Iracema, de José de Alencar Fonte: ALENCAR, José de ... - CPV
Iracema, de José de Alencar Fonte: ALENCAR, José de ... - CPV
Iracema, de José de Alencar Fonte: ALENCAR, José de ... - CPV
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A esse monte subia o cristão; e lá ficava cismando em seu <strong>de</strong>stino. As vezes lhe vinha à mente a idéia <strong>de</strong><br />
tornar à sua terra e aos seus; mas ele sabia que <strong>Iracema</strong> o acompanharia; e essa lembrança lhe remor<strong>de</strong>u o<br />
coração. Cada passo mais que afastasse dos campos nativos a filha dos tabajaras, agora que ela não tinha o<br />
ninho <strong>de</strong> seu coração para abrigar-se, era uma porção da vida que lhe roubava.<br />
Poti conhece que Martim <strong>de</strong>seja estar só, e afasta-se discreto. O guerreiro sabe o que aflige a alma do seu<br />
irmão; e tudo espera do tempo, porque só o tempo endurece o coração do guerreiro, como o cerne do<br />
jacarandá.<br />
<strong>Iracema</strong> também foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses olhos tão amados se turbam com a<br />
vista <strong>de</strong>la, e em vez <strong>de</strong> se encherem <strong>de</strong> sua beleza como outrora, a <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> si. Mas seus olhos <strong>de</strong>la não se<br />
cansam <strong>de</strong> acompanhar à parte e <strong>de</strong> longe o guerreiro senhor, que os fez cativos.<br />
Ai da esposa!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaíba ferida no âmago, <strong>de</strong>stila as lágrimas em fio.<br />
XXVIII<br />
Uma vez o cristão ouviu <strong>de</strong>ntro em sua alma o soluço <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong>: seus olhos buscaram em torno e não a<br />
viram.<br />
A filha <strong>de</strong> Araquém estava além, entre as ver<strong>de</strong>s moitas <strong>de</strong> ubaia, sentada na relva. O pranto <strong>de</strong>sfiava <strong>de</strong> seu<br />
belo semblante; e as gotas que rolavam a uma e uma caiam sobre o regaço, on<strong>de</strong> já palpitava e crescia o filho<br />
do amor. Assim caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto.<br />
— O que espreme as lágrimas do coração <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong>?<br />
— Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. <strong>Iracema</strong> per<strong>de</strong>u sua felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois que te separaste<br />
<strong>de</strong>la<br />
— Não estou eu junto <strong>de</strong> ti?<br />
— Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra <strong>de</strong> teus pais e busca a virgem branca, que te espera.<br />
Martim doeu-se. Os gran<strong>de</strong>s olhos negros que a indiana pousara nele o tinham ferido no íntimo.<br />
— O guerreiro branco é teu esposo; ele te pertence<br />
Sorriu em sua tristeza a formosa tabajara:<br />
— Quanto tempo há que retiraste <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong> teu espírito? Dantes, teu passo te guiava para as frescas serras e<br />
alegres tabuleiros: teu pé gostava <strong>de</strong> pisar a terra da felicida<strong>de</strong>, e seguir o rasto da esposa. Agora só buscas as<br />
praias ar<strong>de</strong>ntes, porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste; e o morro das areias, porque<br />
do alto se avista a igara que passa.<br />
— É a ânsia <strong>de</strong> combater o tupinambá que volve o passo do guerreiro para as bordas do mar: respon<strong>de</strong>u o<br />
cristão.<br />
<strong>Iracema</strong> continuou:<br />
— Teu lábio secou para a esposa; assim a cana, quando ar<strong>de</strong>m os gran<strong>de</strong>s sóis, per<strong>de</strong> o mel, e as folhas<br />
murchas não po<strong>de</strong>m mais cantar quando passa a brisa. Agora só falas ao vento da praia para que ele leve tua<br />
voz à cabana <strong>de</strong> teus pais.<br />
— A voz do guerreiro branco chama seus irmãos para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a cabana <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong> e a terra <strong>de</strong> seu filho,<br />
quando o inimigo vier.<br />
A esposa meneou a cabeça:<br />
— Quando tu passas no tabuleiro, teus olhos fogem do fruto do jenipapo e buscam a flor do espinheiro; a fruta<br />
é saborosa, mas tem a cor dos tabajaras; a flor tem a alvura das faces da virgem branca: Se cantam as aves, teu<br />
ouvido não gosta já <strong>de</strong> escutar o canto mavioso da graúna, mas tua alma se abre para o grito do japim, porque<br />
ele tem as penas douradas como os cabelos daquela que tu amas!<br />
— A tristeza escurece a vista <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong>, e amarga seu lábio. Mas a alegria há <strong>de</strong> voltar à alma da esposa,<br />
como volta à árvore a ver<strong>de</strong> rama.<br />
— Quando teu filho <strong>de</strong>ixar o seio <strong>de</strong> <strong>Iracema</strong>, ela morrerá, como o abati <strong>de</strong>pois que <strong>de</strong>u seu fruto. Então o<br />
guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra estrangeira.<br />
— Tua voz queima, filha <strong>de</strong> Araquém, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo dos gran<strong>de</strong>s<br />
calores. Queres tu abandonar teu esposo?<br />
— Não vêem teus olhos lá o formoso jacarandá, que vai subindo às nuvens? A seus pés ainda está a seca raiz<br />
da murta frondosa, que todos os invernos se cobria <strong>de</strong> rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão.<br />
Se ela não morresse, o jacarandá não teria sol para crescer tão alto. <strong>Iracema</strong> é a folha escura que faz sombra<br />
em tua alma; <strong>de</strong>ve cair, para que a alegria alumie teu seio.<br />
O cristão cingiu o talhe da formosa índia e a estreitou ao peito. Seu lábio pousou ao lábio da esposa um beijo,<br />
mas áspero e morno.