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Somanlu<br />

Revista de Estudos Amazônicos<br />

ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

EDITORA DA UNIVERSIDADE<br />

FEDERAL DO AMAZONAS<br />

Manaus – Am<br />

2008


Copyright © 2007 Universidade Federal do Amazonas<br />

SOMANLU – REVISTA DE ESTUDOS AMAZÔNICOS<br />

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.<br />

(SOMANLU é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos)<br />

E-mail: r<strong>somanlu</strong>@ufam.edu.br<br />

REITOR<br />

Hidembergue Ordozgoith da Frota<br />

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO<br />

Prof. Dr. Abraham Moisés Cohen<br />

DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS<br />

Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira<br />

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE<br />

E CULTURA NA AMAZÔNIA<br />

Prof.ª Dr.ª Iraildes Caldas Torres<br />

Prof. Dr. João Bosco Ladislau de Andrade<br />

Prof. Dr. Antônio Carlos Witkoski<br />

Prof.ª Dr.ª Márcia Eliane Souza e Mello<br />

Elias Brasilino de Sousa (Representante discente)<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Alfredo Wagner Berno de Almeida (<strong>Ufam</strong>-CNPq)<br />

Anamaria Fadul (USP)<br />

Boaventura de Souza Santos (Univ. Coimbra)<br />

Claude Imbert (Ècole Normale Supérieuse de Paris)<br />

Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP)<br />

Edna Maria Ramos de Castro (UFPa)<br />

Flávio dos Santos Gomes (UFRJ)<br />

José Damião Rodrigues (Univ. Açores)<br />

José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)<br />

Júlio Cezar Melatti (UnB)<br />

Keila Grimberg (UFF)<br />

Márcio Ferreira da Silva (USP)<br />

Márcio Souza (escritor)<br />

Milton Hatoum (escritor)<br />

Neide Esterci (UFRJ)<br />

Octavio Ianni (in memoriam)<br />

Renato Athias (UFPE)<br />

Editora da Universidade Federal do Amazonas<br />

Rua Monsenhor Coutinho, 724 – Centro<br />

CEP 69010-110 Manaus – Amazonas – Brasil<br />

Telefax: (0xx) 92 3231-1139<br />

E-mail: edua_ufam@yahoo.com.br<br />

COMISSÃO EDITORIAL<br />

Prof. Dr. Narciso Júlio Freire Lobo<br />

Prof.ª Dr.ª Selda Vale da Costa<br />

Prof. Dr. Antônio Carlos Witkoski<br />

DIRETOR DA EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL<br />

DO AMAZONAS<br />

Prof. Dr. Renan Freitas Pinto<br />

COORDENADORA DE REVISTAS<br />

Prof.ª Dayse Enne Botelho<br />

ATUALIZAÇÃO DA CAPA (DETALHE/IMAGEM<br />

CEDIDA POR ZECA NAZARÉ)<br />

Suellen Freitas<br />

PROJETO GRÁFICO (MIOLO)<br />

Verônica Gomes<br />

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA<br />

Raisa Pierre<br />

ELABORAÇÃO E REVISÃO DE ABSTRACTS<br />

Prof. Dr. Paulo Renan Gomes da Silva<br />

REVISÃO DE PORTUGUÊS<br />

Prof. Dr. Renan Freitas Pinto<br />

A exatidão das informações, conceitos e opiniões são<br />

de exclusiva responsabilidade dos autores<br />

Publicada em janeiro de 2008<br />

Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da<br />

Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). --- Manaus: Edua, 2000 - v.: il.; 17 x 24 cm.<br />

Semestral<br />

Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.<br />

Interrompida em 2001.<br />

ISSN 15118-4765<br />

1. Cultura Amazônica 2. Amazônia – Sociologia 3. Amazônia – Antropologia I. Programa de Pós-Graduação<br />

Sociedade e Cultura na Amazônia.<br />

CDU 316.722(811)<br />

Universidade Federal do Amazonas<br />

Instituto de Ciências Humanas e Letras<br />

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA<br />

Av. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3.000/Campus Universitário – ICHL<br />

CEP 69077-000 Manaus – Amazonas – Brasil<br />

Fone/Fax: 055 92 3647-4381/3647-4380<br />

www.ufam.edu.br / www.ppgsca.ufam.edu.br<br />

E-mail: ppgsca@ufam.edu.br


Nova Etapa<br />

Artigos<br />

Viagem com um regatão<br />

Julio Cezar Melatti<br />

“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers<br />

during World War II<br />

Seth Garfield<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

Mariana Ciavatta Pantoja<br />

O etnoconhecimento dos cablocos-ribeirinhos no manejo<br />

ecológico do solo em uma comunidade amazônica<br />

Albejamere Pereira de Castro, Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e Herinaldo<br />

Narciso Lima<br />

Entre o branco e o negro. Política e cultura no início da trajetória<br />

intelectual de Mário Ypiranga Monteiro<br />

Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

Luiz Henrique da Silva Santana<br />

Migrações fronteiriças: uma reflexão necessária no Amazonas<br />

Márcia Maria de Oliveira<br />

A migração dos símbolos. Diálogo intercultural e processos<br />

identitários entre os bolivianos em São Paulo<br />

Sidney Antonio da Silva<br />

Entrevista<br />

Filosofia e Literatura<br />

Benedito Nunes<br />

SUMÁRIO<br />

5<br />

9<br />

35<br />

77<br />

105<br />

119<br />

135<br />

151<br />

169<br />

185


Resenhas<br />

O Diário de Samuel Fritz<br />

Renan Freitas Pinto<br />

O Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin<br />

Nelson de Matos Noronha<br />

Documentos<br />

Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos,<br />

psicológicos e, sobretudo, sentimentais<br />

Djalma Batista<br />

Noticiário<br />

Dissertações defendidas<br />

<strong>Eventos</strong><br />

Publicações recebidas<br />

Produção científica dos docentes do PPGSCA<br />

Núcleos de Pesquisa dos docentes vinculados ao PPGSCA<br />

Números anteriores<br />

Normas para apresentação de trabalho<br />

4 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

197<br />

203<br />

209<br />

221<br />

222<br />

223<br />

224<br />

227<br />

231<br />

239


Nova etapa<br />

Este número de Somanlu – Revista de Estudos Amazônicos traz<br />

subjacente ao seu corpo físico-espiritual um conjunto diverso de palavras-chave que<br />

tecem o fio condutor da análise e compreensão dos processos socioculturais<br />

amazônicos – aviamento, extrativismo, seringais, soldados da borracha, lutas rurais,<br />

Estado Novo, parentesco, etnias, gênero, campo intelectual, campo político, moda,<br />

região, agricultores tradicionais, sistema agroflorestais, desenvolvimento sustentável,<br />

precaução, soberania, identidades, diálogos interculturais etc. Cada uma das palavraschave<br />

explicitadas são, na verdade, palavras-geradoras extremamente significativas<br />

das orientações temáticas eletivas que compõem a densidade teórica e metodológica<br />

dos artigos que dão a Somanlu singularidades universais aos assuntos observados<br />

no mundo amazônico.<br />

Do artigo Viagem com um regatão, do antropólogo Julio Cezar Melatti, à seção<br />

Documentos, com o texto Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos, psicológicos<br />

e, sobretudo, sentimentais, de Djalma Batista, passando pela resenha do Diário de Samuel<br />

Fritz, escrita por Renan Freitas Pinto, a Revista propõe reflexão de múltiplos aspectos<br />

socioculturais fundamentais do mundo sistêmico e do mundo vivido da Amazônia.<br />

A reflexão constituída a partir de diversos olhares nos permite e convida a desenhar<br />

um mosaico naturalmente inacabado que pode ser construído a partir de múltiplos<br />

pontos de partida e de chegada. Como não poderia ser diferente, o desenho do<br />

mosaico dependerá da subjetividade daquele que o construir – o que, obviamente,<br />

relaciona-se direta e indiretamente com o capital simbólico de cada um dos leitores<br />

e seu interesse em usufruir do texto apresentado.<br />

Além das possíveis viagens filosóficas contidas nos textos propostos, esta edição<br />

da Somanlu traz uma ruptura importante com relação às edições anteriores por<br />

meio da constituição de um amplo Conselho Editorial com presenças intelectuais,<br />

nacionais e internacionais, extremamente singulares, entre as quais destacamos<br />

Boaventura de Souza Santos (Universidade de Coimbra), Julio Cezar Melatti (UnB)<br />

e Edna Maria Ramos de Castro (UFPa). O novo Conselho Editorial, articulado<br />

com a sociodiversidade de autores de fora, de Manaus e do Brasil, que participam<br />

da arquitetura textual da Revista, juntamente com a promessa de mantê-la publicada<br />

semestralmente, indica a disposição, que vem desde os primeiros números, de tornar-se<br />

uma revista nacional, sem perder o olhar específico e amazônico.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Artigos


Viagem com um regatão<br />

Julio Cezar Melatti*<br />

Resumo<br />

Relato de uma viagem não planejada com um regatão, em 1978, descendo, a partir<br />

de um posto indígena, o médio e o baixo Curuçá e pequeno trecho do Javari.<br />

Comentário sobre as possibilidades que se abrem em oportunidades como esta<br />

para o levantamento inicial das peculiaridades sociais e culturais de uma região.<br />

Enumeração de atividades, relações pessoais, casos, crenças, conhecimentos,<br />

lembranças, gestos, observados durante o trajeto que podem servir de ponto de<br />

partida para pesquisas que os ordenem e articulem.<br />

Palavras-chave: aviamento; extrativismo; seringais; Javari.<br />

Abstract<br />

A report made of an unplanned journey with a regatão (a riverine tradesman), in<br />

1978, downstream from an indigenous post, through the mid- and low- Curuçá<br />

river and a small stretch in the Javari river. Comments are included on the possibilities<br />

which open up as opportunities such as this for the initial survey of the social and<br />

cultural peculiarities of a region. Included are listing of activities, personal relations,<br />

stories, beliefs, lores, mementos, gestures notes during the journey have been recorded<br />

that could be used as a starting point for research works which would order and<br />

articulate them.<br />

Keywords: dispensing of orders; extractivism; rubber estates; Javari valley.<br />

* Doutor em Antropologia. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. E-mail: <strong>jul</strong>iomelatti@unb.br<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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10 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

O estrito controle de cursos inteiros ou longos trechos de rios por poderosos<br />

seringalistas e casas comerciais do auge da exploração da borracha há<br />

muito desapareceu. Entretanto, acredito que naqueles municípios amazônicos<br />

de grande extensão que têm um rio e seus afluentes como sua única via interna<br />

de transporte, que liga sua sede urbana a dispersos moradores do sertão, os<br />

regatões ainda podem tecer suas redes, embora mais frouxas e esgarçadas, do<br />

tradicional sistema de aviamento.<br />

Por isso, talvez não seja totalmente fora de propósito relembrar aqui a<br />

viagem que fiz com um desses comerciantes embarcados há quase trinta anos,<br />

uma experiência que sempre me sugeriu, sem que eu nunca viesse a realizá-la, ou<br />

estimular alguém a fazê-la, uma etnografia a partir do barco do regatão. Acredito<br />

que, em qualquer pequena região onde ainda puder ser levada a termo,<br />

proporcionará um sugestivo levantamento inicial dos seus aspectos culturais,<br />

sociais, econômicos e políticos. Aliás, esse procedimento não constitui nenhuma<br />

novidade: Adélia Engrácia de Oliveira, autora de um artigo sobre a decadência<br />

do sistema de aviamento no rio Negro (OLIVEIRA, 1981), transcreve num<br />

trabalho anterior um trecho das notas de campo de Eduardo Galvão, de 1951,<br />

em que ele comenta observações feitas a bordo de uma embarcação da empresa<br />

J.G. de Araújo, no mesmo rio (OLIVEIRA, 1975, p. 13-15).<br />

Em setembro de 1978 estava eu no Posto Indígena de Atração – PIA<br />

Curuçá, na bacia do rio Javari, terminando uma etapa de pesquisa entre os índios<br />

Marubo, junto com a antropóloga Delvair Montagner (então também minha<br />

esposa). Havíamos chegado a este Posto um mês antes, descendo o rio Curuçá<br />

desde o alto curso, por cinco dias, numa canoa, junto com uma família indígena.<br />

Fazer o mesmo trajeto de volta seria penoso, pois implicava em subir o rio, à<br />

força de remos, e depois caminhar por dois dias num varadouro para o rio Ituí,<br />

e aí aguardar a oportunidade de um dos raros vôos a partir do campo de pouso<br />

dos missionários.<br />

Foi então que no dia 5 de setembro chegou um regatão ao Posto. E dois<br />

dias depois partíamos em seu barco, descendo o rio. Durante a descida tomei<br />

notas do que ia vendo e ouvindo, de modo bastante relaxado e sem dar a mesma<br />

atenção a tudo o que se me apresentava.


Embarcação<br />

Julio Cezar Melatti<br />

Um exemplo disso é que não encontro nas minhas notas nenhuma descrição<br />

do barco. E nem uma foto. Talvez o estoque de filmes tivesse terminado. Era, como<br />

se diz na região, um motor de centro, e tinha o nome de “Pires II”. Confiado apenas<br />

na memória, penso que seu casco teria uns oito metros de comprimento por uns<br />

três na parte mais larga. Tinha um teto que só deixava de fora a ponta da proa e o<br />

tablado que se projetava da proa para trás, recobrindo o leme. Não tinha paredes<br />

laterais, exceto na pequena loja do regatão e na privada.<br />

O motor que impulsionava o barco ficava à maior distância da proa do<br />

que da popa e estava assentado em um nível mais baixo do que o assoalho.<br />

A loja do regatão ficava à frente do motor e encostada a bombordo.<br />

Deixava uma passagem livre a estibordo, comunicando a proa à popa. Sua porta<br />

ficava nesse corredor. Somente o regatão nela entrava e já não me lembro se era<br />

aí dentro que também dormia. As mercadorias menores, e talvez as mais valiosas,<br />

nela eram guardadas, uma parte exposta em prateleiras. Tinha uma janela larga,<br />

voltada para a proa, e uma tábua lhe servia de peitoril e de balcão. O tapume que<br />

a fechava era preso por dobradiças na parte de cima, que modo a ser girado para<br />

o alto e preso ao teto na hora de atender os fregueses.<br />

O timão estava bem na frente do barco, mas ainda coberto pelo teto. No<br />

espaço entre o timão e a loja eram recebidos os fregueses. Aí estava também<br />

uma balança romana para pesar as pélas de borracha. E era aí que eu tinha a rede<br />

de dormir.<br />

A privada estava ao lado do motor, a bombordo, com espaço suficiente<br />

apenas para o vaso sanitário e para manter presa no chão uma tartaruga viva. Quem<br />

naquele se sentava forçosamente tinha de pôr o pés sobre o casco desta.<br />

Na popa ficava um fogãozinho de uma ou duas bocas, talvez a gás, não<br />

me lembro. O tablado que recobria o leme era usado como mesa para o preparo<br />

dos alimentos e mesa de refeições.<br />

Sobre o teto ficavam os barris de combustol (óleo diesel) para alimentar<br />

o motor. Havia também um cercado para galinhas.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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A tripulação<br />

12 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

O regatão, José Rodrigues Pires, conhecido pelo apelido de José Filó, era um<br />

senhor de seus sessenta anos. Cuidava do timão o rapaz Valdeci, por isso chamado<br />

de piloto. Raimundo, um pouco mais velho, era o motorista, isto é, aquele que<br />

cuidava do motor, abastecendo-o, ligando-o, trocando as marchas. Embora não<br />

me lembre mais dele, havia também um menino, vagamente referido em minhas<br />

notas e que talvez tivesse o apelido de Bico. Pelo teto, do timão até o motor, se<br />

estendia um cordel, ligado a um sino. Por um código constituído pelo número<br />

de pancadas, o piloto pedia ao motorista as trocas de marcha, a marcha a ré ou a<br />

parada total da máquina, sobretudo nas manobras de aproximação ou de saída<br />

de um “porto”, aqui entendido como qualquer ponto da margem que desse<br />

acesso a uma habitação.<br />

Quando o motorista não estava ocupado com o motor, passava à atividade<br />

de cozinheiro, preparando as refeições. Nas paradas, às vezes eram o piloto e o<br />

motorista que iam buscar a péla na casa do seringueiro, que se erguia no alto dos<br />

barrancos, não raro acentuados, das margens. Eram então referidos pelos fregueses<br />

como “marinheiros”. Realizavam também outras atividades. Numa parada, um deles<br />

saiu para caçar. Noutra, antes de deixarmos o local do pernoite, o piloto saiu para<br />

pescar. Em ambos os casos, o menino foi junto.<br />

Não me ocorreu perguntar se, além do cuidado do barco, outras relações,<br />

como as de parentesco ou compadrio, uniam os membros da tripulação.<br />

José Filó tinha filhas que, segundo ele, nunca lhe deram despesa, a não ser<br />

enquanto estudaram. Já dos filhos não podia dizer a mesma coisa; tivera sociedade<br />

com um deles mais de uma vez; mas agora estava em sociedade com o outro, que<br />

tinha curso de veterinária incompleto feito em Belo Horizonte. Lembro-me do<br />

regatão a mostrar-me a foto de sua nova esposa, bem mais jovem que ele. Raimundo<br />

tinha um filho trabalhando na seringa numa colocação em que paramos, no seringal<br />

São Bento. Já não me recordo se foi Raimundo ou o regatão que também me<br />

mostrou a foto de um filho falecido, no ataúde.<br />

O trajeto<br />

A viagem com José Filó, do PIA Curuçá até o seringal Santo Eusébio, rio<br />

Javari, durou nove dias, de 7 a 15 de setembro. Descemos o rio Curuçá, passamos


Julio Cezar Melatti<br />

pela foz de seu principal afluente, o Pardo, entramos no Javari e continuamos a<br />

descer até o referido seringal. Neste ponto deixamos o barco porque o regatão iria<br />

se demorar num afluente do Javari, logo abaixo, chamado Irari, onde tinha seringal<br />

próprio, a fazer as transações com os seringueiros ali colocados. Fretamos, então, o<br />

barco de um outro regatão, Alcino, para nos levar diretamente a Atalaia do Norte,<br />

aonde chegamos no dia 17.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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14 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

O barco de José Filó parou em 58 colocações. Dá-se o nome de colocação<br />

ao local onde se ergue uma ou mais habitações de seringueiros ou madeireiros, que<br />

servem de base a seu trabalho de extração florestal. Estávamos no final do estio, ou<br />

seja, no encerramento das atividades de extração da borracha. Por isso, era a borracha<br />

o produto que José Filó mais embarcava. Tive a impressão que José Filó aceitava<br />

qualquer quantidade que o seringueiro tivesse disponível, muita ou pouca, defumada<br />

ou sernambi (resto de látex não defumado). Nas condições em que estava sendo<br />

feita a viagem, se ele não aceitasse, outro regatão o faria. Em determinadas paradas,<br />

o regatão esperou o seringueiro completar a volta na estrada e defumar a borracha.<br />

Por isso, as paradas eram breves ou longas. Provavelmente ele já tinha feito paradas<br />

também na subida em direção ao Posto Indígena, aproveitando o que os seringueiros<br />

tinham a oferecer. Todas as noites o barco parou para dormirmos, menos na que<br />

precedeu o último dia de viagem.<br />

Reivindicações do regatão<br />

No primeiro dia de viagem, José Filó justificou sua presença ali<br />

mostrando-me um contrato de arrendamento que fez em cartório com o<br />

proprietário do seringal Curuçá, João Barbosa Filho, que morava em Manaus.<br />

O seringal, que teria 22 km 2 , limitava-se ao sul com o seringal Douro. Segundo<br />

o regatão, este limite seria marcado pelo igarapé São Salvador, que desemboca na<br />

margem direita do Curuçá pouco abaixo do Posto Indígena. O limite ocidental do<br />

seringal que arrendara estaria na margem direita do rio Curuçá. O contrato deveria<br />

vigorar até 1980, para madeira e borracha, em troca de 10% da produção. Entretanto,<br />

como o comerciante Magalhães, de Benjamin Constant, por intermédio de seu aviado<br />

ou empregado Oscar Gomes, tinha colocado seringueiros para trabalhar no seringal<br />

que ele arrendara, José Filó tinha vindo cobrar destes os 10% da produção que ele<br />

teria de pagar ao proprietário. Aos seringueiros de uma colocação José Filó explicou<br />

que não viria mais cobrar-lhes a renda se Magalhães ou Gomes a pagassem eles<br />

próprios. Um dos seringueiros retrucou que, já que José Filó era o verdadeiro<br />

arrendatário, eles queriam trabalhar para ele. Filó porém lhes respondeu que aqueles<br />

não iriam aceitar, por terem sido quem os tinha colocado ali. No ano seguinte, ele é<br />

que lhes viria fornecer as mercadorias.


Julio Cezar Melatti<br />

Apesar de o seringal arrendado ter seu limite na margem direita do rio, José<br />

Filó não via nenhum impedimento em comerciar também com a margem esquerda<br />

nem de fazê-lo além de seu limite sul, pois chegara até o Posto Indígena.<br />

Entretanto, no dia seguinte apareceu o gerente do Magalhães, chamado<br />

Amazonas, que conferenciou longamente com José Filó, sem que eu soubesse a que<br />

acordo teriam chegado. Na tarde do mesmo dia, um dos “marinheiros” explicou a<br />

Delvair que a taxa do arrendamento seria cobrada em futura viagem de José Filó;<br />

agora ele iria apenas dando o aviso.<br />

Após ultrapassarmos a confluência com o rio Pardo, no terceiro dia de<br />

viagem, a atitude de José Filó sofreu uma mudança. É que o Magalhães tinha<br />

arrendado o seringal Pardo, que se estendia desde algum ponto no interior deste<br />

rio até sua desembocadura e continuava rio Curuçá abaixo até o igarapé Flecheira.<br />

Logo na primeira colocação abaixo da foz do Pardo, um seringueiro negociou<br />

com José Filó uma péla de 33 quilos, pois sentira-se na obrigação de fazê-lo<br />

porque certa vez o regatão o socorrera com remédio para um menino doente. O<br />

seringueiro perguntou-lhe se o Banco da Amazônia lhe permitia comerciar ali.<br />

José Filó respondeu que nem o Banco nem ninguém podia impedir-lhe a vinda,<br />

pois as águas são livres.<br />

O princípio das águas livres, que José Filó invocava agora que não estava<br />

mais no seringal arrendado por ele, deve ser a interpretação regional de alguma<br />

medida legal cuja história ignoro, mas que certamente representou uma conquista<br />

para os trabalhadores extrativistas. José Filó iria me contar dias depois que no<br />

tempo de um governador do Amazonas chamado Prim é que os rios foram<br />

abertos. Antes, na época de donos de seringais como José Veiga e Barbosa, eles<br />

eram fechados. No passado todo o Curuçá pertencera a estes dois. Estávamos<br />

então na altura do seringal São Bento e José Filó, ao parar numa colocação,<br />

contou que numa reunião do Banco da Amazônia declarou que ia comprar<br />

borracha ali porque os seringueiros deviam a ele. E explicou ao seringueiro que<br />

Albertino não era o arrendatário daquele seringal, cujo dono era José Veiga;<br />

apenas tomava conta para ele. E mais: um dia o Exército se danaria e tomaria<br />

tudo aquilo, porque era área de fronteira. E disse que nos cinco seringais que<br />

ele, José Filó, tinha no Javari, todo o mundo comprava. As palavras de José Filó<br />

tiveram um reforço do próprio seringueiro, que reconheceu que fora ele quem o<br />

colocara ali, onde estávamos.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

15


16 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Ainda a propósito da abertura dos rios, lembro-me que numa outra ocasião,<br />

em outro lugar, o brasileiro Mário Paulo de Oliveira, apelidado Mário Peruano,<br />

casado com uma mulher marubo, me contou que fora o Exército que<br />

tinha libertado as águas.<br />

Apesar do argumento da liberdade das águas, José Filó não estava<br />

totalmente à vontade nos seringais arrendados por outros. Por exemplo, na tarde<br />

do dia seguinte (13 de setembro), quando estávamos numa colocação mais abaixo,<br />

ainda do seringal São Bento, chegou Gilson, genro de Albertino, que José Filó<br />

negara ser arrendatário do seringal. Alguns seringueiros, com medo dele,<br />

apressaram-se a sair do barco de José Filó. Gilson conversou com José Filó<br />

sobre a possibilidade de assumir as contas dos seringueiros, mas acabou<br />

concluindo que, para pagá-las precisaria de um paneiro cheio de dinheiro.<br />

A mesma situação ambígua tinha sido vivida mais acima, ao longo do percurso<br />

pelo seringal Pardo. Na colocação do Pantoja, abaixo da foz do rio Pardo, em cujo<br />

“porto” pernoitamos de 9 para 10 de setembro, encontramos o gerente Amazonas<br />

numa alvarenga, à espera de um motor que estaria subindo. José Filó aí fez transações<br />

e conversou durante horas com o gerente. Entretanto, ao pararmos numa colocação<br />

uma hora e <strong>dez</strong> minutos mais abaixo, José Filó pediu que não houvesse demora,<br />

porque não queria se encontrar com o Amazonas ali. Um dos seringueiros argumentou<br />

que devia a José Filó e ninguém podia impedir de pagar-lhe. Porém, da terceira<br />

colocação em que parou na manhã daquele dia, o barco de José Filó saiu<br />

apressadamente por causa da chegada do Amazonas.<br />

Não tive oportunidade de observar um terceiro tipo de situação, aquela em<br />

que o dono do seringal era o próprio regatão. Era o caso do rio Irari, tributário da<br />

margem direita do baixo Javari. Dos cinco seringais do Javari a que José Filó se<br />

referira como seus, um ou mais, quiçá todos, estavam neste afluente. Entretanto, ele<br />

nos deixou no seringal Santo Eusébio, acima da boca do Irari, alegando que neste<br />

iria demorar muito tempo.<br />

Seringais percorridos<br />

José Filó tinha subido até o Posto Indígena Curuçá, que estaria no seringal<br />

Douro, ou na margem fronteira a ele, pois situava-se acima do igarapé São Salvador.<br />

Ele fez várias transações com os índios marubos, que tinham suas estradas de seringa.


Julio Cezar Melatti<br />

Comprou deles também bananas e couros de gato maracajá. E talvez vasos de<br />

cerâmica: o elegante chomo marubo, deformado pelo aumento de seu volume,<br />

achatamento de sua base e alargamento de seu gargalo para aproximar-se da forma<br />

dos potes d’água usados nas casas de seringueiros. Não observei todas as transações,<br />

pois ainda estava fazendo minhas últimas anotações com os marubos.<br />

A partir do igarapé São Salvador, entrou no seringal Curuçá, à margem<br />

direita, que era o que arrendara. Até o igarapé Todos os Santos, mais abaixo, eram<br />

colocações dos culinas-panos, também atendidos pelo mesmo Posto de onde<br />

saíramos. Só parou na colocação do indígena Pedro, mas não na de João Culina. Do<br />

Todos os Santos até a foz do Pardo parou em mais oito colocações, três delas na<br />

margem esquerda, logo fora do dito seringal.<br />

Depois entrou no seringal Pardo, a partir da foz do rio que lhe dava nome,<br />

que era propriedade de Sabbá, arrendado por Magalhães e aos cuidados de Oscar<br />

Gomes e do gerente Amazonas. Parou em <strong>dez</strong> colocações, em uma e outra margem.<br />

Numa delas os ocupantes estavam ausentes.<br />

No igarapé Flecheira, alcançamos o seringal Canamã, em ambas as margens<br />

do rio Curuçá, também de propriedade de Sabbá, que comprara vários seringais<br />

em leilões do Banco da Amazônia, hipotecados e cujos donos não haviam pago as<br />

dívidas. Estava arrendado a Militão. O barco parou em cinco colocações, a primeira<br />

ainda acima do igarapé Flecheira.<br />

Abaixo do igarapé Esperança começava o seringal São Sebastião, cujo dono,<br />

também o Sabbá, o arrendava a Natalino. José Filó parou em seis colocações.<br />

Nos igarapés Dois Irmãos, que correm paralelos e desembocam na<br />

margem direita do Curuçá, tinha início o seringal São Bento. Era de José Veiga,<br />

que o arrendava a Albertino.<br />

Duas horas e meia abaixo do igarapé Sacudido, um lago na margem<br />

esquerda marcava o limite entre o seringal São Bento e o Santa Maria, que ia até<br />

a foz do rio Curuçá. Pertencia então ao Sabbá, mas fora antes do Barbosa. O<br />

arrendatário era o Natalino, disse-me, provavelmente o José Filó, mas o piloto<br />

Valdeci discordou, dizendo que era o Nego Assis. O barco parou em nove<br />

colocações. Antes de passar por elas, pernoitamos (de 13 para 14 de setembro)<br />

junto a dois barcos de pescadores. Um deles tinha um curral ao lado de seu<br />

barco, onde guardava jacarés vivos para o Magalhães.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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18 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Após sair do rio Curuçá, o barco ainda parou em sete colocações no rio<br />

Javari, antes de chegar ao seringal Santo Eusébio.<br />

Enfim, durante minha viagem no barco de José Filó, este visitou, fazendo<br />

negócios, 58 colocações. O número conferia com uma informação que ele me dera<br />

durante a viagem, de que tinha 50 fregueses no Curuçá e mais 63 abaixo da boca<br />

deste rio. No Curuçá ele tinha parado em 51 colocações (se incluirmos o posto<br />

indígena como uma delas). No Javari só paramos em sete. Mas a maioria deveria<br />

estar no rio Irari, que não visitei.<br />

Produtos e mercadorias<br />

Na nomenclatura da região, aquilo que o regatão vai buscar é chamado de<br />

“produto”, resultante da atividade extrativa, sobretudo borracha e madeira. O que<br />

ele adianta ou leva para dar em troca é a “mercadoria”.<br />

Na época desta viagem, o que José Filó mais adquiria era borracha, fosse<br />

sob a forma de pélas ou de sernambi. Mas comprou também couros de gato<br />

maracajá, garrafas de cachaça vazias, bananas, piraíba, pirarucu, couro de jacaré,<br />

couro de lontra, carne de anta salgada, tracajá, tartaruga, galinhas.<br />

Por outro lado, vendia latas de sardinha, óleo de cozinha, leite em pó, leite<br />

condensado, Nescau, pacotes de bolachas, feijão, macarrão, farinha, açúcar, balas<br />

(bombons), caramelos, cachaça, vinho, bananas, ananases, panelas, papel higiênico,<br />

querosene, camisas, calças, sandálias havaianas, chapéus de palha, botas de borracha,<br />

guarda-chuvas, tecidos, pano para mosquiteiro, zíper, agulhas, carretéis de linha,<br />

chumbo, cartuchos, anzóis, ponta de arpão, fio de nylon, canoas, penicilina, Trás-Zás<br />

(para dor de dentes), Anador, remédios, talco, loções, espelhos pequenos, velas,<br />

maços de cigarro, fumo, potassa.<br />

Nem tudo o que o regatão vendia subia o rio desde as cidades próximas da<br />

confluência do Javari com o Solimões: Tabatinga, Benjamin Constant, a colombiana<br />

Letícia. Atalaia do Norte, parte desta constelação urbana e sede do município que<br />

compreendia quase toda a banda oriental da bacia do Javari (a ocidental é peruana),<br />

era muito pequena e não tinha comércio capaz de abastecer regatões. Suponho que<br />

a base comercial do regatão fosse Benjamin Constant. Nem tudo que comprava<br />

José Filó levava para a cidade, mas vendia ao longo do trajeto. Os potes de cerâmica,<br />

bananas e ananases tinha comprado aos marubos no ponto mais alto de seu percurso


Julio Cezar Melatti<br />

e eram vendidos ao longo do mesmo. Deles talvez também comprara a carne de<br />

caça salgada, que provavelmente não iria vender no caminho, mas nas cidades de<br />

baixo. Os preços dos artigos também subiam à medida que se afastavam de seu<br />

ponto de origem, mesmo quando se deslocavam de montante para jusante. Havia<br />

também quem lhe fazia encomendas: ouvi alguém lhe pedir um moinho de café;<br />

outro, um gravador; um terceiro queria um rádio. O peixe piraíba era destinado a<br />

Letícia, pois só os colombianos o comiam.<br />

Mesmo aqueles que não estivessem em seringal de que o regatão fosse o<br />

dono ou arrendatário e nem tinham dívidas a saldar com ele, feitos os cálculos,<br />

podiam achar mais vantajoso vender seu produto diretamente a ele do que descer<br />

até Benjamin Constant para fazê-lo. Ainda no PIA Curuçá, o marubo Aurélio queria<br />

mandar seu cunhado Maurício para vender sua borracha em Benjamin Constant. O<br />

chefe do Posto dissuadiu-o, explicando-lhe que iria ganhar uns dois cruzeiros a mais<br />

por quilo, mas, em compensação, Maurício, na espera para voltar, gastaria toda a sua<br />

parte em comida e hospedagem. Parece que Santiago (que chegara com o regatão)<br />

também falou com ele sobre as dificuldades que passou na cidade, pois a Funai só<br />

dava alimento aos que iam doentes. Aurélio então resolveu vender a José Filó.<br />

Os fregueses também podiam escolher entre serem pagos em mercadorias<br />

ou em dinheiro. No início do terceiro dia de viagem soube que José Filó pagava<br />

22 cruzeiros, em dinheiro, pelo quilo de borracha; mas 23 se fosse a troco de<br />

mercadorias. Na última colocação em que paramos no mesmo dia, o seringueiro<br />

lhe entregou uma péla de 23 quilos e mais 4 quilos de sernambi, recebendo 400<br />

cruzeiros em dinheiro. Mas comprou dois pacotes de bolachas a 24 cruzeiros<br />

cada e uma garrafa de cachaça a 30 cruzeiros. No dia seguinte o regatão comentou<br />

que havia gente que não vendia seus produtos se não fosse a dinheiro. Quando<br />

isso acontecia, ele pagava a dinheiro. Mas logo a pessoa começava a comprar às<br />

vezes mais do que a quantia que havia recebido.<br />

Ainda no primeiro dia de viagem, José Filó informou que borracha verde<br />

tinha um desconto de 25%. Aquela um pouco mais seca, 15%. A borracha só<br />

deixava de “tarar” se pesada um dia após ser laminada, quando teria perdido<br />

toda a água. Assim, José Filó tinha de manter anotações da borracha bruta que<br />

havia comprado, da “tarada”, do preço que pagara, para averiguar se lucrara ou<br />

não na revenda. Às vezes a borracha tinha muita água e ele perdia na revenda, tal<br />

como se tivesse comprado a dinheiro e não a troco de mercadorias.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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20 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Lembro-me que José Filó tinha uma pequenina calculadora eletrônica em<br />

que fazia as contas diante de cada freguês, mas sempre tendo o cuidado de conferir<br />

depois o cálculo na ponta do lápis em seu caderno.<br />

Na primeira colocação a que chegamos no dia 14 de setembro, José Filó<br />

calculava que já estava de posse de 2.300 quilos de borracha “tarados”. Suponho<br />

que incluíam também a borracha que possivelmente tivesse embarcado na subida<br />

do rio. Mas é possível que evitasse embarques na subida, pois o rio mal dava<br />

sinais de começar a encher. No primeiro dia de viagem, o barco tocou e deslizou<br />

sobre um tronco submerso, que obrigou a uma parada mais adiante para recolocar<br />

um parafuso. Talvez tivesse aliviado o barco de algum peso na subida, pois<br />

abaixo do igarapé João Marcos, na colocação do Artemiro, ele voltou a rebocar<br />

uma canoa grande que aí deixara, embarcou mantas de pirarucu e piraíba e 24<br />

paneiros de farinha.<br />

Para os empresários envolvidos na extração de produtos florestais e no<br />

comércio fluvial tinha especial importância o financiamento do Banco da<br />

Amazônia – BASA, com agência, se bem me recordo, em Benjamin Constant.<br />

Disse José Filó que primeiro o financiamento do BASA era proporcional à<br />

produção do financiado. Depois passou a ser proporcional ao número de<br />

trabalhadores do financiado. Mas agora iria ser proporcional à produção do lote<br />

(isto é, seringal) em nome do qual saísse o financiamento. O fiscal saía três<br />

vezes por ano para inspecionar. Só a fórmula mais antiga era vantajosa para José<br />

Filó. O BASA esperava ou calculava que cada seringueiro produzisse 300 (ou<br />

500?) quilos de borracha por safra.<br />

Cortesias entre o regatão e os fregueses<br />

Nem tudo era estritamente computado monetariamente como dívida e saldo<br />

nas transações entre o regatão e os fregueses. Havia favores, cortesias, de parte a<br />

parte, que não deixavam de ser consideradas e retribuídas.<br />

Já disse do seringueiro que, apesar de estar em seringal arrendado por<br />

Magalhães, sentia-se na obrigação de vender alguma borracha a José Filó porque<br />

este arranjara remédio para um menino seu. Durante a noite que encerrava o primeiro<br />

dia de viagem, quando o barco estava amarrado a uma “orana” (folhas enormes à<br />

beira do rio), mas mantido afastado da margem, para pernoite, o regatão foi procurado


Julio Cezar Melatti<br />

por três homens da última colocação que tinha visitado, que lhe pediam para levar<br />

duas cartas. Noutra colocação, um homem a quem José Filó pediu para comprar<br />

meia dúzia de peixes, do feixe que acabara de trazer da pesca, deu-os gratuitamente,<br />

recebendo do regatão um punhado de balas ou caramelos para seus filhos. Numa<br />

outra, um rapaz deu um nhambu que matara ao regatão, ganhando um cartucho em<br />

recompensa. Em um outro local, um seringueiro lhe deu dois pacus, que José Filó<br />

retribuiu com um punhado de bolachas.<br />

José Filó, já no fim da viagem, me contou duas histórias de fregueses a<br />

quem confiou mercadorias enquanto estavam doentes, mas que depois lhe<br />

pagaram tudo, um com borracha, outro com o salário que obtinha do emprego<br />

que posteriormente conseguiu. Outros regatões evitavam o porto de um desses<br />

doentes. Um dos doentes, aquele que depois conseguiu um emprego, até tinha<br />

brigado com ele, mas mesmo assim ele o auxiliou e o levou para a cidade e aí lhe<br />

deu manutenção.<br />

Outra ajuda que o regatão pode dar a seus fregueses é rebocar suas canoas,<br />

sobretudo rio acima. José Filó chegou ao PIA Curuçá puxando a canoa em que<br />

vinham Mapará (um culina-pano) e sua família. Ainda trazia como passageiros o<br />

marubo Lauro e um branco casado entre os marubos, Santiago.<br />

A mulher grávida de um seringueiro de uma colocação pouco abaixo da foz<br />

do Pardo iria com o gerente Amazonas para dar à luz em Benjamin Constant.<br />

Infelizmente não tomei notas relativas a uma impressão que me ficou de um<br />

possível rito de recepção do regatão pelo freguês, talvez com base no que aconteceu<br />

em apenas um porto, ou em alguns, ou na soma de detalhes observados em diferentes<br />

colocações: a demora do seringueiro em aparecer no alto do barranco depois de<br />

atracado o barco, apesar do barulhento motor que naqueles ermos podia ser ouvido<br />

de muito longe; a descida vagarosa pelo barranco; os cumprimentos e a conversa<br />

antes de tratar das transações; e o pedido, enquanto conversava, de que o regatão<br />

mandasse os “marinheiros” subirem para buscar a péla.<br />

Relações entre regatões<br />

Apesar da disputa de fregueses e das opiniões nem sempre favoráveis que<br />

uns tinham dos outros, havia também entre regatões demonstrações de confiança e<br />

solidariedade nos momentos de necessidade.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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22 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Pouco acima do igarapé do Maia, paramos na colocação onde a embarcação<br />

do regatão Zaguri tinha ido a pique. Já tinha sido tirada do fundo. Zaguri<br />

entrou chorando no barco de José Filó para contar-lhe o sucedido. Este, na<br />

subida seguinte, iria lhe trazer “bronze” para o motor, o que não sei absolutamente<br />

do que se trata.<br />

Nossa viagem com José Filó terminou no seringal Santo Eusébio, onde<br />

Alcino tinha sua casa junto à de sua mãe. Sua irmã morava do outro lado do rio<br />

Javari, na margem peruana. Continuaríamos a viagem de descida no dia seguinte,<br />

no motor de Alcino, que fretamos. Nessa noite Alcino foi buscar, junto com<br />

Valdeci, a borracha de um freguês de um lago próximo de sua casa. De manhã<br />

ele vendeu esta e toda a outra borracha que tinha, que conseguira sobretudo no<br />

Curuçá, a José Filó, por mais ou menos 19 mil cruzeiros [moeda da época].<br />

Assim poderia pagar logo os 15 mil de compras que fizera ao Magalhães. Durante<br />

a viagem explicou-me Alcino que, embora Assis pagasse mais, preferia vender a<br />

José Filó, porque este lhe emprestara dinheiro para pagar o motor, uma dívida<br />

que já saldara, mas esperava dele um empréstimo de 22 mil para comprar casa no<br />

Marco (local entre Tabatinga e Letícia, onde se ergue o marco sobre a linha da<br />

fronteira Brasil-Colômbia). O casco da embarcação, ele o comprara de Magalhães<br />

por 20 mil cruzeiros e já pagara. Magalhães revendia cascos feitos no rio Negro,<br />

perto de Manaus. Ainda explicou Alcino que preferia vender a borracha a José<br />

Filó, ao invés de fazê-lo em Benjamin Constant, porque aí ela era classificada<br />

em categorias, cada qual com um preço diferente, enquanto Filó comprava tudo<br />

pelo mesmo preço.<br />

As trajetórias de vida dos comerciantes e de suas relações entre si eram<br />

bem conhecidas uns dos outros. Já no primeiro dia de viagem José Filó nos<br />

contou que Vítor Magalhães começou como aviado de um aviado seu (diria<br />

mais adiante que este era o já falecido Newton Caldas). Era um seringueiro ou<br />

madeireiro muito trabalhador. Foi melhorando. Fez sociedade com Deusdéti. A<br />

falência dessa sociedade não o atingiu. Agora tinha serraria, fornecia mercadorias<br />

a boa parte dos comerciantes de Benjamin Constant, tinha 300 cabeças de gado.<br />

Tinha 200 empregados, por certo na serraria. Fazia criação de jacarés, tracajás e<br />

peixes em açudes, numa área que estava cheia de ticunas. Embora ele fosse muito<br />

amigo dos funcionários da Funai, parecia que iria perdê-la. Um rapaz muito<br />

conversador que iríamos encontrar mais abaixo confirmou a origem humilde


Julio Cezar Melatti<br />

do comerciante, dizendo que, quando era menino, conhecera Vítor e Amor Magalhães<br />

tirando seringa.<br />

Fragmentos folclóricos<br />

Ao longo da viagem ouvi casos, observei um ou outro cuidado, relativos a<br />

crenças, costumes, representações, todos certamente já conhecidos dos pesquisadores<br />

que se dedicam ao estudo das tradições amazônicas.<br />

No segundo dia de viagem, José Filó falou-nos de um vegetal, chamado<br />

jaracatiá que, a <strong>jul</strong>gar pela sua descrição, seria o mesmo waki dos marubos, que<br />

o derrubam para que em seu tronco apodrecido se desenvolvam larvas que eles<br />

consomem. José Filó contou que os peruanos e mesmo os brasileiros também<br />

as comem. Uma peruana uma vez preparou para ele. Primeiro deu uma fervura<br />

e depois tirou a cabeça e um fio de cada larva. Carlos Everaldo Coimbra Jr.<br />

(1984, p. 37-40) registrou o uso destas larvas na alimentação dos índios suruís<br />

(paiter) de Rondônia, identificando-as como pertencentes ao curculionídeo<br />

Rhynchophorus palmarum.<br />

Ao findar esse dia, para pernoitarmos, o barco foi amarrado longe das<br />

duas margens. Como Delvair perguntasse a respeito dos sapos que estavam<br />

coaxando, acabamos sabendo, de um dos auxiliares, Valdeci ou Raimundo, não<br />

anotei qual deles, que o kãpo (ele não sabia esta palavra e talvez nem soubesse<br />

que os marubos o usassem) vem a ser o sapo bacororó, pois é assim que grita:<br />

bacororo-o-o-ó! José Filó então contou que certa vez estava tirando folha, não<br />

anotei de que, com umas pessoas. Uma delas, Noroña, que veio a ser prefeito de<br />

Iquitos, pegou um sapo, pediu a José Filó para segurar o cachorro e fez ele<br />

morder o sapo. Era o sapo de que estávamos tratando e José Filó sabia que era<br />

verde, mas não sabia o nome dele. O cachorro escarrou, se peidou todo. Então<br />

José Filó riu. E o peruano se zangou porque ele riu, pois o cachorro ficaria<br />

mentiroso, latiria sem motivo.<br />

Então o mesmo auxiliar do regatão disse que já tinha experimentado o sapo.<br />

Quando era um menino grande, ele, seus irmãos e irmãs, que ouviam falar do sapo,<br />

resolveram experimentar. Disse que se põe um palito de fósforo em pé no braço, e<br />

se deixa queimar até tocá-lo, ou se encosta a brasa do fósforo no braço. Aí se tira a<br />

pele da queimadura e se esfrega o ombro do sapo. Eles fizeram assim e começaram<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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24 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

a vomitar. Vomitaram tanto que começou a sair verde. A mãe deles os alertou que,<br />

se não fossem tomar banho, continuariam a vomitar até morrer. Eles tomaram<br />

banho. Ainda deram o sapo para o cachorro cheirar e ele também começou a passar<br />

mal. Jogaram o cachorro dentro d’água e ele ficou bom.<br />

José Filó ainda disse que os peruanos também aplicam esse “leite” de sapo<br />

em gente, queimando a pele com cipó titica. Entre outras coisas, é para fraqueza.<br />

Tanto José Filó como seu auxiliar referiam-se à secreção do sapo como “purgante”.<br />

O uso da secreção do bacororó ou kãpo (na língua marubo), ou seja, da<br />

perereca Phyllomedusa bicolor, foi registrado por diferentes pesquisadores em vários<br />

pontos do sudoeste da Amazônia. Uma das referências mais antigas de sua utilização,<br />

no caso pelos ticunas do alto Solimões, é a do zoólogo do Museu Nacional José<br />

Cândido de Melo Carvalho (1955, p. 15). Mas atualmente os catuquinas-panos, do<br />

Acre, reivindicam o reconhecimento deste saber como seu.<br />

José Filó também falou no remédio do leite da gameleira, que entre outros<br />

usos serve para barriga d’água. Quem o toma tem de fazer dieta por nove dias,<br />

comendo só galinha assada sem sal e farinha com água. Se não fizer isso, morre. Seu<br />

sogro morreu porque comeu pirarucu depois de tomar leite de gameleira, não<br />

respeitando os nove dias.<br />

Depois de comentar que não se comia carne de boto, mas no futuro ainda se<br />

iria comer, José Filó contou um caso. Em Caiçara (atual Alvarães), no fundo de um<br />

lago, perto de Tefé, apareciam nos bailes dois rapazes que ninguém conhecia e que se<br />

retiravam antes da festa terminar. Querendo saber quem eram, o pessoal resolveu<br />

dar um porre nos rapazes. E de fato os fizeram beber muito. Antes de terminar a<br />

festa eles desapareceram. No dia seguinte havia dois botos boiando no lago. Naquele<br />

lago não havia boto e nem passagem para eles passarem do rio para o lago. E no<br />

outro dia os botos desapareceram. Achava José Filó que os botos, bêbedos, tinham<br />

errado o caminho do rio e foram para o lago. Temos aqui mais uma manifestação<br />

das crenças referentes ao boto, difundidas por toda a Amazônia, da qual Eduardo<br />

Galvão (1955) cita vários exemplos no capítulo 4 de seu livro Santos e visagens, referente<br />

a uma comunidade do baixo curso do rio Amazonas.<br />

Ao contrário do Solimões, percorrido em vários séculos por<br />

conquistadores, missionários, naturalistas, que deixaram informações sobre o<br />

que viram e ouviram, o Javari e seus afluentes só começaram a ser penetrados<br />

por colonizadores na segunda metade do século 19. As crônicas de viagem a eles


Julio Cezar Melatti<br />

referentes são poucas e mais recentes. Considerando que os regatões seriam<br />

grandes conhecedores desses rios, faltando-lhes apenas escrever o que sabiam,<br />

comecei a estimular José Filó a contar histórias, casos ocorridos no rio que<br />

estávamos percorrendo, mas ele não entendeu bem o que eu lhe pedia e narrou<br />

dois contos de fadas de origem européia.<br />

No dia seguinte, falou-me sobre cobras. O homem mordido por cobra não<br />

pode beber água por 24 horas, porque é fria. Não come peixes de couro porque<br />

são reimosos. Não deve ser visto por mulher grávida até falar primeiro com ela, por<br />

trás. Não deve ser visto por pessoa de olho mau. Aliás, José Filó, um ou dois dias<br />

antes, havia dito que o “ofendido” de cobra não devia ouvir indivíduos de maus<br />

olhos por quarenta dias. E contou casos, uns três, de pessoas ofendidas de cobra<br />

que, só por ouvirem a voz de certas outras, morreram. Já estavam sem sentir mais<br />

nada, ouviram a voz, começaram a passar mal e morreram. E completou José Filó<br />

que, por isso, ele não gostava de visitar ninguém mordido por cobra.<br />

Sobre o igarapé João Marcos, pelo qual passamos na manhã de 10 de<br />

setembro, Raimundo, o motorista, contou que tem o nome de alguém que ali<br />

morou e que foi assassinado por seus empregados. José Filó também me contara,<br />

num dia anterior, que um regatão judeu foi assassinado por um homem porque<br />

se negava a negociar com este. Ao invés de lhe dizer que era seu patrão, também<br />

judeu, que o proibia de fazê-lo, o regatão simplesmente se negava a atendê-lo.<br />

Aquele que o assassinou não podia mais dormir porque dizia que o morto lhe<br />

aparecia. E, para se livrar das aparições, foi dormir ao lado da sepultura de um<br />

“anjinho”, se me lembro, afilhado seu.<br />

Na colocação de Artemiro, no trecho entre as fozes dos igarapés João Marcos<br />

e Flecheira, estava um homem que tínhamos visto mais acima, que veio rezar um<br />

menino que estava com “ventre caído”. Ele explicou que isto significa que a moleira<br />

da criança está mole e a barriga fofa. Mas disse que não era nada de grave.<br />

Ainda na mesma colocação, José Filó contou que antigamente os donos de<br />

seringal costumavam enterrar dinheiro em metal. Mas quem enterra dinheiro, se<br />

passarem três sextas-feiras, já não será ele que desenterrará. Talvez seja desenterrado<br />

por uma pessoa que sonhar com o tesouro e o desencavar sem ambição.<br />

Artemiro comprou do regatão, entre outras coisas, <strong>dez</strong> pacotes de seis velas<br />

cada um, para pagar uma promessa de vinte pacotes (uma caixa). Quando viu o<br />

tamanho das velas, se queixou de que agora estavam roubando até dos santos.<br />

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26 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Ultrapassada essa colocação, encontramos o motor do Carlota, que subia o<br />

rio, levando uma família para o rio Pardo, onde iria extrair madeira. Um pau lhe<br />

havia furado o casco e a embarcação quase tinha ido a pique. Eles estavam levando<br />

a ponta do pau para queimar no fim da viagem. Infelizmente não anotei o porquê<br />

deste cuidado.<br />

Mais abaixo, quando percorríamos o seringal São Bento, José Filó contou<br />

que uma vez, às 11 horas da manhã, numa curva pela qual já passáramos, viu um<br />

motor que vinha na direção oposta, que parecia o do Carlota, subindo. O motor<br />

apontou na curva e se escondeu na concavidade oposta. Quando José Filó passou<br />

ali não o viu mais. Ele ficou dois dias pensando nisso. E não veio nenhum<br />

banzeiro do qual o motor parecia estar se escondendo. Também contou caso<br />

semelhante em que ele e outros viram um motor da Petrobrás todo iluminado,<br />

e que desapareceu. E não veio o banzeiro. Nas duas histórias fez referência ao<br />

banzeiro. Temos aqui um exemplo da visão do navio encantado, que é uma das<br />

formas que pode tomar a cobra grande, outra crença pan-amazônica de que<br />

Eduardo Galvão trata no seu já referido capítulo.<br />

À tardinha do último dia de viagem, dois rapazes, cantando, um deles ao<br />

violão, de uma lancha que descia, rebocando samaúma e outra madeira, vieram em<br />

canoa até o barco de José Filó para comprar uma garrafa de cachaça e uma agulha.<br />

José Filó não quis entregar a agulha ao rapaz e fez com que este mesmo a tirasse do<br />

pacote. Ele chegou a dizer porque assim agia, mas eu de novo falhei, esquecendo de<br />

fazer a anotação.<br />

Num dia da viagem lembrei-me de que vira à venda, numa farmácia<br />

improvisada de Itajacá, núcleo urbano junto à terra dos craôs, no norte do Tocantins<br />

(então ainda Goiás), remédios como Específico Pessoa, Pílulas contra Estupor e<br />

Elixir dos Quatro Humores, oriundos de pequenos laboratórios do Nordeste. Talvez<br />

pensando em levar alguma coisa curiosa para meu colega Martín Ibáñez-Novion (já<br />

falecido), que se dedicava à Antropologia da Saúde, perguntei por eles a José Filó. E<br />

ele tinha as Pílulas contra Estupor. Infelizmente, elas não estavam dentro de um<br />

vidrinho com um rótulo que as identificasse, mas envolvidas em papel de embrulho,<br />

e por isso me desinteressei em comprá-las.<br />

Duas curiosidades. Ao anoitecer do dia 11 de setembro, abaixo do igarapé<br />

Esperança, passamos por um trecho do rio chamado Remanso do Sovaco da


Julio Cezar Melatti<br />

Cachorra. E mais abaixo, perto da meia-noite, gastamos 35 minutos para percorrer<br />

um meandro, ou seja, para voltarmos quase ao mesmo ponto de onde saíramos.<br />

Índios<br />

Se conferirmos no mapa o percurso que fiz com o regatão, notaremos<br />

que ele parte do interior da atual Terra Indígena do Vale do Javari no seu trecho<br />

inicial (do PIA Curuçá até a foz do rio Pardo) e depois (até o seringal de Santo<br />

Eusébio) a bordeja pelo oeste e pelo norte. Não é de estranhar, por conseguinte,<br />

que a conversa com o regatão e com os seringueiros vez por outra incidisse<br />

sobre fatos ocorridos com índios.<br />

Assim, após passarmos pelo igarapé João Marcos, possivelmente habitado<br />

por culinas-panos, José Filó contou que em Lameirão (uma terra indígena que margeia<br />

o Javari, abaixo no trecho que percorri com o regatão) morava Dona Noêmia,<br />

vivendo com os maiorunas (matsés) que a haviam raptado. Mais adiante eu ouviria<br />

que ela foi raptada no igarapé Três Bocas, no Javari. Ainda ouvi referências a Dona<br />

Noêmia num outro caso, contado no local onde havia um apanhador de jacarés<br />

vivos a serviço do Magalhães. Ouvi que ali, 15 anos antes, na margem esquerda, os<br />

índios mataram um homem chamado Américo. Deviam de ser do igarapé Pedro<br />

Lopes e teriam ido para o Estirão (do Equador, guarnição militar brasileira na<br />

fronteira). Já havia índios do Pedro Lopes no Estirão e eles teriam ido juntar-se a<br />

eles. Havia um varadouro do local em que estávamos para o Estirão. O pescador<br />

também presente naquele local, Cláudio Silva, contou que o homem que morrera ali<br />

tinha uma certa culpa, pois já tinha matado um índio. Contou também que andara<br />

por esses rios sempre de arma na mão. Se os índios punham espinhos, ele contornava,<br />

não desmanchava. Noêmia, que estava entre os índios, pedia-lhes para não atirarem<br />

nele. Oferecia-se para falar com ele, mas quando ia falar os índios a puxavam,<br />

tremendo de medo. Os índios lhe disseram que não atiravam nele com medo de<br />

errar e serem por sua vez baleados por ele.<br />

Sobre o igarapé Pedro Lopes, ao passarmos diante de sua foz, José Filó<br />

comentou que ali havia capoeira de índios. O mapa mostra que as cabeceiras de um<br />

tributário do Pedro Lopes se aproximam do Todos os Santos, e este desemboca<br />

próximo do São Salvador. Esses igarapés, abaixo e acima do cotovelo do rio Curuçá<br />

que se projeta para ocidente, delineiam o recanto que seria habitado pelos culinas-<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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28 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

panos. Raimundo, o motorista, contou que morou no igarapé João Marcos (não<br />

traçado no mapa, entre o Todos os Santos e o Pedro Lopes). Aí apareciam os<br />

índios da tribo do Mapará (um culina-pano que morava no PIA Curuçá). Uns<br />

tinham tatuagem dos lábios às orelhas, outros não. Uns tinham brincos, outros<br />

não. Tinham colares, mas não bandoleiras ou pulseiras. Mapará saiu do grupo<br />

para os civilizados do tamanho do Bico (talvez o apelido do menino que fazia<br />

parte da tripulação do barco).<br />

José Filó contou também sobre uma mulher roubada pelos maiorunas que<br />

agora vivia com o pai em Benjamin Constant. Aliás, naquele momento pai e filha<br />

estavam no rio Curuçá e eram seus fregueses. A mulher havia trazido o marido maioruna<br />

para a casa do pai em Benjamin. Como o índio não fazia nada, um dia o sogro<br />

mandou que capinasse o quintal. Ele não gostou, saiu só com uma faquinha e foi para<br />

o igarapé Lobo (no alto Javari). Essa mulher se chamava Ângela; seu pai, Tiano Lucas.<br />

A criança que teve com o índio morreu. Em outro ponto do percurso, ele iria acrescentar<br />

que ela foi raptada no seringal Miraflor, no igarapé Santana, afluente do Javari.<br />

De fato, mais abaixo encontraríamos esta mulher naquela colocação em que Gilson,<br />

genro de Albertino, arrendatário do seringal São Bento, se propôs assumir a conta dos<br />

seringueiros que ali deviam a José Filó. O pai dela, Tiano, era um dos seringueiros. Ela<br />

tinha tatuagem no rosto, um risco das orelhas à boca, mas passando por debaixo dos<br />

lábios (e não acima, como a dos marubos). Delvair nela notou um orifício para batoque.<br />

Tinha um companheiro que ia levá-la a Manaus. Tiano contou que morava ali havia<br />

oito anos e que permanecia o ano inteiro no local. Sua filha tinha ficado quatro anos<br />

entre os índios e tinha voltado fazia <strong>dez</strong> anos. Quando os índios vieram para o igarapé<br />

Lobo (afluente do Javari no Brasil) é que ela os deixou. Tinha estado primeiro no<br />

Choba (afluente do Javari no Peru). Logo que começou a conversar conosco, ela<br />

afirmou que preferia ter ficado lá, com os índios, pois já estava acostumada.<br />

O vídeo Matsés: eram assim..., de Delvair Montagner (1996), reúne vários<br />

depoimentos sobre a ação dos matsés, inclusive de pessoas raptadas por eles,<br />

entre as quais a brasileira Noêmia Salvador de Sousa e a peruana Ângela Huanar.<br />

Se a primeira é a mesma Noêmia de quem ouvi as referências acima no barco do<br />

regatão, a segunda pareceu-me ser pessoa distinta da Ângela que vi numa colocação<br />

do rio Curuçá.<br />

José Filó ainda contou o caso dos índios que levaram duas mulheres, mataram<br />

uma ou duas mais e ainda atiraram num homem. O homem não morreu. Seus


Julio Cezar Melatti<br />

filhos o arrastaram até o rio. Houve até um incidente com o cônsul peruano em<br />

Benjamin, queriam bater nele, porque ele dizia que não havia peruano entre os índios<br />

que atacavam. Depois esse homem e o filho foram morar perto de Palmeiras (guarnição<br />

militar brasileira de fronteira), que estava em construção. Os índios começaram<br />

a aparecer perto da sua casa, mas não faziam nada. Um dia, quando os índios<br />

atravessaram o rio, o filho do homem matou seis. Desde então os índios começaram<br />

a perseguir o rapaz, vigiando-o. Um dia em que ele saiu para caçar com o pai,<br />

o pessoal da casa ouviu dois tiros logo de manhã; pensaram que tinham abatido<br />

caça. Mas os homens não voltaram. Seis dias depois foram encontrados mortos,<br />

sendo ali mesmo sepultados. Desde então os índios não mataram mais ninguém. Só<br />

queriam mesmo matar o rapaz. O motorista do barco disse que esse rapaz se chamava<br />

Valdemiro e quem encontrou seu corpo e o do pai foi Eliseu Mota. Mais<br />

adiante soube que as mulheres parentas de Valdemiro tinham sido raptadas no igarapé<br />

Sacudido e que estavam então morando no igarapé Choba. Ao passarmos pela<br />

boca do igarapé Sacudido, José Filó confirmou que o rapto tinha sido ali; elas acompanhavam<br />

madeireiros. E havia agora gente trabalhando em madeira ali.<br />

Quanto ao aludido conflito com o cônsul peruano, ele tem a ver com a<br />

crença difundida na região de que os ataques de índios eram dirigidos por<br />

bandidos brancos que se escondiam entre eles. Numa colocação abaixo do igarapé<br />

do Maia, entrou no barco o Bibi (José Roseno de Lima), para descer na sua, que<br />

era a seguinte. Disse ter nascido no Itacoaí e trabalhado lá 18 anos. Os índios de<br />

lá nunca fizeram mal a ninguém; era um cabra sem vergonha que estava ali<br />

dentro. Seu sogro foi morto lá, mas por índios do Ituí. Houve crime lá, mataram<br />

três, parece, mas não foram índios. O próprio chefe do PIA Curuçá, Bernardo<br />

Muller, de apelido Berê, descendente dos alemães de Santa Rita do Weil, no<br />

Solimões, e que numa aproximação tinha sido atacado com um companheiro<br />

(Sebastião Bandeira), que foi morto pelos índios que viriam a ser conhecidos<br />

como corubos, “sabia” até os nomes dos três malfeitores que viviam entre eles:<br />

Deusdéti, Carrapicho e Manduca Major.<br />

Na noite do penúltimo dia de viagem, José Filó contou que parte dos índios<br />

canamaris desceram do alto Itacoaí e foram morar no seu seringal Irari, no tempo<br />

em que os índios estavam atacando. A Funai pôs os índios do Irari e do alto Itacoaí<br />

no São Luís, uma colocação para onde um Freitas levou quatro canamaris do Irari.<br />

Muitos não ficaram satisfeitos com São Luís e voltaram para o Irari.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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30 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

O homem que fora rezar um menino na colocação do Artemiro contou que<br />

nasceu no rio Ituí, perto do rio Paraguaçu, onde morou oito anos. Depois morou<br />

22 anos no rio Itacoaí. Esteve em Benjamin, mas como lá está tudo caro, tinha vindo<br />

para o alto Curuçá, onde estava havia três anos. Ali sua mulher tinha morrido e ele<br />

estava com uns sete filhos. Aparentava ter 50 anos. Contou que naquele tempo os<br />

índios do alto Ituí, acima do Paraguaçu, matavam gente, mas só para tirar ferramentas,<br />

botões; mas não ficavam com arma de fogo. Mas nunca lhe fizeram nada.<br />

Depois até o convidavam para ir a sua maloca.<br />

Contou também que, fazia quatro anos, o Peixinho entrara no igarapé Sacudido<br />

para fazer uma “correria” (procurar madeira) e saíra perseguido pelos índios.<br />

Havia também índios no igarapé Boa Esperança que visitavam os do igarapé Pedro<br />

Lopes e eram por estes visitados. Acrescentou que anos atrás os índios resolveram<br />

expulsar os moradores do Curuçá. Mas havia peruanos e brasileiros entre eles: tinham<br />

armas de fogo, armas de exército, sapatos. Quem vinha ao Curuçá só tirava<br />

madeira branca em tempo das águas, nas margens, e não se aventurava em terra<br />

firme. E nem chegavam aos locais em que a terra firme se aproxima das margens.<br />

As repetidas referências ao tempo dos ataques dos índios e à presença de<br />

bandidos, não raro qualificados de peruanos, a liderar grupos indígenas que recusavam<br />

o contato remontam aos anos 1950. Nessa época a extração de madeira se<br />

intensificava na bacia do Javari, penetrando mais profundamente na floresta, onde<br />

haviam se refugiado e se reorganizado, após o refluxo dos seringueiros, os grupos<br />

indígenas dizimados, fragmentados ou deslocados pelo avanço destes no anterior<br />

clímax do ciclo da borracha. Os diferentes interesses econômicos e políticos<br />

escamoteados por empresários e de trabalhadores extrativistas na sua interpretação<br />

da reação indígena foram analisados por Roberto Cardoso de Oliveira (1964), no<br />

capítulo 2 de seu livro O índio e o mundo dos brancos, a partir do que ouvira em Benjamin<br />

Constant e outros núcleos urbanos próximos, quando a etnografia do Javari ainda<br />

não havia começado.<br />

Formas de ocupação<br />

É difícil dizer quantos daqueles que moravam em colocações o faziam<br />

de modo permanente. Possivelmente, a maioria era colocada pelos empresários<br />

da extração de látex e madeira, e se retirava com o final das atividades. O homem


Julio Cezar Melatti<br />

que estava na primeira colocação a que chegamos no dia 9 de setembro disse<br />

que já entregara ao Amazonas 800 quilos de borracha produzida por ele e seus<br />

dois companheiros. Ele era uma espécie de patrão de seus companheiros: ele é<br />

que controlava o seu saldo e mandava o Amazonas fornecer mercadoria. Ele<br />

também trabalhava com madeira branca. Quando acabava a safra da borracha e<br />

da madeira, voltava para sua casa em Benjamin Constant. Não trabalhava com<br />

cedro porque com essa madeira teria de começar mais cedo, quando ainda estava<br />

ocupado com a borracha.<br />

Ainda acima da foz do Pardo ficava a colocação de Peixinho, que ali estava<br />

só com um companheiro. Sua família estava lá em baixo, em Benjamin Constant ou<br />

Atalaia do Norte. Apesar disso, ele tinha galinhas, pois José Filó quis comprá-las,<br />

mas ele respondeu que estavam todas chocas, e vimos nas proximidades duas capoeiras<br />

e uma roça com os pés de milho ainda baixinhos. As outras referências que ouvi de<br />

Peixinho, em outros pontos da viagem, relacionavam-no à extração de madeira. Na<br />

colocação de Pantoja ouvi que, como a produção de borracha ali era pouca, Peixinho<br />

mandara um homem para cortar madeira no rio Pardo. Já fiz referência à correria,<br />

isto é, localização de madeira, que Peixinho fizera quatro anos antes no igarapé<br />

Sacudido, tendo sido de lá afugentado pelos índios, como ouvi na colocação de<br />

Artemiro. Ou seja, Peixinho não seria um simples madeireiro, mas um funcionário<br />

de empresa, certamente a de Magalhães, que dirigia uma turma.<br />

Também na primeira colocação do seringal São Sebastião trabalhavam três<br />

irmãos, mas um não viera aquele ano. Faziam farinha. Vi bananeiras e mandioca<br />

junto a suas habitações e mais abaixo havia uma clareira com mandioca e outra com<br />

milho. José Filó pareceu-me dizer que eles tinham casa no Marco.<br />

Numa colocação abaixo do igarapé do Maia, portanto já bem próxima ao<br />

curso do Javari, havia uma casa melhor, com cajueiros e bananeiras; na outra margem,<br />

uma pequena roça nova. Disse José Filó que o Sabbá havia tirado 30 bilhões (milhões;<br />

Filó ainda não se acostumara à última das sucessivas eliminações de três zeros aplicada<br />

à moeda brasileira) de cruzeiros do Banco para aplicar ali, fazer plantio de cedro,<br />

mas aplicava em outras coisas. E acrescentou, brincando: “Esta casa custou 30 bilhões<br />

de cruzeiros”. A casa ficava numa altura cuja margem parece um paredão natural.<br />

Casa de tábuas, com folhas de zinco ou amianto no telhado.<br />

Na segunda colocação abaixo do igarapé Todos os Santos, um dos seringueiros<br />

disse que o lugar era bom, embora com muito pium. Mas havia embiara<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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32 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

(aves grandes) para caçar. Já na colocação abaixo do rio Pardo, o seringueiro<br />

reclamou falta de caça. Era preciso matar quatro quatipurus para fazer uma<br />

janta. Uma mulher de uma colocação abaixo do igarapé Flecheiras contou que<br />

no verão (estio) que então corria tinham apanhado 8 mil ovos de tracajá. A<br />

mulher deixou estragar muitos desses ovos, dizendo que não sabia que não se<br />

tira a areia ao salgar. Na sua colocação havia 50 anzóis para tracajá e tinham<br />

apanhado 15. José Filó, por sua vez, contou que antigamente trazia 5.000 quilos<br />

de pirarucu por viagem; mas agora só conseguia 500.<br />

O início da temporada da extração da madeira se anunciava. E essa atividade<br />

implicava numa penetração mais funda na floresta. Além de umas poucas referências<br />

aqui e ali sobre sua extração, a ocorrência mais notável que presenciei foi abaixo do<br />

igarapé do Maia, quando passou por nós, subindo o rio, uma embarcação com<br />

trinta homens. Ela era precedida por um motor de popa em que estava José Gomes<br />

(que já trabalhara com Antônio Meneses), aviado de Chico Batista. Aquele alegou<br />

que este havia conseguido com o Presidente da Funai autorização para trabalhar do<br />

igarapé Arrojo ao Amburus, ou seja, acima do PIA Curuçá, logo, em área interditada.<br />

Lugar do regatão nos resultados da pesquisa<br />

Apesar de não estar prevista no projeto de pesquisa, a viagem com o<br />

regatão não deixava de se prestar ao método de investigação que eu aplicava. De<br />

certa maneira eu seguia o procedimento adotado tacitamente pelos pesquisadores<br />

com quem eu mais interagia. De um modo geral combinávamos numa mesma<br />

investigação tanto o estudo das instituições de uma sociedade indígena como o<br />

das suas relações de contato com os brancos. A realização do primeiro dependia<br />

de uma estada prolongada em um ou mais grupos locais do povo em estudo,<br />

com a aplicação das técnicas etnográficas tradicionais, como genealogias, censos,<br />

conversas informais, participação nas atividades e ritos da comunidade, anotação<br />

de mitos etc. Já os dados relativos ao contato interétnico eram obtidos não<br />

somente durante a permanência entre os indígenas, mas no longo percurso de<br />

ida para alcançá-los, da metrópole aos centros regionais, destes às pequenas<br />

cidades, daí aos povoados, depois aos postos indígenas e finalmente às aldeias e<br />

malocas, passando do avião ao ônibus ou caminhão, deste ao cavalo ou canoa. E<br />

também no percurso de retorno. Ia desde a consulta a bibliotecas, arquivos,


Julio Cezar Melatti<br />

sedes administrativas de diferentes órgãos públicos nos centros maiores, passando<br />

por conversas com comerciantes, hóspedes de hotel, prefeitos de núcleos<br />

urbanos menores, até lavradores, vaqueiros, seringueiros, canoeiros já vizinhos<br />

das terras indígenas. Havia muito de aleatório nessa coleta de dados, que poderia<br />

ser mais ou menos proveitosa, dependendo da habilidade e diligência do<br />

pesquisador. Apareceu-me um regatão; teria outro tipo de dados se fosse um<br />

piloto de barco da Funai ou um piloto de avião dos missionários.<br />

Mesmo que não tenha sabido ou me esforçado para tirar o máximo dessa<br />

oportunidade, a viagem com o regatão me ofereceu algumas noções sobre as<br />

relações entre os diferentes agentes envolvidos no sistema de aviamento.<br />

Concedeu-me também uma idéia sobre a movimentação das empresas extrativas<br />

e seus trabalhadores, bem como dos índios num trecho da bacia do Javari. Essas<br />

informações foram somadas às obtidas em conversas com moradores de Benjamin<br />

Constant e Atalaia do Norte, inclusive outros regatões. Aproveitei-as na redação<br />

do volume Javari, que realizei a convite do CEDI (MELATTI, 1981). Outros<br />

dados tomados na viagem sobre a posição de seringais, complementei-os depois<br />

numa etapa seguinte, posterior à redação do referido volume, no escritório do<br />

Incra em Benjamin Constant, o que me possibilitou rascunhá-los sobre um<br />

mapa posteriormente simplificado na p. 79 de Povos indígenas no Brasil/83, do<br />

mesmo CEDI. E, sem dúvida, a viagem foi um dos estímulos para examinar a<br />

posição de certos marubos como elos da cadeia de aviamento, o que fiz no<br />

artigo “Os patrões marubo” (MELATTI, 1985).<br />

Notas<br />

1 Folhas enormes à beira do rio.<br />

Referências<br />

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O índio e o mundo dos brancos: uma interpretação<br />

sociológica da situação dos Tukúna. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.<br />

CARVALHO, José Cândido de Melo. Notas de viagem ao Javari-Itacoaí-Juruá. Rio de<br />

Janeiro: Museu Nacional, 1955. (Publicações Avulsas, 13).<br />

COIMBRA JR., Carlos Everaldo. Estudos de ecologia humana entre os Suruí do<br />

Parque Indígena Aripuanã, Rondônia. 1. O uso de larvas de coleópteros (Bruchidae e<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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34 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Viagem com um regatão<br />

Curculionidae) na alimentação. Revista Brasileira de Zoologia, 2 (2): 35-47. São Paulo, 1984.<br />

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo<br />

Amazonas. São Paulo: Nacional, 1984. (Brasiliana, v. 284).<br />

MELATTI, Julio Cezar (Coord. e red.). Javari. In: RICARDO, Carlos Alberto (Coord.<br />

geral). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e<br />

Informação (CEDI), 1981. v. 5.<br />

________. Os patrões Marubo. Anuário Antropológico/83. Rio de Janeiro: Tempo<br />

Brasileiro; Fortaleza: Edições UFC, 1985. p. 155-198.<br />

MONTAGNER, Delvair. Matsés: eram assim.... Brasília: UnB/Centro de Produção<br />

Cultural e Educativa (CPCE). Vídeo, 37 min., 1996.<br />

OLIVEIRA, Adélia Engrácia de. São João – Povoado do Rio Negro. Boletim do<br />

Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Nova Série, Antropologia, nº 58, 1975.<br />

________. A decadência do aviamento num povoado da Amazônia: Notas<br />

preliminares. Anuário Antropológico/79. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. p.<br />

131-147.<br />

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL/83. Aconteceu Especial 14. São Paulo: Centro<br />

Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). 1983.


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber<br />

tappers during World War II<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Seth Garfield*<br />

Resumo<br />

Com o advento da II Guerra Mundial, a Amazônia é chamada a colaborar com os<br />

Aliados através do que ficou conhecido como a “batalha da borracha”. Milhares de<br />

homens do Nordeste e de outras partes do país são convocados a participar do<br />

esforço de guerra como “soldados da borracha”. Este artigo procura analisar a<br />

participação desses seringueiros durante esse período e o papel das instituições<br />

governamentais e das agências de fomento dentro dos acordos brasileiros-norteamericanos<br />

para a produção do látex. Estes homens, após o fim do conflito, foram<br />

abandonados à própria sorte, até que Chico Mendes, nos anos 80, os resgata em sua<br />

luta pelos povos da floresta.<br />

Palavras-chave: Amazônia; soldados da borracha; lutas rurais.<br />

Abstract<br />

With the advent of World War II, the Amazon region is called upon to collaborate<br />

with the Allies in what came to be known as the “latex battle”. Thousands of<br />

Northeastners and other men coming from different corners in Brazil are drafted to<br />

participate in the war effort as “rubber soldiers”. This article reviews the role played<br />

by such rubber tappers during the wartime as well as the role played both by<br />

government institutions and the financial agencies in the Brazilian-North-American<br />

agreement for the production of latex. With the end of the conflict, these men were<br />

left to fend for themselves until the 80’s when Chico Mendes came to their rescue<br />

launching his struggle on behalf of the rainforest people.<br />

Keywords: Amazon; “rubber soldiers”; rural struggles.<br />

*Professor-doutor do Departamento de História. University of Texas at Austin. E-mail: sgarfield@mail.utexas.edu<br />

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“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

On 18 June, 1944, a crowd of politicians, businessmen, military and church<br />

officials and foreign diplomats gathered at the headquarters of the Associação<br />

Comercial do Amazonas – ACA in the capital city of Manaus in a special ceremony<br />

to commemorate the seventy-third anniversary of the trade organization. The<br />

association congregated the small, tightly-knit business leadership of Manaus involved<br />

in the marketing of forest products, the forwarding of credit and merchandise to<br />

producers, and the import-export trade. Since its inception, ACA was an elite male<br />

realm where political deals were conducted, financial transactions sealed, and social<br />

relations cultivated. After exchanging pleasantries and handshakes, the invitees listened<br />

to the inspirational words of Álvaro Maia, the federally appointed governor in the<br />

state of Amazonas, and ACA President Waldemar Pinheiro, who praised the free<br />

market (ACA, 1945, p. 47).<br />

With the advent of World War II, the headquarters of ACA buzzed with<br />

anticipation as the newfound demand for Amazonian rubber by the Allies portended<br />

better times. The region’s economy had contracted sharply after 1913, when Asian<br />

plantation latex undercut the monopoly held for decades by wild Amazonian rubber.<br />

Depleted export tax revenues – a primary source of local state income under the<br />

decentralized political system of the Republic (1889-1930) – had left public servants<br />

and militias without pay, public services in shambles, and foreign creditors hollering.<br />

Many of the commercial forwarding firms (aviadores), unable to recover debt from<br />

the insolvent operators (seringalistas) of the rubber estates had gone bankrupt or<br />

taken possession of the relatively valueless land as collateral for unpaid loans. The<br />

federal government proved unwilling to bail out a region whose influence in national<br />

politics had always been marginal, and valorization plans to artificially increase the<br />

price of rubber failed. 1<br />

Manaus, capital of the state of Amazonas and the Brazilian Amazon’s second<br />

largest city, contained a population of 100,000 in 1940. The city’s mercantile elite and<br />

small middle class, suffering decades of economic downswing that followed the<br />

bust, sought to salve their wounded self-esteem in the familiar comfort of religious<br />

fervor, conservative mores, and traditional gender roles: even in the sweltering heat,<br />

gentlemen would never dare dispense with jacket and tie and long pants in public;<br />

“decent” women always wore long skirts and never pants – lest they face ridicule as<br />

a “mulher-macho”. (PERES, 1984, p. 21, 40-43). Still, the modern architecture of<br />

the Association’s newly constructed four-storied building emanated an air of self-<br />

36 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

confidence and progress that strived symbolically to uplift the city’s somber Belle<br />

Époque mansions and simpler abodes.<br />

Following the Rio Conference of American Foreign Ministers of January<br />

1942, Brazil had severed ties with Germany and Italy. In March 1942, a delegation<br />

of Brazilian officials led by Finance Minister Artur de Souza Costa signed<br />

various agreements with U.S. officials, two for the mobilization of Brazil’s<br />

strategic raw materials, with the aid of a $100 million line of credit from the<br />

Export-Import Bank, and the establishment of a $5 million fund by the U.S.<br />

government’s Rubber Reserve Company (later Rubber Development<br />

Corporation) for the intensification of rubber production in the Amazon and<br />

elsewhere. (HUMPHREYS, 1982, p. 59-64).<br />

The war soon arrived with a vengeance in the south Atlantic. Over the<br />

course of 1942, a number of Brazilian merchant marine ships were sunk by German<br />

submarines as Hitler launched a major offensive on Brazil. After violent anti-Axis<br />

demonstrations took place across Brazil, Vargas declared from the presidential balcony<br />

on August 18 that Axis ships in Brazilian ports would be confiscated and assets<br />

seized. Four days later his cabinet unanimously approved a declaration of war against<br />

Germany and Italy. Brazil was the first Latin American country to do so.<br />

(HUMPHREYS, 1982, p. 67).<br />

Indeed the war, whose devastation would irrevocably alter the lives of millions<br />

of peoples in Eurasia and North America, had disrupted the business of politics<br />

and the politics of business in the Amazon in more ways than one. For on that June<br />

day there were four distinguished guests in attendance at ACA headquarters who<br />

had never before graced the halls of the trade association – nor would they ever<br />

again. Their names were Francisco Nascimento, Manuel Guedes, Joaquim Lavor,<br />

and João Alves da Silva, and they usually spent their time tapping rubber in the<br />

inhospitable jungle thousands of miles upstream the Amazon river, in the municipalities<br />

of São Paulo de Olivença, Manacapuru, Tefé and Manicoré, respectively. These<br />

tappers had come to receive a monetary prize as winners of a yearlong contest<br />

sponsored by the ACA to award the top producing rubber tappers from each of<br />

the state of Amazonas’s twenty-eight municipalities. Amazonian influentials praised<br />

the patriotic heroes whose production of a strategic wartime material fortified Brazil<br />

and the Allies in their fight against the Axis (ACA, 1944a, p. 20). A gold medal<br />

designed by the Manaus-based jewelry store of São Paulo & Martinho for the top-<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

37


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

producing tapper was engraved with the image of “the oozing rubber tree whose<br />

precious latex will help to redeem humanity”(ACA, 1943, p. 12).<br />

ACA first announced the rubber tapping contest in June 1943. In one of<br />

the many mobilizational campaigns undertaken on the homefront by President<br />

Getúlio Vargas, June had been designated “National Rubber Month” – at the<br />

urging of United States officials who were eager to boost raw latex production<br />

and the collection of scrap rubber for the war effort. From thousands of bulletins<br />

distributed by ACA to the mayors of the state’s far-flung municipalities came<br />

the announcement of the yearlong rubber contest with the appeal: “Attention,<br />

seringueiros (rubber tappers) of Amazonas: only your work, seringueiro, undertaken<br />

with good will, energy, and decisiveness can ensure rubber for our army and<br />

armies of the other nations that are fighting against Germany and Italy” (ACA,<br />

1944a, p. 91).<br />

These wartime tappers formed part of a broad Brazilian-American<br />

campaign – underwritten by the U.S. government – to supply rubber for the<br />

Allies through the mobilization of local tappers and the mass migration of<br />

Brazilians from the northeastern region (nordestinos) to the labor-scarce Amazonian<br />

rainforest. In a patriotic flourish, the Vargas regime deemed the “tappers soldiers”<br />

(soldados da borracha) engaged in the “battle for rubber.” With financing from the<br />

U.S. Rubber Development Corporation – RDC, the Brazilian government<br />

organized the Serviço Especial de Mobilização dos Trabalhadores para a Amazônia<br />

– SEMTA, which under the terms of an agreement of December 22, 1942,<br />

pledged to transport 50,000 laborers from northeastern Brazil to the Amazon<br />

by the end of May 1943. 2 In a subsequent agreement the RDC agreed to finance<br />

the operations of the Superintendência do Vale Amazônico – SAVA, responsible<br />

for receiving and caring for workers upon their arrival in the Amazon as well as<br />

transporting them to recruitment camps in the rainforest. An extensive public<br />

health program was also undertaken in the Amazon, funded by the Office of<br />

the Coordinator of Inter-American Affairs, to tend to the health of the tappers.<br />

Through its relevant agencies, the Brazilian government assumed full<br />

responsibility for the social welfare and health of the tappers, although the<br />

Rubber Development Corporation was entitled to coordinate and monitor these<br />

efforts. Brazilian and U.S. wartime print media, radio, and film trumpeted state<br />

efforts to uplift the Amazon and its population.<br />

38 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

The Historiography of the Batalha da Borracha<br />

While the episode is all but ignored in the larger historiography of World<br />

War II, historians of Brazil have roundly condemned the state-sponsored wartime<br />

migration as the epitome of Vargas’s machiavellianism. With Vargas’s post-war fall<br />

from power, sensationalist reports claimed that tens of thousands of hapless<br />

northeastern migrants had been lured to the Amazon with promises of state assistance<br />

and social mobility, only to fall prey to ruthless exploitation and to die of epidemic<br />

disease. 3 The accusations culminated in a special Brazilian parliamentary inquest in<br />

1946 into the wartime rubber program and the plight of the migrants and tappers.<br />

More nuanced historical studies have generally corroborated this view, arguing<br />

that state intervention during wartime buttressed the political power of the rubber<br />

bosses, whose fortunes had steadily dwindled since the earlier rubber boom, and<br />

undermined tapper autonomy. 4 Warren Dean, for example, concluded that the<br />

infusion of government funds into the Amazon during the Battle for Rubber only<br />

served to shore up the archaic and reactionary system of credit and distribution,<br />

while claiming the lives of between 17,000 and 20,000 tappers (DEAN, 1987, p.104-<br />

107). Still other scholars have argued that government efforts to mediate labor relations<br />

in the Amazon were doomed by the durability of patron-client relations and the<br />

traditionalism (read ignorance) of the tappers which precluded them from replacing<br />

“a flesh and blood patron with an impersonal government agency.” 5<br />

Perhaps the most searing critique is offered by Alcir Lenharo, whose<br />

scholarship, heavily influenced by Foucault, lambasted the Vargas regime for subsidizing<br />

labor recruitment for the rubber bosses (seringalistas), controlling rural workers, drafting<br />

unenforcable work contracts, and abandoning the migrants in the jungle (LENHARO,<br />

1985, p. 88-104). Indeed, Lenharo’s unmasking of statist paternalism has been<br />

replicated in a recent revisionist study of wartime São Paulo which had cast all of the<br />

regime’s mobilization campaigns and economic interventions (including the battle<br />

for rubber) as a grand exercise in social control (CYTRYNOWICZ, 2000).<br />

Critics of the battle for rubber are correct in asserting that the wartime rubber<br />

campaign helped to reinvigorate the usurious operators of the seringais, although this<br />

is not altogether unsurprising given the critical importance of Amazonian rubber for<br />

the Allied powers. Nor did the Vargas regime succeed in eliminating price gouging<br />

or exploitation or malaria or other ills that long plagued the Amazon. The number<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

39


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

of tappers who died of malaria, snakebite, or malnutrition was undoubtedly higher<br />

than that of Brazilian troops who died in combat in Italy – the latter numbered at<br />

454 (of a total force of more than 20,000) – although there is no official record or<br />

consensus on the casualties in the rainforest and estimates vary widely. The existence<br />

of cases of debt slavery in the Amazon today is a shocking reminder of the ongoing<br />

failures of the Brazilian government and the international human rights movement<br />

to eradicate this problem.<br />

Nevertheless, these standard interpretations of the battle for rubber tend to<br />

conflate the agenda of federal officials and seringalistas, to confuse government intent<br />

with consequence, to dismiss the wartime patriotism that gripped the Amazon and<br />

other regions of Brazil, and to overlook the varied wartime experiences of the<br />

tappers. Moreover harping on the “traditionalism” of peasants and extractivists<br />

assumes the incapacity of the rural poor to embrace nationalist discourse and political<br />

change. In short, wartime tappers are seen as incapable of seeing the forest for the<br />

trees. That the tappers’ fledgling efforts to enlist state support were unsuccessful in<br />

the short run should not detract from their historical significance. In a revisionist<br />

vein, this paper looks at the wartime battle for rubber as a historic moment of state<br />

intervention (by both Brazilian and American officials) in rural labor relations in the<br />

Amazon, and the efforts of the Brazilian government to confer political prestige and<br />

social rights of citizenship to the nation’s most marginal populations. These tentative<br />

efforts, which until today remain incomplete, are nonetheless noteworthy for<br />

understanding the history of state formation, political subjectivities, and the struggle<br />

for the rights of citizenship in the Amazon.<br />

Condemnation of the battle for rubber reflects the general indictment of<br />

Vargas’s policies towards the rural workforce that blankets Brazilian labor<br />

historiography (skewed by an overwhelming urban focus). Although rural workers<br />

were entitled to minimum wage, paid annual vacations, and notice prior to dismissal<br />

under the 1943 labor laws, scholars have pointed to their non-enforcement as evidence<br />

of Vargas’s reluctance to confront the rural oligarchy whose export crops provided<br />

the vital foreign exchange for import substitution industrialization (STOLCKE, 1988,<br />

p. 108). The so-called “oligarchic pact” kept wages and political mobilization low in<br />

the countryside, allowing large landowners to maintain relatively backward agricultural<br />

techniques, small per hectare returns from the land, and declining yields, without<br />

sacrificing their own living standards (BARRACLOUGH, 1973, p. 105-6). 6 Still others<br />

40 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

have noted the practical and political irrelevance of a class-based organization and<br />

identity for many smallholders and rural workers whose social relations and status<br />

derived from the mutual (and unequal) exchanges of goods and services with large<br />

landowners rather than strict wage- or institutional-based arrangements (See<br />

MARTINS, 2002). All of the above qualifications certainly apply to rubber tappers,<br />

whose traditional dependency on their bosses was only further compounded by<br />

their extreme isolation. Wartime tappers in the Amazon faced insalubrious and<br />

exploitive conditions; basic rights and guarantees promised by government agencies<br />

were not fulfilled due to state incapacity or neglect. Yet there may be more here to<br />

the tappers’ story in the context of wartime populism.<br />

While acknowledging the regime’s shortcomings in empowering rural labor,<br />

some scholars have begun to credit Vargas’s symbolic rehabilitation of the sertanejo<br />

and the homem do interior and the establishment of a legal and institutional groundwork<br />

that heralded the future political incorporation of the peasantry (WELCH, 1999, p.<br />

88-90). 7 The suspension of electoral procedures under Vargas’s dictatorial Estado<br />

Novo (1937-45), after all, undermined a traditional source of political leverage of<br />

the rural oligarchies (coronéis) in state and national politics. Indeed, urban labor historians<br />

have astutely argued that Vargas’s popularity should not be measured solely by his<br />

spotty record in extending social welfare benefits to the laboring poor, but in his<br />

very recasting of the notion of citizenship which imbued them with dignity and a<br />

sense of collective belonging. 8 Repudiating both the classic liberal notions of citizenship<br />

based on individual civil liberties and electoral participation, and the class conflict<br />

upheld by socialism, Vargas enshrined class conciliation and an ideology of hard<br />

work (trabalhismo) as the foundation of citizenship that entitled its practitioners to<br />

social rights safeguarded by the state.<br />

In official pronouncements, the Vargas regime extended this social contract<br />

to rural workers as well. Building on rural public health campaigns launched under<br />

the Republic, Vargas pledged mediation of labor conflict and social assistance to the<br />

residents of the backlands, whom nationalist rhetoric identified as the true Brazilians<br />

untainted by foreign influence (SKIDMORE, 1974). In this vein, the Estado Novo<br />

celebrated the historic and present-day contributions of rubber tappers to the Brazilian<br />

nation, offering symbolic clout and nationalist cachet to extractivists who had long<br />

been defined publicly by elites, first and foremost, as “customers” of a particular<br />

rubber patrão (boss), and privately, as ignorant, if not worthless, yokels.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

41


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

The social contract implicit in Vargas’s labor legislation and trabalhista discourse<br />

– which pledged vigorous state intervention on behalf of the working class in exchange<br />

for workers’ diligence and compliance – in fact can only be fully comprehended in<br />

the context of Brazil’s participation in World War II. Students (and defenders) of the<br />

military have long highlighted the impact of war and the role of the army in constructing<br />

citizens and nations through mobilization and the dissemination of nationalist ideals;<br />

while for the society as a whole, the collective experience of shared danger and<br />

mobilization can bind isolated individuals or marginal ethnic groups to the nationstate<br />

in the spirit of camaraderie and patriotic duty (CENTENO, 2002, p. 217-218).<br />

As one scholar has noted: “Considered in purely mechanistic terms, the state needed<br />

unobstructed access to the citizen; in turn, to gain his willingness to work and fight<br />

for the state, the individual had to be offered political power, or-if that was impossiblenew<br />

psychological inducements and social opportunities to enable him to reach full<br />

potential.” (PARET, quoted in CENTENO, 2002, p. 243).<br />

As producers of a critical commodity, rubber tappers came to hold an<br />

important role in the wartime economy and national imaginary. The Vargas regime’s<br />

Decree 5225 of February 1, 1942 granted migrant workers in the rubber fields<br />

exemption from the draft while under contract, and required employers to notify<br />

authorities of official termination of contract. In his wartime text, Amazonas governor<br />

Álvaro Maia referred to the tappers with the catchy epithet: “vanguard of the<br />

rearguard.” Indeed, the tappers’ official elevation to combatant status - reflected in<br />

their renaming as “rubber soldiers” and their exemption from military service -<br />

invites comparisons with the experience of army recruits.<br />

Although on the one hand military service may offer the most equal<br />

access for disadvantaged members of society, and mandatory conscription the<br />

ultimate test and pillar of democratic rule, on the other it offers untold danger,<br />

tedium, and privation; social stigma; and non-recognition and non-payment for<br />

veterans(CENTENO, 2002, p. 241-242). To be sure, in Brazil and other parts of<br />

Latin America, military recruitment and conscription was never impartial nor<br />

unambiguous. Historically, army service in Brazil fell upon criminals, marginals,<br />

and other sectors of the unprotected poor; still, some conscripts may have<br />

gained skills, status, and social mobility. 9 In particular, military service in the<br />

Amazon region had been employed as a disciplinary measure to punish the<br />

unprotected poor. The mobilization of drought victims and other indigents<br />

42 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

for wartime service in the seringais bears striking resemblances in its sacrifice<br />

of the nation’s poorest on the altars of nationalism.<br />

However, an examination of wartime documents reveals how state<br />

intervention (through legislation, infrastructure, and propaganda) also tested<br />

longstanding tensions between tappers and bosses over power and status and how<br />

nationalist discourse came to inflect and reconfigure these struggles. Christened by<br />

the Vargas regime as “soldados da borracha,” the rubber tappers had been discursively<br />

transformed from the despised marginal populations of the Amazon and the northeast<br />

to national heroes with specific rights and obligations. Although classic patron-client<br />

bonds would not be ruptured in the seringais, some workers tapped the nationalist<br />

rhetoric that suffused wartime rubber production to burnish their honor, challenge<br />

their bosses, and demand the rights of citizenship. The battle for rubber, therefore,<br />

can be seen as an important milestone of state formation in the Amazon as well as<br />

an historical referent for contemporary grass roots mobilization in the region. The<br />

postwar determination of these tappers to receive historic recognition and<br />

compensation for their labor forms part of the larger struggle for social justice and<br />

democratization of power that marked late twentieth-century Brazil.<br />

* * *<br />

After Pearl Harbor, the Allied forces were cut off from 90% of the available<br />

sources of natural rubber in Southeast Asia. In a March 1942 report to the U.S.<br />

Senate Committee Investigating National Defense Activities, Leon Henderson, of<br />

the War Production Board, stated that the shortage of rubber presented a dire threat<br />

to the 30 million automobiles in the U.S. He estimated that at the current use of<br />

rubber, the United Nations would have had net stocks on only 278,000 tons by the<br />

end of 1942 and a complete exhaustion of stockpiles by the March 1943. 10 To meet<br />

the gap between the 125,000 tons available and the wartime requirements of 1.2<br />

million tons, the U.S. government endorsed various measures: drastic conservation<br />

and maximum utilization of reclaimed rubber; the immediate and concurrent<br />

development of a synthetic rubber industry; the maximum possible development<br />

of wild rubber in Africa and Latin America; and attempts to cultivate rubber-yielding<br />

plants in the United States and Latin America. It was recognized that even if an<br />

adequate supply of synthetic rubber could be created, a substantial quantity of natu-<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

43


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

ral crude rubber would be needed for use with synthetic rubber in those articles<br />

requiring natural rubber, such as truck tires, in which 30% to 65% of natural crude<br />

rubber must be used with synthetic rubber. U.S. officials leaned on Latin American<br />

nations, especially Brazil, to fill this gap. 11<br />

Since Allied officials recognized that the price of rubber traded in an open<br />

market would skyrocket in response to both war and consumer demands,<br />

international arrangements were sought to establish a cooperative system for the<br />

control of rubber consumption and the intensification of rubber production in all<br />

countries in the Western Hemisphere. The State Department, in conjunction with the<br />

U.S. governmental agency Rubber Reserve Company (later Rubber Development<br />

Corporation) negotiated agreements with all rubber producing countries in Latin<br />

America for sale to the United States of their exportable surpluses of crude rubber<br />

and rubber manufactured goods (and the limitation of local consumption) for a<br />

term of years at a fixed price. Between March and October 1942, agreements were<br />

signed with all sixteen producing countries in Latin America. Brazil, the largest rubber<br />

producer, signed the first agreement on March 3, 1942.<br />

The agreement between the United States and Brazil provided for the sale of<br />

all exportable surplus of crude rubber and rubber manufactured goods until<br />

December 31, 1946. It called for the establishment of an agency of the Brazilian<br />

Government to act as the sole buyer of rubber in Brazil (the Banco de Crédito da<br />

Borracha would serve this role). The initial price was fixed at thirty-nine cents per<br />

pound for the highest grade of rubber (washed and dried hevea brasiliensis), which<br />

would apply to purchases for consumption within Brazil as well as sales to the<br />

United States. The fixed price of rubber also aimed to guarantee tappers and bosses<br />

a significant return to ensure ample wartime production; although U.S. government<br />

officials concluded that tappers could not be paid too high a price for their rubber,<br />

lest they desist from working once they saved up a nest egg (or paid off outstanding<br />

debts). To be sure, American and Brazilian officials wrangled over the official price,<br />

and a combination of steep inflation and distress with low rubber output precipitated<br />

various wartime readjustments. 12<br />

United States and Brazilian officials recognized that a fixed price alone<br />

would not guarantee rubber supply. One of the most serious limitations on<br />

increasing output was the shortage of labor in the Amazon which government<br />

officials believed could only be met by importing workers to the region. In<br />

44 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

1940, the Brazilian Amazon stretched more than 1.5 million square miles –<br />

nearly half the nation – but contained less than two million of the nation’s<br />

population of forty million (GALEY, 1977, p. 13). 13<br />

Between 1920 and 1940, with the stagnation of the rubber economy, the<br />

northern (Amazonian) region of Brazil had a high index of negative migration, with<br />

some 14 percent of its population leaving the area (FAUSTO, 1999, p.234).14 The<br />

population of the state of Pará had declined from 983,507 inhabitants to 944,744; in<br />

Acre, the population dwindled from 92,379 to 79,768 (MARTINELLO, 1988, p.<br />

208). The state of Amazonas registered a growth in population from 363,166 to<br />

438,008, although much of this was concentrated in the city of Manaus. Indeed,<br />

many tappers who left the seringais flocked to Amazonian cities such as Belém,<br />

Manaus, and Rio Branco, swelling the ranks of the poor and the unemployed and<br />

taxing municipal services. Others returned to the northeast to reunite with family<br />

and friends. Under the administration of President Epitácio Pessoa, the federal<br />

government had offered free passage to nordestinos who wished to return home<br />

(MARTINELLO, 1988, p. 57).<br />

By 1940 it was estimated that there were only 34,000 tappers on the<br />

seringais, with an annual production totaling between 16,000 and 18,000 tons<br />

per year (MARTINELLO, 1988, p. 85, 209). Bosses relied on caboclo and Indian<br />

labor, often granting these local tappers greater freedom to plant crops and less<br />

onerous terms of exchange (WOLFF, 1999, p. 180-181). To increase output to<br />

50,000 tons it would be necessary to have 100,000 tappers, assuming that the<br />

average tapper produced 500 kilograms of rubber per year (MARTINELLO,<br />

1988, p. 85, 209). Since the Brazilian government opposed proposals floated by<br />

American influentials to import workers from Jamaica or Puerto Rico, and<br />

transporting labor from outside the hemisphere remained out of the question<br />

due to the war and European prejudices towards the rainforest, Brazilian and<br />

American officials targeted the northeastern region – particularly the state of<br />

Ceará. During the earlier rubber boom, Ceará sent more than 100,000 migrants<br />

to the rubber fields, driven out by the inequitable land distribution, population<br />

growth, and cyclical droughts afflicting the backlands of the northeast.<br />

Coincidentally, Ceará experienced a severe drought in 1941-42. In October 1942,<br />

R.B. Bogardus of the RDC envisioned that more than 100,000 families might<br />

be obtained from Ceará; although he anticipated that many would die from<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

45


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

accidents and disease in the Amazon, notwithstanding efforts to improve<br />

conditions in the region. 15<br />

To promote labor migration to the Amazon, the Brazilian and U.S.<br />

governments endorsed a two-pronged approach: state intervention in the Amazonian<br />

(and northeastern) economy and labor market; and massive propaganda to showcase<br />

the economic potential and strategic importance of rubber tapping, which under<br />

state supervision, would be purged of its notorious abuses. Since the days of the<br />

boom, the rubber tappers’ burden of unpayable debt, conjoined with bosses’ use<br />

of physical violence to punish workers and preclude their escape, had led outsiders<br />

to brand the system as a form of slavery. In exchange for rubber, bosses typically<br />

compensated tappers with goods or credit for goods. However, the exorbitant<br />

mark-up on supplies and food staples levied by bosses often prevented tappers<br />

from balancing their accounts. Bosses also whittled away tappers’ earnings by fixing<br />

the scales used to weigh rubber or by charging tappers a commission on the cash or<br />

goods received (approximately 20% on cash and 10% on goods), especially when<br />

the patrão was a small merchant who did not receive rubber rents (WEINSTEIN,<br />

1983, p. 18). These abuses led critics to denounce the debt-merchandising system in<br />

the Brazilian Amazon as “nothing more than organized robbery on a huge and<br />

particularly cruel scale” that converted the tapper into a slave or debt peon. 16 Charles<br />

Wagley’s postwar ethnographic study identified the so-called “Rules of the Rubber<br />

Fields” as a systematized pact among the seringalistas aimed at blocking unauthorized<br />

trade or damage to trees by tappers; preventing debtor-collectors from escaping<br />

their estates without liquidating accounts or paying fines; and ensuring the return of<br />

fugitive workers through an ironclad surveillance system and the cooperation of the<br />

police (WAGLEY, 1953, p. 94-95). Newspaper accounts in the 1940s continued to<br />

portray rubber tappers as pariahs who remained at the mercy of their bosses (O<br />

Acre, August, 21, 1942). Indeed, ACA denounced the unflattering reports published<br />

by the journalist C. Nori Camelo which described the mistreatment of northeastern<br />

immigrants to the Amazon. 17<br />

To be sure, the rubber tappers’ lot was not easy. Tappers were typically<br />

responsible for two trails (estradas) of rubber trees which connected between 100<br />

and 200 hevea trees and were worked on alternate days. Early in the morning the<br />

seringueiro set out along a trail, slashing each tree and inserting a small metal bowl to<br />

gather the oozing latex. After completing the first round, the tapper returned in the<br />

46 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

afternoon to gather the liquid that had accumulated. To coagulate the latex, he placed<br />

burning palm nuts beneath an inverted cone open at the top, using the smoke that<br />

poured through the opening to harden the latex by rotating it on a wooden paddle.<br />

This produced a péla of fine rubber, if devoid of impurities. Rubber that coagulated<br />

improperly or with visible impurities was classified as semi-fine (entrefina). On Saturday<br />

or Sunday, the tapper would deliver his weekly or monthly output to the main<br />

trading post, or barracão, operated by the boss, who was either the large landholder<br />

(seringalista) who “leased” the trails to the tappers or the local merchant (aviador) who<br />

marketed the tappers’ output and supplied food, tools, and goods. In their day-today<br />

struggle to survive, they faced physical isolation, malnutrition, disease and, for<br />

non-companionate tappers, unbearable solitude (WEINSTEIN, 1983, p. 14, 27).<br />

Yet the question of debt peonage in the Amazon, and in Latin America<br />

in general, has been revisited by scholars over the previous decades, who have<br />

sought to distinguish between the role of debt under different systems of<br />

production and historical moments as a perk or incentive to labor or an instrument<br />

of bondage (KNIGHT, 1988). 18 Challenging depictions of the Brazilian rubber<br />

trade, Barbara Weinstein noted that debt rarely served as a means of enserfment,<br />

since labor was too mobile and too far removed from the trader to effectively be<br />

restrained by debt or to face legal prosecution. The expenses involved in bringing<br />

low-level creditors to market, particularly in region’s remote from the municipal<br />

courthouse, undoubtedly discouraged many others from using legal channels<br />

to pursue debt recovery. 19 The autonomy and dispersal of tappers, on the other<br />

hand, bedeviled collective organization or resistance (WEINSTEIN, 1983, p.14,<br />

27). Thus, while charges of debt peonage may have been true in certain cases<br />

and locations – particularly the more isolated regions of the forest – it did not<br />

account for the complex relationships between tapper and trader during the<br />

height of the boom, not to mention in its aftermath. Debt instead often served<br />

to establish a patron-client bond which bosses could hope to use to prevent<br />

seringueiros from buying goods or selling rubber elsewhere, given that they<br />

typically lacked the ability to compensate them in cash. Seringueiros, on the<br />

other hand, required advances of tools and food to survive in the jungle and<br />

could use their indebtedness to leverage additional assistance from their bosses.<br />

Indeed, Weinstein suggests tappers might have their own understanding of<br />

debt, viewing credit as an advance or even a bonus, turning what observers saw<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

47


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

as coercive to their advantage. Still, debt was the most common source of conflict<br />

as tappers sought ways to moderate, challenge or avoid its excesses<br />

(WEINSTEIN, 1983, p. 22-25).<br />

Patrões did use violence or the threat of violence to block tappers from<br />

trading with interloping merchants, with the worst type of brutality typically found<br />

in caucho, rather than hevea extraction. Physical punishment was used to discipline<br />

wayward seringueiros, with the most notorious form entailing tying tappers to a tree<br />

trunk and whipping them. Written accounts corroborate such physical abuse, although<br />

it is difficult to ascertain how widespread it was. 20 In a 1943 investigation by a<br />

government official in Acre into conditions at the Seringal João de Iracema in Xapuri,<br />

José Jefferson de Andrade noted that the “Syrian” owner João Esteves constantly<br />

threatened his seringueiros when they failed to “submit to his will (exploitation), even<br />

going so far as to fire five shots from his revolver at one of them, and enjoying<br />

impunity, as well as other forms of aggression.” 21<br />

Seringalista brutality, however, also risked “betrayal” by workers who might<br />

trade with other merchants, destroy trees and property, revolt, or flee, thereby forcing<br />

the owner to invest in placing new workers. 22 During the battle for rubber, bosses<br />

repeatedly complained of deadbeat tappers or would-be tappers who fled after<br />

they had received advances. Patrões in the hevea regions thus had economic<br />

motivations for promoting a more durable relationship with tappers and avoiding<br />

unnecessary violence.<br />

The paternalism of the boss was an important factor cementing social relations<br />

in the seringais. Bosses sought to weave paternalistic bonds through godparentage,<br />

the extension of credit (particularly during times of need), and the sponsorship of<br />

religious festivals on holy days (WOLFF, 1999, p. 203). In remote, insalubrious regions,<br />

the benevolence of the boss could literally be a matter of life or death. Thus, Raul<br />

Vilhena authorized his supplier, the large commercial firm J.G. Araújo in Manaus, to<br />

pay for treatment of one of his “customers,” José Bezerra, who had fallen ill and<br />

could not extract balata. Vilhena told the Araújo firm to debit the expenses from his<br />

account, and in fact Bezerra was interned at the Beneficiência hospital in Manaus. 23<br />

As in most clientelist systems, however, there was little institutional or legal<br />

recourse to rein in abuse by the bosses, or for that matter by the tappers. Unscrupulous,<br />

desperate, or insolvent bosses clearly could or did not live up to the paternalist ideal,<br />

particularly if they believed that their “customers” had violated the pact by selling to<br />

48 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

an itinerant trader, tapping negligently, or behaving sullenly. Tappers, too, could resist<br />

the “rules” of the seringal by inserting additives in the rubber during coagulation;<br />

selling their rubber to an itinerant tapper (regatão) to gain a higher price or faster<br />

access to a scarce commodity; damaging trees or buildings; or abandoning tapping<br />

altogether for hunting, fishing, and foraging if they felt they were chronically<br />

shortchanged or hopelessly mired in debt. 24 For the Vargas regime, neither extreme<br />

could be tolerated. The Estado Novo had pledged to bestow the social rights of<br />

citizenship upon all hard-working Brazilians; as an Acre newspaper noted: “Presently<br />

the trabalhista organizations, the governments, the public officials, the laws do not<br />

allow for Brazilians to be exploited in any region of the Nation.”(O Acre, August 21,<br />

1942). Nor could the state tolerate an undisciplined workforce that failed to contribute<br />

to the national good during a moment of crisis. By mediating labor relations on the<br />

seringais, the Vargas regime aimed to smooth over the tensions between bosses and<br />

tappers. By publicizing such transformations through wartime propaganda the state<br />

aimed to refashion the parties into model citizens.<br />

* * *<br />

Historically, many nordestino migrants plunged into debt even before<br />

their arrival in the Amazon through credit advanced by labor contractors. The<br />

Vargas regime sought to eliminate this practice by subsidizing the transport of<br />

the workers and providing for their dependents. According to the wartime<br />

recruitment contract, SEMTA was to provide free transportation for workers to<br />

the Amazon, as well as lodging, medical care, preliminary tapping supplies and<br />

“religious assistance”. While in transit to the Amazon, migrants without<br />

dependents received six cruzeiros per diem in the event of not performing<br />

services and ten cruzeiros for their labor, while workers with dependents would<br />

receive seven cruzeiros and eleven cruzeiros respectively. Recruits could opt to<br />

have SEMTA discount their earning to pay their families for the duration of<br />

the two year contract for work in the seringais, with such assistance terminating<br />

upon revocation of the contract or when the family joined the worker in the<br />

Amazon. 25 The recruitment contact also provided that in case the employment<br />

was “not advisable or possible” upon arrival in the state of Pará, SEMTA would<br />

return him under the same conditions as established for recruitment.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

49


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

Upon arrival in the Amazon the worker would sign a two year contract with<br />

the operator of the seringal. Under the contract, the seringalista agreed to deliver<br />

trails that could be used immediately, to assist the seringueiro to construct a barraca<br />

(shack) and a defumador (smokehouse for curing rubber), and to furnish the tapper in<br />

advance with foodstuffs, clothing, and medicine, up to the amount of 150 cruzeiros<br />

per month, as well as utensils and tools necessary to tap rubber, including a gun and<br />

ammunition for hunting. These supplies were not supposed to constitute commercial<br />

transactions and seringalistas were not to derive a profit. All sales were to be recorded<br />

in the caderneta (account book) of the seringueiro.<br />

The tapper was required to deliver all rubber exclusively to the boss with<br />

the penalty of confiscation and even potential “criminal legal proceedings” for sale<br />

to third parties. Upon sale of the rubber, seringueiros were to be credited by the<br />

seringalista the value corresponding to a minimum of 60 percent of the official<br />

price in effect in Manaus or Belém where it would be sold, excluding any expenses<br />

of freight, insurance, taxes, charges, and commissions, which were always to be<br />

borne by the seringalista.<br />

The seringueiro contracted to work six days a week during the tapping<br />

season and was to receive a minimum wage for all work carried out on behalf of<br />

the seringalista in the off-season. The tappers were also entitled to hunt and skin<br />

animal game and to cultivate up to one hectare of crops. The caderneta would<br />

record all transactions (subject to verification) – both debts relative to the supply of<br />

merchandise and credits for delivery of rubber. The seringueiro was barred from<br />

leaving the estate until all accounts and obligations were settled with the boss, unless<br />

a prospective employer assumed as guarantor the responsibility of his outstanding<br />

debt. The settling of disputes that arose between seringalista and seringueiro regarding<br />

the terms of the contract fell under the jurisdiction of the newly created federal<br />

labor court, the Justiça do Trabalho. 26<br />

The official contract for the seringais – an unprecedented attempt by the<br />

state to mediate labor relations in the countryside – walked the line between the<br />

labor discipline demanded by bosses and pro-business government officials and the<br />

protectionist measures advocated by more liberal members of the Vargas and<br />

Roosevelt administrations. The contract dropped the right to fine workers for<br />

damaging trees, as urged by the seringalistas, or other arbitrary charges levied by the<br />

bosses (particularly in marketing rubber), and aimed to curtail price gouging on<br />

50 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

supplies – the ultimate source of the bosses’ power. And however unrealistic in the<br />

cash-poor Amazonian countryside, the contract also instituted an official minimum<br />

wage for workers during the non-harvest season (six months of the year). Yet the<br />

contract did uphold many of the basic demands of the bosses. Most notably, the<br />

contract blocked the worker from leaving the estate without liquidating his debt or<br />

providing for its assumption by another patrão. It instituted a six-day work week<br />

and subjected tappers selling rubber to third parties to criminal legal proceedings.<br />

Although wartime agreements had raised the official price for rubber, the contracts<br />

stipulated that tappers were to earn only a minimum of 60% of profits which was<br />

lower than some of the standing agreements between tappers and bosses prior to<br />

the war. The contracts, thus, represented a compromise between the demands of<br />

bosses and tappers, although heavily favoring the former.<br />

But it was not only by changing the terms of rubber tapping that government<br />

officials hoped to promote migration; it was by changing its meaning as well. To<br />

promote rubber tapping, government officials and bosses during the war sought to<br />

cast a progressive and patriotic light on a livelihood marked by privation, disease,<br />

solitude, violence, and debt. To the standard renditions of the self-made man on a<br />

boundless frontier were added patriotic tributes and nationalist accolades.<br />

Images of boundless opportunity and masculine bravado had long been<br />

used to lure workers to the seringais. In his “Poema da Seringueira,” published in<br />

1927, Pereira da Silva, a nordestino who migrated to the Amazon in 1911, hailed the<br />

rubber tree as a “charitable endowed mother” who offered her “full breasts” to the<br />

“drought refugees/ the desperados.” The intrepid seringueiro, with “a bush knife, a<br />

rifle, and a small axe/ with muscles of steel and strong chest/ with a fast eye”<br />

emerged from the twisted paths in the jungle with “a pail full of milk [latex]... of<br />

gold/ dreaming of a fortune” and his triumphant return to the northeast (PEREIRA<br />

Da SILVA, 1998, p. 185-86). In the manly domain of the jungle, worker and boss<br />

stood as equals in their fearlessness and common possession of firearms.<br />

Bosses touted the economic bonanza that allowed laborers and<br />

seringueiros to become landowners and merchants. In the Amazon and the<br />

northeast, stories of migrants such as Antonio Rosas Sobrinho and his ilk<br />

circulated. In 1914, at age thirteen, Sobrinho had migrated to Acre from the<br />

northeast and found work as a caixeiro on a seringal, entrusted with the rather<br />

unglamorous task of loading and unloading the pack animals after they transited<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

51


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

through the varadouro. After much sweat and toil, he was promoted to manager<br />

of a seringal. Now, thirty years after his arrival in the Amazon, he owned four<br />

seringais – two of which, Bom Destino and Nova Empresa, were among the<br />

most important in the region – with a workforce of 500 and an output of 360<br />

tons of rubber per year (O Acre, August 1, 1943). Indeed, tales of such “selfmade<br />

men” who returned to the northeast, sent back remittances, or called their<br />

families to join them surely fired the hopes and ambitions of many would-be<br />

migrants and offset the Cassandras who warned of the perils of tapping.<br />

In a wartime context, however, government officials and elites added new<br />

laurels to rubber tapping, celebrating the seringueiros’ historic role in expanding<br />

Brazilian territorial boundaries and their current defense of national borders.<br />

Downplaying traditional laments of the inefficiency of wild tapping (in comparison<br />

to Asian plantations), Cosme Ferreira Filho affirmed that the rubber tappers’ mobility<br />

allowed for “the real, effective, material possession of immense regions that would<br />

have remained or will remain in the most absolute state of abandonment and virginity”.<br />

(ACA, July 1940b, p. 8). The newspaper O Acre praised the northeasterners who had<br />

come during the first rubber boom: “colonizers of their own nation and driven to<br />

the Amazon by drought, the Cearenses wrote with their blood the most glorious<br />

and heroic pages of our history” (O Acre, January 24, 1943). Indeed rubber tappers<br />

continued to be the vigilant frontiersmen on the borders of Bolivia, Colombia,<br />

Peru, and Venezuela, “the sentinel of our rights”. Brazilian concern about the<br />

indefensibility of their borders in the Amazon could be allayed by the presence of<br />

2,000 seringueiros in the federal territory of Guaporé who, in case of conflict with<br />

Bolivia, were excellent marksmen (ACA, July 1940b, p. 8).<br />

In the context of World War II, rubber tapping had become a bulwark<br />

against totalitarianism. In a brochure designed by SEMTA for prospective migrants,<br />

entitled “Rumo à Amazônia: Terra da Fartura” (“Bound for the Amazon: The Land<br />

of Plenty”) – featuring a merry peasant, hat raised in excitement, traveling from the<br />

parched northeast to the lush Amazon region – the Vargas regime declared Brazil’s<br />

responsibility to provide rubber to the war effort on behalf of world freedom.<br />

This entailed a collective sacrifice, but for the nordestino it entailed “the obligation to<br />

fight peacefully in the rearguard, in his own nation, in the blessed lands of the Amazon,<br />

extracting rubber – an indispensable product for victory, like bullets and rifles”. In<br />

exempting the “soldados da borracha” from the draft, government propaganda<br />

52 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

repeatedly equated their effort with those in the armed forces. Propaganda also<br />

touted the role of government agencies in recruiting, assisting, and equipping rubber<br />

tappers, and spelled out their entitlements under the official contract. 27 Newspaper<br />

propaganda cheered the thousands of nordestinos working feverishly in the rubber<br />

estates, “these anonymous heroes confronting all types of danger in the ferocious<br />

jungle...the soldiers of liberty like your brothers who fight in the trenches, upon<br />

whom collective hope rests,” fighting for the “liberation of enslaved peoples.” 28<br />

In radio addresses, newspaper articles, and political speeches rubber tappers<br />

were lionized for their wartime effort, which rivaled that of Brazilian soldiers and<br />

aviators. Brazilian and American authorities brimmed with respect to tappers working<br />

for the “victory of Brazil in war and the future of Brazil in peace” (O Acre, October<br />

17, 1943). And perhaps none was more eloquent than M.L. Fernan<strong>dez</strong>, an American<br />

official of the RDC, who remarked: “When the history of this grand struggle that<br />

has engulfed all of the free peoples is written, it is necessary to save a special chapter<br />

for the anonymous contribution of these admirable workers who give their all and<br />

who venture into the forest with an extraordinary courage and whose unstinting<br />

labor is assuring the Allies the supply of rubber for our needs” (O Acre, November<br />

28, 1943). Aside from harping on the vehicular needs of the military-industrial complex<br />

that most seringueiros would never ride in, government appeals to rubber tappers<br />

focused on avenging the wrongs committed by the Nazis. The innocent Brazilian<br />

civilians – men, women, and children – whose ships had been torpedoed by German<br />

submarines clamored for justice from the darkest depths of the sea.<br />

Bosses could also welcome and promote wartime propaganda that<br />

emphasized the importance of Amazonian rubber and placed their backwater region<br />

in the national and international spotlight. Yet they sought to buttress their authority<br />

by redefining traditional patron-client relations in the context of wartime mobilization<br />

and populist politics. In 1940, ACA, at the suggestion of Alfredo de Lima de Castro,<br />

ex-mayor of Manaus, endorsed the construction of a “monument to the seringueiro”,<br />

to honor the “obscure hero who expanded Brazilian borders and tamed our forests<br />

. . . a humble pioneer of Amazonian civilization” (ACA, January 1940a, p. 5). Lima<br />

had requested funds from ACA, the Rotary Club, and the state interventor to pay<br />

homage to this finest example of “Brazilianness” responsible for the incorporation<br />

of Amazônia into the political and economic patrimony of Brazil”(ACA, 1940c,<br />

p.157. The Commercial Association of Tarauacá in Acre exhorted the tappers to<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

53


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

follow in the footsteps of the legendary Plácido de Castro, hero of the annexation<br />

of Acre territory from Bolivia in the early 1900s: “It is with the knife, cutting our<br />

rubber trees to extract the sap, precious producer of rubber, that you will form the<br />

battalion of victory” (ACA, 1942, p. 8). José Nunes de Lima, former president of<br />

the ACA, exhorted his colleagues to assist the rubber tapper, “this laborer in our<br />

Amazonian jungle” (ACA, 1942, p. 5).<br />

Rebutting accusations of debt slavery, bosses pointed to seringueiros such as<br />

José de Melo who had earned a balance of 50 contos after four years, at the Colocação<br />

Bom Futuro on Seringal Baixa Verde, and had been duly paid by the seringalista<br />

Antonio Morais (O Acre, August 21, 1942). Of course, those tappers who failed to<br />

prosper were victims of their own sloth and dissolution: “given their personal<br />

independence and primitive right to property, the tapper could increase his pride<br />

and capacity for credit which, unfortunately, they abused many times with great<br />

harm to themselves” (ACA, 1947, p. 17).<br />

Finally, in a series of articles published in 1943, the newspaper O Acre went<br />

further by celebrating the heroic efforts of the seringalistas – now referred to as “the<br />

commanders of the battle for rubber in the jungle”. Featured in the reports was<br />

Antonio Morais, president of the Cooperativa dos Seringalistas Acreanos, who had<br />

started out as a mere tenant on the seringal when he arrived in Acre in 1908 and now<br />

the owner of the largest rubber-producing regions in Acre. He proclaimed “Rubber<br />

for Brazil and for Liberty” as the motto of seringalistas and seringueiros and set a<br />

goal of 50-60 tons of rubber for the year. Likewise, Honório Alves das Neves,<br />

owner of Seringal Itu boasted of his war contribution of 70 tons of rubber from<br />

his estate (O Acre, July 18 and 25, 1943).<br />

By flashing their nationalist credentials, bosses aimed to restrict<br />

government incursion into their traditional domain, reasserting their dominion<br />

over tappers and highlighting the opportunities for social mobility. In this sense,<br />

ACA’s rubber producing contest, with its emphasis on individual initiative and<br />

its promotion of a speed-up, represented a reaffirmation of the bosses’ power<br />

and an alternative to the state-mandated contractual system of tapping and<br />

commercial exchange. Indeed, others promply sought to match ACA’s offer.<br />

The Associação Comercial in the Amazonian state of Pará promised prizes not<br />

only for its state’s top producers, but prizes to the top three seringueiros from<br />

throughout the Amazon, including an all-expense paid trip to Rio de Janeiro. 29<br />

54 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

Individual seringalistas offered their own tantalizing incentives: Isaac Sabbá,<br />

who managed the Empresa Jaci-Paraná in the state of Mato Grosso, offered<br />

prizes of Cr$ 3,000 to each of his two top rubber producers; Waldemar de<br />

Carvalho of Seringal Bom Futuro in Humaitá offered an additional one cruzeiro<br />

per kilo to his tappers. 30<br />

* * *<br />

Although Vargas had consistently noted that the laws of the Estado<br />

Novo were designed to promote harmony between workers and bosses and to<br />

forge a unified national community, the realities in the Amazon (and most of<br />

Brazil) were far more contradictory. 31 If bosses welcomed state subsidization<br />

of labor, they squirmed at official efforts to remake labor and commercial<br />

arrangements on their estates; if workers appreciated the free ticket to the Amazon<br />

and whatever social welfare assistance they might be lucky enough to secure,<br />

they challenged exploitation by bosses and restrictions embedded in the statemandated<br />

contracts.<br />

For a number of reasons, state efforts to reshape and regiment labor relations<br />

on the seringais were largely inconsequential during the war. To begin with, only<br />

approximately 30,000 migrants came to the region, far short of the stated goal of<br />

50,000 workers. And notwithstanding the infusion of copious capital into the Amazon<br />

region, rubber production did not yield a commensurate increase. Wartime inflation,<br />

conjoined with traditional price gouging by bosses, vitiated higher rubber prices and<br />

discouraged tappers from extracting latex. Disease and malnutrition were ever-present<br />

specters as the public health campaign proved inadequate in combating malaria and<br />

was restricted primarily to Amazonian towns. Ideological battles within and between<br />

officials in the U.S. and Brazil governments led to a strict “division of labor” in<br />

which the Americans funded the rubber program but ultimately foreswore<br />

responsibility for the social welfare of the workforce. The RDC’s insistence on<br />

collaborating with business interests in the Amazon diminished whatever official<br />

commitment to the tappers that liberal New Dealers had voiced. In general, American<br />

interest in the rubber program, initially endorsed during a moment of heightened<br />

insecurity, cooled by 1944 as the Nazi threat diminished somewhat and as complaints<br />

about the cost of the Amazonian “boondoggle” increased.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

The Brazilian state – which had welcomed American intervention in the<br />

Amazonian economy but drew the line for foreign meddling in the enforcement of<br />

labor legislation – failed to honor the clauses of the official work contracts and<br />

social welfare guarantees. The Justiça do Trabalho, formed in May 1939, lacked the<br />

institutional presence in the rainforest (and in the Brazilian countryside in general) to<br />

effectively enforce the contract. In fact, the less populated regions of the Amazon<br />

often lacked any judge whatsoever: Captain Oscar Passos, the governor of Acre,<br />

informed Vargas in 1942 that because the region of Brasília lacked a judge, thousands<br />

of residents were unable to register a marriage or the birth of a child. Their only<br />

recourse was to embark upon a 4 to 5 days trip to Xapuri, the seat of another<br />

county, or to migrate to Bolivia – as approximately 5,000 residents had done –<br />

where overall conditions were better. 32 The inability of the Brazilian government to<br />

protect the tappers from exploitation and disease reflects its failure to deliver the<br />

social rights of citizenship to the rural poor; although given the logistic, epidemiological<br />

and financial challenges posed by the immense Amazonian region, such shortcomings<br />

should not be attributed solely to bad faith.<br />

In the absence of institutional channels to regiment bosses and tappers, both<br />

parties retained time-tested strategies. Most bosses took advantage of a wartime<br />

boom of unknown duration, violating price controls by charging tappers exorbitant<br />

prices for supplies. In March 1943, João Alberto, the director of the wartime economic<br />

planning commision Coordenação de Mobilização Econômica, stated that it was<br />

practically impossible to verify the prices on merchandise sold to seringueiros; other<br />

estimates suggested that the cost of living for seringueiros increased 42.6% from<br />

March to October 1943 alone (LENHARO, 1985, p. 93-94). 33 Indeed, throughout<br />

Brazil, the trade imbalances and wartime inflation occasioned an astronomical rise in<br />

the cost of living which was duly exploited by profiteering merchants. In 1944,<br />

Colonel Luís Silvestre Gomes Coelho, governor of Acre, noted that he had received<br />

numerous complaints from seringueiros that bosses were gouging the price of<br />

merchandise and cheating on the weights, eliminating the “gains that they could earn<br />

with their labor”. In response to charges that in the more remote seringais, operators<br />

and managers were still practicing “the barbaric regime of the past when the tapper<br />

was an eternal slave to their whims and ambitions”, the Acre governor ordered local<br />

authorities to protect the rights and guarantees of workers, whose cooperation was<br />

needed in “the present war effort.” 34<br />

56 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

With scant government assistance, workers were forced to rely on the<br />

patronage of their bosses, tempered only by the tappers’ initiatives. To avoid<br />

insurmountable debt, they exercised thrift in purchasing goods at the barracão.<br />

Although the tappers have been portrayed rather one-dimensionally as helpless<br />

victims stranded on the estates, wartime reports repeatedly mention their<br />

abandonment of the seringais (as well as threats of violence and strikes); their<br />

employment in urban areas; and complaints to state officials. Immigrants from<br />

the Northeast to the Amazon – even many drought “refugees” – undertook the<br />

journey as a calculated decision in pursuit of social mobility, as well as to gain<br />

exemption from military service. Their primary goal was to earn enough to<br />

return to the northeast to buy a farm or to settle more comfortably in the city;<br />

some did succeed in making a wartime profit (WOLFF, 1999, p. 21).<br />

Although most tappers merely struggled to eke out a living during the<br />

war, nationalist propaganda undoubetdly held meaning for some who came to<br />

define their identities as inextricably linked to the nation and the war effort.<br />

Indeed, the climate of wartime patriotism and populist mobilization that cloaked<br />

relations of power also could serve to challenge them. Some tappers fashioned<br />

patriotic discourse into a weapon of social entitlement during and after the war.<br />

In revisiting the tappers’ response to ACA’s contest and appeals to Vargas officials<br />

in the general context of wartime Amazonia we can gain a different view of<br />

nation-building and the struggle for citizenship from below.<br />

* * *<br />

Amazonians experienced the passions, fears, and privations of World<br />

War II. Jefferson Peres, an amazonense politician who grew up during the war in<br />

Manaus, recalls how his father remained abreast of worldwide events through<br />

magazines, newspapers, and the BBC. His family also received the magazine Em<br />

Guarda, published by the Office of the Coordinator of Inter-American Affairs<br />

and distributed by the American consulate, with illustrations and news about<br />

the war. Residents of Manaus also learned about the war when the siren of the<br />

local periodical O Jornal sounded to announce the arrival of the latest news; a<br />

small group would congregate to read the news written on a blackboard near the<br />

editorial office. Local newspapers regularly covered the war, with headlines such<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

as “Radio Moscow Announces that Germany will be Destroyed Unless the<br />

German People Remove Hitler from Power” (O Acre, October 3, 1943).<br />

When the Germans sunk the Baependi, a merchant marine ship carrying hundreds<br />

of Brazilian soldiers, off the coast of Pernambuco in August 1942, a number of<br />

well-known amazonenses perished. A rally in Manaus denouncing the Axis powers<br />

soon turned violent. Over the course of several hours, the rioters ransacked the<br />

homes of Germans, Italians, and their sympathizers; German import-export firms,<br />

such as the Bhering Export House, were thoroughly destroyed (PERES, 1984, p. 45-<br />

51). At a massive rally in Rio Branco, Acre, to mourn the Nazi sinking of the Baependi,<br />

students, workers, elite women, and government officials waved Brazilian and<br />

American flags and held up placards proclaiming: “Brazil will know how to avenge<br />

the murder of its sons and daughters” and “Acre Stands United with the Government<br />

to Avenge the Murder of its Brazilian Brethren” (O Acre, August 21, 1942).<br />

As they became more commonplace, the torpedoing of Brazilian ships<br />

evoked less intense responses. Nevertheless, the sinking of cargo shops and<br />

overall disruption of trade brought about an end to the (relatively) steadier<br />

supply of basic staples and industrial goods to the import-dependent Amazon<br />

region. A rationing system spelled chronic shortages, endless lines, and a thriving<br />

black market with exorbitant prices. Smokers hankered listlessly for cigarettes,<br />

while sweet-tooths had to look elsewhere to indulge their cravings for sugar<br />

(PERES, 1984, p. 52). As two memoirists from Amazonas recalled of the wartime<br />

shortage of consumer goods: “milk was water, coffee was dirty garapa, cups were<br />

depósitos de fuligens, all done with utter disregard to us and the health of our<br />

neighbors” (VALE e AZANCOTH, 2001, p. 68).<br />

In addition to the shortages, residents of Manaus fretted over a German<br />

air attack. Although the possibility of such an attack was unfounded given the<br />

limited striking range of German aircraft, Amazonian volunteers formed an<br />

Anti-Aerial Defense League and distributed flyers to instruct the populace what<br />

do in the event of a bombardment. Civic brigades also took to the street in<br />

Manaus as thousands of adults and children mobilized to collect scrap metal<br />

for the war (PERES, 1984, p. 53).<br />

Although such recollections of food shortages and high prices reflect the<br />

viewpoint of the privileged urban populations of the Amazon startled by privations<br />

commonplace to the poor, it would be misleading to assume that the effects of<br />

58 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

wartime mobilization and hope and despair were not felt by humbler folk in the<br />

countryside and in smaller towns. In April 1942, Vargas received a letter from Walter<br />

de Almeida Gondim, a resident of Seabra, Acre, and a “patriotic Brazilian”, who<br />

protested that local authorities had opened an investigation into those responsible<br />

for painting the letter “V” on the houses of German priests and Nazi sympathizers. 35<br />

In Porto Acre, a poor town on the Aquiri River in Acre, local notables gathered<br />

together with “a large number of seringueiros and agriculturists” on Brazilian<br />

Independence Day in 1943 and shouted “Viva Brazil, Vargas, and the Federal Territory<br />

of Acre”(O Acre, September 19, 1943).<br />

In March 1943, the newspaper O Acre reported on a team of health care<br />

workers that had returned from a forty day trip on the Abunã River to tend to<br />

rubber tappers. The account did not glamorize the conditions in the region: in<br />

the town of Vila Plácido de Castro, near the Bolivian border, where medical<br />

assistance heretofore had been non-existent. The newspaper claimed that eighty<br />

percent of the children died before the age of one. The newspaper reported,<br />

however, the tremendous enthusiasm for Vargas among the region’s inhabitants.<br />

One seringueiro displayed a small photo to a member of the medical team,<br />

Doctor Marinho Moute, exclaiming: “I like him very much because he always<br />

tries to protect the poor...can you get me a big picture of the President like the<br />

ones that I have seen there in the city?” Moute claimed to have received many<br />

similar requests from tappers (O Acre, March 21, 1943). Indeed, May Day was<br />

festively celebrated in larger cities in the Amazon, as was Vargas’s birthday. Local<br />

newspaper reprinted articles about labor legislation and the rights of workers,<br />

including rural workers (O Acre, May 2 and May 9, 1943).<br />

While the objectivity of such propagandistic journalism is certainly<br />

dubious and the reception of political discourse notoriously difficult to gauge<br />

in any circumstance, we can point to shifting dynamics that had begun or had<br />

expanded in the Amazon. The presence of the state, albeit spotty and irregular,<br />

offered services to disadvantaged populations, as well as a new language of<br />

collective belonging. In June 1943, high-ranking Brazilian officials such as Valentim<br />

Bouças, Governor of Acre Silvestre Coelho, and RDC labor adviser Georges<br />

Rabinovitch joined a team from the Department of Press and Propaganda on a<br />

visit to Rio Branco, Acre, and the seringal Amapá, the only factory of sheet<br />

rubber in Souh America. Bouças and Coelho even cut a rubber tree – in a sign<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

59


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

of solidarity with the work force and a nice publicity stunt – proclaiming “this<br />

sap that drips from this tree will bring liberty to the world”. The officials visited<br />

the migrant local camps and Bouças presented 500 cruzeiros to a nordestina<br />

who had recently given birth (O Acre, June 6, 1943).<br />

Thus, if the battle for rubber helped to shore up the political and<br />

economic power of the bosses, Vargas also sought to rehabilitate the seringueiro<br />

and his discourse of trabalhismo did manage to resonate in some remote corners<br />

of the Amazon.<br />

60 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

* * *<br />

In this context, the response of the seringueiros to the ACA’s rubber contest<br />

is highly revealing. ACA had announced total prize money of Cr$35,000: the top<br />

rubber producer in each of the state’s 28 municipalities would receive Cr$1,000<br />

each; the top five producers would receive an added bonus of Cr$1,000 each, while<br />

the grand prizewinner would receive an additional Cr$2,000. All 28 seringueiros<br />

would receive free passage to attend the ceremony in Manaus, where they would be<br />

housed at ACA’s expense for fifteen days (ACA, 1944b, p. 91). By March 1944,<br />

rubber bosses were to indicate the top producers to their respective mayors who, in<br />

turn, would forward the name of the local winner to ACA and inform the lucky<br />

tapper of his award (ACA, 1944b, p. 92). If the tapper could not attend, ACA<br />

entrusted these local intermediaries with delivering the prize money.<br />

Although only four of the twenty-eight winners could attend the ceremony<br />

in Manaus, several sent word through intermediaries or direct correspondence to<br />

explain their absence. It is probable that many tappers in the Amazon never even<br />

learned of the contest, given the immensity of the region and difficulties in<br />

communication; nor is it evident that all of the winners were informed sufficiently in<br />

advance to make the long haul to Manaus. Such was apparently the case of prizewinner<br />

José Norberto da Luz in Coari, who still had not been informed of his prize because<br />

the remote location of his colocação on the Urucu River where only two other individuals<br />

ventured: Raimundo Monteiro Jr., his patrão, and one Deolindo Dantas. 36 But from<br />

the correspondence written by, or, more typically, on behalf of the tappers, we<br />

catch a fleeting glimpse of the seringueiros’ concerns. Of course, questions regarding<br />

the authenticity of such testimony, often tainted by the personal or political agenda


Seth Garfield<br />

and cultural bias of more privileged intermediaries, have long concerned historians;<br />

yet common themes in this correspondence, which issued from all corners of the<br />

Amazon, suggest similar concerns and aspirations among a number of seringueiros<br />

engaged in wartime tapping.<br />

Seringueiros at Seringal Ati, noted its owner José de Souza, were competing<br />

aggressively for the prize. Praising the hard work of the “bravos” [newly arrived<br />

tappers from the northeast] as superior to the local tappers, Souza hoped to double<br />

his production from the previous year. He was particularly impressed with the<br />

achievements of Odorico Mendonça, who had produced 600 kilos of rubber by<br />

February 1944. Although about average under normal circumstances (and insufficient<br />

ultimately to guarantee him the prize), such output was remarkable given that<br />

Mendonça, the father of eight young children, had lost two months of the harvest<br />

tending to sick family members. Moreover, he managed to cultivate manioc, sugar<br />

cane, rice, coffee, tobacco and fruit for their subsistence. 37 Likewise, seringalista<br />

Francisco Silveira Martins, “a Brazilian of progressive aspirations” boasted of his<br />

“bunch of seringueiros, who aside from being loyal soldiers in the rubber fields, are<br />

also true agriculturists, sertanejos pé de serra”. 38 These endorsements conflict with the<br />

repeated condemnation by bosses and Rubber Development Corporation officials<br />

of the purported laziness of the nordestinos; they suggest that fair treatment by<br />

bosses (monetary incentives, permission to cultivate subsistence crops) rather than<br />

the purported improbity of the migrants determined worker productivity.<br />

Given the seasonal nature of rubber tapping – which cannot be carried out<br />

during the roughly six months of the rainy season when the floodplains are inundated<br />

– a number of the winners were reluctant to abandon their trails during the dry<br />

season in June. In other words, the ACA’s decision to host the ceremony on the<br />

anniversary of its founding failed to take into account the seasonal demands of<br />

rubber production that shaped the lives and work regimen of the honorees. Thus<br />

Atílio Nery, mayor of Boca do Acre, told ACA that his municipality’s winner, Manoel<br />

Paulo of Seringal Redenção, could not attend because he was busy tapping rubber.<br />

Paulo had produced 28 pelas of rubber totaling a whopping 1848 kilos – more than<br />

triple the average seasonal output of 600 kilos per tapper. But since then, Paulo,<br />

according to Nery, had already produced 600 kilos of rubber in the previous month<br />

alone and “he intends to produce double the amount of rubber from the last harvest”.<br />

But once this rubber season was over, he would be pleased to come to Manaus to<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

61


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

“have a friendly chat with the illustrious members of the Ass. Com. do Amazonas<br />

who instituted this incentive for rubber production”. 39<br />

Similarly, the mayor of Canutama county, Theophilo Narciso de Mesquita,<br />

told ACA to remit the one thousand cruzeiro prize of tapper João Henrique de<br />

Miranda to his boss Jacob da Costa Gadelha, because Miranda did not wish to<br />

interrupt his work during the rubber harvest. Still, delivering the prize money would<br />

generate “enthusiasm and great benefit to the workers in my county”. 40 Likewise,<br />

Antonio Carolino, a tapper from Seringal Manarian on the Juruá River, had produced<br />

a hefty 1,065 kilos of rubber. He, too, regretted his inability to accept the “special<br />

invitation” to Manaus because he was currently “in the midst of producing rubber.<br />

I don’t wish to leave the seringal so as not to lower my production”. 41<br />

The tappers’ ambitious effort to maintain production undoubtedly<br />

reflected their efforts to capitalize on the higher price of rubber, a commodity<br />

witnessing a wartime boom whose future was uncertain and whose past volatility<br />

was quite sobering. Indeed, Francisco Emerico de Aquino Lima, a native amazonense<br />

tapper, had much to show for his Herculean efforts: between an incredible 2,030<br />

kilo yield in the 1943 harvest and most likely a similar bounty in the previous<br />

year, he enjoyed a credit of Cr$14,223 with his boss, A. Vieira Lima – soon to be<br />

augmented by ACA prize money. From the archival documentation, it appears<br />

that Lima sought to cash in while he was ahead. In a letter to his Manaus –<br />

based commercial forwarding firm, J. G. Araújo & Cia., Lima introduced his<br />

“customer” and authorized the payment of Cr$10,000 “to be paid with the<br />

same consideration and promptness as always, that is, on the spot”. 42 Francisco<br />

Lima’s good fiscal and physical health – which owed not only to diligent work,<br />

but probably to favorable conditions on the seringal, modest consumption habits,<br />

and an honorable boss as well – was not shared by most tappers.<br />

Other winners might not have ventured out of the seringal because of<br />

their bosses’ threats or veiled opposition; because they dreaded the arduous trip<br />

to and from Manaus; or because they anticipated another prize the following<br />

year and did not want to lose out. The latter point was noted by Mayor Nelson<br />

Noronha of Benjamin Constant. The local hero, Onésimo Jarama Serra, born in<br />

that municipality and a seringueiro for the last fourteen years, had produced<br />

1,240 kilos of rubber but was disinclined to see his current production lag<br />

because of a trip to Manaus. The Mayor noted that rubber fever gripped the<br />

62 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

region, with the “majority of them [seringueiros] ready to compete for new<br />

prizes that they hope this Associação [ACA] will offer to the champions of<br />

rubber production in this harvest”. 43 Disappointment awaited. The following<br />

year, ACA “resolved to recognize the top fifty rubber bosses in the state, who<br />

were ceremonially bestowed with the plaque Great Producer of Rubber”. 44<br />

Although these testimonies revolve understandably around material<br />

concerns, several seringueiros offered distinctly patriotic reasons to explain their<br />

reluctance to leave the field in June 1944. Thus, in his letter to the president of<br />

ACA, seringueiro Olívio Brito de Sá stated that while he could not “abandon<br />

the task that I am involved in, I hope, with this insignificant part of my individual<br />

effort, to remain part of the patriotic initiative undertaken by the Institution<br />

run by Your Excellency, certain in this way that I fight for the Victory of the<br />

United Nations and for the sacred ideals of our worried [sic] Nation”. 45 Likewise,<br />

Antonio Carolino noted that his work was “more precious than any other, in<br />

collaborating with our efforts for the United Nations to defeat our enemies<br />

who go around barbarously killing innocent women and children”. Carolino<br />

signed his letter, “FOR THE VICTORY OF THE UNITED NATIONS”. 46<br />

In 1947, Arlinda Lopes da Costa, a widow of a soldado da borracha, wrote a<br />

letter to ACA to thank the directorate for the charitable support of her family; her<br />

husband had been interned in the Santa Casa, but succumbed in his long bout with<br />

malaria. Although the letter from the “widow of a rustic seringueiro, one of the<br />

most modest and umble [sic] professions in the struggle to make a living” harps on<br />

traditional images of gender and class dependency, it is stunning in its affirmation of<br />

the historic and patriotic role of the martyred rubber tapper: “a poor soldado da<br />

borracha, who at a time when liberty was uncertain, caught between the bloody swords<br />

of NAZI-FASCISM, fought not in the fields of Italy against the savagery of Hitler,<br />

but yes in the dangerous Amazonian forests exposes to terrible beasts and fearsome<br />

malaria, which caused the death of my husband.” 47<br />

The new-found awareness that some rubber tappers possessed of their<br />

rights and entitlements as Brazilian citizens (rather than as seringalistas’ “customers”)<br />

emerges in their affirmations in government propaganda as well as in the select<br />

correspondence to Vargas. In a letter to Vargas, two “soldados da borracha involved<br />

in the defense of the Country” from the Seringal Paraguassu in Acre, Francisco Praia<br />

and João Valério, complained of the abuses perpetrated by their Portuguese boss.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

63


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

As proof, they enclosed their account books with “accounts of rubber sales and<br />

stubs that prove the commercial situation”, including the illegal sale by the bosses of<br />

the government-distributed anti-malarial pill atebrine. The duo had apparently discussed<br />

their grievances with tappers on other estates, because they enclosed receipts from<br />

the nearby Seringal Guanabara “charging gratifications to the soldados da borracha<br />

that were transported to this border at the expense of the government”. Praia and<br />

Valério complained that when “we demand the rights extended by Your Excellency.,<br />

he [seringalista] affronts us by saying that Your Excellency is in charge at the<br />

[presidential] Catete Palace, and he is in charge in his seringal. Juntou todos os nossos<br />

produtos chamando todos os seringueiros a liquidarem no dia 8 de abril”. They also blamed the<br />

seringalista Alfredo Vieira Lima for adulterating rubber and falsifying accounts, which<br />

Banco de Crédito da Borracha [BCB] officials had unfairly attributed to the tappers.<br />

Affirming their role in “the production of rubber for the defense of the<br />

nation”, the tappers appealed to Vargas after previous requests to local authorities<br />

had gone unanswered and asked the president to execute justice in the name of their<br />

“naked and hungry small children”. 48 After Vargas’s office forwarded the letter to<br />

the BCB for investigation, the bank reported that the government of Acre had<br />

opened up an investigation in response to these and other complaints, and that the<br />

accused seringalista had pledged to come to the bank headquarters in Belém to<br />

defend himself. It is unclear from the archival correspondence whether the investigation<br />

was indeed pursued, although the bank’s caveat noting difficulties of communication<br />

with this region seemed to anticipate defeat. 49<br />

Other telegrams to Vargas arrived from Joaquim Andrade, from the region<br />

of João Pessoa, Amazonas, who in the name of 600 companheiros working to extract<br />

rubber “for victory” called upon the president to curb the high mark-ups still being<br />

charged by merchants. 50 Such correspondence challenges the image of passive tappers<br />

blindly bound by patron-client ties who were unable to envision inclusion in the<br />

nation and to appeal for government assistance in defense of their rights. Moreover,<br />

it dispels the notion of government indifference towards abuse of the tappers.<br />

Given the high illiteracy rate of the tappers and the difficulties of<br />

correspondence in the Amazon, such letters were unusual, although they did<br />

conform to a larger pattern of subaltern rural political engagement during the<br />

Vargas era noted by other scholars. Cliff Welch uncovered hundreds of letters<br />

in the Brazilian national archives written from rural workers and peasants to<br />

64 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

Vargas between 1930 and 1945. Written by the workers themselves or<br />

intermediaries, the letters convey tales of abuse and exploitation as well as a<br />

keen awareness of Estado Novo policy, promises made to rural populations,<br />

and rights and duties of rural workers (WELCH, 1999, p. 64-65. 51<br />

* * *<br />

Following the war and the termination of the intergovernmental accords,<br />

the economic and political importance of Amazonian rubber once again faded.<br />

Indeed, the rise of synthetic rubber crowded out traditional extractivists worldwide<br />

thousands of the wartime migrants to the Amazon returned to the northeast.<br />

According to the records of government agencies that subsidized the return passages,<br />

6,030 migrants left the Amazon between 1945 and 1947. Of the 2,160 migrants<br />

who left the seringais in 1945, the largest contingent (804 persons) suffered from<br />

malaria, while “desajustes econômicos” was listed as the second most common<br />

reason (712 persons) (MARTINELLO, 1988, p. 328-329). It is unclear how many<br />

remained in the seringais or settled in Amazonian cities, although entire neighborhoods<br />

in the Amazonian cities of Manaus (Educandos) and Porto Velho (Arigolândia)<br />

absorbed significant contingents of “soldados da borracha”. While the war may<br />

have offered profits to a select set of tappers, the solitary nature and rudimentary<br />

techniques of tapping were not conducive to more enduring social-professional<br />

networks, vocational training, and institutional backing that army war veterans may<br />

have enjoyed. The wartime patriotic gloss ennobling the tappers quickly faded from<br />

government pronouncements, although it would be resurrected by the tappers<br />

themselves in their future struggles.<br />

It was only decades later under the military government (1964-85), that the<br />

unionization of rural workers and the extension of social welfare benefits would<br />

occur, with the application of relevant legislation and the increased presence of the<br />

state in the countryside. Yet the military government’s aggressive developmental policies<br />

in the rainforest prompted different problems: an increase in social conflicts and<br />

deforestation. As land values soared in response to investment by extra-regional<br />

capital, lured to the Amazon by state-sponsored credit and tax shelters, social relations<br />

in the rainforest were reconfigured. The power of the traditional bosses of the<br />

seringais diminished as industrial-financial capital and state infrastructure expanded<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

65


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

in the Amazon. But the disturbing environmental destruction and violence spawned<br />

by mining, logging, ranching, colonization, and road-building ventures presented a<br />

new threat, an assault on the very livelihood of tappers and other “traditional peoples”.<br />

The tappers became politically mobilized, aided by liberal clergy within the Catholic<br />

Church, environmental groups, and activist academics, who mobilized to defend<br />

and organize the Amazonian poor.<br />

As the problem of Amazonian deforestation achieved increasing notoriety<br />

in the international press with ominous warnings of the greenhouse effect, the<br />

“conservationist” struggle of the rubber tappers and other traditional peoples of<br />

the forest garnered worldwide admiration. From a vital wartime commodity whose<br />

“backward” workers presented a drag for the military-industrial complex, rubber<br />

had become a rainforest relic in the hands of wise extractivists who held the antidote<br />

to global warming. Tappers marshalled local and international support; older demands<br />

for restitution for wartime service would come to interpenetrate demands for social<br />

inclusion and the creation of extractivist reserves.<br />

In 1970, the Catholic bishop in Rio Branco, Giocondo Grotti, drew up a<br />

proposal that was presented in the federal congress to offer government assistance<br />

to the wartime tappers. In 1974, a petition signed by 1,744 rubber soldiers was sent<br />

to the congress requesting the same assistance extended to Brazilian war veterans. As<br />

Amazonian politicians recognized the electoral payoff of supporting such a move,<br />

they incorporated demands for wartime compensation into their political platform.<br />

In 1982, a proposal put forth by Acre Senator Jorge Kalume called for the federal<br />

government to provide a lifetime pension for all wartime rubber of two “minimum<br />

salaries” per month (MARTINELLO, 1988, p. 337-339).<br />

During this period, under the leadership of Chico Mendes, rubber<br />

tappers gained international renown for their opposition to deforestation.<br />

Between the mid-1970s and 1988, rubber tappers in southern Acre organized 45<br />

different empates or standoffs in which the seringueiros sought to thwart<br />

deforestation and eviction. One of the most famous occurred near the town of<br />

Boca do Acre in 1979 in which 300 rubber tappers drove out a group of hired<br />

gunmen (HALL, 1997, p. 97). Mendes also waged the seringueiros’ battle in the<br />

international arena, traveling repeatedly to the United States to denounce to the<br />

American Congress and the Inter-American Development Bank – IDB the social<br />

and ecological dangers of road-paving projects in the western Amazon. During<br />

66 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

1987 alone, 350,000 fires were detected in the Amazon consuming 48,000 square<br />

miles of rainforest (HALL, 1997, p. 99).<br />

In October 1985, Mendes helped to organize the first rubber tapper congress<br />

in Brasília, which gave birth to the Conselho Nacional dos Seringueiros. With over<br />

100 tappers representing a variety of unions and organizations, including former<br />

“rubber soldiers,” the congress endorsed the suspension of all state-sponsored<br />

colonization projects in rubber areas; participation of extractors in all regional<br />

development plans; and the preservation of forest areas through the creation of<br />

extractivist reserves (HECHT e COCKBURN, 1990, p. 207-208). Tapper mobilization<br />

occasioned a wave of intimidation and repression by landowners. In December<br />

1988, Mendes was murdered by Darci Alves, the son of a rancher whose land had<br />

been expropriated by the Brazilian government’s land reform agency subsequent to<br />

a successful empate staged by the tappers. Mendes was the ninetienth rural activist to<br />

be murdered in Brazil that year; he was forty-four years old (HALL, 1997, p. 101).<br />

In opposing deforestation and marginality, tappers highlighted not only their<br />

stewardship of the rainforest, as is commonly known, but their historic wartime<br />

role. As Mendes had noted: “We remember that during World War II the rubber<br />

tappers were the ones who guaranteed the tire-making industries”. For Mendes, the<br />

historical past was intimately personal: his father had been a soldado da borracha who<br />

migrated from the northeast to Acre in 1944. The older and newer generation of<br />

rubber tappers lay claim to the social rights of citizenship that the Vargas regime had<br />

outlined during wartime, but which awaited transformation of the traditional social<br />

structure of the Amazon and of the Brazilian political system to bud.<br />

The Constitution of 1988, which consolidated Brazil’s return to democratic<br />

rule, formally granted this historic recognition and remuneration by extending to<br />

wartime tappers (or their widows) a lifetime pension of two “minimum salaries”<br />

per month. From history’s dustbin, wartime tappers suddenly witnessed a spike of<br />

interest from scholars, documentary filmmakers, and even a Brazilian television<br />

miniseries spotlighting their patriotic contribution and personal suffering.<br />

Wartime rubber tappers have traveled a rocky road to acquire the rights of<br />

citizenship: social welfare benefits, political participation, civil liberties, human dignity.<br />

In more than four decades since the end of the war, many had since died or would<br />

die prematurely, never to enjoy financial or cultural acknowledgment of their wartime<br />

labor. Most survivors lacked the official wartime documentation from SEMTA to<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

prove they had served in the seringais, occasioning new battles with the Brazilian<br />

bureaucracy to gain their pension. The squalor, violence, and insecurity that continue<br />

to invalidate the rights of citizenship of millions of rural and urban Brazilians torment<br />

ex-tappers as well. Yet the wartime role of the tappers has given a unique language<br />

and meaning to their struggle.<br />

Notas<br />

1 See Galey (1977, p. 20-23) and Weinstein (1983). For example, in 1922, the<br />

states of São Paulo and Minas Gerais had a total of 58 seats in the Chamber<br />

of Deputies, while Amazonas and Pará had a total of only 11. Galey (p. 21)<br />

adds information on leading economic products in Amazonian states 1920s<br />

to 1940s.<br />

2 The U.S. government subsidized the entire operation at a cost of $100 per man<br />

accepted at Belém, the port of entry to the Amazon, or a total liability of $5<br />

million.<br />

3 See Levine, 1998 , p. 70.<br />

4 As Cristina Wolff notes “podemos dizer que a Batalha da Borracha reforçou<br />

em muitos aspectos o modo de vida dos seringais, trazendo uma valorização<br />

da borracha, novos migrantes e patrões revigorados por lucros certos e controle<br />

da máquina estatal que passou a garantir, a partir deste momento, uma política<br />

para o mercado da borracha que favorecia essa elite. O tempo da crise e da<br />

autonomia para os seringueiros estava acabado e os patrões agora podiam contar<br />

com fortes aliados nos seus conflitos com os seringueiros: o governo e a polícia”<br />

(WOLFF, 1999, p. 117, 141).<br />

5 Frank McCann asserted that longstanding credit and social relationships were too<br />

firmly embedded in the Amazon to be readily replaced... the Amazonian or<br />

transplanted Northeasterner was “not yet ready to dispense with his patron since”<br />

after all, government agencies did not have saints’ days or birthday parties! Thus<br />

government sponsored attempts at basic change during World War II were “illconceived<br />

and of minor effect” (McCANN, 1974, p. 391). Likewise, Charles Wagley<br />

argued that attempts to bypass the local commercial complex by selling supplies<br />

directly to the trader, short-cutting the import-export firm, were doomed to failure<br />

by the pressure of the longstanding credit and social relationships between the<br />

68 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

trader and the big city company. To break away from his only source of credit and<br />

regular supplies – often his only source of communication with the outside- did<br />

not seem rational to the trader (WAGLEY, 1953, p. 99).<br />

6 Lenharo highlights the disjunction between social legislation for urban and<br />

rural workers. In the case of rural workers, only legislation regarding accident<br />

liability and minimum wage is extended to workers, although even these were<br />

difficult to enforce. Thus, nine-twelve million Brazilian workers in the<br />

countryside were not covered by labor legislation. Under the CLT of 1943,<br />

only workers in agroindustrial sector (usinas) gained direitos trabalhistas<br />

(LENHARO, 1985, p. 79-80).<br />

7 Jorge Ferreira likewise grapples with the impact of Vargas’s trabalhista ideology in<br />

the countryside through an extensive analysis of a letter written by a rural worker to<br />

the president (FERREIRA, 1997, p. 57-66).<br />

8 See Gomes, 1988; Ferreira, 1997; French, 1992.<br />

9 Although twentieth-century reforms aimed to democratize army service through<br />

universal conscription, privileged males found loopholes and alternatives to evade<br />

the draft (See BEATTIE, 2001).<br />

10 Statement by Leon Henderson, Administrator, Office of Price Administration,<br />

and Director, Division of Civilian Supply, War Production Board before the Senate<br />

Supply Committee Investigating National Defense Activities on March 5, 1942 ,<br />

National Archives.<br />

11 Report on the Operations of Rubber Development Corporation, February 23,<br />

1943 to August 31, 1944, Washington, September 30, 1944. Princeton University<br />

Library, Philip H. Williams Collection, Box 3, RDC – History and Organization.<br />

12 In May 1942, this price was adjusted to 45 cents per pound; in February 1944,<br />

a price premium of 33.3 percent was applied to Brazil and certain other countries<br />

to offset increased production costs, making the effective price sixty cents per<br />

pound for higher grade rubber. The agreement also established prices for the<br />

exportable surplus of manufactured goods. Brazil agreed that the price for<br />

exportable tires and tubes should be the official Brazilian government price<br />

established for the sale of tires in December 1941. Brazil had thus spurned<br />

higher offers from certain consuming countries and respecting the policy of<br />

not taking advantage of the wartime necessities of other nations in the Western<br />

Hemisphere. In addition, Brazil and the United States jointly undertook to<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

69


“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

supply the essential tire and tube requirements of Western Hemisphere<br />

countries. The role of the Rubber Reserve Company and the Rubber<br />

Development Company, as its successor, was to purchase the exportable surplus<br />

or rubber and rubber manufactured goods as well as to collaborate with and<br />

aid the producing countries in implementing the agreements in a “mutually<br />

agreed upon” fashion.<br />

13 Amazonas contained 731,362 sq. miles; Pará, 443,992; and Acre, 57,138.<br />

14 On the other hand, Fausto (p. 235) notes that cotton production increased for<br />

both foreign and domestic textile industry; between 1929 and 1940, Brazil’s share<br />

of the world’s territory dedicated to cotton expanded from 2 percent to 8.7 percent.<br />

15 R.B. Bogardus to Mr. Bicknell, Washington, October 14, 1942, National Archives.<br />

16 Quoted in Barham and Coomes, 1996, p. 15 n. 3. Howard and Ralph Wolf’s<br />

muckraking exposé of the rubber industry worldwide denounced the “vicious<br />

credit system” in the Amazon which “made an actual slave of nearly every rubber<br />

gatherer, whether technically slave or free” (WOLF and WOLF, 1936, p. 34).<br />

17 Revista da Associação Comercial do Amazonas, n. 288, December 1940, p 3. Likewise,<br />

Amazonians lambasted reports disseminated in the country’s northeast “propaladas<br />

por ignorância ou má fé, contando horrors dos seringais, atacando impiedosamente<br />

os ‘patrões’ ou seringalistas do Amazonas, Pará e Acre com o fito de evitar que<br />

emigrantes partam para o Norte”. See O Acre, August 21, 1942.<br />

18 See Knight, 1988, p. 102-117.<br />

19 In 1941, the local newspaper O Acre did announce the public auction of the<br />

goods belonging to the tapper Francisco Fausto – including 5 peles of rubber<br />

with the mark “Fausto” weighing 230 kilos (at 6 contos per kilo) and a<br />

Winchester rifle and cartridges (evaluated at 200 mil reis) – ordered by a judge<br />

to pay off debt. See the announcement by the Juizado de Direito da Comarca<br />

de Xapuri, in O Acre, June 29, 1941.<br />

20 Father Tastevin noted of the Seringal Liberdade in the Upper Juruá region in the<br />

1920s that “a desvalorização da borracha, os mau-tratos de certos patrões que<br />

faziam surrar seus trabalhadores com cabos de fio de ferro, pouco a pouco<br />

rarefizeram a população” (Quoted in WOLFF, 1999, p. 200).<br />

21 Report of João Jefferson de Andrade, Gov. of Território Federal do Acre, Rio<br />

Branco, March 18, 1943 (AN, GCPR, Box 388, Proc. 25923).<br />

22 Indeed, in analyzing judicial records in the county of Cruzeiro do Sul in the Upper<br />

70 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

Juruá region, Wolff found cases of seringueiros setting fire to the seringal<br />

headquarters and warehouses, of violence towards bosses and managers, and even<br />

the expulsion of a manager by a group of seringueiros in the Seringal Restauração<br />

in 1916 (WOLFF, 1999, p. 203-06).<br />

23 Letter from Raul Vilhena to J.G. Araújo, Moura, Rio Negro, March 27, 1941.<br />

Museu Amazônico [MA], Arquivo J.G. Araújo [JGA], Manaus, Box R1941.<br />

24 The problem of adulterating rubber was longstanding in the Amazon,<br />

contributing to higher cost for rubber on the market and consumer<br />

dissatisfaction. Adulterated rubber was normally softer and did not hold as<br />

well, after vulcanization, it showed “cargas de ruptura proporcionalmente mais<br />

baixas, módulos inferiores e alongamentos mais elevados” (See WISNIEWSKI,<br />

1949, p. 29).<br />

25 ‘Routing Contract, Special Service of Mobilization of Workers for Amazonia<br />

National Archives.<br />

26 English translation of “Contract” as Enclosure n. 2 to Despatch n. 183 of March<br />

13, 1943 from American Consulate, Pará, Brazil. National Archives.<br />

27 “Rumo à Amazônia: Terra da Fartura”, 1943. Arquivo Nacional (AN), Fundo<br />

Paulo Assis Ribeiro (PAR, AP50, Caixa 5, Doc. 40).<br />

28 Departamento de Imprensa e Propaganda “Borracha e Mais Borracha”, reprinted<br />

in O Acre, June 6, 1943. Also describes the seringalistas as the “commanders” of<br />

the war who must orient their soldiers.<br />

29 Octavio Oliva, Pres. of ACP, to Bartolomeu Pessoa Guimarães, Pres. of ACA,<br />

Belém, July 27, 1943. (ACA, Caixa 4, Pasta 4.1).<br />

30 ACA, 1943c, p. 92; Waldemar de Carvalho to Francisco Fiuza Lima, mayor of<br />

Humaitá, Seringal Bom Futuro, February 4, 1944. (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

31 Propaganda amazonense: A visita do Presidente Vargas e as esperanças de ressurgimento do<br />

Amazonas. Manaus: Imprensa Pública, 1940, p. 29-33.<br />

32 Oscar Passos to Getúlio Vargas, May 18, 1942 AN, Gabinete Civil da Presidência<br />

da República (GCPR, Box 388, Proc. 13253).<br />

33 Alberto would suggest settling new areas of the Amazon to fix workers there<br />

so they would have access to their own land to produce their own food during<br />

the off season and for the seringalistas during the harvest. Alberto combining<br />

rubber program with long-term vision of small holding. Alberto critical of<br />

seringalista and wants to help the worker. (LENHARO, 1985, p.95-96).<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers...<br />

34 Col. Luís Silvestre Gomes Coelho, gov. of Federal Territory of Acre, to José da<br />

Gama Malcher, president of BCB, Rio Branco, August 8, 1944(AN, GCPR, Box<br />

3875, Proc. 21200).<br />

35 Walter de Almeida Gondim to Getúlio Vargas, Seabra, Acre, April 11, 1942 (AN,<br />

GCPR, Box 388, Proc. 25923).<br />

36 Alexandre Montoril, Mayor of Coari, to President of ACA, Coari, June 10, 1944.<br />

37 José de Souza Batalha to President of ACA, Foz de Ati, January 27, 1944 (ACA<br />

Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

38 Francisco Silveira Martins to President of ACA, Boca do Mamiá, August 27,1944<br />

(ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

39 Atilio Nery to ACA, Boca do Acre, June 27, 1944 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

40 Theophilo Narciso de Mesquita, Mayor of Canutama, to Waldemar Pinheiro de<br />

Souza, President of ACA, Canutama, August 23, 1944.<br />

41 Antonio Carolino to Mayor Alfredo Marques de Silveira, Seringal Maranian, Rio<br />

Juruá, Carauari, June 20, 1944 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

42 A. Vieira Lima to J.G. Araújo & Cia., Seringal Guanabara, Yaco, Acre, February<br />

26, 1944 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

43 Mayor Nelson Noronha to ACA, Benjamin Constant, March 3, 1944 and June 2,<br />

1944 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

44 Pedro Nolasco de Melo to Aristóteles Bonfim, Mayor of Coari, Coari, June 6,<br />

1945 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

45 Olivio Brito de Sá to President of ACA, Urucurituba, June 13, 1944 (ACA Caixa<br />

3, Pasta 3.1).<br />

46 Antonio Carolino to Mayor Alfredo Marques de Silveira, Seringal Maranian, Rio<br />

Juruá, Carauari, June 20, 1944 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

47 Arlinda Lopes da Costa to Jaime de Araújo, President of ACA, Urucará, October<br />

30, 1947 (ACA, Caixa 3, Pasta 3.1).<br />

48 Letter from Francisco Praia and João Valério to Getúlio Vargas, Seringal Paraguassu,<br />

Município de Brasiléia, Acre, May 10, 1944 (AN, GCPR, Box 3876, Proc. 21727).<br />

49 See correspondence from José Malcher, president of Banco do Crédito da Borracha,<br />

to Ovídio Menezes Gil, Ministério da Fazenda, Belém, August 23, 1944 and<br />

December 11, 1944 (AN, GCPR, Box 3876, Proc. 21727).<br />

50 Telegram from Joaquim Andrade to Getúlio Vargas, João Pessoa, AM April 4,<br />

1944 (AN, GCPR, Box 3854, Proc. 12437).<br />

72 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Seth Garfield<br />

51 This also conforms to the general trend analyzed by Ferreira, 1997, for urban<br />

workers.<br />

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Mulheres nos seringais:<br />

etnia, parentesco e afetividade*<br />

Mariana Ciavatta Pantoja**<br />

Resumo<br />

O artigo, recorrendo a narrativas orais, acompanha a história de vida de duas mulheres<br />

– uma indígena incorporada à força na sociedade de seringais e outra de descendência<br />

nordestina – entre 1911 e 1955 no Vale do Juruá acreano. Percorrendo a<br />

trajetória destas mulheres, são tratados temas relativos à família, construção do parentesco<br />

e presença feminina e indígena entre populações de seringueiros amazônicos.<br />

Palavras-chave: família; parentesco; etnia; gênero; Amazônia.<br />

Abstract<br />

The article, using oral narratives, follows the life history of two women – one,<br />

indigenous, incorporated by force into the rubber estate society, and the other, of<br />

Northeastern descent – between 1911 and 1955 in the Juruá Valley in the state of<br />

Acre. Following the trajectory of these women, themes such as family, kinship<br />

development, and the indigenous and female presence in the Amazonian rubber<br />

tapper society are addressed.<br />

Keywords: family; kinship; ethnicity; gender; Amazonia.<br />

* Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de um capítulo de minha tese de doutorado, defendida na UNICAMP em<br />

junho de 2001, posteriormente publicada (PANTOJA, 2004).<br />

** Doutora em Antropologia. Professora do Departamento de Filosofia, Comunicação e Ciências Sociais da Universidade<br />

Federal do Acre – Ufac. E-mail:maripantoja@uol.com.br<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

Neste artigo, dividido em duas partes principais, acompanharei a trajetória<br />

de vida de duas mulheres que viveram suas vidas nas florestas e seringais do<br />

Vale do Juruá acreano: Regina da Silva, uma índia Nehanáwa capturada numa<br />

correria 1 ainda menina, e Raimunda Gomes da Conceição, filha de cearenses<br />

migrantes e nascida no Acre. A narrativa, construída a partir de uma biografia<br />

narrada pela filha (caso de Regina) e de uma autobiografia também narrada<br />

oralmente (caso de Raimunda), irá percorrer a vida dessas mulheres entre os<br />

anos de 1911 e 1955. Por meio das histórias de vida dessas personagens pretendo<br />

chamar atenção e discutir temas relativos à família, à construção do parentesco<br />

e às relações de gênero nos seringais. O contexto histórico é o dos tempos<br />

primordiais da ocupação do Alto Juruá pela economia da borracha, marcado<br />

pelo contato inter-étnico entre grupos indígenas nativos e os chegantes<br />

seringueiros do Nordeste.


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

As duas partes principais do artigo – relativas uma a dona Regina e outra<br />

a dona Raimunda – têm estrutura e divisão temporal bastante semelhantes. Serão<br />

três os momentos de vida abordados: um primeiro, cobrindo os anos de<br />

1911 a 1925, com passagens iniciais da vida de ambas as personagens; um segundo<br />

momento, entre os anos de 1925 a 1937, com destaque para as uniões conjugais<br />

das personagens; e, finalmente, cobrindo o período de 1938 a 1955, acompanharemos<br />

os últimos anos de vida de dona Regina, quando morou, junto<br />

com a filha, em casas de compadres e comadres, e a estabilidade conjugal que<br />

marcou a vida de dona Raimunda desses anos até a década de 1970. 2<br />

O texto deste artigo foi construído basicamente a partir de depoimentos e<br />

entrevistas orais, apoiado em fontes secundárias e na minha experiência de campo e<br />

de colegas de profissão. Como um dos objetivos do texto é, com efeito, narrar a<br />

história de duas mulheres, e como as fontes principais para isso são elas próprias e<br />

seus contemporâneos, adotei uma forma textual que privilegia, no corpo central da<br />

narrativa, a perspectiva dessas falas, colocando-me a serviço delas. Contudo, há<br />

momentos em que <strong>jul</strong>guei necessária uma intervenção mais independente e o fiz<br />

destacando minha fala no formato de glosas, isto é, comentários e interpretações<br />

densas ao texto principal. Nessas glosas, como também nas considerações finais,<br />

chamo atenção para aspectos e questões relevantes para os temas abordados e faço<br />

pontes com a bibliografia pertinente.<br />

Maria Regina da Silva<br />

Captura e primeiras uniões (rios Envira e Jordão, 1911-1925)<br />

Depois de capturada na correria ocorrida em 1911 no rio Envira, a menina<br />

Nehanáwa 3 que se chamaria Regina foi levada junto com sua irmã mais velha<br />

para o barracão que era a sede do seringal. 4 Lá se encontraram com a velha madrasta,<br />

que também havia sido capturada junto com a filha caçula, uma criança de colo.<br />

A destinação de cada uma das quatro foi imediatamente decidida.<br />

A irmã mais velha foi destinada ao chefe da correria, um seringueiro por<br />

nome Joaquim Paraíba. Viveram juntos alguns poucos anos no Envira, tempo<br />

em que a cabocla Nehanáwa teve dois filhos. Joaquim resolveu, então, voltar a<br />

sua terra natal, onde era casado e tinha família, tendo levado com ele a cabocla e<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

seus dois filhos, que lá teriam falecido por envenenamento, vítimas da esposa<br />

ciumenta de Joaquim. A madrasta foi entregue a um seringueiro, com quem<br />

passou a morar num centro. 5 Foi separada de sua filha caçula (cujo destino é<br />

ignorado), tendo sido esta destinada a um tal Antonio Jordão, comerciante italiano<br />

que fazia negócios no rio Envira, e batizada como Zuíta.<br />

Quanto à menina Nehanáwa, foi acertado que caberia ao seringueiro que a<br />

capturou, de nome Raimundo. Porém, por ser ainda muito nova pra usar homem, ele<br />

teria que esperar que ela se tornasse moça, o que só ocorreu dois anos depois. Neste<br />

meio tempo, Maria Regina da Silva, como foi batizada pelo patrão Cajazeira e sua<br />

esposa Maroca, permaneceu na sede do seringal, morando na casa do patrão,<br />

provavelmente ajudando nos serviços domésticos.<br />

Em 1913, já uma moça, com os seios despontando, Regina foi finalmente<br />

entregue a Raimundo, seu captor. Foram então viver no centro onde já vivia sua<br />

madrasta. Regina e Raimundo viveram juntos por dois anos. Nesse intervalo,<br />

ela deu à luz uma menina e a um menino, que nasceu por volta de 1915, quando<br />

Regina tinha 15 anos, pouco antes de Raimundo falecer. Foram os primeiros<br />

dos treze filhos que teria, dos quais, contudo, somente Mariana, nascida já em<br />

1928, chegaria à idade adulta.<br />

Por essa época, a madrasta de Regina mudara-se para as águas do rio<br />

Jordão, afluente do Tarauacá. Antes de viajar, falara a Regina de outros Nehanáwa<br />

amansados 6 que viviam no Jordão. Regina, então, decidiu ir atrás desses possíveis<br />

parentes. Quando saiu do Envira, acompanhando a família de uma comadre sua,<br />

de nome “Grumecina”, trazia somente o filho recém-nascido; a menina falecera<br />

logo após o pai.<br />

Provavelmente ainda em 1915, já no Jordão, Regina uniu-se a seu segundo<br />

companheiro, um “piauizeiro” de nome Modesto, com quem morou na colocação<br />

Boca do Aracati, no seringal Fortaleza. Com ele teve filhos, não mais do que<br />

dois, mas nenhum se criou. A união logo teve um fim: Modesto era muito malvado<br />

pra ela, e Regina deixou-o. No ano de 1917, ela estava vivendo na foz do Jordão,<br />

na casa de um compadre seu, marido de uma prima Nehanáwa por nome Maria:<br />

a Maria do Amadeu.<br />

Regina em seguida uniu-se ao pernambucano Luis Alves, que se “engraçou”<br />

dela e propôs que morassem juntos. Regina resistiu, mas deram muito conselho e ela se<br />

juntou com ele. Por volta de 1920, Regina passou a viver então com seu terceiro com-


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

panheiro. Por ser índia, justificou dona Mariana, sua mãe nunca se casou perante um<br />

Juiz de Paz ou um padre. Com Luis Alves teve um filho, Altino. Moravam no<br />

seringal Revisão quando uma carta de Pernambuco levou Luis Alves para lá, onde<br />

uma rixa de família terminou por separá-los definitivamente: Luis terminou assassinado<br />

após envolver-se numa guerra de vingança familiar.<br />

Morando na casa de seu Lúcio, um velho cearense sob os cuidados de quem<br />

ficara quando Luis Alves partiu para Pernambuco, aos 22 anos Regina viu-se<br />

novamente viúva. Mais uma vez foi o mesmo compadre na casa de quem já morara,<br />

o Amadeu, que a acolheu, indo ela morar na foz do Jordão. Este período foi assim<br />

descrito por dona Mariana: – Aí ela ficou só, sem companheiro; aí vivia uns dias na casa de um<br />

parente, uns dias na casa de outro.<br />

Estamos já nos idos de 1925, e a cabocla 7 Regina conquistava aos poucos<br />

fama de boa curadora, parteira e conhecedora de “remédios da mata”. Nesta época,<br />

um chamado de doença vindo das águas do Tejo a fez cruzar as terras divisoras. 8<br />

Encontro com os primeiros companheiros (rios Jordão e Tejo, 1925-1937)<br />

Morava Regina, em 1925, na casa de seu compadre Amadeu quando o<br />

seringueiro Manuel Ribeiro, do seringal Restauração, no rio Tejo, viajou até o rio<br />

Jordão para pedir que ela fosse atender sua esposa doente. Lá, novo chamado<br />

levou-a em seguida à colocação São Paulo, no igarapé Flecheira, afluente do Tejo:<br />

uma mulher de nome Nazaré, casada com o seringueiro e cearense Francisco Feitosa<br />

do Nascimento, encontrava-se grávida e sofrendo de “inchaço”. Regina tratou-a e,<br />

com sucesso, fez o parto de Nazaré, ajudando-a trazer à luz a filha Zezé.<br />

Nazaré não consentiu que a cabocla fosse embora, pedindo-lhe que<br />

permanecesse morando na colocação. No ano seguinte, Regina fez ainda o parto da<br />

filha caçula do casal, Rosinha. Com a saúde cada vez mais comprometida, Nazaré<br />

fez então uma proposta a Regina:<br />

Regina, agora você fica aqui dentro da minha casa. O<br />

Nascimento é muito mulherengo, ele gosta muito das<br />

mulheres dos outros, eu tenho medo de matarem o meu<br />

marido. Você não tem marido, você fica mais eu aqui dentro<br />

de casa. Tudo quanto você precisar, você tem. Do jeito<br />

que os meus filhos comerem e minhas filhas vestirem, você<br />

come e veste junto com minhas filhas.<br />

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82 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

Nazaré enxergou em Regina a possibilidade de manter seu marido em casa,<br />

afastando-o de rabos-de-saia, e confusão, na vizinhança. Por ser uma mulher de<br />

saúde debilitada, Nazaré cada vez menos podia satisfazer sexualmente seu esposo, e<br />

avaliou que a cabocla, de quem além de tudo gostara, poderia fazê-lo sem expor<br />

Nascimento à fúria de maridos ciumentos ou traídos. Regina assentiu em permanecer<br />

como “rapariga” 9 de Nascimento, e também auxiliando Nazaré e as filhas nos serviços<br />

domésticos da casa. Mas, não muito tempo depois, Nazaré adoeceu, baixou com o<br />

marido para a então Vila Thaumaturgo, da onde não retornou com vida.<br />

Quando o já viúvo Nascimento chegou de volta a sua casa, não encontrou<br />

mais a cabocla. Regina mudara-se para a casa do seringueiro Joaquim Machado tão<br />

logo soube que Nazaré falecera. Ao sair da casa, porém, levava no ventre uma<br />

criança, filha de Nascimento.<br />

Mas Nascimento não desistiu. Junto com Mocinha, sua filha mais velha, que<br />

também fora à Vila acompanhando a mãe, foram ter com Regina na casa de Joaquim<br />

Machado. Mocinha era mensageira de um último pedido de Nazaré a sua amiga<br />

Regina: por meio de carta, Nazaré pedia que Regina não desamparasse as filhas dela,<br />

agora sem mãe – que zelasse por elas. Regina não queria voltar para a companhia de<br />

Nascimento, mas ela e seu novo companheiro aceitaram a proposta do viúvo de<br />

que morassem ao menos na mesma colocação São Paulo. Lá, no dia 29 de novembro<br />

de 1929, Regina deu à luz a menina Maria, desde cedo Mariana.<br />

Regina e Joaquim Machado ainda permaneceram morando vizinhos a<br />

Nascimento por mais um ano. Nesta época, Mocinha já havia se casado e tinha sua<br />

própria casa; Nascimento também arrumara novo casamento, e tinha agora uma<br />

esposa para cuidar da casa e dos filhos menores. Regina avaliou, então, que podia<br />

sentir-se desobrigada do compromisso que assumira com a finada Nazaré perante<br />

Mocinha. Em 1930, junto com Joaquim Machado e os filhos Altino e Mariana,<br />

Regina retornou ao rio Jordão, indo morar no seringal Bom Jardim.<br />

Joaquim Machado foi assim o “pai de criação” de Mariana, como ela<br />

reconhece. Foi quem assumiu responsabilidades paternas por ela durante sua infância,<br />

inclusive registrando-a como filha. Mariana tinha sete anos de idade quando Joaquim<br />

Machado separou-se de Regina e retornou ao Tejo. No mesmo ano de 1936, o filho<br />

mais velho de Regina e do finado Luis Alves, Altino, acidentou-se numa caçada: caiu<br />

e traumatizou as costelas, adoecendo sem assistência médica, o que o levou à morte<br />

aos 16 anos de idade.


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Logo depois, em 1937, Regina e a filha foram morar na colocação Centro<br />

do Meio, no seringal Bonfim – sempre no rio Jordão. Lá passaram um ano, vivendo<br />

Regina com outro cearense, José Raimundo de Souza, o Zé Raimundo. Nesta<br />

colocação, a menina Mariana, entre sete e oito anos de idade, acompanhada pela<br />

mãe, aprendeu a cortar seringa.<br />

Regina e a filha: casas de compadres e a última união (rio Jordão, de 1938 a<br />

1954)<br />

Em 1938, Zé Raimundo, Regina e a filha Mariana mudaram-se para outro<br />

seringal, um pouco mais rio acima, o Bom Jardim, estabelecendo-se na colocação<br />

de centro Duas Nações. Lá, com quase <strong>dez</strong> anos de idade, Mariana continuou a<br />

cortar seringa acompanhada pela mãe, e neste verão fez um princípio 10 de <strong>dez</strong> quilos<br />

de borracha. No seringal Bom Jardim, Regina e Mariana vieram a permanecer,<br />

morando e trabalhando como seringueiras, por oito anos. Lá, Regina caiu nas<br />

graças do patrão Zé Mourão por seus serviços de parteira, sendo isentada do<br />

pagamento da renda 11 das estradas que a filha Mariana, então iniciando-se no corte<br />

de seringa, passou a explorar.<br />

Por volta de 1939, mãe e filha estavam em outra colocação, desta vez na<br />

margem, o Bagaço, também no seringal Bom Jardim. Por essa época, Regina<br />

separara-se de Zé Raimundo e fora morar, com Mariana, na casa do finado Ramiro,<br />

seu compadre e cunhado, já que irmão de Nascimento. Nos dois anos em que<br />

permaneceram no Bagaço, a filha Mariana cortou seringa.<br />

Em 1941, Regina e a filha retornaram à colocação Duas Nações, cujas estradas<br />

eram “boas de leite”, indo morar na casa de outro compadre, Miguel Joaquim:<br />

Regina fizera o parto de Iracema, sua esposa, também uma cabocla. Em 1944, com<br />

a morte de Miguel Joaquim, voltaram novamente a morar e trabalhar na casa do<br />

compadre Ramiro, onde permaneceram até o ano seguinte. A filha única de dona<br />

Regina contava então com catorze anos, e era uma seringueira dedicada, produzindo<br />

cerca de 300 quilos de borracha por ano!<br />

Glosa 1:<br />

Na primeira colocação de centro em que morou com seu companheiro seringueiro, a jovem<br />

Regina logrou recompor o mínimo de uma rede de referência familiar: morava ao lado de sua<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

madrasta. Mas esta foi embora para o rio Jordão, onde afirmava que parentes de ambas residiriam.<br />

Quando se viu viúva pela segunda vez, Regina não hesitou: foi em busca de parentes vivos, no<br />

mesmo Jordão. As narrativas sobre sua mudança e estabelecimento naquele rio ao longo dos anos<br />

chama atenção, a meu ver, para a rede de parentesco que ela começou a recriar para si. A recriação<br />

e ritualização do parentesco – resgatando e resignificando relações do passado, ou instaurando<br />

novas relações – permitiu a dona Regina encontrar amparo, proteção e subsistência em diversos<br />

momentos ao longo de sua vida e da filha.<br />

No Jordão, Regina reencontrou outras parentes índias, as “primas” Maria do Antonio do<br />

Carmo, a Maria do Amadeu, a Rita do Miguel do Gomes e a Rita do Toqueiro. É provável que essas<br />

antigas parentas, mais ou menos distantes – algumas eram primas longe –, afins ou consanguíneas,<br />

tenham sido, além de reencontradas por Regina, por elas reclassificadas como tais. Pode-se criar<br />

parentesco perante uma fogueira, ou mesmo um tição, “passando fogo” uma com a outra – as<br />

pretendentes a parente – que se tornam “primas de fogueira”.<br />

No ano de 1946, ainda no seringal Bom Jardim, agora na colocação Dispensa,<br />

dona Regina foi morar junto com outro seringueiro, Raimundo Pereira da Silva, de<br />

apelido Raimundo Môco, 12 com quem viveu até o final de seus dias. A este homem<br />

dona Mariana refere-se como seu “padrasto”. Ela conta que a mãe resistiu em deixar<br />

a casa do compadre Ramiro para se juntar a Raimundo Môco. Mas a filha foi<br />

enfática ao aconselhar a mãe que o fizesse: – […] porque nós não tínhamos casa! O jeito que<br />

tinha era querer, pra um dia nós possuir ao menos uma casa.<br />

Neste mesmo ano de 1946, Mariana contraiu seu primeiro casamento, tendo<br />

ido então morar num centro por nome Botafogo, dentro do igarapé Centro do<br />

Meio, ainda no mesmo seringal Bom Jardim. Regina ressentiu-se da saída de sua<br />

filha de casa – sentiu-se com as “pernas quebradas”. Mas também reconhecia,<br />

conforme contou dona Mariana, a importância da filha ter encontrado um marido<br />

que por ela se responsabilizasse, dando-lhe uma casa e provendo o necessário para<br />

ela e os futuros filhos. Regina pensava no futuro da filha – e talvez também no seu,<br />

acrescentaria, com um bom genro para lhe amparar na velhice.<br />

Quando Mariana, no início de 1951, separou-se do marido, a mãe e o<br />

padrasto Raimundo Môco encontravam-se no seringal Bonfim, morando na<br />

margem, e em sua casa acolheram a filha e os netos. Foi então, em fevereiro deste<br />

mesmo ano, que dona Regina, seu Raimundo Môco, Mariana e seus três filhos –


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Raimundinha, Pedrinho e a recém-nascida Osmarina – mudaram-se para a Água<br />

Fria, colocação de centro, no seringal Bonfim, distante poucas horas de viagem<br />

da margem. Seu Raimundo Môco já estava idoso, mas no centro poderia cortar<br />

seringa junto com sua enteada Mariana. Foi por isso que aceitou o convite do<br />

amigo seringueiro e agricultor Raimundo Meruoca, que vivia na Água Fria já há<br />

muitos anos com sua esposa, filhos e enteados.<br />

Passaram, portanto, a ser vizinhos de colocação os grupos domésticos<br />

chefiados por seu Raimundo Môco e por Raimundo Meruoca, este casado com<br />

Raimunda, nossa outra heroína. Junto com a mãe e Meruoca, morava o jovem<br />

seringueiro e caçador Milton. No decorrer da convivência cotidiana na colocação e<br />

em festas na vizinhança, Mariana e Milton começaram um namoro. Contrariada,<br />

dona Regina assistiu, em janeiro de 1953, sua filha sair de casa para morar com<br />

Milton, um genro que ela não aprovava: Milton era muito jovem, analisava, mal<br />

completara 17 anos, e logo abandonaria Mariana, já uma mulher 13 de 23 anos,<br />

certamente com novos filhos para criar. Quem cuidaria da filha e a ajudaria a criar os<br />

filhos depois que ela, sua mãe, morresse? – perguntava-se dona Regina.<br />

Em <strong>dez</strong>embro de 1954, quando veio a falecer vitimada por uma “febre”<br />

persistente, dona Regina já havia acolhido Milton como genro. Na hora de sua morte,<br />

fez recomendações expressas a sua filha Mariana, como ela mesma, emocionada<br />

pela lembrança e com a voz embargada, narrou-me quase 44 anos depois:<br />

Adepois que eu já tava com ele [Milton], aí ela estimava ele<br />

igual um filho. Que na hora da morte dela – podia dizer<br />

que era na hora, Mariana, que era assim nove horas do dia,<br />

do dia que ela faleceu. Ela sentiu aquela melhora, aí sentouse<br />

na rede e disse assim: – “Minha filha, repara aqui na<br />

minha cabeça, se eu tenho… dá uns cafunés na minha cabeça<br />

aqui, minha filha.” Aí eu fui catar; ela foi e disse: –“Minha<br />

filha, você sabe de uma coisa? Que a sua mãe vai morrer.”<br />

Aí eu disse: –“Mãe, não diga isso não, mãe.” Ela disse: –<br />

“Vai, minha filha, essa doença vai matar a sua mãe. Olha,<br />

minha filha, este é o derradeiro pedido que eu vou lhe<br />

fazer: minha filha, padrasto bom pra os meus netos você<br />

não vai achar mais nunca que nem esse homem. Aí você,<br />

quando você se lembrar de deixar ele, você diga assim: –<br />

‘O derradeiro pedido que a minha mãe fez pra eu nunca<br />

largar esse homem’.” Aí eu me lembrava disso muitas vezes,<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

que meu marido fazia certas coisas, quando ele era novo,<br />

eu me lembrava disso, Mariana.<br />

No ano seguinte ao da morte da mãe, Mariana retornou ao rio que a vira<br />

nascer, o Tejo.<br />

Raimunda Gomes da Conceição<br />

Uniões, filhos e filhas de dona Regina<br />

Regina Raimundo Modesto<br />

Nasceu em<br />

1913, logo<br />

faleceu<br />

Nasceu em<br />

1915, logo<br />

faleceu<br />

Ambos nascidos entre<br />

1915 e 1917, e logo<br />

falecidos<br />

Luiz<br />

Alvez<br />

Altino<br />

1920-1936<br />

Velho<br />

Nascimento<br />

Dona<br />

Mariana<br />

1929<br />

Joaquim<br />

Machado<br />

Zé<br />

Raimundo<br />

Deve ter havido<br />

filhos e filhas entre<br />

1930 e 1936, mas<br />

não há informações<br />

Nascimento e primeiros anos de vida (rio Jordão, 1914-1925)<br />

Raimundo<br />

Môco<br />

A minha mãe veio do Ceará, parece que já veio casada. Aí o marido dela – ela já tinha<br />

tido uns poucos filhos, mas sei que tinham morrido, ela só tinha dois, um casal – aí o marido<br />

dela adoeceu. Aí baixou, baixou pra se tratar 14 […]. Daí passou-se muito tempo, já estava com<br />

mais de ano, a minha mãe só chorava, não sabia notícias dele [do marido], nenhuma. Até que<br />

por lá parece que fizeram uma carta falsa e mandaram dizer que ele já tinha morrido. Ela<br />

chorou muito assim, ela – os conhecidos dela me contaram que ela chorava muito […].<br />

Aí começaram a dar conselho a ela: que ela se ajuntasse com o meu pai [que trabalhava<br />

como empregado do marido desaparecido]. Que a minha mãe era uma mulher alva, o<br />

meu pai era moreno. Ela disse que não queria de jeito nenhum: que não queria, que estava esperando<br />

o marido, não sabia se era verdade que ele tinha morrido. O pessoal dizia que era verdade porque<br />

tinha vindo a carta, né? Sei que pelejaram com muito conselho e ela se ajuntou. […] Aí ela se<br />

ajuntou com ele.


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Quando estava, parece, com uns quatro ou cinco meses, o marido dela chegou. Eles moravam<br />

num centro, minha mãe, aí o pessoal contaram pra ele que ela tinha se ajuntado, que o pessoal tudo<br />

não estavam mais esperando ele em vida. Todo mundo dizia que ele tinha morrido. E ela não queria<br />

se ajuntar não, mas tinham dado conselho, que ela tinha família e não podia viver sem [marido],<br />

com os filhos tudo pequeno. Ela gostava muito, diz que gostava muito do meu pai. 15<br />

A mãe de Raimunda chamava-se Francisca. O seu marido legítimo,<br />

supostamente morto, não criou caso quando retornou, foi-se embora. Francisca<br />

deu então continuidade à sua união com o novo companheiro, o cearense Miguel<br />

Gomes de Oliveira, adotando o nome Francisca Gomes da Conceição. Ainda<br />

viveram alguns anos juntos, tendo a filha Raimunda Gomes da Conceição nascido<br />

no dia 22 de maio de 1914, na foz do rio Jordão, seringal Nova Empresa. Quando<br />

a menina estava com um ano de idade, a mãe faleceu de hemorragia, num parto<br />

de gêmeos. No ano seguinte, a única irmã de Raimunda, de nome também<br />

Francisca, faleceu, ficando ela na companhia do pai e de dois irmãos.<br />

A vida para ela, uma criança de dois anos sem a mãe, tornou-se penosa.<br />

O pai era seringueiro, e saía todo dia para trabalhar, ficando Raimunda na<br />

companhia dos irmãos mais velhos, possivelmente pré-adolescentes. A menina<br />

era chorona, e os irmãos impacientes. Para acalmá-la, quando não judiavam dela,<br />

davam-lhe um prato de jacuba (farinha com água) para comer. Com pouco tempo<br />

Raimunda adoeceu, e o pai levou-a para a casa da comadre Madalena, madrinha<br />

de batismo da menina. Ela acolheu a afilhada e tomou conta dela, mas recusouse<br />

a devolvê-la: a menina precisava de uma mãe! – protestou.<br />

Raimunda, depois de recuperada, passou a viver com a madrinha Madalena<br />

na colocação Sacado, seringal Bonfim. O pai sempre morou na vizinhança, e a<br />

filha periodicamente ia visitá-lo para tomar-lhe a benção.<br />

Encontro com seu companheiro caboclo (rios Jordão e Breu, 1925-1937)<br />

Raimunda cresceu no Jordão, na companhia de sua madrinha Madalena. Era<br />

uma moça forte e sadia, o que lhe valeu o carinhoso apelido de “filhote de anta”.<br />

Segundo conta, era cobiçada, havendo vários rapazes, seus conhecidos, que gostariam<br />

de se casar com ela. Mas sua escolha recaiu sobre um serigueiro de Tarauacá<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

com nome de Manuel Alves Bandeira. Em 1928, aos 14 anos de idade, a jovem<br />

Raimunda dele engraçou-se; no mesmo ano, com ele noivou e casou.<br />

Glosa 2:<br />

Ainda bastante jovens, Regina e Raimunda experenciaram a união conjugal, a gravi<strong>dez</strong>, o<br />

falecimento de filhos e a viuvez. Fortes vivências, precoces do ponto de vista de quem vive no<br />

universo urbano e de classe média – onde a puberdade é um período da vida em que os jovens<br />

moram com os pais, estudam e não trabalham. Idealmente, o casamento só vem depois de terminados<br />

os estudos na faculdade, e filhos podem ser planejados. No seringal, se o casamento envolve algum<br />

grau de escolha, o mesmo nunca ocorreu com o número e periodicidade dos filhos. Partos, inclusive,<br />

podem envolver riscos de vida.<br />

A união conjugal e iniciação sexual de ambas ocorreu quando tinham por volta de catorze<br />

anos, já moças, fase que chamaríamos de adolescência mas que no seringal corresponde à primeira<br />

menstruação e a consequente capacidade de ter filhos. Moças são, portanto, aquelas aptas a<br />

constituir casa e ter família; mulheres passam a ser quando se casam (formalmente ou não) e a<br />

família começa a crescer com os filhos.<br />

Ser uma mulher, e não mais uma moça, pode estar associado também à perda de virgindade<br />

sem o casamento – trata-se de uma mulher solteira. Mulheres solteiras, que engravidem ou não,<br />

podem continuar a morar com seus pais e posteriormente vir a casar. Mas há mulheres solteiras<br />

que ficam mal faladas: são aquelas que nunca têm um companheiro mas todo ano têm um filho –<br />

diz-se uma “mulher rapariga”. Regina, como a própria filha conta, ficou como “rapariga” do velho<br />

Nascimento, recobrindo esta classificação uma união sexual não transformada em conjugal.<br />

Mas Raimunda não foi feliz na sua primeira união: Manuel não era um bom<br />

marido, além de ser ciumento!<br />

– Quando ele era noivo, ele dizia que quando ele casassse comigo eu não ia vestir essas<br />

roupas assim, essas chitas, essas coisas assim, esses riscados – “isso era roupa era pra índio!” [ele<br />

dizia.] Quando eu casei com ele, não andei nua porque quando saí da casa de minha madrinha levei<br />

muita roupa. Não eram roupas boas, mas eu tinha a minha roupinha melhor d’eu sair e as roupas<br />

que eu vestia em casa. Levei muita roupa, levei calçado, levei tudo. Passei três anos mais ele, três anos<br />

e seis meses. […] Todas as coisas que eu levei, negócio de pente, essas coisas assim, ele agarrava tudo,<br />

quebrava tudo e jogava no mato. Quando eu saí da companhia dele, eu não levei um caco de pente.<br />

[…] Ele era ruim por causa do ciúme. Ciúme medonho, né? E ele era desses homens raparigueiros,<br />

parece que ele fazia o cálculo que eu ia fazer do mesmo jeito que as outras faziam.


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

A jovem e insatisfeita esposa ainda ficou casada com Manuel Bandeira<br />

por cerca de três anos, período em que moraram no seringal Transval, no Jordão,<br />

e teve duas filhas: Álbia e outra que faleceu aos 12 dias de vida. Era uma vida<br />

frustrante para a moça que acreditara nas promessas do noivado. Manuel, quando<br />

enciumado, chegava ao ponto de ameaçá-la de morte, só intimidando-se na<br />

presença do irmão mais velho de Raimunda, que morava no mesmo seringal,<br />

um seringueiro chamado Diocleciano. No último ano do casamento, por volta<br />

de 1931, moravam no rio Breu. 16 Cansada então da vida que levava com Manuel,<br />

Raimunda tomou a decisão de voltar para junto de seus parentes no Jordão.<br />

Talvez por vingança ou retaliação, Manuel tomou-lhe a única filha viva do casal,<br />

Álbia, não permitindo que a esposa a levasse consigo.<br />

Mas Raimunda tinha ainda um outro problema a resolver: como retornar<br />

para o Jordão, a pé e sozinha, uma viagem de quase doze horas? Um velho conhecido<br />

veio em seu socorro. Vendo-a naquela situação, sugeriu que ela pedisse ao caboclo<br />

que trabalhava com ele para acompanhá-la de volta à casa de seu pai e irmãos.<br />

Raimunda sentiu-se envergonhada de fazer o pedido; seu amigo intercedeu por ela.<br />

Pedro Tibúrcio, apelido de Pedro Lourenço da Silva, caboclo de origem Kontanáwa<br />

(tronco lingüístico Pano), assentiu então em ir até o Jordão. Pouco tempo depois,<br />

Pedro veio a se tornar o segundo companheiro de Raimunda. 17<br />

Eu me ajuntei com o Pedro por causa de opinião. Porque eu vim do Breu mais ele, que ele<br />

foi quem veio me deixar no Jordão; eu pedi a ele pra ele me deixar lá na casa do meu pai. Justamente<br />

ele foi mesmo [me] deixar lá. Aí ele passou uma semana por lá, essas viagens assim de longe, né, não<br />

queria ir s’embora não; passou mais uns dias descansando mais, e tal. Aí começaram: chegava um e<br />

perguntava se eu queria ir morar com ele [com esse “um”], eu dizia que não queria; chegava<br />

outro de acolá do mesmo jeito: eu dizia que não queria. E até que – pra encurtar a história – até<br />

que chegaram a dizer que diz que eu não queria me ajuntar com ninguém porque eu já ia me ajuntar<br />

com o Pedro, ou então já tinha vindo junta com ele de lá do Breu, não sabe? […]<br />

Até que foi um dia, um [dos pretendentes] foi e perguntou se eu queria morar com<br />

ele, eu digo: – “Eu não quero não.” – “Por que você não quer?” Eu digo: – “Porque não<br />

quero!” – “Ah, você não quer porque você vai morar mais o Pedro.” Eu digo: – “Quem foi que<br />

disse que eu ia morar mais o Pedro? Quem foi esse?” – “Ah, por aí tá tudo cheio que você vai.”<br />

Eu digo: – “É muito da mentira, que eu nunca disse pra ninguém que ia morar mais ele.”<br />

[…] Aí digo: – “Pois é, eu não ia morar com ele não, mas agora eu vou. Não já tá cheio que eu<br />

vou morar com ele, ou então que eu tô junta com ele?! Eu já soube até que disseram que eu estava<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

gestante dele! Pois agora eu vou que é pra acabar de confirmar, pra não ficarem por mentiroso!”<br />

No tempo que eu era nova eu tinha uma opinião ruim.<br />

Enfrentando o pai e irmãos, e a incômoda situação de ser continuamente<br />

assediada pelos rapazes e homens da vizinhança, Raimunda respondeu com<br />

audácia: ia viver com Pedro, encerrando de uma vez por todas os fuxicos a seu<br />

respeito. Uma mulher que tinha opinião, isto é, que não levava desaforo para<br />

casa; e que soube ela mesma defender sua moral como mulher: tornou o falatório<br />

um fato! Pedro, segundo ela mesma, concordou com a decisão, e juntos, em<br />

algum momento de 1931, foram morar no seringal Bonfim, na colocação Jurema,<br />

um pouco mais rio acima, no Jordão.<br />

Lá, Raimunda e Pedro viveram por cinco anos e meio, período em que<br />

tiveram três filhos, dos quais um menino e uma menina faleceram por volta do<br />

primeiro ano de vida. Em 1936, nasceu o filho Milton Gomes da Silva. Um ano<br />

depois, no dia 18 de abril, um trágico acontecimento: em virtude de uma<br />

pneumonia sem socorro médico, morria Pedro Tibúrcio, aos 33 anos de idade.<br />

Dona Raimunda ficou viúva, com um filho pequeno, Milton, e outro na barriga.<br />

Ela decidiu então retornar à casa de sua madrinha Madalena, aonde nasceu o seu<br />

filho Sebastião.<br />

Glosa 3:<br />

Talvez também esteja chamando atenção do leitor a ocorrência de mortes por falta de<br />

assistência médica – como a de Pedro Tibúrcio e Altino, quiçá, da própria dona Regina e, quase<br />

trinta anos depois, de Raimundo Meruoca. Esta situação não é propriamente característica das<br />

populações da floresta, mas ganha contornos especialmente graves, em especial no início do<br />

século, quando o socorro médico, esgotados os recursos da medicina tradicional ou nativa, ou não<br />

há, ou é dado por patrões e marreteiros que vendem medicamentos. Baixar o rio em busca de<br />

assistência médica ainda hoje é uma prática, mas acredito que na primeira metade do século os<br />

recursos existentes em Tarauacá, por exemplo, deviam ser limitados.<br />

Raimunda encontra Meruoca, pai e padrinho de seus filhos (rio Jordão, 1938-<br />

1955)<br />

Em 1938, Raimunda está morando com seus dois filhos – Milton e Sebastião<br />

– na casa de sua madrinha Madalena, na colocação Sacado, seringal


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Bonfim. No mesmo ano de 1938, um seringueiro cearense, negro, de nome Miguel<br />

Pinto, convidou-a para viverem juntos. Mesmo não tendo “amizade a ele”,<br />

Raimunda ouviu os conselhos de sua madrinha, e acabou cedendo, indo viver<br />

com ele na colocação Água Fria, no mesmo seringal Bonfim. Da união e<br />

convivência por três anos, nasceu um filho, Manuel.<br />

Após separada, em 1941, os caminhos de Raimunda e do então viúvo<br />

Raimundo Meruoca se entrelaçaram, e eles passaram a viver juntos na mesma<br />

colocação Água Fria. Começou então um período do qual dona Raimunda<br />

relembra hoje com saudades e lágrimas nos olhos. Meruoca era um marido<br />

trabalhador, calmo e bondoso com seus filhos e enteados; tinha um apurado<br />

senso de responsabilidade pelo bem-estar da família. Juntos, Raimunda e Meruoca<br />

tiveram seis filhos e filhas: Francisco, Maria, Raimunda, Marli, Teresa e Antonio<br />

Meruoca. Por ser o homem que estava criando os filhos das outras uniões de<br />

dona Raimunda – seus enteados, portanto –, ela orientou a eles que tomassem<br />

a benção do padrasto chamando-o de “padrinho”. Por volta de 1943, a filha<br />

Álbia – lembremo-nos, tomada pelo pai Manuel Bandeira nos idos de 1932 –<br />

voltou a morar com a mãe e o padrinho.<br />

Cerca de <strong>dez</strong> anos depois de estarem morando juntos – em 27 de junho de<br />

1951 – Raimunda e Raimundo Meruoca casaram-se no religioso, e continuaram<br />

morando na colocação Água Fria. Raimunda cortava seringa e trabalhava para<br />

contribuir no equilíbrio das contas domésticas, comprando artigos como roupas,<br />

tecidos e redes para ela e os filhos. Foi ela que, nesta época, iniciou o filho Milton no<br />

ofício de seringueiro.<br />

Glosa 4:<br />

Registro aqui a reação de Mauro Almeida a este trecho, rememorando sua própria<br />

experiência e observações de campo nas colocações do Riozinho, seringal Restauração, na década<br />

de 1980:<br />

“Esse é um ponto interessante. Também observei essas situações: a filha de Expedite, no<br />

Cocal (igarapé São Luís), mocinha de uns doze anos, cortando seringa para comprar seus “luxos”<br />

(óleo de cabelo, sapatos) quando o pai morava com a madrasta; a mulher do Chico Roberto (e,<br />

aliás, outras irmãs) que era seringueira, sendo que a mulher do Nabé mais parecia a mulher da<br />

casa, e corrigiu o marido quando ele me disse que “tinha duas espingardas”. Segundo ela, ele não<br />

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92 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

tinha nenhuma, porque as duas eram dela. Uma filha do [anônimo] (criada pela avó), segundo<br />

quem a “puta” da segunda mulher do pai mentia quando dizia que era a dona de uma vaca que na<br />

verdade pertencia a ela (filha) por herança da mãe, que era a verdadeira dona da vaca que tinha<br />

parido a vaca em questão...”.<br />

Tudo isso, diz Mauro Almeida, indicando direitos paralelos de propriedade (caso das<br />

espingardas), linhas de herança paralelas (tanto pelo pai quanto pela mãe, caso da vaca),<br />

complicando-se com a questão dos enteados(as) e madrastas/padrastos (caso da filha de Expedite<br />

e caso da vaca). Nas trajetórias neste artigo narradas, conflitos latentes entre esses parentes por<br />

afinidade não saltam à vista, muito pelo contrário (sendo talvez exceção os filhos de Raimunda que<br />

eram maltratados por Miguel Pinto). Contudo, verifica-se a esforço de mulheres – Raimunda e<br />

Regina, ajudada pela filha Mariana – para contribuir na geração de renda da casa mantida por afins<br />

e por compadres. 18<br />

Raimunda não chegava a cortar toda uma estrada, mas tinha as suas voltas 19<br />

de estrada. Sua borracha era independente da produzida pelo marido, cujo destino<br />

principal era pagar a renda pelas estradas de seringa e comprar as mercadorias no<br />

barracão. Na verdade, o forte de Meruoca não era a seringa, e sim a agricultura;<br />

borracha, ele fazia, mas era pouco. Contudo, o suficiente para a manutenção da<br />

conta junto ao barracão e para o pagamento da renda. A borracha que Raimunda<br />

produzia, por outro lado, era vendida para o patrão e marreteiros à medida mesmo<br />

em que as pequenas pélas iam sendo fabricadas. 20 E dona Raimunda gostava do<br />

ofício de seringueira: – Pra mim era o melhor serviço, eu ficava com raiva no dia que eu não<br />

podia ir cortar.<br />

Glosa 5:<br />

Dona Raimunda contou-me que preferia passar o dia “na mata” do que em casa, o que<br />

contradiria o senso comum sobre o lugar do feminino por excelência na economia doméstica: em<br />

casa e imediações. Esta característica – do gosto pelos serviços externos e que geram renda<br />

monetária – não é privilégio de dona Raimunda. Há uma série de outras mulheres que se dedicam,<br />

ou se dedicaram, aos serviços fora de casa para sustentar seus filhos, estando elas com ou sem<br />

marido. Nos tempos aqui narrados, a seringa era o único meio de obter renda monetária, mas hoje<br />

as opções se diversificaram (venda de produtos agrícolas ou salários de agentes de saúde e<br />

professoras, por exemplo).


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Dona Mariana sempre declarou que não gostava de ficar em casa, o que é também<br />

reconhecido por seu marido, filhos e filhas. Entrevistá-la foi sempre uma dificuldade, pois a sensação<br />

de lhe estar empatando o serviço era desconfortável, e mesmo constrangedora. Mesmo com a<br />

saúde debilitada, dona Mariana não entrega os pontos: continua indo ao rio ou igarapé, acompanhada<br />

de netos, lavar roupa; ao roçado plantar batata-doce; à mata buscar paus para cercas ou cipós; ou<br />

ainda na fronteira do terreiro, para plantar e zelar horta ou canteiros.<br />

Mas a preferência pelos “serviços na mata” não exime a mulher das responsabilidades<br />

domésticas. E, claro, há aquelas que preferem os serviços de casa – e primam por eles.<br />

Quando não ia cortar, ou tinha outros trabalhos em casa para fazer (como<br />

lavar roupa, varrer o terreiro, cuidar de criações, tratar e salgar carne de caça, além<br />

de olhar os filhos), de bom grado Raimunda ajudava seu marido nos roçados. E<br />

caçava também a nossa heroína, como da vez em que foi para cortar seringa<br />

acompanhada do filho Sebastião e acabou matando uma onça!<br />

Estamos agora em 1951, ano em que Raimundo Meruoca convidou um<br />

cearense conhecido e sua família para virem morar na Água Fria. Já no mês de<br />

fevereiro os novos moradores e vizinhos chegaram: o velho seringueiro Raimundo<br />

Môco, sua esposa, dona Regina, com a filha Mariana, recém-separada, e três<br />

filhos do primeiro casamento. Mariana e Milton, filho mais velho de Raimunda,<br />

com pouco tempo começaram um namoro. Em janeiro de 1953, Milton<br />

comunicou à mãe que tinha intenção de morar com sua namorada, e dela recebeu<br />

conselhos maternos: de que prestasse atenção já que Mariana era uma mulher<br />

com filhos e que ele estaria, ao ir viver com ela, assumindo uma grande<br />

responsabilidade. Novo do jeito que ele é, tomar conta logo de uma carga, vai acabar<br />

abandonando – preocupava-se.<br />

O filho Milton trouxe a companheira para morar com ele, vizinhos à casa de<br />

sua mãe e padrinho. Em <strong>dez</strong>embro de 1954, quando dona Regina, a mãe de Mariana,<br />

morreu, o jovem casal decidiu se mudar para as águas do Tejo, onde um parente os<br />

receberia. Dona Raimunda e seu marido resolveram sair também da colocação<br />

Água Fria. A convite do patrão do seringal Bom Jardim, Ribamar Mourão, já<br />

conhecido de seu Raimundo Meruoca, ele, a esposa e os filhos menores foram<br />

morar na colocação Estirão da Canafista. Lá, seu Raimundo Meruoca passou a<br />

trabalhar por diárias para o patrão.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

93


Considerações finais<br />

Gênero e etnia<br />

94 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

Uniões, filhos e filhas de dona Raimunda<br />

Manuel Raimunda Pedro<br />

Miguel Raimundo<br />

Tibúrcio<br />

Meruoca<br />

1 2 3 4 5 6 7 8<br />

9 10 11 12 13<br />

1 = Álbia (1929-1966)<br />

2 = menina falecida aos 12 dias<br />

3 = menino falecido c/ menos de 1 ano<br />

4= Seu Milton<br />

5 = Sebastião (1937-anos 70)<br />

6 = menina falecida c/ 1 ano<br />

7 = Manuel (1939-1946)<br />

8 = Francisco (já falecido)<br />

9 = Maria (já falecida)<br />

10 = Raimunda (vive no rio Amônea)<br />

11 = Marli (já falecida)<br />

12 = Teresa (vive em Tarauacá)<br />

13 = Antonio (vive na Foz do Tejo)<br />

A vida para índias pegas em correrias devia ser árdua no contexto de seringal.<br />

Há uma desigualdade de gênero e há uma desigualdade étnica entre as índias<br />

capturadas e os brancos captores, que se acentua pelo isolamento social gerado pela<br />

captura, separando as índias pegas de seus parentes e de sua proteção. Com certeza<br />

havia algum estigma, como parece indicar o fato de dona Regina jamais ter oficializado<br />

alguma das muitas uniões conjugais que teve, o que é justificado por sua filha pelo<br />

fato de ser índia ou cabocla.<br />

Índias capturadas têm destino decidido à sua revelia, são entregues a<br />

seringueiros como esposas. Não há escolha, o que teve, no caso da irmã da menina<br />

Regina, trágicas consequências: foi levada para longe de sua terra e parentes vivos, e<br />

lá foi assassinada. Dona Regina (e talvez também sua madrasta), por outro lado, teve<br />

a chance de aos poucos retomar as rédeas de sua vida como índia e mulher, fazendo


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

escolhas, não totalmente livres, mas com certo grau de liberdade. Suas uniões e<br />

separações conjugais indicam isso, e não uma submissão passiva ao companheiro.<br />

Espero ter tornado claro que, ao longo do tempo, dona Regina construiu<br />

para si (e sua filha enquanto estiveram juntas) um projeto de vida; o projeto possível<br />

dado pelas circunstâncias históricas, pela sua condição de índia e mulher, pela rede<br />

de relações em que estava inserida – e pelas suas esperanças e vontades. 21<br />

Mas podemos pensar também que aos caboclos homens, na sociedade de<br />

seringal, também se colocaram desafios similares, a começar pelo representado pelo<br />

marcador étnico atribuído a eles e expresso no rótulo “caboclo”. Pedro Tibúrcio<br />

era um seringueiro caboclo, isto é, um índio amansado e criado por cariús, separado,<br />

portanto, do seu grupo de origem. Para pessoas como ele, a possibilidade de escolhas<br />

na vida já foi determinada por esta falta de escolha inicial. O fato de ser um caboclo<br />

não fazia com que se identificasse com os caboclos seringueiros, ou seja, aqueles que,<br />

embora também desterritorializados, viviam em malocas e construíram outras<br />

estratégias de vida, como os índios Kaxináwa do Jordão. 22<br />

Pessoas como Pedro Tibúrcio foram alvo de discriminação, e tiveram<br />

que construir para si caminhos próprios dentro do possível. Os parentes mais<br />

próximos de dona Raimunda opunham-se a sua união com Pedro, saindo um<br />

irmão de casa para não presenciar sua partida com o novo companheiro. Segundo<br />

dona Raimunda, um dos motivos seria o fato de Pedro ser um caboclo.<br />

Preconceito, deixa entender a fala de dona Raimunda. Mas ela diz que nunca se<br />

importou com isso. Mesmo porque, ressaltou, Pedro era um caboclo criado desde<br />

pequenininho com os cariús. Dizia-se até que ele não seria “índio puro”, pois tinha<br />

muito cabelo e pêlos pelo corpo.<br />

De interesse histórico e sociológico, é ainda a forma como dona Raimunda<br />

e dona Regina lidaram com sua condição de mulheres nos seringais do Jordão, na<br />

primeira metade do século 20. Dona Regina, num período de 24 anos (1913-1937),<br />

teve seis homens em sua companhia, e dona Raimunda, em nove anos (1928-1937),<br />

dois. Num primeiro momento, pode-se interpretar este fato pela alardeada “escassez<br />

de mulheres” nos seringais, o que acarretaria uma pressão extrema para que se<br />

casassem. Com efeito, nos primeiros tempos de abertura dos seringais do Alto<br />

Juruá havia um desequilíbrio demográfico entre os sexos, mas que, a partir da pri-<br />

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96 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

meira crise de 1912, começou a ser compensado com a importância de grupos<br />

domésticos constituídos para a sobrevivência na floresta (WOLF, 1999).<br />

A pressão sobre as mulheres não desapareceu, e prova disso são os casamentos<br />

de homens com moças ainda na puberdade e o assédio a recém-separadas<br />

ou viúvas. Mas o argumento que quero enfatizar é que o fato estrutural da<br />

escassez de mulheres foi por elas mesmas utilizado como pressuposto de estratégias<br />

e escolhas – mulheres de diferentes faixas etárias podem abandonar seus<br />

maridos e cruzar fronteiras de seringais sabendo que irão quase inevitavelmente<br />

achar um novo companheiro. Bem interessante para contrapor-se a uma visão<br />

onde as mulheres aparecem como vítimas ou dominadas pelos homens. Tudo<br />

aponta para uma margem de manobra.<br />

Ciúme, não providenciar o necessário, ou não se encarregar das<br />

responsabilidades socialmente reconhecidas como suas – tudo isso pode<br />

perfeitamente levar uma esposa a deixar o seu marido, mesmo sendo a mulher uma<br />

cabocla ou reconhecendo o quão difícil é criar os filhos sem um pai, um marido ou<br />

responsável. Quando insatisfeitas, dona Regina e dona Raimunda deixaram seus<br />

companheiros e procuraram novos, como foi o caso do piauizeiro Modesto e do<br />

acreano Manuel Bandeira, que foram sucedidos, respectivamente, por Luis Alves e<br />

Pedro Tibúrcio, cuja morte separou-os de suas companheiras.<br />

Dona Regina permaneceu morando na casa de um homem casado,<br />

enquanto a dona da casa foi viva, como uma espécie de segunda esposa, a convite<br />

da primeira. Um bom motivo para ter permanecido na casa pode ter sido o fato<br />

de estarem, ela e o filho, sendo acolhidos numa casa, com comida e proteção.<br />

Esta possibilidade não deve ser menosprezada; é preciso sempre levar em<br />

consideração que há uma pressão moral, social – e também material – para que<br />

a mulher faça-se acompanhar de um homem. Dona Regina não tinha marido ou<br />

filhos adultos que provessem o seu sustento; dependia da boa vontade de<br />

compadres e conhecidos. Mas, além disso, ela gostara de Nazaré, com quem se<br />

entendia bem, e dos filhos e filhas desta, conforme deixa claro dona Mariana. A<br />

amizade entre as duas mulheres comportava compartilhar o mesmo homem.<br />

Pode ser ainda que Regina tenha simpatizado com Nascimento, por que não?<br />

Mas um homem sem mulher também não é conveniente, como alertou a<br />

madrinha Madalena ao pai de dona Raimunda; e crianças sem mãe também, em<br />

especial do sexo feminino.


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

Ritualizações do parentesco: o compadrio<br />

Dona Regina construiu uma extensa rede de parentes rituais 23 com famílias<br />

de seringueiros cariús, e ela e sua filha Mariana foram amparadas e acolhidas por<br />

esses compadres e comadres em diversas ocasiões de suas vidas. 24 Miguel Joaquim e<br />

Ramiro, este em especial, são muito mencionados na narrativa de dona Mariana<br />

sobre seus tempos de moça com a mãe: moraram e trabalharam na casa de ambos,<br />

mas nunca inteiramente de favor; sempre ajudaram nas despesas domésticas.<br />

Mas há compadres e compadres, como em todo lugar; e há aqueles que,<br />

mesmo sendo, parecem não ser. Vejamos o caso do compadre Nascimento. Sim,<br />

porque este último supostamente tornou-se compadre de dona Regina no<br />

momento em que ela fez o parto de sua esposa: parteiras viram comadres dos<br />

pais da criança vinda ao mundo por suas mãos. 25 Ou seja, tanto Nazaré como<br />

Nascimento ter-se-iam se tornado comadre e compadre, respectivamente, de<br />

dona Regina. Mas apenas o compadrio com Nazaré foi mencionado por dona<br />

Mariana, e mesmo assim indiretamente, quando ela se referiu ao fato de Mocinha<br />

ser “comadre de estimação” da mãe: na verdade, quem era comadre de dona<br />

Regina, explicou-me dona Mariana quando a inquiri, era Nazaré. Das relações<br />

entre dona Regina e Nascimento, por outro lado, ficou a memória de que dona<br />

Regina foi, durante um período, rapariga de Nascimento – o que ocorreu com o<br />

consentimento de Nazaré, a esposa. Esta situação, por si só, iria contra a (pretensão<br />

de) interdição sexual que supõe o compadrio (ver à frente). Será que o<br />

consentimento de uma das partes é um atenuante? Mas o ponto aqui não é se a<br />

transgressão é desculpada, e sim o fato de que é ignorada na memória. Será que<br />

o fato de dona Regina ser uma cabocla e, no Tejo, duplamente desterritorializada, 26<br />

apagou ou substituiu o compromisso entre compadres, e consequentemente a<br />

interdição sexual que o compadrio implica? Este é um caso interessante.<br />

O caso de Ramiro é diferente, e igualmente interessante. Por ter gerado uma<br />

filha de Nascimento, dona Regina, mesmo nunca tendo vivido como sua esposa, era<br />

“cunhada” do irmão de Nascimento, Ramiro. Ramiro era, portanto, tio de dona<br />

Mariana e pai das primas de dona Mariana. Ao parentesco por afinidade entre dona<br />

Regina e Ramiro, contudo, sobrepôs-se uma relação de compadrio. Pode-se pensar<br />

aqui, como sugere Mauro Almeida, que a sobreposição de laços de compadrio<br />

entre parentes afins tem o papel de, ao criar novos laços rituais, criar também barrei-<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

ras ao tornar tabu relações sexuais entre os que contraem este parentesco ritual,<br />

podendo ser vista como medida preventiva ou demarcadora de limites. 27 O autor<br />

observou, entre cunhados e cunhadas que se tornam compadres e comadres, uma<br />

grande liberdade no trato mútuo entre o compadre e a comadre – que passam<br />

assim a se referir um ao outro – , com jogos de palavras e brincadeiras provocativas,<br />

mas que não oferece perigo dado o compadrio. 28<br />

Não foi privilégio de dona Regina usufruir das vantagens do compadrio. A<br />

menina Raimunda teve a sorte de ter sido batizada por uma zelosa madrinha, que<br />

assumiu para si a incumbência de criar a afilhada quando a viu sem mãe.<br />

A expansão da rede de parentes rituais torna-se possível porque o compadrio,<br />

vimos, não se estabelece somente pelo batismo ou crisma, ocasiões rituais formalmente<br />

reconhecidas pela Igreja Católica. Sob as bençãos de santos das festas juninas, e de<br />

acordo com as conveniências das partes interessadas, pode-se “passar fogo” com<br />

quem se deseje estabelecer compadrio: são os compadres e comadres “de fogueira”.<br />

29 É possível ainda tornar-se “primo(a) de fogueira” ou “padrinho/madrinha<br />

de fogueira”. O parentesco ritual “de fogueira” pode indicar a solidificação de uma<br />

amizade, a tentativa de evitar disputas, tornando parentes os oponentes, ou o respeito<br />

que se quer prestar ou obter. 30<br />

“Passar fogo” pode ser também um expediente de estabelecer laços rituais<br />

entre pessoas que deveriam reger suas relações pela consangüinidade, mas que são<br />

afins – e neste sentido talvez seja uma forma de consangüinização. Neste último caso<br />

identificaria o caso de seu Milton com relação ao seu padrinho Meruoca, que<br />

continuaria a ser “padrinho” de seu Milton mesmo que viesse a se separar de dona<br />

Raimunda – e neste sentido a relação não era reversível, como é o parentesco entre<br />

afins. 31 Morando sobre o mesmo teto e sendo seu Raimundo Meruoca o chefe da<br />

casa, ao amanhecer, ao invés do simples “bom dia”, todos pediam a benção ao<br />

“padrinho” da mesma forma que pediriam a um pai, ou a outro parente consangüíneo<br />

(avô e tios). Desta forma, seu Raimundo Meruoca tornou-se parente de seu Milton,<br />

e pode-se pensar que o tratamento de “padrinho”, no caso, consagrou um pai ritual. 32<br />

Estendendo a rede de parentes rituais que abrange a população dos seringais,<br />

há ainda o compadrio com a parteira, mencionado há pouco: a mulher que “pega”<br />

o recém-nascido torna-se automaticamente “mãe velha”, ou “madrinha de umbigo”,<br />

da criança, que sempre lhe tomará a benção; e comadre dos pais, que assim<br />

passarão a se tratar mutuamente: como “comadre” e “compadre”. Uma parteira


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

renomada assiste sua rede de parentes rituais crescer gradativamente e tornar-se um<br />

precioso capital: signo de respeito e deferência, favores e presentes.<br />

Afetividade e parentesco<br />

Finalmente, encerraria esta seção final chamando atenção para alguns elementos<br />

a fortalecer ou enfraquecer laços afetivos dentro dos grupos de parentesco que se<br />

formam, se dissolvem ou se transformam.<br />

O marido que providencia as coisas necessárias ao sustento de seu grupo<br />

doméstico 33 (mercadorias, caça, farinha), que trata bem sua esposa e filhos, inclusive<br />

os eventuais enteados e enteadas, recebe um sinal positivo. O homem talvez tenha<br />

preferência por uma casa sem enteados, supondo-se que goste de ser o primeiro<br />

marido, quiçá o primeiro homem, da escolhida. Por outro lado, a esposa que “dá<br />

conta de uma casa”, mantendo-a limpa e asseada, e sabe cuidar dos filhos e administrar<br />

os trabalhos domésticos (varrer e passar pano na casa, varrer o terreiro, lavar a<br />

louça e a roupa, cozinhar, entre outros), é por sua vez valorizada. Homens afirmam<br />

querer uma mulher que “zele suas coisas”, isto é, que o auxiliem a construir um<br />

patrimônio. Por “suas coisas” entenda-se não só a casa e seus bens (roupas, rádios,<br />

gravadores), mas também as criações de terreiro, cabeças de gado e roçados. A<br />

mulher desejada é aquela que coopera com o marido para a prosperidade da casa.<br />

Ciúme e “malva<strong>dez</strong>a”, expressos como violência, são traços que depõem<br />

contra qualquer homem, e podem levar uma esposa a abrir mão da (relativa)<br />

segurança doméstica. E parecem ser motivos fortes, ao menos para dona<br />

Raimunda e dona Regina, que mesmo com filhos optaram por abandonar seus<br />

companheiros. Por outro lado, uma mulher ciumenta ou “arengueira” pode<br />

enfrentar dificuldades em manter seu casamento, já que o homem não gosta de<br />

ter sua liberdade e virilidade vigiadas.<br />

Muitas esposas afirmam “gostar” de seus maridos, e aturam suas infidelidades.<br />

O caso de Nazaré, esposa de seu Nascimento, é bem interessante, pois este “gostar”<br />

traduzia-se não só em aturar as infidelidades do marido como também em zelar<br />

por sua segurança e arranjar para ele uma segunda mulher. Suportar traições conjugais<br />

pode ser efeito também de pressão social – já que existe, de fato, um padrão de<br />

poligamia tolerado para os homens. De toda forma, esposas não exigem propriamente<br />

fidelidade de seus maridos, ou outros atributos do “amor cavalheiresco”,<br />

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100 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

mas sim o que mencionei acima: que ele seja provedor da casa, que a trate sem<br />

violência e da mesma forma trate filhos(as) e enteados(as).<br />

Há a afetividade entre pais e filhos, entre padrastos (incluindo o caso de<br />

padrastos-padrinhos) e enteados (que podem ser também afilhados), onde o ritual<br />

de pedir e receber a benção é um signo de afeto, respeito e consolidação da relação<br />

– afetiva e hierárquica. A repetição mecânica do ritual ganha com o tempo uma<br />

densidade significativa construída na experiência da convivência e de sua interpretação. 34<br />

Assim, a afetividade entre aqueles que ocupam a posição de pais e de filhos, mesmo<br />

sem o ser originalmente, pode ser reforçada e tornada mais íntima. O afeto entre<br />

mãe e filha presente na relação entre dona Mariana e dona Regina foi, ao longo da<br />

vida em comum de ambas, regado à convivência e amizade, companheirismo e<br />

ajuda mútua, obediência, respeito e fidelidade.<br />

Notas<br />

1 Expedições armadas que, no início do século 20, na região do Alto Juruá, tinham<br />

por objetivo exterminar, expulsar e/ou capturar grupos indígenas, liberando assim<br />

extensos territórios para o estabelecimento de seringais.<br />

2 Para melhor compreensão das trajetórias de vida a serem narradas, consultar mapa<br />

e genealogias em anexo.<br />

3 Etnia do tronco lingüístico Pano, majoritário na região do Vale do Juruá acreano.<br />

4 Barracões eram entrepostos comerciais dos patrões, donos dos seringais. Nos<br />

barracões, os seringueiros deveriam entregar toda a borracha que produzissem<br />

nos seus locais de moradia, as colocações, e comprar as mercadorias (artigos<br />

industrializados) de que necessitavam para viver, como sal, munição, óleo, café etc.<br />

5 “Centro” está em oposição a “margem”, caracterizando, respectivamente, colocações<br />

localizadas no seio da mata e próximas da (ou na) margem do rio.<br />

6 Amansados, ou índios mansos, estavam em oposição aos brabos, índios não<br />

contactados e incorporados ao sistema de seringais. Ainda hoje os grupos índios<br />

“isolados” existentes nas cabeceiras de vários rios acreanos são também<br />

denominados brabos.<br />

7 No Acre, o termo “caboclo (a)” é sinônimo de índio (a). É um termo de atribuição<br />

mais do que de auto-atribuição, e em determinados contextos pode ter um<br />

tom pejorativo. Dona Regina, ao ser chamada de “cabocla”, tinha ressaltada sua


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

ascendência e conhecimentos da floresta, o que devia inspirar respeito e talvez<br />

também temor.<br />

8 Isto é, as altas colinas onde nascem rios e igarapés afluentes do rio Tejo, por um<br />

lado, e do rio Jordão, por outro, demarcando fronteiras naturais.<br />

9 A posição de “rapariga” não deve ser confundida com a da mulher que é “junta”<br />

com um homem. Estar “junto” é o estado civil em que o casal mora junto mas<br />

não formalizou a união perante um padre ou juiz. Este tipo de união conjugal<br />

é bastante comum nos seringais do Alto Juruá (quase 30%, em 1995), e<br />

reconhecida como legítima.<br />

10 Verão é como é conhecido o período sem chuvas, de seca, e que compreende, no<br />

Acre, os meses de abril a setembro, em contraposição ao chuvoso inverno, de<br />

outubro a março. O princípio é a primeira etapa na produção de uma péla de<br />

borracha, que é redonda e pesa em torno de 60 quilos.<br />

11 Renda era o pagamento anual obrigatório a que todo seringueiro estava sujeito<br />

pelo uso das estradas de seringa, caminhos na mata onde naturalmente estão<br />

dispostas as seringueiras. Por cada estrada de seringa explorada, o seringueiro<br />

devia pagar 33 quilos de borracha por ano; em média, um seringueiro cortava<br />

duas estradas, reservando, portanto, 66 quilos de sua produção anual de borracha<br />

para pagar a renda.<br />

12 Ou “Mouco”, ou melhor, “ruim das ouças”, isto é, pessoa que não ouve bem.<br />

13 Ou seja, não se tratava de uma “moça”, jovem e/ou virgem, mas de uma mulher<br />

que já “conhecia homem”, fora casada e tinha filhos para criar. Seu Milton, por<br />

sua vez, era ainda um “rapaz”, jovem e trabalhando para a casa dos pais,<br />

supostamente sem maturidade para manter uma casa (grupo doméstico).<br />

14 “Baixar” significa viajar rio abaixo, no caso das cabeceiras, onde dona Raimunda<br />

morava, para as cidades mais próximas, onde haveria assistência médica.<br />

15 Esta entrevista foi concedida a Cristina Scheibbe Wolff, historiadora, professora<br />

da UFSC e autora de um pioneiro trabalho sobre a presença feminina nos seringais<br />

do Alto Juruá (WOLFF, 1999).<br />

16 O rio Breu localiza-se na fronteira do Brasil com o Peru, é um afluente do Juruá,<br />

bem distante do Tejo.<br />

17 Pedro Tibúrcio foi capturado em correria no rio Envira, tendo, conta a história,<br />

sido o único sobrevivente do massacre do povo de sua maloca. Foi criado por<br />

seu captor, Antonio Tibúrcio.<br />

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102 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

18 Para um aprofundamento deste ponto, consultar Pantoja, 2004.<br />

19 Voltas de estrada são pequenos trechos de uma estrada de seringa, que podem ser<br />

cortados por mulheres ou por filhos iniciando-se no corte da seringa.<br />

20 As pequenas pélas (e talvez meros princípios) deviam pesar entre 20 e 30 quilos e<br />

eram vendidas para compras isoladas como a marreteiros ou em visitas ao barracão.<br />

Esta prática seria aceita no caso de uma esposa ou filha de seringueiro, que estaria<br />

vendendo uma borracha que “era dela”, e não amarrada ao pagamento de débitos<br />

– a dívida – no barracão.<br />

21 Aqui a referência principal é Sartre (1979 [1966]), quando afirma que somos, na<br />

verdade, aquilo que fizemos do que fizeram de nós.<br />

22 Sobre os Kaxináwa do Jordão, consultar Aquino e Iglesias (1994).<br />

23 Por parentes rituais entendo aquelas pessoas cujas relações são descritas por termos<br />

de parentesco, ou derivados do idioma do parentesco, mas que não são<br />

estabelecidas por filiação e casamento, e que não se confundem com esses princípios<br />

(cf. PITT-RIVERS, 1968, p. 408-413).<br />

24 Entre autores que se detiveram sobre o compadrio em áreas rurais (também<br />

da Amazônia), é praticamente unânime o reconhecimento de que este<br />

parentesco ritual cria mecanismos de reciprocidade, solidariedade e ajuda<br />

mútua, reforçando laços de vizinhança e de parentesco pré-existentes.<br />

Consultar, por exemplo, Wagley, 1988 [1953], p. 162-169; Woortmann, 1967;<br />

Candido, 1971[1964]; Fukui, 1979[1972] e Arantes, 1975.<br />

25 Quando uma parteira corta o umbigo do recém-nascido e se torna sua<br />

“madrinha de umbigo”, automaticamente ela também se torna “comadre” do<br />

pai da criança e “comadre” da mãe da criança. Este caso é diferente do<br />

compadrio de fogueira, que não implica necessariamente ser “padrinho”/<br />

“madrinha”, embora uma relação de “padrinho”/“madrinha” possa ser<br />

estabelecida na fogueira; por sua vez, tornar-se “padrinho”/“madrinha de<br />

fogueira” não acarretará o compadrio com os pais do afilhado(a).<br />

26 A origem de dona Regina remontava ao Envira, e depois ela reconstruiu sua<br />

rede de relações sociais no rio Jordão. No Tejo, portanto, ela não tinha história<br />

ou relações construídas.<br />

27 Almeida, 1993, p. 189-190.<br />

28 Como pode ser ouvido nos seringais, “a pior [ou mais quente] cama do inferno é<br />

a cama do compadre com a comadre” (cf. ALMEIDA, 1993, p. 190). Lia Fukui


Mariana Ciavatta Pantoja<br />

(1979 [1972], p. 163) também encontrou, entre sitiantes do sertão nordestino,<br />

tabus sexuais nas relações entre compadres e comadres. Ver também Wagley,<br />

1988 [1953], p. 166.<br />

29 Ver também Wagley, 1988 [1953], p. 164-165 e Fukui, 1979 [1972], p. 220.<br />

30 O compadrio por batismo também pode ter esses significados, mas quero<br />

apontar para o expediente que pode ser acionado quando não se tem filhos<br />

para batizar. Sobre o compadrio no Alto Juruá, consultar Almeida, 1993, p.<br />

187-190; Araújo,1998, p. 52 e 116; e Martini, 1998, p. 141-143.<br />

31 Claro que somente o laço não constrói a relação; há que ter convivência,<br />

experiências compartilhadas e afeto – e isso é válido para todo o parentesco,<br />

ritual ou não. Ver seção seguinte e, para maior desenvolvimento do tema,<br />

Pantoja, 2004.<br />

32 Ou indicou o estabelecimento de um “parentesco fictício”, que Pitt-Rivers (1968,<br />

p. 409) distingue do “parentesco ritual”: aquele indicaria que Meruoca de fato<br />

adquiriu o status similar ao de um pai “natural”.<br />

33 Grupo doméstico são os moradores de um domicílio, em geral formado de<br />

parentes, mas não só. O grupo doméstico pode incluir outros moradores<br />

sem nenhum grau de parentesco, como agregados e empregados residentes<br />

(cf. ALMEIDA, 1986).<br />

34 Assim, social e individual se encontram – e a referência aqui seria Renée Pascal.<br />

Para este importante pensador e matemático francês é preciso começar com o<br />

ritual – por exemplo, ajoelhar e rezar; a fé, uma elaboração individual, vem<br />

depois (devo esta referência a Mauro Almeida). Uma coisa é repetir uma oração<br />

apreendida, outra bem diferente é vivê-la como verdade íntima. Cf. também<br />

Radcliffe-Brown, 1964[1922].<br />

Referências<br />

ALMEIDA, Mauro W. B. de. Redescobrindo a família rural. Revista Brasileira de Ciências<br />

Sociais, São Paulo, n. 1, 1986, p. 66-83.<br />

ALMEIDA, Mauro W. B. de. Rubber tappers of the upper Juruá river, Brazil. The<br />

making of a forest peasant economy. Tese (Doutorado em Antropologia). University<br />

of Cambridge, 1993.<br />

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Mulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade<br />

AQUINO, Txai Terri V. de e IGLESIAS, Marcelo P. Kaxinawá do rio Jordão. História,<br />

território, economia e desenvolvimento sustentado. Rio Branco: Comissão<br />

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ARANTES, Antonio A. A Sagrada Família – uma análise estrutural do compadrio.<br />

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ARAÚJO, Maria Gabriela J. de. Entre almas, encantes e cipó. Dissertação (Mestrado<br />

em Antropologia). Campinas: Unicamp, 1998.<br />

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades,<br />

1971 [1964].<br />

FUKUI, Lia F. G. Sertão e bairro rural: parentesco e família entre sitiantes tradicionais.<br />

São Paulo: Ática, 1979 [1972].<br />

MARTINI, Andréa. Tecendo limites na foz do Breu, Alto Juruá, Acre, Brasil.<br />

Dissertação (Mestrado em Antropologia). Campinas: Unicamp, 1998.<br />

PANTOJA, Mariana Ciavatta. Os Milton. Cem anos de história nos seringais. Recife:<br />

Editora Massangana, 2004.<br />

PITT-RIVERS, J. Pseudo-Kinship. In: SILLS, David L. (Ed.). International Encyclopedia<br />

of the Social Sciences. The Macmillan Company & Free Press, 1968, p. 408-413.<br />

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Andamaneses: rituais. In ___________.The Andaman Islanders. Tradução de Mauro<br />

de Almeida. Nova Iorque: The Free Press, 1964[1922], p. 229-329.<br />

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WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia/<br />

Edusp, 1988 [1953].<br />

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WOORTMANN, Klaas A. A. Grupo doméstico e parentesco num vale da Amazônia.<br />

Revista do Museu Paulista, vol. XVII. São Paulo, USP, 1967.


O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos no manejo<br />

ecológico do solo em uma comunidade amazônica<br />

Albejamere Pereira de Castro*<br />

Therezinha de Jesus Pinto Fraxe**<br />

Hedinaldo Narciso Lima***<br />

Resumo<br />

Os estudos das técnicas de manejo do solo e da vegetação secundária vêm sendo<br />

realizados na Amazônia dentro dos sistemas agroflorestais como forma de aumentar<br />

a sustentabilidade desse sistema de produção. Esta pesquisa tem como objetivo,<br />

diante da importância do manejo do solo, pelo uso do pousio, na agricultura familiar,<br />

descrever e analisar as técnicas utilizadas pelos agricultores tradicionais na recuperação<br />

do solo nos subsistema de produção roça, bem como as principais espécies<br />

utilizadas para o enriquecimento da capoeira.<br />

Palavras-chave: : agricultores tradicionais; sistema agroflorestal; vegetação<br />

secundária.<br />

Abstract<br />

The studies of the techniques of the management of the soil and of the secondary<br />

vegetation to come being carried in Amazon in the of the systems agroforest, as<br />

form of the increase the sustainability of this production system. This paper objective<br />

to described and to analyzed, due to importance of the management of the soil, by<br />

use of the fallowing, in family agriculture, the technique used by traditional farmers<br />

in recover of the soil undersystem of the production roça, as well the species principals<br />

used to enrich the secondary vegetation.<br />

Keywords: traditional farmers; system agroforests; secondary vegetation.<br />

* Doutorando em Agricultura Tropical. Universidade Federal do Amazonas. E-mail: albejamere@ufam.edu.br<br />

** Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Agronomia Tropical/PPGAT/FCA. Universidade<br />

Federal do Amazonas. E-mail: tecafraxe@uol.com.br<br />

***Doutor em Agronomia (Solos e Nutrição de Plantas). Professor do Programa de Pós-Graduação em Agronomia Tropical/<br />

PPGAT/FCA. Universidade Federal do Amazonas. E-mail: hedinaldo@ufam.edu.br<br />

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Introdução<br />

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O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

A agricultura praticada pelos caboclos-ribeirinhos da Amazônia tem como<br />

principal característica o processo de corte e queima para implantação do subsistema<br />

produtivo (roça), visando à subsistência das famílias das comunidades locais. Após a<br />

redução da fertilidade do solo, essas roças são “abandonadas” e tomadas pela<br />

vegetação de pousio denominada de capoeira ou vegetação secundária. Essa sucessão<br />

de vegetação tem a capacidade de recuperar parcialmente a fertilidade do solo e<br />

abafar as ervas invasoras (RUTHENBERG, 1980). A fauna do solo, que é diminuída<br />

durante o período do cultivo, retorna, levando a uma retomada do ciclo de nutrientes<br />

e outros elementos dos agroecossistemas (FEARNSIDE, 1989).<br />

Nas regiões da Amazônia com baixa densidade demográfica, as capoeiras<br />

são mantidas por períodos longos de pousio, chegando a ultrapassar doze, quinze<br />

ou mais anos. Porém, em regiões de maior densidade demográfica, as propriedes<br />

geralmente são de áreas menores e, conseqüentemente, ocorre uma certa redução<br />

no tempo de pousio. Então, os pequenos agricultores passam a reutilizar a capoeira<br />

quando esta tem, apenas, três a cinco anos de idade (VIANA; DUBOIS;<br />

ANDERSON, 1996). O tempo curto de pousio afeta o crescimento expontâneo da<br />

vegetação e o tempo hábil para a reciclagem dos nutrientes necessários ao solo.<br />

Devido à redução da fertilidade dentro dos sistemas agroflorestais, outras<br />

práticas são realizadas para manter a sustentabilidade dos sistemas produtivos nas<br />

comunidades amazônicas tradicionais. Muitos sistemas de produção praticados por<br />

essas populações geralmente não foram bem descritos e estão correndo o risco de<br />

serem esquecidos. Os caboclos-ribeirinhos possuem vasto conhecimento dos<br />

ecossistemas amazônicos. Utilizam materiais que podem ser agrupados em: manejados<br />

(espécies vegetais introduzidas nas roças) e não-manejados (castanheiras, árvores de<br />

cipó e palmeiras) (HIRAOKA, 1992).<br />

Uma das técnicas utilizadas pelos caboclos-ribeirinhos é o uso do pousio e<br />

o enriquecimento das capoeiras entre períodos de cultivos, o que permite a<br />

sustentabilidade dos sistemas produtivos nessas comunidades. Devido a importância<br />

ecológica da prática do pousio, outras alternativas são sugeridas, a partir de pesquisas<br />

agroflorestais, para que sua função seja satisfatória, e, ainda, se obtenha a melhoria<br />

da fertilidade do solo, em menor período de tempo ou sobre uma área menor do<br />

que seria necessário no pousio tradicional. O objetivo deste trabalho é descrever e<br />

analisar as técnicas ou práticas utilizadas pelos agricultores tradicionais do lago de


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

Araras, no município de Caapiranga-AM, bem como: a classificação sobre a vegetação<br />

secundária, manejo do solo no subsistema produtivo roça e as práticas de cultivo<br />

para manutenção da fertilidade do solo.<br />

Procedimento metodológico<br />

O método utilizado foi o estudo de caso, que consiste no exame intensivo<br />

da unidade pesquisada. As técnicas empregadas nesse estudo foram: questionário,<br />

entrevistas abertas e observação participativa. A localidade escolhida para a<br />

aplicação dessas técnicas foi o lago de Araras, que fica a duas horas e meia de<br />

barco da sede municipal, local de difícil acesso e com pouca influência de Manaus.<br />

A sede municipal de Araras está localizada no município de Caapiranga, na<br />

margem esquerda do rio Solimões. Dista da capital do Estado 147 km, em linha<br />

reta e, por via fluvial, 272, 2 milhas.<br />

Inicialmente foram contatadas as famílias de agricultores mais antigos<br />

indicados pelo presidente da comunidade. Em seguida, realizou-se uma reunião<br />

para exposição da natureza do trabalho aos comunitários que participaram da<br />

pesquisa. Após essa etapa deu-se início à aplicação dos instrumentos da pesquisa. A<br />

aplicação de questionário e as entrevistas abertas foram realizadas na residência dos<br />

caboclos-ribeirinhos, enquanto que as observações participativas ocorreram nas<br />

unidades produtivas (roças), no momento em que estavam sendo realizados os<br />

trabalhos nesse subsistema. A pesquisa constou de uma intensidade amostral de 25<br />

% sobre o número total de estabelecimentos, o que corresponde a 141 famílias<br />

estudadas. As informações obtidas foram tabuladas e analisadas por meio de estatística<br />

descritiva, conforme freqüências obtidas dos dados.<br />

Resultados<br />

1. Denominações dadas à vegetação espontânea ou capoeira pelos<br />

caboclos-ribeirinhos<br />

A agricultura dos caboclos-ribeirinhos sofreu grande influência da agricultura<br />

praticada pelos povos indígenas, sendo, até hoje, vivenciada pelas populações rurais<br />

nas comunidades amazônicas. Uma das principais técnicas é o uso do corte e queima<br />

da vegetação, prática que reduz o trabalho na limpeza da área para o cultivo da roça,<br />

além de protegê-la contra insetos pragas e sementes de ervas invasoras. Após a<br />

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108 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

utilização dessas áreas de cultivo, por dois a três anos, estas são abandonadas e<br />

retomadas pela vegetação natural. Várias são as denominações utilizadas na literatura<br />

sobre a vegetação natural que cresce após o abandono da área. A esta vegetação são<br />

dados nomes tais como: capoeira, que, na língua tupi, significa área que outrora foi<br />

florestada (DENICH; KANASHIRO, 1995), vegetação de pousio cultivado ou<br />

vegetação de pousio simultâneo (ANDERSON, 1995).<br />

Outras classificações estão relacionadas ao tempo de pousio, pois este tem<br />

papel fundamental no desenvolvimento da vegetação. Lisboa (1989), Homma et al.<br />

(1993), Noda et al. (1995) e Araújo (1998) correlacionam a vegetação secundária de<br />

pousio em função da idade em que esta se encontra, levando em consideração o fim<br />

do último cultivo da área.<br />

As capoeiras também podem ser denominadas ou classificadas segundo sua<br />

forma de desenvolvimento e tempo de pousio. Viana; Dubois e Anderson (1996)<br />

citam cinco tipos de capoeira: espontânea, de longa duração, de curta duração,<br />

melhorada de longa duração, melhorada de curta duração e capoeira silvipastoril.<br />

No entanto, os caboclos-ribeirinhos, a partir do seu conhecimento sobre os<br />

ecossistemas amazônicos, denominam essa vegetação a partir de parâmetros<br />

perceptivos e observáveis no seu cotidiano. Os agricultores do lago de Araras<br />

correlacionam a vegetação secundária de pousio em função da idade, da altura das<br />

árvores e do diâmetro do caule em que essa vegetação se encontra (Tabela 01). Isto<br />

também é verificado em estudos realizados por Homma et al. (1993) e Scatena et<br />

al.(1996), com populações rurais em Santarém, no Pará. Os pesquisadores<br />

identificaram, por meio de entrevistas com os agricultores familiares, quatro estágios<br />

de vegetação secundária, segundo a idade dessa vegetação: junquira, dois anos de<br />

idade; capoeirinha, dois a quatro anos de idade; capoeira, quatro a <strong>dez</strong> anos, e<br />

capoeirão, vegetação secundária com mais de <strong>dez</strong> anos.<br />

Tempo de pousio/ano Denominação local da vegetação secundária<br />

1 a 2<br />

3 a 5<br />

6 a 10<br />

25<br />

Nova, baixa, verde, capoeirinha<br />

Alta, fina, capoeira<br />

Madura, grossa, capoeirão<br />

Velha, de mata<br />

Tabela 01: Denominação da vegetação secundária pela população da comunidade São José, lago<br />

de Araras, Caapiranga-Am.<br />

Fonte: Dados de campo. São José, lago de Araras, Caapiranga-Am, 2004.


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

Todas as denominações citadas estão dentro de dois contextos, relacionados<br />

ao tempo de descanso do solo e à sua vegetação. O primeiro, é a capoeira<br />

espontânea, ou seja, aquela que após ser cultivada é “abandonada”, não havendo<br />

nenhuma intervenção do homem para seu restabelecimento e o segundo, é a<br />

capoeira melhorada, na qual há intervenção parcial ou total do homem para seu<br />

restabelecimento.<br />

2. Pousio de curto período e o uso de técnicas alternativas na<br />

recuperação do solo<br />

Os agricultores familiares amazônicos, na sua grande maioria, não possuem<br />

renda suficiente para comprar adubos minerais. Realizam a prática do pousio como<br />

uma alternativa acessível para manter a fertilidade de suas terras. Durante o período<br />

de pousio o solo é recoberto pela capoeira que, segundo Fearnside (1989) se apodera<br />

das roças “abandonadas” temporariamente, acumulando nutrientes na biomassa das<br />

árvores, restituindo ao solo a porosidade e outras características físicas degradadas<br />

pelo cultivo. Além de aumentar a quantidade de matéria orgânica, proporciona a<br />

redução da temperatura, altera o equilíbrio entre o acúmulo e a decomposição do<br />

húmus no solo.<br />

Os agricultores do lago de Araras praticam uma agricultura tradicional,<br />

rotacional, no manejo do solo, que não causa a degradação do meio ambiente.<br />

Abrem clareiras que variam de dois a cinco ha em áreas que foram deixadas em<br />

pousio, por um período que varia de três a cinco anos, onde instalam suas roças,<br />

com cultivo de diferentes espécies anuais [espécies cultivadas nas roças em consórcio:<br />

mandioca (Aminihot esculenta), cará (Dioscorea alata L.) e banana (Musa ssp.); nas roças<br />

de cultivo solteiro, a malva (Urena lobata L.)].<br />

Os cultivos nas roças permanecem durante um período de três a quatro<br />

anos, dependendo da fertilidade do solo. Em seguida, essas áreas são abandonadas<br />

para a recuperação da vegetação natural. Cerca de 70% dos pequenos agricultores<br />

de Araras passam a reutilizar a capoeira, quando esta tem de três a cinco anos de<br />

idade. Segundo os agricultores, essas áreas não requerem tanto esforço na prática da<br />

limpeza do terreno, o que difere das aberturas de clareiras para cultivos nas áreas de<br />

florestas, as quais demandam mais esforço na limpeza do terreno. Porém, afirmam<br />

os agricultores que o uso constante das áreas (de pousio de três a cinco anos) por<br />

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O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

longo período de cultivos, excedendo os quatro anos, ocasiona a redução da produção,<br />

devido conseqüentemente à exaustão da fertilidade do solo.<br />

Com a redução no tempo do pousio, outras práticas de produção têm sido<br />

utilizadas pelos agricultores tradicionais, o que permitiu, durante séculos, o atendimento<br />

das necessidades básicas de subsistência das populações sob condições ambientais<br />

adversas, sem depender de insumo externo (ALTIERI, 2000, p. 37). Os caboclosribeirinhos<br />

possuem técnicas no manejo dos cultivos que contribuem para a<br />

manutenção da fertilidade do solo em área de curto período de pousio. Segundo os<br />

agricultores familiares de Araras, nas roças de menor tempo de pousio (três a quatro<br />

anos), a capoeira é derrubada e queimada, os restos de partes vegetativas não atingidas<br />

pela queima são empilhadas em montes enfileirados e novamente queimados esta<br />

prática é denominada de coivara; após três a quatro dias, os agricultores abrem<br />

covas nos montes feitos em linhas, anteriormente queimados, para executarem o<br />

plantio das espécies da roça. Esta técnica é denominada pelos agricultores locais de<br />

adubação para cova – que nada mais é do que adubar com cinzas, rica em nutrientes,<br />

o local onde serão cultivados o cará, a banana e a mandioca, entre outras culturas<br />

utilizadas nas roças.<br />

Olhe, quando a gente vai plantar a roça em terra fraca [solos<br />

pobres em nutrientes], onde vai ser a cova do cará, da<br />

mandioca e da banana, nós queima a terra, faz uma coivara,<br />

junta um monte de pau e queima; aí, depois que esfria a<br />

terra, nós abre a cova e planta. A planta dá que é uma<br />

beleza (M. A. C., 54 anos, agricultor, Comunidade São José,<br />

Caapiranga-Am).<br />

Uma prática, também bastante usada pelos agricultores de Araras, nas roças<br />

de malva, é a “adubação” pós-colheita. No último ano de cultivo da roça, denominado<br />

pelos agricultores locais como último “fábrico”, esses agricultores familiares, após o<br />

abandono da área para o pousio, retiram as fibras da lavoura, produto para venda,<br />

e deixam espalhado no local o restante das partes vegetativas da cultura sem as<br />

fibras. Essa técnica, segundo os agricultores de Araras, serve para “estrumar a terra”,<br />

ajudando na recuperação mais rápida da vegetação secundária.<br />

De acordo com os agricultores, quando pretendem utilizar a área<br />

novamente, após o primeiro, segundo ou terceiro cultivo, fazem a queima do


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

“bagaço” (denominação dada pelos caboclos-ribeirinhos às partes vegetativas<br />

da malva sem a fibra), em seguida, deixam o solo esfriar por um a dois dias e<br />

fazem o plantio novamente da roça (malva ou mandioca). Essa técnica faz a<br />

reposição de nutrientes por meio da cinza e garante a proteção contra insetos,<br />

pragas, bichos peçonhentos, que pode prejudicar o agricultor na hora do cultivo<br />

e, por fim, reduz ou elimina as plantas invasoras presentes na área de cultivo.<br />

Depois do último fábrico da malva, a gente corta os feixes e tira a<br />

fibra; nós pega as varas que a gente chama de bagaço, e espalha na<br />

terra, deixa pegar sol até secar aquelas varas, depois que seca e fica<br />

bem sequinho, nós toca fogo, deixa passar uns dias e faz nova<br />

roça. Fica meio que a gente tivesse feito o roçado, antes de plantar<br />

a malva, é a mesma coisa, a terra volta a produzir do mesmo jeito.<br />

Nós só faz isso quando a gente quer usar de novo a terra, quando<br />

não, a gente deixa encapoeirar [virar capoeira]. (M.J.N. P., 40 anos,<br />

agricultora, Comunidade São José, Caapiranga-Am).<br />

Assim, pode-se verificar que uma ampla difusão dos conhecimentos e técnicas<br />

agroflorestais (Quadro 01) repassados pelos índios aos caboclos-ribeirinhos contribui,<br />

de maneira significativa, para a manutenção sustentável dos solos, nas áreas de<br />

produção. Várias são as técnicas utilizadas por essas populações que poderiam fornecer<br />

alternativas para o manejo dos sistemas produtivos, porém pouco se tem descrito<br />

sobre o conhecimento dessa população. Tais técnicas poderão ser acessíveis aos<br />

agricultores familiares não tradicionais. O resgate desses conhecimentos é, portanto,<br />

uma iniciativa importante para o desenvolvimento de estudos agroflorestais,<br />

sociológicos e antropológicos.<br />

Práticas Forma de execução e uso Finalidade<br />

Poda com queima Corte dos galhos e folhas com pequenas<br />

queimas entre as plantas nas<br />

áreas de cultivos.<br />

-Limpeza da área;<br />

-Adubação e redução<br />

do adensamento; e<br />

-Repelente de insetos.<br />

Capina<br />

Os restos vegetais da capina são<br />

queimado e a cinza é misturada à terra<br />

retirada por meio do solo pela capina<br />

(produção de adubo).<br />

-Adubação das árvores<br />

de cultivos; e<br />

-Limpeza da área.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

111


Adubação<br />

Amontoa<br />

Enriquecimento<br />

da capoeira<br />

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O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

- Uso do pau (resto de folhas e galhos<br />

em decomposição) misturado com<br />

terra.<br />

-Ou uso de esterco (excremento<br />

animal de galinha e gado) misturado<br />

ao solo de cultivo.<br />

É empregado na poda, no desbaste e<br />

capina. É o ato de colocar (amontoar)<br />

os restos vegetais resultante da poda<br />

e capina no caule das plantas<br />

cultivadas.<br />

Cultivo de frutíferas e essência<br />

madeireira resistente ao adensamento<br />

das plantas da capoeira.<br />

Quadro 01 - Principais práticas realizadas pelos caboclos-ribeirinhos nos sistemas agroflorestais<br />

na comunidade São José, lago de Araras, município de Caapiranga-Am.<br />

3. Pousio de longo período em áreas de terra firme<br />

-Adubação das hortaliças,<br />

plantas medicinais<br />

e das frutíferas.<br />

-Adubação;<br />

-Manutenção da umidade<br />

do solo; e<br />

-Limpeza.<br />

-Produto para subsistência;<br />

-Madeira e caça; e<br />

-Plantas medicinais<br />

Devido à redução do tempo de pousio, à degradação do solo e à<br />

preocupação com o uso da terra por mais tempo, 25,7% dos agricultores de<br />

Araras, além de utilizarem áreas de capoeira (três a cinco anos), também utilizam<br />

capoeira de longo pousio de 10 ou mais anos. Segundo estes agricultores, essas<br />

áreas são mais férteis que as áreas de capoeira de três a cinco anos e podem ser<br />

utilizadas por mais tempo (três a quatro anos). Estudos realizados por Viana;<br />

Dubois e Anderson (1996) comprovam a importância do tempo longo de pousio<br />

para a recuperação do solo em áreas de solos desgastados, pela ação de longo<br />

tempo de uso pelos agricultores tradicionais. Estes, por meio do seu<br />

conhecimento sobre o ambiente, possuem a capacidade de percepção das melhores<br />

áreas para produção, por meio principalmente da vegetação presente nestes locais.<br />

A capoeira de mata faz a terra ficar forte [rica em nutrientes] para a<br />

gente plantar a roça, a gente vê quando a capoeira tá boa para<br />

preparar o roçado quando os troncos do mato tá grosso. (V. T., 58<br />

anos, agricultor, Comunidade São José, Caapiranga-Am).


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

Os agricultores do lago de Araras abrem clareiras de dois a quatro hectares e<br />

iniciam seus roçados em áreas de florestas ou capoeira de <strong>dez</strong> ou mais anos. De<br />

acordo com o etnoconhecimento dessa população, essas áreas possuem solos mais<br />

férteis. Após três a quatro anos de uso, essas áreas são abandonadas e rapidamente<br />

“cicatrizadas” pela vegetação de pousio. Essa cicatrização rápida se dá principalmente<br />

pela presença da floresta, com sua diversidade de espécies vegetais e animais de<br />

polinização. Verificou-se que geralmente as áreas de florestas eram de propriedade<br />

dos próprios agricultores pesquisados, de parentes ou amigos, os quais eram<br />

denominados pela população local de compadres. Acordos verbais eram<br />

estabelecidos entre os agricultores, garantindo o arrendamento da terra, tendo, como<br />

forma de pagamento, parte da produção ou a disposição de parte da área de<br />

produção do agricultor, caso o arrendatário necessitasse para implantação de nova<br />

roça. Esses acordos verbais proporcionam maior tempo de pousio nas áreas de<br />

produção.<br />

Os agricultores familiares do lago de Araras possuem grande conhecimento<br />

das culturas que devem ser cultivadas nos solos de clareira, aberta em floresta, e das<br />

culturas que são melhores adaptadas em solos de capoeira.<br />

Verificou-se, através dos depoimentos, que o cará (uma espécie de hortaliça<br />

não convencional) não é adaptado em solos de floresta. No entanto, a mandioca e a<br />

banana se desenvolvem melhor nesses solos.<br />

A terra da mata é muito forte [rica em nutrientes] para plantar<br />

o cará, já a terra da capoeira é mais fraca [com baixo teor<br />

em nutriente], o cará si dá mais; lá [no solo de floresta] dá<br />

melhor a mandioca e a banana. (A. J. N. P., 46 anos,<br />

agricultor, Comunidade São José, Caapiranga-Am).<br />

É importante relatar que os caboclos-ribeirinhos em grande parte não possuem<br />

título definitivo de suas áreas e não sabem o tamanho certo destas. O cálculo do<br />

tamanho é feito de um ponto de acidente geográfico a outro. Pode-se dizer que isto<br />

é uma forma de proteger sua localidade da ação de estranhos, o que também, de<br />

certa maneira, era e é realizado pelas comunidades indígenas, sendo essa “posse<br />

verbal da terra” demarcada, ainda hoje, pelos caboclos-ribeirinhos, servindo como<br />

ferramenta importante para resguardar os ecossistemas amazônicos da depredação<br />

da ação dos outsiders dessas áreas.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

113


114 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

A terra da minha família, deixada pelo meu finado avó, vai<br />

da ponta do lago até perto da cabeceira, a frente é aquela<br />

ponta ali, e os fundo dá até no igarapé; de lá começa a do<br />

compadre [...] (A. N. P., 57 anos, agricultor, Comunidade<br />

São José, Caapiranga-Am).<br />

No depoimento do Sr. A. N. P., verifica-se a íntima relação entre o espaço, o<br />

lugar e a memória, sendo esta última um recurso utilizado para demarcar suas terras<br />

no território vivido. Este testemunho sugere uma aproximação com o que Chayanov<br />

(1974) define de sistema agrícola familiar, isto é, a maneira de combinar quantitativa e<br />

qualitativamente a terra, a força de trabalho e o capital, que serve de ferramenta e valoração<br />

para uso e posse da terra pelos agricultores familiares. Verifica-se, também por meio<br />

desse relato, a apropriação do homem demarcando, através do trabalho e da vivência,<br />

seu território, pois o que começa como espaço indiferenciado transforma-se em<br />

lugar à medida que os caboclos-ribeirinhos o conhecem e o dotam de valor por<br />

meio do trabalho e das benfeitorias (construção de casas, casa de farinha, paiol,<br />

instalações para animais e diversos plantios).<br />

As projeções das fronteiras laterais da propriedade funcionam como eixos<br />

imaginários que circunscrevem um espaço legítimo de apropriação. Assim, nas áreas<br />

de várzea alta nesta localidade, a praia ou a vazante que se formam em frente da<br />

propriedade (a moradia, geralmente localizada na parte mais alta da restinga) é um<br />

espaço que a família pode reclamar legitimamente - está circunscrito à projeção dos<br />

marcos divisórios da propriedade jurídica registrada. A esse respeito, Noda et al.<br />

(1995) falam que a legitimação de apropriação individual dos espaços terrestres<br />

mutáveis é, em parte, social e corresponde a um nexo cultural. Há um entendimento<br />

geral, produzido por acordos verbais, em torno dessa prática. As famílias, porém,<br />

recorrem a instrumentos jurídicos – registro de imóveis, recibo de compra e venda<br />

etc. – como referencial legal para aferir os limites de sua apropriação.<br />

4. O enriquecimento da capoeira: técnica de manutenção e sustentação<br />

das famílias caboclas-ribeirinhas<br />

O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos, no melhoramento ou<br />

enriquecimento das capoeiras, principalmente as de longo período de pousio, são<br />

práticas realizadas desde os primórdios da agricultura pelas populações indígenas no


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

Estado do Amazonas. Viana; Dubois e Anderson (1996) indicam, em uma de suas<br />

pesquisas, que várias comunidades de caboclos-ribeirinhos aproveitaram os<br />

ensinamentos repassados por grupos indígenas. Segundo esses autores, as populações<br />

de caboclos que viviam nas margens do rio Cajari, no Amapá, enriqueciam os roçados<br />

abertos ou as capoeiras velhas com castanha-do-brasil, o que favoreceu a formação<br />

de diversos castanhais silvestres.<br />

Os agricultores do lago de Araras, antes de abandonarem suas roças, as<br />

enriquecem com espécies frutíferas (Figura 01). De acordo com os agricultores da<br />

localidade, estes cultivam árvores que resistem ao abafamento do mato da capoeira – isso<br />

significa o aumento do adensamento da vegetação da capoeira, além de cultivarem<br />

espécies de plantas que frutificam rápido, antes que aumente o adensamento da<br />

vegetação secundária. Com o passar do tempo, esses agricultores retornam a essas<br />

áreas para coletar os frutos das espécies anteriormente plantadas. As principais espécies<br />

utilizadas para o enriquecimento da capoeira pela população local estão descritas na<br />

Figura 01, merecendo destaque para a pupunha, a banana e o açaí. A banana, de<br />

acordo com os agricultores, produz mais rápido antes do adensamento total da<br />

vegetação que as outras espécies produzem, mesmo com o adensamento da capoeira.<br />

Figura 01- Principais espécies cultivadas pelos agricultores tradicionais do lago de Araras, no<br />

enriquecimento das capoeiras.<br />

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116 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

A prática de enriquecimento da capoeira, além de ajudar na recuperação<br />

do solo e na produção de produtos para a subsistência dos caboclos-ribeirinhos,<br />

serve como pomar para a fauna silvestre. Isso quer dizer que as plantas<br />

frutíferas, cultivadas nessas áreas, servem de alimento para cutias, pacas, veados,<br />

antas, tatus, dentre outros animais que passam a visitar freqüentemente essas<br />

áreas, ou, até mesmo, a habitar as capoeiras enriquecidas. Segundo os agricultores<br />

tradicionais, esses locais são bons para a prática da caça, para coleta de plantas<br />

medicinais e madeira.<br />

O estudo de técnicas de manejo da vegetação de capoeira, no contexto da<br />

agricultura familiar, vem sendo realizado na Amazônia como forma de aumentar<br />

a sustentabilidade desse sistema de produção. Conforme descrito anteriormente,<br />

o pousio melhorado possui grande potencial para regiões tropicais, uma vez<br />

que consiste na melhoria da capoeira tradicional, mediante a introdução de<br />

espécies de enriquecimento, visando auxiliar a regeneração natural e a manutenção<br />

das famílias. O objetivo principal de tais práticas é diminuir o período de pousio<br />

dessas áreas, gerando um retorno econômico para o agricultor, até que a capoeira<br />

atinja seu potencial biológico e ecológico (LUNZ e FRANKE, 1998). Os dados<br />

evidenciam que os caboclos-ribeirinhos no Estado do Amazonas exercem uma<br />

baixa pressão sobre os recursos naturais, criando uma forma integrada, em seu<br />

manejo que não apenas beneficia sua sobrevivência como provavelmente todo o<br />

ecossistema manejado.<br />

Comentários finais<br />

O sistema de manejo do solo por meio do uso do pousio – prática utilizada<br />

pelos caboclos-ribeirinhos, – que consiste em deixar a terra descansar – tem sido<br />

feito de forma sustentada em área de baixa densidade demográfica, já que a capoeira<br />

deixada por mais tempo, <strong>dez</strong> ou mais anos, propicia condições necessárias para a<br />

recuperação da capacidade produtiva do solo, ou seja, aumenta a quantidade de<br />

matéria orgânica resultante das folhas e partes vegetais sobre a superfície do solo<br />

denominada de liteira. Dessa forma, propicia condições favoráveis para a reabilitação<br />

da fauna do solo, que atua na degradação e decomposição da matéria orgânica,<br />

aumentando a ciclagem dos nutrientes e, conseqüentemente, melhorando as<br />

características químicas, físicas e biológicas no ecossistema. Além dessas vantagens, a


Albejamere de Castro/Therezinha Fraxe/Hedinaldo Narciso Lima<br />

vegetação de pousio proporciona outros benefícios aos agricultores tradicionais, tais<br />

como madeira, frutos, caças e plantas medicinais.<br />

No entanto, à medida que se reduz o tempo de pousio, devido à diminuição<br />

das áreas de cultivo, ocorre redução na produção, em virtude da exaustão do solo<br />

pela redução do tempo de pousio. Com isto, técnicas no manejo do cultivo das<br />

espécies, como a “adubação de cova” por meio da coivara e cobertura morta dos<br />

restos de cultivo da malva são fundamentais para a sustentabilidade das áreas de<br />

produção. Verifica-se que os caboclos-ribeirinhos, para manterem a sustentabilidade<br />

dos seus sistemas produtivos, utilizam técnicas que foram repassadas pelos seus<br />

antepassados nas suas roças. Tais práticas os isentam de produtos utilizados pela<br />

agricultura convencional.<br />

Portanto, há uma necessidade de se fazer mudança de paradigma na<br />

pesquisa agrícola. É necessário, urgentemente, maior ênfase na pesquisa<br />

participativa com agricultores tradicionais, de modo que a difusão dessas práticas<br />

agroflorestais possa contribuir significativamente como alternativa de<br />

desenvolvimento sustentável, por serem acessíveis aos agricultores familiares,<br />

pressupondo-se que são melhor adaptadas à agricultura local, favorecendo, assim,<br />

a conservação dos recursos naturais.<br />

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Amazon estuary. In: ANDERSON, A. B. (Ed). Alternatives to deforestation: steps toward<br />

sustainable use of the Amazon rainforest. New York: Columbia University Press,<br />

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Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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118 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O etnoconhecimento dos caboclos-ribeirinhos...<br />

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FEARNSIDE, P. M. Agricultura na Amazônia. Tipo de agricultura. Cadernos NAEA.<br />

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LISBOA, P. L. B. Estudos florístico de vegetação arbórea de uma floresta secundária<br />

em Rondônia. Bol. Mus. Par. Emilio Goeldi, sér. Botânica, 5 (2), 1989, p. 145-162.<br />

LUNZ, A. M. P e FRANKE, I. L. Princípios gerais e planejamento de sistemas agroflorestais.<br />

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RUTHENBERG, H. Farmig systems in the tropics. 3ed. Oxford: Clarendon Press,1980.<br />

SCATENA, F. N.; WALKER, R. T.; HOMMA, A. K. O.; CONTO, A. ; FERRE, C.<br />

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VIANA, V. M.; DUBOIS, J.C.L.; ANDERSON, A.B. Manual Agroflorestal para a<br />

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Entre o branco e o negro. Política e cultura no início<br />

da trajetória intelectual de Mário Ypiranga Monteiro<br />

Marco Aurélio Coelho de Paiva*<br />

Resumo<br />

A partir das memórias de Mário Ypiranga Monteiro relatadas no livro Mocidade viril<br />

1930, o artigo pretende identificar os fatores sociais atuantes na definição da carreira<br />

intelectual do autor. A relação entre o jogo político e a esfera cultural em inícios da<br />

década de 1930 pode ser deslindada a partir dos fatos ali rememorados e na medida<br />

em que a oposição entre os pólos masculino e feminino surge como termos<br />

expressivos e definidores entre cultura e política.<br />

Palavras-chave: Amazônia, campo intelectual, campo político, moda, região.<br />

Abstract<br />

From the memories of Mário Ypiranga Monteiro denoted in his book Mocidade viril<br />

1930, this article intends to identify the social implications present in his choice for an<br />

intellectual career. The relationship between the politics game and the cultural sphere<br />

at the beginning of the years 1930 can be explained from the facts remembered and<br />

from the emphasis of female and male terms used, both expressing the opposition<br />

between culture and politics.<br />

Keywords: Amazon, intellectual field, politics field, fashion; region.<br />

* Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da<br />

Universidade Federal do Amazonas. E-mail: macp40@ufam.edu.br<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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120 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Entre o branco e o negro...<br />

[...] é um fato reconhecido hoje de todos os espíritos que<br />

refletem que pela gravata se pode <strong>jul</strong>gar quem a usa, e que,<br />

para conhecer um homem, basta dar uma olhada à parte<br />

nele que une a cabeça ao peito.<br />

Balzac<br />

A extensão e a variedade da obra de Mário Ypiranga Monteiro é, sem dúvida,<br />

o resultado de intensa atividade intelectual de uma vida inteira dedicada aos mais<br />

diversos ramos das ciências humanas. Estudos que abarcam desde investigações de<br />

cunho histórico, sociológico e antropológico acerca das populações locais da Amazônia<br />

e estendem-se até um rico levantamento do folclore regional, passando por exercícios<br />

de crítica literária e incursões pela criação poética e romanesca. O conjunto dessa<br />

vasta e múltipla obra pode ser apreendida e interpretada (sem que isso implique<br />

alguma simplificação grosseira) como uma resposta aos inúmeros problemas<br />

suscitados pelas mais diferentes facetas de uma realidade social singular configurada<br />

na região amazônica.<br />

Note-se, porém, que tanto essa delimitação temática imposta pela questão<br />

regional quanto o caráter polígrafo da obra de Mário Ypiranga não podem ser<br />

dissociados de um quadro político e cultural mais abrangente. Foi precisamente<br />

o contexto histórico-cultural configurado a partir dos anos 1930 no Brasil que,<br />

de um modo ou de outro, viabilizou a um conjunto expressivo de intelectuais o<br />

ingresso no campo de produção simbólica ora em expansão, prescrevendo, de<br />

antemão, conforme as posições desigualmente aí ocupadas, as perspectivas<br />

analíticas adotadas e os resultados atingidos em obras diversificadas. No caso<br />

de Mário Ypiranga Monteiro não é difícil identificar na diversidade e<br />

multiplicidade de seus textos e estudos a predominância de uma temática localista<br />

e a adoção de um enfoque analítico limitado em termos de abordagem dos<br />

objetos investigados e dos recursos metodológicos então manejados.<br />

Ora, a busca por rendimentos simbólicos mais certeiros está atrelada<br />

diretamente aos trunfos sociais disponíveis a cada agente social dentro do campo de<br />

produção simbólica, impondo, assim, uma margem de atuação e o uso de<br />

determinadas estratégias por parte dos diferentes atores sociais em concorrência. A<br />

formação diletante e o uso de uma linguagem fortemente ancorada em uma tradição<br />

bacharelesca explicitam as limitações do autor de Mocidade viril 1930 e permitem um<br />

melhor entendimento das opções por ele tomadas acerca das escolhas de objetos de


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

estudo e de perspectivas analíticas, porque constrangidas por determinações impostas<br />

pela lógica do próprio campo intelectual.<br />

São conhecidos os processos através dos quais ocorreu a inserção na vida<br />

intelectual de um punhado de autores em períodos distintos da história cultural<br />

brasileira e, por conseqüência, o modo como se esboçou a estruturação paulatina de<br />

um campo de produção simbólica dotado de uma autonomia relativa frente às<br />

demais esferas sociais, notadamente frente à arena política (ver ALONSO, 2000 e<br />

MICELI, 2001). Mas a articulação entre os estratos sociais dominantes e os intelectuais<br />

apenas nos informa, e de maneira genérica, uma espécie de posição ambígua<br />

desfrutada pelo conjunto dos produtores simbólicos como “fração dominada da<br />

classe dominante” (BOURDIEU, 1992, p. 183). Essa posição social “em falso” a<br />

que estão condenados os intelectuais decorre diretamente da ligação pouco estável e,<br />

no limite, “negativa” que o campo cultural mantém com o campo do poder. A<br />

própria gênese e autonomia do campo de produção simbólica, nesse sentido, acarreta<br />

um distanciamento necessário e gradativo do pólo do poder (BOURDIEU, 1996a)<br />

e, dada a desigual distribuição de um quantum de poder dentro de uma determinada<br />

estrutura social, gera-se a oposição entre um pólo “fraco” (feminino) e um pólo<br />

“forte” (masculino).<br />

Uma relação de homologia pode ser estabelecida entre a disposição dos<br />

intelectuais no campo da cultura e os diferentes agentes e grupos sociais em<br />

disputa no campo político. Essa homologia, por seu turno, permite que<br />

identifiquemos e desloquemos a lógica do “campo de forças” de uma esfera a<br />

outra sem desconsiderar as referências e instâncias específicas geradas pelos<br />

próprios intelectuais enquanto uma categoria social singular, abrindo, dessa forma,<br />

uma visada sociológica mais eficaz acerca da produção simbólica (são exemplos<br />

de aplicação de tal abordagem BOURDIEU, 1996b, LEPENIES, 1996, e<br />

RINGER, 2000). Nesse sentido, o que mais importa é a identificação dos marcos<br />

propriamente intelectuais a regular as diferentes posições em concorrência no<br />

âmbito do campo da produção simbólica a partir de um caso concreto. Mas<br />

toda e qualquer análise empreendida nesse ramo de investigação ganha um melhor<br />

delineamento caso consigamos atingir certas minúcias do processo que leva<br />

alguém de “carne e osso” a engajar-se em uma carreira incerta (e “feminizada”)<br />

como é a carreira intelectual, em detrimento de uma carreira mais consistente (e<br />

“masculinizada”) como é, por exemplo, a carreira política.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

121


122 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Entre o branco e o negro...<br />

Adotando como partido teórico essa perspectiva analítica, a identificação<br />

dos possíveis móveis sociais que teriam levado Mário Ypiranga Monteiro a lançar-se<br />

em uma carreira intelectual tende a tornar-se mais explícita. O livro Mocidade viril<br />

1930 (1996), um relato de memórias, nos fornece não só um breve panorama do<br />

tecido social daquele contexto de inícios da década de 1930 da cidade de Manaus,<br />

mas também permite avaliar como diferentes carreiras abriam-se como opções<br />

possíveis ao jovem Mário Ypiranga através do modo como as recordações vão<br />

sendo enfeixadas na sua narrativa. Cabe ressaltar aqui, entretanto, que o fato de<br />

tratar-se de “memórias” de um indivíduo em particular não desqualifica nem<br />

inviabiliza o tratamento desse material como de interesse sociológico. Como a memória<br />

nunca é somente individual, mas sim resultado de uma combinação dinâmica<br />

entre diferentes quadros sociais, as memórias individuais expressam momentos decisivos<br />

de uma dada “memória coletiva” (HALBWACHS, 2004). Podemos abordar<br />

esse relato memorialístico, portanto, para além de uma obra concebida e escrita pelo<br />

seu autor com o mero objetivo de esclarecer “em pormenor” a fieira de eventos<br />

que culminaram na “revolução ginasiana” de 12 de agosto daquele ano de 1930,<br />

“revolução” esta promovida pelos alunos do Ginásio Amazonense Pedro II, então<br />

o mais importante centro de formação da intelectualidade manauara. (Desnecessário<br />

aqui empreender toda uma história dessa instituição escolar responsável pela<br />

formação de gerações inteiras de intelectuais nativos e de seu papel como um centro<br />

cultural local até a década de 1960 1 ).<br />

O acirramento entre as diferentes forças políticas no cenário nacional no<br />

decorrer dos últimos anos da década de 1920 também se reproduzia no âmbito<br />

local. A nomeação do novo governador Dorval Porto para o quatriênio 1930-<br />

1934 deixava inalterado o quadro político estadual. Apesar do descontentamento<br />

gradativo de largos setores da sociedade manauara e do agravamento da crise<br />

econômica pela qual vinha passando o estado do Amazonas, uma crise sem<br />

perspectiva de chegar a um termo, a continuidade do exercício do poder por<br />

parte daquelas forças tradicionais também parecia não ter fim. O empenho dos<br />

alunos do Ginásio Amazonense em reagir a essa conjuntura e, assim, vislumbrar<br />

uma alternativa que já vinha se desenhando no plano nacional, encontrou,<br />

evidentemente, barreiras e resistências por parte do grupo político alojado no<br />

governo. A “rebelião ginasiana” eclodiu quando o governo mobilizou seu aparato<br />

policial a fim de impedir a realização de um comício concebido e organizado


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

pelos alunos em conluio com os políticos de oposição. Para debelar quaisquer<br />

possibilidades de rebelião, a polícia decidiu cercar o prédio do Ginásio, prender<br />

os líderes e confiscar as suas armas, dado que, juntamente com a atividade escolar<br />

regular, os alunos do último ano recebiam treinamento militar básico. O<br />

cerco redundou numa tensa negociação para que os alunos depusessem as armas<br />

e se rendessem sem maiores conseqüências.<br />

A partir da rememoração desses fatos, conforme esclarece o próprio autor,<br />

tudo o que estivesse relacionado com a rebelião “ginasiana” ficaria definitivamente<br />

esclarecido e livre de qualquer deturpação. A motivação do autor ao relatar e<br />

sistematizar os qüiproquós ocorridos, e isso depois de mais de cinqüenta anos, parece<br />

estar estribada na necessidade de confrontar as versões de todos aqueles que, na<br />

tentativa de tirar algum proveito após vários anos, distorciam a verdade:<br />

[...] Apenas consignamos a verdade, caso contrário esta<br />

cronação perderia, no meio de tanta repetição inexata, seu<br />

próprio valor e objetivo. Valor que significa, em si mesmo,<br />

uma situação inédita na Amazônia, quiçá no Brasil; e o<br />

objetivo – guardar, mesmo que sentimentalmente, a<br />

memória de uma plêiade varonil e desassombrada. O que<br />

aqui está escrito é sem dúvida nenhuma a expressão da<br />

verdade já consabida e referida oportunamente, várias vezes,<br />

nos jornais de Manaus, posto que não nos seus detalhes<br />

intrínsecos, não no seu conteúdo ideológico, não na sua<br />

gratuidade emocional. Esta história precisava ser escrita e<br />

divulgada (MONTEIRO, 1996, p. 24).<br />

[...] Como a história não esquece os fatos, e torna-se<br />

necessário expurgar da sujeira uma idéia que foi elevada e<br />

uma causa a que dedicamos nossas vidas (salvas por<br />

circunstâncias especiais), não comento abertamente, mas<br />

publico as notícias estampadas na imprensa local. A verdade<br />

é que tão digna e santa causa não pode ser maculada por<br />

idéias, palavras e rumores que não autorizam invencionices<br />

nem muito menos o deboche (MONTEIRO, 1996, p. 97).<br />

É possível perceber nesses breves trechos a importância conferida à “revolução<br />

ginasiana” não só pelo próprio autor, mas por todos aqueles que, de um modo ou<br />

de outro, foram tomados por Mário Ypiranga como seus interlocutores diretos<br />

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quanto à interpretação dos fatos. E não se tratava somente de relatar fatos, mas de<br />

desvelá-los à luz dos conflitos ideológicos característicos daqueles anos de conturbação<br />

política. O seu alegado papel de líder na “rebelião” o autorizaria a relatar tudo<br />

com mais fidelidade, debelando, assim, eventuais “adversários internos” à sua própria<br />

geração. Não há dúvida aqui acerca do papel desempenhado pela “revolução<br />

ginasiana” na configuração e definição de uma geração de intelectuais e políticos<br />

manauaras e do conseqüente papel por ela cumprido no desdobramento dos eventos<br />

então vivenciados. O confronto travado com gerações anteriores (“adversários<br />

externos”) não deve ser reduzido, no entanto, a um dado biológico, opondo os<br />

jovens aos velhos, mas ganha melhor compreensão na medida em que uma dada<br />

situação social viabiliza uma dinâmica de renovação de valores e perspectivas<br />

(MANNHEIM, 1982, p. 67).<br />

Ora, tal empreitada de refazer a seqüência dos fatos relacionados com a<br />

“rebelião ginasiana” com o fito de atribuir-lhes um grau de veracidade incontestável<br />

e, com isso, enquadrá-los no panorama político da época, principalmente quando a<br />

memória e o testemunho pessoal servem como elemento de prova, só se torna<br />

viável caso já esteja plenamente consolidado um consistente capital simbólico por<br />

parte do memorialista. Capital simbólico este que fora formado em função da<br />

atuação do autor no campo da cultura e legitimado pelas diferentes instâncias locais<br />

de consagração intelectual ao longo dos anos. A importância da “agostada” de 1930<br />

para Mário Ypiranga Monteiro definir seu ingresso em uma carreira intelectual (e até<br />

mesmo a adoção do seu sobrenome “Ypiranga” ganha aí um sentido e uma<br />

explicação 2 ) reside no fato daquele evento ter representado um momento singular<br />

de cruzamento entre a política e a cultura dentro de um contexto de profundas<br />

alterações em ambas as esferas. Tal fato, por si só, já justifica a análise da obra pelo<br />

prisma de um documento memorialístico e autobiográfico, permitindo não só uma<br />

reconstrução de um momento decisivo da vida do autor, mas também uma análise<br />

sociológica desse microcosmo social representado pelos “intelectuais nativos” de<br />

então, fossem eles manauaras ou não.<br />

Todos os dados e elementos ali reunidos e analisados com o intento de<br />

aclarar possíveis dúvidas relacionadas aos inúmeros fatos ocorridos, e que são relatados<br />

pelo autor como fundamentais para o entendimento de todo o processo que culminou<br />

na versão local da Revolução de 1930, também nos serve de material para detectar<br />

não só as influências intelectuais que o então aluno ginasiano recebia de seus mestres,


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

os quais, por seu turno, converteram-se nas suas primeiras referências propriamente<br />

intelectuais, mas também identificar as barreiras ainda existentes e interpostas a uma<br />

nova geração para possíveis deslanches no âmbito de uma carreira política. Assim<br />

Mário Ypiranga refere-se, por exemplo, a Álvaro Maia, figura ambígua a mesclar o<br />

exercício efetivo de uma “liderança espiritual” e uma “liderança política” potencial<br />

perante os estudantes do Ginásio Amazonense desde as rebeliões ocorridas na cidade<br />

de Manaus em 1924:<br />

Foi no Ginásio Amazonense que comecei a sentir o quanto de<br />

odiosidade havia sido depositado na alma da mocidade contra os<br />

ladrões do erário público. Aquando da invenção da cadeira de<br />

Educação Moral e Cívica (1925) certas aulas proferidas pelo<br />

catedrático Álvaro Maia visavam a despertar em nós interesse pelas<br />

causas em que a pátria ou a sociedade dos homens estivessem<br />

empenhadas; visavam, também, e especialmente, a fixação de<br />

padrões de comportamento contrário à linha de conduta exigida<br />

pela disciplina (MONTEIRO, 1996, p. 35).<br />

Note-se que a motivação da “rebelião” dos estudantes estava em consonância<br />

com os rumos e desdobramentos do quadro político mais abrangente vividos pela<br />

sociedade brasileira e já em ebulição em seus centros de decisão política. A aversão<br />

daquela geração de alunos “ginasianos” aos políticos locais, sempre aludidos pelo<br />

autor em tom negativo e depreciativo, também pode ser interpretada como um<br />

reclamo quanto aos anseios dessa “elite letrada” atrelada ao Ginásio Amazonense. A<br />

ambigüidade da figura de Álvaro Maia deixa transparecer, de certo modo, o quanto<br />

de impotência uma autoridade intelectual pode portar quando migra para a arena<br />

política. O tom de desapontamento de Mário Ypiranga ao referir-se ao papel político<br />

desempenhado pelo próprio Álvaro Maia logo após a vitória do processo<br />

revolucionário de 1930, quando fora obrigado a alinhar-se com as forças<br />

supostamente depostas, expressa as complicações envolvidas na transição entre um<br />

meio e outro. O acúmulo de capital intelectual não garante, por si só, a conversão<br />

em um capital político suficientemente robusto para alterar ou reverter as relações<br />

de forças do campo do poder.<br />

[...] Mais tarde Álvaro Maia se doloria de haver cedido à tentação<br />

demoníaca da política, quando se viu despojado na via pública das<br />

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suas humildes virtudes, apodado, insultado, enodoado, posto que<br />

não respondia aos refeces. Entricheirado atrás dos seus votos<br />

místicos, o que parece absurdo em política, silenciou a mágoa e<br />

apenas perdoou (MONTEIRO, 1996, p. 49).<br />

E é justamente nesse ponto que aquela oposição entre o pólo “positivo” do<br />

poder e o pólo “negativo” da cultura faz sentido. O próprio título do livro de<br />

Mário Ypiranga Monteiro, Mocidade viril 1930, ao ressaltar a virilidade e o empenho<br />

militar na ação rebelde dos estudantes, fosse traçando estratégias, fosse explicitando<br />

uma determinada posição ao ansiarem por mudanças na ordem política, ganha um<br />

forte contraste com o modo de construção da sua narrativa. Ao descrever de maneira<br />

detalhada as vestimentas e acessórios que paramentavam não só os alunos ginasianos<br />

do período, mas também todos os demais personagens, desde políticos tradicionais<br />

até jornalistas e intelectuais vacilantes entre o apoio ou não a uma nova ordem política,<br />

o autor deixa transparecer uma ambigüidade a que mesmo um “intelectual regional”<br />

(VILHENA, 1996, p. 125) está condenado, qual seja: a relação complexa entre o<br />

pólo “feminino” da cultura e o pólo “masculino” do poder. O ponto de vista<br />

aguçado do autor de Mocidade viril 1930 quanto ao delineamento dos diferentes trajes<br />

dos diversos personagens inseridos naquele contexto cultural da cidade de Manaus,<br />

e então envolvidos nos eventos da “agostada”, assim como a correlação entre os<br />

estilos de roupas e as forças políticas em jogo, tende a realçar o caráter “feminino”<br />

embutido na essência do trabalho intelectual. (Sobre a “feminização” do trabalho<br />

intelectual, ver MICELI, 2001; acerca da relação entre moda e sociedade ver SOUZA,<br />

1987 e HARVEY, 2003).<br />

Alguns exemplos são ilustrativos e podem ser aqui arrolados na medida<br />

em que confirmam esse argumento. Quando Mário Ypiranga ressalta os modos<br />

e o comportamento dos alunos do Ginásio Amazonense como algo distintivo<br />

de tudo o que havia em Manaus no final dos anos 1920, o que, segundo os<br />

argumentos do autor, reforça aquele papel de destaque desempenhado pela<br />

instituição como um centro de referência intelectual da cidade, ele o faz através<br />

de uma descrição minuciosa das variações de vestimentas então existentes para<br />

o uso do corpo discente em diferentes situações:<br />

Os alunos de todas as séries eram obrigados ao uso nas<br />

aulas dos uniformes regulados pelo regime por ato interno


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

do estabelecimento, os quais eram constituídos de quatro<br />

tipos: a) culote de cáqui amarelo e perneiras pretas de couro;<br />

túnica de quatro bolsos e botões pretos com castelo em<br />

relevo; gandola com passadeiras, sapatos pretos abotinados,<br />

de cordões, cinturão largo preto; chapéu acabanado de feltro<br />

preto, tipo explorador; ou castelos dourados na gabardine<br />

verde do colarinho ou o número do tiro em metal; outro<br />

castelo dourado abaixo das divisas; b) mesmo uniforme<br />

sem cinturão e chapéu, os quais seriam abolidos; em lugar,<br />

casquete de gabardine verde com tope de castelo dourado,<br />

podendo usar-se quepe apropriado, calça comprida da<br />

mesma fazenda e cor; túnica igual à precedente, sapatos<br />

rasos pretos; casquete de gabardine verde com castelo<br />

dourado no tope; c) farda de gala, facultativa: calça de pano<br />

de brim ou linho pesado branco com fio de gabardine verde<br />

na costura; túnica idêntica à de cáqui com botões dourados<br />

de castelo em relevo; sapatos pretos de verniz com polaina<br />

de camurça branca; casquete de gabardine verde com castelo<br />

dourado somente para veteranos (quarto e quinto-anistas).<br />

Do terceiro ano para baixo as dragonas não levavam divisas<br />

de fio de ouro, mas de prata, nem a estrela de graduação<br />

no braço; d) podia haver uma variação na cor do pano da<br />

calça da farda de gala, usando-se culote e perneiras; e) ou<br />

qualquer outra combinação, mas não havia culote e perneiras<br />

brancas. Essa farda de gala seria imitada por outros colégios,<br />

com aplicação de perneiras de pano branco e talabarte de<br />

couro preto (MONTEIRO, 1996, p. 88).<br />

Para caracterizar não só o quadro político daquele momento de crise<br />

econômica, mas também para ressaltar o rebaixamento social de setores inteiros da<br />

sociedade manauara, o autor estabelece um forte contraste entre o modo de trajar<br />

de alguns poucos apaniguados da administração pública, e que então desfrutavam<br />

dos favores oficiais, e a maioria dos não contemplados pelas benesses do governo;<br />

para tal ele contrasta as diferentes estratégias de camuflagem social presentes nos<br />

usos do terno HJ e de sua imitação barata, o GM:<br />

GM era a sigla popular de Gold Metal, a farinha de trigo<br />

norte-americana importada, cuja saca vendia-se a dois mil<br />

réis nos primeiros anos da demanda e viria mais tarde a<br />

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alcançar cinco, <strong>dez</strong> e vinte mil réis se não foi além. Trazia<br />

estampada nas naves, em cores vivas, a marca do produto,<br />

amarelo e azul. As donas de casa ferviam o pano até a tinta<br />

delir e davam-lhe o destino conveniente que era vestir<br />

guapamente meninos e rapazes, e até gente graúda sem<br />

posses para adquirir, mesmo em contrabando, o aristocrático<br />

HJ dos gamenhas (MONTEIRO, 1996, p. 44).<br />

Mesmo quando o autor busca caracterizar os políticos da situação, como a<br />

figura do então recém nomeado governador do Amazonas Dorval Pires Porto, a<br />

referência utilizada também é a vestimenta que tão o singularizava:<br />

Dorval Porto era conhecido em Manaus como o “homem<br />

do colarinho alto”, que era moda, também desfrutada pelos<br />

doutores Plácido Serrano, Efigênio Sales, Pedro Massa<br />

Bruta, José Alves Souza, desembargador Sá Peixoto,<br />

professor Agnello Bittencourt etc., apesar de já usar-se<br />

colarinho baixo e haver sido abolido o uso do colete<br />

(MONTEIRO, 1996, p. 56).<br />

Para os que conhecem a tradição politiqueira sordidamente<br />

viscosa, é bom que se lembre de que quase todos os auxiliares<br />

do ‘homem do colarinho duro’ eram elementos enraizados<br />

profundamente nas gestões de quase meio século de<br />

dominação política em que a oposição vinha<br />

sistematicamente sendo subjugada não pela ação do voto<br />

livre, mas pela perigosa arma da política vigilante nas urnas,<br />

da capangagem subvencionada, do aulicismo enxovalhado<br />

(MONTEIRO, 1996, p. 110).<br />

A relação entre um tipo de vestimenta já considerada antiquada e a posição<br />

social de certos personagens é apontada pelo autor como prova do<br />

envelhecimento de posturas políticas que não mais cumpriam o seu papel dentro<br />

de um quadro de mudanças sociais. Não que este raciocínio tenha o objetivo de<br />

reduzir certas tomadas de posição política ao modo de se trajar uma roupa,<br />

embora a relação entre moda e estrutura social seja algo pertinente e relevante<br />

(ver SOUZA, 1987 e HARVEY, 2003).<br />

Dentre os nomes citados por Mário Ypiranga Monteiro adeptos do uso do<br />

“colarinho alto”, já em desuso, encontram-se alguns intelectuais locais com reconhe-


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

cimento e “nome próprio” e que cumpriam um papel decisivo na formação daquela<br />

geração de “ginasianos” 3 . Plácido Serrano, diretor do Ginásio Amazonense à época<br />

da rebelião estudantil, e Agnello Bittencourt 4 , secretário de Instrução Pública do<br />

governo Dorval Porto, a despeito de seus vínculos com as forças políticas dominantes,<br />

não só são preservados por Mário Ypiranga de críticas mais contundentes e<br />

severas, como também são destacados como merecedores de respeito e admiração<br />

tanto pelo que representavam no âmbito estritamente educacional quanto em função<br />

da defesa do Ginásio Amazonense e de seus alunos naquele episódio, mesmo<br />

contrariando setores do próprio governo ao qual serviam. A percepção e a apreciação<br />

por parte do autor quanto aos professores do Ginásio, e que desempenhavam,<br />

em última análise, o papel de referências intelectuais para os alunos, também é<br />

explicitada via a caracterização dos seus respectivos modos de trajar e que, de certa<br />

forma, expressavam posturas políticas distintas. A contraposição entre o próprio<br />

Agnello Bittencourt e Álvaro Maia é significativa na medida em que aponta uma<br />

diferença política entre ambos mas, ao mesmo tempo, os preserva como figuras<br />

emblemáticas da intelectualidade manauara:<br />

De quantos me lembram simpáticos pelos contatos diuturnos,<br />

mesmo fora de classe, convém salientar o professor Agnello<br />

Bittencourt, cortês, aprumado, correto na indumentária, sempre<br />

de escuro, pontual na cátedra, a sofrer e a sofrear o calote oficial<br />

naqueles terríveis dias da administração Rego Monteiro. Por outro<br />

lado, Álvaro Maia era mais comunicativo, mais freqüentemente<br />

cortejado e cercado pelo entusiasmo dos discentes, inclusive por<br />

parte das mulheres. O contraste entre os dois educadores era profundo<br />

e o professor Agnello Bittencourt, o “velho Agnello”,<br />

como desrespeitosamente o chamávamos na ausência, mas sem<br />

qualquer intenção ofensiva de mesmo que o fazíamos com o professor<br />

Plácido Serrano, o “velho”, o “velhote” ou o “velho Plácido”<br />

(MONTEIRO, 1996, p. 162).<br />

O branco dos trajes de Álvaro Maia salienta o seu lado místico e sedutor<br />

encarnados na sua figura ambígua de poeta e político. O negro de Agnello Bittencourt,<br />

por seu turno, faz ressaltar o seu ascetismo como funcionário a serviço da educação<br />

e, ao mesmo tempo, como alguém atrelado ao poder (sobre o uso da cor preta nas<br />

vestimentas ao longo da história ver HARVEY, 2003). Ora, o vínculo entre esse tipo<br />

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de abordagem a ressaltar vestimentas e modos de comportamento, tanto de pessoas<br />

quanto de grupos sociais (assim como o maior ou menor reconhecimento social<br />

aí implicado), e o trabalho intelectual como um exercício específico de percepção e<br />

construção simbólica de uma dada realidade, apontam e reforçam a separação entre<br />

o campo cultural e o campo do poder como uma cisão entre um pólo “fraco”<br />

(feminino) e um pólo “forte” (masculino) a dinamizar toda a estrutura social. Embora<br />

a exclusão entre as duas esferas não implique uma interdição para qualquer agente<br />

social transitar de uma a outra, os meios são claramente distintos e o acúmulo do<br />

respectivo capital simbólico obedece a regras diferenciadas. A decepção já salientada<br />

de Mário Ypiranga quanto ao papel de Álvaro Maia quando este tornou-se o líder<br />

local do movimento revolucionário de 1930, talvez justifique-se pela sua<br />

incompreensão no que diz respeito às peculiaridades do “jogo político”.<br />

O trabalho simbólico implicado no desvelamento dos problemas e questões<br />

suscitadas por uma região como a Amazônia dentro de um contexto político e<br />

intelectual marcado por disputas entre posições diretamente interessadas em redefinir<br />

o caráter da própria nacionalidade brasileira, assim como aclarar possíveis caminhos<br />

a serem trilhados dentro de uma nova perspectiva de modernização do aparato<br />

estatal (pois esse era o móvel da disputa política nos anos finais da década de 1920),<br />

implicava na adoção de posturas muitas vezes arriscadas dentro desse complexo<br />

“jogo de perde e ganha” que caracteriza o campo de produção simbólica. Com a<br />

redefinição das forças políticas, alteram-se igualmente as demandas referentes às<br />

representações simbólicas. Embora tal relação não se dê como um reflexo direto de<br />

um meio sobre o outro, as posições no campo intelectual tendem a “refratar” a<br />

nova correlação de forças políticas quando priorizam determinados aspectos<br />

simbólicos em detrimento de outros. O tema da identidade nacional e do regionalismo<br />

focalizados pela intelectualidade brasileira ao longo dos anos 1930 expressa, dessa<br />

forma, as mudanças políticas então operadas na sociedade brasileira e, mais<br />

especificamente, no aparato estatal (MICELI, 2001).<br />

Se a lógica de funcionamento do campo intelectual tende a alijar para posições<br />

mais subordinadas todos aqueles agentes sociais que mantêm uma prática divergente<br />

e/ou discordante relativamente a uma prática dominante, os momentos de redefinição<br />

propiciados pelas alterações dessas posições (e que são invariavelmente suscitadas e<br />

sinalizadas por mudanças no campo político) podem converter-se em uma oportunidade<br />

para todo um grupo de intelectuais (inclusive para os aspirantes) a conseguir


Marco Aurélio Coelho de Paiva<br />

uma inserção favorável nesse microcosmo social particular. Assim como a Revolução<br />

de 1930 é tomada como um novo marco definidor de novas posições dentro<br />

do campo de produção simbólica, já que o processo de modernização Estado<br />

ampliou o mercado de postos intelectuais (CANDIDO, 2000 e MICELI, 2001), os<br />

eventos narrados por Mário Ypiranga Monteiro em Mocidade viril 1930 podem ser<br />

interpretados como decisivos para os rumos por ele trilhados a partir daí em uma<br />

carreira intelectual, e revelar, retrospectivamente, as motivações que o levaram a<br />

priorizar determinados temas em detrimento de outros.<br />

O regionalismo nas suas mais diferentes manifestações, o folclore regional<br />

amazônico, a literatura regional, por exemplo, converteram-se em objetos<br />

prioritários para Mário Ypiranga exatamente porque contemplavam uma dupla<br />

exigência: de um lado atendia uma demanda das forças políticas regionais e, de<br />

outro lado, permitia uma inserção relativamente vantajosa no quadro mais<br />

abrangente da produção simbólica nacional. A sua participação efetiva na<br />

Comissão Nacional de Folclore na década de 1950 expressa os ganhos dos<br />

investimentos feitos (sobre a importância e o papel da Comissão Nacional do<br />

Folclore ver VILHENA, 1997). A sua nomeação para o Ginásio Amazonense<br />

como professor na cadeira de Geografia Humana alguns anos depois da “rebelião<br />

ginasiana”, quando Álvaro Maia já exercia o seu mandado de interventor, é um<br />

dado central para os desdobramentos posteriores de sua carreira como intelectual.<br />

O próprio caráter mais localista e ideográfico da geografia como disciplina<br />

específica no leque das ciências sociais expressou, de certa forma, as ambições e<br />

as limitações das investigações posteriores de Mário Ypiranga.<br />

Os decisivos e complexos processos implicados no ato de delimitação e<br />

definição de um dado território como uma região distinta, e então legitimamente<br />

constituída como uma unidade a um só tempo política, econômica e social, não<br />

pode prescindir da importante tarefa de um conjunto de atores sociais especificamente<br />

autorizados e encarregados de produzir, no plano das representações, a própria<br />

idéia de região (BOURDIEU, 1989). Nesse sentido, a definição de “região” não<br />

pode ser concebida em termos “naturalizantes” por ser a própria concepção de<br />

Natureza resultado de uma disputa na ordem cultural. A fronteira a separar e distinguir<br />

Cultura e Natureza é sempre uma decorrência direta de critérios e formulações já<br />

necessariamente culturais e, portanto, é o resultado de representações simbólicas<br />

oriundas da disputa entre agentes sociais empenhados em delimitar e fazer existir<br />

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uma realidade regional precisa. É a partir desse quadro que ganha relevância o enfoque<br />

sobre o processo de formação dos produtores de representações simbólicas que,<br />

invariavelmente, podem ser localizados em cenáculos literários ou artísticos, ou em<br />

movimentos de caráter regionalista.<br />

A trajetória de Mário Ypiranga Monteiro, um intelectual conhecido e<br />

reconhecido por diferentes instâncias culturais de consagração local como um<br />

autor autorizado e, portanto, portador de autoridade para falar sobre a Amazônia,<br />

pode propiciar um exemplo concreto de como essa relação entre o plano das<br />

representações e o aspecto político mais amplo explicitam os embates não só<br />

entre disciplinas mais ou menos legítimas, mas também entre diferentes<br />

intelectuais desigualmente dispostos no campo de produção simbólica da própria<br />

região e do país.<br />

Notas<br />

1 Sobre a importância do Ginásio Amazonense Pedro II para a formação da elite<br />

intelectual de Manaus ao longo dos anos 1920 até os anos 1960 ver o trabalho de<br />

José Vicente Aguiar (AGUIAR, 2002), mais precisamente o capítulo III. A relação<br />

que o autor estabelece entre o Ginásio Amazonense, a Praça da Polícia e o Cine<br />

Guarany, e que constitui o seu núcleo de reflexão, explicita bem o papel catalisador<br />

daquela instituição escolar como centro de debates intelectuais da cidade. O próprio<br />

Mário Ypiranga ressalta no seu livro Mocidade viril 1930 a importância do Ginásio<br />

Amazonense naqueles seus dias de aluno: “[...] Nossa farda era olhada com respeito<br />

místico. Era respeitada como a garantia de ordem. Nós, a geração de trinta (para<br />

falarmos num modo geral), criamos o conceito novo do estudante varonil,<br />

destemeroso, cavalheiro, respeitador, altivo, prestimoso, contemporizador, aplicado,<br />

ordeiro, mas folgazão e prudente até quando não fosse posta à prova a valentia e<br />

a coragem.” (MONTEIRO, 1996, p. 91).<br />

2 “Meu nome de batismo era simplesmente Mário Monteiro, não obstante Ypiranga<br />

já vir tradicionalmente assumido na família. Assim fui matriculado no Ginásio<br />

Amazonense. A desagradável coincidência com o nome do famigerado chefe de<br />

polícia fazia que a turma vivesse glosando a circunstância e até me perguntavam se<br />

éramos parentes, por isso meu genitor resolveu que se adotasse o sobrenome de<br />

minha tia, Ypiranga, nome que viera, como tantos outros, com a independência


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do Brasil. O fato em si não tem importância, não fora a ostensiva agressividade<br />

dos colegas pelos administradores depostos.” (MONTEIRO, 1996, p. 43).<br />

3 O escritor Raimundo Morais é um dos alvos preferidos de Mário Ypiranga Monteiro<br />

a sofrer permanentes ataques dentre os intelectuais a serviço do governo de Dorval<br />

Porto naquele momento. Quando da criação da Sociedade Literária dos Novos,<br />

fundada em janeiro de 1930, e que também se convertia em uma das maneiras de<br />

afrontar as autoridades, tentou-se incluir o nome do já famoso escritor a fim de<br />

arrefecer o embate do pequeno grupo de literatos e o governo. Mas o autor de<br />

Mocidade viril 1930 não o poupa de seus ataques: “[...] Raimundo Morais sempre<br />

fora persona non grata, e mesmo na direção da Imprensa Oficial no governo Dorval<br />

Porto manteve atritos com os funcionários por caloteá-los e exigir que trabalhassem<br />

de graça na composição de seus livros.” (MONTEIRO, 1996, p. 113).<br />

4 “Parece que os únicos acertos daquela política de início funesto foram os dos<br />

professores dr. Plácido Serrano Pinto de Andrade para o Ginásio e Agnello<br />

Bittencourt para a Instrução Pública.” (MONTEIRO, 1996, p. 110).<br />

Referências<br />

AGUIAR, José Vicente de Souza Manaus: praça, café, colégio e cinema nos anos 50 e 60.<br />

Manaus: Ed. Valer/Governo do Estado do Amazonas, 2002.<br />

ALONSO, Ângela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração de<br />

1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais. ANPOCS, v. 15, n. 44, 2000, p. 35-54.<br />

BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação; elementos para uma reflexão<br />

crítica sobre a idéia de região. In________.O poder simbólico. Tradução de Fernando<br />

Tomaz. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand/Difel, 1989, p. 107-132.<br />

________. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In:________.<br />

A economia das trocas simbólicas. 3ed. Tradução de Sérgio Miceli e outros. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1992, p. 183-202.<br />

________. Por uma ciência das obras. In:________. Razões práticas; sobre a teoria<br />

da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996a. p. 53-73.<br />

________. As regras da arte; gênese e estrutura do campo literário. Tradução de<br />

Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996b.<br />

CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. In: ________. A educação<br />

pela noite & outros ensaios. 3ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 181-198.<br />

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Entre o branco e o negro...<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida,<br />

instrumento de poder<br />

Luiz Henrique da Silva Santana*<br />

Resumo<br />

Discute-se a contradição entre o estado dos recursos hídricos na Amazônia, os<br />

interesses de sua mercantilização e a oposição discurso-prática do desenvolvimento<br />

sustentável. A água é defendida como direito humano e elemento geopolítico para<br />

estratégias de soberania local, regional e nacional. O princípio de precaução é visto<br />

como freio aos danos ambientais e resposta ao caos dos recursos hídricos.<br />

Palavras-chave: Amazônia; desenvolvimento sutentável; precaução; soberania.<br />

Abstract<br />

The contradiction between the status of the Amazon water resources, their marketing<br />

as well as the sustainable development discourse-practice opposition are discussed.<br />

Water is defended as a human right and a geopolitical element for local, regional and<br />

national sovereignty. The principle of precaution is viewed as a break to the environmental<br />

damages and a response to the water resources chaos.<br />

Keywords: The Amazon region; sutainable development; precaution; sovereignty.<br />

* Sociólogo. Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas.<br />

Professor de Sociologia da Universidade Lasalle – UniLasalle - AM. E-mail: lhs_santana@yahoo.com.br<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

É pertinente argumentar quais relações permeiam o desenvolvimento sustentável<br />

como arcabouço ao gerenciamento da água e sua conformação geopolítica<br />

em torno de sua administração e acesso socioambiental na Amazônia brasileira,<br />

considerando-se o complexo jogo de poder entre sociedade-natureza local, regional<br />

e internacional. A construção do discurso e da prática sustentáveis, as divergências<br />

político-econômicas e as contradições estratégicas associadas ao<br />

paradigma do mercado “máximo” e do social “mínimo” configuram parte desse<br />

complexo jogo de poder.<br />

Verifica-se a influência da ocupação humana no território e sobre a<br />

capacidade de suporte. Essa pressão humana é apresentada como uma das<br />

principais causas de modificação da natureza. Tais modificações se tornam mais<br />

fortes à medida que mostram a dicotomia entre ações e objetivos do discurso<br />

sustentável e os interesses político-econômicos nas ações estatais, empresariais<br />

e não-governamentais.<br />

A dicotomia discurso-prática, mercado “máximo” e social “mínimo”, dadas<br />

as divergências na ideologia da eqüidade sustentável aliada ao desenvolvimento, expõe<br />

o elo entre os recursos hídricos amazônicos e a incapacidade dos poderes públicos<br />

locais em gerenciá-los adequadamente em moldes sustentáveis. A água amazônica<br />

como “ouro azul”, fonte de vida e instrumento de poder estrutura um complexo de<br />

elementos institucionais, político-econômicos e ambientais que tencionam o quadro<br />

caótico dos ecossistemas aquáticos amazônicos. Assim, a água como instrumento<br />

geopolítico estratégico local, regional, nacional e global, respalda a soberania amazônida<br />

e brasileira. Nisto, a ação do capital no processo de mercantilização do acesso e<br />

usufruto da água, oposto à defesa do recurso como direito à vida, chama atenção<br />

das forças exógenas que avançam para o domínio dos recursos hídricos amazônicos<br />

pondo em risco a soberania local e regional.<br />

Torna-se necessário a adoção de medidas urgentes e responsáveis contra<br />

ações agressivas ao ambiente, na relação sociedade-natureza. Será, aqui, o<br />

momento para a aplicação do princípio de precaução sobre atividades produtivas.<br />

Porém, aperfeiçoamentos devem incorrer sobre o instrumento jurídico para<br />

atenuar as supostas conseqüências do mau uso do princípio sobre os sistemas<br />

de produção e tecnologia.<br />

A relação entre poder político, responsabilidade ambiental, modelo de<br />

desenvolvimento e problemas ecossistêmicos traduz, na Amazônia brasileira, a<br />

136 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

omissão do Estado perante a sociedade, gerando um quadro depreciativo dos recursos<br />

hídricos nas cidades e no campo.<br />

Abrangência geral, os primeiros passos<br />

O homem sempre necessitou vencer obstáculos em sua trajetória terrestre<br />

como construção de diques, represas, estradas e habitação. É oportuno reconhecer<br />

a capacidade de intervenção do ser humano nos espaços, transformando-os em<br />

territórios, 1 demarcando-os, criando fronteiras, intensificando relações, crescimento<br />

demográfico e disputas pelo poder.<br />

Na conformação do território, a espécie humana modificou os cenários<br />

naturais do planeta, erigindo estruturas para a manutenção dos sistemas de produção,<br />

escoamento, comercialização, moradia, defesa e exploração dos recursos advindos<br />

da mãe terra. O aumento populacional, a urgência de novos mecanismos energéticos<br />

(carvão vegetal, mineral, eletricidade, petróleo, gás natural, fissão nuclear) ao suporte<br />

dos sistemas produtivos, somados à ilusão de um mundo ilimitado na exploração<br />

dos recursos, evoluiu ao que hoje se denomina de Crise de Civilização ou Crise ambiental.<br />

Na emergência da Crise ambiental, muitos debates têm corporificado a<br />

preocupação com o ambiente natural. No amadurecimento político-ideológico sobre<br />

a amplitude das questões ambientais, sua influência nos mecanismos de produção e<br />

de relações sociais, surge uma alternativa em meio ao caos, o desenvolvimento<br />

sustentável. 2 O debate em torno do desenvolvimento sustentável recebe minuciosa<br />

atenção nas definições objetivas e subjetivas que a noção ou conceito pode embutir<br />

pelos interesses oriundos de doutrinas econômicas, jurídicas, antropológicas e<br />

ambientalistas diversas.<br />

Há a tentativa de consolidação do conceito de desenvolvimento<br />

sustententável a partir da fusão entre ambiente e desenvolvimento econômico. Porém,<br />

inexistem mecanismos operacionais eficientes para efetivação dessa junção como<br />

estratégia ao gerenciamento da Crise Ambiental.<br />

As objetividades e subjetividades da noção ou conceito adquirem identidades<br />

nas relações intergovernamentais e fóruns de discussão institucionais pelo globo,<br />

como na Convenção sobre Mudança Climática, no Rio de Janeiro em 1992 e na<br />

elaboração do Tratado de Maastricht da União Européia. Haten (1990, apud<br />

GODARD, 1997, p. 110) afirma que o Relatório Brundtland (1987) foi fundamental<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

137


Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

na formulação de um conteúdo significativo dentro de questões que envolvem o<br />

meio ambiente, o desenvolvimento econômico, a exploração e degradação do<br />

ecossistema e seus recursos ambientais e naturais. 3<br />

O Relatório Brundtland vem dar resposta à balbúrdia verificada em<br />

anos anteriores nos debates sobre o tema da relação entre meio ambiente e<br />

economia, além da inexistência de medidas práticas e eficientes para abordagem<br />

da Crise de Civilização.<br />

A construção de um sistema operacional de articulação sustentável entre<br />

processos produtivos, exploração de recursos naturais, preservação do meio ambiente<br />

e manutenção da qualidade de vida em padrões elevados de bem-estar é em si<br />

mesma um complexo que envolve interesses político-econômicos. Essa noção/<br />

conceito de sustentabilidade evidencia em seus componentes gramaticais (o substantivo<br />

“desenvolvimento” e o adjetivo “sustentável”) a centralidade no crescimento<br />

econômico, assumida internacionalmente. O foco econômico está no objetivo de<br />

todas as nações. Mas, e a ingerência dos problemas ambientais, as conseqüências<br />

sobre a qualidade de vida, e onde se situam, nesse sistema articulado, as dimensões<br />

subjetivas e qualitativas?<br />

Divergências político-econômicas na interface do desenvolvimento<br />

sustentável<br />

Apesar das ambições econômicas estarem à frente dos laboratórios políticoideológicos<br />

na busca de uma solidificação do nível de consumo e do padrão de vida<br />

nos países desenvolvidos, o desenvolvimento sustentável propõe um caminho novo<br />

diante do impasse. Segundo Godard (1997, p. 122-127), a sustentabilidade serve aos<br />

propósitos de comunicação e intercâmbio entre várias correntes de pensamento e<br />

teorias científicas, veiculando-se reformas institucionais na tentativa de equacionar as<br />

relações Norte-Sul. Vários instrumentos são usados na viabilização de tais objetivos<br />

nos campos jurídicos, científicos, políticos e econômicos.<br />

Entre discurso e prática, nas decisões e planos internacionais, a<br />

construção do consenso é diluída frente às interferências dos poderes<br />

econômicos e políticos. Dentre os fatores políticos, têm-se a desconfiança<br />

histórica das Organizações Não-governamentais Latino-americanas diante dos<br />

governos dos países ricos do Norte, além da discordância ideológica existente<br />

138 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

nos movimentos e setores do ambientalismo. Um dos conflitos é o que permeia<br />

o ambientalismo religioso com o dos cientistas. Todos esses embates dificultam<br />

a relação discurso-prática sustentável (VIOLA, 2001, p. 141-142).<br />

Percebe-se que o discurso da sustentabilidade é um campo de poder<br />

envolvido num jogo de forças ideológicas a serviço, de um lado, do capitalismo e,<br />

de outro, de um conjunto de atores sócio-institucionais como organizações da<br />

sociedade civil e instituições internacionais de gerenciamento e financiamento<br />

(GODARD, 1997, p. 110-114). Os benefícios sociais tornam-se o lado mais fraco<br />

dentro de um universo onde equilíbrio entre economia e meio ambiente tradutor de<br />

igualdade de privilégios e consumo, a diminuição dos níveis de produção nos países<br />

do Norte rico e o aumento da qualidade de vida nos países do Sul e leste pobres<br />

pedem uma mudança radical no sistema hegemônico global (FEARNSIDE, 1997,<br />

p. 314-344; MARTINEZ-ALIER, 1997, p. 215-231).<br />

Sendo assim, com base em Godard (1997), ao entendimento da noção/<br />

conceito de desenvolvimento sustentável, as diversas correntes de pensamento e as<br />

controvérsias em torno do uso do comportamento responsável (princípio de<br />

precaução) para impor mudanças institucionais e políticas, pode-se ter uma base de<br />

análise do sentido real ou utópico da relação sociedade-economia e meio ambiente<br />

dentro da sustentabilidade.<br />

Dos degraus do amadurecimento à insustentabilidade da ação: mercado<br />

máximo, social mínimo<br />

Do amadurecimento intelectual à utilização do discurso sustentável nas<br />

políticas públicas de planejamento e gestão socioambiental há um longo caminho a<br />

percorrer. As idéias da sustentabilidade estão, atualmente, se difundido por todo o<br />

planeta, onde o discurso central gira em torno da satisfação das necessidades das<br />

gerações atuais com a consideração das demandas das gerações futuras no tocante<br />

aos recursos naturais e ambientais (BRUNDTLAND, 1988, apud GODARD, 1997).<br />

Porém, das intenções às ações efetivas de políticas ambientais muitos dispositivos<br />

são sugeridos em meio às divergências e tensões político-econômicas.<br />

As primeiras simulações de práxis nas questões de meio ambiente têm sua<br />

origem nas preocupações sobre os desastres ambientais, a saturação da capacidade<br />

de suporte, 4 na pressão populacional e na sobre-exploração dos recursos naturais<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

renováveis e não-renováveis. Tais quadros estimulam ações técnicas e de precaução<br />

visando estancar as ameaças. As grandes convenções internacionais, acordos nos<br />

fóruns e congressos, além da mídia deram respaldo à popularização do termo e<br />

discurso sustentável (LEFF, 2001, p. 16-23).<br />

Apesar da atenção redobrada sobre os impactos no ecossistema global e<br />

seus recursos naturais e ambientais, tendo-se como ênfase os acordos no intuito de<br />

se dirimir o caos é importante deixar registrado que a aceitação de um arcabouço de<br />

eqüidade e respeito entre as necessidades da geração atual e das futuras implica um<br />

pensar e um agir críticos e comedidos sobre as trocas comerciais, o livre mercado e<br />

a concentração de riquezas no mundo.<br />

A consolidação de uma sociedade sustentável enfrenta recusas por parte<br />

das nações ricas que não desejam ver seu padrão de consumo diminuído. Por sua<br />

vez, as nações pobres, sob o discurso da necessidade de melhoria da tecnologia e da<br />

economia, numa dívida social e histórica, igualmente recusam a adoção do arcabouço<br />

sustentável. (VIOLA, 2001, p. 150). Godard (1997) afirma que essas duas barreiras<br />

demonstram a dificuldade na gerência e no manejo equilibrado entre sistema<br />

econômico, político e ambiental, empurrando o social para plano secundário.<br />

Em suma, as preocupações relativas aos problemas ambientais somadas à<br />

articulação política nos fóruns e debates, além do suposto altruísmo associado à<br />

manutenção das futuras gerações absorvem uma alta tensão oriunda das grandes<br />

corporações econômicas e do livre comércio. Essas forças e tensões das potestades<br />

financeiras infiltram-se no poder político – governos, organizações nãogovernamentais<br />

e instituições internacionais – restringindo suas ações em prol do<br />

meio ambiente e da qualidade de vida. O poder político dá sustentação às atividades<br />

e ideologias econômicas. O complexo de relações apresentado, aqui, por seu campo<br />

de tensão contraditório, interfere numa questão emergente e estratégica para o mundo<br />

e a Amazônia, a geopolítica da água como recurso hídrico e sua adequação num<br />

possível modelo sustentável.<br />

Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

Do exposto anteriormente verifica-se a supremacia do poder econômico<br />

sobre a ideologia e ações políticas inseridas nas decisões e planos de atores e agentes<br />

públicos e privados relativos a questões ambientais. É pertinente o olhar sobre a<br />

140 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

relação entre discurso e prática no desenvolvimento sustentável e a adequação dos<br />

recursos hídricos amazônicos a esse paradigma emergente. Tal relação pode ser<br />

delimitada pelas ações entre Estado, sociedade civil organizada, organismos<br />

internacionais oficiais, corporações econômicas e comunidades locais.<br />

O desenvolvimento sustentável como paradigma em formação sugere o<br />

respeito ao meio ambiente e uso correto e comedido de seus recursos naturais e<br />

ambientais acompanhado pela garantia de acesso a esses bens por parte das futuras<br />

gerações. No entanto, quando o foco de análise está centrado na relação entre recursos<br />

hídricos amazônicos e sua importância estratégica global, o desenvolvimento<br />

sustentável se depara com um sistema complexo e paradoxo de interesses vários.<br />

Entra em cena a escassez do recurso, pressão populacional, qualidade de vida, demanda<br />

por energia, mercantilização do consumo e a contradição no que tange ao enorme<br />

volume hídrico amazônico com a deficiência no abastecimento.<br />

É inegável a importância da água como elemento estratégico nas decisões<br />

políticas, econômicas e culturais nas escalas local, regional e global. Tais decisões<br />

influenciam na qualidade de vida, no progresso econômico, no equilíbrio ecossistêmico<br />

e na paz entre indivíduos e grupos humanos. O direito à água está inserido e,<br />

igualmente, operacionaliza todos os outros direitos humanos, civis, políticos,<br />

econômicos e culturais, pois sem o acesso ao recurso excluem-se os seres vivos<br />

(homens, animais e vegetais) da condição básica de manutenção da vida. Um exemplo<br />

do exposto é que “o abastecimento de água é um aspecto chave para a redução da<br />

pobreza sendo ainda fundamental para o desenvolvimento industrial e para a<br />

manutenção dos ecossistemas” (VILLAR; RODRIGUES JUNIOR, 2006, p. 3). Se<br />

o direito à vida inclui saúde humana e ambiental, nisto, o saneamento básico é suporte<br />

imprescindível ao adequado acesso à água potável, o que a torna um direito humano.<br />

A Amazônia brasileira expõe uma dicotomia entre abundância de recursos<br />

hídricos (águas superficiais e subterrâneas) para usos diversos (domésticos,<br />

recreacionais, industriais, comerciais, agricultura, transporte e equilíbrio ecossistêmico)<br />

e distribuição e acesso a esses recursos. A desigualdade é tanto regional quanto local,<br />

entre a região Amazônica e o restante do Brasil e entre a zona rural e as cidades da<br />

região. O Brasil possui enorme disponibilidade de água doce, em condições de<br />

fornecer a cada habitante/ano cerca de 34 milhões de litros, porém, o desperdício e<br />

má distribuição impedem uso igualitário. Dois terços da água brasileira estão na<br />

Região Norte, onde vivem 10% da população do país (IBGE, 2000).<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

141


Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

Outro fator que impõe um desafio ao paradigma da sustentabilidade é a<br />

pressão populacional desigual em uma vasta região como a amazônica, oriunda da<br />

inexistência de políticas públicas participativas concernentes ao diálogo entre os<br />

diversos setores da sociedade e propulsoras de um modelo de desenvolvimento<br />

adequado às realidades locais. No caso do Amazonas, “com a criação da Zona<br />

Franca de Manaus, a cidade se transforma em grande pólo de atração, abrigando<br />

metade dos habitantes do estado” (IBGE, 2000). Este quadro é agravado pela<br />

precariedade dos sistemas de esgotos das cidades amazônicas. O problema se<br />

intensifica, tornando-se insustentável, na relação cidades-meio ambiente, pois na<br />

maioria das cidades da região os esgotos são expostos a céu aberto e apenas 4% das<br />

cidades possui rede adequada de escoamento sanitário. Manaus despeja grande parte<br />

de seus esgotos dentro do rio Negro (NORONHA, 2003, p. 121-122).<br />

A relação entre água e sociedade dentro do contexto amazônico brasileiro<br />

denota, também, o descaso com áreas rurais e a importância geopolítica dessas<br />

localidades ao desenvolvimento das cidades e capitais. Nessa interação, meio ambiente,<br />

degradação, desenvolvimento e qualidade de vida tencionam e testam o discurso e<br />

as práticas sustentáveis. Cabe ressaltar que a região amazônica sul-americana, a qual<br />

inclui a brasileira, é responsável por 20% dos recursos hídricos mundiais, reafirmando<br />

sua potência estratégica na dinâmica socioambiental global (FREITAS, 2004, p. 35).<br />

Em se tratando de Amazônia, a água como recurso é cobiçada por Estados nacionais,<br />

corporações internacionais e grupos organizados diversos. Inúmeros são os interesses<br />

polarizadores em torno do uso, consumo e gerenciamento do precioso ouro azul. A<br />

soberania territorial regional e nacional passa a ter uma nova configuração.<br />

Associada ao ouro azul do século 21 e por apresentar sinais de escassez e<br />

consumo crescente em regiões semi-áridas, a água poderá incitar conflitos políticos<br />

e bélicos pelo globo (BECKER, 2005, p. 8). Berta Becker afirma que um dos<br />

caminhos perseguidos nesta geoestratégia da água como recurso é sua possibilidade<br />

como fonte alternativa na geração de energia, numa perspectiva inovadora para o<br />

aproveitamento dos isótopos de hidrogênio, sendo pesquisada em paises como<br />

Alemanha e E.U.A. (BECKER, 2005, p. 7). A água como necessidade social e suporte<br />

ecossistêmico na Amazônia brasileira oscila entre um direito humano à vida e insumo<br />

ao sistema produtivo. Nisto, a visão social da água como um bem econômico inserila-á<br />

num fluxo monetário de oferta e demanda crescentes, passando sua gerência do<br />

setor público para a iniciativa privada. Essa contextualização eleva o nível de alerta<br />

142 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

ao tratamento do recurso hídrico e seu usufruto coletivo, pois a água amazônica<br />

tanto fornece valioso serviço ambiental como dá respaldo às atividades econômicas,<br />

e ambos contribuem ao bem-estar humano.<br />

É relevante o tema sobre a água, enquanto recurso social, ambiental e<br />

natural. Isto se dá pelo fato de que a escassez causada pelo aquecimento global,<br />

poluição, desmatamento e pelo desperdício a torna um instrumento de pressão<br />

sobre a região amazônica, seu ecossistema e populações, onde forças exógenas e<br />

endógenas como madeireiras, organizações criminosas ligadas à biopirataria e<br />

bioterrorismo e organismos de pesquisa, ONGs e projetos de desenvolvimento<br />

propiciam a diminuição na participação do Estado no planejamento e controle<br />

do recurso. Na diminuição da participação do Estado, o acesso à água será restrito<br />

aos que podem pagar num futuro próximo, pois a administração hídrica estará<br />

totalmente nas mãos da iniciativa privada. Em realidade, o que se deve evitar é a<br />

mercantilização ampla da água em detrimento dos direitos humanos e à cidadania<br />

dos indivíduos (VARGAS, 2006, p. 6).<br />

Quando Norberto Bobbio afirma que “a plenitude do poder estatal se<br />

encontra em seu ocaso; trata-se de um fenômeno que não pode ser ignorado”<br />

(BOBBIO et al, 2000, p. 1187), ele previu o que, atualmente, dá-se em larga escala no<br />

sistema econômico neoliberal de uma globalização 5 totalizante. Estados vêem-se a<br />

mercê da diluição de seus poderes por meio de articulações e barganhas sobre e<br />

abaixo de suas esferas de atuação e controle jurídico-institucional. Tal rede articulatória<br />

é composta pela negociação direta, sem a participação estatal, entre ONGs,<br />

corporações econômicas, organismos de direitos humanos e de financiamento com<br />

atores locais (BRIGAGÃO; RODRIGUES, 1998, p. 25-27). Para a Amazônia essas<br />

redes devem ser monitoradas pela sociedade e pelos governos locais e federal. É<br />

óbvio que as redes geram benefícios em investimentos e proteção socioambiental,<br />

porém, numa dinâmica progressiva de mercantilização dos recursos da natureza, é<br />

imprescindível a responsabilidade social sobre a posse e uso da água como recurso<br />

vital à vida da região e do globo.<br />

A identificação da amplitude dos processos de degradação na Amazônia,<br />

os quais possam atingir, também, a qualidade de vida socioambiental em outras<br />

regiões ou paises, fragiliza-lhe politicamente diante de interesses globais (FREITAS;<br />

SILVA, 2000, p. 20). Não somente este problema suporia intervenção estrangeira<br />

direta, mas também, diante desta afirmação, os recursos hídricos representam um<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

instrumento de poder local e regional para barrar uma possível mercantilização total<br />

das relações homem-natureza. A ingerência exógena mercantilizadora neoliberal sobre<br />

o espaço-tempo amazônico seria nociva às populações locais e ao conhecimento<br />

tradicional, pois as dinâmicas do mercado livre se opõem aos processos naturais.<br />

Exemplo clássico do exposto é a constatação de que “uma das conseqüências da<br />

conversão maciça de florestas em pastagens seria uma diminuição da pluviosidade<br />

na Amazônia e nas regiões vizinhas” (FEARNSIDE, 1997, p. 328). A água amazônica<br />

por ter importante papel na manutenção de serviço ambiental relativo ao ciclo<br />

hidrológico é um componente fundamental para o desenvolvimento sustentável na<br />

região. O desafio é como converter serviços ambientais em fluxo de renda e este em<br />

desenvolvimento sustentável amazônico? (FEARNSIDE, 1997, p. 342).<br />

Se for desafio a conversão dos serviços ambientais em sistema de renda<br />

sustentável, a mudança do atual modelo de desenvolvimento capitalista predatório é<br />

barreira ideológica e material quase intransponível. Na Amazônia, identifica-se a<br />

ideológia de que os países ricos, ao esgotarem seus recursos, agora desejam impedir<br />

que os recursos das nações pobres sejam explorados para fomentar um suposto<br />

desenvolvimento não atingido. Tal fato representa uma ameaça ao gerenciamento<br />

sustentável dos recursos hídricos. O aproveitamento da água como recurso natural<br />

deve conciliar desenvolvimento com geração de energia, proteção ecossistêmica e<br />

qualidade de vida para as populações. Uma sugestão viável seria a construção de<br />

pequenas centrais hidrelétricas e o uso de “rodas d’água” para geração de energia<br />

limpa (FONSECA, 2000, p. 8).<br />

Em verdade, a água como recurso hídrico na Amazônia, tanto nas cidades<br />

quanto nas áreas naturais de biodiversidade intocada, merece análise holística<br />

apreciadora de processos e atores diversos envolvidos: o gerenciamento irresponsável,<br />

degradação e escassez dos recursos fomentam riscos imprevisíveis à saúde do homem<br />

amazônico. Na relação cidade-campo, a água sofre conseqüências do lançamento de<br />

efluentes industriais e domésticos, os quais deságuam nos rios da região. A ganância<br />

material pelo lucro financeiro e político omite externalidades e impactos advindos<br />

de empreendimentos hidrelétricos de grande porte, garimpos, prospecção de<br />

combustíveis fosseis e madeireiras (ARAGON, 2005, p. 7), todo esse complexo<br />

incide diretamente no equilíbrio do ciclo hidrológico e no ecossistema amazônico.<br />

Do equilíbrio ecossistêmico, advindo de uma responsabilidade ambiental<br />

competente sobre a administração dos recursos hídricos, depende a vida amazônica<br />

144 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

e a soberania nacional. Na globalização, onde o capital é a matriz organizacional das<br />

sociedades, mercantilizar recursos naturais, excluindo-se do processo grandes parcelas<br />

de população, a Amazônia e o Brasil não podem olvidar a importância geoestratégica<br />

dos recursos hídricos. O poder público e setores econômicos não podem assumir<br />

posturas personalistas e oligárquicas, pois a Amazônia está sendo observada pela<br />

comunidade internacional, à espera de um momento adequado para inserir<br />

mecanismos institucionais de mercantilização dos conhecimentos, biodiversidade,<br />

minérios e recursos hídricos sem acesso igualitário e participativo nas decisões por<br />

parte das populações locais.<br />

Um modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia deve inserir<br />

a água como pilar socioeconômico e ambiental e, para tal, torna-se necessária a<br />

adoção imediata de posturas ideológicas jurídicas de contenção das ações e<br />

empreendimentos ameaçadores ao quadro socioambiental da região. Uma sugestão<br />

seria a inclusão do princípio de precaução como norteador das políticas públicas ambientais<br />

para os recursos hídricos.<br />

Princípio de precaução, legitimidade e antipatia social<br />

O texto de GODARD (1997) nos fornece argumentações sobre a<br />

importância da sustentabilidade do desenvolvimento atrelada a um clássico<br />

instrumento de execução jurídica, o princípio de precaução. Tal princípio intervém<br />

na sociedade, estimulando comportamentos obedientes e, muitas vezes, reativos<br />

ao princípio.<br />

O comportamento ambientalmente responsável, que reflete na possível<br />

relação de seu ato com problemas e conseqüências sobre o equilíbrio ecossistêmico,<br />

assume a identidade legal e jurídica características ao princípio de precaução. Ele atua<br />

sobre a potencialidade dos comportamentos agressivos, procurando estancá-los a<br />

priori e, com isso, desviando as nefastas conseqüências ambientais.<br />

Godard (1997) expõe o cuidado que se deve tomar com o uso<br />

indiscriminado do princípio de precaução. Sem arcabouço completo de informações<br />

sobre riscos potenciais e reais, as possíveis ligações com o comportamento ou agente<br />

agressor e a tomada de decisões unilaterais ou pontuais objetivando a interrupção<br />

dos processos <strong>jul</strong>gados perigosos ao meio, o princípio revela-se uma ambigüidade<br />

não-sustentável. Assim, poderá trazer paralisia a setores e atividades tecnológicos<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

145


Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

essenciais tonificando custos e acirrando a antipatia social. Este ponto negativo é<br />

apreciável, pois a legitimidade coletiva é quem garantirá o sucesso ou fracasso das<br />

políticas ambientais perseguidoras da sustentabilidade.<br />

A legitimidade só poderá ser construída frente à opinião pública quando da<br />

elaboração de estratégias de convencimento e fomento na participação dos atores<br />

locais, regionais e nacionais e do fluxo de relações internacionais nos processos<br />

decisórios de gestão dos recursos.<br />

Há necessidade de sistemas de valores e arcabouços institucionais na defesa<br />

do “comportamento ambientalmente sensível”. Isso é revelado pelo fato dos custos<br />

ambientais e suas conseqüências socioeconômicas serem mais impactantes do que a<br />

interrupção de atividades tecnológicas duvidosas.<br />

O comportamento responsável contra danos ambientais sobre o ecossistema,<br />

e a sociedade pode ser incutido, com a legitimidade do princípio de precaução, pela<br />

criação de um mecanismo comunicativo para base de sustentação do planejamento<br />

e execução da sustentabilidade no bojo das instituições e grupos sociais. Ou seja, os<br />

problemas e soluções são administrados pelos meios de comunicação – educação<br />

formal, mídia em geral –, os quais insiram valores ambientais responsáveis nas<br />

instituições e através delas. As instituições desenvolverão atividades visando à<br />

realimentação do sistema sustentável (SHENG, 1997, p. 168-170). Na relação<br />

sociedade, cultura e natureza amazônicas, o princípio de precaução é adequado para a<br />

manutenção do equilíbrio socioambiental, porque entre o discurso e a pratica da<br />

sustentabilidade, entre posições ideológicas diversas e a influência do mercado, a<br />

incerteza das atividades humanas sobre o território clama pela interrupção imediata<br />

das ameaças aos recursos hídricos e à soberania regional e nacional.<br />

Considerações finais<br />

Refletir sobre discursos e práticas sustentáveis é analisar história, poder<br />

e política. Como em todo novo paradigma, o desenvolvimento sustentável passa<br />

por transições onde co-existem o antigo e o novo, o tradicional e o moderno,<br />

mas, principalmente, a dicotomia entre interesses econômicos e ecológicos na<br />

dinâmica das relações entre sociedade e natureza. Nisto, as civilizações<br />

mantiveram, em graus diversos de intensidade, uma interação responsável com<br />

o meio ambiente e seus componentes naturais, pois compreenderam em maior<br />

146 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Luiz Henrique da Silva Santana<br />

ou menor escala a importância da natureza para suas economias e sobrevivência.<br />

No entanto, seus modelos de desenvolvimento e suas atividades produtivas<br />

determinavam tal responsabilidade ou omissão sobre os sistemas naturais. Os<br />

antigos impérios fluviais são exemplos de sociedades com alto grau de<br />

responsabilidade nas relações entre atividade humana e qualidade do meio<br />

ambiente. O Egito antigo e os impérios fluviais da Mesopotâmia dependiam da<br />

observação acurada dos ciclos de cheia e seca nos rios Nilo, Tigre e Eufrates<br />

para sobrevivência e manutenção de suas economias. Neste processo, as<br />

instituições governamentais tinham forte engajamento nas ações e providências<br />

sobre os cuidados com o ecossistema (BOBBIO et al. 2000, p. 976).<br />

As sociedades ocidentais baseadas no modelo capitalista de<br />

desenvolvimento, em processo crescente de mercantilização da natureza, parecem<br />

diluir suas estratégias frente à depredação dos recursos naturais, em especial à<br />

água, diluição esta oriunda da dicotomia entre política e ecologia dissimulada<br />

pelos poderes econômicos. Com a consolidação da Revolução Industrial, a<br />

produtividade do trabalho humano e do capital assumiu grande importância,<br />

porém, essa ideologia apenas vê a natureza como parte dos lucros e rendimentos<br />

(BOBBIO et al. 2000, p. 976). O desprezo pela natureza ainda ocorre nas cidades<br />

amazônicas quando da emissão de efluentes industriais nos córregos e rios. O<br />

modelo industrial vigente, a forma de ocupação, o uso das periferias, o aumento<br />

populacional vertiginoso e a desigualdade nos benefícios e custos socioambientais<br />

denunciam o distanciamento na relação poder político-economia de um lado e<br />

ecossistemas, qualidade de vida e populações, de outro.<br />

O estado dos recursos hídricos nas capitais, sua má administração, denunciada<br />

pela abundância em oposição à distribuição e acesso desiguais, a depredação e<br />

contaminação dos ecossistemas aquáticos nas grandes bacias fluviais reforçam a tese<br />

de que o ouro azul de amanhã pode se esgotar no presente.<br />

Notas<br />

1 O espaço é anterior ao território. O espaço é a matriz onde o território será produzido<br />

como resultado da ação de indivíduos, grupos e do próprio Estado com estratégias,<br />

planejamentos e intenções, sejam elas pragmáticas e/ou ideológicas, concreta ou<br />

abstratamente (RAFFESTIN, 1993, p. 143-152).<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

2 O desenvolvimento sustentável foi definido como “um processo que permite satisfazer<br />

as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de<br />

atender as gerações futuras” (LEFF, 2001, p. 16-19).<br />

3 A pedido do Secretário Geral das Nações Unidas, em 1984, foi criada a Comissão<br />

Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento para avaliar os avanços dos<br />

processos de degradação ambiental e a eficácia das políticas públicas ambientais<br />

para enfrentá-los (LEFF, 2001, p. 16-19).<br />

4 A capacidade de suporte (K) á a relação entre o tamanho da população e a<br />

quantidade de recursos usados agora, sem seu esgotamento futuro (BEGOSSI,<br />

1997, p. 61).<br />

5 As inovações tecnológicas impõem o aperfeiçoamento da produção, isso tem<br />

diminuído as dimensões de tempo e espaço e difundindo culturas, expandindo o<br />

fluxo financeiro, é a globalização (BRIGAGÃO, 1998, p. 100-101); (JAGUARIBE,<br />

2001, v. 2, p. 602-679).<br />

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Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão<br />

necessária no Amazonas<br />

Márcia Maria de Oliveira*<br />

Resumo<br />

A migração fronteiriça é uma área de grande relevância nos estudos migratórios. No<br />

Estado do Amazonas, a migração proveniente dos países de fronteira, especialmente<br />

do Peru e da Colômbia, vem provocando a academia a uma abordagem mais<br />

profunda da temática que se insere nos estudos da migração fronteiriça em outras<br />

regiões do Brasil.<br />

Palavras-chave: migração fronteiriça; indocumentados; refugiados; migrantes.<br />

Abstract<br />

The bordering migration is an area of great relevance in the migratory studies.<br />

In the State of Amazon, the migration proceeding from the border countries,<br />

especially of Peru and Colombia, comes provoking the academy to a deeper<br />

research of the issue that is inserted into the studies of the bordering migration<br />

in other regions of Brazil.<br />

Keywords: bordering migration; without documents; refugees; migrants.<br />

* Socióloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do<br />

Amazonas. E-mail: marciasares@yahoo.com.br<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

A migração entre os países fronteiriços é uma constante nos itinerários<br />

migratórios e se insere no conjunto dos processos de mobilidade humana em nível<br />

regional e internacional. No Amazonas, essa temática vem emergindo com certa<br />

intensidade devido ao fenômeno da migração de trabalhadores peruanos para a<br />

Amazônia e, mais recentemente, do ingresso de refugiados colombianos a partir da<br />

tríplice-fronteira Peru, Colômbia e Brasil.<br />

Esta análise torna-se pertinente pelo fato de situar os impactos da<br />

migração fronteiriça na cidade de Manaus, como o que ocorre com os migrantes<br />

bolivianos na cidade de São Paulo a partir dos estudos do antropólogo Sidney<br />

Antônio da Silva (2001).<br />

A idéia de fronteira e a migração fronteiriça<br />

Antes de adentrar a temática da migração fronteiriça, é oportuno apresentar<br />

algumas reflexões que podem contribuir para visualizar o contexto específico da<br />

tríplice-fronteira da qual nos referimos. Nesse sentido, a fronteira passa a ser analisada<br />

enquanto campo teórico da sociologia, das ciências sociais ou humanas. Não se trata<br />

de compreender um conceito de fronteira, mas sim refletir sobre a idéia de fronteira<br />

que perpassa a análise das migrações fronteiriças.<br />

Como ponto de partida para refletir a idéia de fronteira, vale contar com a<br />

contribuição de Fredrik Barth (2000) em seu capítulo sobre os “Grupos étnicos e<br />

suas fronteiras” onde apresenta a fronteira como o lugar do confronto do “tu” com<br />

o “outro”, dos encontros e desencontros, das definições e da auto-afirmação<br />

identitária. A fronteira aparece para Barth com um significado que extrapola a<br />

categoria de “lugar” ou espaço geográfico.<br />

Outra contribuição muito importante para uma sociologia das fronteiras<br />

são os estudos de José de Souza Martins. Só para citar apenas uma das suas<br />

diversas inferências sobre essa temática, vale ressaltar a construção de uma<br />

categoria sociológica para compreender os movimentos migratórios dentro dos<br />

limites do Brasil:<br />

A situação de fronteira [é] um ponto de referência<br />

privilegiado para a pesquisa sociológica porque encerra<br />

maior riqueza de possibilidades históricas do que outras<br />

situações sociais. Em grande parte porque mais do que o


Márcia Maria de Oliveira<br />

confronto entre grupos sociais com interesses conflitivos,<br />

agrega a esse conflito também o conflito entre historicidades<br />

desencontradas (MARTINS, 1997, p. 182).<br />

Partindo desta abordagem, a fronteira é analisada enquanto uma “situação”<br />

que pode estar indicando um processo de transitoriedade, ou seja, não se trata<br />

necessariamente de um “lugar”, mas de um determinado contexto com suas variadas<br />

significações e, ao mesmo tempo, um campo teórico para a pesquisa sociológica.<br />

Essa concepção de Martins é muito oportuna para a compreensão da fronteira<br />

enquanto a “passagem” de uma situação para outra adversa. Essa transição, no entanto,<br />

não se dá com ausência de “conflitos”, que também pode ser analisado sob inúmeras<br />

possibilidades que vão desde o conflito interior pelo qual passa o indivíduo no<br />

processo migratório, até o conflito social no encontro ou confronto com outros<br />

novos sujeitos sociais.<br />

Também está contida nesta análise a idéia de “tempo” em constante<br />

modificação. Esta concepção pode tranquilamente ser aplicada para a compreensão<br />

da migração enquanto “mobilidade humana”. Essa é uma categoria relativamente<br />

nova. Foi criada a partir da idéia de globalização ou “mundialização”, de<br />

permeabilização ou até mesmo da idéia da extinção de fronteiras políticas, econômicas,<br />

culturais e simbólicas. Também se relaciona com a idéia de simultaneidade de tempos<br />

e espaços. Esta última é amplamente difundida pelo sociólogo Manuel Castells em<br />

sua obra A sociedade em rede (CASTELLS, 1999) onde busca esclarecer a dinâmica<br />

econômica e social da nova era da informação. Para Castells, as fronteiras dão lugar<br />

às transformações simultâneas. Procura formular uma teoria que dê conta dos efeitos<br />

fundamentais da tecnologia da informação no mundo contemporâneo. Sua análise<br />

busca identificar uma nova estrutura social influenciada pelos sistemas de redes<br />

interligadas. Uma sociedade globalizada e centrada no uso e aplicação da informação.<br />

Quando tratamos de uma realidade específica da Amazônia, esse conceito se torna<br />

muito complexo, dado o grau de complexidade da própria região.<br />

Aprofundando um pouco mais a análise, percebe-se que é imprescindível<br />

a discussão sobre os diversos conteúdos que o conceito de fronteiras vem<br />

assumindo ao longo da história, nas mais diferentes culturas e sociedades. Daí o<br />

interesse de teóricos das mais diversas áreas de conhecimento. Vale recordar<br />

uma definição bastante antiga do pensador Castilhos Goycochêa, em seus estudos<br />

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154 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

sobre as fronteiras, incluindo a Amazônia, em 1943. Preocupado com o peso da<br />

idéia de “fronteira” ele escreve:<br />

A primeira divisa foi riscada no terreno pelo primeiro ser<br />

que compreendeu sua posição em face do semelhante mais<br />

próximo. Da propriedade individual passou à soberania<br />

coletiva, isto é, à casa, à cidade, da cidade à província e<br />

desta ao país. Tudo tem limites, raias, lindes, cercas, muros<br />

ou designação outra que vise as características das posses<br />

materiais, de alguém, homem ou entidade social<br />

(GOYCOCHÊA, 1943, p. 42).<br />

Essa reflexão aponta para a fronteira como a divisa, separação de espaços<br />

ou delimitações, sejam de lugares físicos ou de atribuições funcionais. No caso do<br />

Brasil, essa definição deve ter sido de grande importância no processo de criação da<br />

Lei de Segurança Nacional, no período da ditadura militar. Nesse período, a<br />

delimitação dos espaços era a principal preocupação do Estado Nacional, não se<br />

importando com as relações que transpunham as fronteiras, como é o caso da<br />

tríplice-fronteira Brasil, Peru e Colômbia. Pode ser por isso que a própria Lei de<br />

Migrações, ou melhor, de “Estrangeiros”, apresenta tantas “limitações” em suas<br />

tantas “delimitações” de fronteiras.<br />

Nos estudos mais localizados é de grande importância o trabalho do<br />

geógrafo Ricardo José Batista Nogueira que tratou a temática da fronteira Brasil-<br />

Colômbia em sua tese de doutorado (NOGUEIRA, 2001) e em alguns<br />

desdobramentos publicados pela revista Somanlu (NOGUEIRA, 2005). Ao analisar<br />

as cidades de Tabatinga, do lado brasileiro, e Letícia, do lado colombiano,<br />

Nogueira afirma que:<br />

Como cidade de fronteira, carrega, comumente, na visão<br />

dos que estão de fora, o estigma do lugar perigoso, lugar<br />

onde reina a contravenção, criando um ar de suspeição<br />

sobre seus moradores. Aqui, procuraremos enfocar a fronteira<br />

percebida, entendendo esta como um lugar que é percebido,<br />

pelo centro do país, a partir da imagem construída sobre<br />

esta condição (NOGUEIRA, 2005, p. 182).


Márcia Maria de Oliveira<br />

Esta análise é muito importante para a compreensão da categoria que o<br />

referido autor denomina de fronteira percebida. Parece referir-se ao olhar arbitrário e<br />

inquisidor do ponto de vista de quem está do lado externo do referido contexto.<br />

Novamente a fronteira é o “lugar” do conflito, dos estigmas, dos perigos. É a<br />

forma como a fronteira é percebida, por quem não se encontra inserido na conjuntura<br />

local. Esta percepção é muito corrente nos relatórios técnicos de órgãos<br />

governamentais na elaboração de políticas para determinada região a partir de uma<br />

análise externa e fora de contexto.<br />

Ainda na seqüência de sua reflexão, apresenta outra análise da fronteira no<br />

campo do imaginário, afirmando que:<br />

Talvez a imagem mais corrente que se faz da fronteira seja<br />

aquela que a mostra como lugar onde o contrabando, o<br />

tráfico de produtos ocorre com maior freqüência em virtude<br />

do aproveitamento das diferenças dos regimes fiscais, legais<br />

inerentes a cada Estado-nacional. Mas não só isso. A<br />

subordinação do cidadão às leis, aos códigos de seu Estado<br />

torna-o cidadão de um Estado, cujas leis são limitadas<br />

espacialmente. Assim, a fronteira acaba sendo um lugar<br />

privilegiado de refúgio aos agentes das atividades ilícitas<br />

(NOGUEIRA, 2005, p. 182).<br />

Está é uma análise mais localizada no campo da jurisdição ou da jurisprudência<br />

que pode fornecer elementos para se compreender os processos de criminalização<br />

impetrados sobre os migrantes que adentram as fronteiras dos países limítrofes.<br />

Esse fenômeno tem ocorrido de forma significativa na tríplice-fronteira Brasil, Peru<br />

e Colômbia, o que tentaremos aprofundar ainda neste texto. A criminalização dos<br />

migrantes é um dos principais problemas enfrentados pelas migrações fronteiriças.<br />

Por isso, os estudos migratórios têm dedicado grandes esforços para a análise desta<br />

categoria da mobilidade humana nas fronteiras.<br />

Nos estudos migratórios, a fronteira é analisada sob diversos pontos de<br />

vista. Trataremos neste artigo da análise que provém da compreensão da fronteira<br />

como o “lugar” onde começam as possibilidades: de saída, de libertação, de<br />

concretização da migração. Ou ainda “lugar de passagem” marcado pelos encontros<br />

e desencontros de ordem cultural e social.<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

A fronteira também é vista como o lugar onde as diferenças se evidenciam<br />

e são geradoras de conflitos culturais e sociais (MOLINA, 2001). Por outro<br />

lado, é na fronteira que as distâncias também se estreitam e as diferenças passam<br />

por um processo de re-elaboração. Então, a fronteira passa a ser também o divisor<br />

de águas determinante para a construção de novas relações que extrapolam as<br />

próprias fronteiras geopolíticas e se estendem por outras regiões a partir do<br />

momento em que os migrantes adentram aos países limítrofes. Para quem vive<br />

na fronteira, a idéia de limites geográficos não representa necessariamente uma<br />

limitação às relações, que são estabelecidas para além dos limites geográficos.<br />

Contudo, não se podem ignorar os entraves, principalmente de ordem política,<br />

presentes nos limites geográficos, de forma ainda mais acentuada quando se<br />

refere a uma conjuntura de tríplice-fronteira.<br />

Para muitos povos que vivem nas fronteiras geopolíticas dos países, a idéia<br />

de limites geográficos é algo muito abstrato e complexo (GEORGE, 1977). Esse<br />

conceito de fronteira é ainda relativamente novo para muitos habitantes fronteiriços<br />

e está mais relacionado com a construção da idéia de território ou territorialidade,<br />

que, via de regra, transcende as fronteiras geopolíticas institucionalizadas.<br />

A migração de países fronteiriços para o Brasil é um fenômeno relativamente<br />

antigo. Depois de receber grandes fluxos migratórios provenientes da Europa, no<br />

início do século 20, o Brasil passou por uma fase de migração interna muito intensa,<br />

marcada predominantemente pelo êxodo rural, e, a partir do final da década de 70,<br />

passa a ser grande receptor de imigrantes dos países fronteiriços (bolivianos, chilenos,<br />

paraguaios, peruanos e outros hispano-americanos).<br />

Paradoxalmente ao fluxo de saída de milhares de brasileiros que migraram<br />

para o estrangeiro, o Brasil passa a acolher outros milhares de migrantes dos países<br />

vizinhos que vêm tentar uma vida mais digna em terras brasileiras. Para se ter uma<br />

idéia do volume dessa migração, só em São Paulo vivem mais de 150 mil bolivianos,<br />

a maioria em condição ilegal, explorados por pequenas indústrias de confecções, em<br />

condições injustas de trabalho e de vida:<br />

Pode-se dizer que a presença hispano-americana no Brasil<br />

não constitui um fenômeno novo, mas tem se mantido com<br />

uma certa regularidade, mesmo a partir dos anos de 1930,<br />

quando a maioria dos países da região adotou políticas


Márcia Maria de Oliveira<br />

migratórias protecionistas.Tais medidas visavam, antes de<br />

tudo, proteger o mercado da mão-de-obra nacional, o qual<br />

começava a expandir-se com o emergente processo de<br />

industrialização em alguns países, como o Brasil, a Argentina,<br />

a Venezuela, entre outros. No entanto, é a partir da década<br />

de 1970 que tal presença começa a ganhar relevância, em<br />

razão das transformações econômicas e dos regimes<br />

autoritários que se instalaram em grande parte dos países<br />

da região. Mesmo sob um regime de exceção, o Brasil passou<br />

a ser destino de hispano-americanos, particularmente do<br />

Chile, Argentina e Uruguai, os quais tentaram reconstruir<br />

as suas vidas no anonimato que uma grande metrópole<br />

enseja, como é o caso de São Paulo (SILVA, 2001, p. 490).<br />

Durante muito tempo, o destino mais procurado dos imigrantes latinoamericanos<br />

no Brasil era a cidade de São Paulo, talvez por ser a maior cidade do<br />

país, ou por apresentar maiores possibilidades de emprego, ou por sua extensão e<br />

localização, por sua pluralidade, ou por tantos outros atrativos que somente uma<br />

grande metrópole pode oferecer e que, de certa forma, fascinava, e continuam<br />

fascinando, contingentes migratórios. Porém, a partir da década de 1980, outras<br />

capitais, e algumas cidades de médio e grande porte do Brasil, também passaram a<br />

ser ponto de referência para a migração de hispano-americanos.<br />

Tendo por base a realidade brasileira, que a partir da metade do século passado,<br />

enfrentou, com grande ênfase, a migração interna, com grandes fluxos de<br />

deslocamentos regionais e intra-regionais (MARTINS, 1997) podemos apostar na<br />

hipótese de que os migrantes hispano-americanos também passaram por esse mesmo<br />

processo migratório interno em seus países. É muito provável que tenham enfrentado<br />

deslocamentos internos e êxodos rurais tão intensos como os ocorridos no Brasil.<br />

Ou seja, passaram pelos mesmos fenômenos de deslocamentos internos, de êxodo<br />

rural, chegando ao ponto de avançarem para as fronteiras do Estado Brasileiro<br />

(OLIVEIRA, 2006), num processo de migração que não se caracteriza<br />

dominantemente espontâneo:<br />

A migração, portanto, ao longo da história do Brasil, tem sido um<br />

fenômeno compulsório: os migrantes são obrigados a deixar a<br />

sua terra em busca de uma vida melhor em outros lugares ou<br />

países. Isso acontece porque os interesses econômicos das elites<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

dominantes sempre estiveram por trás das grandes migrações no<br />

Brasil (BASSEGIO, 2004, p. 57).<br />

Esse mesmo processo de migração interna com vistas à migração internacional<br />

ocorreu também nos países de fronteira com Amazonas, especialmente o Peru e a<br />

Colômbia, objetos da presente análise. Para uma melhor compreensão da mobilidade<br />

humana na referida tríplice-fronteira, com vistas ao Brasil, se faz necessário abordar<br />

os processos migratórios de cada um dos dois países limítrofes. Desta forma, é<br />

possível identificar os elementos que determinam cada um dos fluxos migratórios<br />

com suas especificidades que vão desde a migração de trabalhadores peruanos até o<br />

fenômeno do ingresso de refugiados colombianos em terras brasileiras.<br />

A migração de peruanos no Amazonas<br />

Particularmente no Peru, a migração interna mais acentuada data do início<br />

do século 20. A estrutura econômica e social do país foi determinada fortemente<br />

por seus antecedentes de uma sociedade que conservou os valores do tipo feudal,<br />

mantendo uma espécie de separação entre o branco, a burguesia dominante e os<br />

indígenas, e, conseqüentemente, um dualismo cultural: uma cultura da corte<br />

ocidental (legado dos colonizadores) e uma outra cultura indígena com uma<br />

grande população espalhada por toda a região andina, sobrevivendo com uma<br />

economia de subsistência, deixados à margem do desenvolvimento do país<br />

(PONCE, 1970, p. 65).<br />

Vários fatores podem ser identificados nesse percurso migratório, 1<br />

adentrando nas fronteiras brasileiras, até a fixação de um significativo número<br />

de migrantes peruanos na cidade de Manaus, objeto deste estudo. Dentre esses<br />

fatores, podemos destacar a violência institucionalizada conhecida como o<br />

sangrento período da ditadura do general Velasco Alvarado, 2 considerado como<br />

um dos elementos que mais interferiu nos processos de migração até os dias<br />

atuais. Também os conflitos agrários, o avanço do latifúndio e os processos de<br />

industrialização nos moldes capitalistas são elementos impulsionadores da<br />

migração compulsória, ou seja, aquela migração forçada pelas estruturas sóciopolíticas<br />

e econômicas que extrapolam os projetos migratórios planejados pelos<br />

sujeitos da migração.


Márcia Maria de Oliveira<br />

Os maiores fluxos dessa migração são oriundos da região da selva peruana<br />

que faz fronteira com o Estado do Amazonas. Esses migrantes se deslocaram, num<br />

primeiro ciclo, dentro dos próprios limites regionais. Esse processo se deu,<br />

primeiramente, dos pequenos povoados e aldeias interioranas para as cidades maiores,<br />

tais como Arequipa, Iquitos, Yurimaguas e Pucallpa. Todas essas cidades passaram<br />

por um acelerado processo de urbanização nas últimas décadas.<br />

Somente num segundo processo de migração compulsória é que houve um<br />

novo direcionamento desses fluxos migratórios, em larga escala para o Chile e para<br />

a Amazônia brasileira. A entrada com maior relevância de peruanos em território<br />

amazonense se deu a partir de meados da década de 1980 e da primeira metade da<br />

década de 1990 3 e se tratava de um fluxo eminentemente de migrantes trabalhadores.<br />

A escolha da cidade de Manaus como alternativa de migração, ou a<br />

permanência temporária em outras cidades do interior do Amazonas, no itinerário<br />

migratório dos peruanos, na maioria dos casos analisados, deu-se por aquela mesma<br />

“ilusão do fausto” (DIAS, 1999), do ideário de crescimento econômico e do pseudoprogresso<br />

que fascinou igualmente a tantos migrantes nacionais, provenientes de<br />

outras regiões do Brasil, e muitos estrangeiros.<br />

Como já foi dito anteriormente, um problema muito sério nesse vai-e-vem<br />

nas fronteiras é o acesso ilegal de pessoas que ingressam nos países fronteiriços sem<br />

os documentos necessários. 4 Do lado brasileiro, a fiscalização federal de fronteiras é<br />

intensa em algumas áreas, porém, considerando a vastidão da selva amazônica, é<br />

humanamente impossível manter um controle totalmente eficaz nessas condições de<br />

traslado permanente facilitado pelas distâncias geográficas.<br />

Outro fator que contribui para a facilitação da entrada de peruanos<br />

indocumentados é o preço da viagem entre os dois países. Todos os dias, pelo<br />

menos duas embarcações de transporte fluvial de passageiros, e duas companhias<br />

aéreas, com itinerário Manaus/Tabatinga, Tabatinga/Manaus, operam no traslado<br />

de centenas de peruanos ou brasileiros que fazem esse percurso, com bilhetes de<br />

passagens com preços relativamente acessíveis.<br />

Além da facilitação do transporte até a fronteira, os migrantes ainda<br />

contam com alternativas de transporte fluvial de igual facilidade, da fronteira do<br />

país até outras localidades no interior da selva peruana como Iquitos, Yurimaguas<br />

e Pucallpa. Esse percurso abriu caminhos para muitos migrantes que não<br />

dispunham de condições financeiras para investir numa viagem de maiores custos<br />

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160 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

para outros países ou mesmo para outras regiões do Peru. Diferentemente do<br />

intenso fluxo de migrantes peruanos, direcionado para os Estados Unidos, Japão<br />

ou alguns países da Europa, a categoria migratória deslocada para o Amazonas<br />

é caracterizada por pessoas que não dispõem dos recursos financeiros necessários<br />

para uma migração com destinos mais ampliados.<br />

A maioria quantitativa dos migrantes peruanos que vivem no Amazonas<br />

apresenta algumas características em comum: são camponeses provenientes da<br />

chamada Região da Selva Peruana; apresentam um histórico de migração interna<br />

no Peru e, não raras vezes, reproduzem esse circuito migratório também nos<br />

municípios do interior do Estado do Amazonas até a chegada em Manaus. Poucos<br />

têm qualificação profissional, há alguns médicos, enfermeiros, dentistas,<br />

bioquímicos, engenheiros, contadores, arquitetos, técnicos em geral, dentre outras<br />

categorias profissionais.<br />

A grande maioria dos migrantes peruanos no Amazonas apresenta baixo<br />

nível de estudos; são camponeses ou pertencentes a etnias indígenas peruanas;<br />

migram com toda a família em busca de qualquer tipo de trabalho e de melhores<br />

condições de vida. A média de filhos é em torno de três a quatro. Muitos desses<br />

migrantes se submetem a qualquer situação de trabalho que lhes proporcione<br />

algum ganho para o sustento de suas famílias.<br />

No Amazonas, os trabalhadores peruanos, extremamente dedicados ao<br />

trabalho, são frequentemente explorados pelos empregadores que os contratam<br />

de forma clandestina sem garantias trabalhistas e os submetem a condições<br />

desumanas de trabalho. Há situações de exploração nessas mesmas condições,<br />

impetradas por “paisanos” 5 que já se encontram legalizados no Brasil e exploram<br />

seus próprios conterrâneos.<br />

As vítimas de exploração, na maioria dos casos, não denunciam os fatos por<br />

medo das autoridades e porque desconhecem os seus direitos e a legislação brasileira<br />

que proíbe todo e qualquer tipo de trabalho em condição de escravização ou<br />

exploração sumária. Boa parte dos peruanos que vivem em Manaus em situação de<br />

clandestinidade 6 está inserida no mercado informal de trabalho, como ocorre com<br />

muitos outros migrantes nestas mesmas condições (OLIVEN, 1996, p. 26).<br />

Na condição de clandestinos, os migrantes peruanos passam a uma rotina<br />

marcada pelo medo constante de serem denunciadas à Polícia Federal. Por isso,<br />

muitos se arriscam na tentativa de regularizar sua permanência no Brasil contraindo


Márcia Maria de Oliveira<br />

matrimônio com brasileiro ou brasileira, ou através de prole (filhos nascidos no<br />

Brasil) conforme prevê a exigente legislação brasileira. 7<br />

Os peruanos enfrentam sérios problemas para a regularização de sua<br />

permanência, principalmente porque no Brasil há grandes vazios de políticas<br />

migratórias e não se tem tradição no decreto de anistias aos estrangeiros<br />

indocumentados. Nas últimas experiências de anistia, os períodos previstos para<br />

o encaminhamento dos documentos de solicitação foram sempre muito curtos,<br />

inviabilizando o ingresso de processos junto ao Ministério da Justiça e ao<br />

Conselho Nacional de Migração. Além desse fator, os migrantes são penalizados<br />

com a cobrança de altas taxas para a tramitação dos processos e com a aplicação<br />

de multas impagáveis aos autuados. Por causa de todo esse complexo contexto,<br />

muitos migrantes peruanos vivem de forma irregular, indocumentados, em<br />

Manaus e em vários municípios do Amazonas.<br />

O fenômeno dos refugiados colombianos no Amazonas no contexto<br />

das migrações fronteiriças<br />

No conjunto da migração fronteiriça no Amazonas, outra realidade de<br />

grande relevância é o crescente ingresso dos refugiados colombianos que<br />

solicitam refúgio na cidade fronteiriça de Tabatinga e, na sua grande maioria, se<br />

dirigem para a cidade de Manaus. Além do significativo contingente que tramita<br />

sua solicitação de refúgio na fronteira, há muitos colombianos, em situação de<br />

refúgio, que ingressam no Amazonas de forma ilegal, como no caso dos peruanos.<br />

Não existem números oficiais, mas algumas instituições que atendem os<br />

migrantes no Brasil, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os<br />

Refugiados – Acnur, e o Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM, apresentam<br />

estimativas de um contingente de mais de quatro mil colombianos em situação de<br />

refúgio, vivendo ilegalmente, indocumentados, no Amazonas. A contagem<br />

populacional deste contingente migratório seria muito importante para uma análise<br />

quantitativa porque determinaria um conjunto de medidas a serem tomadas pelos<br />

três governos fronteiriços que mantém tratados comerciais em larga escala, mas não<br />

apresentam uma política comum de migração nesta tríplice-fronteira.<br />

A categoria migratória de refugiados colombianos 8 indica uma migração<br />

compulsória de milhares de pessoas que se deslocam, interna e externamente,<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

desde meados do ano 2000, quando o governo dos Estados Unidos decretou o<br />

Plano Colômbia. O referido plano é um amplo programa de ajuda militar,<br />

totalizando mais de US$1,3 bilhões. A maior parte destes recursos está destinada<br />

ao exército colombiano, apesar de seu péssimo histórico em matéria de direitos<br />

humanos e da contínua preocupação internacional sobre os vínculos entre as<br />

forças de segurança colombiana e os grupos paramilitares. Desde então, os<br />

conflitos armados acirraram-se, resultando em milhares de mortos, feridos,<br />

seqüestrados, e “desplazados” 9 que, cotidianamente, adentram a fronteira<br />

brasileira solicitando refúgio. 10<br />

Em Manaus vivem muitos colombianos, famílias e grupos familiares, em<br />

condição de refugiados. São pessoas muito simples, ainda assustadas e traumatizadas<br />

por causa da violência a que foram submetidas. Muitos são camponeses que perderam<br />

suas propriedades para os grupos armados que mantêm a prática de tomar as terras<br />

e obrigar os camponeses a entregar os produtos da lavoura para os converterem em<br />

armamentos que alimentam o conflito. Muitas terras se convertem em plantações de<br />

maconha ou coca para o mesmo destino. Os camponeses que resistem à invasão<br />

sofrem todo o tipo de pressão e violência até que não lhes resta alternativa a não ser<br />

a migração compulsória. É nesse contexto que surge a categoria dos “desplazados”<br />

(a qual manteremos sem tradução para o português por se tratar de uma categoria<br />

muito específica e por não termos uma palavra que seja capaz de traduzir exatamente<br />

esta realidade migratória).<br />

O Estado brasileiro ainda não tomou medidas específicas, no campo das<br />

políticas migratórias, com relação ao fenômeno dos refugiados colombianos no<br />

Amazonas, apesar da pressão de agências internacionais como o Acnur. Continua<br />

mantendo o atendimento aos “desplazados”, que solicitam refúgio, pela mesma<br />

Polícia Federal, identificada como a “linha dura” da justiça brasileira nas fronteiras.<br />

Essa mesma polícia é a encarregada de caçar e prender os traficantes que,<br />

categoricamente, são classificados como “colombianos”. Isso tem dificultado<br />

imensamente o ingresso legal dos “desplazados” com direito ao refúgio. Muitos<br />

têm medo de se apresentarem aos agentes federais e serem, imediatamente deportados,<br />

o que é uma prerrogativa nesses atendimentos, pelo simples fato de ser de<br />

nacionalidade colombiana e carregar o estigma da contravenção.<br />

Enquanto o Estado brasileiro não apresenta políticas migratórias<br />

específicas para essa realidade fronteiriça, algumas instituições vêm intervindo


Márcia Maria de Oliveira<br />

sistematicamente nesse processo, como é o caso do Acnur, da Pastoral dos<br />

Migrantes, tanto do lado brasileiro como do colombiano e peruano, e do Comitê<br />

Nacional para os Refugiados – Conare. Segundo estas instituições, a demanda<br />

de solicitações de refúgio de colombianos nesta fronteira continua crescente.<br />

O Acnur tem mantido uma atenção constante na região. Recentemente,<br />

promoveu um seminário em parceria com o Departamento de Ciências Sociais da<br />

Universidade Federal do Amazonas – <strong>Ufam</strong>. 11 Mais recentemente, também com a<br />

mesma parceria, o Acnur esteve na região fronteiriça e nos municípios do Amazonas<br />

na linha que interliga Manaus à fronteira, a fim de mapear a localização dos<br />

“desplazados” colombianos que ainda não solicitaram refúgio e estão vivendo<br />

ilegalmente, indocumentados, na região.<br />

A situação de clandestinidade dos colombianos preocupa as instituições que<br />

se dedicam ao atendimento aos migrantes, porque esta os priva do direito de<br />

recomeçar suas vidas em terras brasileiras. O fato de estarem no Brasil em situação<br />

de clandestinidade os submete a agruras ainda piores do que as já sofridas na<br />

Colômbia. Muitos correm riscos, inclusive, de serem aliciados pelos grandes<br />

controladores do narcotráfico no território brasileiro. Pelo simples fato de ser um<br />

estado fronteiriço, o Amazonas não oferece condições de segurança a ponto de<br />

garantir uma proteção efetiva a esses refugiados.<br />

Entretanto, segundo os estudos migratórios, a guerrilha colombiana está<br />

cada vez mais complexa e a tendência é que os conflitos se acirrem na direção da<br />

fronteira com o Amazonas. Esse fator indica que é evidente a tendência de um<br />

aumento de ingressos de refugiados no Brasil. Daí a necessidade de um programa<br />

específico do Estado brasileiro para lidar com este fenômeno que, ao que tudo<br />

indica, não será muito transitório.<br />

Mesmo sem poder precisar uma análise mais quantitativa do fenômeno,<br />

é preciso estabelecer uma estratégia de acolhida e de condições para que estas<br />

pessoas possam se estabilizar no território brasileiro, por enquanto, sem previsão<br />

de retorno à Colômbia. O Estado brasileiro tem se esforçado, mas é preciso<br />

reconhecer que há muito por ser feito. Garantir proteção a uma pessoa em<br />

condição de refúgio não é algo muito simples. Implica um conjunto de elementos<br />

que vão desde as questões jurídicas e legais até a garantia de sobrevivência que<br />

implica emprego, saúde, educação e uma série de outros elementos essenciais ao<br />

ser humano no exercício de sua cidadania.<br />

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164 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

Essa reflexão é necessária porque eles, os refugiados, contam com todo o<br />

aparato do Estado para garantir que estejam a salvo das violações aos direitos<br />

humanos. Como afirma um refugiado em situação de fuga:<br />

Espero que não me matem. Espero que ninguém me siga.<br />

Espero não pisar em uma mina terrestre. Espero encontrar<br />

água rapidamente. Espero não morrer aqui. Espero que<br />

alguém me encontre. Espero que a ONU possa me ajudar.<br />

Espero que tenham encontrado comida e abrigo. Espero<br />

que eles possam me ajudar a encontrar minha família. Espero<br />

que possamos voltar algum dia. Espero que possamos<br />

encontrar um lugar para chamar de casa. Espero que<br />

aprendamos a nos adaptar. Espero que possamos construir<br />

um futuro aqui. Espero que nunca mais tenhamos que fugir<br />

novamente. 12<br />

Por isso é que as políticas migratórias não podem ser efetivadas de uma<br />

forma amadora ou com perspectivas transitórias. No caso dos refugiados, como já<br />

foi dito anteriormente, há uma legislação internacional que os ampara. No entanto, o<br />

Estado brasileiro tem um longo caminho a ser percorrido até estabelecer uma política<br />

realmente efetiva que garanta, de fato, proteção aos refugiados.<br />

Considerações finais<br />

Estas breves reflexões são algumas conjecturas em torno da temática da<br />

migração fronteiriça, também presente na região amazônica. São importantes para<br />

inserir o Amazonas nos estudos migratórios com aportes específicos da realidade<br />

migratória desta região fronteiriça que carece ainda de muito aprofundamento,<br />

inclusive por parte dos meios acadêmicos.<br />

A sofrida realidade vivida pelos migrantes peruanos e pelos refugiados<br />

colombianos no Amazonas, e mais especificamente em Manaus, denuncia as várias<br />

lacunas da política de migração brasileira, com suas leis arcaicas calcadas nos interesses<br />

puramente econômicos e comerciais, que nunca esteve aberta à migração de hispanoamericanos.<br />

Tal realidade é similar à situação de milhares de outros hispano-americanos<br />

que vivem em outras regiões do Brasil sem condições dignas de sobrevivência e sem<br />

garantias de seus direitos fundamentais.


Márcia Maria de Oliveira<br />

Como afirmou Narciso Julio Freire Lobo, em sua coluna no jornal O Estado<br />

do Amazonas, 12 de agosto de 2006, em artigo intitulado “A tríplice-fronteira”, a<br />

reflexão desta temática se faz cada vez mais necessária na Academia, porque<br />

[...] coloca em cena o valor de um curso de pós-graduação,<br />

entre nós, dedicado ao tema da Sociedade e da Cultura na<br />

Amazônia, abrindo oportunidade para o conhecimento de<br />

algumas de nossas mais cruciais feridas, como é o caso da<br />

migração compulsória, e desafia para as possibilidades de<br />

uma efetiva intervenção, na qual o homem, e seu bemestar,<br />

também estejam em pauta.<br />

Oxalá essa temática da migração fronteiriça continue a ser aprofundada e<br />

que os migrantes possam ser vistos na sua complexidade, como novos sujeitos sociais,<br />

que desafiam nossa alteridade e a possibilidade de estender os laços das nossas<br />

relações sociais e interculturais; porque a permanente atitude de acolhida aos migrantes<br />

faz com que a sociedade supere suas práticas xenófobas, sua indiferença e atitudes<br />

discriminatórias. Os migrantes, nas suas mais variadas situações, ampliam nossas<br />

experiências existenciais.<br />

Notas<br />

1 Conforme os relatórios do Instituto del Mundo del Trabajo (com sede em Buenos<br />

Aires), n. 12, de maio de 2004, o principal fator causador da migração na América<br />

Latina é o desemprego crescente e a falta de alternativas econômicas para as classes<br />

populares empobrecidas http://www.mundodeltrabajo.org.ar/. Acessado em<br />

10.02.2007.<br />

2 O golpe militar de 03 de outubro de 1968. Uma vez instaurada a longa ditadura<br />

militar, que se estendeu até 29 de agosto de 1975, o país começou um dos períodos<br />

mais sangrentos de sua história.<br />

3 Segundo os formulários de atendimento do escritório do Serviço Pastoral dos<br />

Migrantes da Arquidiocese de Manaus, a maioria dos migrantes declara que sua<br />

entrada na Amazônia brasileira se deu há menos de 10 anos. A década de 1990<br />

aponta o maior número de entradas.<br />

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Migrações fronteiriças: uma reflexão...<br />

4 Visto de turista que permite a permanência legal por até noventa dias, ou contrato<br />

internacional de trabalho previamente tramitado ou ainda visto de estudante,<br />

pesquisador, ou outras modalidades previstas na Lei n. 6.815.<br />

5 “Paisano” é a forma pela qual o peruano designa seu compatriota. Uma espécie de<br />

“conterrâneo”, da língua portuguesa.<br />

6 Há casos de peruanos que vivem em Manaus desde inícios da década de 1980 e<br />

nunca conseguiram legalizar sua situação.<br />

7 Art. 75, II, b da Lei n. 6.815/80. Concessão de permanência definitiva com base<br />

em filho (a) brasileiro (a). O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela<br />

Lei n. 8.490, de 19 de novembro de 1992, no uso das atribuições que lhe confere<br />

o Decreto n. 840, de 22 de junho de 1993, considerando o disposto na Lei n.<br />

6.815, de 19 de agosto de 1980, art. 4, parágrafo único, e art. 7, “resolve a concessão<br />

de permanência definitiva a estrangeiros que contraírem matrimônio com cônjugue brasileiro<br />

(a)”.<br />

8 Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951: um refugiado (a)é toda<br />

pessoa que por causa de fundados temores de perseguição devido à sua raça,<br />

religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política,<br />

encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não<br />

pode ou não quer regressar ao mesmo.<br />

9 A categoria “desplazados” da Colômbia designa as vítimas diretas da violência dos<br />

conflitos internos que conseguem sobreviver aos ataques constantes. São pessoas<br />

ou famílias que se encontram entre a linha de fogo dos grupos armados; são<br />

também pessoas recrutadas pelas facções que tentam abandonar o conflito e passam<br />

a enfrentar severas perseguições e ameaças até chegar ao ponto extremo da fuga<br />

sumária. “Desplazados” são ainda um contingente significativo de camponeses<br />

que são expulsos de suas terras, que passam a servir aos interesses dos grandes<br />

capitais ou dos grupos armados para o plantio de drogas ou outras especiarias que<br />

financiam a compra de armamentos.<br />

10 Quando um “desplazado” colombiano ingressa no território brasileiro, mais<br />

precisamente na cidade de Tabatinga, logo tem acesso a informações para<br />

pedir seu reconhecimento pelo Comitê Nacional para os Refugiados – Conare.<br />

O órgão público é responsável por receber solicitações de refúgio e determinar<br />

se os solicitantes reúnem as condições necessárias para serem reconhecidos<br />

como refugiados. Este órgão congrega representantes do Ministério do


Márcia Maria de Oliveira<br />

Trabalho e Emprego, das Relações Exteriores, da Educação, do Desenvolvimento<br />

Social, de departamentos da Polícia Federal e a Cáritas de São Paulo e<br />

do Rio de Janeiro, representando a sociedade civil. Primeiro, o solicitante<br />

preenche um formulário para informar e justificar sua vinda ao país. Estas<br />

informações vão para a Polícia Federal e após 15 dias de entrada no pedido,<br />

consegue um protocolo. A partir de então, o solicitante aguarda o <strong>jul</strong>gamento<br />

de seu processo jurídico, que se dá em três partes: a primeira é a entrevista<br />

entre o solicitante e os agentes da Polícia Federal, depois, são as entrevistas<br />

com os profissionais do Conare, e, finalmente, o órgão declara sua decisão<br />

com base nessas entrevistas.<br />

11 Evento realizado no dia 23 de maio de 2006 no Auditório Rio Solimões –<br />

ICHL/<strong>Ufam</strong>, que contou com a presença de 137 participantes – acadêmicos,<br />

professores e pesquisadores. Esteve presente também o presidente do Acnur<br />

no Brasil, Luiz Varezi.<br />

12 Texto em cartaz na ocasião do Dia Mundial dos Refugiados, celebrado em 20<br />

de junho de 2006. A autoria do texto deve ser mantida sob sigilo por sua<br />

condição de refugiado.<br />

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para políticas. Brasília: CNPD, 2001, p. 489-500.


A migração dos símbolos. Diálogo intercultural<br />

e processos identitários entre os bolivianos em São Paulo*<br />

Sidney Antonio da Silva**<br />

Resumo<br />

Este artigo discute a linguagem dos símbolos entre os bolivianos em São Paulo a<br />

partir de uma perspectiva antropológica, procurando inferir os significados que<br />

práticas e objetos da cultura material, veiculados no contexto das festas devocionais,<br />

passam a ter numa nova conjuntura. No caso em análise, o contexto apresenta uma<br />

especificidade que é a discriminação, razão pela qual estes imigrantes estão mobilizados<br />

em veicular uma nova imagem de si mesmos.<br />

Palavras-chave: imigrantes bolivianos; identidades; diálogo intercultural.<br />

Abstract<br />

This article aims to discuss from an anthropological perspective the language of<br />

symbols among Bolivian immigrants in São Paulo. It attempts to grasp the meaning<br />

that some cultural pratices presented in the context of devotional celebrations acquire<br />

in the new country. In the case under analysis, the context presents a specific challenge,<br />

as they have to face racial and social discrimination. That is why these immigrants are<br />

now engaged in showing a new image of themselves to Brazilian society.<br />

Keywords: bolivian immigrants; identities; intercultural dialogue.<br />

* Trabalho apresentado na IX ABANNE – Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste – Manaus-AM, 2005.<br />

** Antropólogo e pós-doutorando no Núcleo de Estudos Populacionais – NEPO/UNICAMP. Professor do Departamento de<br />

Antropologia. Universidade Federal do Amazonas. E-mail: sidsilva@ufam.edu.br<br />

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A migração dos símbolos...<br />

O processo migratório implica, invariavelmente, além da transposição de<br />

fronteiras geográficas, a inserção em uma nova ordem sociocultural, a qual é, em<br />

geral, marcada por tensões e estranhamentos, que acabam por incidir na dinâmica<br />

cultural do grupo dos emigrados, conferindo-lhe significações específicas.<br />

A inserção dos migrantes num novo contexto não significa, porém, a perda<br />

ou simplesmente a fusão da sua cultura original com a nova cultura. Ao contrário,<br />

esta tende a simplificar-se e a condensar-se em alguns traços, que passam a ser<br />

distintivos para o grupo que os veicula, conferindo-lhe maior visibilidade.<br />

É nesse contexto contrastivo que elementos da cultura material, como<br />

os aguayos (tecidos multicoloridos), formas lingüísticas, ou mesmo expressões<br />

mais complexas, como rituais, tradições, festas, entre outros, ganham relevância,<br />

evocando, muitas vezes, vários significados, dependendo da situação em que<br />

são veiculados. Nessa perspectiva, este trabalho propõe-se a analisar a linguagem<br />

dos símbolos no contexto migratório, particularmente para grupos que enfrentam<br />

alguma forma de discriminação, como é o caso dos bolivianos em São Paulo, os<br />

quais se encontram mobilizados em torno da construção de uma nova imagem<br />

de si mesmos. Isto se deve ao fato de que a imprensa local tem veiculado com<br />

freqüência notícias que mostram o envolvimento de membros do grupo com o<br />

tráfico de trabalhadores e a escravização dos próprios compatriotas nas oficinas<br />

de costura da cidade. Nesse sentido, a prática abusiva de alguns oficinistas acaba<br />

incidindo na construção de uma imagem negativa, a qual é atribuída ao grupo<br />

como um todo por setores da sociedade local.<br />

Cruzando fronteiras<br />

A inserção dos imigrantes num contexto sociocultural diverso, e quase<br />

sempre adverso, é um processo marcado por conflitos e estranhamentos, seja<br />

para os recém chegados, que não dominam os códigos culturais locais, seja para<br />

a sociedade receptora, que tende a vê-los a partir dos estereótipos já construídos,<br />

transformando as diferenças étnicoculturais em algo exótico ou depreciativo.<br />

Assim, em primeiro lugar, é preciso lidar com esses preconceitos da sociedade<br />

local, os quais vêm à tona à medida que o grupo dos imigrados passa a disputar<br />

com os nacionais espaços no mercado de trabalho, no bairro onde moram,<br />

sobretudo no que diz respeito aos serviços básicos de saúde e educação, nas


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instâncias de representação política e na dinâmica cultural da cidade. Em segundo<br />

lugar, a transposição de fronteiras geográficas implica, no limite, o desafio de<br />

ser aceito como um cidadão pelo país de destino, tendo os seus direitos sociais,<br />

políticos e culturais respeitados, o que nem sempre acontece.<br />

Embora a presença boliviana em São Paulo tenha se tornado significativa<br />

somente a partir da década de 1980, pode-se dizer, entretanto, que tal presença<br />

não é um fenômeno recente, pois no início da década de 1950 já era possível<br />

constatar alguns bolivianos na cidade na condição de estudantes, os quais vieram<br />

estimulados pelo programa de intercâmbio cultural Brasil-Bolívia. Após o<br />

término dos estudos, muitos deles acabavam optando pela permanência na<br />

cidade, em razão das múltiplas ofertas de emprego encontradas naquele momento<br />

no mercado de trabalho paulistano (SILVA, 1997, p. 82). As razões pelas quais<br />

os bolivianos continuam deixando a Bolívia são múltiplas. Porém, os fatores de<br />

ordem econômica são preponderantes na decisão de emigrar, já que o mercado<br />

de trabalho brasileiro, mesmo na denominada “década perdida”, ou seja, a de<br />

1980, oferecia mais oportunidades de emprego do que o mercado de trabalho<br />

boliviano, já que o país enfrentava uma profunda crise econômica, com altos<br />

índices de inflação e desemprego.<br />

Desde os anos 80 foi-se construindo um perfil característico desses<br />

imigrantes, que em sua maioria são jovens de ambos os sexos, solteiros e de<br />

escolaridade média, e vieram atraídos principalmente pelas promessas de bons<br />

salários feitas pelos empregadores coreanos, bolivianos ou brasileiros da indústria<br />

da confecção. Oriundos de várias partes da Bolívia, porém com uma<br />

predominância dos pacenhos e cochabambinos, estes imigrantes passaram a<br />

apostar tudo na atividade da costura, alimentando, assim, sonhos de uma vida<br />

melhor para si mesmos e seus familiares que lá ficaram.<br />

Hoje a presença boliviana é um fato consolidado na cidade de São Paulo,<br />

seja pela manutenção do fluxo migratório ao longo da década de 1990, tornandose<br />

o grupo mais numeroso entre os hispano-americanos que vivem na cidade,<br />

seja pelo fato de que novas famílias começaram a se formar em São Paulo, em<br />

geral, de forma endogâmica.<br />

Do ponto de vista espacial, os bolivianos (as) estão concentrados em bairros<br />

da zona central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, entre outros.<br />

Entretanto, há também uma significativa presença deles em bairros da Zona Leste,<br />

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como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera, Guaianases, e em bairros da Zona Norte,<br />

como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa Verde, Cachoeirinha, entre outros.<br />

Outro fator que vale ser destacado é o organizacional uma vez que nos<br />

últimos anos surgiram várias instituições de cunho social e cultural, entre elas as<br />

fraternidades folclóricas de morenadas, fundadas em função das festas devocionais. A<br />

Fraternidade Bolívia Central, a primeira a ser fundada na cidade por ocasião da festa<br />

da Virgem de Copacabana de 2001, é a mais expressiva delas, pois reúne pelo<br />

menos trezentos integrantes, em sua maioria, donos das oficinas de costura. Contudo,<br />

há também a participação de dançarinas (os) de outras classes sociais, inclusive crianças,<br />

o que revela a preocupação do grupo em manter a continuidade da tradição pela<br />

segunda geração. Todos os anos novas roupas e alegorias são alugadas e trazidas da<br />

Bolívia para dar um colorido e brilho novo às festas tradicionais de que participam.<br />

O custo do aluguel gira em torno de US$ 100.<br />

O significado de tal presença, a meu ver, fundamenta-se em dois fatores: por<br />

um lado, é preciso considerar a importância econômica da mão-de-obra boliviana,<br />

pois grande parte dos que chegaram nas décadas de 1980 e 1990 trabalha na indústria<br />

da confecção, seja para coreanos, para brasileiros ou mesmo para os próprios<br />

compatriotas, que vão à Bolívia agenciar trabalhadores para as suas oficinas de costura. 1<br />

O problema é a forma como esta reprodução econômica se dá, ou seja, sem nenhuma<br />

regulamentação trabalhista, uma vez que parte desta mão-de-obra é indocumentada, 2<br />

abrindo, desta forma, espaço para relações de trabalho escravo (SILVA, 1997, p.126).<br />

É preciso lembrar, no entanto, que dentro da comunidade há também um grupo<br />

significativo de médicos, enfermeiros(as), dentistas e outros profissionais liberais,<br />

dentre os quais muitos já enfrentaram e continuam sendo desafiados pelo problema<br />

da sua regularização jurídica e profissional no país.<br />

Por outro lado, a importância da presença boliviana em São Paulo se<br />

deve à vitalidade e pluralidade de suas manifestações culturais, as quais são<br />

reproduzidas em diferentes momentos do ano, seja no âmbito privado ou público.<br />

Entre os espaços públicos de maior visibilidade e mais freqüentados pelos<br />

bolivianos na cidade temos a Praça Kantuta, no Canindé, e a Igreja N. Sra. da<br />

Paz, no Glicério (região central).<br />

A praça é um espaço que foi conquistado por eles graças a um processo<br />

de negociação com a Prefeitura paulistana e a população local, que se sentiu<br />

incomodada com a presença destes imigrantes no bairro, uma vez que eles


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ocupavam, até o ano de 2002, a Praça Padre Bento, ou Praça do Pari, como é<br />

conhecida pelos moradores daquela região da cidade. A origem dos conflitos se<br />

deveu ao fato de que, com o aumento da presença boliviana na praça nos fins de<br />

semana, começaram a surgir casos de violência, circulação de droga, acúmulo de<br />

lixo no local, entre outros. Aos olhos dos moradores locais, o espaço público se<br />

transformava em privado quando era apropriado por “estranhos”, que acabavam<br />

invertendo a ordem cotidiana das coisas, impondo um novo ritmo ao bairro e à<br />

cidade (SILVA, 2005, p. 40). Assim, a transferência dos bolivianos para o novo<br />

local, denominado por eles de Praça Kantuta (nome de uma flor do Altiplano),<br />

foi o caminho encontrado para se resolver o conflito.<br />

Seja como for, a praça é hoje um “pedaço” boliviano na cidade, ainda que<br />

somente aos domingos. Além de ser um espaço de encontro, de degustação da<br />

variada gastronomia típica do país e de múltiplos serviços, como propostas de<br />

emprego, corte de cabelo, propaganda religiosa de igrejas evangélicas, a praça é<br />

também o palco de várias manifestações culturais. Entre elas vale citar a festa de<br />

Alasitas ou das miniaturas, realizada no dia 24 de janeiro, quando se festeja a<br />

deidade andina da abundância, denominada de Ekeko. Neste dia, as miniaturas<br />

de casas, carros, máquinas de costura, diplomas, alimentos, entre outras, deverão<br />

ser compradas antes do meio dia e abençoadas por um padre católico, bem<br />

como por um (a) yatiri (sacerdote andino), que faz o ritual da ch´alla, ou seja,<br />

uma oferenda à Pachamama (Mãe Terra), para que os desejos do devoto se tornem<br />

realidade (SILVA, 2003, p. 84).<br />

Outra festa que reúne uma grande quantidade de bolivianos (as) na Praça<br />

Kantuta é o carnaval. No domingo de carnaval vários grupos de danças, entre eles,<br />

a morenada, caporales, diablada, tinkus, chuntas e outros, que se formam especialmente<br />

para a ocasião, fazem a sua apresentação na praça. Todos os anos é realizado também<br />

um concurso de fantasias para crianças, que apresentam as fantasias das danças dos<br />

adultos, numa clara indicação de que elas deverão continuar a tradição de seus pais<br />

na sua nova pátria. Outra tradição que ainda persiste entre eles é a “molhança” ou a<br />

brincadeira com água, tradição praticamente extinta no contexto brasileiro, embora<br />

fosse característica da celebração do Entrudo no Rio de Janeiro no século 19.<br />

Ainda no contexto do carnaval, temos o martes de ch´alla, ou seja, a oferenda<br />

a Pachamama, realizada na terça-feira em âmbito privado e público. Neste dia se faz<br />

a ch´alla da casa, das máquinas de costura, do carro e outros objetos, e depois se<br />

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repete o mesmo ritual na praça, onde um pequeno pedaço de terra é cercado simbolicamente<br />

com serpentina para reverenciar e oferecer presentes à Mãe Terra, entre<br />

eles, bebida alcoólica, confetes, doces e incenso.<br />

A Igreja N. Sra. da Paz, no Glicério, é outro espaço freqüentado pelos<br />

bolivianos e outros grupos de hispano-americanos que vivem em São Paulo.<br />

Inaugurada em 1942 pelos missionários escalabrinianos para atender inicialmente os<br />

italianos, este local é hoje uma referência para os imigrantes mais pobres, pois lá são<br />

oferecidos vários serviços, entre eles orientação religiosa, jurídica, psicológica e<br />

assistência social, incluindo, até mesmo, alojamento para quem não tem onde ficar<br />

no momento da sua chegada na cidade, ou quando as redes sociais de apoio dentro<br />

do grupo falham.<br />

Entretanto, vale destacar neste contexto a excepcional visibilidade que o ciclo<br />

de festas devocionais realizadas naquela igreja confere aos bolivianos e a outros<br />

grupos de hispano-americanos. Tal ciclo inicia-se em <strong>jul</strong>ho com a festa da Virgem<br />

do Carmo, realizada pelos chilenos, seguidas pelas festas bolivianas das Virgens de<br />

Copacabana e Urkupiña, no mês de agosto, pela festa peruana do Senhor dos Milagres,<br />

no fim de outubro, e finalizando com a festa da Virgem de Caacupê, realizada no<br />

início de <strong>dez</strong>embro pelos paraguaios.<br />

Nas festas bolivianas, o que chama a atenção é a quantidade de pessoas de<br />

diferentes classes sociais, faixas etárias e origens étnicas que elas são capazes de aglutinar,<br />

bem como a diversidade de tradições, ritmos, sabores e objetos da cultura material<br />

veiculados nestas festividades. Nesse sentido, os símbolos, graças à sua polissemia,<br />

que lhes permite exprimir uma pluralidade de significados, constituem-se num<br />

importante canal de diálogo para grupos de imigrantes em vias de inserção num<br />

novo contexto, como é o caso dos bolivianos em São Paulo. Em seguida, veremos<br />

como símbolos aparentemente dissonantes conversam entre si e, ao mesmo tempo,<br />

abrem possibilidades de aproximação entre diferentes culturas.<br />

A linguagem dos símbolos no contexto migratório<br />

A cultura de um grupo étnico no âmbito migratório, como já notara Manuela<br />

C. da Cunha em outro contexto, não se perde ou se funde simplesmente à cultura<br />

local, mas tende a simplificar-se e a concentrar-se em alguns traços, que se tornam<br />

diacríticos para o grupo. A língua é um deles, pois como sistema simbólico capaz de


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organizar a percepção do mundo, constitui-se num diferenciador por excelência<br />

(CUNHA, 1986, p. 99 -100). A culinária, os trajes, ritmos musicais, danças típicas e<br />

outros elementos da cultura material são, em geral, veiculados pelos diferentes grupos<br />

de imigrantes como elementos constitutivos das várias identidades em jogo.<br />

No caso dos bolivianos em São Paulo, eles são ao mesmo tempo<br />

elementos de diferenciação, seja em âmbito regional ou do ponto de vista étnico<br />

e cultural, e fatores de aglutinação e afirmação da identidade nacional num<br />

contexto de contato interétnico e de discriminação. As danças da Morenada e da<br />

Diablada são emblemáticas desta realidade, pois, originárias de um contexto de<br />

escravidão do negro e do índio nas minas de prata da Bolívia, elas passam a ser<br />

no Brasil expressão de uma identidade boliviana positiva, independentemente<br />

da origem histórica de cada uma delas, em geral pouco conhecida pelos dançarinos.<br />

Vale lembrar, porém, que estas danças eram vinculadas a um contexto religioso<br />

e, portanto, passaram a ser vista pelos colonizadores como “diabólicas”, pois,<br />

segundo Max Weber (1969), esta é a forma de se representar a religião dos<br />

vencidos. Um exemplo são as máscaras da Morenada e da Diablada, as quais<br />

ressaltam, por um lado, de forma exagerada e ridicularizada, os traços africanos<br />

e, por outro, a demonização propriamente dita do Outro. Entretanto, ao cruzarem<br />

as fronteiras geográficas e culturais, estes símbolos são evocados e apresentados<br />

com orgulho pelos bolivianos (as) como elementos constitutivos de uma possível<br />

“identidade cultural”, ainda que a pluralidade cultural seja uma característica<br />

inconteste daquele país andino. 3<br />

Isto fica evidenciado, sobretudo, no contexto das festas devocionais em São<br />

Paulo, nas quais se veicula uma multiplicidade de tradições e práticas culturais, entre<br />

elas, a instituição do presterío, que consiste na escolha de um novo festeiro a cada ano<br />

para organizar os festejos, contando com a ajuda de colaboradores (padrinhos),<br />

denominada por eles de ayni. Esta tradição, fundada na lógica da dádiva, implica na<br />

obrigação de restituir o dom ofertado, quando o doador organizar algum tipo de<br />

festa, seja em âmbito privado, como é o caso dos batizados e fim do luto, ou<br />

público, como é o caso das festas devocionais.<br />

A colaboração pode ser, por exemplo, armar os arcos no local da festa,<br />

revestindo-os de aguayos (tecidos multicoloridos) e adornando-os com objetos<br />

de prata, máscaras, flores, artesanatos ou oferecer as colitas, representação em<br />

miniatura de pequenos objetos obsequiados aos participantes da festa. Ela pode<br />

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ainda consistir em fazer um cargamento, ou seja, adornar um carro com aguayos,<br />

utilizando objetos de prata ou bonecas vestidas tipicamente. Esta tradição<br />

remonta à época pré-colombiana, quando os metais preciosos, que não tinham<br />

valor de troca, eram levados no lombo de animais para serem oferecidos às<br />

divindades incaicas. Hoje esta tradição continua vigente, seja nas festas<br />

devocionais realizadas na Bolívia, seja naquelas realizadas no exterior, como é o<br />

caso de São Paulo, ocasião em que os devotos fazem passar perante a Virgem os<br />

símbolos de sua riqueza obtida da terra, isto é, graças à intermediação da<br />

Pachamama, oferecendo-a como agradecimento ou em caráter propiciatório, na<br />

esperança de obter a dádiva da Mãe Terra (MAUSS, 2005). Porém, agora essa<br />

riqueza já não é mais retirada da terra, como em épocas pretéritas, mas do trabalho<br />

super-explorado nas confecções da cidade (SILVA, 2003, p. 89).<br />

Por isso mesmo, assim como agora varia o contexto da festa, variam também<br />

seus elementos, com o acréscimo de outros que vão sendo a ela incorporados a<br />

cada ano. Este é o caso do Pato Donald, adornado com notas de dólares, ou da<br />

alegoria de um boi que surgiu no ano de 2005, reproduzindo exatamente a figura do<br />

animal branco com uma estrela vermelha na testa que se apresenta no boi-bumbá<br />

Garantido, por ocasião do famoso Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas.<br />

A presença deste símbolo pela primeira vez na festa da Virgem de<br />

Copacabana, uma festa de caráter regional na Bolívia (La Paz), e que no exterior se<br />

transforma em festa dos bolivianos, nos instiga a pensar quais seriam os significados<br />

desta presença aparentemente exótica num contexto cultural diferenciado. Em<br />

primeiro lugar, importa ressaltar que a festa, como um fato social total, põe em circulação<br />

uma multiplicidade de elementos culturais e sociais, num complexo sistema de prestações<br />

totais (MAUSS, 1974, p. 179). Em segundo lugar, o seu meio de expressão,<br />

particularmente através das formas sensíveis e simbólicas, permite o diálogo com<br />

elementos de outras culturas, os quais parecem estar fora de lugar para uma percepção<br />

mais desavisada. Entretanto, eles encontram pontos de intersecção num imaginário<br />

cultural mais amplo, onde em sua polissemia os símbolos podem prestar-se a<br />

interessantes diálogos.<br />

No caso das culturas andinas, é importante destacar a presença de um símbolo<br />

como a llama branca sacrificada à Pachamama por ocasião do plantio. Símbolos desta<br />

natureza são comuns em contextos onde a relação do homem com a terra é vital<br />

para a sua sobrevivência, como é o caso dos povos andinos. Para estes, a abundância


Sidney Antonio da Silva<br />

não é uma simples decorrência das respostas da natureza à ação do homem, mas<br />

depende de uma relação de reciprocidade, expressa nos rituais de fertilidade, onde o<br />

derramamento de sangue é fundamental para se garantir uma boa colheita. É nesse<br />

contexto que a llama branca aparece como uma mediação entre morte e vida, privação<br />

e abundância de bens que são pedidos à Pachamama (Mãe Terra) no início do mês de<br />

agosto. Ora, esse é também, em outra versão, o significado do animal encontrado<br />

nos bois-bumbás de Parintins e nos bumba-meu-boi de outras partes da Região<br />

Nordeste, o qual é definido por Mário de Andrade como expressão de algo “maior<br />

e geral” que é o “princípio de Morte e Ressurreição” da natureza (ANDRADE,<br />

apud BRAGA, 2002, p. 336).<br />

Contudo, a figura do boi não é uma exclusividade brasileira. Ele está<br />

presente em diferentes contextos latino-americanos, como resultado de um<br />

processo de mestiçagem cultural entre tradições ibero-americanas, indígenas e<br />

africanas que ocorreu no Brasil, assim como no restante da América espanhola.<br />

No Brasil, as festas do boi são celebradas, sobretudo no Nordeste e Norte do<br />

país, no mês de junho, época das comemorações das festas de São João, sendo<br />

sua versão mais conhecida os Bumba-meu-boi do Maranhão. Parintins é hoje<br />

um exemplo emblemático da vitalidade desta tradição que, migrando para o<br />

Amazonas com os trabalhadores nordestinos no ciclo da borracha, mobiliza a<br />

região amazônica em torno da saga dos bois Garantido e Caprichoso, que se<br />

enfrentam a cada ano numa disputa criativa e renovadora.<br />

A festa é um auto que dramatiza, segundo a narrativa dos brincantes, a estória<br />

de Catirina, mulher de um peão de fazenda, chamado Pai Francisco, que estava<br />

grávida e queria comer língua de boi. Desesperado, seu marido resolve matar o boi<br />

do dono da fazenda, o Amo do boi. Denunciado por um dos vaqueiros, e perseguido<br />

por índios guerreiros a serviço do Amo, Pai Francisco tem que encontrar um meio<br />

de trazer o boi de volta. Assim, ele resolve chamar outros personagens para ajudálo<br />

a “curar” o boi – o padre, o doutor, o pai de santo, o pajé – até que algum deles<br />

(o personagem varia de lugar para lugar, segundo a intenção satírica do auto) o<br />

aconselha a aplicar um clister no rabo do boi. Feito o que lhe fora ensinado, o boi dá<br />

o seu urro, demonstrando que está vivo, e todos comemoram com danças, comida<br />

e bebida a ressurreição do boi (BRAGA, 2002, p. 27-28). Em sua versão amazônica,<br />

a estória narrada pelo auto dramático é minimizada, reduzindo-se a personagens<br />

obrigatórios, porém, quase só alegóricos (Pai Francisco, Catirina, o Amo, os Vaqueiros)<br />

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para dar lugar ao grande espetáculo do poder do Pajé, transformando-se em celebração<br />

dos povos indígenas da Amazônia.<br />

No caso do Peru, o boi aparece na Yawar fiesta, que significa festa do sangue,<br />

realizada entre os dias 26 a 30 de <strong>jul</strong>ho, em povoados como Cotabambas (Apurímac),<br />

região de Cuzco. Vale notar que as festividades acontecem durante as celebrações<br />

comemorativas da independência peruana, o dia 28 de <strong>jul</strong>ho.<br />

O ritual consiste em capturar um condor que é apresentado ao prefeito na<br />

entrada da cidade, o qual lhe dá as boas-vindas. Depois ele é colocado em cima de<br />

um boi que, ao movimentar-se, assusta o condor e este começa a bicar o lombo do<br />

animal até sangrar. A presença do sangue não é aleatória, já que ele fecunda a terra, o<br />

ventre da Pachamama, aquela que dá os bens necessários à vida. É importante dizer<br />

que a referida festa está ancorada em princípios comuns às cosmologias andinas,<br />

onde cada elemento tem um significado e, portanto, ganha um sentido particular<br />

para os participantes da festa. O condor está associado aos ancestrais e é denominado<br />

de Apu (Senhor), de modo que seu habitat, as montanhas, são também consideradas<br />

seres vivos, morada dos ancestrais, e por esta razão cada comunidade tem uma<br />

montanha como protetora.<br />

Nesta perspectiva, o condor, denominado de Apu Kuntur (condor sagrado),<br />

pertence à esfera celeste, ou seja, ao mundo superior, em contraposição ao touro,<br />

denominado de Wak´as, divindade pertencente ao mundo inferior. No meio está<br />

a Pachamama, a Mãe-Terra, que gosta de receber presentes, como a folha da coca,<br />

incenso, chicha (bebida fermentada do milho), cerveja, entre outros, e, assim,<br />

também o sangue que resulta do encontro auspicioso entre os mundos superior<br />

e inferior. Neste contexto, a festa acontece em meio a uma grande expectativa,<br />

pois se ocorrer algum acidente com o condor, no momento de fazer sangrar o<br />

boi, e ele vier a morrer, algo de ruim poderá sobrevir à comunidade, como uma<br />

forte seca ou a morte de algum parente daquele que capturou o condor. Assim,<br />

o momento da sua soltura é marcado por um grande alívio e satisfação para<br />

aqueles que participaram do ritual.<br />

No Paraguai, tal como no Brasil, o boi aparece no contexto das festas juninas,<br />

ou seja, durante os festejos de São João. Naquele país, esta tradição recebe o nome<br />

de Toro Candil, uma vez que, durante a festa, a armadura de um touro, feita em<br />

madeira recoberta com o couro natural de um boi, é carregada por um personagem,<br />

que ameaça precipitar-se sobre os participantes da festa, os quais expressam um


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grande prazer em enfrentar o boi, que tem a cabeça em chamas. No final da brincadeira,<br />

o boi é queimado na fogueira, sendo, portanto, sacrificado simbolicamente.<br />

Já na Bolívia a brincadeira com o boi, denominado de Waka tok‘oris ou de<br />

toros bailadores, aparece no contexto do carnaval (tal como o Bumba-meu-boi em<br />

Pernambuco e Alagoas e o Boi-de-mamão em Santa Catarina) e também das festas<br />

devocionais, entre elas, a da Virgem de Urkupiña (Cochabamba) e a de Gran Poder<br />

(La Paz), quando um personagem com a armadura do boi e um outro na condição<br />

de toureiro simulam uma tourada. A cada três passos o boi dá uma volta e aquele<br />

que imita o toureiro levanta uma espada de madeira insinuando o ato de sacrificá-lo<br />

(PAREDES, 1981, p. 40-41).<br />

Seja como for, este boi que aparece em diferentes festas latino-americanas é<br />

“bom para pensar” a dinâmica da cultura, particularmente no contexto da migração,<br />

pois os símbolos em sua polissemia vão revelando uma pluralidade de significados<br />

que permitem o diálogo entre contextos culturais aparentemente distantes e<br />

desconexos e, ao mesmo tempo, são signos aferidores de identidades. No caso de<br />

Parintins, o boi é o elemento central em torno do qual se constrói uma identidade<br />

regional que é reafirmada anualmente no ciclo das festas juninas, a partir da disputa<br />

entre os bois Garantido e Caprichoso (VIEIRA FILHO, 2002, p. 31). Já em São<br />

Paulo, o boi indicaria a existência de uma mediação cultural dialogando com a llama,<br />

símbolo das culturas andinas e, portanto, elemento de afirmação de uma identidade<br />

andina e boliviana que quer impor-se enquanto positividade em meio a um contexto<br />

de discriminação, como é o vivido pelos bolivianos na atualidade.<br />

Esta é a identidade que se afirma através da festa,“confundindo-se” com a<br />

cultura local; é, ao mesmo tempo, signo da “carnavalização” que marca ambos os<br />

festejos. 4 Um exemplo é a fala de Guillermo Salazar, residente há mais de quarenta<br />

anos na cidade, o qual só nos últimos anos começou a participar das festas marianas.<br />

Antes, ele procurava viver no anonimato e não participava de nenhuma atividade<br />

organizada por bolivianos, o que pode ser interpretado como uma estratégia para<br />

não ser identificado como boliviano, em razão dos preconceitos com que seu grupo<br />

é visto por setores da sociedade paulistana e com os quais teria que lidar. Hoje,<br />

participante das festas devotas, ele afirma enfaticamente: “solamente ahora tengo consciencia<br />

de mis raíces”. Isto significa que agora não tem mais receio de se assumir enquanto<br />

boliviano, pacenho, andino e de ascendência aimará, sente-se orgulhoso destas formas<br />

de pertencimento e identidades que as festas e seus símbolos lhe permitem reconhecer.<br />

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A migração dos símbolos...<br />

Assim, como uma linguagem distintiva, a migração dos símbolos permite<br />

dizer várias coisas ao mesmo tempo sobre quem os veicula, bem como criar novas<br />

formas de diálogo com o novo contexto que os recebe, e que é marcado, não raras<br />

vezes, por tensões e ambigüidades.<br />

Notas<br />

1 Vale notar que existem redes de agenciamento de mão-de-obra na Bolívia, em<br />

cidades como La Paz, de onde vem grande parte dos bolivianos que vivem em<br />

São Paulo, e Santa Cruz de La Sierra, cidade mais próxima do Brasil e, portanto,<br />

última etapa antes da saída do país. O custo da viagem para o emigrante pode<br />

variar, dependendo do trajeto escolhido. Para quem opta pela entrada por Corumbá<br />

– MT, pode custar cerca de US$ 120,00. Porém, o risco de ser detido por um<br />

agente federal é maior. Já quem escolhe a rota do Paraguai terá que enfrentar uma<br />

longa e exaustiva viagem até chegar à Ciudad Del Leste, para depois cruzar a<br />

fronteira e entrar no Brasil por Foz do Iguaçu – PR. O custo deste trajeto pode<br />

chegar a US$ 160,00.<br />

2 O problema da indocumentação tem sido um dos grandes desafios para os<br />

imigrantes mais pobres no Brasil, particularmente para os bolivianos, uma vez que<br />

o Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980 por decurso de prazo e num contexto<br />

de Segurança Nacional, só permite a entrada de mão-de-obra especializada e de<br />

empreendedores no país. Para os que não se enquadram nestes critérios, as duas<br />

únicas possibilidades de regularização são o casamento com cônjuges brasileiros<br />

ou o nascimento de um filho em território brasileiro. Um novo projeto de lei está<br />

em discussão no Congresso Nacional. Entretanto, a nova proposta mantém o seu<br />

caráter seletivo e economicista, sem levar em conta a política de Direitos Humanos<br />

do governo brasileiro. No dia 15 de agosto de 2005 foi assinado um acordo entre<br />

o Brasil e a Bolívia para a regularização dos indocumentados em ambos os países.<br />

O problema, porém, é a pesada multa que cada imigrante terá que pagar para<br />

regularizar-se, a qual gira em torno de R$ 828,00, valor equivalente a cem dias de<br />

ilegalidade no país.<br />

3 Vale notar que a questão da identidade cultural, quando tomada de forma<br />

essencialista, “pode levar a uma racialização dos indivíduos e dos grupos, pois<br />

para algumas teses radicais, a identidade está praticamente inscrita no patrimônio


Sidney Antonio da Silva<br />

genético”. Nesta perspectiva, a identidade “é vista como uma condição imanente<br />

do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva” (CUCHE, 1999, p.<br />

178-179). Num contexto contrastivo, como o vivido pelos bolivianos em São<br />

Paulo, a tendência é precisamente apresentar uma identidade cultural de tipo<br />

essencializado, pois o que está em jogo é a afirmação de uma identidade positiva<br />

numa situação de discriminação.<br />

4 Não é por acaso que danças como a Morenada e a Diablada, entre outras, que em<br />

geral são apresentadas no carnaval de Oruro e também nas festas devotas em São<br />

Paulo, vão parar na quadra da escola de samba Camisa 12, local onde ocorre o<br />

último dia dos festejos.<br />

Referências<br />

ARGUEDAS, José María. Yawar Fiesta. Lima: Mejía Baca, 1958.<br />

BRAGA, Sérgio Ivan Gil. Os bois-bumbás de Parintins. Rio de Janeiro/Manaus: Funarte/<br />

Editora Universidade do Amazonas, 2002.<br />

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.<br />

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.<br />

CUNHA, Manuela C. Antropologia do Brasil: mito história, etnicidade. São Paulo:<br />

Brasiliense/EDUSP, 1986.<br />

HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações. Belo Horizonte: Ed. UFMG,<br />

2003.<br />

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, v. 1 e 2, 1974.<br />

________. O sacrifício. São Paulo: Cosac-Naify, 2005.<br />

PAREDES, M. Rigoberto. El arte folklórico de Bolivia. La Paz: Librería Editorial Popular,<br />

1981.<br />

ROJO, Hugo Boero. Fiesta boliviana. La Paz: Editorial “Los Amigos del Libro”,<br />

1991.<br />

SILVA, Sidney A. da. Costurando sonhos. Trajetória de um grupo de imigrantes bolivianos<br />

em São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1997.<br />

________. Salud! Sirvase, compadre! A comida e a bebida nos rituais bolivianos<br />

em São Paulo. Travessia – Revista do Migrante, n. 42, jan./abr., 2002 p. 5-10.<br />

________. Virgem/Mãe/Terra. Festas e tradições bolivianas na metrópole. São Paulo:<br />

Hucitec, Fapesp, 2003.<br />

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A migração dos símbolos...<br />

________. A praça é nossa: faces do preconceito num bairro paulistano. Travessia –<br />

Revista do Migrante, n. 51, jan./abr., 2005, p. 39-44.<br />

VIEIRA FILHO, Raimundo Dejard. A festa de boi-bumbá em Parintins: tradição e<br />

identidade cultural. Somanlu - Revista de Estudos Amazônicos, Manaus, edição especial,<br />

ano 2, v. 2, p. 27-33, 2002.<br />

Vídeo TV Cultura. Festas Latino-americanas, 1997.<br />

WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969.


Entrevista


Benedito Nunes, mestre e filósofo<br />

Filósofo e crítico literário, professor titular de Filosofia da Universidade Federal<br />

do Pará, professor de filosofia e literatura em várias universidades do Brasil, Estados<br />

Unidos e França, Benedito Nunes foi aluno de Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur.<br />

Sua obra tem influenciado a crítica literária a partir do viés fenomenológico e da<br />

relação autor-texto. Neste campo de estudos destacam-se seus livros: Oswald Canibal<br />

(1979) e Os melhores poemas de Mario Faustino. No campo da Filosofia, os ensaios sobre<br />

Nietzsche, O Nietzsche de Heidegger (2000) e Heidegger e Ser e Tempo (2002), e sobre<br />

Filosofia da arte, Introdução à Filosofia da Arte (1966).<br />

Benedito Nunes recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1987.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Filosofia e Literatura<br />

Entrevista com Benedito Nunes*<br />

Davi Avelino: Professor Benedito Nunes, fale-nos um pouco sobre sua formação.<br />

Benedito Nunes: Sou formado, na verdade, em Direito, e fiz toda minha outra<br />

formação, quer dizer, em Filosofia, autodidaticamente, embora tenha feito alguns<br />

cursos de aperfeiçoamento, até no estrangeiro. Mas, na verdade, eu sou um autodidata<br />

em Filosofia.<br />

Davi: Professor, na agitada e efervescente Belém da década de 40, qual seu cenário<br />

intelectual? Qual o papel do poeta Francisco Paulo Mendes e dos encontros no Café<br />

Central, para a formação intelectual de sua geração?<br />

Benedito Nunes: Isto tem toda uma história, boa e muito longa também. O<br />

Francisco Mendes não foi poeta, mas ele foi uma expressão, digamos assim, ele<br />

foi um fazedor de poetas. Ele estimulou o aparecimento de novos poetas, aceitou<br />

a obra de muitos que já haviam produzido e descobriu poetas novos e noviços,<br />

isso é o principal. E com essas suas descobertas, ele avalizou o sentido que hoje<br />

nós damos a ele.<br />

Davi: Falando agora de Literatura. Aldrin Moura de Figueiredo nos fala de querelas<br />

do Modernismo, entre Mário de Andrade e o Modernismo da Academia dos Novos.<br />

(Benedito ri). Existe uma especificidade na literatura produzida na Amazônia<br />

comparada à literatura produzida nacionalmente?<br />

* Entrevista realizada no dia 24 de março de 2006, por ocasião do lançamento do livro Crônica de duas cidades: Belém e<br />

Manaus, dos autores Benedito Nunes e Milton Hatoum, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA, por Davi<br />

Avelino e Andréa Andrade, mestrando e mestra, respectivamente, do PPGSCA.<br />

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188 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Filosofia e Literatura<br />

Benedito Nunes: O que ele quer se referir é a um episódio muito interessante<br />

que faz parte do início de minha juventude. Eu e alguns amigos, desatualizados<br />

naquela época, lendo só determinadas obras literárias e esquecendo o<br />

modernismo, achávamos que não éramos modernistas, e que devíamos fazer<br />

uma campanha contra. Então nos reunimos no meio de uma Academia, quer<br />

dizer, consagramos o academicismo, e formamos uma Academia. Mas, éramos<br />

todos muito novos. Eu deveria ter treze anos naquela época, Haroldo Maranhão<br />

deveria ter um pouco mais, quatorze, ele fez parte também, Max Martins, todos<br />

esses que hoje são poetas e escritores de grande vigor, fizeram parte desta Academia<br />

dos Novos. Tem uma caricatura nossa daquela época... (Benedito ri).<br />

Davi: Os seus trabalhos de crítica literária, como Crivo de Papel e o Drama da<br />

Linguagem, nos propõem um método analítico, onde a Filosofia pode se valer da<br />

Literatura, para se discutir questões essenciais da vida, porém essa abordagem<br />

filosófica da subjetividade não se confunde com a mera subjetividade psicológica<br />

ou literária. Quais seriam as diferenças entre a subjetividade filosófica e a<br />

subjetividade literária?<br />

Benedito Nunes: O fato de aproximarmos obras mostra que elas se desprendem<br />

de seus autores e passam a ganhar vida, uma vida própria. Assim, por exemplo,<br />

uma obra de Filosofia pode se aproximar de uma obra literária, ou vice-versa.<br />

Essa aproximação tem sido muito fértil, especialmente no caso de determinados<br />

autores. Não deve, entretanto, ser compreendido como um método universal.<br />

Determinadas obras o requerem, outras não.<br />

Davi: Paul Ricoeur, em O conflito das interpretações, ensaio sobre Hermenêutica, nos fala<br />

do poder ontológico da linguagem, que se expressa através da leitura dos textos.<br />

Quais as conseqüências dessa proposta de Ricoeur para a Filosofia e para a<br />

crítica literária?<br />

Benedito Nunes: Essa abordagem de Ricoeur já se faz no ângulo da aproximação<br />

entre a Filosofia e a Literatura. O fato de ele falar num poder ontológico da linguagem,<br />

já está falando em Ontologia e, portanto, já está vendo a Literatura num ângulo<br />

filosófico e, particularmente, de um ângulo que parece metafísico, uma vez que a<br />

Ontologia faz parte da metafísica.<br />

Davi: Quais os valores éticos e estéticos que o senhor utiliza como critério<br />

metodológico de seus estudos?


Benedito Nunes<br />

Benedito Nunes: Eu acho que os valores éticos e estéticos aparecem depois, quer<br />

dizer, o plano mais geral e o plano da comparação. O fato é que determinados<br />

autores podem representar para mim um elo, uma ligação, uma ligação do<br />

pensamento, em geral tudo aparece num só campo, que é o campo do pensamento.<br />

Penso que literatura e filosofia fazem parte desse campo. E que devido a determinadas<br />

tendências literárias, separamos muito a filosofia da literatura, e hoje, elas tendem a<br />

se aproximar, quer dizer, quando se faz essa aproximação é porque elas já estão<br />

juntas. Não se poderia aproximar aquilo que estivesse separado.<br />

Benedito Nunes e Renan Freitas Pinto em noite de lançamento. Março de 2006.<br />

Foto: Davi Avelino.<br />

Davi: Falando um pouco de Amazônia, durante muitos anos, séculos até, fomos<br />

alvos de vários discursos sobre a região, discursos de cronistas como Carvajal, discursos<br />

de filósofos como Buffon, Hegel, discursos de viajantes como Agassiz, Avé-<br />

Lallemant. Esses discursos, e hoje os discurso midiáticos, procuraram construir uma<br />

identidade sobre a região. Identidade, muitas vezes negativa. Como pensar essa<br />

Amazônia hoje? E quais os caminhos para a construção de uma identidade, sem<br />

cairmos em jargões e meia dúzia de clichês?<br />

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Filosofia e Literatura<br />

Benedito Nunes: Essa identidade não pode ser consumada por mil definições,<br />

essa identidade tem que promover um encontro entre as várias disciplinas que<br />

podem explorar intelectualmente a região. Dentro da Sociologia, da Antropologia,<br />

a própria Teoria Literária, também entrando nisso. Enfim, é quase fazer<br />

uma poética, na medida em que a poética trata daquilo que a linguagem tem de<br />

criadora. Sob esse aspecto, então, é que as coisas podem se unir. Meu método é<br />

a Hermenêutica, quer dizer, é a interpretação, que tem por base uma leitura<br />

minuciosa do texto e ao mesmo tempo é o encontro daquilo que o texto diz,<br />

como fala. Uma fala que não é minha, não é mais do autor, mas é da própria<br />

obra. Deste ponto de vista, então, é que adoto o meu método.<br />

Andréa Andrade: Este mesmo método o senhor utiliza quando fala sua própria<br />

linguagem, e não a da obra?<br />

Benedito Nunes: Eu tenho que deixar a minha linguagem silenciar para entrar<br />

em função da linguagem da obra, não é a minha linguagem que deve prevalecer.<br />

Eu devo ser simplesmente um instrumento muito dúctil, para poder captar<br />

aquilo que a obra tem de impessoal.<br />

Andréa: E é possível ficarmos neutros em relação a isso?<br />

Benedito Nunes: Não, ninguém fica neutro, porque você sempre está sentindo, de<br />

certa forma, aquilo que você lê. A neutralidade aí quer dizer que não existe uma<br />

indiferença em relação à obra literária ou à obra filosófica. Você sempre está<br />

participando dela, e essa participação é que nega a neutralidade. Como é que você<br />

pode ser neutro, se você interpreta? Você interpreta, você adota um ponto de vista.<br />

Se você adota um ponto de vista, você já tem uma ligação afetiva com a obra. O<br />

intérprete começa pela ligação afetiva. Eu não posso interpretar aquilo que me<br />

desgosta, começa por aí. Eu só posso interpretar aquilo que eu dou certo valor. Se<br />

eu não dou valor, não tem jeito, é melhor jogar fora.<br />

Andréa: É possível fazer uma crítica literária sem a interferência de um <strong>jul</strong>gamento?<br />

Benedito Nunes: Não. Mas, não um <strong>jul</strong>gamento absoluto, não um <strong>jul</strong>gamento<br />

decisivo, não um <strong>jul</strong>gamento definitivo. Se você vê, todos os <strong>jul</strong>gamentos que nós<br />

fazemos são <strong>jul</strong>gamentos provisórios. Por quê? Hoje a leitura me dá uma possibilidade,<br />

amanhã me dará outra. Até de leituras subseqüentes que eu faça, seja da mesma obra<br />

ou de outra. Quer dizer, à medida que passa o tempo, tudo que eu via sobre


Benedito Nunes<br />

determinado aspecto se modifica. Se modifica porque eu leio de outra maneira, se<br />

modifica porque eu recorro a outros autores, se modifica porque o próprio<br />

pensamento da obra me apela de outra maneira. Entendes? Portanto, as grandes<br />

obras, as obras que falam, são aquelas que podem ser interpretadas diferentemente.<br />

Se você vir uma obra de uma só maneira, isto é o fim dela.<br />

Davi: Paul Ricoeur fala que o próprio tempo atualiza a leitura, quer dizer, tempo e<br />

tradição...<br />

Benedito Nunes: e [...] cultura nova, é reinvestimento do passado, com novas<br />

idéias, aí sim, estou mais próximo desse ponto e concordo com Paul Ricoeur. Tudo<br />

que entendo dessa matéria é porque principalmente ele me ensinou. Já morreu...<br />

Morreu no ano retrasado com 92 anos. Bem passados, 92 anos.<br />

Davi: E a influência do Merleau-Ponty em relação à Hermenêutica e à Fenomenologia<br />

na sua análise?<br />

Benedito Nunes: Sim, em relação à análise, tem sido mais Merleau-Ponty, um<br />

dos poucos filósofos que se sensibilizaram com a relação entre Literatura e<br />

Filosofia, quer dizer, ele pensou propriamente essa questão, ao contrário do<br />

Sartre que não pensou propriamente nesse nexo, embora tivesse sentido muito<br />

vivamente a relação literária, literatura e poesia, literatura e filosofia, literatura<br />

etc e tal. Mas, Merleau-Ponty foi aquele que deu também um outro aspecto<br />

importante, deu uma função cognoscitiva à literatura, em seu ponto de vista<br />

contemporâneo, dá à literatura a função de conhecimento. Não é apenas uma<br />

fonte de prazer, é uma fonte de conhecimento.<br />

“Uma obra pode ser regional, a sua matéria baseada<br />

na região, [...] e, entretanto, não ser fechada<br />

do ponto vista da concepção.”<br />

Davi: Como o senhor vê a relação entre a literatura regional e a literatura nacional?<br />

Benedito Nunes: Bom, essa relação não pode ser confinada a itens que signifiquem<br />

confinamento, no caso, por exemplo, do regionalismo. Uma obra pode ser regional,<br />

a sua matéria baseada na região [...] e, entretanto, não ser fechada do ponto vista da<br />

concepção. Quando há fechamento da concepção, isso quer dizer que a obra fica<br />

fechada, ela fica oclusa, então não pode mais haver relação entre ela e outras obras.<br />

Portanto, na literatura, o fenômeno hermenêutica, há uma retomada constante de<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

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Filosofia e Literatura<br />

uma pela outra, só assim que elas se renovam também. A renovação não é uma<br />

coisa artificiosa, não, é uma coisa requerida pelos próprios textos.<br />

Andréa: O senhor utiliza muito o método histórico em suas obras ...<br />

Benedito Nunes: Pego uma dimensão histórica, uma linha histórica e situo a<br />

obra no tempo. Quais são os parentescos da obra com outras obras, também é<br />

muito importante.<br />

Andréa: Para organizar o pensamento?<br />

Benedito Nunes: Sim, justamente ... Acabou essa historia de obras isoladas, obras<br />

só da literatura, não há uma compartimentação, existe uma irradiação.<br />

Andréa: Como o senhor observa o tema Amazônia na literatura?<br />

Benedito Nunes: No caso, por exemplo, do Dalcídio Jurandir, é muito particular<br />

isso, é uma obra essencialmente amazônica, não se fez fora da região, e dentro da<br />

Amazônia ela se fez numa região particular que foi a região onde nasceu o autor, o<br />

Marajó. Bom, então, quem é o personagem? É um homem chamado Alfredo e que<br />

vem à cidade de Belém, começa a conhecer suas ruas e que passeia e caminha muito<br />

pela cidade que quer conhecer. Então, esse Dalcídio Jurandir não é o Alfredo. O<br />

Alfredo é aquele que tem a vista da cidade e até pode ser contestada pelo próprio<br />

autor. E se você for a Belém pode comparar essa disputa entre o autor e o próprio<br />

narrador. O narrador, aquele que conta a historia, e o autor, aquele que dá o nome,<br />

aquele que vigia, aquele que interfere, como uma segunda voz. É muito útil a leitura<br />

de Dalcídio, porque justamente se pensa que é uma outra obra, nem se pode fazer<br />

propaganda dela, porque ela se igualou a Guimarães Rosa. Guimarães Rosa parece<br />

que fundiu varias regiões em determinados centros, como Minas Gerais, Goiás, e<br />

ele identificou os idiomas, os falares e compenetrou, por termos modernistas, por<br />

termos da língua grega, cingiu palavras novas, cingimento que fazia muito bem.<br />

Andréa: E Crônica de Duas Cidades: Belém e Manaus, como o senhor a vê?<br />

Benedito Nunes: Bom, está no livro, quer dizer, são as circunstâncias e as experiências<br />

que me fizeram escrevê-lo ...<br />

Andréa: Professor, há comentários populares sobre a rivalidade entre os paraenses<br />

e os amazonenses. Isso existe?<br />

Benedito Nunes: Isto é bobagem ... Isto são facções que existem. Mas lida com<br />

uma coisa que é muito presente, que é o localismo...


Benedito Nunes<br />

“Milton, através do localismo, tenta universalizar mitos<br />

e até personagens sagrados”<br />

Davi: E aí, trabalhos como o de Milton Hatoum, até como este, Crônica de Duas<br />

Cidades, tentam acabar com essa visão localista e uma visão realista como é a vida<br />

desta cidade ...<br />

Benedito Nunes: E a cidade do Milton é sempre uma cidade cosmopolita, ou seja,<br />

uma cidade que está no lugar, mas está, sobretudo, nos personagens...<br />

Davi: Seria uma nova interpretação da Amazônia...<br />

Benedito Nunes: Milton, através do localismo, tenta universalizar mitos e até<br />

personagens sagrados, como em Dois irmãos, que se assemelha a Machado de Assis,<br />

Esaú e Jacó... Portanto, propõe uma estrutura mítica, e quando afunda nisso está<br />

muito bem referido... O Marajó, de Dalcídio Jurandir, é um exemplo bem claro<br />

disso... Dalcídio fez parte do Partido Comunista e o partido achava que determinadas<br />

idéias deveriam estar em seus livros. Não é um livro mau... agora você lê, nem<br />

parece Dalcídio, os personagens são outros, não tem Alfredo...<br />

[Benedito é chamado para autografar seu livro, com Miltom Hatoum.]<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

193


Resenhas


O Diário de Samuel Fritz*<br />

Renan Freitas Pinto**<br />

Um primeiro aspecto que deve ser anotado em relação à oportunidade da<br />

edição de obras de autores como Samuel Fritz e João Daniel é que elas são documentos<br />

reconhecidos como dos mais valiosos e singulares de um certo modo de<br />

representação do Novo Mundo e também de um momento especialmente marcante<br />

do pensamento ocidental.<br />

Um outro aspecto bastante presente em parte significativa da literatura desse<br />

momento da cultura ocidental, e que pelas suas leituras fica claramente evidenciado,<br />

é que elas fazem parte de um amplo movimento de estudos geográficos, cartográficos,<br />

demográficos e de inventários de faunas e floras, das riquezas existentes nas mais<br />

distantes regiões do mundo, que fundam um novo modo de pensar, que implicam<br />

em outras palavras no processo de formação do novo espírito científico.<br />

Um novo espírito que atribui às ciências nascentes a capacidade e mesmo a<br />

missão de reordenar simultaneamente o mundo natural e o mundo humano. É nessa<br />

perspectiva que os europeus passam a calcular os potenciais benefícios do vasto<br />

empreendimento colonial.<br />

Os povos nativos de todos os quadrantes são percebidos de modo cada<br />

vez mais intenso como reservas de exploração imediata e futura. As espécies<br />

naturais – plantas, animais e respectivas técnicas de cultivo – passam a fazer<br />

parte de cálculos de sua possível exploração. As plantas e seus frutos e possíveis<br />

produtos passam a participar dos objetivos de empreendimentos econômicos,<br />

assim como, por exemplo, da preocupação constante com a possibilidade de<br />

* Resenha do livro O Diário do Padre Samuel Fritz, organizado por Renan Freitas Pinto (Manaus: Editora da Universidade<br />

Federal do Amazonas/Faculdade Salesiana Dom Bosco, 2006. 272p. il.)<br />

**Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação Sociedade e<br />

Cultura na Amazônia. Editor da Editora da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: edua_ufam@yahoo.com.br<br />

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O Diário de Samuel Fritz<br />

transferi-las de um continente para o outro, constituindo-se esses movimentos,<br />

não apenas os primeiros grandes inventários de terras e povos, mas de seus usos<br />

em espaços diferentes daqueles de suas origens.<br />

Todas essas informações e operações, associadas com descrições dos modos<br />

de vida, das línguas, costumes, valores e traços identitários de povos dos lugares<br />

mais remotos e das regiões mais distintas do mundo, passam a ter um sentido cada<br />

vez mais explícito para essa nova ordem que tem na formação do espírito científico<br />

a sua força principal.<br />

Esses novos e preciosos informes em seu conjunto construíram um novo<br />

tipo de conhecimento que tornou possível a forma de um saber em rede. Ou seja,<br />

redes mundiais de conhecimento alimentadas em particular por missionários que em<br />

sua formação foram introduzidos e familiarizados com as ciências, as técnicas e os<br />

ofícios de seu tempo e que assim encontravam-se na posição privilegiada, não apenas<br />

de contemplar e produzir imagens de todas as regiões, de uma perspectiva global,<br />

mas de atuar e interferir em várias frentes que envolvem, desde as tarefas missionárias,<br />

evangelizadoras da conquista das almas, até aquelas relacionadas com o que poderíamos<br />

identificar como a instituição dos primeiros movimentos desse novo espírito científico<br />

que, a rigor, já está delineado em seus fundamentos essenciais e voltado para inúmeras<br />

e crescentes e, portanto, possíveis aplicações. Aplicações empíricas sugeridas em cada<br />

lugar pela diversidade dos recursos naturais, do mesmo modo que pela multiplicidade<br />

de procedimentos técnicos locais relacionados com as práticas do extrativismo, da<br />

agricultura, da navegação e do transporte, do uso de materiais para a construção de<br />

habitações e de engenhos destinados à produção.<br />

No momento em que estamos nos referindo a todos esses movimentos,<br />

cujas diferentes intensidades e amplitudes passam a envolver praticamente todos os<br />

povos e regiões do mundo, é necessário mencionarmos a condição que impulsiona<br />

as forças envolvidas em todos esses processos: a situação colonial.<br />

É necessário mencioná-la e procurar conferir a ela o sentido abrangente de<br />

que se reveste. E aqui voltamos a pensar no sentido do trabalho missionário associado<br />

a esses empreendimentos do espírito científico emergente e da lógica econômica<br />

mercante que passa a presidir, cada vez mais intensamente, a incorporação do mundo<br />

em seus mínimos fragmentos, resultantes da conquista pelas armas, pela ocupação<br />

territorial ou pela ação missionária da catequese, operações essas quase sempre<br />

combinadas em algum grau.


Renan Freitas Pinto<br />

Entre os aspectos a destacar do significado da obra escrita de Samuel Fritz,<br />

que restou afinal fragmentada, e de suas ações em tempo vivido, ressalta de sua<br />

leitura a situação do encontro de sociedades, que está registrada com bastante clareza em<br />

seus aspectos essenciais, constituindo-se, portanto, em um dos momentos fundadores<br />

da percepção que os europeus passam a difundir sobre o indígena e, nesse mesmo<br />

tempo, das diversas reações que passam a ser esboçadas e assumidas pelas populações<br />

indígenas em relação à presença do conquistador.<br />

Suas descrições, anotações, correspondência e registros cartográficos passaram<br />

a servir como fundamento para vários outros autores, cabendo destacar de modo<br />

especial La Condamine.<br />

As posições assumidas por Samuel Fritz em relação ao que já se desenha<br />

claramente como o projeto colonial, explicitam os conflitos entre os métodos de redução<br />

do indígena à força de trabalho e os processos de atração, evangelização e conversão<br />

do “bárbaro” ao cristianismo.<br />

De seus relatos também transparece a situação real da escassez de quadros<br />

missionários para garantir a eficácia das operações de atração e educação do indígena<br />

que só poderia ser assegurada pelo funcionamento regular e pela expansão dos<br />

estabelecimentos missionários.<br />

Entre os aspectos que devem ser lembrados em relação à contribuição<br />

dos registros escritos deixados por ele e por outros religiosos que tiveram em<br />

geral uma experiência prolongada do vale amazônico, está o do trabalho inicial<br />

de identificação das numerosas etnias, do registro de diferentes línguas, de<br />

elementos da cultura material e de um modo particular dos conflitos produzidos<br />

pela introdução do cristianismo, que não ocorreu de forma passiva pelos sistemas<br />

de crenças locais.<br />

Cabe sempre lembrar que Samuel Fritz, ao produzir os primeiros<br />

documentos cartográficos sobre o vale do Amazonas, participava de um processo<br />

de fundação da cartografia moderna que estava ocorrendo em todas as regiões e<br />

distantes geografias do mundo, constituindo um exemplo da bem sucedida articulação<br />

de um saber mundial que era vivenciado em especial por jesuítas letrados atuando<br />

em todos os continentes.<br />

Quanto ao diário, que sobreviveu parcialmente a um naufrágio, foi escrito<br />

numa linguagem simples, mas que nos possibilita revivermos com ele as situações de<br />

aventura, de imprevistos, perigos e intrigas. Podemos tomá-lo também como um<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

199


200 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O Diário de Samuel Fritz<br />

registro bastante direto das idéias que os missionários possuíam e propagavam em<br />

torno dos povos indígenas, em especial de sua suposta predisposição de abandonar<br />

suas crenças e aceitar sua cristianização.<br />

E também de suas ações. A situação instável e precária em que são erguidas<br />

as missões e em pouco tempo destruídas ou abandonadas é algo mencionado com<br />

bastante freqüência ao longo do breve relato. Nada disso parecer enfraquecer a<br />

determinação do Padre Fritz em prosseguir no seu inquebrantável propósito de<br />

fundar o maior número possível de núcleos missionários, que se transformariam<br />

mais tarde em vilas e cidades, a exemplo de Tefé, Coari e São Paulo de Olivença. Na<br />

realidade, sua alegria pelo erguimento de uma capela, às vezes muito cedo, era<br />

neutralizada pelo tom resignado com que se refere ao seu abandono e destruição,<br />

que ele menciona em alguns momentos do Diário.<br />

A presente edição participa de um programa de edições e reedições de<br />

obras que fazem parte de posicionamento cujo traço principal é o de pensar e<br />

compreender a Amazônia a partir, digamos, dela mesma. Portanto, a intenção de<br />

seus organizadores foi, não apenas colocar o texto do Diário à disposição dos leitores<br />

e estudiosos atuais, mas buscar esclarecê-lo com textos que se identificam em alguma<br />

medida com percepções bem demarcadas de pesquisadores e autores que<br />

desenvolveram e desenvolvem suas abordagens de pontos de vista de quem vê a<br />

Amazônia não como um tema ou um problema distante, mas como algo com o<br />

que possuem identificações e compromissos.<br />

Esse esforço de ler Samuel Fritz de uma perspectiva dos interesses dos<br />

povos da região amazônica tem um de seus marcos já na tradução e notas críticas<br />

do próprio Rodolfo Garcia que a presente edição tratou de preservar em sua<br />

integridade.<br />

A contribuição de Priscila Faulhaber que aparece no recorte de trecho de<br />

seu livro O Lago dos Espelhos – Etnografia do saber sobre a fronteira em Tefé/<br />

Amazonas (1998), evidencia as ligações de Samuel Fritz com a idéia de fronteira e da<br />

disputa territorial como um dos aspectos vividos pessoalmente pelo missionário.<br />

A inclusão da coletânea de trechos do historiador Arthur Cezar Ferreira<br />

Reis é certamente útil para que o leitor identifique de forma clara o que significa a<br />

presença dos missionários no vale amazônico para o processo de sua formação<br />

espiritual e domínio político, para a própria construção de seu próprio modo de<br />

pensar a Amazônia.


Renan Freitas Pinto<br />

A contribuição do Prof. Auxiliomar Ugarte refere-se diretamente ao seu<br />

empreendimento de pesquisa envolvendo a situação do apostolado jesuítico em<br />

Maynas e as conexões da ação missionária com o delineamento das fronteiras coloniais,<br />

abordagem que muito contribui para uma compreensão mais clara do sentido de<br />

formação que se apresenta nesse momento no vale amazônico. Finalmente, devemos<br />

assinar as ilustrações do Prof. Carlos Rojas que realizou uma leitura singular do<br />

Diário através de seus desenhos.<br />

Um aspecto também certamente digno de destaque é o fato de que a presente<br />

edição faz parte de um programa editorial cuja marca principal é a abordagem de<br />

temas e problemas da Amazônia do qual participam também autores ligados e<br />

identificados com um processo que podemos reconhecer como de um<br />

autoconhecimento e de uma autoconsciência, ou seja, de uma Amazônia não mais<br />

vista predominantemente por estrangeiros e estudiosos que abordam e imaginam a<br />

região de um ponto de vista distante. O que significa dizer que a presente edição faz<br />

parte, como é o caso de inúmeras obras de edição recente, desse movimento de<br />

autoconhecimento e autocrítica que tem seu núcleo principal no ambiente da pesquisa<br />

das últimas décadas, com particular papel dos programas de pós-graduação<br />

(dissertações de mestrado e teses de doutoramento) das universidades públicas, nas<br />

quais muitos dos professores e pesquisadores vinculados a temas e problemáticas da<br />

Amazônia têm desenvolvido seus trabalhos e estudos avançados.<br />

É o que podemos sugerir em termos da significativa expansão de estudos<br />

sobre a Amazônia, fomentada por esses processos de investigação avançados que,<br />

em sua abrangência, tem se constituído em um processo de autoconsciência crítica<br />

que busca reler as obras passadas e recentes a partir de novas abordagens de temas<br />

como a situação colonial, o estatuto imposto à região selvagem, do distante, do<br />

exótico, da condição subordinada, periférica etc. Esse é, a nosso ver, o que há de<br />

mais significativo e de mais promissor no movimento de novo espírito autocrítico,<br />

que tem estimulado as recentes pesquisas, estudos e iniciativas editoriais.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

201


O Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin*<br />

Nelson Matos de Noronha**<br />

A leitura da obra de Walter Benjamin no Brasil parece ter sido iniciada nos<br />

anos 60, conforme os estudos de Gunter Karl Presller reunidos no livro Benjamin,<br />

Brasil, da editora Annablume, de 2006. O subtítulo da publicação – “A recepção de<br />

Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da intelectualidade<br />

brasileira” – nos faz lembrar a reação de Sílvio Romero contra o artigo “Como se<br />

deve escrever a História do Brasil”, de Von Martius, publicado em 1845 pela Revista<br />

do IHGB. Na presente resenha, não se trata de recusar as notas críticas de Presller,<br />

mas, sim, de enfatizar que, mesmo não sendo uma invenção recente, a história da<br />

cultura e, em particular, a da intelectualidade no Brasil, tornou-se um gênero literário<br />

bastante difundido em nossos dias. O Professor Paulo Eduardo Arantes já nos havia<br />

apresentado, nos anos 90, Um departamento francês de ultramar, um estudo crítico da<br />

formação do Departamento de Filosofia da USP, processo que teria ocorrido<br />

mediante a decisiva atuação da missão francesa encarregada de profissionalizar o<br />

ensino da filosofia no país. O livro de Márcio Souza, A expressão amazonense, causou,<br />

nos anos 80, forte impacto nos círculos intelectuais de Manaus, Belém, Rio de Janeiro<br />

e São Paulo. Do mesmo modo, A razão selvagem, de Antônio Paulo Graça, não<br />

passou despercebido.<br />

*Resenha do livro Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da<br />

intelectualidade brasileira, de Gunter Karl Presller (São Paulo: Annablume, 2006. 406p.) (Acompanha um CD-Room com uma<br />

cartografia da recepção de Benjamin no Brasil).<br />

**Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura da<br />

Universidade Federal do Amazonas. E-mail: noronhanelson@hotmail.com<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

203


204 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin<br />

O livro de G. K. Pressler junta-se aos estudos críticos que, na esteira da obra<br />

de Sérgio Buarque de Holanda, como A invenção da Amazônia, de Neide Gondim,<br />

nos convidam e nos desafiam, com uma certa ironia, a pensar um pouco mais as<br />

raízes do Brasil. Trata-se de uma importante contribuição para o conhecimento dos<br />

muitos Benjamins que se encontram dispersos nas interpretações de professores,<br />

poetas, críticos literários, artistas, políticos e outros intelectuais surgidas durante as<br />

quatro décadas indicadas no subtítulo. Quarenta e poucos anos que recobrem um<br />

período marcado por crises políticas, pelo regime militar, pelo processo de<br />

redemocratização e pela ascensão da esquerda. Circunstâncias que parecem ter<br />

determinado muitas das direções pelas quais enveredaram tais interpretações e,<br />

portanto, a configuração singular da dialética da recepção à qual foram submetidos<br />

os escritos da Escola de Frankfurt no Brasil.<br />

O clima intelectual da cidade do Rio de Janeiro nos anos 60 e 70 foi<br />

recuperado parcialmente através das análises de Presller a propósito dos ensaios<br />

de José Guilherme Merquior. Diplomata, Merquior ganhou o respeito dos<br />

intelectuais brasileiros que foram seus contemporâneos em razão de sua profunda<br />

erudição e por sua atuação na direção da revista Tempo Brasileiro juntamente com<br />

Sérgio Paulo Rouanet e Eduardo Portela. Mas perdeu a simpatia deles após ter<br />

atuado sem maiores escrúpulos no governo militar do General João Batista<br />

Figueiredo. Os traços de sua vida pessoal que o tornaram suscetível de censura<br />

junto à intelectualidade brasileira não lhe subtraíram o mérito de ter sido, segundo<br />

Presller, o primeiro a publicar um estudo internacional sobre a obra de Walter<br />

Benjamin enfatizando a relevância do conceito de “alegoria” para o<br />

desenvolvimento de uma nova crítica da cultura. Presller nos faz lembrar, citando<br />

Leandro Konder e os irmãos Campos, que na época na qual a obra de Benjamin<br />

começou a ser disseminada no Brasil ocorreu um estranho fenômeno:<br />

politicamente, viu-se o triunfo do governo ditatorial apoiado pelas elites<br />

conservadoras; o cenário cultural, todavia, foi dominado pela esquerda: o teatro,<br />

o cinema, a música, a literatura tornaram-se redutos de uma vanguarda com<br />

pretensões revolucionárias. Merquior pode ser tomado, aí, como exemplo de<br />

um pensador formado por idéias socialistas (Lukács, Benjamin, Adorno, Marx)<br />

que se acomodou ao status quo de uma elite conformada diante do novo regime.<br />

Uma elite que aceitou como desafio do pensamento discutir a modernidade,<br />

analisar a literatura como veículo da mudança cultural e do desenvolvimento de


Nelson Matos de Noronha<br />

novas formas de organização social e política, mas que tomou a crítica de<br />

Benjamin à modernidade apenas como uma forma de se ajustar ao fato<br />

consumado da vida contemporânea.<br />

Presller também se deteve demoradamente sobre os estudos benjaminianos<br />

dos poetas concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari.<br />

Retomando, a partir do texto de Walter Benjamin em torno da obra de arte na<br />

época de sua reprodutibilidade técnica, a discussão inaugurada por Haroldo de<br />

Campos sobre a natureza da tradução, Pressler parece sugerir que a primeira<br />

recepção desse pensador frankfurtiano entre nós sucumbiu diante de uma moda<br />

intelectual que vigorou naqueles anos de incerteza e repressão: o estruturalismo.<br />

O elogio de Benjamin ao poema de Mallarmé “Lance de dados” tornou-se o<br />

centro de uma polêmica na qual, ao mesmo tempo em que se desenhava a oposição<br />

entre, de um lado, Bento Prado Júnior, filósofo de influência francesa, e, de<br />

outro, Antônio Candido e Luís da Costa Lima, críticos literários mais afinados<br />

com o pensamento alemão, formava-se uma rede de alianças reunindo os leitores<br />

de Benjamin na esteira de Heidegger e da Hermenêutica contra a apropriação<br />

estruturalista desse poema. Se a poesia de Mallarmé, contrariamente ao que<br />

profetizara Thibaudet nos anos 50, tornou-se reconhecida pelos leitores<br />

brasileiros de Benjamin como um caminho para a superação da crise da linguagem<br />

e, particularmente, do verso, o próprio Benjamin, para os concretistas, “... é o<br />

patrono, aquele que previu analítica e interpretativamente o processo de<br />

desenvolvimento da representação lingüística da realidade na relação dialética<br />

entre arte e sociedade para o século XX” (PRESLLER, 2006, p. 124).<br />

A criação de uma poesia nova não teria sido possível sem Mallarmé. A<br />

sentença, decretada pelos concretistas com o apoio do poeta Mário Faustino, é<br />

subscrita por Presller. Por quê? Porque Mallarmé, conforme a interpretação dos<br />

concretistas, recupera a tarefa do escritor como um fim em si mesmo; correlativamente,<br />

a leitura benjaminiana do poema, aí assegurada, visa atualizar essa tarefa. É neste<br />

sentido que a idéia da tradução como recriação do texto e não simplesmente como<br />

transposição literal de um discurso de um idioma para outro se consolida. Por isso,<br />

refuta-se aí a infâmia segundo a qual Mallarmé e a literatura modernista teriam virado<br />

as costas à questão social. A vanguarda tomou posição diante do problema teórico<br />

da linguagem e esta se transformou em questão política: foi preciso tomar partido<br />

na polêmica da pureza da língua.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

205


206 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

O Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin<br />

Na trajetória da recepção dos textos de Walter Benjamin no Brasil, Presller<br />

identifica três fases: a dos pioneiros, com suas ousadias e seus lances geniais por não<br />

terem tido acesso aos originais em língua alemã e, por isso, tiveram de recorrer a<br />

traduções italianas, francesas, inglesas e norte-americanas; a fase do desespero, que<br />

deu lugar a uma corrida visando superar o atraso cultural, mas que produziu, por<br />

isso mesmo, uma série de traduções superficiais e rápidas para o português do<br />

Brasil; finalmente, a fase atual, na qual já existem leitores que conhecem bem a língua<br />

alemã e, por isso, produziram uma crítica aos textos de Benjamin marcada por um<br />

conhecimento filológico e lingüístico aprimorado, uma familiaridade mais estreita<br />

com o ambiente sociocultural que permitiu uma aproximação mais fidedigna ao<br />

sentido original se comparada aos estudos anteriores. O trabalho realizado neste<br />

último período teria liberado o pensamento de Benjamin dos limites da história das<br />

idéias para deixá-lo se estender a domínios mais abrangentes.<br />

Seguindo as teses de Werner Koller, Presller sustenta que a tradução de textos<br />

de crítica literária, filosofia e ciência assim como a de obras literárias requer precauções<br />

metodológicas que permitam ao leitor ter acesso, em sua própria língua, a uma<br />

versão fiel ao texto original a fim que possa refletir sua “essência histórica”.<br />

Referências<br />

ARANTES, Paulo Eduardo. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e<br />

Terra, 1994.<br />

GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.<br />

GRAÇA, Antônio Paulo. A razão selvagem. Manaus: Maíra, 1985.<br />

PRESLLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960<br />

a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo:<br />

Annablume, 2006. 406p. (Acompanha um CD-Room com uma cartografia da<br />

recepção de Benjamin no Brasil).<br />

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São<br />

Paulo: Ômega, 1978.


Documentos


Djalma Batista, um cientista amazônico<br />

Djalma da Cunha Batista (1916, Tarauacá/Acre – 1979, Manaus/Am), médico<br />

sanitarista, pesquisador, professor e ensaísta, foi cientista e intelectual dos mais<br />

renomados no cenário nacional, e um dos mais ilustres cidadãos com que Manaus<br />

teve a sorte de conviver, desde a década de 40. Dele, a profa. Edinea M. Dias, com<br />

muito acerto, afirma: “Djalma Batista consegue exercer a Medicina com generosidade,<br />

a Pesquisa com o olhar crítico aos problemas da Amazônia, a Administração, com<br />

eficiência e o Magistério, com amor”. 1<br />

Como diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA<br />

(1959-1968), Djalma Batista funda e dirige, com Harald Sioli, a revista Amazoniana,<br />

publicação altamente conceituada no universo científico.<br />

Dentre sua vasta produção científica, destacam-se as obras: Letras da Amazônia<br />

(1938), Da habitabilidade da Amazônia (1963) e O complexo da Amazônia (1977), 2 além de<br />

inúmeras conferências, discursos e artigos, estes somando quase uma centena em<br />

jornais diários, revistas e publicações científicas. Alguns títulos revelam o vasto<br />

horizonte que seu olhar alcançava, assim como a diversidade de suas preocupações:<br />

“Cultura Amazônica. Ensaio de interpretação”(1955), “Petróleo, riqueza e futuro do<br />

Brasil” (1948), “Resultados do tratamento dispensarial em dois grupos: caboclos e<br />

comunicantes” (1957) e “Ciência e tecnologia no Desenvolvimento da<br />

Amazônia”(1967).<br />

O artigo que Somanlu publica neste número, “Manaus e Belém. Aspectos<br />

históricos, sociais, folclóricos, psicológicos e, sobretudo, sentimentais”, 3 uma<br />

homenagem a este lúcido e sensível cientista e intelectual, vem em oportuna hora<br />

para desmascarar a hipocrisia da ideologia que exacerba as diferenças entre<br />

amazonenses e paraenses.<br />

1 DIAS, Edinea Mascarenhas. Djalma Batista. Memória, n. 114, nov. 2002, SESC-AM.<br />

2 Livro que recentemente teve nova edição, revista, pela Editoria Valer, Manaus, 2006.<br />

3 Publicado originalmente no Jornal Cultura, n. 10, <strong>jul</strong>./ ago./ set. de 1974, p. 16-17.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

209


Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos,<br />

psicológicos e, sobretudo, sentimentais<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Djalma Batista<br />

Rio e São Paulo, Bahia e Recife, Uberaba e Uberlândia, assim como Belém e<br />

Manaus, se tornaram, há longo tempo, cidades rivais, confrontadas por seus<br />

moradores e visitantes, exaltadas por uns e renegadas por outros.<br />

As duplas estão situadas na mesma área geográfica, embora tenham nascido<br />

diferentes. O destino delas, porém, é historicamente comum.<br />

Belém e Manaus surgiram em posição geográfica similar, ambas com a<br />

fundação de fortes, baluartes portugueses na defesa do vale amazônico: Belém,<br />

na encruzilhada do Guamá com o rio Pará, braço Sul do Amazonas, e Manaus a<br />

três léguas do encontro das águas barrentas do Solimões com as águas cor de<br />

azeviche do Negro.<br />

Castelo Branco foi o fundador de Belém (e uma publicação humorística, que<br />

circulou em reunião científica realizada em comemoração ao centenário do Museu<br />

Goeldi, dizia, com muita graça, que Castelo Branco tinha trazido como “escriba”<br />

um famoso e consagrado historiador amazônico): é nome da primeira linha da<br />

história. Já Manaus teve raízes no forte construído e municiado por Francisco da<br />

Mota Falcão, sem que se chantasse a cruz simbólica: Falcão ficou um nome<br />

relativamente obscuro na crônica da região.<br />

Enquanto Xavier de Mendonça, irmão e mandatário do Marquês de<br />

Pombal, veio governar o Estado do Grão-Pará e Maranhão e deu impulso à<br />

cidade em que se imaginou até viesse a se localizar a Corte Portuguesa, percebeu<br />

que a parte ocidental do Estado deveria ter administração própria. Por isto,<br />

propôs e foi aceita em 1755 a criação da Capitania de São José do Rio Negro,<br />

dependente porém do Pará.<br />

O forte de São José, na época Lugar da Barra, não foi nem mesmo sede da<br />

nova Capitania, que ficou na sonolenta Mariuá (depois Barcelos). Para lá foi mandado<br />

211


Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos...<br />

o arquiteto bolonhês Antonio José Landi, que pôde apenas fazer desenhos e projetos,<br />

mas nada construiu. Em Mariuá não havia nem mesmo o que comer, ficando<br />

patenteada, desde então, a escassez do rio Negro.<br />

Belém se desenvolveu depressa, na sua condição privilegiada de “cidade<br />

talássica”, como foi chamada por Leandro Tocantins, curtindo a sua nostalgia de<br />

belemense desterrado pequenino para uma das margens do Tarauacá, graças ao que<br />

se tornou meu companheiro de infância. A designação é perfeita, considerando a<br />

posição da cidade, à margem do rio-rei e vizinha do oceano, para onde convergem<br />

todos os caminhos fluviais e marítimos.<br />

Para Belém foi Landi, afinal, a fim de se fixar definitivamente, casando,<br />

trabalhando e afinal morrendo. A ele devemos o imponente Palácio dos<br />

Governadores, as igrejas de Santana e das Mercês, a renovação da igreja do Carmo<br />

e a ampliação do templo mais belo da terra: a Sé. Do lado do Guamá, cresceu a<br />

“Cidade Velha”, que é um primor arquitetônico, digno de ser visto e percorrido<br />

com amor e carinho.<br />

Manaus marcou passo, embora romanticamente. Simá, criada por Araújo<br />

Amazonas, a filha do tuxaua manaú, não resistiu aos encantos do sargento<br />

Guilherme Valente e com ele constitui a base da sociedade manauense. Ainda<br />

no ano passado a personagem foi revivida, como “Marari, princesinha dos<br />

Manaús”, no romance de Albertina Costa Rego Albuquerque. O Forte de São<br />

212 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Djalma Batista, anos 70.


Djalma Batista<br />

José passou a ser chamado de Forte da Barra, Lugar da Barra e só em 1848<br />

tomou os precários foros de Cidade da Barra do Rio Negro. Manaus, mesmo,<br />

topônimo surgido em 1856, já como capital da Província do Amazonas.<br />

Foi Lobo D’Almada, antigo demarcador dos limites das terras de Portugal<br />

no vale amazônico e depois governador da Capitania, que descobriu que o ponto<br />

ideal para dirigi-la estava nas proximidades da foz do rio. Mudou por isto a capital,<br />

em 1791, mas se formou no Pará uma teia tamanha de intrigas que o governador<br />

Francisco de Sousa Coutinho dedurou o dirigente do Rio Negro perante a Corte,<br />

que obrigou Lobo D’Almada a voltar com a administração para Barcelos, após 8<br />

anos de permanência no Lugar da Barra. Com isto, Almada, acusado de corrupção,<br />

pôde apenas se defender e morrer.<br />

Só em 1808 o Governador Vitório da Costa (nome de rua em Manaus)<br />

fez a transferência definitiva. Mesmo assim, no Lugar da Barra, não havia Câmara,<br />

que era privilégio das vilas, e tinha de se socorrer do apoio da Câmara de Serpa<br />

(atual Itacoatiara).<br />

A Independência não incluiu o atual Amazonas entre as Províncias do<br />

Império, unindo novamente toda a Amazônia no Grão-Pará. Seguiu-se um<br />

período de grandes lutas, culminadas na Cabanagem, antes da qual já se faziam<br />

ouvir vozes reivindicatórias, como a do paraense D. Romualdo Antonio de Seixas,<br />

bispo do Pará e depois Marquês de Santa Cruz, para que o Alto Amazonas<br />

voltasse a ter autonomia. O processo foi lento e mobilizou tanto paraenses<br />

(como Sousa Franco, antigo presidente da Província e ministro de Estado) e<br />

amazonenses (como Tenreiro Aranha), deputados pelo Pará. Só em 5 de setembro<br />

de 1850 foi sancionada a lei reparadora por Pedro II.<br />

De tudo isso, provavelmente, surgiram os primeiros ressentimentos dos<br />

manauenses em relação aos paraenses, e mais precisamente dos manauenses em<br />

relação aos belemenses.<br />

Em 1865, Elizabeth Agassiz encontrou em Manaus apenas “uma pequena<br />

reunião de casas, a metade das quais prestes a cair em ruínas”, profetizando,<br />

porém, que “insignificante hoje, Manaus se tornará sem dúvida um grande centro<br />

de comércio e navegação”.<br />

Quando foi feito o 1º Recenseamento Geral do Brasil, em 1872, o Pará<br />

possuía 275.000 habitantes, enquanto o Amazonas todo estava com 57.000.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

213


Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos...<br />

Ao surgir a República, Belém alcançava 100.000 almas, enquanto Manaus<br />

abrigava somente 15.000.<br />

Foi com a borracha que Manaus progrediu e se fez realmente cidade;<br />

Belém aproveitou o surto para se desenvolver, mas já era grande, tanto que<br />

Alfred Marc a chamara, nessa altura, de “Liverpool brasileira”.<br />

Dois maranhenses foram decisivos no crescimento de Manaus e Belém:<br />

Eduardo Ribeiro, o “Pensador”, dos primeiros governadores amazonenses na<br />

República, e Antonio Lemos, intendente (hoje prefeito) e grão-senhor de Belém<br />

durante 14 anos, enfeixando nas mãos, também, o controle da política do Pará.<br />

Os dois fizeram obras grandiosas, abrindo praças, ruas e avenidas (em Belém as<br />

avenidas eram chamadas pitorescamente de “estradas”), construindo prédios,<br />

embelezando as duas capitais, que se enfaceiravam com o dinheiro fácil. Tiveram<br />

o sentido da geografia dos trópicos: Belém foi semeada de mangueiras e Manaus<br />

de mangueiras e de fícus.<br />

Mas os dois pró-homens tiveram um fim melancólico: o “Pensador”,<br />

acometido de paralisia geral, enforcou-se ou foi assassinado; Lemos, deposto, levado<br />

à rua da amargura, foi expulso do Estado, indo morrer no Rio.<br />

Com a abastança, a rivalidade das capitais amazônicas se acentuou: Manaus<br />

querendo alcançar Belém, e esta teimando em não ficar para trás...<br />

214 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

* * *<br />

Senti de perto essa situação. Filho de paraense, que tinha fraco pela terra<br />

natal, passei a adolescência no Amazonas, onde as querelas têm sido sorrateiras,<br />

porém permanentes. Uma delas sempre foi a dos teatros... Lembro-me que se dizia<br />

que a castanha tinha sido batizada com o nome do Pará, embora existindo mais no<br />

Amazonas, o que levei muitos anos para apurar que não é verdade: o centro de<br />

maior produtividade está na região do Tocantins-Itacaiúnas.<br />

Durante decênios se cultivava no Amazonas uma disputa inglória, para a qual<br />

o Estado do Amazonas tomou Epitácio Pessoa como patrono, no Supremo Tribunal,<br />

em torno de uma desprezível ilha das Cotias, na foz do Nhamundá.<br />

Houve, porém, demonstrações cavalheirescas por parte do Pará. Em 1910,<br />

o Governador Antonio Bittencourt, que tinha sido deposto em Manaus, seguiu<br />

para Belém a fim de se por em contato com as autoridades federais. Mas o


Djalma Batista<br />

Governador João Coelho mobilizou a polícia do Estado, mandando repor o<br />

chefe do executivo amazonense: por isso o nome de João Coelho figura numa<br />

das principais avenidas da cidade.<br />

Aconteceu também um episódio, cujo aspecto folclórico merece ser lembrado.<br />

Com a Revolução de 1924, irrompida e vitoriosa em Manaus, Revolução que tinha<br />

raízes na alma amargurada do povo do Amazonas, a unidade do Exército embarcou<br />

para Belém, sob o comando do então já agitado tenente Magalhães Barata, na<br />

esperança de alastrar o movimento, afinal dominado, no foco principal, que fora<br />

São Paulo. O deslocamento da tropa se tornou inútil. Mas a veia popular anônima<br />

explorou maravilhosamente a disputa, tanto no Amazonas como no Pará. Cantavamse<br />

verdadeiros desafios, de que recordo duas quadrinhas sugestivas.<br />

Os amazonenses diziam:<br />

“27, revoltoso,<br />

queria depor seu Mé,<br />

mas parou, embaraçado,<br />

quando viu o Poconé.”<br />

(“Seu Mé” era o apelido do Presidente Artur Bernardes e o “Poconé” foi<br />

o navio que trouxe as tropas para combater os revolucionários).<br />

Os paraenses retrucavam:<br />

“Tomaram Óbidos,<br />

e Santarém,<br />

mas só tomaram<br />

um cheirinho de Belém...”<br />

* * *<br />

Conheci Belém em 1934, de passagem, no auge da crise econômica que<br />

desarticulou a Amazônia. Convivi, nesses poucos dias, com amigos venerandos,<br />

paraenses intransigentes, velhos partidários de Lauro Sodré (o líder da corrente<br />

contrária a Antonio Lemos). Pude perceber também naquele primeiro contato com<br />

a gente da rua a presença bem próxima do índio no tipo físico do paraense, muito<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

215


Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos...<br />

mais sensível que no amazonense com que estava acostumado. A cidade, porém<br />

resistia, já se recuperando sob o governo forte de Magalhães Barata, que era<br />

interventor desde a Revolução de 30 e não brincava em serviço. Surgiu em torno<br />

dele uma nova liderança, que resistiu até sua morte, em 1959, com alternativas de<br />

queda e ascenção ao poder.<br />

Passei muitas vezes em Belém, fui e vim muitas outras especialmente à<br />

capital paraense, nestes 40 anos decorridos. Fiz amigos, conheci os segredos da<br />

terra e penetrei, quanto pude, na alma do povo. Visitei casas senhoriais e<br />

residências modestas, convivi com grandes e pequenos. Fui até a um famoso<br />

terreiro de macumba.<br />

Posso dizer, com conhecimento de causa, que Belém é arquitetonicamente<br />

uma cidade portuguesa, mas culturalmente mantém a característica ancestral do<br />

índio, com o que se torna a história viva do Pará. Manaus, arquitetonicamente,<br />

é art nouveau, mas culturalmente é nordestina; o traço índio na cultura existe, mas<br />

é muito menor que no Estado vizinho.<br />

216 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

* * *<br />

Em vez de salientar as “diferenças” das duas metrópoles, porque agora ambas<br />

já o são, me apraz dizer que, conhecendo os seus habitantes, pude entender as<br />

características e os encantos de uma e outra cidade.<br />

Diz-se que Belém, ao contrário de Manaus, é uma “cidade fechada”, como<br />

São Paulo e Recife, diante do Rio e Bahia. Quando se penetra, porém, na casa de<br />

um paraense da gema muitas de 200 ou 300 anos, (o que só se consegue<br />

conquistando a confiança e muitas vezes a amizade), aí é que se sentem as<br />

delica<strong>dez</strong>as com que são tratados os visitantes. Nisto se traduz, também, uma<br />

herança ameríndia: arredio a princípio, até hostil, o silvícola sabia abrir a sua<br />

taba e o seu coração na hora exata.<br />

A cidade de Belém contrasta na verdade com Manaus é na topografia. Situada<br />

a 6 metros do nível do mar (em alguns pontos, até que se construísse o “dique do<br />

Guamá”, as marés a invadiam), se estende toda num plano único. Já Manaus, a 1.600<br />

quilômetros de distância, é uma cidade de colinas: na margem do rio Negro tem<br />

uma altitude média de 26 metros acima do nível do mar; em Adrianópolis essa<br />

altitude passa para 56 metros.


Djalma Batista<br />

Contrastam também no clima. Ambas as cidades, localizadas um pouco<br />

abaixo da linha do Equador, e apesar das altitudes diversas, Belém recebe os alíseos<br />

soprados diretamente do oceano vizinho; Manaus, no centro do vale, é mais quente,<br />

especialmente à noite, quando a chamada “viração” aplaca os rigores da soalheira de<br />

Belém. Os túneis formados pelas mangueiras, ao longo das avenidas, constituem<br />

um refrigério. Mas tanto em Belém como em Manaus constroem-se conjuntos<br />

residenciais inteiramente descampados, expostos à ação direta do sol, sem uma árvore<br />

que amenize a temperatura ou descanse o olhar.<br />

Em Manaus, eram famosos os balneários construídos nos igarapés que<br />

circundam a cidade. Em Belém, há muito acabaram. E nas duas cidades se constroem<br />

piscinas de águas cloradas sofisticadíssimas. Mas os habitantes de Belém estão<br />

próximos das praias de águas salobras da ilha do Mosqueiro, ou as águas salgadas de<br />

Marudá e Salinópolis, que aqui nos fazem grande falta.<br />

E os alimentos? Em Belém, os mariscos (a delícia dos casquinhos de caranguejo<br />

ou de siri!), o pato no tucupi de fazer água na boca, a maniçoba violenta e os nunca<br />

assaz levados muçuãs ao forno (infelizmente já dizimados), dão o toque de<br />

originalidade aos cardápios; o peixe que o povo consome, ou vem do mar ou é<br />

constituído de espécies que o amazonense não aprecia.<br />

Porque em Manaus, o alimento por excelência é o peixe, desde a caldeirada<br />

(à maneira indígena: peixe n’água e sal, com cheiro e coentro, em “caldo grande”),<br />

de uma grande variedade, de que se destacam o tucunaré ou o cará-açu; ou o peixe<br />

no moquém, também de origem índia, com muita pimenta (tendo grande preferência<br />

o curimatã e o matrinxã; ou o picadinho de tambaqui, de cujo lombo se fazem<br />

assados deliciosos; até o filé requintado de pirarucu...<br />

Nas duas cidades, houve um acepipe que deveria ser a glória dos deuses: a<br />

tartaruga. Como sucedeu com o muçuã, a tartaruga está passando para a exposição<br />

dos museus, ou ficando ao alcance apenas dos contraventores.<br />

E por falar em museu, quero falar no “Goeldi”, que é um patrimônio de<br />

toda a Amazônia, e onde sentimos bater forte o coração, contemplando a história<br />

natural e os testemunhos da humanidade da região. Seu bosque, plantado por<br />

mãos devotadas de homens de ciência, como Jacques Huber, Adolfo Ducke e<br />

Walter Egler, para só falar nos mortos, transmite uma sensação de paz e quietude,<br />

diante da imensidade da natureza. Seu parque zoológico constitui uma festa,<br />

para nós, filhos da terra, que não aprendemos na escola a conhecer os bichos,<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

217


Manaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos...<br />

como ignoramos as plantas. Tenho pelo Museu Goeldi uma ternura especial, de<br />

quem assistiu ao seu renascimento, convivendo com seus sucessivos diretores,<br />

me identificando com os seus pesquisadores, funcionários e empregados<br />

humildes, admirando as suas coleções que representam uma riqueza não<br />

conversível em dinheiro, manuseando seus boletins, lutando por suas verbas,<br />

participando de seus sofrimentos e aperturas.<br />

Encontrei em Belém, além do Museu, duas instituições de pesquisas<br />

estruturadas e operantes: Instituto Evandro Chagas e Instituto Agronômico<br />

(hoje IPEAN). Aprendi a amá-las e admirá-las.<br />

Tudo isso mostra a inteligência mestiça do amazônida, vibrando e produzindo.<br />

E essa inteligência, formada pela fusão das raças, sob os ardores do clima tropical e<br />

moldada pela natureza envolvente, está fazendo de Manaus e Belém dois pólos cada<br />

vez mais importantes no desenvolvimento da Amazônia. Há um epicentro de tudo,<br />

que não podemos nem devemos esquecer, embora sua cotação ande tão baixa nas<br />

apurações do Ibope nacional: o índio, que no final, foi o ponto de partida de tudo.<br />

As rivalidades pouco a pouco vão se diluindo: cada qual tem a sua própria<br />

cultura e um papel específico, na civilização da Amazônia, da mesma forma que<br />

Santarém, Porto Velho, Boa Vista e Rio Branco estão se preparando para consumir,<br />

dentro em pouco, o comando da cultura das respectivas áreas. Isso, é claro, se<br />

estivermos aceitando as perspectivas que se abrem com a integração nacional. Não<br />

esqueçamos, porém, a lição: Manaus e Belém levaram mais de três séculos para se<br />

definirem como civitae.<br />

Nas duas capitais, sempre houve um elemento fundamental de aproximação:<br />

a mulher, com a sua beleza física e suas graças e feitiços inconfundíveis, diante das<br />

quais amazonenses e paraenses se sentem derrotados reciprocamente.<br />

Só existe ainda um ponto de desentendimento invencível: é quando um clube<br />

de futebol de Manaus joga uma partida decisiva (que melhor fora chamar de “pelada”)<br />

com um time paraense, ou vice-versa. Aí todo entendimento, toda compreensão e<br />

toda solidariedade se desfazem irremediavelmente num segundo...<br />

218 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Noticiário


220 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Dissertações defendidas<br />

2.º semestre de 2006<br />

Lenita de Paula Souza Assis: Quando o fim é o começo: identidade e estigma na história do povo<br />

Dâw no Alto Rio Negro. (Orientadora: Selda Vale da Costa). Em 06/07/2006.<br />

José Alberto Carvalho: Terras caídas e conseqüências sociais. (Orientador: Hailton Igreja).<br />

Em 26/07/2006.<br />

Karine Gomes Queiroz: Design e retórica: do próprio ao alheio no design amazônico.<br />

(Orientadora: Marilene Corrêa da Silva Freitas). Em 31/07/2006.<br />

Andréa da Costa Andrade: Diálogos filosóficos com Benedito Nunes. (Orientador: Nelson<br />

Matos de Noronha). Em 15/09/ 2006.<br />

Hamida Assunção Perreira: Entre o tradicional e o moderno: a domesticação dos estilos de<br />

vida no Cacau Pirêra/Iranduba. (Orientadora: Iraíldes Caldas Torres).<br />

Em 16/10/2006.<br />

Amarildo Rodrigues Rolim: Do sonho à realidade: os ideias trabalhistas de desenvolvimento<br />

econômico para o Amazonas nas décadas de 50 e 60 do século 20. (Orientadora:<br />

Iraíldes Caldas Torres). Em 17/10/2006.<br />

Allan S. Barreto Rodrigues: Comunicação e sustentabilidade: recepção e mediação do discurso<br />

convervacional em São Raimundo do Jarauá. (Orientador: Walmir Albuquerque<br />

Barbosa). Em 23/11/2006.<br />

Roberta Ferreira Coelho: Ribeirinhos urbanos: modos de vida e representações sociais dos<br />

moradores do Puraquequara. (Orientador: Antônio Carlos Witkoski).<br />

Em 13/11/2006.<br />

Iracelma Magalhães C. Marques: A CPT e a questão socioambiental no Amazonas: em busca<br />

do futuro. (Orientador: Antônio Carlos Witkoski). Em 16/11/2006.<br />

Otacila Lemos Barreto: A fibra de tucum como alternativa econômica dos povos indígenas do<br />

Alto Rio Negro. (Orientadora: Heloísa Helena Corrêa da Silva).<br />

Em 04/12/2006.<br />

Fabiane Maia Garcia: Processos socioculturais da implementação do Programa de Informatização<br />

em escolas públicas: o caso do Proinfo-MEC em Manaus, 1998-2004. (Orientadora:<br />

Marilene Corrêa da Silva Freitas). Em 05/12/2006.<br />

Célia Oliveira de Carvalho: As formas de organização das práticas produtivas ribeirinhas do<br />

município de Coari-Am. (Orientadora: Maria do Perpétuo Socorro R. Chaves).<br />

Em 15/12/2006.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

221


222 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Noticiário<br />

Ivamar Moreira da Silva: Trabalho, qualificação e empregabilidade: um estudo de caso na<br />

Gradiente Eletrônica S.A. do pólo industrial de Manaus. (Orientadora: Márcia Perales<br />

Mendes). Em 21/12/2006.<br />

Márcia Irene Pereira Andrade: Caminhos e (des)caminhos da organização político-sindical<br />

da cidade de Manaus: um estudo de caso. (Orientadora: Márcia Perales Mendes).<br />

Em 22/12/2006.<br />

Aula Inaugural<br />

<strong>Eventos</strong><br />

2.º semestre de 2006<br />

A Dra. Edna Maria Ramos de Castro (NAEA/UFPa) foi a professora<br />

convidada para abrir as atividades do segundo semestre de 2006 do PPGSCA, com<br />

a palestra “Caminhos da pesquisa na Amazônia”, no dia 14 de novembro de 2006,<br />

às 14:30h no Auditório Rio Negro do Instituto de Ciências Humanas e Letras da<br />

Universidade Federal do Amazonas.<br />

Seminário<br />

Nos dias 28 e 29 de novembro de 2006, no Centro Cultural dos Povos da<br />

Amazônia, ocorreu o III Seminário de Avaliação do Programa de Pós-Graduação<br />

Sociedade e Cultura na Amazônia, que discutiu, entre outros temas, a fusão das<br />

linhas de pesquisa, e as disciplinas ofertadas, a publicação de docentes e discentes,<br />

oferta de bolsas de estudos e a criação da Associação de Pós-graduandos do<br />

PPGSCA. Um aspecto relevante do Seminário foram as comunicações e depoimentos<br />

dos estudantes indígenas sobre a experiência acadêmica e cientifica na pós-graduação<br />

na <strong>Ufam</strong>. Algumas críticas foram apresentadas, mas várias propostas também foram<br />

oferecidas para implementar o Programa e melhor qualificá-lo para o credenciamento<br />

do Doutorado junto à Capes.<br />

Palestras<br />

A professora Dra. Vicki Mayer, da Tulane University Communication, proferiu<br />

a palestra com o tema “O jogo da mão, o jogo de cintura: as montadoras dos


Noticiário<br />

aparelhos da televisão como uma classe criativa em Manaus”, ocorrida no dia 14 de<br />

agosto de 2006, às 14:30h horas, no Auditório Rio Negro do Instituto de Ciências<br />

Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas.<br />

No dia 28 de novembro de 2006, o professor do Departamento de Filosofia<br />

da <strong>Ufam</strong>, José Alcimar de Oliveira proferiu a palestra “A condição humana ou a<br />

alma do mundo: um passeio com Hannah Arendt na Amazônia”, no Centro Cultural<br />

dos Povos da Amazônia, durante o III Seminário de Avaliação do PPGSCA.<br />

Lançamentos<br />

Amazônia: políticas públicas e diversidade cultural, livro organizado pela Profa.<br />

Elenise Faria Scherer e Prof. José Aldemir de Oliveira, publicado pela Edua, teve<br />

seu lançamento no dia 17 de novembro de 2006, às 18:00h, no Centro Cultural<br />

dos Povos da Amazônia, Manaus-Am.<br />

Com a presença dos articulistas e do corpo discente e docente do Programa,<br />

foi lançado o n. 2, ano 5, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2005, da Revista Somanlu, no dia 14 de novembro<br />

de 2006, às 16:30h, no Auditório Rio Negro do Instituto de Ciências Humanas e<br />

Letras da Universidade Federal do Amazonas, durante a aula inaugural do 2º semestre<br />

de 2006, proferida pela profa. Dra. Edna Castro (NAEA/UFPa).<br />

Publicações recebidas<br />

2.º semestre de 2006<br />

Sete mentiras sobre a escola brasileira: para uma antropologia da educação. Norton F.<br />

Corrêa. Maranhão: Editora Cultura & Arte, 2004.<br />

Antropologia: duas ciências. Notas para uma história da antropologia no Brasil. Luis<br />

de Castro Farias; Alfredo Wagner Berno de Almeida e Heloisa Maria Bertol<br />

Domingues (Orgs.). Brasília: CNPq; Rio de Janeiro: MAST, 2006.<br />

Antropología y cine. Marc Henri Piault. Madrid: Cátedra, 2002.<br />

Ciência, Cine e História de Méliès a 2001. Alberto Elena Díaz. Madrid: Editora Alianza,<br />

2002.<br />

História indígena e indigenismo no Alto Rio Negro. Robin M. Wright. São Paulo: Mercado<br />

de Letras, 2005.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

223


224 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Noticiário<br />

Literatura e Antropologia do imaginário. Maria Zaira Turchi. Brasília: UnB, 2003.<br />

O campo da Antropologia no Brasil. Wilson Trajano Filho e Gustavo Lins Ribeiro. Rio de<br />

Janeiro: Contra Capa; ABA, 2004.<br />

O ensino da arte e a cultura popular. Izabel Mota Costa. Maranhão: Editora Cultura &<br />

Arte, 2004.<br />

Os Milton. Cem anos de história nos seringais. Mariana Ciavatta Pantoja. Recife: Editora<br />

Massangana, 2004.<br />

Cadernos da Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFMA, v. 1, n.1 e 2, 2004.<br />

Kalagatos – Revista de Filosofia do Mestrado de Filosofia. Universidade Estadual<br />

do Ceará, v. 2, n. 3, 2005.<br />

Revista Ciência Hoje – SBPC. v. 38, n. 228, 2006; v. 39 n. 229, 230 e 231, 2006.<br />

Revista Crítica de Ciências Sociais – Universidade de Coimbra, n. 74, 2005.<br />

Revista Margem – PUCSP, n.1 a 21, 1992 a 2005.<br />

Revista Moara – Revista da Pós-Graduação em Letras – UFPa, n. 22, 2004; n. 23 e<br />

24, 2005.<br />

Revista Saúde e Ambiente – Universidade de Joinville, v. 7, n. 1, 2006.<br />

Revista Tellus – UCDB. Campo Grande, ano 6, n. 10, 2005.<br />

Revista Vivência – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. UFRN, Natal, n. 29,<br />

2005.<br />

Pesquisas em andamento<br />

Alfredo Wagner Berno de Almeida<br />

Nova Cartografia Social da Amazônia.<br />

Produção científica dos docentes do PPGSCA<br />

Amélia Regina Batista Nogueira<br />

Lugar e cultura. A produção da vida no Careiro da Várzea-AM.<br />

2.º semestre de 2006<br />

Antonio Carlos Witkoski<br />

Desenvolvimento rural e sustentabilidade em comunidades ribeirinhas do Amazonas.<br />

O caboclo-ribeirinho e a etnoconservação dos recursos pesqueiros do lago de<br />

Manacapuru.


Noticiário<br />

Programa de segurança alimentar e geração de renda em comunidades ribeirinhas<br />

do Alto Amazonas.<br />

Elenise Faria Scherer<br />

Modo de vida ribeirinha: políticas públicas, sindicato e relação de gênero.<br />

O antigo Roadway e a Nova Estação Hidroviária de Manaus: modernização<br />

excludente.<br />

Ernesto Renan Freitas Pinto<br />

Vozes da Amazônia: investigação sobre o pensamento social brasileiro.<br />

Gabriel Arcanjo Santos de Albuquerque<br />

Elaboração de indicadores para avaliação e acompanhamento dos Programas de<br />

Bolsas da Fapeam – PGCT 2006.<br />

Gilson Vieira Monteiro<br />

A história dos meios de comunicação em Manaus.<br />

Tecnologia da comunicação e da informação.<br />

Heloísa Helena Corrêa da Silva<br />

Gravi<strong>dez</strong> na adolescência e o índice de evasão escolar nas escolas públicas de Manaus.<br />

Heloisa Lara Campos da Costa<br />

Vozes da Amazônia: as representações sociais femininas na obra de Dalcídio Jurandir.<br />

Hideraldo Lima da Costa<br />

Rios e homens: história, natureza e cultura na Amazônia (Piatam).<br />

Memórias Fapeam: trajetória institucional da Ciência e Tecnologia no Amazonas.<br />

Iraíldes Caldas Torres<br />

Caracterização das condições de vida das famílias do município de Barcelos/AM.<br />

Modo de vida ribeirinha: políticas públicas, sindicato e relação de gênero.<br />

Jose Aldemir de Oliveira<br />

As cidades e os rios: tipificação da rede urbana na calha Solimões-Amazonas.<br />

A cidade de Manaus, expansão urbana: transformações e permanências (1967 a<br />

2000).<br />

Projeto Cidades: construindo uma tipologia dos aglomerados urbanos na Amazônia.<br />

Márcia Eliane Alves de Souza Mello<br />

Amazônia Portuguesa: documentos coloniais.<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

225


226 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Noticiário<br />

Rios, cidades e homens: trajetórias coloniais e pós-coloniais.<br />

Márcia Perales Mendes Silva<br />

Rede de garantia de direitos de crianças e adolescentes do Estado do Amazonas.<br />

Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves<br />

Implantação de um sistema de monitoramento e controle da intoxicação humana e<br />

ambiental por agrotóxicos do Estado do Amazonas.<br />

Uso sustentável da biodiversidade regional e a gestão ambiental: as representações<br />

sociais dos agentes de biotecnologias no Amazonas.<br />

Adolescentes vítimas de traumas na cidade de Manaus.<br />

Empreendimentos solidários nos municípios de Coari e Carauari.<br />

Análise epidemiológica, clinica e laboratorial das meningites bacterianas agudas em<br />

crianças atendidas na Fundação Medicina Tropical.<br />

Maria Luiza de Carvalho Cruz<br />

Estudo de língua indígena e do Português falado no Amazonas (Dialetologia).<br />

A realização da vogal posterior média fechada /o/, em posição tônica, nos municípios<br />

de Parintins e Tefé.<br />

Comportamento fonético-fonológico da vogal posterior média fechada /o/ em<br />

contexto tônico, no falar dos municípios de Itacoatiara e Manacapuru.<br />

Narciso Julio Freire Lobo<br />

Mídia na Amazônia.<br />

Nelson de Matos Noronha<br />

Processos socioculturais na Amazônia - História do pensamento antropológico e<br />

processos étnico-culturais.<br />

O elementar e o universal: análise da evolução e das tendências das Dissertações de<br />

Mestrado do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.<br />

Patrícia Maria Melo Sampaio<br />

Processos socioculturais, direitos e identidades na Amazônia: programa de indução<br />

e consolidação da pesquisa e pós-graduação em IPES no Amazonas.<br />

Políticas indígenas e indigenistas na Amazônia Portuguesa, séculos XVIII e XIX.<br />

Rios e Homens: história, natureza e cultura na Amazônia (Piatam).<br />

Etnicidade, territorialidade e história.<br />

Selda Vale da Costa<br />

Arte e cultura na cidade de Manaus: manifestações teatrais (1970-1990).


Noticiário<br />

Vozes da Amazônia. Por rios amazônicos: conversas epistolares com Nunes Pereira.<br />

Manifestações teatrais no interior do Amazonas: Itacoatiara e Manacapuru.<br />

Sérgio Ivan Gil Braga<br />

Festas religiosas e populares na Amazônia.<br />

Missões exploratórias e demais atividades referentes à proposta Cidades, Patrimônio<br />

e Consumo Cultural em perspectiva comparada.<br />

Yoshiko Sassaki<br />

Trabalho, seguridade social e condições de vida dos moradores das zonas sul e leste<br />

de Manaus.<br />

Núcleos de Pesquisa dos docentes vinculados ao<br />

PPGSCA<br />

2.º semestre de 2006<br />

Centro de estudos e pesquisas em filosofia e ciências humanas – Dr. Ernesto<br />

Renan Freitas Pinto, Dr. Nelson Matos de Noronha, Dr. José Aldemir de Oliveira,<br />

Dr. Odenildo Teixeira Sena e Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida<br />

História e etnografia na fronteira amazônica – Dr. Nelson Matos de Noronha<br />

Cultura popular, identidades e meio ambiente na Amazônia – Dr. Sérgio Ivan<br />

Gil Braga e Dr. Antonio Carlos Witkoski<br />

Desenvolvimento regional na Amazônia – Dr. Ricardo José Batista Nogueira<br />

Educação à distância – Dr. Gilson Vieira Monteiro<br />

Enertec – Desenvolvimento tecnológico e energia – Dra. Simone Eneida Baçal<br />

de Oliveira<br />

Estudos de línguas indígenas e do Português falado no Amazonas – Dra.<br />

Maria Luiza de Carvalho Cruz<br />

Geografia da Amazônia, ambiente e cultura – Dra. Amélia Regina Batista<br />

Nogueira e Dr. Ricardo José Batista Nogueira<br />

GERES – Grupo de estudo de resíduos – Dr. João Bosco Ladislau de Andrade<br />

GETRA – Grupos de estudos e pesquisas contemporâneas sobre processos<br />

de trabalho e serviço social na Amazônia – Dra. Márcia Perales Mendes Silva<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

227


228 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Noticiário<br />

Grupo de estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa – Dr. Gabriel Arcanjo<br />

Santos de Albuquerque<br />

Grupo de estudo e pesquisa em ciência da informação – Dra. Célia Regina<br />

Simonetti Barbalho<br />

Grupo de estudos e pesquisa em ciências da comunicação, informação, design<br />

e artes (InterFaces) – Dr. Gilson Vieira Monteiro, Dra. Célia Regina Simonetti<br />

Barbalho, Dr. Narciso Julio Freire Lobo e Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa<br />

Grupo de estudos e pesquisa em políticas sociais e seguridade social no<br />

Amazonas – GEPPSSAM – Dra. Yoshiko Sassaki, Dra. Heloísa Helena Corrêa da<br />

Silva e Dra. Iraíldes Caldas Torres<br />

Grupo interdisciplinar de estudos sócio-ambientais e de desenvolvimento de<br />

tecnologias apropriadas na Amazônia (Inter-Ação) – Dra. Maria do Perpétuo<br />

Socorro Rodrigues Chaves<br />

Grupo interinstitucional de processos semióticos e de design – Dra. Célia<br />

Regina Simonetti Barbalho<br />

Grupo de pesquisas e estudos das cidades na Amazônia Brasileira – Dr. José<br />

Aldemir de Oliveira<br />

História colonial da Amazônia – Dra. Márcia Eliane Alves de Souza e Mello<br />

História e economia mundial contemporâneas – Dra. Elenise Faria Scherer<br />

História indígena da Amazônia: políticas indígenas e indigenistas – Dra.<br />

Patrícia Maria Melo Sampaio, Dra. Maria Luiza Garnelo e Dr. Alfredo Wagner<br />

Berno de Almeida<br />

História, saúde e instituições na Amazônia – Dr. Hideraldo Lima da Costa<br />

História social da Amazônia – Dra. Patrícia Maria Melo Sampaio<br />

História e natureza na História das Ciências – Dr. Alfredo Wagner Berno de<br />

Almeida<br />

Imunologia das doenças tropicais – Dr. João Bosco Ladislau de Andrade<br />

Modos de governar: política e negócios do império português ao império do<br />

Brasil – Dra. Márcia Eliane Alves de Souza e Mello


Noticiário<br />

Núcleo de antropologia visual – Dra. Selda Vale da Costa e Dr. Narciso Júlio<br />

Freire Lobo<br />

Núcleo de estudos sobre o pensamento social na Amazônia – Dr.Ernesto<br />

Renan Freitas Pinto, Dra. Selda Vale da Costa, Dra. Heloisa Lara Campos da Costa<br />

e Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas<br />

Petróleo, meio ambiente e socioeconomia na Amazônia Ocidental – Dra.<br />

Patrícia Maria Melo Sampaio, Dr. Hideraldo Lima da Costa, Dr. Antonio Carlos<br />

Witkoski e Dra. Márcia Eliane Alves de Souza e Mello<br />

Planejamento e gerenciamento de recursos hídricos no Amazonas – Dra.<br />

Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves<br />

Políticas públicas, território e ambiente na Amazônia – Dra. Elenise Faria<br />

Scherer, Iraíldes Caldas Torres, Dra. Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves,<br />

Dra. Maria Luiza Garnelo e Dr. João Bosco Ladislau de Andrade<br />

POLIS - Núcleo de pesquisa em política, instituições e práticas sociais –<br />

Dra. Patrícia Maria Melo Sampaio, Dr. Hideraldo Lima da Costa e Dra. Márcia<br />

Eliane Alves de Souza e Mello<br />

Psicologia cognitiva: criatividade – Dra Heloisa Lara Campos da Costa e Dra.<br />

Heloísa Helena Corrêa da Silva<br />

PYRÁ – Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas<br />

Questão social e assistência social no Amazonas – Dra. Heloísa Helena Corrêa<br />

da Silva<br />

Saúde, epidemiologia e antropologia dos povos indígenas – Dra. Maria Luiza<br />

Garnelo<br />

Sustentabilidade na Amazônia – Dr. Antonio Carlos Witkoski<br />

Tecnologia educacional – Dr. Gilson Vieira Monteiro<br />

Trabalho e sociedade na Amazônia – Dra. Maria Izabel de Medeiros Valle, Dra.<br />

Marilene Corrêa da Silva Freitas, Dra. Márcia Perales Mendes Silva e Dra. Heloisa<br />

Lara Campos da Costa<br />

Rede de estudos urbanos Brasil-Portugal – Dr. Sérgio Ivan Gil Braga<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

229


230 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Números Anteriores<br />

v. 1, n. 1, 2000<br />

Artigos<br />

Polifonia cultural e pensamento radical – Edgard de Assis Carvalho<br />

O pensamento social na Amazônia: (re)visões da Ciência – Peter Weigel<br />

Paul Ricoeur e Walter Mignolo – um estudo de hermenêuticas racionalistas num campo interpretativo<br />

comum – Marilene Corrêa da Silva<br />

Narcisismo & sociedade – Narciso Júlio Freire Lobo<br />

Teoria crítica, educação e delinqüência política ou do cidadão mínimo e da tirania do mercado –<br />

José Alcimar de Oliveira<br />

Direito à vida: reafirmação da exclusão – Elenise Faria Scherer<br />

De Vice-reino à Província: tensões regionalistas no Grão-Pará no contexto da emancipação política<br />

brasileira – Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro<br />

Amazônia e questão regional: um regionalismo sufocado – Ricardo José Batista Nogueira<br />

Reflexões em torno das raízes culturais da mulher na Amazônia – Heloisa Lara Campos<br />

da Costa<br />

Pesquisas<br />

Um olhar fenomenológico sobre a cidade – Júlio César Schweickardt<br />

Aspectos estruturais das cidades e suas transformações – Luiz de Oliveira Carvalho<br />

A dialética do seringal – Ricardo Pereira Parente<br />

A rede de fortificações na Amazônia brasileira: uma abordagem sobre a militarização (séculos 17 e<br />

18) – Mírcia Ribeiro Fortes<br />

Carne de Sol: uma análise discursiva da narrativa curta de Álvaro Maia – José Ribamar<br />

Mitoso<br />

Representações e realidade social intersubjetiva – Ricardo Ossame<br />

Imagens<br />

Cores de um meteoro – Otoni Mesquita<br />

Resenha<br />

As vítimas do massacre – José Aldemir de Oliveira<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

231


232 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Números anteriores<br />

Ano 2, n. 2 – Edição especial, 2002<br />

Artigos<br />

Arte e Cultura Popular<br />

O boi é bom para pensar: estrutura e história nos bois-bumbás de Parintins – Sérgio Ivan<br />

Gil Braga<br />

A festa de boi-bumbá em Parintins: tradição e identidade cultural – Raimundo Dejard<br />

Vieira Filho<br />

Parintins: turismo e cultura – Ângelo César Brandão Pimentel<br />

Globalização e Turismo<br />

Saga do boi-bumbá em preto-e-branco – Fátima Guedes<br />

Uma viagem ao boi-bumbá de Parintins: do turismo ao marketing cultural – Luiza Elaine<br />

Corrêa Azevedo<br />

O boi-bumbá e a nova estrutura urbana de Parintins – José Camilo Ramos de Souza<br />

Educação ambiental e festas populares: um estudo de caso na Amazônia utilizando o Festival<br />

Folclórico de Parintins – Elizabeth da Conceição Saotos<br />

Festival folclórico: o que muda em Parintins? – Ana Rúbia Figueiredo Fernandes<br />

Mito e Imaginário<br />

Tradição, tradução e transparência – João de Jesus Paes Loureiro<br />

O indianismo revisitado pelo boi-bumbá. Notas de pesquisa – Maria Laura Viveiros de<br />

Castro Cavalcanti<br />

A geografia mítica do boi – Amarildo Menezes Gonzaga<br />

Boi-bumbá, memória de antigamente – Selda Vale da Costa<br />

Ensaio fotográfico<br />

Parintins: brincando com arte – Andreas Valentin<br />

Comunicações<br />

Arte e cultura regional – Odinéia Andrade, Fred Góes, José Mayr Mendes, Roosevelt<br />

Max Sampaio Pinheiro, Mêncius Mello, Tony Medeiros e Marcos Santos<br />

Globalização e turismo – Wilson Nogueira e Gerson Severo Dantas<br />

Produção audiovisual – Elaine Meneghini e Salete Lima<br />

Mito e imaginário – Marcos Frederico Krüger Aleixo<br />

Produção acadêmica sobre os bois-bumbás e o Festival de Parintins


Números Anteriores<br />

Ano 3, n. 1/2, jan./<strong>dez</strong>. 2003<br />

Artigos<br />

Natureza e cultura na Amazônia: evolução e tendências da pesquisa e da pós-graduação – Nelson<br />

Matos de Noronha<br />

Meditação e devaneio: entre o rio e a festa – João de Jesus Paes de Loureiro<br />

Os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso, heróis do<br />

Festival Folclórico de Parintins – Maria Eva Letízia<br />

Escolas indígenas: a que será que se destinam? – Márcio Silva<br />

Uma comunidade da várzea: organização e morfologia social – Marilene Corrêa da Silva e<br />

José Fernandes Barros<br />

Políticas agrárias e políticas ambientais na Amazônia: encontros e desencontros – Kátia Helena<br />

Serafina Cruz Schweickardt<br />

Políticas energéticas no Estado do Amazonas: implicações e questões em face do meio ambiente –<br />

André Jun Miki<br />

Manaus ontem e hoje: transformações do espaço urbano e memória popular – Lucynier Omena<br />

Melo<br />

Cidades desaparecidas: Poiares, século 18 – Patrícia Melo Sampaio<br />

Pós-modernidade: uma tentativa de reflexão sobre sua expressão econômica, política e cultural –<br />

Marinez Gil Nogueira<br />

Filosofia, antropologia: o fim de um mal-entendido – Claude Imbert<br />

Ano 4, n. 1, jan./jun. 2004<br />

Artigos<br />

Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” como fator essencial de transição<br />

econômica – pontos resumidos para uma discussão – Alfredo Wagner Berno de Almeida<br />

Tradição, modernidade e políticas públicas no Alto Rio Negro – Maria Luiza Garnelo Pereira<br />

Dimensão pedagógica da violência na formação do trabalhador amazonense – Marlene Ribeiro<br />

Inovações tecnológicas e qualificação profissional – Maria Izabel de Medeiros Valle<br />

Impactos da reestruturação produtiva nas expressões de consciência de classe dos operadores de<br />

produção da Zona Franca de Manaus – Márcia Perales Mendes Silva<br />

Desemprego, trabalho precário e des-cidanização na zona Franca de Manaus – Elenise Faria<br />

Scherer<br />

Impactos da reestruturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e de desemprego na Zona<br />

Franca e demais setores – Iraildes Caldas Torres<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

233


234 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Números anteriores<br />

Suframa: agência de agentes – Izaura Rodrigues Nascimento<br />

Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica – Pérsida da Silva<br />

Ribeiro Miki<br />

Ano 4, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2004<br />

Artigos<br />

Desenvolvimento sustentável e educação ambiental: para uma integração da dimensão intercultural<br />

nas abordagens pedagógicas e didáticas – Olivier Meunier<br />

Agricultura e identidade cabocla-ribeirinha – Terezinha de Jesus Pinto Fraxe/Antônio<br />

Carlos Witkoski<br />

O cooperativismo popular como forma de inserção econômica – Celso Augusto Tôrres do<br />

Nascimento<br />

Noção de trabalho e trabalhadores na Amazônia – Iraildes Caldas Torres<br />

Categorias de análise de sustentabilidade social em relações de trabalho na indústria madeireira do<br />

Amazonas – Jessé Rodrigues dos Santos<br />

A terceirização como estratégia para a competitividade: uma análise do processo na Gradiente<br />

Eletrônica S.A. – Zânia Maria Rios Aguiar Vieira<br />

La escritura de Neruda: itinerario de três viajes – Elsa Otilia Heufemann-Barría<br />

Uma leitura amazônica a partir de Judas Asvero, de Euclides da Cunha – Nícia Petreceli<br />

Zucolo<br />

Romance-documentário em Inferno verde e A selva – Rita Barbosa de Oliveira<br />

Por uma antropologia do espaço social: os ensaios de Garantido e Caprichoso em Manaus – Hueliton<br />

da Silveira Ferreira e Sérgio Ivan Gil Braga<br />

Ruídos na comunicação: o homem amazônico sob a ótica do preconceito – Maria das Graças<br />

Ferreira de Medeiros<br />

Jornalismo científico na Amazônia – Walmir de Albuquerque Barbosa<br />

Conferência<br />

Delineando corpos – Maria Izilda Santos de Matos<br />

Resenhas<br />

A complexa fala operária – Narciso Júlio Freire Lobo<br />

Um jogo filosofante ou a demolição do narcisismo dos autores – João Bosco Ladislau de Andrade<br />

Homenagem Póstuma ao Prof. Dr. Octavio Ianni


Números Anteriores<br />

Ano 5, n. 1, jan./jun. 2005<br />

Artigos<br />

E tu me amas? – Aurélio Michiles<br />

A narrativa poética em Dois irmãos – lugar de intercâmbio entre suportes arquivísticos –<br />

Allison Leão<br />

A importância dos fatores socioculturais no processo da comunicação – Allan S. B. Rodrigues e<br />

Grace S. Costa<br />

O modo de ser e viver o caboclo por Dalcídio Jurandir – Fabiane Maia Garcia/João Bosco<br />

Ferreira<br />

Mercado faz a festa na floresta – Wilson Nogueira<br />

Representações sociais das comunidades rurais amazônicas do conceito ambientalismo ou preservação<br />

ambiental: os casos de Fátima e Livramento – Renan Albuquerque Rodrigues<br />

O desafio ético do desenvolvimento com diversidade – Carlos Lopes<br />

Nas margens do igarapé do Mindu: dois lados da história - Ângela Maria de Abreu Cavalcante<br />

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento: uma reflexão sobre as diferenças ídeo-políticas<br />

conceituais – Marinez Gil Nogueira e Maria do Perpétuo Socorro R. Chaves<br />

Afirmação étnica e movimento indígena em Tefé: o caso dos Cambeba – Benedito Maciel<br />

A inserção do indivíduo em novos espaços sociais e a criação de novos papéis – Aldair Oliveira<br />

de Andrade<br />

Dinâmica territorial na fronteira Brasil-Colômbia – Ricardo José Batista Nogueira<br />

Resenhas<br />

A contribuição seminal de Koch-Grünberg – Renan Freitas Pinto<br />

Ponto e contraponto – Marcos Frederico Krüger<br />

Homenagem Póstuma a Leandro Tocantins<br />

Ano 5, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2005<br />

Artigos<br />

Darwin e Marx: diálogos nos trópicos. para uma interpretação do Brasil – Alfredo Wagner<br />

Berno de Almeida<br />

A Geografia em Foucault – Marcos Castro de Lima<br />

Afirmação e erotismo: os reflexos da indústria cultural na música popular produzida na Região<br />

Norte – Marcio Lima Noronha<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

235


236 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Números anteriores<br />

Lixo & Arte – João Bosco Ladislau de Andrade<br />

O ignorado Benjamin Sanches e o Modernismo: uma leitura inicial de sua obra no contexto brasileiro<br />

ancorada no conto “A Gravata” – Nícia Petreceli Zucolo<br />

Movimento teatral em Manaus e identidade regional – Selda Vale da Costa<br />

Atlas Lingüístico do Amazonas – ALAM: natureza de sua elaboração, resultados e perpectivas<br />

- Maria Luiza de Carvalho Cruz<br />

Tecnologia e Comunicação: os mediadores de confrontos – Cristina Teresa Salvador Rebelo<br />

Santos<br />

Globalização e saber local: mito e racionalidade na Amazônia como diálogo intercultural – Harald<br />

Sá Peixoto Pinheiro<br />

As mulheres e o patrimonialismo (Amazônia: 1840-1930) – Heloisa Lara Campos da Costa<br />

O avanço da terceirização no cenário de reestruturação produtiva na Zona Franca de Manaus –<br />

Márcia Perales/Maria R. A. Vieira /Zânia M. Silva Aguiar<br />

Conferência<br />

Os itinerários urbanos de Claude Lévi-Strauss – Claude Imbert<br />

Resenhas<br />

Um livro que é bom para pensar – Marcos Frederico Krüger<br />

Amazônia: mito e literatura ou o relato de tudo quanto viu o viajante Marcos Frederico Krüger –<br />

Gabriel Albuquerque<br />

Homenagem póstuma a Mário Ypiranga Monteiro<br />

Mário Ypiranga Monteiro, meu pai – Marita Socorro Monteiro<br />

O pescador – Mário Ypiranga Monteiro (inédito)<br />

Ano 6, n. 1, jan./jun. 2006<br />

Artigos<br />

A vivência individual do sagrado e do místico em Manaus – Lucynier Auxiliadora Omena<br />

Melo<br />

Os rumos da produção científica sobre mulher e gênero na Universidade Federal do Amazonas<br />

(1975/2002) – Heloisa Lara Campos da Costa e Priscila Freire Rodrigues<br />

O povo Dâw do Alto Rio Negro-Am – Lenita de Paula Souza Assis<br />

A imagem da cidade de Manaus em Jules Verne – Otoni Moreira de Mesquita<br />

Vidas molhadas – Um estudo socioambiental de comunidades ribeirinhas da várzea amazônica –<br />

Geandro Guerreiro Pantoja, Therezinha de Jesus Fraxe e Antônio Carlos Witkoski


Números Anteriores<br />

As toadas dos bois Garantido e Caprichoso de Parintins-Am na versão de 2004 – Maria Eva<br />

Letízia<br />

Medicina Tradicional Baniwa: doença, poder, conflito e cura – Luiza Garnelo, Sully Sampaio,<br />

André Fernando Baniwa e Gary Lynn<br />

O patrimônio no Amazonas: natureza e cultura em processo – Ana Lúcia Nascentes da Silva<br />

Abrahim<br />

Conferência<br />

Saberes humanos e educação do futuro – Edgard de Assis Carvalho<br />

Documento<br />

Introdução à dramaturgia indígena – Manoel Nunes Pereira<br />

Entrevista<br />

Sobre Antropologia Visual – Renato Athias<br />

Resenhas<br />

Duas cidades, duas memórias... – Narciso Júlio Freire Lobo<br />

Entre Luiz Vitalli , Clarice Lispector e Polifônicas Idéias – Ricardo Parente<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

237


238 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006


Normas para apresentação de trabalho<br />

Somanlu, publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Sociedade<br />

e Cultura na Amazônia – ICHL/<strong>Ufam</strong>, tem caráter multidisciplinar e divulga trabalhos<br />

sobre os processos socioculturais da Amazônia. As seguintes normas devem<br />

ser seguidas na elaboração e envio de trabalhos para a revista:<br />

1. Os artigos, resenhas e entrevistas deverão ser enviados em disquete, com<br />

etiqueta identificando o(s) autor (es), e em duas vias impressas, em corpo 12,<br />

Times New Roman.<br />

2. O ARTIGO deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, o<br />

nome e a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculação<br />

profissional, endereço eletrônico e telefone), resumo e palavras-chave em português<br />

e inglês. As notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada –<br />

deverão vir sempre no final do texto, antes das referências. Os resumos deverão<br />

conter, no máximo, 350 caracteres sem espaços.<br />

3. As referências a obras devem vir no corpo do trabalho, entre parênteses, como<br />

no exemplo: (SOUZA, 1998, p. 157) ou (SOUZA, 1998, p. 155-157).<br />

4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatro<br />

linhas, devem ser destacadas do texto, em corpo 11, sem aspas.<br />

5. As referências devem obedecer aos seguintes modelos: MARCUSE, Herbert (1972).<br />

Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar; GALVÃO,<br />

Eduardo (1951). Boi-bumbá, versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v.<br />

3, n. 8, <strong>jul</strong>ho, p.276 - 291; SACHS, Ignacy (1993). Estratégia de tradição para o<br />

século XXI. In: BURSZTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável.<br />

São Paulo: Brasiliense, p. 29 -56.<br />

6. Anexos: caso existam, devem vir depois das referências.<br />

7. A RESENHA de livros, com publicação nos últimos três anos, deve conter<br />

indicação do autor, título, local da edição, editora e ano de publicação da obra<br />

resenhada, em até 13 mil caracteres sem espaços, corpo 12, na fonte Times<br />

New Roman.<br />

8. A ENTREVISTA deve conter informações do entrevistado, do(s) entrevistador<br />

(res), data e local, e evento, se for o caso, em que se deu a oportunidade da<br />

Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

239


240 Somanlu, ano 6, n. 2, <strong>jul</strong>./<strong>dez</strong>. 2006<br />

Normas para apresentação de trabalho<br />

entrevista. Deve sempre ater-se a temas de interesse da revista e conter, no<br />

máximo, 20 mil caracteres.<br />

9. Os trabalhos serão submetidos ao Conselho Editorial que os enviará a pareceristas<br />

had hoc, que decidirão da sua publicação. Conforme a avaliação destes, o texto<br />

será programado para publicação ou devolvido a seu autor para ser reformulado<br />

e novamente enviado para nova avaliação. Os trabalhos não aprovados ficarão à<br />

disposição de seus autores pelo prazo de até um mês após a comunicação. Os<br />

autores que tiverem seus textos aprovados deverão encaminhar à Comissão Editorial<br />

uma autorização para sua publicação. O conteúdo dos textos será de inteira<br />

responsabilidade de seus autores.<br />

10. Os autores que tiverem artigos, resenhas ou entrevistas publicados receberão três<br />

exemplares da Revista.<br />

Obs.: O disquete e as cópias impressas devem ser entregues ou enviadas para a<br />

Secretaria do PPGSCA ou para o endereço eletrônico da Revista:<br />

r<strong>somanlu</strong>@ufam.edu.br, quando da impossibilidade da entrega direta. O texto deve<br />

vir revisado pelo(s) autor(es) e obedecer às normas de apresentação, caso contrário<br />

será devolvido pela Comissão Editorial.

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