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Iracema, de José de Alencar Fonte: ALENCAR, José de ... - CPV

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o córrego habitado pelas pacas.<br />

Só havia sol no bico da arara, quando os caçadores <strong>de</strong>sceram <strong>de</strong> Pacatuba ao tabuleiro. De longe viram<br />

<strong>Iracema</strong>, que viera esperá-los à margem <strong>de</strong> sua lagoa da Porangaba. Caminhava para eles com o passo altivo<br />

da garça que passeia à beira d'água: por cima da carioba trazia uma cintura das flores da maníva, que era o<br />

símbolo da fecundida<strong>de</strong>. Colar das mesmas cingia-lhe o colo e ornava os rijos seios palpitantes.<br />

Travou da mão do esposo, e a impôs no regaço:<br />

— Teu sangue já vive no seio <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong>. Ela será mãe <strong>de</strong> teu filho.<br />

— Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo.<br />

Ajoelhou ali e cingindo-a com os braços, beijou o seio fecundo da esposa.<br />

Quando ele ergueu-se, Poti falou:<br />

— A felicida<strong>de</strong> do mancebo é a esposa e o amigo; a primeira dá alegria, o segundo dá força. O guerreiro sem<br />

a esposa é como a árvore sem folhas nem flores: nunca ela verá o fruto O guerreiro sem amigo é como a<br />

árvore solitária que o vento açouta no meio do campo: o fruto <strong>de</strong>la nunca amadurece. A felicida<strong>de</strong> do varão é<br />

a prole, que nasce <strong>de</strong>le e faz seu orgulho; cada guerreiro que sai <strong>de</strong> suas veias é mais um galho que leva seu<br />

nome às nuvens, como a grimpa do cedro. Amado <strong>de</strong> Tupã é o guerreiro que tem uma esposa, um amigo e<br />

muitos filhos; ele nada mais <strong>de</strong>seja senão a morte gloriosa.<br />

Martim uniu o peito ao peito <strong>de</strong> Poti:<br />

— O coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro branco é feliz, chefe dos pitiguaras,<br />

senhores das praias do mar; a felicida<strong>de</strong> nasceu para ele na terra das palmeiras, on<strong>de</strong> recen<strong>de</strong> a baunilha; e foi<br />

gerada no sangue <strong>de</strong> tua raça, que tem no rosto a cor do sol. O guerreiro branco não quer mais outra pátria,<br />

senão a pátria <strong>de</strong> seu filho e <strong>de</strong> seu coração.<br />

Ao romper d'alva, Poti partiu para colher as sementes <strong>de</strong> crajuru que dão a bela tinta vermelha, e a casca do<br />

angico <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se extrai a cor negra mais lustrosa. De caminho sua flecha certeira abateu o pato selvagem que<br />

plainava nos ares. O guerreiro arrancou das asas as longas penas, e subindo ao Mocoripe, rugiu a inúbia. A<br />

refega que vinha do mar levou longe, bem longe, o rouco som. O búzio dos pescadores do Trairi, e a trombeta<br />

dos caçadores do Soipé, respon<strong>de</strong>ram.<br />

Martim banhou-se n'água do rio, e passeou na praia para secar o corpo ao vento e ao sol. Ao seu lado ia<br />

<strong>Iracema</strong> e apanhava o âmbar amarelo, que o mar arrojava. Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a<br />

alva re<strong>de</strong>, para que o amor do guerreiro se <strong>de</strong>leitasse nela.<br />

Voltou Poti.<br />

XXIV<br />

Foi costume da raça, filha <strong>de</strong> Tupã, que o guerreiro trouxesse no corpo as cores <strong>de</strong> sua nação.<br />

Traçavam em princípio negras riscas sobre o corpo, à semelhança do pêlo do quati <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>u o nome<br />

<strong>de</strong>ssa arte da pintura guerreira. Depois variaram as cores, e muitos guerreiros costumaram escrever os<br />

emblemas <strong>de</strong> seus feitos.<br />

O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, <strong>de</strong>via passar por aquela cerimônia, para tornar-se<br />

um guerreiro vermelho, filho <strong>de</strong> Tupã. Nessa intenção fora Poti se prover dos objetos necessários.<br />

<strong>Iracema</strong> preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo os riscos vermelhos e<br />

pretos, que ornavam a gran<strong>de</strong> nação pitiguara. Depois pintou na fronte uma flecha e disse:<br />

— Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro penetra n'alma dos povos.<br />

No braço pintou um gavião:<br />

— Assim como o anajê cai das nuvens, assim cai o braço do guerreiro sobre o inimigo.<br />

No pé esquerdo pintou a raiz do coqueiro:<br />

— Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé firme do guerreiro sustenta seu corpo<br />

robusto.<br />

No pé direito pintou uma asa:<br />

— Assim como a asa do majoí rompe os ares, o pé veloz do guerreiro não tem igual na corrida.<br />

<strong>Iracema</strong> tomou a rama da pena e pintou uma abelha sobre folha <strong>de</strong> árvore; sua voz ressoou entre sorrisos:<br />

— Assim como a abelha fabrica o mel no coração negro do jacarandá, a doçura está no peito do mais valente<br />

guerreiro.<br />

Martim abriu os braços e os lábios para receber corpo e alma da esposa.<br />

— Meu irmão é um gran<strong>de</strong> guerreiro da nação pitiguara; ele precisa <strong>de</strong> um nome na língua <strong>de</strong> sua nação<br />

— O nome <strong>de</strong> teu irmão está em seu corpo, on<strong>de</strong> o pôs tua mão.

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