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O submundo da cana - Bresser Pereira

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O <strong>submundo</strong> <strong>da</strong> <strong>cana</strong><br />

Estado que detém 60% <strong>da</strong> produção nacional de <strong>cana</strong>-de-açúcar, São Paulo não divide a<br />

riqueza deriva<strong>da</strong> do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas<br />

vezes em situações precárias<br />

MÁRIO MAGALHÃES<br />

JOEL SILVA<br />

ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP<br />

Folha de S.Paulo, 24.8.08<br />

Pontualmente às 4h42, a <strong>cana</strong>vieira Ilma Francisca de Souza parte para o trabalho com sua<br />

marmita forni<strong>da</strong> de arroz coberto por uma lingüiça cortadinha. Em outro bairro de Serrana,<br />

ain<strong>da</strong> antes de o sol nascer, Rosimira Lopes sai para o <strong>cana</strong>vial levando arroz com um só<br />

acompanhamento: feijão.<br />

Durante o dia, elas vão <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> comi<strong>da</strong>, que já terá esfriado. A despeito do notável<br />

progresso que ergue usinas de etanol com tecnologia assombrosa, o Brasil segue sem servir<br />

refeições quentes aos lavradores <strong>da</strong> <strong>cana</strong>-de-açúcar.<br />

A bóia continua fria.<br />

Durante dois meses, a Folha investigou as condições de vi<strong>da</strong> e trabalho dos cortadores de<br />

<strong>cana</strong> no Estado que detém 60% <strong>da</strong> produção do país que é o principal produtor do planeta.<br />

Gente como Ilma e Rosimira.<br />

Em uma <strong>da</strong>s etapas de apuração <strong>da</strong> reportagem, por 15 dias percorreram-se 3.810 quilômetros<br />

de carro, o equivalente a nove trajetos São Paulo-Rio de Janeiro. Um mapa [veja na pág. 6]<br />

mostra onde ficam as ci<strong>da</strong>des visita<strong>da</strong>s.<br />

Pela primeira vez em cinco séculos, desde que as mu<strong>da</strong>s pioneiras foram trazi<strong>da</strong>s pelos<br />

portugueses, em 2008 ao menos metade <strong>da</strong> <strong>cana</strong> de São Paulo não será colhi<strong>da</strong> por mãos, mas<br />

por máquinas. É o que anunciam os usineiros.<br />

Como na vira<strong>da</strong> do século 16 para o 17, quando o país era o líder do fabrico de açúcar, a <strong>cana</strong><br />

oferece imensas oportuni<strong>da</strong>des ao Brasil, em torno do álcool combustível do qual ela é<br />

matéria-prima. O etanol pode se transformar em commodity, com cotação no mercado<br />

internacional. As usinas geram energia elétrica.<br />

A riqueza do setor sucroalcooleiro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões, não atingiu os<br />

lavradores. Em 1985, um cortador em São Paulo ganhava em média R$ 32,70 por dia (valor<br />

atualizado). Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as exigências no trabalho<br />

aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 tonela<strong>da</strong>s diárias de <strong>cana</strong>. Na safra atual, 9,3.<br />

Em 19 ci<strong>da</strong>des do interior -na capital foi ouvido um representante dos empresários- , os<br />

repórteres procuraram entender por que, entre nove culturas agrícolas, a <strong>da</strong> <strong>cana</strong> reúne os<br />

trabalhadores mais jovens.<br />

Exige alto esforço físico uma ativi<strong>da</strong>de em que é preciso <strong>da</strong>r 3.792 golpes com o facão e fazer<br />

3.994 flexões de coluna para colher 11,5 tonela<strong>da</strong>s no dia. Nos últimos anos, mortes de<br />

<strong>cana</strong>vieiros foram associa<strong>da</strong>s ao excesso de trabalho.<br />

Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que morreu semanas após colher 16,5 tonela<strong>da</strong>s. Não<br />

há paralelo em qualquer região com tamanho rendimento.<br />

Na estra<strong>da</strong>, flagraram-se ônibus deteriorados, ausência de equipamentos de segurança no<br />

campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao mínimo.<br />

Conheceram-se comuni<strong>da</strong>des de <strong>cana</strong>vieiros que dependem do Bolsa Família, migrantes que<br />

tentam a sorte e lavradores que querem se livrar do crack e de outras drogas.


Descobriram-se documentos que comprovam a existência de fraudes no peso <strong>da</strong> <strong>cana</strong>, lesando<br />

os lavradores.<br />

Escravidão<br />

No auge e na decadência do ciclo <strong>da</strong> <strong>cana</strong>-de-açúcar, os escravos cui<strong>da</strong>ram <strong>da</strong> lavoura e<br />

puseram os engenhos para funcionar. A arranca<strong>da</strong> do etanol brasileiro foi <strong>da</strong><strong>da</strong> por lavradores<br />

na maioria negros.<br />

Assim como os escravos sumiram de certa historiografia, os cortadores são uma espécie<br />

invisível nas publicações do setor. Exibem-se usinas high-tech, mas oculta-se a mão-de-obra<br />

<strong>da</strong> roça.<br />

Impressiona na viagem ao mundo e ao <strong>submundo</strong> <strong>da</strong> <strong>cana</strong> a semelhança de símbolos <strong>da</strong><br />

lavoura atual com a era pré-Abolição. O fiscal <strong>da</strong>s usinas é chamado de feitor.<br />

Acumulam-se denúncias de trabalho escravo. É um erro supor que as acusações de<br />

degra<strong>da</strong>ção passem longe do Estado mais rico do país e se limitem ao "Brasil profundo". Uma<br />

delas é narra<strong>da</strong> adiante. Em São Paulo, localiza-se Ribeirão Preto, centro <strong>cana</strong>vieiro tratado<br />

como a nossa "Califórnia".<br />

O presidente Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva tem minimizado os relatos sobre trabalho penoso nos<br />

<strong>cana</strong>viais. No ano passado, ele disse que os usineiros "estão virando heróis nacionais e<br />

mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".<br />

O medo de retaliações é grande entre os <strong>cana</strong>vieiros. Nenhum nome foi mu<strong>da</strong>do nos textos,<br />

mas algumas pessoas, a pedido, são identifica<strong>da</strong>s apenas pelo prenome ou nem isso. As<br />

entrevistas foram grava<strong>da</strong>s com consentimento.<br />

São muitos esses anti-heróis: segundo os usineiros, há 335 mil cortadores de <strong>cana</strong> no Brasil,<br />

incluindo os 135 mil de São Paulo. No Estado, prevê-se a extinção do corte manual para<br />

2015, junto com as queima<strong>da</strong>s que facilitam a colheita.<br />

Ilma e Rosimira compõem uma espécie em extinção. Por meio milênio, os cortadores,<br />

escravos ou assalariados, viveram tempos difíceis. Nos próximos anos, não será diferente:<br />

com baixa qualificação, eles terão de procurar outros meios de sobrevivência.<br />

Não há sindicato que não constate que<strong>da</strong> nas contratações.<br />

O <strong>cana</strong>vial não está tão longe quanto parece: ao encher o tanque com 49 litros de álcool,<br />

consome-se uma tonela<strong>da</strong> de <strong>cana</strong>; quando se adoça com açúcar o café <strong>da</strong> manhã, milhares de<br />

brasileiros já estão na lavoura de facão na mão.<br />

Riqueza e senzala<br />

Estado mais rico do país tem casos de trabalho escravo; procurador fala em<br />

"apartheid" nos <strong>cana</strong>viais<br />

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP<br />

Q uando os fiscais do Ministério do Trabalho e os procuradores do Ministério Público do<br />

Trabalho partem para diligências nos <strong>cana</strong>viais, as chances de encontrarem irregulari<strong>da</strong>des<br />

equivalem às dos clientes dos serviços de "pesque-pague" disseminados pelo interior paulista<br />

fisgarem tilápias sem dificul<strong>da</strong>des: nos lagos, há profusão de cardumes; no campo, as<br />

condições de trabalho dos cortadores estão longe de cumprir plenamente a lei.<br />

Mesmo sem os instrumentos legais de investigação à disposição dos servidores públicos, os<br />

repórteres não passaram por lavoura onde não houvesse infrações.<br />

Em Taiaçu, os trabalhadores saíram para a roça de madruga<strong>da</strong>, em ônibus com luzes


dianteiras e traseiras queima<strong>da</strong>s.<br />

Em Serra Azul, não havia água gela<strong>da</strong>, banheiros móveis, área coberta para as refeições e<br />

muitos <strong>cana</strong>vieiros não usavam alguns EPIs (equipamentos de proteção individual).<br />

Em Pederneiras, uma lavradora estava com luva cirúrgica de borracha, não de couro com<br />

reforço metálico, como determina a norma de segurança.<br />

Ela pegou as luvas empresta<strong>da</strong>s com uma amiga que atuou como mata-mosquito na campanha<br />

de combate à dengue.<br />

Uma <strong>da</strong>s luvas foi corta<strong>da</strong> pelo facão na véspera, ferindo um dedo (o acidente não foi<br />

registrado, o que contraria a legislação). As botinas com bicos metálicos de boa parte dos<br />

peões estavam destruí<strong>da</strong>s.<br />

Em Limeira, também não se viram alguns EPIs. Idem em Piracicaba e Charquea<strong>da</strong>. Em Dois<br />

Córregos e Guariba, cortadores vivem em pardieiros sem conforto e limpeza -falta até papel<br />

higiênico.<br />

Em Agudos, em uma rescisão contratual, um casal apresentou os contracheques comprovando<br />

remuneração inferior a um salário mínimo mensal. Marido e mulher ain<strong>da</strong> deviam mais de R$<br />

100 ca<strong>da</strong> um ao contratador de mão-de-obra, que retinha documentos dos funcionários havia<br />

três meses.<br />

Hoje são proibidos e ficaram mesmo para trás os caminhões que transportavam os bóias-frias<br />

<strong>da</strong> <strong>cana</strong> em São Paulo. Mas perduram frotas de ônibus deteriorados e inseguros, sem<br />

autorização para ro<strong>da</strong>r.<br />

As empresas são obriga<strong>da</strong>s a fornecer de graça equipamentos de segurança. Às vezes não<br />

fornecem e às vezes cobram.<br />

São pequenos inconvenientes, se comparados aos episódios de "redução a condição análoga à<br />

de escravo".<br />

O crime é tipificado pelo Código Penal. Ocorre quando se submete alguém a "trabalhos<br />

forçados ou a jorna<strong>da</strong> exaustiva, quer sujeitando-o a condições degra<strong>da</strong>ntes de trabalho, quer<br />

restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívi<strong>da</strong> contraí<strong>da</strong> com o<br />

empregador ou preposto". A pena é de multa e reclusão de dois a oito anos, além de sanção<br />

correspondente à violência.<br />

Resgates e libertações<br />

Desde 1995, quando entrou em ação, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério<br />

do Trabalho "resgatou" -é o verbo oficialmente empregado- 30.036 trabalhadores no Brasil.<br />

As indenizações somam R$ 42 milhões. São raras as condenações judiciais.<br />

O recorde foi batido no ano passado, com 5.999 "libertações", outra expressão adota<strong>da</strong> pelo<br />

governo. Neste ano, até junho, 2.269 pessoas foram encontra<strong>da</strong>s em condições análogas à de<br />

escravo.<br />

Fiscais e procuradores se transformaram em uma espécie de caçadores de escravos ao<br />

contrário -não para confiná-los, mas para livrá-los <strong>da</strong> desgraça. Em São Paulo, é comum eles<br />

exigirem que empresas paguem a viagem de volta de migrantes contratados em seus Estados<br />

para o corte de <strong>cana</strong>.<br />

A maioria -3.117- dos libertados em 2007 no país trabalhava no setor sucroalcooleiro, como a<br />

Folha informou em fevereiro passado.<br />

Em Brasilândia (MS), na usina e na fazen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool,<br />

831 empregados indígenas foram descobertos em situação qualifica<strong>da</strong> como degra<strong>da</strong>nte.<br />

Neste ano, 55 funcionários de outra usina <strong>da</strong> CBAA foram descritos pelo Ministério do<br />

Trabalho como vítimas de servidão por dívi<strong>da</strong>, o que configura trabalho escravo.<br />

Ao contrário <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s autuações, concentra<strong>da</strong>s nas regiões de expansão <strong>da</strong> fronteira<br />

agrícola no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, esta aconteceu no Estado de São Paulo, em<br />

Icém.


A companhia, do grupo J. Pessoa, nega responsabili<strong>da</strong>de por problemas. Em seu site, afirma<br />

que "busca garantir sustentabili<strong>da</strong>de na produção e relações responsáveis no crescimento,<br />

visando sempre a melhoria e a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> dos seus colaboradores e de seus familiares".<br />

Empresas do grupo foram excluí<strong>da</strong>s do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo,<br />

um programa de organizações que se comprometem a não aceitar esse crime em sua cadeia<br />

produtiva.<br />

O procurador do Trabalho Luís Henrique Rafael destacou em ação civil pública o que<br />

considera abismo entre os componentes contemporâneos e arcaicos do negócio <strong>da</strong> <strong>cana</strong> e seus<br />

derivados: "A tecnologia de ponta que se observa nas usinas contrasta com as "senzalas" nos<br />

<strong>cana</strong>viais, explicitando bem o ver<strong>da</strong>deiro apartheid, fruto <strong>da</strong> inescrupulosa equação de<br />

distribuição <strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s gera<strong>da</strong>s pelo tal "petróleo verde'".<br />

A Organização Internacional do Trabalho mantém no Brasil o Projeto de Combate ao<br />

Trabalho Escravo.<br />

O procurador Mário Antônio Gomes coordena "inquérito-mãe" sobre o que chama de<br />

degra<strong>da</strong>ção do trabalho nos <strong>cana</strong>viais de São Paulo. Para ele, "o nível de educação mais baixo<br />

[dos cortadores] facilita a exploração".<br />

O combate ao trabalho degra<strong>da</strong>nte é limitado pela escassez de recursos. Na região de Ribeirão<br />

Preto, há dois procuradores para acompanhar 39 usinas. É pouco, mas, graças (também) às<br />

ações de fiscalização, hoje está quase erradicado um fenômeno do passado, o trabalho<br />

infanto-juvenil no corte <strong>da</strong> <strong>cana</strong> no Estado.<br />

Operário-padrão<br />

Após começar a trabalhar aos 13 anos, ex-campeão de corte está hoje, aos 35, com uma<br />

hérnia e a coluna "trava<strong>da</strong>"<br />

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP<br />

V aldecir <strong>da</strong> Silva Reis, o graveto que consome seus dias deitado na cama a ver TV, já foi um<br />

campeão. Não tinha para ninguém. Na lavoura, batia recorde em cima de recorde.<br />

Em 20 de março de 2006, colheu 21 tonela<strong>da</strong>s. Em 17 de maio, 28. Oito dias depois, rasgou<br />

560 metros lineares de plantação, cortando cinco linhas de <strong>cana</strong> para receber por uma -é o<br />

critério legal. A rigor, derrubou 2,8 km lineares.<br />

O contracheque <strong>da</strong> empresa Meia Lua imprime a marca <strong>da</strong> jorna<strong>da</strong>: 52,47 tonela<strong>da</strong>s. Quase<br />

uma tonela<strong>da</strong> por quilo de gente -ele pesava 56 kg. Hoje diz ter 49 kg. Parece menos.<br />

O cortador que arrancava suspiros dos colegas incrédulos definha na casa onde vive de favor<br />

em Engenheiro Coelho.<br />

Na roça, não sentia dores. Em 2006, a coluna "travou" e ele não retornou ao <strong>cana</strong>vial. Aos 35<br />

anos, sonha com o dia de voltar ao trabalho em que se tornou o herói dos amigos.<br />

Por maior que seja a vontade, ele desconfia de que não empunhará o facão novamente. Os<br />

exames diagnosticaram problemas na coluna lombar, hérnia de esôfago e desequilíbrios nos<br />

indicadores de urina.<br />

Valdecir se queixa de dores de cabeça, na barriga, no peito (não fez avaliação cardíaca), no<br />

saco escrotal, no ombro direito, nos braços, joelhos e pernas; de falta de força para levantar<br />

uma garrafa d'água; de cansaço após caminhar 800 metros; de ouvir mal por um ouvido.<br />

O lado esquerdo do tórax é mais desenvolvido; com o braço esquerdo ele atirava a <strong>cana</strong> na<br />

leira, o corredor aberto na terra onde fica a <strong>cana</strong> colhi<strong>da</strong>.<br />

Segun<strong>da</strong> divisão<br />

Ain<strong>da</strong> que o farrapo humano que fala baixinho e sem fôlego sobre seu infortúnio fosse criação


de um magistral ator stanislavskiano, ultra-realista, nem assim seria possível bolar uma<br />

história com princípio, meio e fim como a dele -os repórteres escarafuncharam o caso com<br />

base em fartura de documentos e depoimentos.<br />

Valdecir começou a cortar <strong>cana</strong> aos 13 anos. Empresas premiavam seus feitos com bicicleta e<br />

aparelho de som.<br />

Após "travar" em 2006, obteve auxílio-doença <strong>da</strong> Previdência. Na perícia de 5 de maio<br />

passado, no entanto, foi considerado apto para o trabalho. Sua ren<strong>da</strong> é zero.<br />

Mora com uma filha de casamento anterior e a mulher, Helena. Ela ganha R$ 30 por faxina.<br />

Faz duas por semana.<br />

O trabalho para o qual o INSS não identifica "problema grave" para Valdecir exercer "não se<br />

pode comparar ao de um escriturário", diz um executivo de usina. Anunciam-se vagas para<br />

escriturário com 30 a 40 horas de carga semanal. Em período idêntico, o cortador de <strong>cana</strong> em<br />

SP trabalha, no papel, 44 horas, em seis dias.<br />

De escriturários e cortadores se exigem 35 anos de serviço para se aposentar. A maioria<br />

desses, contudo, é safrista: trabalha oito meses por ano na ativi<strong>da</strong>de. Não soma 12 meses de<br />

contribuição.<br />

O desempenho de alguns é tão exuberante que os célebres campeões cubanos <strong>da</strong>s campanhas<br />

de corte de <strong>cana</strong> aqui pegariam segun<strong>da</strong> divisão. Em 1965, Fidel Castro condecorou cinco<br />

deles, de marcas de 14 a 19,7 tonela<strong>da</strong>s. Na Meia Lua, ex-empregadora de Valdecir, um<br />

cortador bateu 35 tonela<strong>da</strong>s em 20 de junho. Os repórteres tentaram falar com a empresa, mas<br />

não encontraram seus endereço e telefone.<br />

Os campeões, como são chamados na lavoura os de melhor performance, costumam ser<br />

magros e fortes. Valdecir tem 1,65 m de altura.<br />

Samuel Gomes, 38, é um dos recordistas de Guariba. Mede 1,85 m. Barack Obama, 1,86 m. O<br />

peso do senador americano é estimado em 77 kg a 82 kg. Samuel, que tem 68 kg, conta ter<br />

cortado neste ano 27 tonela<strong>da</strong>s em um dia na usina São Carlos.<br />

Com tanta exigência física, há nove homens (92%) por mulher na lavoura <strong>cana</strong>vieira do<br />

Brasil. Em nove culturas relevantes, os trabalhadores de menor média etária são os <strong>da</strong> <strong>cana</strong>,<br />

35,5 anos -<strong>da</strong>dos compilados pelos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola<br />

C.R. Oliveira (USP).<br />

Rotina<br />

Ônibus <strong>da</strong>s empresas apanham os cortadores em casa entre 5h e 6h. No campo, a jorna<strong>da</strong><br />

inicia às 7h. Muitos "almoçam" antes de começar a colheita. Há direito a intervalos de dez<br />

minutos, de manhã e à tarde. Pelas 10h ou 11h, reserva-se uma hora para almoço -poucos<br />

cumprem todo o tempo. O serviço termina às 15h ou 16h, mas há excessos. Os trabalhadores<br />

chegam às suas casas entre as 17h e as 19h. Dormem pelas 20h, 21h, para acor<strong>da</strong>r entre as<br />

3h30 e as 4h30.<br />

Pesquisa de análise ergonômica em fase de conclusão, financia<strong>da</strong> pela Fapesp e coordena<strong>da</strong><br />

pelos pesquisadores Rodolfo Vilela e Erivelton de Laat, descreve os movimentos dos<br />

cortadores.<br />

Um deles, que colheu 11,5 tonela<strong>da</strong>s, deu em um dia 3.792 golpes com o facão e fez 3.994<br />

flexões de coluna. O facão pesa 600 gramas. Golpeia-se a <strong>cana</strong> no pé, onde se concentra a<br />

sacarose. O cortador destro abraça o feixe de cerca de dez <strong>cana</strong>s com o braço esquerdo (ou,<br />

vara por vara, com a mão), curva-se e golpeia com o braço direito. Com o esquerdo, atira a<br />

<strong>cana</strong> na leira, de onde a máquina carregadeira a leva.<br />

Em um grupo, a freqüência cardíaca média em repouso era de 57,4 batimentos por minuto.<br />

No trabalho, de 112, variação exagera<strong>da</strong>, conforme os pesquisadores (a diferença deveria se<br />

limitar a 35).<br />

A ativi<strong>da</strong>de dos lavradores é compara<strong>da</strong> à de maratonistas, com repetição fatigante de


movimentos. Maria Zeferina Bal<strong>da</strong>ia, campeã <strong>da</strong> Maratona de São Paulo em 2008, foi<br />

cortadora de <strong>cana</strong> no interior. "Uma coisa tem muito a ver com a outra", confirma.<br />

Sindicatos de empregados pedem a redução <strong>da</strong> carga semanal para 40 horas, com dois dias de<br />

descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>centro, fun<strong>da</strong>ção de pesquisas do<br />

Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jorna<strong>da</strong>s de seis horas por semana.<br />

As empresas rejeitam as reivindicações.<br />

É essa vi<strong>da</strong> que Valdecir fantasia retomar. Ele se esconde em casa. "As pessoas vêem a gente<br />

na rua e falam que é vagabundo. Não vêem o que a gente tem por dentro, o que a gente<br />

sente."<br />

A morte cansa<strong>da</strong><br />

Com produção em alta e salários em que<strong>da</strong>, excesso de trabalho ron<strong>da</strong> <strong>cana</strong>viais<br />

Joel Silva/Folha Imagem<br />

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP<br />

Cortador de<br />

<strong>cana</strong><br />

trabalha em<br />

<strong>cana</strong>vial em<br />

Charquea<strong>da</strong><br />

S e dinheiro chama dinheiro, como dizem, então pobreza chama pobreza -e tragédia agoura<br />

tragédia. Procura<strong>da</strong> em Guariba para conversar sobre o marido, morto após passar mal no<br />

<strong>cana</strong>vial em 2005, Maildes de Araújo se põe a falar do morto de duas semanas antes: o<br />

cunhado, também cortador de <strong>cana</strong>.<br />

José Pindobeira Santos tinha 65 anos. Colheu <strong>cana</strong> até o ano retrasado. "Ele reclamava <strong>da</strong><br />

barriga, de cólicas", diz a filha Ivanir, faxineira. Voltava <strong>da</strong> lavoura com dor na virilha. Nunca<br />

se tratou ou foi tratado.<br />

Pindobeira morreu de obstrução intestinal e broncoaspiração. Não se sabe até que ponto a li<strong>da</strong><br />

na roça baqueou sua saúde. Nos anos 1960 já cortava <strong>cana</strong> nos arredores de Guariba.<br />

Seu concunhado Antonio Ribeiro Lopes, o marido <strong>da</strong> baiana Maildes, veio ao mundo em<br />

julho de 1950, três dias antes do fracasso supremo do futebol pátrio, a final <strong>da</strong> Copa. Migrou<br />

de Berilo (MG), município <strong>da</strong> paupérrima região do Vale do Jequitinhonha.<br />

Em acidentes registrados -a subnotificação é considerável-, o facão rasgou-lhe perna e joelho.<br />

Dores no ombro direito o afastaram <strong>da</strong> roça. Penava com dor de cabeça. O empenho no<br />

trabalho desencadeava cãibras na barriga, nas pernas e nos braços. Sofria <strong>da</strong> doença de<br />

Chagas, mas não o licenciaram.


Era funcionário <strong>da</strong> usina Moreno. Sucumbiu no campo e o levaram para o hospital. Causa <strong>da</strong><br />

morte: "cardiopatia chagásica descompensa<strong>da</strong>".<br />

Lopes integra a relação de duas dezenas de <strong>cana</strong>vieiros mortos no interior paulista de 2004 a<br />

2007, o caçula com 20 anos. A lista foi elabora<strong>da</strong> pela Pastoral do Migrante -há mais mortes,<br />

não contabiliza<strong>da</strong>s.<br />

Dela não constam acidentes de trabalho -em 2005, de ca<strong>da</strong> mil trabalhadores no cultivo <strong>da</strong><br />

<strong>cana</strong>, 48 sofreram acidente ocupacional, registraram as pesquisadoras <strong>da</strong> USP Márcia Azanha<br />

Ferraz Dias de Moraes e Andrea R. Ferro.<br />

Naquele ano, segundo o Ministério do Trabalho, morreram de acidentes 84 pessoas no setor<br />

sucroalcooleiro, incluindo lavoura e indústria (3,1% <strong>da</strong>s mortes por acidentes de trabalho no<br />

Brasil). O Ministério Público do Trabalho investiga a razão dos óbitos e sua associação com o<br />

caráter exaustivo do corte manual.<br />

Relatório de 2006 <strong>da</strong> Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho enumera dezenas de<br />

irregulari<strong>da</strong>des em empresas nas quais trabalhavam os lavradores que morreram.<br />

Uma é o não-cumprimento do descanso de uma hora para o almoço. Os cortadores comem em<br />

dez, 20 minutos, para logo empunhar de novo o facão. Eles ganham por produção. Nenhum<br />

laudo atesta que a ativi<strong>da</strong>de foi decisiva para os óbitos. Seria difícil: dos oito esquadrinhados<br />

pelo ministério, só em dois houve necropsia.<br />

O texto <strong>da</strong> Secretaria de Inspeção afirma: "As causas de mal súbito, para<strong>da</strong> cardiorrespiratória<br />

e AVC [acidente vascular cerebral], descritas nas certidões de óbito, não são elementos de<br />

convicção que justifiquem a morte natural, como alegam as empresas".<br />

Há indícios sobre por que morrem os <strong>cana</strong>vieiros.<br />

Em 1985, os cortadores do Estado produziam em média 5 tonela<strong>da</strong>s diárias de <strong>cana</strong>. Em 2008,<br />

são 9,3 tonela<strong>da</strong>s, 86% a mais. Há 23 anos, um lavrador recebia R$ 6,55 por tonela<strong>da</strong> e R$<br />

32,70 por jorna<strong>da</strong>. Em 2007, 1.000 kg valeram R$ 3,29. A remuneração por dia, R$ 28,90<br />

(menos 12%).<br />

A produtivi<strong>da</strong>de disparou e o salário caiu. Com a mecanização acelera<strong>da</strong> do corte e a<br />

expansão do desemprego, ficam os mais eficientes. O homem compete com a colheitadeira.<br />

Os números de 1985 e 2007 são do Instituto de Economia Agrícola. Atualizados para reais de<br />

agosto de 2007, encontram-se em artigo dos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e<br />

Fabíola C.R. de Oliveira (USP).<br />

"Penoso" e "desumano"<br />

José Mário Gomes morreu em 2005 aos 44 anos. Era empregado <strong>da</strong> usina Santa Helena, do<br />

grupo Cosan, líder <strong>da</strong> produção de <strong>cana</strong> no planeta. "O óbito ocorreu nos períodos de maior<br />

produtivi<strong>da</strong>de, com picos alternados", informa o Ministério do Trabalho.<br />

Valdecy de Lima trabalhava na usina Moreno, como Antonio Ribeiro Lopes. Em 7 de julho<br />

de 2005, desabou na roça. Morreu aos 38 anos, de acidente vascular cerebral. Em 17 de junho,<br />

decepara 16,5 tonela<strong>da</strong>s.<br />

A Moreno alega que as mortes de Antonio e Valdecy "não ocorreram em decorrência do<br />

esforço do trabalho". A Cosan diz que as causas do óbito de José Mário "ain<strong>da</strong> estão sendo<br />

investiga<strong>da</strong>s pelos órgãos competentes. A empresa prestou todos os atendimentos necessários<br />

e colocou seu departamento de serviço social à disposição <strong>da</strong> família do colaborador. A Cosan<br />

cumpre rigorosamente a legislação trabalhista".<br />

O Ministério Público do Trabalho relaciona as mortes à rotina "penosa" e "desumana" e<br />

prepara ação contra o pagamento por produção, quando o grosso <strong>da</strong> remuneração depende do<br />

desempenho. É preciso acumular em oito meses, a duração <strong>da</strong> safra, o suficiente para 12 -a<br />

maioria é dispensa<strong>da</strong> na entressafra.<br />

Usineiros e segmento expressivo dos trabalhadores desejam manter o sistema.<br />

O afinco para cortar mais e mais provoca situações como uma aconteci<strong>da</strong> em 2007. Sob o sol,


em dia de temperatura máxima de 37ºC à sombra, nove trabalhadores foram hospitalizados<br />

após se sentirem mal em uma fazen<strong>da</strong> de Ibirarema.<br />

Reclamavam de cãibras e vomitavam. Algumas usinas fornecem no campo bebi<strong>da</strong>s<br />

reidratantes para a mão-de-obra suportar o desgaste.<br />

Em áreas de corte manual, os <strong>cana</strong>viais costumam ser queimados antes <strong>da</strong> colheita. O fogo<br />

queima a palha <strong>da</strong> <strong>cana</strong>, e restam apenas as varas, o que facilita o trabalho. Quando o facão<br />

golpeia as varas com fuligem, o pó se espalha, entra pelo nariz e gru<strong>da</strong> na pele. A plantação<br />

recebe agrotóxicos. O lavrador não costuma receber máscara.<br />

Em tese de doutorado na Unesp, a bióloga Rosa Bosso constatou que o nível de HPAs,<br />

substâncias cancerígenas, expelidos na urina de quatro dezenas de trabalhadores era nove<br />

vezes maior na safra do que na entressafra.<br />

Em tempora<strong>da</strong> sem colheita, Antonio Lopes sobreviveu como carregador de sacas de açúcar.<br />

Maildes o conheceu na lavoura <strong>da</strong> <strong>cana</strong>, onde o namoro engatou. Ain<strong>da</strong> hoje a viúva se<br />

orgulha: "Ele não era de enjeitar serviço".<br />

Crack, cachaça e maconha mascaram esforço e dor<br />

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP<br />

O primeiro fumava maconha na colheita <strong>da</strong> <strong>cana</strong> porque "ficava com o corpo mais leve. Dava<br />

vontade de trabalhar". O segundo escondia cachaça em sua mochila. "Quanto mais eu bebia,<br />

mais tinha energia. Eu me sentia forte."<br />

O terceiro "ia embora" com maconha ou crack, subproduto barato <strong>da</strong> cocaína ain<strong>da</strong> mais<br />

destrutivo e capaz de criar dependência. "Quando usava, ninguém me segurava. Cortei 21<br />

tonela<strong>da</strong>s em um dia."<br />

Na Casa do Caminho, um centro de recuperação de dependentes químicos em Barrinha, na<br />

maioria trabalhadores do cultivo <strong>da</strong> <strong>cana</strong>, eles tentam voltar à tona.<br />

O primeiro trocou a maconha pelo crack. "Na roça, vinha a sensação de ser perseguido, eu<br />

ficava com medo, via revólver, <strong>da</strong>va vontade de atirar em mim mesmo. Não trabalhava.<br />

Comecei a perder o serviço."<br />

O segundo foi do fermentado de <strong>cana</strong>-de-açúcar para o crack. Se fumava a droga, mistura<strong>da</strong><br />

com fumo, faltava ao trabalho. "No crack, o fim é o cemitério, uma cadeira de ro<strong>da</strong>s ou a<br />

cadeia." O terceiro "ficava louco e continuava trabalhando. Viajava no serviço. Gritava e<br />

zoava a cabeça dos meninos. Cantava reggae". Seu plano para quando sair: cortar <strong>cana</strong>.<br />

Não se conhecem estatísticas de consumo de drogas ilícitas nos <strong>cana</strong>viais ou o índice<br />

específico de internação de cortadores. O fato novo é a disseminação no interior de São Paulo<br />

de clínicas de recuperação de trabalhadores <strong>da</strong> <strong>cana</strong>. Contam-se ao menos dez.<br />

Os depoimentos dos lavradores associam o consumo de drogas à impressão inicial de<br />

superação dos limites físicos. Na larga<strong>da</strong>, elas parecem aju<strong>da</strong>r. Depois, debilitam.<br />

A Casa do Caminho abriga 40 internos. Seu presidente, Arnaldo Garcia, afirma que as fontes<br />

de financiamento são diversas. As usinas contribuem com açúcar e lenha.

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