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EXE Maias Guimarães não descia - Colégio São João de Brito

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DEPARTAMENTO DE PORTUGUÊS<br />

Português – 11º ano<br />

PROVA ESCRITA<br />

GRUPO I<br />

Leia atentamente o seguinte excerto da obra Os <strong>Maias</strong>, <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós.<br />

A<br />

<strong>Guimarães</strong> <strong>não</strong> <strong><strong>de</strong>scia</strong>. No segundo andar surgira uma luz viva, numa janela aberta. Ega recomeçou a<br />

passear lentamente pelo meio do Largo. E agora, pouco a pouco, subia nele uma incredulida<strong>de</strong> contra esta<br />

catástrofe <strong>de</strong> dramalhão. Era acaso verosímil 1 que tal se passasse, com um amigo seu, numa rua <strong>de</strong> Lisboa,<br />

numa casa alugada à mãe Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no<br />

tumulto da Meia Ida<strong>de</strong>! Mas numa socieda<strong>de</strong> burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas<br />

leis, documentada por tantos papéis, com tanto registo <strong>de</strong> baptismo, com tanta certidão <strong>de</strong> casamento, <strong>não</strong><br />

podia ser! Não! Não estava no feitio da vida contemporânea que duas crianças, separadas por uma loucura da<br />

mãe, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem,<br />

<strong>de</strong>screvam as parábolas 2 remotas dos seus <strong>de</strong>stinos — para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo<br />

ponto, num leito <strong>de</strong> concubinagem 3 ! Não era possível.<br />

Tais coisas pertencem só aos livros, on<strong>de</strong> vêm, como invenções subtis da arte, para dar à alma humana<br />

um terror novo... Depois levantava os olhos para a janela alumiada — on<strong>de</strong> o Sr. <strong>Guimarães</strong>, <strong>de</strong>certo,<br />

rebuscava os papéis na mala. Ali estava porém esse homem com a sua história — em que <strong>não</strong> havia uma<br />

discordância, por on<strong>de</strong> ela pu<strong>de</strong>sse ser abalada!... E pouco a pouco aquela luz viva, saída do alto, parecia ao<br />

Ega penetrar nessa intrincada <strong>de</strong>sgraça, aclará-la toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era<br />

provável no fundo! Essa criança, filha <strong>de</strong> uma senhora que a levara consigo, cresce, é amante <strong>de</strong> um<br />

brasileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. Num bairro vizinho vive outro filho <strong>de</strong>ssa mulher, por ela <strong>de</strong>ixado, que<br />

cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, ele <strong>de</strong>staca nesta cida<strong>de</strong> provinciana e pelintra. Ela, por seu<br />

lado, loira, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor <strong>de</strong> uma civilização superior, faz relevo nesta multidão<br />

<strong>de</strong> mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, on<strong>de</strong> todos se acotovelavam, os dois<br />

fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se atraem! Há nada mais natural? Se ela<br />

fosse feia e trouxesse aos ombros uma confecção barata da Loja da América, se ele fosse um mocinho<br />

encolhido <strong>de</strong> chapéu-coco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus <strong>de</strong>stinos diversos. Assim, o<br />

conhecerem-se era certo, o amarem-se era provável... E um dia o Sr. <strong>Guimarães</strong> passa, a verda<strong>de</strong> terrível<br />

estala!<br />

A porta do hotel rangeu no escuro, o Sr. <strong>Guimarães</strong> adiantou-se, <strong>de</strong> boné <strong>de</strong> seda na cabeça, com o<br />

embrulho na mão.<br />

— Não podia dar com a chave da mala, <strong>de</strong>sculpe Vossa Excelência.<br />

É sempre assim quando há pressa... E aqui temos o famoso cofre!<br />

— Perfeitamente, perfeitamente...<br />

1 verosímil: provável.<br />

2 parábolas: histórias.<br />

3 concubinagem: estado do homem e da mulher que vivem como casados, <strong>não</strong> o sendo.<br />

Eça <strong>de</strong> Queirós, Os <strong>Maias</strong><br />

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Apresente, <strong>de</strong> forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.<br />

1. Aten<strong>de</strong>ndo à globalida<strong>de</strong> do romance, explique, <strong>de</strong> forma fundamentada, a relevância do excerto apresentado na<br />

estrutura trágica da intriga d’Os <strong>Maias</strong>.<br />

2. Relacione a simbologia da «luz viva» presente neste excerto (linhas 1 e 14) com a evolução do entendimento <strong>de</strong> <strong>João</strong> da<br />

Ega relativamente aos factos implicados neste fragmento d’Os <strong>Maias</strong>.<br />

3. Analise a forma como se constrói, neste excerto, a caracterização das personagens Carlos da Maia e Maria Eduarda.<br />

4. Tendo em conta a estética naturalista-realista em que se filia o romance Os <strong>Maias</strong>, explique a reacção <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Ega perante a revelação <strong>de</strong> um facto crucial na dimensão trágica da obra.<br />

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1. Aten<strong>de</strong>ndo à globalida<strong>de</strong> do romance, explique, <strong>de</strong> forma fundamentada, a relevância do excerto apresentado na<br />

estrutura trágica da intriga d’Os <strong>Maias</strong>.<br />

Este excerto insere-se no capítulo XVI, d’Os <strong>Maias</strong>, em que, após a realização do Sarau do Teatro<br />

da Trinda<strong>de</strong>, <strong>Guimarães</strong> revela a Ega a verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria Eduarda.<br />

No que concerne à estrutura trágica da obra correspon<strong>de</strong> ao momento em que se concretiza o<br />

reconhecimento (anagnórise) <strong>de</strong> um facto por parte <strong>de</strong> <strong>João</strong> da Ega – a relação amorosa incestuosa <strong>de</strong><br />

Maria Eduarda e Carlos da Maia – que precipitará os acontecimentos até à catástrofe final – a morte <strong>de</strong><br />

Afonso da Maia e a separação dos dois irmãos-amantes –, antecipadamente contida nos diversos indícios<br />

trágicos presentes na obra, <strong>não</strong> sem antes passar pela hybris, o incesto consciente <strong>de</strong> Carlos.<br />

2. Relacione a simbologia da «luz viva» presente neste excerto (linhas 1 e 14) com a evolução do entendimento <strong>de</strong> <strong>João</strong> da<br />

Ega relativamente aos factos implicados neste fragmento d’Os <strong>Maias</strong>.<br />

A “luz viva” remete simbolicamente para a razão humana, para a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discernimento da<br />

verda<strong>de</strong>, pelo que, neste excerto, é justamente a “luz” da razão que permite a clarificação dos<br />

pensamentos <strong>de</strong> <strong>João</strong> da Ega e o reconhecimento da veracida<strong>de</strong> dos acontecimentos que lhe foram<br />

revelados por <strong>Guimarães</strong>.<br />

Com efeito, inicialmente, Ega manifesta a sua <strong>de</strong>scrença relativamente à possibilida<strong>de</strong> do incesto,<br />

embora exista já uma tentativa <strong>de</strong> análise dos factos (“surgira uma luz viva”). É, porém, a partir da linha<br />

14 do texto, momento em que a “luz viva” penetra verda<strong>de</strong>iramente no espírito <strong>de</strong> Ega, que este vai<br />

progressivamente discernindo a verda<strong>de</strong> dos factos (“E pouco a pouco aquela luz viva, saída do alto,<br />

parecia ao Ega penetrar nessa intrincada <strong>de</strong>sgraça, aclará-la toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução”).<br />

Em síntese, a “luz viva” surge neste excerto sempre associada ao cofre, que contém os elementos<br />

que sustentam a revelação <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>.<br />

3. Analise a forma como se constrói, neste excerto, a caracterização das personagens Carlos da Maia e Maria Eduarda.<br />

Neste excerto, a caracterização <strong>de</strong> Carlos da Maia e Maria Eduarda constrói-se sobretudo<br />

mediante um processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um contraste entre estas personagens e o meio social e humano que<br />

as ro<strong>de</strong>ia.<br />

Assim, associado a Carlos temos o elogio da sua “figura” e “luxo”, em oposição à dupla adjetivação<br />

<strong>de</strong> teor <strong>de</strong>preciativo que caracteriza a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa e, naturalmente, os seus habitantes: “provinciana<br />

e pelintra”. Do mesmo modo, relativamente a Maria Eduarda <strong>de</strong>stacam-se os seus excecionais atributos<br />

físicos (“loira, alta, esplêndida”) e culturais, sendo metaforicamente associada a uma “civilização<br />

superior”. À semelhança <strong>de</strong> Carlos, também Maria Eduarda se singulariza entre a “multidão <strong>de</strong> mulheres<br />

miudinhas e morenas” da socieda<strong>de</strong> lisboeta. Não po<strong>de</strong>mos, portanto, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> reparar no contraste que<br />

se afirma entre Maria Eduarda e as outras mulheres – a primeira apresentada <strong>de</strong> forma eufórica: “loira”,<br />

“alta” e que “faz relevo”; as outras <strong>de</strong> forma disfórica: “morenas”, “miudinhas” e em “multidão”.<br />

É precisamente esta caracterização <strong>de</strong> duas personagens como seres excecionais que vai<br />

intensificar o sentido trágico do texto, já que, à maneira da tragédia clássica, a catástrofe e a tragédia <strong>não</strong><br />

se abatem sobre seres vulgares ou medíocres, mas sobre seres que, <strong>de</strong> alguma forma, exce<strong>de</strong>m o comum.<br />

4. Tendo em conta a estética naturalista-realista em que se filia o romance Os <strong>Maias</strong>, explique a reacção <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Ega perante a revelação <strong>de</strong> um facto crucial na dimensão trágica da obra.<br />

Os <strong>Maias</strong> são uma obra com características que a filiam na estética realista/ naturalista, sendo<br />

<strong>João</strong> da Ega o mais estrénuo <strong>de</strong>fensor dos princípios <strong>de</strong>terministas (segundo os quais se crê ser possível<br />

explicar, <strong>de</strong> forma mecânica, fenómenos culturais mediante a imposição <strong>de</strong> fatores como a<br />

hereditarieda<strong>de</strong>, a educação e o meio) e positivistas (que estão relacionados com uma conceção eufórica<br />

da existência e das potencialida<strong>de</strong>s ilimitadas do conhecimento humano) subjacentes a esta estética<br />

literária.<br />

Página | 3


De facto, a reação <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ega relativamente à revelação do incesto inscreve-se<br />

precisamente neste contexto, na medida em que existe uma manifesta incompatibilida<strong>de</strong> entre os<br />

princípios que norteiam o Realismo/ Naturalismo e uma conceção trágica da existência. O facto <strong>de</strong> ter sido<br />

a ação trágica do <strong>de</strong>stino a proporcionar as condições para o encontro amoroso incestuoso <strong>de</strong> Maria e<br />

Carlos remete para um fatalismo <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> forças incontroláveis e <strong>de</strong>sconhecidas para o homem, o<br />

que indicia a introdução neste romance <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> inovação estética que <strong>de</strong>nunciam já uma rutura<br />

com as coor<strong>de</strong>nadas i<strong>de</strong>ológicas subjacentes ao Naturalismo.<br />

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