentes: a do período keynesi<strong>ano</strong>, contra a ideologia<br />

do Laissez-faire anterior a 1914, e a dos novos economistas, neoclássicos e<br />

monetaristas representados por Milton Friedman” (1991, p. 21).<br />

A ideologia do “Laissez-faire” do período de capitalismo liberal é substituída<br />

no período keynesi<strong>ano</strong> pelo ideal de “regulação estatal”. Entretanto, a partir do final<br />

da década de 70, o ideário de “livre força de mercado” é retomado pelo chamado<br />

neoliberalismo que tem Milton Friedman como principal expoente.<br />

O avanço da ideologia neoliberal a partir dos <strong>ano</strong>s 80 no cenário políticoeconômico<br />

do capitalismo mundial deve ser compreendido como resultado da<br />

crise geral do capitalismo a partir de 1973. Segundo Harvey (1992), neste contexto é<br />

evidenciada uma crise no capitalismo em países da Europa e nos Estados Unidos,<br />

com diminuição do crescimento econômico – constatada na decrescente taxa de<br />

lucratividade empresarial – e inflação crescente. Esse cenário propiciou o<br />

ressurgimento dos dogmas liberais, através de uma formulação discursiva mais<br />

moderna e mais técnica, isto é, o chamado neoliberalismo.<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

tentativa de reflexão sobre...<br />

Compartilhamos das reflexões teóricas que analisam essa crise do capitalismo<br />

contemporâneo, nos países de capitalismo avançado, como resultado do esgotamento<br />

do modelo de acumulação de capital que ficou conhecido como paradigma fordista/<br />

taylorista de produção. Esse modelo de produção tem como princípios:<br />

Produção em massa, através de linha de montagem e de<br />

produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos<br />

e movimentos pelo cronômetro fordista de produção e<br />

produção em série taylorista; pela existência do trabalho<br />

parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação<br />

entre a elaboração e execução no processo de trabalho;<br />

pela existência de unidades fabris concentradas e<br />

verticalizadas e pela constituição/consolidação do operáriomassa,<br />

do trabalhador coletivo fabril, entre outros<br />

(ANTUNES, 1995, p. 17).<br />

O modelo de produção fordista/taylorista encontrou sustentação políticoeconômica<br />

no ideário keynesi<strong>ano</strong> de intervenção estatal, que configurou um adequado<br />

modo de regulação através do formato de gestão do chamado Estado de bemestar<br />

social. Deste modo, configurou-se o regime de acumulação fordista, que após<br />

a Segunda Guerra Mundial propiciou os “<strong>ano</strong>s dourados” de desenvolvimento do<br />

capitalismo, desencadeando um período de crescimento e de relativa estabilidade<br />

econômica.<br />

A ideologia neoliberal inscreve-se contra o modo de regulação do Estado<br />

de bem-estar social e o reformismo keynesi<strong>ano</strong>, minando os pilares do regime de<br />

acumulação fordista. Neste sentido, podemos observar que a crise econômica de<br />

meados da década de 70 expressou, também, a própria crise do modelo fordista/<br />

taylorista de produção. Esta crise impulsionou um processo de reestruturação políticoeconômica.<br />

A partir do cenário político-econômico da década de 80, desencadeia-se<br />

um processo de mudanças no paradigma produtivo fordista/taylorista dos países<br />

de capitalismo avançado. Esse processo é evidenciado pelas profundas mudanças<br />

no mundo do trabalho, devido a uma reestruturação produtiva de grande salto<br />

tecnológico, que introduziu no mundo fabril uma crescente automação, a robótica e


Marinez Gil Nogueira<br />

a microeletrônica, configurando a chamada “terceira revolução industrial”. Para<br />

Antunes (1995), o modelo de produção fordista/taylorista deixa de ser o único, e,<br />

ao lado dele, despontam outros processos produtivos chamados pós-fordistas. Tais<br />

modelos estão pautados em princípios produtivos que se contrapõem ao paradigma<br />

fordista.<br />

Os modelos de produção que configuraram este paradigma pós-fordista<br />

têm suas origens nas experiências decorrentes da terceira Itália, 2 das experiências da<br />

indústria automobilística Volvo na suécia 3 e, principalmente, nas experiências japonesas<br />

de produção – o tão difundido toyotismo. De acordo com Sevo (1995), ao lado do<br />

padrão americ<strong>ano</strong> fordista/taylorista de produção surge o modelo japonês<br />

(toyotismo), que se torna hegemônico frente às novas formas de organização do<br />

trabalho requeridas pela tecnologia microeletrônica e pela lógica do mercado<br />

globalizado.<br />

Os modelos chamados pós-fordistas passam a substituir o modelo fordista/<br />

taylorista e a expressar um padrão de “acumulação flexível” 4 que difunde um modo<br />

de organização da produção baseado em uma lógica de competitividade que busca<br />

a adequação da produção à lógica do mercado. De modo geral, esse novo paradigma<br />

de produção flexível, que vem sendo chamado de pós-fordista, passa a difundir os<br />

seguintes princípios: não produção em massa; produção em pequenos lotes de<br />

produtos diferenciados; desconcentração industrial e processo produtivo<br />

horizontalizado; automação flexível; trabalhador multifuncional, e gestão participativa.<br />

2 Conforme Antunes (1995), a análise da experiência produtiva da terceira Itália feita por Sabel e Piore (1984) desponta pelo<br />

pioneirismo da tese de “especialização flexível”. A experiência concreta da terceira Itália possibilitou o advento de uma nova<br />

forma produtiva, embasada, de um lado, em um significativo desenvolvimento tecnológico, e, de outro, em uma desconcentração<br />

produtiva baseada em pequenas e médias empresas, produzindo de forma artesanal. Esse modelo de especialização flexível<br />

passa a produzir para um mercado mais localizado e regional, extinguindo desta forma a produção em série.<br />

3 De acordo Marx (1992), as experiências desenvolvidas pelas montadoras do grupo Volvo na planta de Kalmar na Suécia,<br />

tornaram-se uma espécie de paradigma de uma nova forma de organização do trabalho em que aspectos do tipo:<br />

enriquecimentos de cargos, autonomia de decisões sobre o ritmo de trabalho e melhores condições ambientais no trabalho<br />

foram concretizadas. O processo produtivo passou a ser calcado em trabalho de grupo, autonomia crescente dos<br />

trabalhadores e aplicações diferenciadas de recursos de informática e de automação. Todas essas inovações organizacionais<br />

objetivam uma produção em escala de um razoável número de modelos diferentes.<br />

4 Para Harvey, a acumulação flexível se “apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos<br />

produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas<br />

maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação<br />

comercial, tecnológica e organizacional” (1992, p. 140).<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

tentativa de reflexão sobre...<br />

O padrão de produção flexível dissemina novas formas de gestão da força de<br />

trabalho que são expressas nos modelos de CCQs (círculos de controle de qualidade),<br />

just-in-time/kamban 5 e grupos semi-autônomos entre outros. Todos esses modelos<br />

de gestão da força de trabalho enfatizam a importância da chamada “qualidade<br />

total” e da necessidade de uma “empresa enxuta”. 6<br />

Assiste-se à proliferação desses novos métodos de organização e gestão do<br />

trabalho, configurando uma reestruturação nas relações entre capital/trabalho. Esses<br />

novos métodos, ao exigirem o engajamento de todos na produção, desenvolvem<br />

nos trabalhadores uma ideologia de “parceria” que ressalta o valor da competência<br />

e da importância do trabalhador para o sucesso da empresa. Desta forma, essa<br />

ideologia de “parceria” que tenta harmonizar a relação capital/trabalho vem<br />

implicando em alterações na própria subjetividade da classe operária.<br />

Essas mudanças no mundo do trabalho ocasionadas pelos modelos de<br />

produção pós-fordistas, acarretam conseqüências agudas no que diz respeito aos<br />

direitos do trabalho. Segundo Antunes (1995, p. 16), “estes são desregulamentados,<br />

são flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para adequarse<br />

a sua nova fase”. É neste sentido que a ideologia neoliberal vem cumprindo o seu<br />

papel.<br />

O ideário político neoliberal defende a necessidade do desmonte total da<br />

perspectiva político-econômica keynesiana e do próprio Estado de bem-estar social.<br />

Observa-se uma inversão dos valores e categorias tais como: coletivismo e igualdade;<br />

política de pleno emprego; regulação e proteção social tão caras às políticas do<br />

Estado de bem-estar social. Entram em cena os valores e categorias de: individualismo<br />

e desigualdade; taxa natural de desemprego; desregulamentação social e econômica.<br />

Para Draibe (1993, p. 18), as teorizações neoliberais podem ser genericamente<br />

5 O método “just-in-time/kamban” é considerado por Coriat (1994) como a maior inovação organizacional da segunda metade<br />

do século 20, introduzindo o princípio de “estoque zero”. Esse princípio explica-se pela busca de economia através da<br />

eliminação de disfuncionamentos e sobrecustos. Isto significa produzir exatamente as quantidades vendidas e produzi-las<br />

no tempo exatamente necessário. Isto se dá através da racionalização do trabalho vivo. É por isso que este método implica<br />

na produção do “somente necessário” no “melhor tempo” possível. Pois o método “kamban” é baseado no modelo dos<br />

supermercados de reposição dos produtos somente depois da sua venda. Este é o sentido do “estoque zero”.<br />

6 Segundo Coriat (1994), o resultado intrínseco do uso do método “just-in-time” é a redução otimizada do trabalho vivo,<br />

pois reduzindo o estoque, reduz-se, também, o excesso de pessoal, configurando a empresa mínima, ou seja, a empresa<br />

enxuta.


Marinez Gil Nogueira<br />

reduzidas às afirmações de necessidade da “primazia do mercado sobre o Estado,<br />

do individual sobre o coletivo e do Estado mínimo, enquanto aquele que não<br />

intervém na economia”.<br />

As análises de Serva (1995) indicam que a flexibilização da economia se<br />

processa em dois níveis. No primeiro, a flexibilização se dá no mercado de trabalho,<br />

ou seja, nas relações entre capital e trabalho através do desmonte da legislação<br />

social (a desregulamentação do Estado-providência). No segundo, a flexibilização<br />

se dá no próprio processo produtivo através das mudanças no modo de<br />

organização e de gestão do trabalho no interior das empresas, que passam a<br />

disseminar os princípios de produção do modelo japonês. Para este autor, a<br />

ideologia neoliberal enfatiza a importância da revolução tecnológica da<br />

microeletrônica/informática em curso, difundindo que essa revolução tem de ser<br />

impulsionada e protegida. Para tanto, é preciso desregular a economia e<br />

desmobilizar o sindicato.<br />

As medidas político-econômicas neoliberais são expressões das exigências<br />

desencadeadas pela transformação da base técnica do capitalismo contemporâneo.<br />

Essas exigências são resultantes da revolução tecnológica microeletrônica e da<br />

hegemonia dos princípios toyotistas de produção, que apontam para a necessidade<br />

de “flexibilização do processo produtivo e de trabalho”.<br />

Por esta razão, concordamos com a análise de Therborn (1995, p. 39),<br />

quando observa que “o neoliberalismo é uma superestrutura ideológica e política<br />

que acompanha uma transformação histórica do capitalismo”. A transformação<br />

histórica a que se refere este teórico deve ser compreendida como a transformação<br />

na base técnica do capitalismo contemporâneo, que passou da automação rígida,<br />

isto é, com base na técnica da eletroeletrônica, para a automação flexível, ou seja,<br />

com base na técnica microeletrônica/informática. Podemos perceber que, a partir<br />

da chamada terceira revolução industrial ocorrida na década de 80, nos países de<br />

capitalismo avançado, o capitalismo vem passando por uma reestruturação técnica<br />

e, também, política. Esse processo de reestruturação vem exigindo novos<br />

mecanismos de acumulação de capital, visto que os mecanismos assentados no<br />

paradigma fordista de produção e no modo de regulação do Estado de bem-<br />

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estar social já não respondiam às novas exigências do capital. Este, em um contexto<br />

de globalização, pressiona as economias para um verdadeiro processo de<br />

desregulação e flexibilização econômica. Esse processo de flexibilização da<br />

economia pode ser analisado como a expressão econômica deste período de<br />

transição do modo de acumulação do capital, o qual vem sendo chamado como<br />

a época da pós-modernidade.<br />

De acordo com Anderson (1995, p. 23), de forma político-ideológica, o<br />

neoliberalismo alcançou um grande êxito com o qual seus fundadores sequer tinham<br />

imaginado. A aceitação da idéia de que a única alternativa para a saída da crise seria<br />

a receita neoliberal ficou constatada na maioria dos governos da década de 80 e<br />

90. Esse foi o fenômeno da hegemonia neoliberal. No pl<strong>ano</strong> social, o neoliberalismo<br />

também alcançou seu êxito criando sociedades marcadamente mais desiguais,<br />

embora não tão desestatizadas como prega a ideologia neoliberal. Entretanto, no<br />

pl<strong>ano</strong> econômico, não conseguiu nenhuma revitalização básica do capitalismo. Esse<br />

é o resultado paradoxal da receita neoliberal, mesmo com o processo de<br />

flexibilização da economia em favor do capital, a taxa de crescimento econômico<br />

ou de acumulação (efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos)<br />

não cresceu durante os <strong>ano</strong>s 80, e sim caiu em relação a seus níveis médios dos<br />

<strong>ano</strong>s 70.<br />

A recuperação dos lucros, conforme Anderson (1995), não levou à<br />

recuperação dos investimentos. Esta situação foi ocasionada pela desregulamentação<br />

financeira, visto que a mesma enquanto elemento principal da receita neoliberal<br />

criou condições mais propícias para a inversão especulativa que a produtiva. Devido<br />

a esta financeirização da economia nos <strong>ano</strong>s 80, aconteceu uma verdadeira explosão<br />

de mercados de câmbio internacional cujas transações são puramente monetárias,<br />

o que acarretou a diminuição do mercado de “mercadorias reais”.<br />

Neste sentido, o neoliberalismo pode ser analisado como uma ideologia<br />

que favorece o capital financeiro. Para Salama (1995), as conseqüências mais graves<br />

das políticas de ajustes financeiros neoliberais são a ampliação das desigualdades<br />

sociais e a quebra do aparato industrial.


Marinez Gil Nogueira<br />

Pós-modernidade: época do “conformismo generalizado”<br />

As mudanças sócio-históricas operadas nas sociedades capitalistas a partir<br />

do final da década de 70, instauraram o período do desenvolvimento capitalista<br />

chamado de pós-moderno. A pós-modernidade não pode ser entendida como<br />

uma negação radical da modernidade enquanto uma estrutura econômica e política<br />

capitalista. O que podemos perceber, conforme Santos (1993), é um “processo de<br />

transição” para novas formas de acumulação de capital e de dominação política que<br />

reforçam a estrutura capitalista.<br />

A chamada acumulação flexível desencadeou um processo de<br />

desindustrialização nos países de capitalismo avançado e de expansão das áreas de<br />

serviços. Este processo foi desencadeado por uma revolução tecnológica que<br />

modificou o mundo do trabalho e a própria constituição da classe operária.<br />

O processo de reestruturação do capitalismo contemporâneo, em que o<br />

neoliberalismo é sua expressão político-ideológica, pode ser visualizado como um<br />

processo de exclusão social, pois em todos os países em que as receitas neoliberais<br />

foram postas em prática, evidencia-se uma exacerbação da desigualdade social: os<br />

ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres.<br />

Apesar desta situação dramática de exploração e desigualdade social, o<br />

período contemporâneo pode ser caracterizado como um período de apatia política<br />

e de conformismo frente aos novos mecanismos de exploração utilizados pela<br />

ideologia neoliberal e pela perspectiva de globalização da economia.<br />

Castoriadis analisa que esse período posterior à década de 80 pode ser<br />

caracterizado:<br />

Pela evanecência do conflito social, político e ideológico<br />

[...]. Por certo também os últimos quarenta <strong>ano</strong>s viram nascer<br />

movimentos importantes de efeitos duráveis (mulheres,<br />

minorias, estudantes e jovens), esses movimentos, porém,<br />

acabaram meio fracassados; nenhum deles pôde propor<br />

nova visão da sociedade, ou afrontar o problema político<br />

global como tal (1982, p. 22).<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

tentativa de reflexão sobre...<br />

É sob esta perspectiva que Castoriadis considera que depois dos movimentos<br />

sociais reivindicatórios dos <strong>ano</strong>s 60, o projeto de “autonomia” parece ter sofrido<br />

um eclipse total, tendo em vista o peso crescente da privatização, da despolitização<br />

e do individualismo nas sociedades contemporâneas.<br />

De acordo com a análise de Sodré (1995), a situação econômica globalizada<br />

tem seu respaldo em uma dominação ideológica (neoliberal), que insiste em demonstrar<br />

que chegamos ao “fim da história”, que o socialismo mostrou-se inviável e que o<br />

futuro do capitalismo é o próprio capitalismo. Agora os países em desenvolvimento<br />

só têm uma alternativa: subjugarem-se ao domínio dos países desenvolvidos, isto é,<br />

aceitarem seus lugares no mundo globalizado.<br />

O conceito de globalização da economia deve ser entendido como um<br />

termo que vem reforçar a lógica neoliberal da “primazia do livre mercado”. Essa<br />

ideologia de defesa da globalização da economia na contemporaneidade parece<br />

contradizer a tese de Vattino (1991), para o qual o “fim da modernidade” deve-se à<br />

impossibilidade de pensar o curso histórico como um curso unitário. Entretanto, o<br />

sentido da ideologia neoliberal e o da globalização é exatamente esse, configurandose<br />

como uma reestruturação político-econômica da forma de dominação dos países<br />

em desenvolvimento pelos países de capitalismo avançado, tendo no comando os<br />

EUA. Segundo Sodré (1995, p. 3), a área capitalista chamada de Primeiro Mundo,<br />

constituída pelo conhecido grupo dos sete, passou a considerar-se como dona do<br />

mundo, cujas receitas neoliberais deveriam ser seguidas por todo o restante dos<br />

países em desenvolvimento. Esta é a ideologia de “fim da história” tão bem defendida<br />

pelo teórico Fukuyama em 1989, no contexto do fim da guerra fria.<br />

Para Vattino (1991), a pós-modernidade, época do mundo globalizado,<br />

tem seu sentido ligado ao fato de que a sociedade contemporânea é uma “sociedade<br />

dos mass media”, isto é, uma sociedade de “comunicação generalizada”. As inovações<br />

tecnológicas da área de comunicação permitiram uma explosão e multiplicação<br />

generalizada das informações e de visões de mundo, o que desencadeou nos EUA a<br />

tomada de palavra pelas minorias de todos os tipos. Desta forma, a opinião pública<br />

foi tomada pela efervescência de culturas de todos os gêneros. Entretanto, esse<br />

autor objecta que essa efervescência política tenha correspondido a uma verdadeira


Marinez Gil Nogueira<br />

emancipação política, pois o poder econômico está ainda nas mãos do grande capital.<br />

Para Vattino: “O ocidente vive uma situação explosiva, uma pluralização que parece<br />

ser irreversível e que torna impossível a concepção do mundo e da história segundo<br />

pontos de vista unitários” (1991, p. 14).<br />

Apesar da pós-modernidade, vista como uma sociedade de comunicação<br />

generalizada, apontar para efeitos de uma fragmentação da racionalidade global<br />

(usando o termo de Santos), percebe-se que essa fragmentação de visões de mundo<br />

não desempenhou nenhuma mudança substancial na hegemonia da ideologia<br />

neoliberal. Deste modo, concordamos com Sodré (1995) quando observa que o<br />

neoliberalismo deve ser entendido como uma “tecnologia da exploração moderna”.<br />

Apesar de os resultados sociais dramáticos desta exploração moderna dos países<br />

em desenvolvimento pelos países de capitalismo avançado, não se assiste a nenhuma<br />

defesa de um projeto político alternativo para o desenvolvimento histórico. Para<br />

este autor, as forças revolucionárias parecem estar conformadas com o “fim da<br />

história”.<br />

Neste sentido, compartilhamos das idéias de Castoriadis (1982) quando analisa<br />

que a pós-modernidade, em seu sentido político-cultural, pode ser entendida como<br />

a negação da crítica das realidades instituídas, tão bem exercida pelos movimentos<br />

classistas do período moderno. A situação contemporânea é assim bem definida<br />

como o período de “retração no conformismo”.<br />

Cabe-nos questionar os fatores determinantes desta situação de vazio político<br />

e de conformismo generalizado, visto que a situação atual é em si mesma geradora<br />

de conflito. É necessário refletir as causas da exploração e dominação capitalista na<br />

pós-modernidade, desvelando os fatores que vêm enfraquecendo o espírito crítico<br />

e revolucionário dos homens na busca de uma sociedade mais justa.<br />

Acreditamos que essas questões são complexas e requerem uma análise do<br />

ponto de vista objetivo, isto é, sobre as mudanças sócio-históricas do capitalismo,<br />

mas, também, é necessário uma análise do ponto de vista da subjetividade dos<br />

atores destas mudanças sócio-históricas. É necessário, portanto, levar em conta o<br />

aspecto individual do ser hum<strong>ano</strong>, tentando refletir em que momento na análise<br />

sociológica o social se singulariza e vice-versa.<br />

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tentativa de reflexão sobre...<br />

Sennet (1988) em sua obra O declínio do homem público, parece já apontar para<br />

essa necessidade quando problematiza a questão da sociedade contemporânea como<br />

um grande sistema psíquico, ou seja, uma “sociedade intimista”. O autor defende a<br />

seguinte tese: “as sociedades ocidentais estão mudando a partir de algo semelhante a<br />

um estado para o outro para um tipo voltado para a interioridade” (1988, p. 18).<br />

No desenvolvimento desta tese, procura demonstrar que o trajeto histórico<br />

da modernidade foi, também, o trajeto do declínio da esfera pública nas sociedades<br />

ocidentais. Demonstra que na sociedade contemporânea existe uma confusão entre<br />

a esfera pública e a esfera privada das relações sociais. Entendendo como esfera<br />

pública da vida, o espaço em que se mantêm relações com estranhos. E como esfera<br />

privada, a área da vida reservada às relações com os membros da família e com os<br />

amigos mais íntimos.<br />

Essa confusão entre as esferas pública e privada da vida na<br />

contemporaneidade, segundo Sennet, ocasionou uma “visão intimista da sociedade”,<br />

fazendo com que: “as pessoas tratem em termos de sentimentos pessoais os assuntos<br />

públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por códigos de<br />

significação impessoal” (1988, p. 18).<br />

Conforme Sennet, o trajeto deste declínio tem início no século 19, pois no<br />

século anterior havia um domínio do público, ou melhor, havia um equilíbrio entre<br />

a esfera pública e a esfera privada da vida. Esse equilíbrio se deve ao próprio processo<br />

de constituição da burguesia, em que a difusão das relações mercantis impulsionou o<br />

crescimento das cidades e o desenvolvimento de redes de sociabilidade. É a época<br />

de construção de enormes parques urb<strong>ano</strong>s e das primeiras tentativas de construção<br />

de ruas com a finalidade de passeios pedestres como forma de lazer. É, também, a<br />

época em que cafés e estalagens tornaram-se verdadeiros centros sociais, ou melhor,<br />

lugar de ajuntamento de pessoas. O teatro e a ópera se abriram para o grande<br />

público, demonstrando que as comodidades urbanas expandiram-se ultrapassando<br />

o pequeno círculo das elites. As classes laboriosas passaram a adotar alguns hábitos<br />

de sociabilidade, como passeios nos parques, antes exclusivos das elites. Para Sennet,<br />

o século 18 pode ser caracterizado como uma época de “integração social”, ou seja,<br />

do domínio da esfera pública, em que se configurou uma linha divisória entre vida<br />

pública e vida privada que:


Marinez Gil Nogueira<br />

Constituía essencialmente um terreno onde as exigências<br />

de civilidade – encaradas pelo comportamento em público,<br />

cosmopolita – eram defrontadas com as exigências da<br />

natureza – encarnadas pela família. Os cidadãos viam um<br />

conflito entre essas exigências; e a complexidade dessa visão<br />

residia no fato de que se recusavam a preferir uma em<br />

detrimento da outra, mantendo ambas em um estado de<br />

equilíbrio (1988, p. 20).<br />

Entretanto, esse equilíbrio entre vida pública e privada começa a desaparecer<br />

no final do século 19, mas isso não ocorreu de forma abrupta e, sim, foi resultado<br />

de um longo processo. De acordo com Sennet, esse processo foi impulsionado por<br />

duas grandes forças: primeiro, pela ascensão de um capitalismo industrial que<br />

modificou a cultura pública devido à mistificação da vida material em público,<br />

especialmente em matéria de roupas – ocasionada pela produção e distribuição em<br />

massa – que configurou uma espécie de homogeneização das vestimentas,<br />

estabelecendo de certa forma uma ocultação das diferenças, acarretando uma nova<br />

visão no entendimento das pessoas sobre as relações com estranhos, isto é, as relações<br />

no âmbito público. A Segunda força refere-se a uma espécie de reformulação do<br />

entendimento do secularismo, ou seja, da crença na vida terrena. Sennet analisa que:<br />

“A ordem da natureza do século XVIII, na qual os fenômenos tinham um lugar, mas<br />

no qual a natureza transcendia os fenômenos, foi assim subvertida” (1988, p. 37).<br />

Essa inversão se deve ao processo de fetichismo das mercadorias, que dotou<br />

as mercadorias de qualidades humanas, fazendo com que a relação entre pessoas e<br />

coisas tomassem uma nova configuração. As coisas (objetos e mercadorias) passam<br />

a tomar significação própria, melhor dizendo, objetos físicos tomam significação<br />

psicológica, subvertendo neste sentido a ordem natural. As pessoas passam de<br />

“dominadores” das coisas a “dominados por elas” (psicologia do consumo). É em<br />

meio a esse processo de fetichização das relações humanas, que na esfera pública é<br />

desencadeado um processo de estranhamento do homem com os outros homens.<br />

Segundo Santos (1993), parece que os homens no afã de dominarem a natureza,<br />

colocaram-se mais à vontade com as coisas do que com as pessoas. Esse processo<br />

de estranhamento entre as pessoas desencadeou uma nova rearticulação entre a esfera<br />

pública e privada da vida.<br />

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As análises de Sennet indicam que as pessoas passaram a atribuir um valor<br />

superior à esfera privada – como a esfera do bem moral. E passaram a visualizar a<br />

esfera pública como o lugar do “prof<strong>ano</strong>”, isto é, o lugar das relações com estranhos.<br />

Entretanto, a esfera pública continuou a ser visualizada como uma esfera de importância,<br />

no que se referia às necessidades de experienciar as situações mundanas.<br />

Desta forma, a esfera pública passou a configurar-se como uma “forma de<br />

aprendizagem” necessária à formação da personalidade. Conforme Sennet:<br />

“Gradualmente a vontade de controlar e de moldar a ordem pública foi se desgastando,<br />

e as pessoas passaram a enfatizar mais o aspecto de se protegerem dela” (1988, p. 35).<br />

Neste sentido, o autor observa um retraimento no valor atribuído à esfera<br />

pública em detrimento da esfera privada da vida do homem em sociedade.<br />

Mas, o processo de declínio do homem público para Sennet (1988) é acentuado<br />

no século 20. Para o autor, foi a geração nascida após a segunda guerra mundial que se<br />

voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais. Essa mesma geração<br />

operou a maior parte da destruição física do domínio público, no que se refere à<br />

arquitetura e ao desenvolvimento urb<strong>ano</strong> das cidades. Analisando a arquitetura pós<br />

Segunda Guerra de Nova York, Londres e Paris, demonstra que a mesma assumiu<br />

um novo conceito de projeto arquitetural, em que a “estética da visibilidade” e do<br />

“isolamento social” se fundem. O mesmo aconteceu com a organização do espaço<br />

urb<strong>ano</strong>, onde a supressão do espaço urb<strong>ano</strong> vivo se deve a perversa idéia de “fazer o<br />

espaço contingente às custas do movimento”. Por esta razão, as ruas e praças passam<br />

a ser configuradas como espaços públicos destinados à “passagem” e, não, à<br />

“permanência”, dificultando as relações sociais em público.<br />

Sennet (1988) não só analisou os aspectos sócio-históricos e econômicos deste<br />

processo de declínio da esfera pública da vida, mas, também, buscou nos recursos da<br />

psicanálise uma alternativa explicativa para compreender as causas das sociedades<br />

contemporâneas terem se tornado sociedades de “espaços públicos esvaziados”. Para<br />

ele, a visão intimista da realidade social apropriada às finalidades pessoais organiza as<br />

experiências de modo destrutivo. Segundo o autor, parece que: “As energias básicas<br />

do narcisismo são mobilizadas de modo a penetrarem sistematicamente e<br />

perversamente nas relações humanas” (p. 21).


Marinez Gil Nogueira<br />

Em sua análise, o autor define como narcisismo “a preocupação consigo<br />

mesmo que impede alguém entender aquilo que é inerente ao domínio dos EUA e<br />

da autogratificação, e aquilo que não lhe é inerente” (SENNET, 1988, p. 22). Essa<br />

obsessão, com aquilo que está na pessoa, leva ao questionamento da relevância pessoal<br />

das outras pessoas e de atos exteriores aos seus. Desta forma, a erosão de uma vida<br />

pública forte desencadeia um processo de privatização crescente nas relações sociais.<br />

Com base no referencial analítico de Sennet (1988), podemos dizer que esse<br />

aumento da preocupação com as questões relativas aos EUA acarretou a diminuição<br />

das relações sociais com estranhos, isto é, essas relações perverteram-se com a questão<br />

psicológica. Portanto, a participação social na esfera pública com objetivos coletivos<br />

cede lugar a uma espécie de “egocentrismo” e “individualismo”.<br />

Não é difícil de perceber que essa “intimização da sociedade” tem como<br />

conseqüência a passividade e a desvalorização da ação social, ocasionando, desta<br />

maneira, o que Castoriadis já analisou como o “retraimento no conformismo” da<br />

pós-modernidade.<br />

Considerações finais<br />

Percebemos, através desta reflexão, a importância na análise sociológica dos<br />

fatores tanto objetivos como subjetivos. É sob esta perspectiva que concordamos<br />

com Enriquez (1990) quando observa que a sociologia não pode ser indiferente ao<br />

problema da “alteridade”. Pois é exatamente a relação dos homens que vêm<br />

assumindo novas formas na contemporaneidade. Segundo Sennet (1988), tomam<br />

formas de relações destrutivas, assentadas em uma espécie de narcisismo que impede<br />

a ação social devido às forças egocêntricas e individualistas disseminadas na sociedade.<br />

Segundo Enriquez (1990), Freud já apontava a fragilidade da sociologia ao<br />

ignorar o psiquismo individual e coletivo na explicação dos fenômenos sociais.<br />

Neste sentido, aponta como núcleo de análise das ciências sociais a noção de<br />

“alteridade”, compreendendo esse termo como as modalidades específicas com as<br />

quais entramos em contato com um outro ser, aceitando vê-lo em sua singularidade.<br />

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tentativa de reflexão sobre...<br />

Essa singularidade diz respeito às diferenças humanas e suas unicidades, visto que<br />

somos seres plurais, diferenciados e únicos.<br />

Deste modo, na contemporaneidade emerge nas ciências sociais a importância<br />

da “subjetividade” como eixo explicativo dos fenômenos sociais. Passou-se a refletir<br />

a necessidade de não isolar as análises do social apenas no foco da estrutura social.<br />

Conforme Enriquez:<br />

Adeus a uma sociologia sumária que agrupa, num mesmo<br />

conjunto, sujeitos apresentando características<br />

socioeconômicas semelhantes, pois ela não poderá nos<br />

permitir prever as condutas destes indivíduos ditos<br />

semelhantes: um agrupamento em uma classe lógica de<br />

operários não formará uma classe operária, ou seja, um<br />

grupo que tem um projeto, uma orientação normativa, uma<br />

consciência solidária dos problemas, nem formará, a fortiori,<br />

um proletariado, encarregado pela história de liberar a<br />

humanidade de suas amarras (1990, p. 50).<br />

O autor demonstra a necessidade de levar-se em conta as diferenças<br />

individuais dos sujeitos que constituem os grupos sociais, percebendo os conflitos<br />

sociais em sua cotidianeidade. É necessário analisar as relações sociais não só através<br />

de uma análise dos sistemas e dos modos de produção, mas, também, levar em<br />

consideração a subjetividade dos sujeitos que constituem esses sistemas produtivos,<br />

percebendo o confronto entre si, ou seja, levando em conta a noção de “alteridade”.<br />

Hannah Arendt (1981) já bem nos lembrava a questão da pluralidade do ser hum<strong>ano</strong><br />

quando observa que são os homens, e não o homem, que vivem na terra e habitam<br />

o mundo.<br />

De acordo com essa perspectiva, entendemos que a contemporaneidade<br />

aponta para novas formas de compreensão da noção de classe social, enfraquecendose<br />

a noção de um “sujeito único da história”. A fragmentação da racionalidade<br />

humana, em meio a uma cultura política globalizada, leva-nos a refletir sobre a<br />

necessidade de criar-se novas formas de organização social a partir dos conflitos<br />

cotidi<strong>ano</strong>s, abrangendo os mais variados segmentos sociais que experimentam os<br />

mesmos problemas e injustiças sociais. Por esta razão, concordamos com Thompson


Marinez Gil Nogueira<br />

(1984) quando analisa que: “A classe social se forja na luta social [...] não é mera<br />

derivação da estrutura social capitalista, ela se forma na luta cotidiana contra essa<br />

estrutura” (p. 37).<br />

Percebe-se que para este autor é na cotidianeidade que se forma a consciência<br />

de classe. Mas, nós nos perguntamos como motivar ações sociais críticas de classe,<br />

quando estamos na contemporaneidade mergulhados numa espécie de privatização<br />

destas ações, em que o individualismo fala mais alto que o coletivismo?<br />

Acreditamos que a situação atual analisada como de “conformismo<br />

generalizado” por Castoriadis (1982) tem relação com essa “intimização das relações<br />

sociais” analisadas por Sennet (1988). Essa “intimização” parece estar impedindo<br />

que as pessoas vivenciem a exploração, as injustiças e as desigualdades sociais de<br />

forma coletiva.<br />

Sob esta ótica, compartilhamos com as idéias de Barrigton Moore, quando<br />

analisa que:<br />

As proposições universais sobre a primazia das mudanças<br />

econômicas devem ser rejeitadas de todo. Sem sentimentos<br />

de indignação morais fortes, os seres hum<strong>ano</strong>s não agirão<br />

contra a ordem social. Neste sentido, as convicções morais<br />

se transformam num elemento igualmente necessário para<br />

mudanças na ordem social em conjunto com as alterações<br />

na estrutura econômica (1987, p. 635).<br />

No entanto, o contexto atual do desenvolvimento capitalista, entendido nesta<br />

análise como o contexto da chamada pós-modernidade, demonstra que o<br />

“conformismo” e a “apatia política” são sintomas agudos. Portanto, faz-se necessário<br />

refletir quais os meios que podem levar os homens a vivenciarem os sentimentos de<br />

indignação moral de maneira coletiva, ou seja, como fazer para que esses sentimentos<br />

extrapolem a esfera privada da vida e impulsionem ações políticas coletivas. Essa é<br />

uma reflexão que deve ser amadurecida por todos aqueles que buscam superar os<br />

entraves político-econômicos e culturais que vêm bloqueando, ou melhor, minando<br />

as energias de resistência coletiva. É necessário compreender a rede complexa de<br />

fatores objetivos e subjetivos que consubstanciam as relações sociais na chamada<br />

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Pós-modernidade: uma<br />

tentativa de reflexão sobre...<br />

“pós-modernidade”. É necessário, portanto, compreendermos a expressão<br />

econômica da mesma, desnudando os mecanismos da reestruturação capitalista<br />

através das novas formas de acumulação flexível, como, também, sua expressão<br />

política, desvelando as causas da hegemonia da ideologia neoliberal.<br />

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Resumo<br />

Claude Imbert<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido 1<br />

Claude Imbert 2<br />

O artigo analisa a relação entre filosofia e ciências humanas e<br />

como esse processo ocorreu historicamente desde a herança kantiana,<br />

passando por Durkheim, Lévi-Strauss, concentrando-se especialmente em<br />

Merleau-Ponty.<br />

Palavras-chave<br />

Abstract<br />

Filosofia; fenomenologia; sociologia; ciência.<br />

The article analyses the relationship between philosophy and<br />

human sciences. And, as this process had happened historically since<br />

1 Tradução de Nelson Matos de Noronha, Doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia e do<br />

Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.<br />

Revisão Técnica de Lileaneane Praia Portela de Aguiar, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em<br />

Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, Professora da Faculdade Objetivo.<br />

2 Professora de Filosofia da École Normale Supérieure de Paris; professora associada da Universidade da<br />

Califórnia; professora associada da Universidade John Hopkins; Felow da Getty Foundation, Santa Mônica;<br />

autora de Phénomenoligies et langues formulaires. PUF, 1992, e da tradução francesa dos Ecrits logiques et<br />

philosophiques, de G. Frege.<br />

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Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

Kant, Durckheim, Levi-Strauss, the acme of the deeds was especially pointed out<br />

in Mereau-Ponty.<br />

Keywords<br />

Philosophy; phenomenology; sociology; science.<br />

Desde o meio do século, filosofia e ciências humanas institucionalizaram<br />

suas relações. Uma mesma rubrica as reuniu nas classificações da Unesco. No seio da<br />

universidade francesa, o conflito havia sido rude. O que não impede que, em algumas<br />

décadas, a rivalidade tenha cedido à aceitação. Uma cadeira de sociologia foi criada<br />

por Émile Durkheim em 1913. O Instituto de Etnologia, confiado a Marcel Mauss<br />

e a Lucien Lévy-Bruhl, o foi em 1929, precedendo de pouco a abertura do Museu<br />

do Homem. A partir da guerra, a fundação da Maison des sciences de l’homme [Casa das<br />

Ciências do Homem], a independência adquirida pela École des hautes études en sciences<br />

sociales [Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais] e o lugar hoje concedido à<br />

filosofia confirmaram a aliança cordial das disciplinas. Vista pelo lado das ciências<br />

humanas, essa história já está escrita. 3 Resta considerar aquilo de que este breve quadro<br />

institucional nada disse ainda, isto é, uma seqüência de acontecimentos internos à<br />

filosofia onde sua identidade esteve em jogo. Não esqueçamos que houve<br />

enxameamento. Durkheim, Lévy-Bruhl e Mauss eram filósofos de formação. Isso<br />

também foi verdade para Raymond Aron, Jean Pierre Vernant e Claude Lévi-Strauss,<br />

e verifica-se ainda na geração seguinte. O mesmo ocorreu na Alemanha, onde Ernst<br />

Cassirer, publicando Individuum und Cosmos em 1927 na Biblioteca Warburg, deu o<br />

exemplo.<br />

Ora, qualquer que tenha sido a distância tomada em relação à primeira<br />

disciplina, a ruptura ainda está bem distante de ser facilmente assinalável. Para cada<br />

3 Por exemplo, Wolf Lepenies, Les trois cultures: entre science et littératture, l’avènement de la sociologie, 1990, et, Giuliana<br />

Gemelli, Fernand Braudel, préf. De Maurice Aymard, 1995.


Claude Imbert<br />

um desses trânsfugas, assim como para as disciplinas que eles abriram, as coisas se<br />

passaram de forma bem diferente daquilo que se sucedeu no caso das ciências<br />

exatas. Aqui, a independência da física foi consumada com Galileu, a das<br />

matemáticas, com d’Alembert e Gauss. Ali, as fronteiras permaneceram móveis:<br />

entre um saber e um outro, entre todos eles e a filosofia. A filosofia das formas<br />

simbólicas, de Ernst Cassirer, caucionaria, por muito tempo, uma transação de dupla<br />

entrada à qual ninguém renunciava. Resta compreender o porquê e o como dessa<br />

situação de fato. Diminutio capitis 4 para muitos, ou salutar conseqüência da extensão<br />

de um saber para a qual a filosofia clássica não tinha rubrica? Isso ainda está em<br />

disputa. Mas não mais a partilha dos domínios, tão evidente que nem mesmo a<br />

destituição hierárquica toca no essencial. Trata-se aqui de uma prova em que a<br />

atividade filosófica se encontrava confrontada com o seu exterior (dehors), com<br />

sua própria história e com sua operação. 5<br />

Colocar-nos-emos, portanto, deliberadamente ao lado de uma filosofia<br />

do pós-guerra, que não cedia em face dessas ciências humanas que, da história à<br />

sociologia, cruzavam seu propósito e partilhavam muitas de suas incertezas. E<br />

uma vez que Sartre e Merleau-Ponty arbitraram em sentido inverso, é preciso<br />

pensar que aí se passou alguma coisa de essencial para a filosofia contemporânea.<br />

O primeiro apóia sua Crítica da razão dialética. Para ele, a antropologia vinha em<br />

continuidade com a história, como fundo de quadro da literatura. Mas Sartre em<br />

nada cedia da trama filosófica que lhe dá sentido: o homem-sujeito. A situação dá<br />

à experiência sua variante dialética e concreta. Da literatura que ele faz ou que lê, de<br />

A portas fechadas aos Caminhos da liberdade, de Faulkner a Mallarmé, de Que é a<br />

literatura? a O idiota da família, Sartre reitera a questão de possibilidade dos Tempos<br />

modernos: da coisa, ela mesma, da escritura que dela circunscreveu o desafio e da<br />

revista que dela conduzia o debate. E isto para afrontar a memória de duas guerras,<br />

a perspectiva de uma outra, a ausência de visão da filosofia sobre a atualidade<br />

social e política, e o niilismo que elas destilam. Ele opunha ao huis clos 6 filosófico à<br />

4 Nota do tradutor: o Dicionário Barsa da Língua Portuguesa Ilustrado (v. 2 Jabá-Zuzá, Cia. Melhoramentos de São Paulo,<br />

1980, p. 1330) fornece-nos o seguinte sentido da expressão capitis diminutio: Dir. Diminuição de capacidade. Empregada<br />

para designar a perda da autoridade.<br />

5 Cf. Maurice Merleau-Ponty, Signes, chap. V: “Partout et nulle part, la Philosophie et le dehors”.<br />

6 N. T. Da expressão jurídica “à huis clos” (a portas fechadas).<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

205


206 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

segurança solipsista de que “o inferno são os outros”, esse humanismo renovado<br />

que ele chama ocasionalmente de antropologia. Isto quer dizer que a antropologia<br />

pode, por ela mesma, ser filosofia? À sua própria questão, Sartre responde que o<br />

homem da antropologia é objeto, o homem da filosofia, objeto-sujeito. E isto<br />

sem jamais cessar de dar sua confiança à história nem de delegar a expressão desta<br />

à criação literária. A Crítica da razão dialética corrigia, portanto, o jogo do tudo ou<br />

nada, da consciência absoluta e de sua liquidação, no qual Sartre havia engajado<br />

vinte <strong>ano</strong>s mais cedo sua carreira filosófica 7 . Ela não o mudará.<br />

Nos mesmos <strong>ano</strong>s cinqüenta, Merleau-Ponty já havia esgotado todas as<br />

maneiras concebíveis de forçar o estreitamento de uma conceptualidade filosófica<br />

fixada pelas condições kantianas da experiência. A estrutura do comportamento fixava<br />

a instância filosófica na instabilidade [mouvance] de uma série de comportamentos<br />

dos quais ela se encarregaria, em seguida, de substituir. Quanto à Fenomenologia da<br />

percepção, ela desenvolvia o momento perceptivo a partir de suas preliminares<br />

psicofisiológicas até, para além dela, a existência na história. Mas, tendo escolhido<br />

uma descrição fenomenológica para seu acesso ao concreto, Merleau-Ponty se<br />

encontrava preso à armadilha de uma estrutura de coisa e de fato que nenhuma<br />

significação poderia dissolver, que nenhum apelo à literatura, à pintura ou aos<br />

enquadramentos surrealistas poderia transgredir. Primeiro fracasso no ensaio de<br />

uma dialética concreta onde Husserl teria completado Hegel e todas as<br />

fenomenologias uniriam seus esforços. Um pouco mais tarde, ser-lhe-á necessário<br />

reconhecer que “a dialética está em pane”. Restava-lhe abandonar uma história<br />

fechada, recomendando nela jogar-se o olhar “ingênuo” do antropólogo [...]<br />

Sartre e Merleau-Ponty estavam, portanto, igualmente convencidos, até<br />

em seus desacordos políticos, da não efetividade [ineffectivité] de uma maneira<br />

filosófica que eles já haviam, um e outro, tirado de seus gonzos. Entretanto, Sartre<br />

perseverará, do interior de uma filosofia do sujeito, [ainda que] tivesse [para tanto]<br />

de emprestar as vias do teatro, do editorial político e da literatura. Merleau-Ponty,<br />

por sua parte, desvia-se das fórmulas da existência e se interroga sobre a<br />

possibilidade mesma da filosofia. Ele havia abandonado o projeto de uma Prosa<br />

7 Cf. Entrevista dada após a publicação da Crítica da razão dialética.


Claude Imbert<br />

do mundo e desacreditava da ação. De fato, ele abria uma outra história e a engajava<br />

no que ele chamará, em suas últimas notas e retomando uma fórmula de Cavaillès,<br />

algumas amostras de pensamento fundamental 8 . Tratava-se de uma teoria da<br />

expressão da qual depende toda consciência filosófica. Ela seria, desta vez,<br />

diversificada segundo seus suportes e suas intenções. Tendo o criticismo saturado<br />

sua capacidade de realismo, esgotado sua tábua das categorias em uma experiência<br />

fechada sobre fórmulas “newtonianas” privadas de futuro, era preciso recolocar<br />

em movimento a empresa filosófica e recusar a uma analítica a imposição de seus<br />

direitos plenos sobre todas as outras. É aqui que se fez o encontro com Lévi-<br />

Strauss. Aqui se confirmava que era possível evitar o criticismo e desatar seus nós.<br />

Doravante a antropologia dos filósofos terá cessado de ser um chavão. “Hegel,<br />

dizia Merleau-Ponty no momento em que tomava sua última licença, jamais escolheu<br />

entre a antropologia e a lógica”. Dito em uma frase, era um olhar jogado sobre<br />

sua própria história e a confissão de sua própria renúncia à ilusão de uma dialética<br />

concreta.<br />

Nós estaríamos, então, reduzidos aos limites da questão se, em meados<br />

do século, a etnografia não houvesse, ela mesma, redefinido seu realismo e<br />

atravessado o obstáculo que se lhe opõem as condições kantianas da experiência.<br />

Merleau-Ponty havia reconhecido aí o sentido de um debate conduzido entre dois<br />

etnólogos de rostos filosóficos e kanti<strong>ano</strong>s de formação. O encontro se fez,<br />

portanto, sobre algumas questões, elas mesmas banais – natureza e cultura, a<br />

modernidade, a crise do saber, a subjetividade, a troca –, mas sobre as quais a<br />

filosofia, de par com sua natureza própria, precisamente não possuía outras<br />

abordagens além de suas distantes e por vezes queixosas maneiras de dizer. Ao<br />

passo que entre Mauss e Lévi-Strauss se havia preparado uma saída que Merleau-<br />

Ponty foi incontestavelmente o primeiro a perceber. Desejar-se-ia relembrar esse<br />

diálogo em termos pelos quais se declarará abertamente nossa dívida para com<br />

seus protagonistas. Porque nos dois casos tratava-se de sair honradamente de uma<br />

metodologia kantiana, de romper um limite no momento em que a urgência era<br />

sublinhada por uma falha histórica.<br />

8 Maurice Merleau-Ponty, Notes de cours, 1959-1961, p. 166/391.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

207


A possibilidade da etnografia<br />

208 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

Durkheim 9 constituíra sua disciplina no rastro de Comte. Ele empenhavase,<br />

então, para fazer progredir a sociologia em uma escala definida entre a idade<br />

teológica e a idade positiva. Tanto que As regras do método sociológico ensinam a tratar os<br />

fatos sociais como coisas. Mas a matéria e a ocasião de sua dissidência filosófica não<br />

se formam tão graciosamente. A divisão do trabalho social, depois O suicídio, ou As<br />

formas elementares da vida religiosa, que afrontavam a questão moderna da integração<br />

social, deviam vir a tratar de algumas dinâmicas sociais e de sua interiorização. Uma<br />

abordagem [approche] positivista de tais fenômenos, como coisa e como fato, não<br />

tardava a tocar seu limite. Por mais novos e convincentes que tenham sido os quadros<br />

estatísticos e as classificações, eles já eram absolutamente outra coisa que fatos de<br />

experiência. Eles não carregavam como sua conseqüência a explicação que lhes dava<br />

Durkheim. O cuidado da informação e da objetividade empurrava a análise em<br />

direção a fatos que subitamente tomavam a forma de instituições. Por seu turno, e<br />

como a dialética, o positivismo tornava-se um chavão e uma espécie [manière] de<br />

ponto de honra. De fato, As formas elementares da vida religiosa remetiam ao totemismo<br />

australi<strong>ano</strong>.<br />

Fenômenos incontestavelmente sociais, pensados, conceptualizados e<br />

objetivados em uma escala social solicitavam, de início, uma reflexão sobre a<br />

conceptualidade adequada. Eles pediam uma abordagem [approche] endógena das<br />

categorias religiosas: daí uma outra metodologia. Todavia, Durkheim preservava o<br />

esquema geral da experiência. Ele supõe uma coletividade-sujeito, postula<br />

representações coletivas e esboça uma lógica que recolheria a pregnância [pregnance]<br />

do social. Daí esse ensaio, Sobre algumas formas primitivas de classificação, do qual Needham<br />

pôde dizer que ele pressupõe a questão 10 . Tocava-se no esgotamento de um método<br />

criticista, reconduzindo a experiência a suas condições de possibilidade. Não se tratava<br />

de uma demissão em favor do arcaico ou do pré-lógico, portanto, do que foi<br />

necessário pensar como o impensável, mas de objetivar simultaneamente uma realidade<br />

9 Cf. Claude Lévi-Struass, La sociologie française in Socilogie au xxe siècle.<br />

10 Needham, Préface à la traduction anglaise. L’essai du à la collaboration de Mauss et Durkheim avit été publié en 1903 avec<br />

le sous-titre: Contribution à l’étude des représentatttions collectives.


Claude Imbert<br />

e as maneiras de pensá-la. Uma tal empresa, que não poderia renegar o criticismo,<br />

não era menos intrusa em uma economia de juízo transcendental onde a variação<br />

das opções simbólicas é precisamente o que é excluído. Restava-lhe fazer valer suas<br />

razões.<br />

Desde então, ao mesmo tempo em que a sociologia se tornaria o<br />

conhecimento empírico que ela desejava ser e no qual se torna efetivamente, ela teria<br />

de assumir como uma parte dela mesma o que lhe provinha das questões ligadas à<br />

sua própria dissidência filosófica. Porque o domínio que ela se atribuía desconcertava<br />

o método e a epistemologia dos fatos e das coisas. Era necessário repensar a<br />

experiência, em vista da conjunção de fenômenos ainda não percebidos e de sua<br />

inteligibilidade. Faltava conceber uma alternativa a Kant, mas que estivesse à altura<br />

do criticismo.<br />

Após Durkheim, a mesma demanda permanecia. Desta vez, ela se encontrava<br />

ligada à experiência de campo. O desafio não era o de uma comunicação com o<br />

extremo exótico, que, verossimilmente, continuava ausente – todo etnógrafo tendo<br />

experimentado essa decepção que Leiris descreve, da mesma forma que o fazem<br />

Malinowski e alguns episódios narrados por Lévi-Strauss 11 . Tratava-se da possibilidade<br />

de a etnografia nesse momento de uma história européia que a primeira guerra havia<br />

desembriagado do colonialismo, talvez mesmo de sua necessidade quando esta história<br />

fragmentava-se em reivindicações e ressentimentos. A questão subjaz aos escritos de<br />

Mauss, atravessa os últimos Cadernos de Lévy-Bruhl e faz de Tristes trópicos um grande<br />

livro de filosofia. A prova da descrição etnográfica, e o Manual de Mauss que a<br />

fornece, haviam atuado tal como um revelador. Uma factualidade, da qual em vão<br />

se solicitava as coordenadas da experiência, transformara-se em double-bind do<br />

etnógrafo. Não porque o racionalismo barrasse o vivido e a intuição, mas porque ele<br />

não estava à altura de suas ambições. Todo um passado de descrição, vindo de<br />

Heródoto, de Estrabão e de Boungainville provava de sua própria cegueira. Alguma<br />

coisa escapava a uma experiência forjada e endurecida ao fogo do criticismo e que<br />

não era da ordem do conhecimento do outro – questão interna à filosofia – nem da<br />

dificuldade de acolher o estrangeiro, esta aqui interna à ética ou à vida civil. A filosofia<br />

11 Cf. Afrique fantôme de Leiris, Les carnets, de Malinowski e Tristes tropiques.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

209


210 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

descobria subitamente sua tarefa cega, uma operação que ela não podia conceber.<br />

Confrontada a condutas e instituições que desdenhavam a descrição, Mauss fazia ver<br />

um exterior [dehors] inscrito no mais íntimo de nós mesmos. Ele solicitava uma<br />

possibilidade de pensar que devia ser nossa de uma certa maneira, mas que precisava<br />

ser retirada de suas manifestações opacas. Esse desafio pedia por uma abordagem<br />

[approche] indireta de nós mesmos. Esses filósofos trânsfugas experimentavam<br />

simultaneamente o huis clos <strong>12</strong> da filosofia, do qual eles tinham fugido, e o exterior<br />

desse huis clos 13 . Mas nenhum deles renunciava a compreender, isto é, a um postulado<br />

de humanidade acompanhado de todos os seus possíveis.<br />

Antropologia e subjetividade: a herança kantiana<br />

Esse conhecimento antropológico subitamente preso em uma dobra<br />

aporética revelava uma situação virtualmente imposta por Kant. Com efeito, Kant<br />

havia atribuído dois lugares à antropologia. Houve, primeiro, seu ensinamento popular,<br />

publicado como Antropologia do ponto de vista pragmático. No mesmo gênero, um<br />

ensinamento introdutório e popular, o Curso de lógica, enumera as questões filosóficas<br />

legítimas: “Que posso conhecer?”, “Que posso esperar?”, “Que devo fazer?”. As<br />

quais dependem, acrescenta Kant, de uma quarta: “Que é o homem?”. Mas Kant<br />

exclui finalmente esta ordem. A esta quarta questão, jamais tratada como tal, as três<br />

Críticas, que haviam assumido o encargo das três primeiras, teriam, portanto,<br />

respondido implicitamente: o homem é apenas seu ponto de encontro, aí ele encontra<br />

sua definição. As três Críticas são, de resto, organizadas sobre o paradigma do juízo.<br />

Sua tábua lógica é o emblema efetivo de uma subjetividade humana pelo resto<br />

perdida nas profun<strong>dez</strong>as do Gemüth (do “espírito”): aí onde o natural do homem e<br />

as condições transcendentais do pensamento enquanto experiência mantém seu<br />

enigmático comércio. Seguindo uma observação incidente da primeira Crítica, o<br />

homem seria definitivamente um fenômeno para o homem – deve-se compreender<br />

que seria passível de um conhecimento circunscrito pelos princípios da experiência?<br />

<strong>12</strong> N. T.: em itálico, em francês, no texto.<br />

13 Idem.


Claude Imbert<br />

Mas essa antropologia positiva jamais foi escrita. O homem de Kant se esgota entre<br />

seu segredo transcendental e o protocolo das três Críticas, compreendendo-se aí o<br />

que cada uma delas tolera em suas implicações – uma tendência natural às ilusões<br />

dialéticas, eventualmente algum gênio, e sempre a escolha do mal. Ele experimentará<br />

a lei moral como aflição e obrigação.<br />

Antropologia pragmática e Crítica da razão pura estariam, pois, definitivamente<br />

disjuntas, se Kant não houvesse, por duas vezes, indicado sua ligação. De início, o<br />

curso publicado destaca um momento decisivo na aprendizagem da linguagem,<br />

aquele em que a criança adquire o uso da primeira pessoa. 14 Esse progresso, do qual<br />

ela jamais retrocederá, também é o acesso à terceira pessoa 15 da experiência. Do<br />

mesmo modo, é o brutal surgimento da razão na história individual.<br />

Comparativamente, o Prefácio à segunda edição da primeira Crítica traça a linha de<br />

um gênio transcendental que escalona na história da humanidade uma série de<br />

conceptualidades. Essas etapas fragmentam e preparam a revolução copernicana<br />

em filosofia. A cada vez a experiência se enriquece com uma nova determinação.<br />

Mas todos, Tales, Galileu e alguns outros, operam na envergadura ou forma de uma<br />

operação descoberta por Aristóteles e que ergue, no corpo da obra, a tábua anônima<br />

das funções lógicas. A posse do “eu digo” [je dis] da antropologia pragmática está<br />

inscrita, portanto, no “eu penso” [je pense] transcendental. A primeira pessoa continua<br />

a operar tacitamente em cada um de nossos juízos. O positivismo do fato é uma<br />

enunciação assumida. A Antropologia Pragmática recolhia em um processo de<br />

educação uma manifestação da subjetividade transcendental. A Crítica se desenvolve<br />

justamente para além [de tal manifestação], na tábua das funções lógicas do eu penso<br />

[je pense]. O mesmo fato decidirá sobre a resposta à questão “Que são as Luzes?”.<br />

São, para Kant, a maturidade da razão manifestada pela tomada em mãos de suas<br />

própria operações. A enigmática tábua lógica recolhia então, de fato, toda uma<br />

fenomenologia do espírito.<br />

Mauss também esboçou uma gênese da subjetividade filosófica moderna,<br />

mas esquivando-se do transcendentalismo. Uma conferência tardia e como que<br />

14 Grifo do autor.<br />

15 Idem.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

211


2<strong>12</strong> <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

testamentária, Uma categoria do espírito hum<strong>ano</strong>: a noção de pessoa, a do ‘eu’ [moi] (1938),<br />

destaca o momento essencial em que, em Roma, o estoicismo encontrara um ritual<br />

etrusco: uma cerimônia funerária com máscaras. Uma vez amarradas a função social<br />

da máscara e a consciência moral no direito pessoal rom<strong>ano</strong>, Mauss segue uma linha<br />

que conduz a Kant e a Fichte. A hipótese, esboçada por toques disjuntos, tem em<br />

seu favor a evidente permanência do estoicismo lógico e do jurisdicismo rom<strong>ano</strong><br />

até no vocabulário da Crítica kantiana. Ela torna-se ainda mais equívoca em suas<br />

implicações. Dever-se-ia concluir que a filosofia estava presa em uma história que<br />

não seria a sua? Ou bem essa história traçada retrospectivamente devolvia, no fim<br />

das contas, a substância da antropologia social à filosofia? Ou, ainda, Mauss explicitava<br />

uma hipótese que havia tacitamente acompanhado seu Ensaio sobre o dom, de <strong>dez</strong> <strong>ano</strong>s<br />

antes, a de uma consciência moderna já engajada no officium jurídico da troca, e que<br />

devia solicitar a ela mesma desvelando um novo transcendentalismo? Aí se fazia<br />

valer um encontro onde poderíamos, com efeito, reconhecer a moral kantiana da<br />

escola francesa de sociologia, em nome da qual ele pretendeu falar, nas cercanias da<br />

Segunda Guerra, diante de um público de antropólogos ingleses.<br />

Quanto à intenção filosófica do Ensaio, se o dom é mesmo um fato social<br />

do gênero que visavam as Regras do método sociológico, Mauss o havia arrancado à sua<br />

dispersão geográfica ou institucional, a sua não visibilidade para transpor o seu esquema<br />

em três momentos lógicos. Essas três instâncias de julgamento distribuíam a<br />

necessidade [desse esquema]: deve-se dar; deve-se aceitar; deve-se devolver. Uma<br />

versão não crítica do mesmo fato transportará essas mesmas modalidades para a<br />

coisa, qualificada, por seu turno, como devendo ser dada, aceita e devolvida. Ora,<br />

uma teoria indígena, notava Mauss, confere ao objeto do dom uma força (o hau)<br />

que o conduz no circuito da troca e o torna coativo. Relendo e prefaciando o Ensaio<br />

sobre o dom, Lévi-Strauss destacou esse kantismo latente. Ocorreu a Mauss o fato de<br />

não ter tirado vantagem de sua própria descoberta, de ter deixado para Malinowski<br />

[o privilégio] de dar a fórmula funcional da troca e ao próprio Lévi-Strauss o de dar<br />

a expressão não modalizada das Estruturas elementares do parentesco. Além disso, quando<br />

Lévi-Strauss redefiniu o fenômeno social total pela inclusão de seu observador, ele<br />

fazia uma oferta mais alta [surenchère] que a do criticismo. Se, por um lado, ele o<br />

descartava, evidentemente, por um outro lado, dava-lhe a versão generalizada, quer


Claude Imbert<br />

dizer, liberada dessa estrutura de juízo que havia valido a Kant seu sucesso, mas<br />

também o fechamento de seu sistema e brevemente seu esgotamento 16 . Como<br />

toda experiência, a experiência etnográfica é um processo de dupla alienação de si<br />

e de subjetivação do heterogêneo 17 . Ele dá-se nas condições em que a coisa é<br />

possível, quer dizer, pelo viés de propriedades psicofisiológicas latentes e<br />

inconscientes, e das expressões simbólicas em que os homens se encontram. A<br />

capacidade de aceder ao simbolismo precede o social; e, sobre este ponto, Lévi-<br />

Strauss liberava a escola durkheimiana de sua hipótese mais carregada: a das<br />

representações coletivas. A aprendizagem no seio de uma sociedade não difere,<br />

em essência, da aprendizagem de uma outra sociedade, quando até mesmo esta<br />

última [aprendizagem] encontraria mais cedo seu limite e pagaria, com este alto<br />

preço, o privilégio de ter tomado consciência de suas operações. “A observação<br />

sociológica, condenada, parece, pela intransponível antinomia que liberamos [...],<br />

dela escapa graças à capacidade do sujeito de objetivar-se indefinidamente, quer<br />

dizer (sem jamais chegar a abolir-se como sujeito), de projetar para o exterior<br />

frações sempre decrescentes de si” 18 . Este arruinamento do kantismo, a pesquisa<br />

de outros suportes simbólicos que não aqueles privilegiados pelo helenismo e<br />

retomados como tais por Kant, tudo isso se tornará claro quando Lévi-Strauss<br />

revelar as operações de um Pensamento selvagem, de um pensamento sem escritura,<br />

mas, por isso mesmo, exercitado em simbolismos aderentes. Ficará visível, então,<br />

que a bifurcação escolhida pelos gregos, a inscrição das qualidades em uma estrutura<br />

discursiva consciente do regime de suas articulações, por mais preciosa, fecunda e<br />

nossa que ela tenha sido, não tinha qualquer necessidade. Nem esta opção nem seu<br />

destino fenomenológico aboliram o que haviam descartado. A via das máscaras,<br />

plena dos pré-requisitos estabelecidos nas Mitológicas, transportará para outros<br />

substratos simbólicos, pratos rituais, máscaras, placas de cobre e mitos, toda a<br />

matéria ameríndia do Ensaio sobre o dom.<br />

16 ‘Se Mauss havia podido conceber o problema do juízo de outra forma que não nos termos da lógica clássica, e formulálo<br />

em termo da lógica das relações, então, com o próprio papel da cópula, seriam arruinadas as noções que têm lugar na<br />

argumentação’ (‘Introdução à obra de Marcel Mauss’, Sociologia e antropologia, p. 11).<br />

17 ‘Assim, a apreensão (que só pode ser objetiva) das formas inconscientes da atividade do espírito, conduz, da mesma forma,<br />

à subjetivação’ (Ibid., p. 31).<br />

18 ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’, Sociologia e antropologia, p. 29.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

213


214 <strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

Não se tratava, portanto, de criticar o criticismo, mas de reconhecer suas<br />

razões, seus meios e seu preço. Uma vez que estes estiverem identificados, poder-seá<br />

evitar o caráter fechado [do criticismo]. Estava claro que as fórmulas do juízo de<br />

experiência se encontravam ameaçadas de solipsismo, ou já devolvidas a seu simples<br />

protocolo jurídico, uma vez que as ciências matemáticas e naturais lhe haviam retirado<br />

suas operações. Mas, sobretudo, chegou o momento de renunciar a um princípio de<br />

adequação, sancionado pela equação entre as condições do objeto da experiência e<br />

as da experiência do objeto. Gerando apenas por si mesma o desencantamento do<br />

mundo, a experiência necessitava cimentar sua legitimidade, ainda que esta viesse a<br />

ser o complemento de uma teologia moral sem sacramentos e de uma razão prática<br />

sem obras nem retribuições. Em face do que a troca e o fenômeno social total<br />

teriam oferecido a ocasião de identificar um processo de subjetivação que a inteligência<br />

etnográfica deveria levar a seu ponto de elucidação. Eis aí um processo que Mauss<br />

havia, sem dúvida alguma, esboçado em sua história antropológica da pessoa, mas<br />

que ele havia confiado a esta alta elaboração do helenismo que foi o estoicismo. Seria<br />

necessário que ele culminasse na consciência transcendental e na filosofia de Fichte?<br />

Subjetivação, o termo havia sido adiantado por Claude Lévi-Strauss, e sem ter sido,<br />

então, comentado de outra forma. Doravante, dever-se-á ter, conjuntamente, duas<br />

fórmulas: a das Mitológicas, dizendo que, para conhecer o homem, é preciso desfazêlo,<br />

quer dizer, reabrir-lhe as possibilidades, e o processo de alienação e de subjetivação<br />

que está no coração de todo conhecimento filosófico. Portanto, não era apenas o<br />

helenismo como cultura que se encontrava reduzido à sua singularidade. Tornava-se<br />

menos convincente a escolha kantiana de uma operação lógica fixada pelo helenismo<br />

quando era necessário aceder à modernidade das ciências. A etnografia nasceu<br />

precisamente quando as ciências e as artes renunciaram, com toda evidência, à<br />

adequação, aos procedimentos miméticos e às traduções proposicionais: quer dizer,<br />

quando a fenomenologia entrou em seu luto.<br />

A conquista do concreto<br />

A lição dos etnólogos não retornava à filosofia como um modelo a seguir<br />

ou um convite à demissão: ela a incitava a reconhecer suas próprias opções, a confessar


Claude Imbert<br />

que sua legitimidade havia danificado seus motivos e que seus interditos cediam a<br />

outras virtualidades. Só veríamos melhor o preço da pesada herança do criticismo<br />

da qual nem a versão ostensiva apresentada pela exposição kantiana, nem a versão<br />

regressiva dos neokanti<strong>ano</strong>s podiam mais ser satisfatórias. Entretanto, nenhum esforço<br />

havia sido empregado [para chegar-se a tal situação] pelos filósofos. Merleau-Ponty<br />

havia querido renovar a primeira, partindo da psicologia da percepção. Dez <strong>ano</strong>s<br />

mais tarde, Jules Vuillemim explicitará rigorosamente a versão regressiva, a transcrição<br />

das funções newtonianas nas sínteses do juízo de experiência 19 . Mas nem um nem<br />

outro produziram sua extensão ou sua substituta. Nada poderia fazê-lo. Nem a<br />

ambigüidade sistemática da Fenomenologia da percepção, pela qual Merleau-Ponty tentava<br />

aceder à história sustentando uma fenomenologia pela outra, a de Husserl pela de<br />

Hegel. Nem o acento colocado no uso criticista das sínteses matemáticas e dinâmicas.<br />

Kant limitara o gênero dizendo em uma só frase a perfeição e o acabamento de sua<br />

lógica, quer dizer, em que limite se faria a repartição das matemáticas newtonianas<br />

nos momentos do juízo. Posteriormente, outros matemáticos haviam passado<br />

contrato com uma outra física. O esforço husserli<strong>ano</strong> para repovoar a intuição com<br />

novas essências vividas, mas sempre apresadas por uma cláusula de preempção pela<br />

categorialização que as declara, refluía sobre a margem da narração, sobre esse núcleo<br />

declarativo inexorável de uma transcrição fenomenológica da experiência. Faltavalhe<br />

libertar-se do criticismo, uma vez reconhecido esse nó transcendental em que se<br />

encontram uma operação de conhecimento, uma consciência singular e uma produção<br />

de objetividade.<br />

Nada era mais insistente, nos <strong>ano</strong>s de pós-guerra, que o propósito de aceder<br />

a uma realidade concreta que continuava aguardando seus desvios e suas formas.<br />

Propósito, mas não ainda programa. Ocorrera, desde o século 19, um ultrapassamento<br />

pela literatura, alguma coisa como uma nova experiência tramada no encontro dos<br />

fatos e da maneira de dizê-los. Nem Sartre nem Merleau-Ponty o omitiram. Mas,<br />

em face de uma literatura ainda pensada no cone das possibilidades abertas pela<br />

infinita variação dos modos da narração, a filosofia podia manter sua serenidade.<br />

Era mais inquietante [o fato de] que, entre a virada do século e seus primeiros decênios,<br />

19 Física e metafísica kantiana, 1955.<br />

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Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

as ciências matemáticas e físicas haviam adquirido uma autonomia que nenhuma<br />

revolução copernicana poderia reinscrever nas possibilidades de uma fenomenologia.<br />

Podia-se, então, conceber duas saídas filosóficas. Ou, bem, estigmatizar a crise das<br />

ciências que recusavam a redução criticista e, dizia-se na época, vertiam na técnica.<br />

Encarregavam-se os filósofos de definir uma nova experiência. Eles pediriam muito<br />

à terceira Crítica kantiana e, muito em breve, mais ao gênio que ao gosto, ao sublime<br />

que ao belo. Ou, bem, pensar, hipótese inversa, que as ciências, doravante, não têm<br />

necessidade alguma de legitimar-se por um processo de fundamento sancionado<br />

pela experiência possível, que uma aprendizagem compensava o apelo às operações<br />

transcendentais, que a matemática vela pela sua conceptualidade, define sua lógica<br />

por uma parte dela mesma, cria sua metalógica, admite sua própria abertura e,<br />

enfim, não antecipa sua totalidade nem seu futuro. Que ela resolve sua modernidade<br />

com “os meios ordinários da disciplina”. Que a crise, se crise há, não se encontra aí.<br />

Que a crise é a do próprio entendimento ou do saber europeu. Mas, então, não<br />

haveria saída no saber da história e da sociedade antes de qualquer reforma do<br />

entendimento. Merleau-Ponty concluía com Max Weber que as ciências da sociedade<br />

não constituem sistema de par com sua natureza de Geisteswissenschaften (“ciências do<br />

espírito”), isto é, de par com sua vocação a deslocar as figuras do real. Restava<br />

encontrar nesta instabilidade (mouvance) e apesar das aparências do relativismo, a matéria<br />

de um novo realismo, e isto no próprio oco de um pensamento filosófico à beira da<br />

renúncia.<br />

Foi aqui que atuou um conhecimento do social conduzido até o etnográfico.<br />

Lévi-Strauss havia feito, sob a organização categorial da experiência, um uso da<br />

qualidade não subordinada ao esquematismo das coisas. Ele havia reabilitado os<br />

poderes de inteligência, de simbolismo e de comunicação, ele revelou uma efetividade<br />

simbólica que não mobilizava nenhuma fenomenologia do movimento. E esta<br />

reatualização de possibilidades, não tocadas por aquela opção estoiciana que Mauss<br />

erguia, encontrava o movimento da pintura que habita todos os textos dos filósofos<br />

dessa geração – sem que as razões desse acontecimento fossem claras. Tratando da<br />

experiência etnográfica, Needham comparava-a a [experiência] do cego de nascença<br />

que ganhou a visão. Desprovido de toda referência, ele responde, às vezes, à experiência<br />

com uma nova cegueira, psíquica desta vez. Mas a operação de conhecimento que


Claude Imbert<br />

analisa Lévi-Strauss não é o tudo ou nada suposto do cego de nascença do qual se<br />

elimina a catarata. Ela põe em jogo capacidades inconscientes comuns, e precisamente<br />

as que a neurofisiologia contemporânea confirma. Ela também mostra que a<br />

expressão acompanha a percepção e que o simbolismo precede à troca – mesmo<br />

que este seja um simbolismo aderente sem o qual a troca é impensável, sem o qual<br />

ela se perderia em um processo puramente material. Nesta conta, a experiência onde<br />

se joga a possibilidade da etnografia como ciência seria, portanto, mais do que a do<br />

cego de nascença, a de A educação sentimental. Ou seja, esta deflagração súbita de<br />

nosso teatro que, sem motivo, Flaubert faz coincidir com a da vida moderna; ou,<br />

ainda, a do tempo redescoberto, subitamente retomado com uma outra memória,<br />

fundamental e qualitativa, esta quarta dimensão que dizia Proust, e a qual ele havia<br />

apreendido nas pinturas de Cézane 20 . A experiência kantiana havia dessacralizado o<br />

mundo, e Weber dela tirava as conseqüências. Lévi-Strauss lhe reabria a qualificação.<br />

Seria preciso recomeçar o processo simultâneo de alienação e de subjetivação<br />

em que se ensaiava o humanismo dos antropólogos. Ele não carregava doutrina<br />

alguma, nenhum retorno à origem, nem mesmo boas palavras sobre a troca e sobre<br />

o outro. Mas ele colocou sob uma lente de aumento o que poderia ser, se bem que<br />

ela já tenha sido tomada em sortimentos culturais e, portanto, na história, uma opção<br />

filosófica. Lição de microfilosofia, se quisermos, ele revelava um direito de realismo.<br />

Seria um retorno ao momento das Luzes? Talvez, mas desta vez a escolha seria antes<br />

d’Alembert que Kant.<br />

Liberar-se da origem<br />

Foi introduzindo uma série de monografias sobre alguns filósofos célebres,<br />

um título imposto pela coleção que patrocinava a obra, que Merleau-Ponty renuncia<br />

a esta história contínua que fora uma fenomenologia do espírito filosófico. Ele<br />

amarrava o comércio dos filósofos a obras sempre marcadas por suas opções e<br />

hesitações. A antropologia dava sem dúvida uma alternativa à dialética. Mas, sobretudo,<br />

20 “O tempo redescoberto”, tal é também o título de um capítulo de O pensamento selvagem.<br />

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Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

ela afrouxava uma marcha [cheminement] tomada no a priori das dimensões do<br />

juízo. “É levando tudo isso em conta que a antropologia social se encaminha para<br />

um balanço do espírito hum<strong>ano</strong> e para uma visão do que ele é e pode ser” 21 .<br />

Era necessário, então, encontrar essas questões que tinham desviado alguns<br />

filósofos da filosofia. Veio um momento, com efeito, em que as decisões pessoais<br />

cederam às exigências do conhecimento que elas solicitavam. Ora, esse momento,<br />

no qual Lévi-Strauss debate com Mauss, encontrava-se de facto interno à filosofia. Ele<br />

deslocara-se do social à troca, a seus modos e a seus suportes, das instituições aos<br />

gestos e práticas culturais em que elas se objetivam, das condutas aos simbolismos<br />

em que elas desenvolvem sua inteligência imanente. A prova do social só pode ser<br />

mental. “Nós jamais podemos estar seguros de ter atingido o sentido de uma função<br />

ou de uma instituição se nós não estivermos à altura de reviver sua incidência sobre<br />

uma consciência singular” 22 . Merleau-Ponty via nisso confirmar-se que os primeiros<br />

instantes de objetividade e de consciência, os simbolismos aderentes e não menos<br />

partilhados, aqueles que todos os outros pressupõem, são qualitativos, que as primeiras<br />

geometrias são qualidades de forma. Que os movimentos já são trajetos, que daí<br />

parte, faz-se e refaz-se toda consciência como expressão e como aprendizagem. 23<br />

Que a percepção não é um ponto de partida, mas a figura tardia e mínima para<br />

onde se transpõem os traços necessários e suficientes de uma fenomenologia. Que<br />

seu enunciado, em primeira ou em terceira pessoa, é um simbolismo entre outros.<br />

Uma tal vigilância, exercitada nesses suportes do conhecimento, foi tão decisiva quanto<br />

a virada lingüística da filosofia anglo-saxônica. Talvez tenha ocorrido de ele ter feito<br />

seu lugar como que antecipadamente. Marcel Mauss era lingüista tanto quanto filósofo.<br />

Merleau-Ponty notava, na Fenomenologia da percepção e em termos curiosamente próximos<br />

de Wittgenstein, que a linguagem nada diz, de início, senão ela mesma. Recolocada<br />

na envergadura de uma atividade simbólica, ela não carregará mais, ou somente, a<br />

ocasião de aí indexar o criticismo. Ela fará valer sua capacidade de invenção, seu ser<br />

de partilha, sua capacidade de finalização e de transformação e seu componente de<br />

realismo. Desde de seu primeiro livro, Merleau-Ponty havia posto em axioma que<br />

21 De Mauss a Claude Lévi-Strauss, Signes, p. 157.<br />

22 Claude Lévi-Strauss, Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss, p. 26.<br />

23 Cf. Resumé de cours. 1952-1953.


Claude Imbert<br />

não existe qualquer linguagem efetiva que não retenha alguma coisa daquilo de que<br />

se fala. Ele jamais se desdisse.<br />

Ensaiemos esta hipótese: as ciências humanas, conduzidas até o conhecimento<br />

etnográfico que deslocava a maneira e a natureza do saber europeu, e aos quais ele<br />

pertence, deslocaram, ao final, o limite da instância filosófica. Elas a haviam liberado<br />

do senso comum, não como opinião sensata e partilhada, mas como a operação<br />

natural/criticista que amarrava toda fenomenologia. Recolocada no movimento de<br />

invenção, a questão da origem não tinha mais sentido, e a filosofia que a gerenciara<br />

estava efetivamente despossuída. Como começa um saber? Como todo o resto, na<br />

hesitação. E ele se legitima extraindo uma sintaxe de sua singularidade, e um<br />

simbolismo que o introduz na rede das marchas racionais.<br />

Lévi-Strauss, analisando e levando a seu termo a questão kantiana latente<br />

das durkheimianas tinha feito valer, contra a tábua lógica do criticismo, um outro<br />

Euríclides ventríloquo, uma voz que sempre se carrega consigo 24 . Ele reaplica, contra<br />

a instauração platoniciana do enunciado predicativo, o argumento do incontestável<br />

já aí [déjà là] que Platão havia usado para confundir Parmênides. Ele lembrava desta<br />

vez que o mundo distribui-se e exprime-se também em qualidades, sem protocolo<br />

de enunciação. Merleau-Ponty ainda aí se descobria confirmado quando ele tentava<br />

contornar um saber determinado sob a autoridade da experiência kantiana e desfazer<br />

uma operação fixada pelas escolhas do helenismo. Sua curva histórica encerrava<br />

agora o horizonte fenomenológico. Se a experiência kantiana era um compromisso<br />

para não se tocar mais na fenomenalidade dessacralizada do mundo, então a crise<br />

do entendimento se dizia do interior do kantismo. Contra a afasia filosófica que foi<br />

sua conseqüência, e da qual não se eximia Heidegger, Merleau-Ponty reabre a<br />

expressão – suporte e propósito 25 . E bastava esta conjunção para negar a língua<br />

universal – segundo fim do leibnizianismo do qual Kant dizia ter escrito a apologia.<br />

Foi, com efeito, no cercamento transcendental que a harmonia preestabelecida teve<br />

razão. A esfoliação dos simbolismos, a lista finita, mas aberta, de famílias heterogêneas<br />

de linguagens, reabria o direito de uma seletividade dos interesses filosóficos. Há,<br />

24 Cf. Platon, Sophiste, 252 c.<br />

25 Cf. Notes de cours 1959-1961, p. 147-148.<br />

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Filosofia, antropologia:<br />

o fim de um mal-entendido<br />

neste domínio igualmente, circunstâncias e prioridades para um conhecimento<br />

engajado em um processo inacabado de alienação e de subjetivação. O que<br />

verossimilmente diziam os termos opacos do quiasma e da carne [chair] do mundo,<br />

que argumentam no último manuscrito de Merleau-Ponty (O visível e o invisível). Eles<br />

têm, entretanto, uma significação imediata, a de abrir uma sintaxe filosófica afastando<br />

a operação simples da subjetividade transcendental.<br />

Na falta de um ponto transcendental que as unificaria por princípio, e uma<br />

vez que elas intervêm em uma história que perseguem sem jamais começá-la, Merleau-<br />

Ponty enumerava algumas experiências de pensamento fundamental, entre as quais a<br />

pintura e sua história. Uma vez posto, nas primeiras páginas de O olho e o espírito que<br />

a superfície pintada vale como um mapa mental, e que Cézane pensa em pintura,<br />

Merleau-Ponty pôde colocar em evidência, e por contraste, a opção cartesiana. O<br />

preço do método foi delegar à mecânica providencial do animal-máquina uma<br />

experiência na qual faltaria a ordem das razões. Assim, buscando um pensamento<br />

matemático em que a geometria assume plena posse de sua capacidade de criar<br />

espaços de representação, Descartes afastava e liberava, com o mesmo golpe, outras<br />

possibilidades. Aquelas mesmas que a Dióptrica designava com uma simples alusão<br />

aos tenros cortes que vos fazem ver em alguns traços colinas e tempestades 26 . Ora,<br />

estas capacidades simbólicas, recolhidas pela água-forte ou a técnica do óleo, mantidas<br />

pela prática da câmera obscura, foram precisamente erguidas nessa Holanda onde<br />

Descartes fixara residência, no coração da cidade e longe do mundo. A pintura se<br />

reinventa, então, entre Amsterdã e Delft, onde planisférios, espelhos d’água, mapas,<br />

notas [relevés] de cidade e cores autônomas pensam-se, dizem-se e variam seus<br />

propósitos. Portanto, a pintura inscrevera seu devir inesperado e seu saber sobre a<br />

história ininterrupta de um simbolismo imemorial. Em Amsterdã, uma diversificação<br />

era consumida, contra a qual nada podia a equação transcendental do filósofo de<br />

Königsberg.<br />

Sobre este caminho, a singularidade filosófica não renunciará à prova do<br />

conhecimento, por mais perturbadora de seus a priori e inacabada que ela seja. Não<br />

26 Cf. L’oeil et l’esprit, chap. III.


Claude Imbert<br />

há para ela recuo [repli] estritamente ético. O exercício espiritual, que ela também é,<br />

ainda é uma reforma do entendimento e um processo inacabado de subjetivação.<br />

Todo etnólogo, diz Lévi-Strauss, escreve alguma espécie de confissão. É preciso,<br />

também, entender d’Alembert, quando ele defendia a empresa dos Enciclopedistas:<br />

“suprimais o conhecimento, vós guardareis todos os vícios, e mais a ignorância”.<br />

Referências<br />

DURKHEIM, É. Les formes élementaires de la vie religieuse. 2. ed. Paris: Alcan, 1925.<br />

DURKHEIM, É.; MAUSS, M. De quelques formes primitives de classification.<br />

L’Année sociologique (1900-1902). Paris: Alcan, 1903.<br />

KANT, E. Atnthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 1964.<br />

LÉVI-STRAUSS, C. La Sociologie française. In: La sociologie au XIXe siècle. Paris:<br />

PUF. 1947. v. 2.<br />

_______. La pensée sauvage. Paris: Plon. 1962. (Obra dedicada à memória de Maurice<br />

Merleau-Ponty).<br />

_______. La voie des masques. Genève, Skira, 1975. (1re éd.). Paris: Plon, 1979.<br />

MERLEAU-PONTY, M. Structure du comportement. Paris: PUF, 1942.<br />

_______. Humanisme et terreur. Paris: Gallimard, 1947.<br />

_______. Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1948.<br />

_______. Les aventures de la dialectique. Paris: Gallimard, 1953.<br />

_______. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1961.<br />

_______. Signe. Paris: Gallimard, 1969.<br />

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Claude Imbert<br />

Dissertações<br />

Dissertações<br />

Defendidas<br />

Defendidas<br />

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Filosofia, antropologia:<br />

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Dissertações defendidas<br />

Dissertações Defendidas até 2001 1<br />

Título: “AQUI É MELHOR DO QUE LÁ”. REPRESENTAÇÃO SOCIAL<br />

DA VIDA URBANA DAS POPULAÇÕES MIGRANTES E SEUS<br />

IMPACTOS SÓCIO-AMBIENTAIS EM MANAUS.<br />

Autora: Maria do Perpetuo Socorro Chaves da Silva<br />

Orientadora: Marilene Corrêa da Silva<br />

Data da Defesa: 15 de maio de 2000<br />

Resumo<br />

Esta pesquisa teve como objetivo compreender a ação de migrantes oriundos<br />

do interior do Estado moradores da ocupação urbana Colônia Agrícola Chico<br />

Mendes, vizinha da área protegida da reserva Ducke, por meio das suas representações<br />

sociais. A coleta de dados baseou-se quantitativamente em dados secundários e<br />

qualitativamente através da observação participante e de entrevistas semi-estruturadas,<br />

das suas histórias de vida, de técnicas grupais. O conflito sócio-ambiental vivido<br />

pelas pessoas configura-se na luta pela posse da terra e pelo direito à cidade, onde o<br />

conteúdo das representações sociais revelaram que a Colônia Agrícola Chico Mendes<br />

é o território por excelência e face a isto, é possível um acordo para a preservação<br />

da reserva.. Foram identificados e descritos dois modelos característicos de<br />

agricultores e extrativistas, cuja produção era para subsistência e com força de trabalho<br />

eminentemente familiar. Os sítios constituem-se no território de vida por excelência<br />

e construíram um ambiente ou modo de vida parecido com o que levavam no<br />

interior, apesar das dificuldades urbanas sentidas nesse novo espaço: aqui é melhor do<br />

que lá.<br />

1 Dissertações defendidas até agosto de 2002. Organizado por Gimima Beatriz Melo da Silva, Secretária do<br />

Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia<br />

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Dissertações defendidas<br />

Título: MAGIA E RELIGIÃO NA MODERNIDADE -- OS REZADORES<br />

EM MANAUS<br />

Autor: Júlio César Schweickardt<br />

Orientadora: Marilene Corrêa da Silva<br />

Data de Defesa: 14 de agosto de 2000<br />

Resumo<br />

O presente trabalho trata da relação entre magia, religião e modernidade,<br />

partindo do caso dos rezadores na cidade de Manaus. A questão inicial que motivou<br />

toda reflexão é como que formas tidas como arcaicas ainda se apresentam num<br />

mundo desencantado pela ciência e pela técnica. Iniciamos nosso estudo a partir<br />

de Weber, com a sua tese de racionalização das formas de vida e o conseqüente<br />

desencantamento do mundo. Isso produziu a substituição do mito e da magia por<br />

formas racionalizadas de ver o mundo, processo iniciando no interior da própria<br />

religião. Na Amazônia, desde alguns pensadores dos séculos XVII e XVIII que a<br />

ambigüidade entre religião e magia não foi resolvida, ao mesmo tempo, que a<br />

Igreja combatia as formas mágicas das populações nativas ela também usava os<br />

seus símbolos como mágicos. O rezador na modernidade vem significar e<br />

representar o pensamento mágico que permanece tão presente e vivo no imaginário<br />

simbólico das populações do interior e da periferia das cidades. Buscou-se<br />

compreender o ritual e a prática dos rezadores através de uma metodologia<br />

fenomenológica, hermenêutica e compreensiva.


Dissertações defendidas<br />

Título: HISTÓRIA E MEMÓRIA DA BIBLIOTECA PÚBLICADO<br />

AMAZONAS (l870 a l910)<br />

Autor: Guilhermina Melo Arruda<br />

Orientador: Prof. Dr. Evandro Cantanhede de Oliveira<br />

Data da Defesa: 30.08.2000<br />

Resumo<br />

Esta dissertação resgata a história e a memória da Biblioteca Pública do<br />

Amazonas durante o período de l870 a l9l0 e através desse resgate poder contextualizála<br />

no processo de constituição da cidade de Manaus.<br />

Ainda há o propósito de relacionar a criação da Biblioteca Pública do<br />

Amazonas, a partir dos processos sociais que influenciaram tanto na transformação<br />

urbanística de Manaus, mas também a formação da elite intelectual da cidade.<br />

Isso implica afirmar que se espera, com essa pesquisa, verificar se a criação<br />

da sala de Leitura e, posteriormente, a Biblioteca Pública Provincial tiveram uma<br />

única finalidade: equiparar a cidade de Manaus às cidades intelectualmente<br />

desenvolvidas; ou satisfazer as necessidades da sociedade manauara – grupo social<br />

economicamente privilegiado -; ou, ainda, executar sua função pública.<br />

Título: MANAUS: PRAÇA, CAFÉ, COLÉGIO E CINEMA NOS ANOS 50<br />

E 60<br />

Autor: José Vicente de Souza Aguiar<br />

Orientadora: Selda Vale da Costa<br />

Data da Defesa: 10 de outubro de 2000<br />

Resumo<br />

Este trabalho faz um estudo e uma análise da Praça da Polícia, do Café do<br />

Pina, do Colégio Estadual e do Cinema Guarany enquanto referências culturais e<br />

intelectuais para Manaus nos <strong>ano</strong>s 50 e 60. Onde a Praça é compreendida como<br />

lugar do reconhecimento, da liberdade e da criação; o Café é visto como local de<br />

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Dissertações defendidas<br />

encontro e de troca de informações, alimentando as discussões; o Colégio, através<br />

do colegial - científico e principalmente o clássico --, responde pela formação<br />

acadêmica dos jovens; enquanto o Guarany é co-responsável no processo de<br />

preparação humana e intelectual da geração que esteve presente nesses lugares. Reflete<br />

também sobre as implicações do golpe militar e do projeto Zona Franca de Manaus<br />

no dimensionamento dessas atividades em Manaus. Para a realização desta pesquisa,<br />

recorremos aos memorialistas, aos jornais e aos depoimentos das pessoas que viveram<br />

os <strong>ano</strong>s mencionados freqüentando esses lugares que foram referências para as<br />

manifestações culturais e intelectuais.<br />

Título: ANÁLISE DA TRADUÇÃO AUTOMÁTICA NA INTERNET:<br />

PROBLEMAS E SOLUÇÕES<br />

Autora: Het Jane Silva Carvalho<br />

Orientador: Paulo Renan Gomes da Silva<br />

Data da Defesa: 31 de outubro de 2000<br />

Resumo<br />

A Internet é o instrumento de comunicação mais poderoso que temos hoje<br />

em dia no mundo. É possível contactar instantaneamente pessoas de todas as partes<br />

do mundo, de tal forma que mesmo nos lugares mais distantes, um computador e<br />

um telefone podem quebrar o isolamento e conectar qualquer um com o mundo.<br />

No entanto, o fato de que as pessoas não falam a mesma língua impedem uma<br />

efetiva comunicação. Neste ambiente a tradução automática (TA) depois de muitos<br />

<strong>ano</strong>s de pouca aceitação parece ter encontrado o seu melhor lugar. O objetivo dessa<br />

pesquisa foi conhecer a real capacidade da TA através de uma análise de sua execução<br />

de acordo com princípios de uma boa tradução e do uso que tem sido feito pelas<br />

pessoas. Concluiu-se que mesmo tendo um produto não muito apurado como<br />

resultado ela tem sido útil para muitas pessoas e empresas que a utilizam apenas<br />

para ter uma idéia do assunto de uma grande quantidade de textos. Ela não substitui<br />

o tradutor hum<strong>ano</strong>, porque opera em áreas diversas. Apesar de ter se desenvolvido<br />

bem em alguns aspectos principalmente em termos de morfologia e sintaxe a TA


Dissertações defendidas<br />

ainda não é muito precisa. Seus produtos são impressionantes, mas não totalmente<br />

confiáveis. Apesar disso, ela é útil para ler textos informativos e para tarefas que não<br />

requeiram grande exatidão e apuro formal. Seus pontos mais fortes são a rapi<strong>dez</strong> e<br />

o baixo custo. Para aproveitá-los melhor as pessoas devem utilizar bem suas<br />

habilidades de leitura.<br />

Título: GEOGRAFIAS DO BOI<br />

Autor: Amarildo Menezes Gonzaga<br />

Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo<br />

Data da Defesa: 15 de <strong>dez</strong>embro de 2000<br />

Resumo<br />

Desenvolvimento de um estudo sobre três tipos de relações entre o homem e<br />

o boi. Três percursos construídos para a sua caracterização. O primeiro direcionado<br />

à abordagem descritiva das antigas civilizações da humanidade, centrada no universo<br />

mítico que estabelecia relações entre ambos (homem mortal e boi divinizado) em<br />

distintos contextos. O segundo convergente para a incorporação do boi ao conjunto<br />

de manifestações folclóricas de diferentes regiões do Brasil e especialmente do<br />

Amazonas – município de Parintins – através de um estudo contextual e estrutural<br />

de um auto do boi-bumbá Caprichoso, encenado na década de 60. No terceiro,<br />

uma incursão no universo da literatura regional amazonense, através do conto<br />

denominado “Bumbá”, da obra Mundo Mundo Vasto Mundo, de Carlos Gomes. O<br />

enfoque teórico unificador das duas últimas partes – a folclórica e a literária – é o<br />

uso de alguns elementos constituintes do modelo actancial do francês Antoine-Jules<br />

Greimas, que transforma os personagens em atores e as funções que desempenham<br />

em actantes. Sempre que necessário, tais elementos do esquema greimasi<strong>ano</strong> serão<br />

acrescidos dos enfoques sociológico e psicanalítico indispensáveis e inerentes à matéria<br />

tratada: manifestações culturais oriundas do povo e representadas diretamente ou<br />

através da ficção. A unidade da obra representa a diminuição do status do boi, que,<br />

da condição de divindade passou, progressivamente, a ícone representativo de<br />

segmentos sociais e a fictício ser literário.<br />

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Dissertações defendidas<br />

Título: O TERRITÓRIO DAS LENDAS (UM OLHAR SOBRE A RELAÇÃO<br />

NATUREZA E CULTURA NA AMAZÔNIA)<br />

Autor: Ricardo Ossame<br />

Orientador: Ernesto Renan Freitas Pinto<br />

Data da Defesa: 27 de <strong>dez</strong>embro de 2000<br />

Resumo<br />

Este trabalho tem como proposta refletir sobre a relação natureza e cultura<br />

na Amazônia tendo como intermediadoras desta relação as produções míticas e<br />

lendárias de suas coletividades sociais. Para isto, conta com a contribuição dialógica<br />

de grandes pensadores como C. Lévi-Strauss, G. Durand, E. Cassirer e dentre outros,<br />

bem como toma a ficção literária como veículo discursivo e interpretativo das<br />

narrativas míticas e lendárias. A hipótese deste estudo sugere analisar as lendas e<br />

mitos como possíveis estratégias de defesa do território na Amazônia.<br />

Título: NARRATIVAS NATIVAS – O CONTO ORAL DO RIO NEGRO E<br />

O CONTO ARTÍSTICO NO AMAZONAS<br />

Autor: José Ribamar Mitoso<br />

Orientador: Odenildo Teixeira Sena<br />

Data da Defesa: 27 de <strong>dez</strong>embro de 2000<br />

Resumo<br />

O trabalho se divide em duas partes. Na primeira há o enquadramento<br />

teórico do discurso histórico-literário e de sua relação com a análise mito-crítica.<br />

Este enquadramento surgiu da necessidade da dupla face do objeto: por um lado,<br />

entender o conto no Amazonas enquanto construção histórica e, por outro, entendêlo<br />

enquanto produto do encontro de dois modos culturalmente diferentes de narrar<br />

história curtas. A segunda parte, a específica, está fundamentada na pesquisa histórica<br />

da influência do conto oral indígena sobre o conto escrito no Amazonas. Conclui-se<br />

que existe influência do primeiro sobre o segundo durante os períodos literários


Dissertações defendidas<br />

naturalista, realista, pré-modernista, modernista e pós-modernista. Nos aspectos<br />

temático, lingüístico e formal.<br />

Titulo: O DISCURSO OPERÁRIO E O ESPAÇO DA FALA DA MULHER:<br />

UM ESTUDO SOBRE O “LINHA DE MONTAGEM”<br />

Autora: Ivânia Vieira Carneiro<br />

Orientador: Odenildo Teixeira Sena<br />

Data da Defesa: 22 /01/2001<br />

Resumo:<br />

Este estudo investiga 53 edições do boletim Linha de Montagem, editado<br />

pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Manaus, no <strong>ano</strong> de 1990.<br />

Esse boletim constitui-se, desde 1984 até hoje, em importante instrumento de<br />

interlocução entre o sindicato e sua base que, há <strong>dez</strong> <strong>ano</strong>s, tinha 70% do seu<br />

contingente formado por mulheres. Tal expressividade numérica nos sugere a<br />

existência de um lugar de manifestação feminina no boletim. Os levantamentos<br />

quantitativos revelam exatamente o oposto, configurando e inserindo a publicação<br />

como participante de uma política de silenciamento da manifestação feminina.<br />

Com base em estudos da linguagem, trabalhamos o discurso operário, por<br />

meio do Linha de Montagem, e, neste, o espaço de expressão da mulher. Esta<br />

dimensão exige a busca da compreensão histórica das formas ideologicamente<br />

autorizadas à expressão. Neste aspecto, a institucionalização do silenciamento da<br />

mulher tem na gramática um campo vasto, operacionalizado em nome da exclusão.<br />

O masculino genérico, recurso que faz parte das atitudes por nós praticadas<br />

no cotidi<strong>ano</strong>, é também a camisa-de-força que enquadra os não autorizados<br />

a instituir-se como um lugar público de expressão. Entrevistas realizadas, <strong>dez</strong><br />

<strong>ano</strong>s mais tarde, com algumas destas trabalhadoras militantes no sindicato da<br />

categoria mostram que o apagamento da presença da mulher nessa publicação<br />

não é uma ação absolutamente aceita por elas.<br />

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Dissertações defendidas<br />

Título: A AMAZÔNIA E SEU AMBIENTE: DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVA<br />

Autor: Luís de Oliveira Carvalho<br />

Orientador: Profa. Dra. Marilene Corrêa da Silva<br />

Data da Defesa: 29.01.2001<br />

Resumo<br />

O tema investigado é a possibilidade de compreensão ambiental da Amazônia<br />

numa nova perspectiva filosófica e científica. O fio condutor consiste, pois, em<br />

reconhecer simultaneamente a insustentabilidade das representações conceituais literárionaturaslistas<br />

da Amazônia e seu ambiente e em admitir, por outro lado, a possibilidade<br />

de estabelecerem-se novas condições epistemológicas em um campo interdisciplinar<br />

diverso. Nossa dissertação visa atender a esta exigência de reflexão e análise crítica do<br />

contexto amazônico numa perspectiva de compreensão ambiental. Visa ainda descobrir<br />

novas perspectivas filosóficas e científicas de conceituação da Amazônia. A partir dessa<br />

reflexão procura-se desenvolver o argumento da insustentabilidade das representações<br />

conceituais e formular, em outras bases epistemológicas, as condições cognitivas possíveis<br />

de uma teoria ambiental da Amazônia interna e externamente consistente e assim efetuar<br />

uma abordagem intercomplementar de analise das teorias concorrentes utilizadas na<br />

crítica das representações conceituais da Amazônia e reinterpretar em que sentido elas<br />

podem fornecer princípios e regras metodológicos coerentes a fim de ensejar uma<br />

fundamentação ambiental da Amazônia epistemologicamente consistente.<br />

Título: A MÁSCARA DE DEUS<br />

Autora: Maria Sebastiana de Morais Guedes<br />

Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo<br />

Data da Defesa: 31 de <strong>jan</strong>eiro de 2001<br />

Resumo<br />

Estudo da obra Poemas Amazônicos de Francisco Pereira da Silva, poeta originário<br />

do nordeste brasileiro. O contexto histórico e social das primeiras décadas do século<br />

XX. A construção do olhar dos nordestinos sobre a Amazônia. A formação de um


Dissertações defendidas<br />

imaginário regional. Os mitos amazônicos em sua relação com os mitos universais.<br />

O uso de sete diferentes máscaras (ou disfarces) pelo eu lírico. Caracterização estética<br />

e periodização literária. Intertextualidade com obras da Literatura Brasileira. Técnicas<br />

de carnavalização.<br />

Título: MANAUS DE ÁGUAS PASSADAS: A RECONSTRUÇÃO POÉTICA<br />

DE MANAUS EM VISGO DA TERRA DE ASTRID CABRAL<br />

Autor: Carlos Antonio Magalhães Guedelha<br />

Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo<br />

Data da Defesa: <strong>12</strong> de fevereiro de 2001<br />

Resumo<br />

Desenvolvimento de um estudo sobre a criação poética de Manaus, no<br />

livro “Visgo da Terra”, de Astrid Cabral, numa incursão semântica sobre as imagens<br />

poéticas operando a recriação de Manaus nos <strong>ano</strong>s 40 e 50 do século XX, estilizandoa<br />

(visão geral da cidade, casas e ruas, instituições como família, escola e igreja, os<br />

mortos, os loucos que povoaram a cidade, a influência do Rio Negro sobre os<br />

habitantes de Manaus). Exploração dos indícios imagísticos e destruição e permanência<br />

relativamente à história de Manaus a partir do confronto entre as duas realidades - a<br />

cidade manufaturada e a escrita.<br />

Título: “A LEGITIMAÇÃO DA DITADURA MILITAR NAS<br />

REPORTAGENS JORNALÍSTICAS DE O CRUZEIRO”<br />

Autora: Leila Ronize Moraes de Souza<br />

Orientador: Evandro Cantanhede de Oliveira<br />

Data da Defesa: 19 de abril de 2001<br />

Resumo<br />

A legitimação da Ditadura Militar nas reportagens jornalísticas de O Cruzeiro traz<br />

uma proposta de reflexão sobre o fazer jornalístico, através da análise de três<br />

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Dissertações defendidas<br />

reportagens publicadas na revista O Cruzeiro, edição extra, de 10 de abril de 1964. A<br />

intenção é mostrar que a objetividade jornalística, exigida durante a elaboração de<br />

textos nas redações de jornais e revistas, não passa de um mito e que as técnicas<br />

utilizadas para se obter um texto objetivo e sem juízo de valor acabam, como no caso<br />

das matérias veiculadas à época da Ditadura Militar pelo O Cruzeiro, legitimando a<br />

ideologia da classe que está no poder. Este trabalho científico identifica, nas estruturas<br />

da reportagem, as marcas que acabam levando o autor da matéria a defender o ponto<br />

de vista dos militares, mesmo quando utiliza um texto informativo. Foram utilizados,<br />

para ratificar nosso argumento, os conceitos de polifonia, interdiscurso, pré-construído,<br />

efeitos de sentido, formação discursiva e ideológica, oriundos da Teoria da Análise do<br />

Discurso, e baseados nos estudos de Mikhail Bakhtin, Oswald Ducrot e Michel Pêcheux.<br />

Título: DIAGNÓSTICO MORFODINÂMICO APLICADO AO<br />

PLANEJAMENTO AMBIENTAL DA MICROBACIA<br />

HIDROGRÁFICA DO RIO PURAQUEQUARA<br />

Autora: Mírcia Ribeiro Fortes<br />

Orientador: Hailton Luiz Siqueira da Igreja<br />

Data da Defesa: 19 de Abril de 2001<br />

Resumo<br />

Os estudos geográficos e geológicos foram aplicados na microbacia do rio<br />

Puraquequara, com a finalidade de contribuir para minimizar os problemas ambientais<br />

e de fornecer diretrizes para o planejamento urb<strong>ano</strong> desta área de expansão da cidade<br />

de Manaus. Constatando que o processo de ocupação e expansão urbana de Manaus<br />

tende a atingir os igarapés da bacia do rio Puraquequara, a principio os da margem<br />

direita, alem de que, os recursos hídricos da cidade mostram crescente deterioração<br />

ambiental devido o surgimento desordenado de bairros periféricos, este estudo, teve<br />

como objetivo principal fazer o diagnóstico morfodinâmico, com base na geomorfologia<br />

e neotectônica, utilizando a citada bacia hidrográfica, como estudo de caso. Foram<br />

identificados três domínios morfoestruturais a partir da interpretação de imagem de<br />

satélite e de trabalho de campo, que resultaram numa proposta de uma carta síntese de<br />

uso do solo, destacando as áreas inadequadas à ocupação e às que devem ser preservadas.


Dissertações defendidas<br />

Título: RELIGIÃO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: MANIFESTAÇÕES<br />

CARISMÁTICAS EM MANAUS<br />

Autor: Adelson da Costa Fernando<br />

Orientadora: Marilene Corrêa da Silva<br />

Data da Defesa: 23 de abril de 2001<br />

Resumo<br />

A religião enquanto sistema cultural, como constituinte da cultura, interfere<br />

na organização societária, empreendendo um papel que só ela pode exercer. Este<br />

trabalho estuda as formas de sociabilidade que a religião constrói e permite na<br />

sociedade contemporânea através da análise da reinvenção do modo de ser católico<br />

que passa a se fundamentar no “ethos” carismático. Ao se compreender as<br />

possibilidades e as condições de estabelecimento de formas de sociabilidade<br />

contemporânea e de processos societários amplos que têm repercussão estrutural e<br />

conjuntural, uma vez que tal fenômeno encontra-se em níveis diferentes nas variadas<br />

sociedades modernas industrializadas. A RCC quer resgatar um novo padrão de<br />

sociabilidade que a modernidade desencantou (a alma, a sensibilidade, o sentimento,<br />

as paixões, as emoções, a imaginação, os símbolos, os místicos e o mítico, a<br />

subjetividade).<br />

Título: A RELAÇÃO HOMEM -- NATUREZA NAS FORMAS DE USO E<br />

PROPRIEDADE DA TERRA NA AMAZÔNIA: UM ESTUDO<br />

BASEADO NAS COMUNIDADES DO ASSENTAMENTO IPORÁ.<br />

Autora: Débora Cristina Bandeira Rodrigues<br />

Orientadora: Elenise Faria Scherer<br />

Data da Defesa: 26 de junho de 2001<br />

Resumo<br />

O presente trabalho aborda a relação homem - natureza na Amazônia com<br />

base no estudo de caso do Assentamento de Reforma Agrária Iporá. A análise<br />

centra-se no estudo das formas de uso e propriedade da terra, a partir da trajetória<br />

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Dissertações defendidas<br />

de vida dos assentados. Entendendo que as formas de relação homem-natureza que<br />

hoje se configuram na Amazônia são resultado de construção histórica - social dos<br />

homens em sociedade no estabelecimento de suas relações sociais. Para o<br />

desenvolvimento de tal abordagem, tomou-se como referência os marcos históricos<br />

da questão agrária no Brasil e na Amazônia, bem como a constituição dos diferentes<br />

segmentos sociais no campo, no processo de uso e propriedade da terra. Buscou-se,<br />

ainda, perceber as implicações impostas pela questão agrária na Amazônia, tendo<br />

em vista suas singularidades quanto a população, natureza e cultura.<br />

Título: REINVENÇÃO DAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL: UM<br />

ESTUDO SOBRE A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NO<br />

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE SÃO GABRIEL DA<br />

CACHOEIRA<br />

Autora: Adriana Andrade da Encarnação<br />

Orientadora: Elenise Faria Scherer<br />

Data da Defesa: 27 de junho de 2001<br />

Resumo<br />

O objetivo desta dissertação é analisar a participação indígena no Conselho<br />

Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira. Assim, este estudo reconstitui o<br />

processo de organização do Conselho Municipal de Saúde de São Gabriel da<br />

Cachoeira no qual a participação indígena é o elemento diferenciador. O movimento<br />

indígena faz uso dessa estratégia como forma de lutar por melhores condições de<br />

vida e saúde. A análise toma como ponto de partida a premissa de que a luta não é<br />

apenas pela inserção dos povos indígenas na política de saúde brasileira. O que estes<br />

povos reivindicam é o direito à saúde de qualidade com respeito à cultura indígena.<br />

Trata também da participação indígena no Conselho Municipal de Saúde de São<br />

Gabriel da Cachoeira visando definir as políticas de saúde. O eixo central analítico<br />

baseia-se em tomar a participação indígena como o elemento diferencial na<br />

composição do Conselho Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira<br />

influenciando o processo da formulação e implementação de políticas de saúde.


Dissertações defendidas<br />

Título: NARRATIVAS DO ALÉM-REAL<br />

Autora: Vânia Maria da Silva Pimentel<br />

Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo<br />

Data da Defesa: 07 de novembro de 2001<br />

Resumo<br />

Investigação dos princípios norteadores de obras maravilhosas, realistas<br />

maravilhosas, fantásticas, estranhas e absurdas. Embasamento em alguns teóricos<br />

dessas categorias literárias: Tzvetan Todorov e Vladimir I. Propp, no pl<strong>ano</strong> universal.<br />

Apoio em Irlemar Chiampi, no nacional. Enfoque de autores representativos desses<br />

gêneros. Do universal ao regional: Franz Kafka, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar,<br />

Gabriel García Márquez, Mário de Sá-Carneiro e José Saramago; Murilo Rubião e<br />

Márcio Souza; Erasmo Linhares. Busca de comprovação dos posicionamentos<br />

abordados, mediante análise de relevantes e ambíguas narrativas reais/supra-reais.<br />

Título: UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA AMAZÔNIA<br />

Os encontros e desencontros entre a política de reforma agrária e a<br />

política ambiental no Estado do Amazonas<br />

Autora: Kátia Helena Serafina Cruz Schweickardt<br />

Orientador: José Aldemir de Oliveira<br />

Data de Defesa: 18 de <strong>dez</strong>embro de2001<br />

Resumo<br />

A dissertação analisa as fricções e interfaces entre as políticas agrárias e as<br />

políticas ambientais no Estado do Amazonas por meio de um “olhar” sobre a<br />

produção do espaço na região. Partimos das análises clássicas acerca da questão<br />

agrária no Brasil e na Amazônia tentando compreender as articulações que moldam<br />

os novos conflitos: questão agrária x questão ambiental, nação x mundo. Tentamos<br />

percorrer os (des) caminho da crise ambiental e da construção da idéia de natureza<br />

que acaba tomando a criação de unidades de conservação enquanto principal estratégia<br />

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Dissertações defendidas<br />

de conservação/ preservação. Em paralelo, refletimos também sobre a atuação do<br />

governo federal enquanto produtor do espaço em nome de uma política de (des)<br />

envolvimento socioeconômico, materializada na criação de projetos de assentamento.<br />

Ilustramos esse conforto apresentando a problemática da sobreposição desses<br />

territórios por meio da descrição do caso da bacia do igarapé do Tarumã, tentando<br />

demonstrar os encontros e desencontros dessas políticas públicas, apontando as<br />

possibilidades dialógicas entre elas a as dificuldades que essas políticas têm de atingir<br />

os objetivos a que se destinam e de trilhar os caminhos da sustentabilidade.


Dissertações defendidas<br />

Roteiro para elaboração de artigos<br />

1. Os trabalhos deverão ser enviados em disquete com etiqueta identificando o(s)<br />

autor(es) e em três vias impressas, em corpo <strong>12</strong>, na fonte Times New Roman.<br />

2. O artigo deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, o nome<br />

e a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculação profissional.<br />

Ex.: Doutor em Sociologia, professor do Departamento de Ciências Sociais/UFAM);<br />

resumo em português e em inglês; palavras-chave e referências. Obs: só devem ser<br />

usadas notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada – na nota de<br />

rodapé do texto; os resumos devem ter, no máximo, 350 caracteres, sem espaços.<br />

3. As citações no texto, conforme a NBR 10520 da ABNT, vêm sempre no corpo do<br />

trabalho, entre parênteses, como no exemplo: (SOUZA, 1998, p. 157) ou (SOUZA,<br />

1998, p. 155-157).<br />

4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatro linhas<br />

devem ser destacadas do texto, sem aspas, de acordo com a NBR 10520 da ABNT.<br />

5. As referências, conforme a NBR 6023 da ABNT, devem obedecer aos seguintes<br />

modelos: [MARCUSE, Herbert. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2. ed. Rio de<br />

Janeiro: Zahar, 1972.], [GALVÂO, Eduardo. Boi-bumbá; versão do baixo Amazonas.<br />

Anhembi, São Paulo, v. 3, n. 8, julho, 1951, p. 276-291.], [SACHS, Ignacy. Estratégia de<br />

tradição para o século XXI. In: BURSZTYN, Marcel (Org.) . Para pensar o desenvolvimento<br />

sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 29-56].<br />

6. Anexo: caso existam, devem vir depois das referências.<br />

7. Os textos serão submetidos a análise de consultores de acordo com o tema abordado.<br />

8. Os autores que tiverem artigos publicados receberão um exemplar da Revista.<br />

Obs.: O disquete e as cópias impressas devem ser entregues ou enviadas<br />

para a Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na<br />

Amazônia. O texto deve estar revisado pelo(s) ao autor(es). Os trabalhos que não<br />

obedecerem às regras serão devolvidos pela Comissão Editorial.<br />

<strong>Somanlu</strong>, <strong>ano</strong> 3, n. 1/2, <strong>jan</strong>./<strong>dez</strong>. 2003<br />

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