01 lawrence coetzee.pdf - Departamento de Difusão Cultural - Ufrgs
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Vida e Simulacro: kafkianismo e Disgrace <strong>de</strong> J.M. Coetzee 1<br />
Promoção: <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> <strong>Difusão</strong> <strong>Cultural</strong> - PROREXT-UFRGS<br />
Pós Graduação em Filosofia - IFCH – UFRGS<br />
www.malestarnacultural.ufrgs.br<br />
Lawrence Flores Pereira<br />
UFSM<br />
John Maxwell Coetzee possui um incomum percurso que, em muitos sentidos, faz<br />
caminho contrário ao <strong>de</strong> muitos autores que até os anos setenta se ausentaram do<br />
realismo ou o naturalismo em favor <strong>de</strong> um minimalismo alegórico ou simbólico. É<br />
curioso ver, porém, como as condições <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> Coetzee prometiam, no início <strong>de</strong><br />
sua carreira, bem mais que uma obra <strong>de</strong> teor simbólico, enraizada na tradição do<br />
estranho geográfico oci<strong>de</strong>ntal. Waiting for the Barbarians, com sua ambientação nas<br />
fraldas <strong>de</strong> um Império <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, nas vizinhanças <strong>de</strong> povos bárbaros, é uma alusão a<br />
uma linhagem <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> pensadores-escritores do passado: A Revolta dos Tártaros,<br />
<strong>de</strong> Thomas De Quincey, O Deserto dos Tártaros, <strong>de</strong> Dino Buzzatti, mas ainda outros<br />
autores que fundiram in<strong>de</strong>levelmente os sinistros fantasmas <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio oci<strong>de</strong>ntal com<br />
“relativos objetivos” bem concretos em estepes abertas e outros cenários. Nas<br />
entrelinhas da obra, em seu ritmo, em suas vastas estepes, ouve-se também a<br />
influência marcante da célebre tradução do Lamento do Guardião <strong>de</strong> Fronteira <strong>de</strong> Ezra<br />
Pound, com sua cadência, seu terror diante das vastidões ameaçadoras. Como não<br />
po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser percebe-se, ao fundo, sugestões eliotianas, terras <strong>de</strong>vastadas.<br />
O fundo sinistro-geográfico é ainda profundamente influenciado por Kafka, sentindo-se<br />
em sua atmosfera a opressiva dúvida e pasmo onipresente em obras como O Castelo<br />
e O Processo. É uma história ambientada num não-lugar ou ainda num entre-lugar<br />
entre civilização e barbárie, lugar fronteiriço on<strong>de</strong> as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s dissolvem-se pela<br />
constante locomoção ou pelo simples contato problemático com a barbárie – civilizada<br />
e “primitiva”. Percebe-se com freqüência, por trás das alusões e sujeitos, contudo, o<br />
esqueleto da intenção <strong>de</strong> Coetzee <strong>de</strong> apresentar uma espécie <strong>de</strong> alegoria complexa<br />
<strong>de</strong>stes entrepostos distantes do mundo oci<strong>de</strong>ntal, tal como a África do Sul. Apesar <strong>de</strong><br />
1 Texto originalmente publicado em VIEIRA, André Soares; VIANNA, Vera Lucia;<br />
MONTEMEZZO, Luciana (orgs.) Mediações do fazer literário: texto, cultura e socieda<strong>de</strong>. Santa<br />
Maria: PPGL Editores, 2009.<br />
1
toda a artesania infalível <strong>de</strong>ste livro profundo, seu efeito se <strong>de</strong>ve em gran<strong>de</strong> parte à<br />
<strong>de</strong>sambientação a que é submetido o meio – um recurso tipicamente kafkiano –, o<br />
qual, em lugar <strong>de</strong> captar um lugar específico, vitalizado pela experiência direta, sugere<br />
simbolicamente os universos imaginários, correndo o risco a todo o instante <strong>de</strong> os<br />
transformar em alegorias chatas, planas. Mesmo seus personagens são submetidos a<br />
um esfriamento que os torna estranhos – bárbaros –, entes <strong>de</strong> outro mundo,<br />
personagens cuja reflexão não incorpora o conjunto <strong>de</strong> discursos e percepções vivas,<br />
no instante <strong>de</strong> sua produção. Em outras palavras, Waiting for the Barbarians apresenta<br />
personagens “suspensos” num mundo que, mesmo com objetos, paisagens, cida<strong>de</strong>s,<br />
é a um tempo alegórico e uma abstração: falta-lhes a substância que Coetzee adotaria<br />
mais tar<strong>de</strong>.<br />
Coetzee <strong>de</strong>senvolve assim um dos temas mais curiosos <strong>de</strong> sua obra: a <strong>de</strong>sintegração<br />
<strong>de</strong> um sujeito que pertence ao establishment <strong>de</strong>ste mundo fora-do-lugar: uma África<br />
do Sul imaginada em termos simbólicos ou a própria condição contemporânea?<br />
Coetzee e Kafka<br />
Coetzee vai se distanciar gradativamente da forma algo metafórica <strong>de</strong>ste romance <strong>de</strong><br />
aparência algo kafkiana, embora não da produção <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> profunda<br />
angústia associada ao temor diante <strong>de</strong> uma acusação infundada ou ainda absurda.<br />
Em Kafka o po<strong>de</strong>r do estado vinha associado à lei e à ação paterna esmagadora e<br />
enigmaticamente impenetrável, o que, <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista simbólico, carregava <strong>de</strong><br />
roldão todo o circuito imaginário da burocracia (das instituições) e das (pseudo)leis<br />
cujas motivações ou fogem a qualquer lógica ou ainda são estranhamente<br />
inescrutáveis em suas razões, <strong>de</strong>ixando o sujeito em eterno débito. Na obra <strong>de</strong> Kafka<br />
a sutil intrusão <strong>de</strong> uma nebulosa alegórica que <strong>de</strong>snaturaliza o espaço, o tempo e os<br />
personagens, colocando-os num além-mundo-efetivo que nunca <strong>de</strong>ixa, é verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
aludir ao nosso, permitiu vislumbrar, com clareza, o enlace na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna<br />
entre fantasma (psíquico) e aparelhamento sutil do Estado e da Socieda<strong>de</strong>, revelando<br />
o que era menos fácil <strong>de</strong> revelar por meio somente <strong>de</strong> procedimentos “naturalistas”.<br />
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A grotesca e assustadora <strong>de</strong>scrição do oficial <strong>de</strong> sua máquina <strong>de</strong> lembrar e matar, em<br />
Colônia Penal, apresenta sensoriamente – e não através <strong>de</strong> uma observação <strong>de</strong> fora,<br />
analítica, e portanto <strong>de</strong>ficiente– a fetichização do objeto: no caso um objeto <strong>de</strong> tortura<br />
e <strong>de</strong> morte. As tecnologias aparecem intermediando a relação entre o algoz e o<br />
supliciado, ao passo que o próprio supliciado é um pobre parvo que entra na máquina<br />
com a mesma indiferença que cometeu a sua singela e nada grave infração. Kafka<br />
explora assim as zonas limítrofes, os interstícios entre as infrações (mo<strong>de</strong>stas) e as<br />
punições que já não existem na sua forma antiga: mas já são o mol<strong>de</strong> fundido da<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservar a punição e <strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular o agente punitivo do ato<br />
violento, acrescentando a isto o fetiche tecnológico, o encanto-fetiche com o objeto<br />
que ali está apenas para ser testado em sua eficácia.<br />
A precessão da atmosfera <strong>de</strong> absurda violência e <strong>de</strong> nonsense alegórico proporcionou<br />
o <strong>de</strong>lineamento mais claro <strong>de</strong> um fantasma que já se encontrava em certa medida<br />
instaurado nas socieda<strong>de</strong>s burocratizadas da primeira meta<strong>de</strong> do século XX, e o gênio<br />
<strong>de</strong> Kafka foi ter sublinhado simbolicamente o fenômeno por meio <strong>de</strong> uma constante<br />
apresentação <strong>de</strong> ambientes in<strong>de</strong>finidos histórica e espacialmente, mergulhados em<br />
estranha atmosfera <strong>de</strong> angústia.<br />
Entretanto, a imagem kafkiana grosso modo possui a astúcia <strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong><br />
apresentar uma figuração que torna distinto aquilo que na realida<strong>de</strong> raramente é<br />
discernível pela imediata percepção, aquilo que na “nossa realida<strong>de</strong>” se tornou tão<br />
onipresente e sistêmico que não se <strong>de</strong>ixa vislumbrar em seu caráter anômalo. Este<br />
inferno kafkiano, em sua invisibilida<strong>de</strong> sistêmica, constitui, em parte, uma visionária<br />
visão da emergência daquilo que Baudrillard <strong>de</strong>finiu como simulacro. Baudrillard<br />
ofereceu um retrato <strong>de</strong> um mundo que per<strong>de</strong>u o contato com a efetivida<strong>de</strong> do real e<br />
passou a viver sob o domínio do simulacro e do assim chamado hiper-espaço – o<br />
espaço que é o espaço aberto, virtualmente construído, inconsciente do mundo<br />
contemporâneo. Neste acontecimento, que Baudrillard consi<strong>de</strong>ra irreversível,<br />
semelhante a uma engrenagem que se autoprocria, tudo o que resta é um mo<strong>de</strong>lo<br />
matricial <strong>de</strong> pura combinatória: “Algo <strong>de</strong>sapareceu: a diferença soberana <strong>de</strong> um para o<br />
outro, que constituía o encanto da abstração” (BAUDRILLARD, 1991, p. 8), a própria<br />
repetição compulsiva da reaparição da imagem-simulacro provém do mesmo substrato<br />
que levou Kafka a apresentar situações absurdas e estranhamente familiares.<br />
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Baudrillard evocou, no mesmo ensaio, a fábula borgeana dos “cartógrafos do império”<br />
que “<strong>de</strong>senham um mapa tão <strong>de</strong>talhado que acaba por cobrir exatamente o território”<br />
(BAUDRILLARD, 1991, p.7). Ou seja, a abstração cartográfica per<strong>de</strong> em parte o seu<br />
sentido <strong>de</strong> “súmula” e passa ser uma perfeita imitação do território que ela refere. No<br />
entanto, o “hiper-real” é algo ainda mais grave do que isso, ele é a invenção <strong>de</strong> uma<br />
realida<strong>de</strong> que está acima do real e que, mais do que isso, <strong>de</strong>stitui o real <strong>de</strong> sua<br />
efetivida<strong>de</strong> majoritária e até mesmo, em última instância, promulga Baudrillard, o<br />
abole. O mapa já não existe, assim como a país <strong>de</strong> que ele era a cópia extensiva<br />
igual. Um dos sinais do hiper-real – se po<strong>de</strong>mos aqui falar <strong>de</strong> real – é justamente a<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apontar uma realida<strong>de</strong> concreta anterior: ele possui existência<br />
autônoma. Mais do que isso “o real nunca mais terá oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se produzir”<br />
(BAUDRILLARD, 1991, p. 8).<br />
Resta a pergunta, contudo, que os que crêem na literatura crítica se colocam sempre<br />
que retomam a leitura <strong>de</strong> Baudrillard: se a hiper-realida<strong>de</strong> possui a adição <strong>de</strong> se auto-<br />
referir circularmente, on<strong>de</strong> ficaria a literatura exploratória neste contexto? Estaria<br />
inclusa nesta visão pessimista <strong>de</strong> Baudrillard que abraçou não apenas o mundo da<br />
mídia e da vida atuais, mas também o universo da “arte"? Serviria a um discurso<br />
apocalíptico como mais um exemplo cabal da vitória e da irremediável ascensão <strong>de</strong><br />
uma nova or<strong>de</strong>m sígnica circular e tautológica cuja existência é impossível <strong>de</strong><br />
pon<strong>de</strong>rar? Sem dúvida o fenômeno da “media fria (cool)” – da televisão, mas também<br />
<strong>de</strong> boa parte do cinema – que seria, segundo Baudrillard, efeito e causa <strong>de</strong> si mesmos<br />
e das próprias produções, criando um <strong>de</strong>lírio do mesmo, permeou profundamente a<br />
literatura cuja vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pendia da evocação da imagem pela palavra. Porém, o que<br />
dizer da literatura que renunciou à imagem e se concentrou aferradamente sobre uma<br />
consciência que não apenas está ciente do simulacro, como busca sobreviver no<br />
interior <strong>de</strong> sua lógica maligna?<br />
O “sinistro social” com suas atmosferas <strong>de</strong> controle social – e total–, apresentadas <strong>de</strong><br />
modo metafórico ou alegórico, assimilou nos anos noventa a lição kafkiana– e<br />
baudrillardiana. Filmes como Matrix, Vanila Sky (diluições óbvias) e tantos outros<br />
revelam essa assimilação do arcabouço – da carcaça – <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> representação<br />
que, num certo momento, pô<strong>de</strong> ser feita e refeita na forma <strong>de</strong> módulos<br />
intercambiáveis. Em gran<strong>de</strong> parte este gênero provém <strong>de</strong> uma diluição, <strong>de</strong> uma<br />
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simplificação do problema colocado tanto por Kafka como por Baudrillard. A<br />
organicida<strong>de</strong> do problema escapa a boa parte <strong>de</strong>stes filmes, pois eles próprios criam,<br />
com suas atmosferas, um universo “cool”, que mesmo temível, é <strong>de</strong> algum modo<br />
admirado. Aqui, gostaria <strong>de</strong> lembrar que essa organicida<strong>de</strong> viva estava presente na<br />
obra <strong>de</strong> Kafka. Num pequeno trecho <strong>de</strong> seus diários, Musil, em cuja obra raramente o<br />
estranho tem lugar, sublinhou a atenção aguda <strong>de</strong> Kafka para o pensamento ingênuo,<br />
não-afetado, que vaga segundo a singeleza da infância, lançando sobre o mundo<br />
exterior as suas centenas <strong>de</strong> pequenas perguntas sem respostas numa tessitura<br />
complexa e encantadora. A prontidão e a perseverança em resgatar o olhar infantil<br />
nada tinham <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> melancólica nostálgico-regressiva, mas eram um antídoto<br />
contra a intrusão dos recortes sistemáticos do pensamento abstrato e da própria<br />
realida<strong>de</strong> que já em sua época incorporava esta sistêmica do olhar (excessivamente)<br />
abstrato sobre a realida<strong>de</strong> 2 .<br />
É importante pousar o olhar sobre a apreensão <strong>de</strong> Musil, pois a tendência a estabilizar<br />
um sentido para a obra <strong>de</strong> Kafka e inseri-la no contexto do inquietante mo<strong>de</strong>rno tornou<br />
sua substância sensível invisível para nós – fixamo-nos na estrutura simbólica,<br />
<strong>de</strong>nunciadora do autoritarismo, enquanto o que produz a riqueza <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>núncia é o<br />
seu vasculhar fundo em nossas emoções e percepções – éticas e poéticas – da<br />
realida<strong>de</strong>. No Kafka <strong>de</strong> Musil – e no nosso – ainda vive, mesmo espremido, buscando<br />
abrigo, a substancialida<strong>de</strong> orgânica do humano, da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za moral, a propensão<br />
para bonda<strong>de</strong> (tomo os termos do próprio Musil). Surgem no fundo <strong>de</strong> suas obras mais<br />
terríveis, como uma espécie <strong>de</strong> negativo à reificação, à contínua estranheza – o olhar<br />
da infância, sua evocação como princípio <strong>de</strong> observação, como um instrumento <strong>de</strong><br />
correção da observação do mundo.<br />
A proeza <strong>de</strong> Kafka estava fadada, contudo, a ser imitada, <strong>de</strong> modo pobre talvez, mas<br />
esta re-utilização ad nauseam levou à miopia sobre como <strong>de</strong> fato o simulacro e talvez<br />
o próprio esfriamento e o <strong>de</strong>sengajamento interior do sujeito se dá no mundo. O<br />
sinistro ambiente geográfico <strong>de</strong> Coetzee possui bem mais riqueza do que qualquer um<br />
<strong>de</strong>stes filmes – não são nem mesmo comparáveis. Porém, foi a percepção do<br />
<strong>de</strong>sgaste <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> apresentação que o levou talvez a se fixar com olhos vivos<br />
2 Refiro-me ao texto “Franz Kafka” único que Robert Musil escreveu sobre Kafka. (MUSIL,<br />
1984, p. 437-9.<br />
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sobre os <strong>de</strong>talhes que envolvem este novo estar no mundo pós-mo<strong>de</strong>rno. Nossa idéia,<br />
entretanto, é que, ao renunciar a uma forma simbólica <strong>de</strong> escrever e abraçar a<br />
tradição realista, Coetzee renovou a inquietante estranheza do nosso admirável<br />
mundo novo.<br />
Disgrace<br />
Disgrace (Desonra), publicado em 1999, foi celebrado nos últimos anos como um dos<br />
livros mais luminosos das últimas décadas escrito em inglês. É a história <strong>de</strong> um<br />
professor universitário sul-africano, David Lurie, que cai em “<strong>de</strong>sgraça” (ou “<strong>de</strong>sonra”,<br />
e aqui começam os problemas <strong>de</strong> tradução), per<strong>de</strong>ndo renome, prestígio, assim como<br />
seu trabalho, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver revelado seu envolvimento (Sedução? Assédio?) com uma<br />
aluna. Após um procedimento <strong>de</strong> consultoria constituído por membros do corpo<br />
docente e discente universitário, ele finalmente per<strong>de</strong> seus direitos <strong>de</strong> professor. Após<br />
este episódio, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> visitar sua filha na fazenda on<strong>de</strong> vive, como única remanescente<br />
<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> amigos “alternativos”, e on<strong>de</strong> ela insiste em ficar, contra as<br />
expectativas <strong>de</strong> seu pai e em conflito talvez com sua própria criação <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
família intelectualizada. A chegada <strong>de</strong>le à fazenda, embora suscite a idéia regressiva<br />
<strong>de</strong> um retorno bucólico <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>sastre (David Lurie é um estudioso do poeta<br />
inglês Wordsworth), prova ser ominosa para ele: a fazenda, retirada nos ermos sul-<br />
africanos, é invadida por bandidos <strong>de</strong> estrada que o aprisionam no banheiro por horas.<br />
Enquanto está aprisionado, ele é incapaz <strong>de</strong> proteger a própria filha. Após a história<br />
como sedutor <strong>de</strong> alunas, o romance <strong>de</strong>senvolverá agudamente o contra-roteiro do<br />
provável estupro <strong>de</strong> sua filha. Lurie <strong>de</strong>scobrirá aos poucos, em tentativas sucessivas<br />
<strong>de</strong> aproximar-se da filha, que ela não apenas não quer falar sobre o que ocorreu na<br />
ocasião como não aceita partilhar com ele qualquer intimida<strong>de</strong>. O retrato da<br />
“<strong>de</strong>sgraça” se completará quando <strong>de</strong>scobre que sua filha, por razões que lhe escapam<br />
(e a nós mesmos), lhe anunciará que se casará com um antigo trabalhador local – um<br />
“kaffir”, expressão que, na África do Sul do apartheid, <strong>de</strong>notara os “colored people”<br />
(pessoas <strong>de</strong> cor),um antigo trabalhador rural já casado.<br />
Esta trama paralela em dois tempos, na qual os temas da violência e da imposição<br />
sexual estão associados ao exercício do po<strong>de</strong>r e à submissão do outro, propõe uma<br />
ironia do <strong>de</strong>stino? David Lurie, o professor universitário que seduz uma jovem – mas<br />
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que também foi, em seu próprio fraco <strong>de</strong>sejo, seduzido –, vive, num efeito <strong>de</strong> ironia<br />
especular, as dores <strong>de</strong> um pai obrigado a suportar impotentemente a violência contra<br />
sua própria filha. O paralelismo, entretanto, não é <strong>de</strong> modo algum exato. Se Melanie, a<br />
jovem seduzida, o “<strong>de</strong>nuncia”, a filha <strong>de</strong> David reage <strong>de</strong> um modo estranhíssimo, e<br />
que parece ao próprio David – e a nós que acompanhamos sempre o ponto <strong>de</strong> vista<br />
<strong>de</strong>ste homem – enigmático. Ele pe<strong>de</strong> à sua filha que lhe diga o que aconteceu<br />
enquanto estava aprisionado no banheiro, mas ela não apenas se resguarda –<br />
nenhuma questão <strong>de</strong> pudor aqui–, como recusa entreter com seu pai qualquer sorte<br />
<strong>de</strong> emotiva e gratificante cumplicida<strong>de</strong>. Ela discretamente o coloca <strong>de</strong> lado, parece<br />
insistentemente informá-lo <strong>de</strong> sua impotência paterna: a própria renúncia <strong>de</strong>la <strong>de</strong><br />
retornar ao “mundo” – ou seja, o mundo da cida<strong>de</strong>, o mundo do futuro, o mundo<br />
prometido do brilho social – e sua concomitante <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> criar raízes na terra e na<br />
natureza indômita – e <strong>de</strong> se afundar <strong>de</strong> novo num estado natural, pois tal é a<br />
assustadora impressão que nos é sugerida epi<strong>de</strong>rmicamente por este livro – são<br />
atitu<strong>de</strong>s que soam não raro como uma espécie <strong>de</strong> castigo velado contra o pai.<br />
Um curioso narrador<br />
Questões como essas são possíveis neste romance porque o narrador, quando não<br />
fala do ponto <strong>de</strong> vista do próprio narrador (sempre em terceira pessoa), assume com<br />
muita freqüência o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> David Lurie. Ele é a consciência central, e ainda<br />
mais <strong>de</strong> um intelectual, atento ao mundo, hábil em olhá-lo através do viés da literatura<br />
e do seu refinado senso poético. Mas é também uma consciência <strong>de</strong>ficitária ao<br />
extremo, o que nos é indicado pela ironia quase invisível que o autor imprime ao seu<br />
narrador e que percebemos sempre fugidiamente. O narrador não raro incorpora o<br />
próprio senso irônico onipresente <strong>de</strong> David Lurie, mas também o supera, produzindo<br />
uma sobreposição irônica que não nos permite nem comprar suas dores, nem vê-lo<br />
sem engajamento ético e moral. Logo na primeira parte do romance temos uma<br />
<strong>de</strong>scrição da situação sexual <strong>de</strong>ste professor universitário.<br />
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For a man of his age, 52, divorced, he has, to his mind, solved the problem of<br />
sex rather well. (COETZEE, Disgrace, 1999, p.1 )<br />
7
Quem fala é o narrador, sugerindo que David Lurie se ilu<strong>de</strong> com as suas quintas-feiras<br />
<strong>de</strong> “luxúria e volúpia” com uma prostituta <strong>de</strong> codinome Soraya. A ironia ocorre no<br />
minúsculo acréscimo <strong>de</strong>positado pelo narrador que dá a proprieda<strong>de</strong> da formulação e<br />
do sentimento-pensamento a Lurie (...to his mind...). Os narradores <strong>de</strong> Coetzee<br />
incorporam o ponto <strong>de</strong> vista e o tom da formulação do pensamento das personagens<br />
centrais. Dão-nos também indícios que nos levam a enten<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>ficiências <strong>de</strong>les,<br />
sem nomeá-las, <strong>de</strong>screvê-las ou mesmo aludi-las com ro<strong>de</strong>ios: o que salta à vista é<br />
que estamos perto do personagem, com a capacida<strong>de</strong> adicional <strong>de</strong> flagrar suas<br />
fraquezas ou <strong>de</strong>feitos. A arte diabólica <strong>de</strong> Coetzee <strong>de</strong> revelar sem revelar, criar cenas<br />
on<strong>de</strong> o ato, a responsabilida<strong>de</strong> e a intenção ficam ocultos a ponto <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>ixar em<br />
dúvida como julgar os personagens ultrapassa em muito o estilo mesmo dos fluxos <strong>de</strong><br />
consciência mais comuns. O narrador assume um tom casual – às vezes cool –, e<br />
multiperceptivo e multiperspectivo, que abarca um dos traços pessoais <strong>de</strong> David Lurie.<br />
Um exemplo <strong>de</strong>sta ironia implícita nos atos é o modo como somos dirigidos a perceber<br />
a presença entranhada do tédio que envolve a vida <strong>de</strong> Lurie, em todas estas<br />
<strong>de</strong>scrições do “oasis <strong>de</strong> luxo e volúpia” <strong>de</strong> sua vida. É num tom as matter of fact, num<br />
a propos vivo <strong>de</strong> ironia, que <strong>de</strong>scobrimos que ele é “tecnicamente velho o bastante<br />
para ser pai <strong>de</strong>la; mas enfim, tecnicamente, você po<strong>de</strong> ser pai aos doze anos.”<br />
(COETZEE, Disgrace, 1999, p.1)<br />
As múltiplas vidas: simulacro e anomia<br />
É graças a este narrador que agarra o pensamento, a sensação ou ainda a impressão<br />
imediata do personagem que ingressamos no modus operandi tanto <strong>de</strong> David como do<br />
mundo que o circunda. Fica evi<strong>de</strong>nte, página a página, o quanto a vida <strong>de</strong> Lurie está<br />
empobrecida por funções substitutivas dos simulacros. Não é à toa que o romance<br />
inicie com a conclusão irônica do “bem estar” possível <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um paraíso <strong>de</strong> gozo.<br />
A garota <strong>de</strong> programa, a bela Soraya, possui as qualida<strong>de</strong>s que agradam a Lurie: não<br />
é “efusiva”, mas, antes, quieta, silenciosa e dócil, talvez quase um ser impessoal, tipo<br />
i<strong>de</strong>al para fornecer a Lurie a <strong>de</strong>vida ficção. Salta aos olhos, logo <strong>de</strong> início, que a vida<br />
<strong>de</strong> Lurie está suspensa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> ambientes <strong>de</strong> algum modo <strong>de</strong>gradados não pela<br />
pobreza, mas pela irrealida<strong>de</strong> ou encenação <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> – típicos simulacros<br />
mo<strong>de</strong>rnos. Suas visitas a Soraya, com a conseqüente e inesperada satisfação que lhe<br />
proporcionam, produzem em David a pergunta se haveria genuinida<strong>de</strong> no prazer <strong>de</strong><br />
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Soraya, pensamento fugidio que toma o cuidado <strong>de</strong> não aprofundar nem continuar, a<br />
fim <strong>de</strong> manter em perfeito estado o cenário do seu simulacro. Mas Soraya revela, nos<br />
<strong>de</strong>svãos, o seu outro lado: mostra sua indignação moral com as mulheres oci<strong>de</strong>ntais<br />
que expõem nas praias os seus “ubres”. O círculo mágico do simulacro da prostituição<br />
e <strong>de</strong> seus paraísos artificiais é em certo momento trincado quando David, por<br />
coincidência, encontra Soraya no cenário da “vida real”, flanqueada por dois meninos,<br />
carregando pacotes, saindo das compras. Uma mãe com seus filhos, David percebe<br />
com curioso voyeurismo. Ele os segue e, finalmente, num átimo, ele e Soraya trocam<br />
um olhar, que ele ressente na hora. Quando se reencontram na próxima quinta-feira,<br />
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(...) nenhum dos dois menciona o inci<strong>de</strong>nte. Não obstante, a memória paira<br />
inquieta sobre os dois. Ele não <strong>de</strong>seja perturbar o que <strong>de</strong>ve ser, para Soraya,<br />
uma precária vida dupla. Ele é inteiro um homem <strong>de</strong> vidas duplas, vidas triplas,<br />
vidas vividas em compartimentos. De fato, ele sente, na verda<strong>de</strong>, ainda maior<br />
ternura por ela. Seu segredo está a salvo comigo, ele gostaria <strong>de</strong> dizer.<br />
(COETZEE, Disgrace, 1999, p. 6)<br />
Duplas vidas, triplas vidas. Ele gostaria <strong>de</strong> saborear com ela esta comovente e<br />
dolorosa cumplicida<strong>de</strong>. Soraya, que porta este codinome em sua profissão, suporta as<br />
vidas duplas em seu mundo só na medida em que po<strong>de</strong> manter íntegras as pare<strong>de</strong>s<br />
que as separam, sem mútua contaminação, mas David Lurie é homem que se<br />
habituou a manter impermeáveis os diversos zoneamentos <strong>de</strong> seu mundo. Os<br />
simulacros só se sustentam na medida em que os atores envolvidos em cada<br />
zoneamento não queiram participar dos outros. David Lurie é assim um homem que<br />
preenche o vazio total <strong>de</strong> sua existência com sucessivos espetáculos <strong>de</strong> divertimentos<br />
certamente mo<strong>de</strong>stos, e por escapadas duvidosas, bem aquém das do seu poeta<br />
preferido, Lord Byron.<br />
Essa duplicida<strong>de</strong> dos cenários privados encontra ressonância na própria duplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Lurie em sua vida acadêmica. Embora seja um erudito conhecedor da poesia <strong>de</strong><br />
Wordsworth, suas ativida<strong>de</strong>s na universida<strong>de</strong> são, tal como o narrador nos informa,<br />
“Communications 1<strong>01</strong>, Communications Skills” e outros do gênero, ainda que lhe seja<br />
premiado ministrar um curso ao seu gosto, para manter “o moral”. Vivendo a<br />
<strong>de</strong>liqüescência das universida<strong>de</strong>s contemporâneas, a partir da década <strong>de</strong> 70, meros<br />
9
simulacros do saber que, no dizer <strong>de</strong> Baudrillard, são no fundo “zonas <strong>de</strong> alojamento e<br />
<strong>de</strong> vigilância para todo um grupo etário”, David Lurie é em parte uma exceção, mas<br />
não totalmente. Seu cultivo literário e em especial sua agu<strong>de</strong>za para compreen<strong>de</strong>r as<br />
nuanças <strong>de</strong> poetas românticos como Wordsworth tornam-no, senão uma exceção, ao<br />
menos uma anomalia, um estranho ao universo circundante. O romance parece<br />
marcado por esta ansieda<strong>de</strong> não verbalizada diante <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que não se<br />
preenche <strong>de</strong> significado.<br />
Eis o lugar on<strong>de</strong> o familiar estranho, o kafkianismo <strong>de</strong> Coetzee se alojou. A realida<strong>de</strong><br />
existe a custo, senão nas impotentes tentativas <strong>de</strong> Lurie <strong>de</strong> resgatar as efusões <strong>de</strong><br />
espírito <strong>de</strong> seu admirado Byron, mas que esbarram na sua impotente <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong><br />
que lhe falta a imaginação para fazer a sua “ópera". Há uma sucessão <strong>de</strong> ambientes<br />
em que os personagens não se encontram, mas apenas passam numa espécie <strong>de</strong><br />
reprocessamento do lazer, num ambiente preparado. Um kafkianismo invertido, on<strong>de</strong><br />
se substitui o estranhamento dos castigos <strong>de</strong>sproporcionais ou absurdos, inexplicados<br />
segundo apontamentos objetivos, por uma prorrogação contínua em ambientes <strong>de</strong><br />
simulacro. Coetzee é um dos autores mais atentos ao <strong>de</strong>sgaste <strong>de</strong> antigas formas <strong>de</strong><br />
pensamento e da eticida<strong>de</strong>, e nos mostra como isso po<strong>de</strong> ocorrer no contexto da vida<br />
<strong>de</strong> um homem cuja complexida<strong>de</strong> intelectual, a princípio, o tornaria impermeável a<br />
este estado <strong>de</strong> coisas.<br />
Essas muitas vidas compartimentadas pressupõem pessoas cujas existências em<br />
diferentes contextos não se comunicam. É possível viver tudo e, ao mesmo tempo,<br />
não viver nada, numa vida em que se po<strong>de</strong> optar seriadamente entre as diversas<br />
opções que o universo do hiper-real oferece a todo o momento. Essa abertura infinita<br />
não é apenas um fato concreto, mas tem conseqüências importantes, e a maior <strong>de</strong>las<br />
é a anomia que se insinua através da pouca necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha num mundo <strong>de</strong><br />
múltiplas escolhas. Anomia aqui não significa a ausência <strong>de</strong> leis ou mesmo <strong>de</strong><br />
reconhecimento <strong>de</strong> leis, da instituição enquanto fenômeno formal. David Lurie é, não<br />
obstante o clima <strong>de</strong> indiferença instalado em seus cursos <strong>de</strong> literatura romântica, um<br />
professor aplicado que busca <strong>de</strong>sempenhar seu <strong>de</strong>ver pedagógico <strong>de</strong> modo<br />
escrupuloso. O <strong>de</strong>sligamento não é muito menos uma <strong>de</strong>ficiência ética particular, mas<br />
uma posição instável <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> “setores da vida” que não se comunicam<br />
obrigatoriamente. Há muitos sujeitos éticos possíveis, <strong>de</strong>sempenháveis conforme uma<br />
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lógica variável similar ao que foi protagonizada pela chamada Ironia Romântica– são<br />
sujeitos éticos com combinações tão diversas quanto o são numerosos os cenários<br />
urbanos oferecidos à sua inveterada performance. Todos são um pouco irreais,<br />
inconsistentes já que sua existência é uma contínua e prolongada permuta, um<br />
<strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong> qualquer essência individual, ainda que sua consistência se<br />
mol<strong>de</strong> nas virtualida<strong>de</strong>s da vida.<br />
Há aqui a ausência <strong>de</strong> sentimento <strong>de</strong> pertencimento, combinado à impotência pessoal<br />
e a uma insolidarieda<strong>de</strong> generalizada que permeia o convívio social, mesmo que<br />
oculta por trás <strong>de</strong> discursos morais “fortes”. Essa <strong>de</strong>sconexão com a comunida<strong>de</strong>,<br />
morte <strong>de</strong> todo o senso genuíno e franco <strong>de</strong> civilida<strong>de</strong>, aparece como uma indiferença<br />
aos sentimentos <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s, tornando o sujeito um apolis, um homem fora da cida<strong>de</strong>,<br />
vivendo no atomismo pós-mo<strong>de</strong>rno da individualida<strong>de</strong> atomizada 3 . Que isso não seja<br />
compreendido como um <strong>de</strong>feito moral, mas um estado disseminado – estrutural. O<br />
senso da atomização individualista aparece em Disgrace no cuidado como cada<br />
personagem zela por sua individualida<strong>de</strong>. Na meta<strong>de</strong> do livro, Bill Shaw toma a<br />
iniciativa <strong>de</strong> ir até o hospital on<strong>de</strong> David e sua filha são atendidos <strong>de</strong>pois do ataque à<br />
fazenda. Ele os aguarda na sala <strong>de</strong> espera. Quando David pe<strong>de</strong> polidamente <strong>de</strong>sculpa<br />
por ter “arruinado” a tar<strong>de</strong>, Bill lhe respon<strong>de</strong>: “Nonsense! (...) What else are friends for!<br />
You would have done the same!” (COETZEE, Disgrace, 1999, p. 10). Transcrevo<br />
abaixo a seqüência <strong>de</strong> reações interiores do próprio David.<br />
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Spoken without irony, the words stay with him and will not go away. Bill Shaw<br />
believes that if he, Bill Shaw, had been hit over the head and set on fire, then<br />
he, David Lurie, would have driven to the hospital and sat waiting, without so<br />
much as a newspaper to read, to fetch him home. Bill Shaw believes that,<br />
because he and David Lurie once had a cup of tea together, David Lurie is his<br />
friend and the two of them have obligations towards each other. Is Bill Shaw<br />
wrong or right? Has Bill Shaw, who was born in Hankey, not two hundred<br />
3 A seqüência <strong>de</strong> termos foi suscitado pelo ensaio “Sobre o Princípio <strong>de</strong> Insolidarieda<strong>de</strong>” da<br />
professora Judith Martins-Costa. Francisco José <strong>de</strong> Oliveira Viana usa a expressão “princípio <strong>de</strong><br />
insolidarieda<strong>de</strong>” para <strong>de</strong>finir uma característica do individualismo brasileiro. Retomo assim o termo,<br />
resgatado pela professora Judith Martins Costa, mas adaptando-o ligeiramente ao contexto da anomia<br />
psicológica pós-mo<strong>de</strong>rna tal como a apresenta Coetzee. “No país do latifúndio e da escravidão (...) somos<br />
todos apolis. O que tece uma comunida<strong>de</strong> é a solidarieda<strong>de</strong> voluntária, a mutuação em prol <strong>de</strong> interesses<br />
supra-pessoais..”.(Grifo meu) (MARTINS-COSTA, J. 2003, p. 148). Embora a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e o<br />
universo político “cordial” brasileiro muito se distanciem, os dois se encontram quando se trata <strong>de</strong><br />
apresentar um sujeito “anômico” e insolidário.<br />
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kilometers away, and works in a hardware shop, seen so little of the world that<br />
he does not know there are men who do not readily make friends, whose<br />
attitu<strong>de</strong> toward friendships between men has been corro<strong>de</strong>d with scepticism?<br />
(COETZEE, Disgrace, p. 10).<br />
A anomia, que é o resultado do ceticismo inveterado, fundamente penetrante,<br />
pressupõe uma existência que comporta uma boa dose <strong>de</strong> “anonimato”, anonimato<br />
não <strong>de</strong> um homem médio, reificado, porém cultivado, do qual mesmo a paternida<strong>de</strong> –<br />
e seu conseqüente po<strong>de</strong>r – foi arrancada. Lurie é tratado com distância indiferente por<br />
sua filha que não o chama pelo vocativo “pai”, mas “David”. Ele fracassa em proteger a<br />
filha quando a casa da fazenda é atacada por bandidos que possivelmente a<br />
estupram. Sua filha nem mesmo lhe conce<strong>de</strong> a gratificação <strong>de</strong> partilhar com ele o que<br />
<strong>de</strong> fato aconteceu enquanto ele estava preso <strong>de</strong>ntro do banheiro da casa. A atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sua filha e <strong>de</strong> sua ex-esposa para com ele revela que as duas praticam com ele uma<br />
indulgência que geralmente dirigimos às pessoas incorrigíveis. Portanto, a anomia<br />
aqui não é apenas a ausência <strong>de</strong> leis e até <strong>de</strong> sua efetivação, mas tem o sentido <strong>de</strong><br />
estar à <strong>de</strong>riva. É uma condição pessoal – socialmente alastrada – em que normas e<br />
leis não são mais percebidas organicamente, <strong>de</strong> modo que mesmo as práticas sociais<br />
se tornam estranhas, não integradas à vida. No admirável mundo novo do simulacro, a<br />
anomia é um sentimento contínuo <strong>de</strong> que ou se está no domínio da exceção (das<br />
transgressões leves) ou se está em um contexto cujas regulações, sempre<br />
inflacionadas pela produção <strong>de</strong> regras que se sobrepõem e não raro se contradizem,<br />
permitem apenas uma solidarieda<strong>de</strong> mecânica, se muito.<br />
É esse mecanismo – não raro atenuado à familiarida<strong>de</strong> insidiosamente introduzida no<br />
domínio das relações públicas – que produz toda a situação <strong>de</strong> artificialismo da vida<br />
acadêmica <strong>de</strong> David. As duas, até mesmo as triplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> David, revelam um<br />
aspecto da anomia, do sangramento contínuo da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, da dissolução das<br />
funções que dão sustentação ao sujeito: ele é um homem separado. Sua posição<br />
acadêmica é já em si mesmo in<strong>de</strong>finida, sua moralida<strong>de</strong> é uma negociação contínua<br />
com os simulacros e com as posturas apresentadas. Sem dúvida, David Lurie é<br />
complacente consigo mesmo e sua auto-indulgência o leva sempre <strong>de</strong> volta ao que ele<br />
<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser, alguém que se satisfaz com os prazeres mornos, mas suas atitu<strong>de</strong>s<br />
estão atreladas a uma re<strong>de</strong> exterior <strong>de</strong> que não é fácil se <strong>de</strong>sembaraçar. Coetzee<br />
parece mostrar, por outro lado, que David Lurie parece abraçar sua compulsivida<strong>de</strong>,<br />
12
seu incorrigível donjuanismo a fim justamente <strong>de</strong> encontrar a sua <strong>de</strong>sgraça –<br />
invertendo os papéis processuais, tornando-se algoz <strong>de</strong> si.<br />
Em particular na existência acadêmica <strong>de</strong> David Lurie soam as palavras fortes <strong>de</strong><br />
Baudrillard.<br />
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A troca <strong>de</strong> signos (<strong>de</strong> saber, <strong>de</strong> cultura) na Universida<strong>de</strong>, entre „docentes‟ e<br />
„discentes‟ já não é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há um certo tempo, mais que um conluio<br />
acompanhado da amargura da indiferença (a indiferença dos signos que<br />
arrasta consigo a <strong>de</strong>safeição das relações sociais e humanas), um simulacro<br />
acompanhado <strong>de</strong> um psicodrama (o <strong>de</strong> uma procura vergonhosa <strong>de</strong> calor, <strong>de</strong><br />
presença, <strong>de</strong> troca edipiana, <strong>de</strong> incesto pedagógico que procura substituir-se à<br />
troca perdida <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> saber). (BAUDRILLARD, 1991, p. 192)<br />
Esse psicodrama aparece em sua “relação” com a jovem Melanie que ele seduz, após<br />
sua tentativa fracassada <strong>de</strong> voltar a restabelecer contato com Soraya. Chega ao<br />
ridículo <strong>de</strong>, na sedução, citar versos procriativos <strong>de</strong> Shakespeare, mas, sendo David<br />
uma consciência crítica e auto-irônica, registra, num ato mental impecável, que ali está<br />
o mestre escola ar<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> volúpia, mas que acaba <strong>de</strong>slizando numa onda <strong>de</strong> fala<br />
fácil que mistura sedução e mal uso da poesia. Sua vida <strong>de</strong> professor subitamente é<br />
intensificada pela sensual presença da jovem Melanie, nova audiência para este<br />
secreto egotista: suas interpretações <strong>de</strong> poemas estão continuamente apelando às<br />
evocações eróticas <strong>de</strong> sua própria sedução. Isso permite imprimir, não um novo<br />
sentido à vida <strong>de</strong> David, mas apenas criar um simulacro <strong>de</strong> aventura que morre num<br />
patético intercurso sexual nos seus medianos aposentos <strong>de</strong> solteirão recidivo.<br />
Um pseudoprocesso<br />
A sensação angustiante <strong>de</strong> estar flutuando em um meio sem forma e ao mesmo tempo<br />
dominado pelas formalida<strong>de</strong>s do mundo mo<strong>de</strong>rno. Logo após, contudo, se encenará<br />
um pseudoprocesso que levará Lurie à sua “<strong>de</strong>sgraça”. A gran<strong>de</strong> ironia da obra está,<br />
aliás, na sua dupla proposição <strong>de</strong> mostrar um mundo esvaziado <strong>de</strong> eticida<strong>de</strong> efetiva e<br />
o uso (contínuo) <strong>de</strong> termos moralmente carregados como “disgrace” – no caso, uma<br />
estranha ressurgência <strong>de</strong> um universo ético da honra e da “perdição” com seus<br />
acentos terrivelmente velho-testamentários. Em geral, todos os personagens seguem<br />
13
a tendência contemporânea <strong>de</strong> sempre contornar ou simplesmente evitar os “termos<br />
fortes” capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>notar moralmente os sujeitos, afinal este é o mundo em que não<br />
há pecado, não há nem mesmo o que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> uma falta. A ironia<br />
resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que a folga ética proporcionada pela multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> papéis po<strong>de</strong><br />
subitamente se estreitar e levar à infelicida<strong>de</strong> se o sujeito <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> seguir o percurso<br />
e o roteiro apropriados dos simulacros. É isso certamente que acontece com David<br />
Lurie ao negar seguir o caminho <strong>de</strong> seus colegas no processo que se instaura nos<br />
corredores frios da universida<strong>de</strong>.<br />
Aqui nenhum processo no sentido kafkiano, nada <strong>de</strong> ambientes em que se i<strong>de</strong>ntifique<br />
<strong>de</strong> pronto, não obstante sua realida<strong>de</strong> latente, o trabalho do pesa<strong>de</strong>lo e do fantasma,<br />
como parece a todo momento emanar <strong>de</strong> O Processo. Esta projeção ao exterior <strong>de</strong> um<br />
mundo patriarcalmente opressivo da ilogicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algumas leis paternas era em<br />
Kafka apenas o anúncio <strong>de</strong> que a própria figura paterna ruiria com o avanço <strong>de</strong> novos<br />
hábitos mo<strong>de</strong>rnos. Mas como negar que, realista ao extremo, Coetzee nos sugere<br />
todo o kafkianismo, porém <strong>de</strong> modo realista, limitando-se a nos apresentar cenas que<br />
não seriam tão estranhas em nossas próprias realida<strong>de</strong>s? Como não achar bizarra e<br />
normal a pusilanimida<strong>de</strong> oculta sob as vestes da prudência e da consi<strong>de</strong>ração, fatos<br />
que surgem no pseudojulgamento? Aliás, entre pai e amante, professor e amante,<br />
Lurie não sabe bem escolher seu papel. A jovem Melanie não parece seguir hábitos<br />
acadêmicos sérios, e está sempre ausente em suas aulas. É uma ausente. O que<br />
fazer diante <strong>de</strong>ste escândalo: ganhar controle da situação, ele pensa... A situação<br />
então <strong>de</strong>generará aos poucos e David será julgado, ou melhor, será “consultado”.<br />
O pseudoprocesso que traz a <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> Lurie é uma cena cheia <strong>de</strong> reverberações<br />
estranhas – kafkianas– se não fosse um acontecimento já bastante familiar hoje em<br />
dia. O que leva Lurie a cair em <strong>de</strong>sgraça não é, curiosamente, um processo formal,<br />
mas um semiprocesso, uma “consultation” <strong>de</strong> uma comissão acadêmica chamada<br />
para fazer uma “recomendação” sobre o seu caso. Entretanto, é a aqui que o<br />
kafkianismo realista <strong>de</strong> Coetzee se insinua, no simples oferecimento que nos faz <strong>de</strong><br />
fatos não inteiramente incomuns na realida<strong>de</strong> acadêmica dos países anglo-saxões.<br />
Abstenho-me em parte <strong>de</strong> me concentrar na bizarra e <strong>de</strong>safiadora postura <strong>de</strong> David<br />
Lurie, algo suicidária para o contexto que ali enfrenta, e concentro-me na situação<br />
específica da “consultation”. O corpo <strong>de</strong> docentes e dicentes reunidos, esclarece<br />
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Mathabane, professor <strong>de</strong> estudos religiosos, “não possui po<strong>de</strong>res. Tudo o que po<strong>de</strong><br />
fazer são recomendações” (COETZEE. Disgrace, 2000, p 47). O encontro parece <strong>de</strong><br />
fato or<strong>de</strong>nado para encontrar uma saída através dos meandros do impasse, que salve<br />
a honra da instituição, evitando ao mesmo tempo um conflito frontal com o cabeçudo<br />
Lurie. Este, contudo, chega à reunião com a “vanity of the gambler, vanity and self-<br />
righteousness” (COETZEE. Disgrace, 2000, p. 47) – pensamento que, supomos, é<br />
<strong>de</strong>le, e não apenas do narrador. É uma vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que está ciente e <strong>de</strong> algum modo<br />
lhe causa espanto. Para a surpresa <strong>de</strong> todos, ele alega “culpa nas duas acusações”.<br />
Ele ainda pe<strong>de</strong>, ultrapassando os limites <strong>de</strong>liberativos reservados ao comitê, que a<br />
sentença seja passada. Seu pedido é recebido com estupor e estudo, e ele é alertado<br />
<strong>de</strong> que o comitê é <strong>de</strong> inquérito, não tendo po<strong>de</strong>r nenhum <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. A situação<br />
começa a se tornar kafkiana à medida que a pressão sobre David aumenta para que<br />
não apenas aceite sua culpa, mas, primeiramente, verbalize exatamente <strong>de</strong> que ele é<br />
acusado e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>monstre (!) sua contrição. Essa seqüência, que soa absurda, é<br />
impelida sobretudo por uma das colegas que exige <strong>de</strong>le não apenas uma aceitação <strong>de</strong><br />
culpa, um esclarecimento sobre o conteúdo <strong>de</strong> sua culpa e uma retratação, mas uma<br />
<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> seu “sincero” sentimento <strong>de</strong> contrição. Passa-se muito rapidamente<br />
do fato positivo e técnico para uma exigência <strong>de</strong> retratação do interior culpado, uma<br />
culpa e uma contrição real, sem a qual não é possível nem mesmo começar a pensar<br />
em um perdão. Salto aqui todos os minuciosos <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>scritivos e narrativos que<br />
acompanham este pseudoprocesso: o óbvio ódio <strong>de</strong> alguns dos presentes que se<br />
escon<strong>de</strong>m atrás <strong>de</strong> uma aparente retidão moral, senão <strong>de</strong> formalismos legais. O<br />
importante é assinalar a inquietante estranheza da cena, aspecto mais funesto do<br />
acontecimento. Se <strong>de</strong> um lado há da parte <strong>de</strong> alguns presentes a disposição a facilitar<br />
as coisas para David, da parte <strong>de</strong> outros trata-se <strong>de</strong> penetrar profundamente na sua<br />
interiorida<strong>de</strong>, enten<strong>de</strong>r aquilo que, enfim, todos conhecem muito bem: o <strong>de</strong>sejo e a<br />
transgressão.<br />
Kafkianismo transposto à realida<strong>de</strong> mais presente, mais “realista”, mas ao mesmo<br />
tempo uma situação mais complexa do que qualquer “processo”: o que David Lurie<br />
faz, ao assumir sua culpa e não aceitar a retratação é, voluntariamente ou<br />
involuntariamente, quebrar a lógica <strong>de</strong> um procedimento que teria encontrado sua<br />
resolução pacífica numa negociação, numa aceitação <strong>de</strong> culpa e finalmente numa<br />
<strong>de</strong>monstração “teatral” – semelhante à contrição pública <strong>de</strong> alguns políticos<br />
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americanos atuais quando diante <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> abuso. O que Lurie faz sem saber é<br />
romper o roteiro retórico e simulacral que seus colegas, seguindo a normalida<strong>de</strong> em<br />
tais casos, teriam seguido à risca. Qualquer que seja o <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> David, o fato é que o<br />
procedimento do comitê extravasa todas as suas atribuições criando uma situação<br />
paradoxal <strong>de</strong> retorno à investigação <strong>de</strong> consciência que era comum nos tribunais <strong>de</strong><br />
bruxaria.<br />
Para os que conhecem a segunda parte do livro <strong>de</strong> Coetzee, o segundo roteiro que<br />
inclui a cena da possível violação da própria filha <strong>de</strong> David e o anúncio do casamento<br />
futuro <strong>de</strong>la com Petrus– o nativo sul-africano, originário das antigas classes <strong>de</strong><br />
“colored” people, que vive nas cercanias da casa <strong>de</strong>la –, po<strong>de</strong> soar simplesmente<br />
como um roteiro-espelho. David Lurie sofreria no âmago o sentido do sofrimento que<br />
ele mesmo infligiu à jovem Melanie ao ver a filha humilhada (disgraced) por bandidos.<br />
Esta é uma questão crucial, mas que <strong>de</strong> modo algum se soluciona com as certezas<br />
terríveis das justiças retributivas. Depois das <strong>de</strong>cepções na fazenda <strong>de</strong> sua filha e do<br />
fracasso <strong>de</strong> David <strong>de</strong> se aproximar como um pai “compreensivo” <strong>de</strong> sua filha, ele<br />
retorna a Cida<strong>de</strong> do Cabo, on<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>ntemente acaba em um jantar em<br />
companhia com a família <strong>de</strong> Melanie. A expectativa <strong>de</strong> fundo do leitor é que ali talvez<br />
venha a se encenar ou uma contrição ou ainda uma acusação (da parte do pai). A<br />
atmosfera pequeno-burguesa e sobretudo carola dominante na casa dos pais <strong>de</strong><br />
Melanie, o teatro cuidadosamente montado para que culpados e vitimados se<br />
expressem apropriadamente, assim como não sei que <strong>de</strong>sejo do velho <strong>de</strong> ver seu<br />
visitante contrito (talvez até mesmo humilhado), sugerem, no fundo, que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong><br />
Lurie <strong>de</strong> mostrar contrição cai no vazio, não gera nenhum fato patológico gratificante,<br />
nem para ele, nem para o leitor do livro. O mundo do velho é igualmente um simulacro<br />
à sua maneira: esboça-se ali uma falsa felicida<strong>de</strong>. A arte <strong>de</strong> Coetzee produz<br />
paradoxos, oferece horizontes <strong>de</strong> retribuição, mas bem raramente satisfaz os anelos<br />
apaziguadores.<br />
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BIBLIOGRAFIA<br />
BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d‟Água, 1991.<br />
COETZEE, J. M. Disgrace. Penguin,1999.<br />
COETZEE, J. M. Waiting for the Barbarians. Penguin, 1999.<br />
MARTINS-COSTA, J. Sobre o Princípio <strong>de</strong> Insolidarieda<strong>de</strong> (os cumes das montanhas<br />
e os universos submersos).In: FLORES-PEREIRA, L.; ROSENFIELD, K. Revista<br />
Letras: Ética e Cordialida<strong>de</strong> Santa Maria. Revista Letras (PPGL/UFSM), 2006.<br />
MUSIL, Robert. Essais. Conférences, critique, aphorismes, réflexions. Paris : Seuil,<br />
1984.<br />
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