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As Velhas – O Teatro Paraibano Resiste - Lourdes Ramalho

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<strong>As</strong> <strong>Velhas</strong> <strong>–</strong> O <strong>Teatro</strong> <strong>Paraibano</strong> <strong>Resiste</strong><br />

Diógenes Maciel<br />

[A União, João Pessoa, 4 e 5 de outubro de 2003.]<br />

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Editora do Site: Valéria Andrade<br />

Entre as décadas 50-70, em meio a processos históricos que marcaram a (re)organização do<br />

movimento cultural brasileiro, o teatro buscava a representação das classes populares (nas quais<br />

se depositavam as esperanças de mudança) e, também, pretendia fazer um teatro de qualidade e<br />

problematizante para o povo (objetivo com cara de mais uma “utopia revolucionária”). Essas<br />

discussões tiveram como centro propulsor o <strong>Teatro</strong> de Arena de São Paulo, onde as obras de<br />

Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha e Augusto Boal, acabaram influenciando toda uma geração de<br />

dramaturgos nacionais que tiveram que trazer as classes subalternas à ribalta como meio de atingir<br />

o público. Toda essa ebulição do eixo São Paulo-Rio, a partir da década de 50, acabou lançando<br />

sua onda pelo país. No Nordeste, onde já crescera a tradição regionalista do chamado Romance<br />

de 30, desenvolveram-se as experiências de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, em<br />

Pernambuco, enquanto, na Paraíba, ali pelos meados da década de 70, ganhava destaque a obra<br />

de <strong>Lourdes</strong> <strong>Ramalho</strong>. Autora singular na tradição do teatro paraibano moderno, <strong>Lourdes</strong> <strong>Ramalho</strong><br />

representa em suas obras o seu “universo”, onde circulam cantadores de feira, judeus errantes e<br />

retirantes da seca, no entanto, por conta de sua capacidade artística, alça esse particular a níveis<br />

universais, não estando presa ao surrado “capim-curral”, lugar-comum da dramaturgia nordestina.<br />

Esteve em cartaz no primeiro final de semana de agosto, no <strong>Teatro</strong> Ednaldo do Egito, a montagem<br />

do Grupo de <strong>Teatro</strong> Contratempo, com direção de Duílio Cunha, uma de suas peças, <strong>As</strong> <strong>Velhas</strong>,<br />

que comemora três anos de estrada. Como esse fenômeno não acontece com qualquer texto ou<br />

espetáculo, podemos destacar a importância definitiva da dramaturgia no núcleo do fenômeno<br />

teatral <strong>–</strong> o pequeno público de teatro em nosso Estado, ainda elege os grandes textos, que falem<br />

sobre o seu universo, combinados com boas encenações, que tragam elementos que também<br />

tenham representatividade neste mesmo universo. Há algo mais propriamente nosso do que o<br />

drama das famílias tangidas pelas secas, exploradas em seus parcos recursos pelas frentes oficiais<br />

de trabalho, controladas pelo poder local? N’<strong>As</strong> <strong>Velhas</strong> discute-se a seca, o poder político, as<br />

vinganças familiares e o êxodo rural, tudo isso desencadeado pelas intempéries e pela busca de<br />

Mariana (Zezita Matos) por aquela mulher que lhe “roubou” o marido e, conseqüentemente, a sua<br />

condição de mulher-fêmea, como bem diz a personagem: “Se num fosse aquela cadela prenha ter<br />

se atravessado na vida da gente... Tirou o pai dos meus filhos, o sossego da família... quem quiser<br />

que pense o que é uma mulher nova, forte, viçosa, caçar nos quatro canto da casa o seu homem e<br />

só achar a saudade dele...” De outro lado, teremos o envolvimento dos filhos de Mariana, Branca<br />

(Ingrid Trigueiro) e Chicó, com José (João Dantas), filho de Ludovina (Cida Costa), a outra velha,<br />

que presa à soleira de sua porta por um reumatismo “tanto determina a luta de casa, como dá<br />

conta da vida de quem vai e quem vem...” A ligação entre as duas famílias é travada pelo mascate<br />

Tomás (Maurício Soares), que na sua função de leva-e-traz acaba alcovitando o romance entre<br />

Branca e José, como também anuncia os mandos e desmandos dos poderosos, instigando José e<br />

Chicó a denunciarem as fraudes na composição das listas do programa de emergência contra a<br />

seca.<br />

A montagem do Grupo Contratempo em nada resvala para o simplório ou pitoresco. O nível<br />

prosódico das personagens, recheado de ditos e de referências a lugares e tipos, as situações em<br />

que se envolvem, o ambiente em que circulam, são elementos estruturais, constitutivos e<br />

necessários para a construção da realidade representada, trazidos à cena não só para despertar o


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Editora do Site: Valéria Andrade<br />

riso fácil pela caricatura, mas aquele riso desconfiado, de (re)conhecimento, riso de si-mesmo. De<br />

outro lado a “forma” escolhida para essa “representação” demonstra um perfeito entendimento do<br />

equilíbrio entre os lances cômicos e dramáticos. Os diálogos e os monólogos (recurso utilizado<br />

para a expressão dos sentimentos e entendimentos mais íntimos de Mariana e Branca); os recuos<br />

no tempo (o belíssimo flashback que se dá no corredor do fundo do palco, quando ficamos<br />

sabendo que na realidade Ludovina é a mulher que Mariana procura); a iluminação muito bem<br />

construída e que nos seduz, criando a ilusão cênica de um ciclo de sol (amanhecer, tarde, noite<br />

fechada, manhã, crepúsculo); a movimentação dos atores que preenchem todo o palco o tempo<br />

inteiro, fazendo com que o público tenha num plano o diálogo enquanto no outro alguma ação<br />

silenciosa se desenrola (como na primeira cena, quando acompanhamos toda a arrumação do<br />

rancho da família de Mariana embaixo da Oiticica enquanto Ludovina silenciosamente arruma uns<br />

panos no praticável, ou no interlúdio da alimentação, quando vemos as duas famílias num quadro<br />

belíssimo de nossos costumes, comendo feijão “de bolo”); tudo isso à disposição do fio narrativo<br />

que se desenrola diante de nossos olhos.<br />

A construção das personagens foge da tipificação nordestinesca, ganhando destaque na<br />

composição das mulheres: Mariana, Ludovina e Branca. A primeira é fantasticamente defendida<br />

por Zezita Matos, que imprime à sua interpretação dor e melancolia. Acompanhamos seu percurso<br />

da perseguição da “inimiga” à defesa das crias, passando pela reflexão sobre a perda da vivência<br />

de sua sexualidade quando era jovem, tudo isso condensado em silêncios, na face fechada, na<br />

roupa preta e na fabulosa tessitura da partitura corporal, que expressa ares de animal preso,<br />

acuado, prestes a atacar. Cida Costa carrega em seu corpo a figura da cigana Ludovina presa à<br />

soleira da porta e que usa a língua ferina como arma contra a opressão <strong>–</strong> outra composição<br />

memorável, com a sorte de ter algumas das melhores linhas do texto <strong>–</strong> é com ela que rimos e que<br />

reconhecemos as matriarcas que dominam a casa com apenas a força do olhar, tudo isso<br />

combinado ao cinismo nas inflexões e caretas, à maldade de bruxa de conto de fadas na voz rouca<br />

e ameaçadora e à fragilidade patética nos momentos em que é carregada ou arrastada no palco.<br />

Ingrid Trigueiro nos revela uma Branca entre a ingenuidade infantil e o afloramento da mulher, em<br />

constante embate com mãe, metonímia do destino que a espera para ser cumprido ou rompido.<br />

O elenco todo nos toma pela mão, conduzindo-nos pelas veredas da tragédia que embebem o<br />

texto de <strong>Lourdes</strong> <strong>Ramalho</strong>, da dúvida instaurada sobre a possível relação incestuosa entre os<br />

irmãos Branca e José até os limites da revelação, quando presenciamos o encontro definitivo entre<br />

as duas inimigas, marcado pelo acerto de conta e a amargura. <strong>As</strong> pragas vociferadas pelas duas<br />

mulheres -- “Eu lhe garanto pela luz que me alumia, que, antes de mim, você vai se cobrir de luto”<br />

— como respondendo à crença popular que diz que “praga de mãe pega” acabam por instaurar o<br />

desfecho trágico do texto, que toma de assalto todos os espectadores, numa cena de grande<br />

impacto visual, alimentado pela ótima trilha sonora de Alex Madureira e Escurinho. <strong>As</strong> duas<br />

inimigas, ao final de tudo, só podem contar com elas mesmas.<br />

<strong>As</strong> <strong>Velhas</strong>, de <strong>Lourdes</strong> <strong>Ramalho</strong>, é um texto paradigmático para a história recente do teatro na/da<br />

Paraíba <strong>–</strong> montado, remontado e premiado por onde anda, desde 1975, quando foi saudado no<br />

Paraná, por Henriette Morienau como “magnífico”; passando pela assinatura<br />

expressionista/surrealista tida como “definitiva” do talentoso Moncho Rodriguez, em 1989;<br />

chegando à carreira de três anos de sucesso do Grupo Contratempo <strong>–</strong> e demonstra que ainda<br />

existem frentes de resistência e, por que não, de existência em nossa cena teatral.

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