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Sonetos - Unama

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nead<br />

Núcleo de Educação<br />

a Di st â nci a<br />

Universidade da Amazônia<br />

<strong>Sonetos</strong><br />

de Luís de Camões<br />

www.nead.unama.br<br />

NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal<br />

CEP: 66060-902<br />

Belém – Pará<br />

Fones: (91) 4009-3196 /4009-3197<br />

www.nead.unama.br<br />

E-mail: nead@unama.br<br />

1


<strong>Sonetos</strong><br />

de Luís de Camões<br />

REDONDILHAS<br />

Amor cuja providência (1595 - redondilha 038)<br />

Amor que em meu pensamento (1595 - redondilha 032)<br />

Ana quisestes que fosse (1668 - redondilha 033)<br />

Aquela cativa (1595 – redondilha 106)<br />

Aquele rosto que traz (1595 - redondilha 062)<br />

A verdura amena (1598 redondilha 014)<br />

Baixos e honestos andais (1595 - redondilha 081)<br />

Campo, que te estendes (1598 - redondilha 011)<br />

Campos cheios de prazer (1595 - redondilha 051)<br />

Caterina é mais formosa (1595 - redondilha 060)<br />

Cinco galinhas e meia (1616 - redondilha 101)<br />

Conde, cujo ilustre peito (1595 - redondilha 112)<br />

Corre sem vela e sem leme (1595 - redondilha 117)<br />

Costumadas artes são (1595 - redondilha 071)<br />

Cousa que este corpo não tem (1595 - Redondilha 063)<br />

Cum real de amor (1598 - redondilha 093)<br />

Da lindeza vossa (1595 - redondilha 026)<br />

Dama d'estranho primor (1595 - redondilha 015)<br />

D'Amor e seus danos (1595 - redondilha 105)<br />

De maneira me sucede (1668 - redondilha 056)<br />

Depois de sempre sofrer (1595 - redondilha 031)<br />

Después que Amor me formo (1595 - redondilha 083)<br />

Desque una vez miré (1616 - redondilha 035)<br />

De ver-vos a não vos ver (1595 - redondilha 077)<br />

Dióme Amor tormentos dos (1595 - redondilha 073)<br />

Dotou em vos natureza (1595 - redondilha 007)<br />

Dous tormentos vejo (1616 - redondilhas 004)<br />

É muito pera notar (1595 - redondilha 041)<br />

Eles verdes são (1595 – redondilha 012)<br />

Entre estes penedos (1598 - redondilha 010)<br />

E se a pena não me atiça (1598 - redondilha 085)<br />

Esses alfinetes vão (1595 - redondilha 022)<br />

Este mundo es el camino (1595 - redondilha 115)<br />

Este tempo vão (1595 – redondilha 002)<br />

Eu, pera levar a palma (1668 - redondilha 091)<br />

Eu sou boa testemunha (l595 - redondilha 013)<br />

Falsos loores os dán (1595 - redondilha 048)<br />

Foi a Esperança julgada (1595 - redondilha 065)<br />

Ja'gora certo conheço (1598 - redondilha 088)<br />

Juravas-me que outras cabras (1598 - redondilha 057)<br />

Leva na cabeça o pote (1668 - redondilha 053)<br />

Madre. si me fuere (1595 - redondilha - 089)<br />

Menina mais que na idade (1595 - redondilha 040)<br />

Mi corazón me han robado (1595 - redondilha 068)<br />

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2


Mi nueva y dulce querella (1595 - redondilha 069)<br />

N'alma uma só ferida (1598 - redondilha 086)<br />

Não posso chegar ao cabo (1616 - redondilha 100)<br />

Não sabendo Amor curar (1595 - redondilha 043)<br />

Não sei quem assola (1598 - redondilha 019)<br />

Não vos guardei, quando vinha (1668 - redondilha 055)<br />

Ninguém vos pode tirar (1616 - redondilha 008)<br />

Nos seus olhos belos (1616 - redondilha 005)<br />

Nua casada fui pôr (1595 - redondilha 064)<br />

Nunca em prazeres passados (1668 - redondilha 084)<br />

Nunca o prazer se conhece (1595 - redondilha 029)<br />

O coração invejoso (1595 - redondilha 066)<br />

Olhai que dura sentença (1595 - redondilha 042)<br />

Os bons vi sempre passar (1598 - redondilha 116)<br />

Os gostos, que tantas dores (1598 - redondilha 082)<br />

Os privilégios que os reis (1595 - redondilha 052)<br />

Para evitar dias maus (1860 - redondilha 049)<br />

Peço-vos que me digais (1595 - redondilha 020)<br />

Pelo meu apartamento (1616 - redondilha 024)<br />

Para quem vos soube olhar (1595 - redondilha 072)<br />

Perdigão, que o pensamento (1598 - redondilha 092)<br />

Pois a tantas perdições (1598 - redondilha 027)<br />

Pois onde te hão-de falar? (1616 - redondilha 103)<br />

Pois o ver-vos tenho em mais (1595 - redondilha 045)<br />

Por cousa tão pouca (1595 - redondilha 017)<br />

Posible es a mi cuidado (1595 - redondilha 059)<br />

Posto o pensamento nele (1616 - redondilha 054)<br />

Pues me distes tal herida (1668 - redondilha 030)<br />

Quando me quer enganar (1595 - redondilha 023)<br />

Quando vos eu via (1595 - redondilha 003)<br />

Que diabo há tão danado (1616 - redondilha 109)<br />

Quem no mundo quiser ser (1595 - redondilha 108)<br />

Quem põe suas confianças (1616 - redondilha 036)<br />

Quem quer que viu, ou que leu (1595 - redondilha 099)<br />

Quem tão mal vos empregou (1595 - redondilha 079)<br />

Quem viveu sempre num ser (1595 - redondilha 080)<br />

Querendo Amor esconder-vos (1668 - redondilha 039)<br />

Querendo escrever um dia (1595 - redondilha 006)<br />

Quererdes profano Amor (1595 - redondilha 107)<br />

Reinando Amor em dous peitos (1595 redondilha 090)<br />

Se de dó vestida andais (1595 - redondilha 061)<br />

Se derivais de verdade (1595 - redondilha 018)<br />

Se de saudade (1595 – redondilha 021)<br />

Se desejos fui já ter (1595 - redondilha 076)<br />

Se me for e vos deixar (1598 - redondilha 087)<br />

Se na alma e no pensamento (1598 - redondilha 097)<br />

Se não quereis padecer (1595 - redondilha 113)<br />

Se só no ser puramente (1595 - redondilha 034)<br />

Se trocar desejo (1595 - redondilha 025)<br />

Se vos quereis embarcar (1668 - redondilha 050)<br />

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3


Sem olhos vi o mal claro (1598 - redondilha 098)<br />

Sendo os restos envidados (1595 - redondilha 114)<br />

Senhora, se eu alcançasse (1595 - redondilha 001)<br />

Sepa quién padece (1616 - redondilha 095)<br />

Sôbolos rios que vôo (1595 - redondilha 118)<br />

Só porque é rapaz ruim (1598 - redondilha 094)<br />

Suspeitas que me quereis (1595 - redondilha 016)<br />

Tanto maiores tormentos (1595 - redondilha 028)<br />

Tem tal jurdição Amor (1595 - redondilha 046)<br />

Tenho-me persuadido (1595 - redondilha 070)<br />

Tiempo perdido es aquel (1595 - redondilha 047)<br />

Todo o trabalhado bem (1595 - redondilha 044)<br />

Trataram-me com cautela (1595 - redondilha 075)<br />

Tudo tendes singular (1616 - redondilha 009)<br />

Uma Dama, de malvada (1595 - redondilha 067)<br />

Uma diz que me quer bem (1595 - redondilha 078)<br />

Ved que enganos señorea (1595 - redondilha 058)<br />

Vêm-se rosas e boninas (1616 - redondilha 104)<br />

Vendo amor que, com vos ver (redondilha 037)<br />

Vi-o moço o pequenino (1595 - redondilha 074)<br />

Viver eu, sendo mortal (1595 - redondilha 111)<br />

Vossa Senhoria creia (redondilha 110)<br />

[Vós] sois uma Dama (1668 - redondilha 096)<br />

—Vuelve acá, no estês pasmado (1616 - redondilha 102)<br />

38.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Sem vós e com meu cuidado<br />

olhai com quem, e sem quem.<br />

Amor, cuja providência<br />

foi sempre que não errasse,<br />

porque n'alma vos levasse,<br />

respeitando o mal de ausência<br />

quis que em vós me transformasse.<br />

E vendo-me ir maltratado,<br />

eu e meu cuidado sós,<br />

proveio nisso, de atentado,<br />

por não me ausentar de vós,<br />

sem vós e com meu cuidado.<br />

Mas est'alma que eu trazia<br />

porque vós nela morais,<br />

deixa-me cego, e sem guia;<br />

que há por melhor companhia<br />

ficar onde vós ficais.<br />

Assim me vou de meu bem<br />

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4


onde quer a forte estrela,<br />

sem alma, que em si vos tem,<br />

co mal de viver sem ela:<br />

olhai com quem, e sem que<br />

32.<br />

Glosa<br />

a este moto seu (acróstico):<br />

A morte, pois que sou vosso,<br />

não na quero, mas se vem,<br />

[h]a-de ser todo meu bem.<br />

Amor, que em meu pensamento<br />

com tanta fé se fundou,<br />

me tem dado um regimento<br />

que, quando vir meu tormento,<br />

me salve com cujo sou.<br />

E com esta defensão,<br />

com que tudo vencer posso,<br />

diz a causa ao coração:<br />

não tem em mim jurdição<br />

A morte, pois que sou vosso.<br />

Por experimentar um dia<br />

Amor se me achava forte<br />

nesta fé, como dizia,<br />

me convidou com a morte,<br />

só por ver se a tomaria.<br />

E, como ele seja a cousa<br />

onde está todo o meu bem,<br />

respondi-lhe (como quem<br />

quer dizer mais, e não ousa):<br />

não na quero, mas se vem...<br />

Não disse mais, porque então<br />

entendeu quanto me toca;<br />

e se tinha dito o não,<br />

muitas vezes diz a boca<br />

o que nega o coração.<br />

Toda a cousa defendida<br />

em mais estima se tem:<br />

por isso é cousa sabida<br />

que perder por vós a vida<br />

[h]a-de ser todo meu bem.<br />

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5


33.<br />

A B C em motos<br />

AAAA<br />

Ana quisestes que fosse<br />

o vosso nome da pia,<br />

para mor minha agonia.<br />

Apeles, se fora vivo<br />

e a ver-vos alcançara,<br />

por vós retratos tirara.<br />

Aquiles morreu no templo,<br />

contemplando de giolhos;<br />

eu, quando vejo esses olhos.<br />

Artemisa sepultou<br />

a seu irmão e marido;<br />

vós a mim, e a meu sentido.<br />

B<br />

Bem vejo que sois, Senhora,<br />

extremo de formosura,<br />

para minha sepultura.<br />

CC<br />

Cleópatra se matou<br />

vendo morto a seu amante;<br />

e eu por vós, em ser constante.<br />

Cassandra disse de Tróia<br />

que havia ser destruída;<br />

e eu por vós, d'alma e da vida.<br />

DD<br />

Dido morreu por Enéas,<br />

e vós matais quem vos ama;<br />

julgai se sois cruel dama!<br />

Dianira, inocente,<br />

da má morte causadora;<br />

vós, da minha, sabedora.<br />

E<br />

Eurídice foi a causa<br />

de Orfeu ir ao Inferno;<br />

vos, de ser meu mal eterno.<br />

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6


FF<br />

Fedra, só de puro amor,<br />

morreu por seu enteado;<br />

eu, morro de desamado.<br />

Febo vai escurecendo<br />

ante vossa claridade;<br />

e eu, sem ter liberdade.<br />

GG<br />

Galanteia sois, Senhora,<br />

Da formosura extremo;<br />

e eu, perdido Polifemo.<br />

Genebra, que foi rainha,<br />

se perdeu por Lançarote;<br />

e vós, por me dar a morte.<br />

HH<br />

Hércules, uma camisa<br />

de chamas o consumiu;<br />

minha alma, dês que vos viu.<br />

Hébis e Dido morreram<br />

com o rigor da mudança;<br />

eu, vendo vossa esquivança.<br />

JJJJ<br />

Judit, que o duro Holofernes<br />

degolou, se viva fora,<br />

mate lhe déreis, Senhora.<br />

Júlio César conquistou<br />

o mundo com fortaleza;<br />

vós a mim com gentileza.<br />

Júlio César se livrou<br />

dos inimigos com abrolhos;<br />

eu, não posso desses olhos.<br />

Jazia-se o Minotauro<br />

preso no seu labirinto;<br />

mas eu mais preso me sinto.<br />

LL<br />

Leandro se afogou<br />

e foi sua causa Hero;<br />

e a mim o que vos quero.<br />

Leandro se afogou<br />

no mar de sua bonança;<br />

eu, no de vossa esperança.<br />

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7


MM<br />

Minerva dizem que foi,<br />

e Palas, deusas da guerra:<br />

e vós, Senhora, da terra.<br />

Medeia foi mui cruel,<br />

mas não chegou a metade<br />

de vossa grã crueldade.<br />

NN<br />

Narciso o siso perdeu<br />

em vendo a sua figura;<br />

eu, por vossa formosura;<br />

Ninfas enganam mil Faunos<br />

com seu ar e formosura;<br />

e, a mim, vossa figura.<br />

OO<br />

Os olhos choram o dano<br />

que em vos verem sentiram,<br />

mas eu pago o que eles viram.<br />

Orfeu com a doce harpa<br />

venceu o reino de Plutão;<br />

vós a mim, com perfeição.<br />

PP<br />

Páris a Helena roubou,<br />

por quem Tróia foi perdida;<br />

e vós a mim, alma e vida.<br />

Pirro matou Policena,<br />

perfeita em todos sinais;<br />

e vós a mim me matais.<br />

QQ<br />

Quanto mais desejo ver-vos,<br />

menos vos vejo, Senhora:<br />

não vos ver melhor me fora.<br />

Querendo ver a Diana,<br />

Actéon perdeu a vida,<br />

que eu por vós trago perdida.<br />

RR<br />

Remédio nenhum não vejo<br />

que remedeie meu mal;<br />

nem crueza à vossa igual.<br />

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8


Roma o mundo sujeita<br />

com armas, saber, temor<br />

vós a mim só por amor.<br />

S<br />

Sirena, na mor fortuna<br />

com enganos vai cantando;<br />

e vós, sempre a mim matando.<br />

TT<br />

Tisbe morreu por Píramo,<br />

a ambos matou o Amor;<br />

a mim, vosso desfavor.<br />

Tisbe pelo seu amante<br />

morreu com amor sobejo;<br />

mas eu mais morto me vejo.<br />

WW<br />

Vênus, que por mais formosa<br />

lhe deu Páris a maçã,<br />

não foi quanto vós louçã.<br />

Vênus levou a maçã<br />

por vós não serdes, Senhora,<br />

nascida naquela hora.<br />

XX<br />

Xõ vos acabe em graça,<br />

e vos faça piedosa<br />

tanto, quanto sois formosa.<br />

Xantopea tornou atrás<br />

por Apônio a invocar;<br />

e vós não, a meu chamar.<br />

106.<br />

Trovas<br />

a uma cativa com quem andava<br />

de amores na Índia, chamada<br />

Bárbara<br />

Aquela cativa,<br />

que me tem cativo,<br />

porque nela vivo<br />

já não quer que viva.<br />

Eu nunca vi rosa<br />

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9


em suaves molhos,<br />

que para meus olhos<br />

fosse mais formosa.<br />

Nem no campo flores,<br />

nem no céu estrelas,<br />

me parecem belas<br />

como os meus amores.<br />

Rosto singular,<br />

olhos sossegados,<br />

pretos e cansados,<br />

mas não de matar.<br />

uma graça viva,<br />

que neles lhe mora,<br />

para ser senhora<br />

de quem é cativa.<br />

Pretos os cabelos,<br />

onde o povo vão<br />

perde opinião<br />

que os louros são belos.<br />

Pretidão de Amor,<br />

tão doce a figura,<br />

que a neve lhe jura<br />

que trocara a cor.<br />

Leda mansidão<br />

que o siso acompanha;<br />

bem parece estranha,<br />

mas Bárbara não.<br />

Presença serena<br />

que a tormenta amansa;<br />

nela enfim descansa<br />

toda a minha pena.<br />

Esta é a cativa<br />

que me tem cativo,<br />

e, pois nela vivo,<br />

é força que viva.<br />

62.<br />

Cantiga<br />

a Dona Guiomar de Blasfé,<br />

que se queimara no rosto<br />

com uma vela<br />

MOTO:<br />

Amor que todos ofende<br />

teve, Senhora, por gosto,<br />

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10


que sentisse o vosso rosto<br />

o que nas almas acende.<br />

VOLTAS<br />

Aquele rosto que traz<br />

o mundo todo abrasado,<br />

se foi da flama tocado,<br />

foi porque sinta o que faz.<br />

Bem sei que Amor se lhe rende;<br />

porém o seu pres[s]uposto<br />

foi sentir o vosso rosto<br />

o que nas almas acende.<br />

14.<br />

Cantiga<br />

a este meto seu:<br />

Se Helena apartar do<br />

campo seus olhos,<br />

nascerão abrolhos.<br />

VOLTAS<br />

A verdura amena,<br />

gados, que pasceis,<br />

sabei que a deveis<br />

aos olhos de Helena.<br />

Os ventos serena,<br />

faz flores de abrolhos<br />

o ar de seus olhos.<br />

Faz serras floridas,<br />

faz claras as fontes:<br />

se isto faz nos montes,<br />

que fará nas vidas?<br />

Trá-las suspendidas<br />

como ervas em molhos,<br />

na luz de seus olhos.<br />

Os corações prende<br />

com graça inumana<br />

de cada pestana<br />

ü alma lhe pende.<br />

Amor se lhe rende,<br />

e, posto em giolhos,<br />

pasma nos seus olhos<br />

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11


81.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama que lhe virou o rosto<br />

MOTO<br />

Olhos, não vos mereci<br />

que tenhais tal condição:<br />

tão liberais para o chão,<br />

tão irosos para mi.<br />

VOLTAS<br />

Baixos e honestos andais,<br />

por vos negardes a quem<br />

não quer mais que aquele bem<br />

que vós no chão espalhais.<br />

Se pouco vos mereci,<br />

não me estimais mais que o chão,<br />

a quem vós o galardão<br />

dais, e mo negueis a mi.<br />

*011<br />

Campo, que te estendes<br />

Esta redondilha não foi disponibilizado pela<br />

FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional ,<br />

<br />

que realizou a edição digital desta obra.<br />

Agradecemos sua compreensão.<br />

51.<br />

Glosa<br />

a este mato alheio:<br />

Campos bem-aventurados,<br />

tornai-vos agora tristes,<br />

que os dias em que me vistes<br />

alegre são já passados.<br />

Campos cheios de prazer,<br />

vós, que estais reverdecendo,<br />

já me alegrei com vos ver;<br />

agora venho a temer<br />

que entristeçais em me vendo.<br />

E, pois a vista alegrais<br />

dos olhos desesperados,<br />

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12


não quero que me vejais,<br />

para que sempre sejais<br />

campos bem-aventurados.<br />

Porém, se por acidente,<br />

vos pesar de meu tormento,<br />

sabereis que Amor consente<br />

que tudo me descontente,<br />

senão descontentamento.<br />

Por isso vós, arvoredos,<br />

que já nos meus olhos vistes<br />

mais alegrias que medos,<br />

se nos quereis fazer ledos,<br />

tornai-vos agora tristes.<br />

Já me vistes ledo ser,<br />

mas depois que o falso Amor<br />

tão triste me fez viver,<br />

ledos folgo de vos ver,<br />

porque me dobreis a dor.<br />

E se este gosto sobejo<br />

de minha dor me sentistes,<br />

julgai quanto mais desejo<br />

as horas que vos não vejo<br />

que os dias em que me vistes.<br />

O tempo, que é desigual,<br />

de secos, verdes vos tem;<br />

porque em vosso natural<br />

se muda o mal para o bem,<br />

mas o meu para mor mal.<br />

Se perguntais, verdes prados,<br />

pelos tempos diferentes<br />

que de Amor me foram dados,<br />

tristes, aqui são presentes,<br />

alegres, já são passados.<br />

60.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Catarina bem promete;<br />

Era má I como ela mente I<br />

VOLTAS<br />

Caterina é mais formosa<br />

para mim que a luz do dia;<br />

mas mais formosa seria<br />

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13


se não fosse mentirosa.<br />

Hoje a vejo piedosa,<br />

amanhã tão diferente<br />

que sempre cuido que mente.<br />

Caterina me mentiu<br />

muitas vezes, sem ter lei,<br />

mas todas lhe perdoei<br />

por uma só que cumpriu.<br />

Se, como me consentiu<br />

falar, o mais me consente,<br />

nunca mais direi que mente.<br />

Má, mentirosa, malvada,<br />

dizei: para que mentis?<br />

Prometeis, e não cumpris?<br />

Pois sem cumprir, tudo é nada.<br />

Não sois bem aconselhada;<br />

que quem promete, se mente,<br />

o que perde não no sente.<br />

Jurou-me aquela cadela<br />

de vir, pela alma que tinha;<br />

enganou-me; tem a minha;<br />

dá-lhe pouco de perdê-la.<br />

A vida gasto após ela,<br />

porque ma dá se promete,<br />

mas tira-ma quando mente.<br />

Tudo vos consentiria<br />

quanto quisésseis fazer,<br />

se esse vosso prometer<br />

fosse prometer um dia<br />

todo então me desfaria<br />

convosco; e vós, de contente,<br />

zombaríeis de quem mente.<br />

Prometeu-me ontem de vir,<br />

nunca mais me apareceu;<br />

creio que não prometeu<br />

senão só por me mentir.<br />

Faz-me enfim chorar e rir;<br />

rio quando me promete,<br />

mas choro quando me mente.<br />

Mas pois folgais de mentir,<br />

prometendo de me ver,<br />

eu vos deixo o prometer,<br />

deixai-me vós o cumprir:<br />

haveis então de sentir<br />

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14


quanto fica mais contente<br />

o que cumpre que o que mente.<br />

101.<br />

Volta<br />

a D. Antônio, senhor de Cascais,<br />

que prometera a Luís de Camões seis<br />

galinhas recheadas por uma cópia<br />

que Ihe fizera, e Ihe mandava, por<br />

princípio de paga, meia galinha<br />

Cinco galinhas e meia<br />

deve o Senhor de Cascais;<br />

e a meia vinha cheia<br />

de apetites para as mais.<br />

112.<br />

Trovas<br />

mandadas ao Viso-Rei,<br />

com o mato anterior:<br />

Conde, cujo ilustre peito<br />

merece nome de Rei,<br />

do qual muito certo sei<br />

que lhe fica sendo estreito<br />

o cargo de Viso-Rei;<br />

servirdes-vos de ocupar-me,<br />

tanto contra meu planeta,<br />

não foi senão asas dar-me,<br />

com as quais vou a queimar-me,<br />

como faz a borboleta.<br />

E se eu a pena tomar<br />

que tão mal cortada tenho,<br />

será para celebrar<br />

vosso valor singular,<br />

digno de mais alto engenho.<br />

Que, se o meu vos celebrasse,<br />

necessário me seria<br />

que os olhos da águia tomasse,<br />

só para que não cegasse<br />

no sol de vossa valia.<br />

Vossos feitos sublimados,<br />

nas armas dignos de glória,<br />

são no mundo tão soados<br />

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15


que em vós de vossos passados<br />

se ressuscita a memória.<br />

Pois aquele animo estranho,<br />

pronto para todo efeito,<br />

espanta todo o conceito,<br />

como coração tamanho<br />

vos pode caber no peito.<br />

A clemência que as serena<br />

coração tão singular,<br />

se eu nisso pusesse a pena,<br />

seria encerrar o mar<br />

em cova muito pequena<br />

Bem basta, Senhor, que agora<br />

vos sirvais de me ocupar,<br />

que assim fareis aparar<br />

a pena com que alguma hora<br />

vos vereis ao Céu voar.<br />

Assim vos irei louvando,<br />

vós a mim do chão erguendo,<br />

ambos o mundo espantando:<br />

vós, co a espada cortando,<br />

eu, co a pena escrevendo.<br />

117.<br />

Labirinto<br />

do Autor a queixar-se do mundo<br />

Corre sem vela e sem leme<br />

o tempo desordenado,<br />

dum grande vento levado;<br />

o que perigo não teme<br />

é de pouco experimentado.<br />

As rédeas trazem na mão<br />

os que rédeas não tiveram:<br />

vendo quando mal fizeram<br />

a cobiça e ambição<br />

disfarçados se acolheram.<br />

A nau que se vai perder<br />

destruiu mil esperanças;<br />

vejo o mau que vem a ter;<br />

vejo perigos correr<br />

quem não cuida que há mudanças.<br />

Os que nunca sem sela andaram<br />

na sela postos se vêm:<br />

de fazer mal não deixaram;<br />

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16


de demônio hábito têm<br />

os que o justo profanaram.<br />

Que poderá vir a ser<br />

o mal nunca refreado?<br />

Anda, por certo, enganado<br />

aquele que quer valer,<br />

levando o caminho errado.<br />

É para os bons confusão<br />

ver que os maus prevaleceram;<br />

posto que se detiveram<br />

com esta simulação,<br />

sempre castigos tiveram.<br />

Não porque governe o leme<br />

em mar envolto e turbado,<br />

quem tem seu rumo mudado,<br />

se perece, grita e geme<br />

em tempo desordenado.<br />

Terem justo galardão<br />

e dor dos que mereceram,<br />

sempre castigos tiveram<br />

sem nenhuma redenção,<br />

posto que se detiveram.<br />

Na tormenta, se vier,<br />

desespere na bonança<br />

quem manhas não sabe ter.<br />

Sem que lhe valha gemer<br />

verá falsar a balança.<br />

Os que nunca trabalharam,<br />

tendo o que lhes não convém,<br />

se ao inocente enganaram<br />

perderão o eterno bem<br />

se do mal não se apartaram.<br />

71.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga velha:<br />

Falso cavaleiro ingrato,<br />

enganais-me:<br />

vós dizeis que eu vos mato,<br />

e vós matais-me.<br />

VOLTAS<br />

Costumadas artes são<br />

para enganar inocências,<br />

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17


piedosas aparências<br />

sobre isento coração.<br />

Eu vos amo, e vós, ingrato,<br />

magoais-me,<br />

dizendo que eu vos mato,<br />

e vós matais-me.<br />

Vede agora qual de nós<br />

anda mais perto do fim,<br />

que a justiça faz-se em mim<br />

e o pregão diz que sois vós.<br />

Quando mais verdade trato,<br />

levantais-me<br />

que vos desamo e vos mato,<br />

e vós matais-me.<br />

63.<br />

Cantiga<br />

a este mato seu:<br />

Da alma, e de quanto tiver,<br />

quero que me despojeis,<br />

contanto que me deixeis<br />

os olhos para vos ver.<br />

VOLTAS<br />

Cousa que este corpo não tem<br />

que já não tenhais rendida;<br />

depois de tirar-lhe a vida,<br />

tirai-lhe a morte também.<br />

Se mais tenho que perder<br />

mais quero que me leveis,<br />

contento que me deixeis<br />

os olhos para vos ver.<br />

93.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Tende-me mão nele<br />

qu'um real me deve I<br />

VOLTAS<br />

Cum real de amor,<br />

dous de confiança<br />

e três de esperança<br />

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18


me foge o tremor.<br />

Falso desamor<br />

se encerra naquele<br />

qu'um real me deve.<br />

Pediu-mo emprestado,<br />

não lhe quis penhor;<br />

é mau pagador,<br />

tendo-mo aferrado.<br />

Cum cordel atado,<br />

ao Tronco se leve,<br />

qu'um real me deve.<br />

Por esta travessa<br />

se vai acolhendo;<br />

ei-lo vai correndo,<br />

fugindo a grã pressa.<br />

Nesta mão e nessa<br />

o falso s'atreve,<br />

qu'um real me deve.<br />

Comprou-me amor<br />

sem lhe fazer preço:<br />

eu não lhe mereço<br />

dar-me desfavor.<br />

Dá-me tanta dor<br />

que ando após ele<br />

pelo que me deve.<br />

Eu de cá bradando,<br />

ele vai fugindo;<br />

ele sempre rindo,<br />

eu sempre chorando.<br />

{El} de quando em quando<br />

no amor s'atreve,<br />

como que não deve.<br />

A falar verdade,<br />

ele já pagou;<br />

mas inda ficou<br />

devendo ametade.<br />

Minha liberdade<br />

é a que me deve:<br />

só nela se atreve.<br />

26.<br />

Cantiga<br />

à tenção de Miraguarda<br />

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19


MOTO:<br />

Ver, e mais guardar<br />

de ver outro dia,<br />

quem o acabaria ?<br />

VOLTAS<br />

Da lindeza vossa,<br />

Dama, quem a vê,<br />

impossível é<br />

que guardar-se possa.<br />

Se faz tanta mossa<br />

ver-vos um só dia,<br />

quem se guardaria?<br />

Melhor deve ser<br />

neste aventurar,<br />

ver, e não guardar,<br />

que guardar de ver.<br />

Ver, e defender,<br />

muito bom seria;<br />

mas... quem poderia?<br />

15.<br />

Trovas<br />

a uma Dama<br />

Dama d'estranho primor,<br />

se vos for<br />

pesada minha firmeza,<br />

olhai não me deis tristeza,<br />

porque a converto em amor.<br />

Se cuidais de<br />

me matar quando usais<br />

de esquivança,<br />

irei tomar por vingança<br />

amar-vos cada vez mais.<br />

Porém vosso pensamento,<br />

como isento,<br />

seguirá sua tenção<br />

crendo que em tanta afeição<br />

não haja acrescentamento.<br />

Não creiais<br />

que destarte vos façais<br />

invencível;<br />

que Amor sobre o impossível<br />

amostra que pode mais.<br />

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20


Mas já da tenção que sigo<br />

me desdigo;<br />

que, se há tanto poder nele<br />

também vós podeis mais qu'ele<br />

neste mal que usais comigo.<br />

Mas se for<br />

o vosso poder maior<br />

entre nós,<br />

quem poderá mais que vós<br />

se vós podeis mais que Amor?<br />

Depois que, Dama, vos vi,<br />

entendi<br />

que perdera Amor seu preço;<br />

pois o favor que lhe eu peço<br />

vos pede ele para si.<br />

Nem duvido<br />

que não pode, de sentido,<br />

resistir;<br />

pois, em vez de vos ferir,<br />

ficou, de vos ver,<br />

ferido.<br />

Mas, pois vossa vista e tal<br />

em meu mal,<br />

que posso de vós querer?<br />

Que mal poderei valer<br />

onde o mesmo Amor não vai?<br />

Se atentar,<br />

nenhum bem posso esperar;<br />

e oxalá<br />

Que vos<br />

a lembrasse já,<br />

sequer para me matar.<br />

Mas nem com isto creiais<br />

que façais<br />

meus serviços mais pequenos;<br />

porqu'eu, quando espero menos,<br />

sabei que então quero mais.<br />

Nada espero,<br />

mas de mim crede este fero<br />

que, em ser vosso,<br />

vos quero tudo o que posso<br />

e não posso quanto quero.<br />

Só por esta fantasia<br />

merecia<br />

de meus males algum fruito;<br />

que ainda não quero muito<br />

para o muito que queria.<br />

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21


De maneira<br />

que não é, na derradeira,<br />

grande espanto,<br />

que quem, Dama, vos quer tanto<br />

que outro tanto de vós queira.<br />

105.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Quem ora soubesse<br />

onde o Amor nasce,<br />

que o semeasse!<br />

VOLTAS<br />

D'amor e seus danos<br />

me fiz lavrador;<br />

semeava amor<br />

e colhia enganos;<br />

não vi, em meus anos,<br />

homem que apanhasse<br />

o que semeasse.<br />

Vi terra florida<br />

de lindos abrolhos,<br />

lindos para os olhos,<br />

duros para a vida;<br />

mas a rês perdida<br />

que tal erva pace<br />

em forte hora nasce.<br />

Com quanto perdi,<br />

trabalhava em vão;<br />

se semeei grão,<br />

grande dor colhi.<br />

Amor nunca vi<br />

que muito durasse,<br />

que não magoasse.<br />

56.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

A alma que está oferecida a<br />

tudo, nada lhe é forte; assim<br />

passa o bem da vida como<br />

passa o mal da morte<br />

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22


VOLTAS<br />

De maneira me sucede<br />

o que temo, e o que desejo,<br />

que sempre o que temo, vejo,<br />

nunca o que a vontade pede.<br />

Tenho tão oferecida<br />

alma e vida a toda a sorte<br />

que isso me dera da morte<br />

como já me dá da vida.<br />

31.<br />

Glosa<br />

a este moto de Francisco<br />

de Morais:<br />

Triste vida se me ordena,<br />

pois quer vossa condição<br />

que os males, que dais por pena,<br />

me fiquem por galardão,<br />

Depois de sempre sofrer,<br />

Senhora, vossas cruezas,<br />

apesar de meu querer,<br />

me quereis satisfazer<br />

meus serviços com tristezas.<br />

Mas pois embalde resiste<br />

quem vossa vista condena,<br />

prestes estou para a pena,<br />

que, de galardão, tão triste,<br />

triste vida se me ordena.<br />

De contente do mal meu<br />

a tão grande extremo vim,<br />

que consinto em minha fim:<br />

assim que, vos e mais eu,<br />

ambos somos contra mim.<br />

Mas que sofra meu tormento<br />

sem querer mais galardão,<br />

não é fora de razão<br />

que queria meu sofrimento,<br />

pois quer vossa condição.<br />

O mel, que vós dais por bem,<br />

esse, Senhora, é mortal;<br />

que o mal que dais como mal,<br />

em muito menos se tem,<br />

por costume natural.<br />

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23


Mas porém nesta vitória,<br />

que comigo é bem pequena,<br />

a maior dor me condena<br />

a pena, que dais por glória,<br />

que os males, que dais por pena.<br />

Que mor bem me possa vir,<br />

que servir-vos, não o sei.<br />

Pois que mais quero eu pedir,<br />

se quanto mais vos<br />

servir, tanto mais vos deverei?<br />

Se vossos merecimentos<br />

de tão alta estima são,<br />

assaz de favor me dão<br />

em querer que meus tormentos<br />

me fiquem por galardão.<br />

83.<br />

Glosa<br />

a esta Trova de Boscão:<br />

Justa fué mi perdición,<br />

de mis males soy contento;<br />

ya no espero galardón,<br />

pues vuestro merecimiento<br />

satistizo a mi pasiôn.<br />

Después que Amor me formó<br />

todo de amor, cual me veo,<br />

en las leyes que me dió,<br />

el mirar me consintió,<br />

y defendióme el deseo.<br />

Mas el alma, como injusta,<br />

en viendo tal perfección,<br />

dió a al deseo ocasión:<br />

y pues quebré ley tan justa,<br />

justa fué mi perdición.<br />

Mostrándoseme el Amor<br />

más benigno que cruel,<br />

sobre tirano, traidor,<br />

de celos de mi dolor,<br />

quiso tomar parte en él.<br />

Yo, que tan dulce tormento<br />

no quieto dallo, aunque peco,<br />

resisto, y no lo consiento;<br />

mas si me lo toma á trueco,<br />

de mis males soy contento.<br />

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24


Señora, ved lo que ordena<br />

este Amor tan falso nuestro!<br />

Por pagar á costa ajena<br />

manda que de un mirar vuestro<br />

haga el premio de mi pena.<br />

Mas vos, para que veáis<br />

tan engañosa tención,<br />

aunque muerto me sintáis,<br />

no miréis, que, si miráis,<br />

ya no espero galardón.<br />

¿Pues que premio (me diréis)<br />

esperas que será bueno?<br />

Sabed, si no lo sabéis,<br />

que es lo más de lo que peno<br />

lo menos que merecéis.<br />

¿Quién hace al mal tan ufano,<br />

y tan libre al sentimiento?<br />

¿El deseo? No, que es vano.<br />

¿El Amor? No, que es tirano<br />

¿Pues? Vuestro merecimiento.<br />

No pudiendo Amor robarme<br />

de mis tan caros despojos,<br />

aunque fué por más honrarme,<br />

vos sola para matarme<br />

le prestastes vuestros ojos.<br />

Matáronme ambos á dos;<br />

mas á vos con mas razón<br />

debe él la satisfacción;<br />

que á mi por él, y por vos,<br />

satisfizo mi pasión,<br />

35.<br />

Glosa<br />

a este moto:<br />

¿Qué veré que me contente?<br />

Desque una vez miré,<br />

Señora, vuestra beldad,<br />

jamás por mi voluntad<br />

los ojos de vos quité.<br />

Pues sin vos placer no siente<br />

mi vida, ni lo desea,<br />

si no quereis que os vea,<br />

¿qué veré que me contente?<br />

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25


77.<br />

Cantiga<br />

a este moto seu:<br />

Pois me faz dano olhar-vos<br />

não quero, por não perder-vos<br />

que ninguém me veja ver-vos.<br />

VOLTAS<br />

De ver-vos a não vos ver<br />

há dous extremos mortais;<br />

e são eles em si tais<br />

que um por um me faz morrer;<br />

mas antes quero escolher<br />

que possa viver sem ver-vos<br />

minh'alma, por não perder-vos.<br />

Deste tamanho perigo<br />

que remédio posso ter,<br />

se vivo só com vos ver,<br />

se vos não vejo, perigo?<br />

Quero acabar comigo<br />

que ninguém me veja ver-vos,<br />

Senhora, por não perder-vos.<br />

73.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Amor loco amor loco,<br />

yo por vos, y vos por o otro.<br />

VOLTAS<br />

Dióme Amor tormentos dos<br />

para que pene doblado:<br />

uno es verme desamado,<br />

otro es mancilla de vos.<br />

!Ved que ordena Amor en nos!<br />

Porque me vos hacéis loca?<br />

que seáis loca por otro.<br />

Tratáis Amor de manera<br />

que porque así me tratáis<br />

quiere que, pues no me amáis,<br />

que améis otro que no os quiera.<br />

Mas con todo, so no os viera<br />

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26


de todo loca por otro,<br />

con mas razón fuera loco.<br />

Y tan contrario viviendo,<br />

alfin, alfin, conformamos,<br />

pues ambos a dos buscamos<br />

lo que más nos va huyendo.<br />

Voy tras vos siempre siguiendo,<br />

y vos huyendo por otro:<br />

andáis loca, y me hacéis loco.<br />

7.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio<br />

Vós, Senhora, tudo tendes,<br />

senão que tendes os olhos verdes.<br />

VOLTAS<br />

Dotou em vós Natureza<br />

o sumo da perfeição,<br />

que, o que em vós é senão,<br />

é em outras gentileza:<br />

o verde não se despreza,<br />

que, agora que vós o tendes,<br />

são belos os olhos verdes.<br />

Ouro e azul é a melhor<br />

cor por que a gente se perde;<br />

mas, a graça desse verde<br />

tira a graça a toda a cor.<br />

Fica agora sendo a flor<br />

a cor que nos olhos tendes,<br />

porque são vossos... e verdes!<br />

4.<br />

Outra volta à mesma cantiga<br />

Dous tormentos vejo<br />

grandes por extremo;<br />

se vos vejo, temo,<br />

e, se não, desejo.<br />

Quando me despejo<br />

e venho a escolher<br />

se temo o desejo,<br />

desejo o temer.<br />

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27


41.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Da doença em que ardeis eu<br />

fora vossa mezinha,<br />

só com vós serdes minha<br />

VOLTAS<br />

É muito para notar<br />

cura tão bem acertada,<br />

que podereis ser curada<br />

somente com me curar.<br />

e quereis, Dama, trocar,<br />

ambos temos a mezinha:<br />

eu a vossa, e vos a minha.<br />

Olhai que não quer Amor<br />

(porque fiquemos iguais<br />

pois meu ardor não curais,<br />

que se cure vosso ardor.<br />

Eu cá sinto a vossa dor;<br />

e se vós sentis a minha,<br />

dai e tomai a mezinha<br />

12.<br />

Cantiga<br />

a este mato alheio:<br />

Menina dos olhos verdes,<br />

porque me não vedes?<br />

VOLTAS<br />

Eles verdes são,<br />

e têm por usança<br />

na cor, esperança<br />

e nas obras, não.<br />

Vossa condição<br />

não é d'olhos verdes,<br />

porque me não vedes.<br />

Isenções a molhos<br />

que eles dizem terdes,<br />

não são d'olhos verdes,<br />

nem de verdes olhos.<br />

Sirvo de giolhos,<br />

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28


e vós não me credes<br />

porque me não vedes.<br />

Haviam de ser,<br />

porque possa vê-los,<br />

que uns olhos tão belos<br />

não se hão-de esconder;<br />

mas fazeis-me crer<br />

que já não são verdes,<br />

porque me não vedes.<br />

Verdes não o são<br />

no que alcanço deles;<br />

verdes são aqueles<br />

que esperança dão.<br />

Se na condição<br />

está serem verdes,<br />

porque me não vedes?<br />

10.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio.<br />

Verdes são as hortas<br />

com rosas e flores;<br />

moças que as regam<br />

matam-me d'amores.<br />

VOLTAS<br />

Entre estes penedos<br />

que daqui parecem,<br />

verdes ervas crescem,<br />

altos arvoredos.<br />

Vai destes rochedos<br />

água com que as flores<br />

d'outras são regadas<br />

que matam d'amores.<br />

Co a água que cai<br />

daquela espessura,<br />

outra se mistura<br />

que dos olhos sai:<br />

toda junta vai<br />

regar brancas flores,<br />

onde há outros olhos<br />

que matam d'amores.<br />

Celestes jardins,<br />

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29


as flores, estrelas,<br />

horteloas delas<br />

são uns serafins.<br />

Rosas e jasmins<br />

de diversas cores;<br />

Anjos que as regam<br />

matam-me d'amores.<br />

85.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama que perguntou<br />

ao Autor quem o matava<br />

MOTO:<br />

Pergunteis-me quem me mata?<br />

Não quero responder nada,<br />

por vos não fazer culpada.<br />

VOLTAS<br />

E se a pena não me atiça<br />

a dizer pena tão forte,<br />

quero-me entregar à morte,<br />

antes que vós à justiça.<br />

Porém, se tendes cobiça<br />

de vos verdes tão culpada,<br />

direi que não sinto nada.<br />

22.<br />

Trovas<br />

que mandou com um papel<br />

d'alfinetes a uma Dama<br />

Esses alfinetes vão<br />

a vos picarem, não mais,<br />

só porque julgueis então,<br />

o como me picarão<br />

os com que vós me picais.<br />

Mas os que dessas estrelas<br />

vêm, têm pontas tão agudas<br />

que, em que estoutros vão co elas,<br />

podem-vos dar picadelas,<br />

mas os vossos dão feridas.<br />

Assim que, se bem notais,<br />

no como ambos debatem,<br />

nunca podem ser iguais,<br />

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30


que, inda que esses lá maltratem,<br />

estes cá maltratam mais.<br />

Porém, já que Amor consente<br />

em piques tão desiguais,<br />

onde vós sois mais valente,<br />

eu, Senhora, sou contente<br />

do que vos contentar mais.<br />

Venham os alfinetes cá<br />

desses olhos, porque acertem<br />

donde acerto já não há;<br />

porém os meus que vão lá,<br />

só quero que vos apertem.<br />

E deixando o mais passado,<br />

fazei que este papel seja<br />

pregado, digo, empregado,<br />

porque do seu agasalhado<br />

eu mesmo lhe tenho inveja.<br />

E se eles em vós se pregam,<br />

por força os hei-de invejar,<br />

não só porque bem se empregam,<br />

mas porque, Senhora, chegam<br />

onde eu não posso chegar.<br />

Lá vão e lá ficarão<br />

adonde continuamente<br />

a par de si vos terão; e<br />

enfim, lá vos picarão,<br />

eu cá picarei no dente.<br />

115.<br />

Trovas<br />

do Autor, na Índia, conhecidas<br />

pelo nome de Disparates<br />

Este mundo es el camino<br />

adó ay ducientos vaus<br />

ou por onde bons e maus<br />

todos somos del menino.<br />

Mas os maus são de teor<br />

que, dês que mudam a cor,<br />

chamam logo a el-Rei compadre;<br />

e, enfim, dejalhos, mi madre,<br />

que sempre tem um sabor<br />

de Quem torto naeo, tarde se<br />

[endireita.<br />

Deixai a um que se abone,<br />

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31


diz logo de muito sengo:<br />

villas e castillos tengo,<br />

todos a mi mandar sone.<br />

Então eu, que estou de molho,<br />

com a lágrima no olho,<br />

pelo virar do invés,<br />

digo-lhe: tu insanos es,<br />

e por isso não to talho:<br />

pois Honra e proveito não cabem |<br />

[num saco.<br />

Vereis uns, que no seu seio<br />

cuidam que trazem Paris,<br />

e querem com dous ceitis<br />

fender anca pelo meio.<br />

Vereis mancebinho de arte<br />

com espada em talabarte;<br />

não há mais Italiano.<br />

A este direis: — Meu mano,<br />

vós sais galante que farte:<br />

mas Pan y vino anda el camino, que<br />

no mozo garrido.<br />

Outros em cada teatro<br />

por ofício lhe ouvireis<br />

que se matarán con tres<br />

y lo mismo harán com cuatro.<br />

Prezam-se de dar respostas<br />

com palavras bem compostas;<br />

mas, se lhe meteis a mão,<br />

na paz mostram coração,<br />

na guerra mostram as costas:<br />

porque Aqui torce a porca o rabo.<br />

Outros vejo por aqui,<br />

a que se acha mal o fundo,<br />

que andam emendando o mundo<br />

e não se emendam a si.<br />

Estes respondem a quem<br />

deles não entende bem<br />

el dolor que está secreto;<br />

mas porém quem for discreto<br />

responder-lhe há muito bem:<br />

Assim entrou o mundo, assim há-de sair.<br />

Achareis rafeiro velho,<br />

que se quer vender por galgo:<br />

diz que o dinheiro é fidalgo,<br />

que o sangue todo é vermelho.<br />

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32


Se ele mais alto o dissera,<br />

este pelote pusera;<br />

que o seu eco lhe responda,<br />

que seu padre era de Ronda,<br />

y su madre de Antequera<br />

e Quer cobrir o céu cüa joeira.<br />

Fraldas largas, grave aspeto<br />

para senador romano.<br />

Õ que grandíssimo engano!<br />

Que Momo lhe abrisse o peito!<br />

Consciência que sobeja,<br />

siso, com que o mundo reja,<br />

mansidão outro que si;<br />

mas que lobo está em ti,<br />

metido em pele de ovelha!<br />

E sabem-no poucos.<br />

Guardai-vos d'uns meus senhores,<br />

que ainda compram e vendem;<br />

uns que é certo que descendem<br />

da geração de pastores;<br />

mostram-se-vos bons amigos,<br />

mas, se vos vêm em perigos,<br />

escarram-vos nas paredes;<br />

que de fora dormirdes,<br />

irmão, que é tempo de figos;<br />

porque De rabo de porco nunca<br />

bom virote.<br />

[Que dizeis duns, qu'as entranhas<br />

lhe estão ardendo em cobiça?<br />

E, se têm mando, a justiça<br />

fazem de teias de aranhas,<br />

com suas hipocrisias<br />

que são de vós as espias?<br />

Para os pequenos, uns Neros;<br />

para os grandes, tudo feros.<br />

Pois tu, parvo, não sabias<br />

que Lá vão leis, onde querem<br />

cruzados?<br />

Mas tornando a uns enfadonhos<br />

cujas cousas são notórias;<br />

uns, que contam mil histórias<br />

mais desmanchadas que sonhos;<br />

uns, mais parvos que zamboas,<br />

que estudam palavras boas,<br />

[a que ignorância os atiça;]<br />

estes paguem por justiça,<br />

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33


que têm morto mil pessoas,<br />

por vida de quanto quero<br />

Adonde ienen las mentes<br />

uns secretos trovadores,<br />

que fazem cartas d'amores,<br />

de que ficam mui contentes?<br />

Não querem sair à praça;<br />

trazem trova por negaça;<br />

e se lha gabais, que é boa,<br />

diz que é de certa pessoa.<br />

Ora que quereis que faça,<br />

senão ir-me por esse mundo?<br />

Ó tu, como me atarracas,<br />

escudeiro de solia,<br />

com bocais de fidalguia,<br />

trazidos quase com vacas;<br />

importuno a importunar,<br />

morto por desenterrar<br />

parentes que cheiram já!<br />

Voto a tal, que me fará<br />

um destes nunca falar<br />

mais com viva alma.<br />

Uns que falam muito, vi,<br />

de que quisera fugir;<br />

uns que, enfim, sem se sentir,<br />

andam falando entre si;<br />

porfiosos sem razão;<br />

e dês que tomam a mão,<br />

falam sem necessidade;<br />

e se alguma hora é verdade,<br />

deve ser na confissão;<br />

porque Quem não mente... Já me<br />

[entendeis.<br />

Õ vós, quem quer que me ledes,<br />

que haveis de ser avisado,<br />

que dizeis ao namorado<br />

que caça vento com redes?<br />

Jura por vida da Dama,<br />

fala consigo na cama,<br />

passa de noite, e escarra;<br />

por falsete na guitarra<br />

põe sempre: viva quem ama,<br />

porque calça a seu propósito.<br />

Mas deixemos, se quiserdes,<br />

por um pouco as travessuras<br />

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34


porque entre quatro maduras<br />

leveis também cinco verdes.<br />

Deitemo-nos mais ao mar;<br />

e, se algum se arrecear,<br />

passe três ou quatro trovas.<br />

E vós tomais cores novas?<br />

Mas não é para espantar;<br />

que Quem porcos há menos, em cada<br />

[mouta lhe roncam.<br />

Ó vós, que sois secretários<br />

das consciências reais,<br />

que entre os homens estais<br />

por senhores ordinários;<br />

porque não pondes um freio<br />

ao roubar que vai sem meio,<br />

debaixo de bom governo?<br />

Pois um pedaço d'inferno<br />

por pouco dinheiro alheio<br />

se vende a Mouro e a Judeu<br />

Porque a mente, afeiçoada<br />

sempre à real dignidade,<br />

vos faz julgar por bondade<br />

a malícia desculpada.<br />

Move a presença real<br />

uma afeição natural,<br />

que logo inclina ao juiz<br />

a seu favor; e não diz<br />

um rifão muito geral<br />

que O abade donde canta,<br />

[daí janta?<br />

E vós bailais a esse som?<br />

Por isso, gentis pastores,<br />

vos chama a vós mercadores<br />

um que só foi pastor bom.]<br />

2.<br />

Cantiga<br />

A este cantar velho:<br />

Saudade minha,<br />

quando vos veria?<br />

VOLTAS<br />

Este tempo vão,<br />

esta vida escassa,<br />

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35


para todos passa,<br />

só para mim não.<br />

Os dias se vão<br />

sem ver este dia,<br />

quando vos veria?<br />

Vede esta mudança<br />

se está bem perdida,<br />

em tão curta vida<br />

tão longa esperança!<br />

Se este bem se alcança,<br />

tudo sofreria,<br />

quando vos veria.<br />

Saudosa dor,<br />

eu bem vos entendo;<br />

mas não me defendo,<br />

porque ofendo Amor.<br />

Se fôsseis maior,<br />

em maior valia<br />

vos estimaria.<br />

Minha saudade,<br />

caro penhor meu,<br />

a quem direi eu<br />

tamanha verdade?<br />

Na minha vontade,<br />

de noite e de dia<br />

sempre vos teria.<br />

91.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Com razão queixar-me posso<br />

de vós, que mel vos queixais;<br />

pois, Senhora, vos sangrais,<br />

que seja num corpo vosso.<br />

VOLTAS<br />

Eu, para levar a palma<br />

com que ser vosso mereça,<br />

quero que o corpo padeça<br />

por vós, que dele sois alma.<br />

Vós do corpo vos queixais,<br />

eu queixar-me de vós posso,<br />

porque, tendo um corpo vosso,<br />

na minh'alma vos sangrais.<br />

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36


E sem fazer diferença<br />

no que de mim possuís,<br />

pelo pouco que sentis,<br />

dais à minh'alma doença.<br />

Pois que dous aventurais<br />

oh! não seja o dano nosso:<br />

sangre-se este corpo vosso,<br />

porque, minh'alma, vivais.<br />

E inda, se atentardes bem,<br />

seguis medicina errada,<br />

porque para ser sangrada<br />

uma alma sangue não tem.<br />

E pois em mim sarar posso<br />

males, que à minha alma dais,<br />

se inda outra vez vos sangrais,<br />

seja neste corpo vosso.<br />

13.<br />

Cantiga<br />

a este moto [seu?]<br />

Com vossos olhos Gonçalves,<br />

Senhora, cativo tendes<br />

este meu coração Mendes.<br />

VOLTAS<br />

Eu sou boa testemunha<br />

que Amor tem por cousa má<br />

que olhos, que são homens já,<br />

se nomeiem sem alcunha,<br />

pois o coração apunha<br />

e diz: olhos, pois vós tendes,<br />

chamai-me coração Mendes.<br />

48.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

De vuestros ojos centellas,<br />

que encienden pechos de hielo<br />

suben por el aire al cielo,<br />

y en llegando son estrellas.<br />

VOLTAS<br />

Falsos loores os dan,<br />

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37


que essas centellas tan raras<br />

no son nel cielo más claras<br />

que en los ojos donde están.<br />

Porque cuando miro en ellas<br />

de como alumbran el suelo<br />

no sé que serán nel cielo;<br />

mas sé que acá son estrellas.<br />

Ni se puede presumir<br />

que al cielo suban, Senora,<br />

que la lumbre que en vos mora<br />

no tiene más que subir;<br />

mas pienso que dán querellas<br />

a Dios nel octavo cielo,<br />

porque son acá en el suelo,<br />

dos tan hermosas estrellas.<br />

65.<br />

Cantiga<br />

a este mato seu:<br />

Enforquei minha esperança;<br />

mas Amor foi tão madraço<br />

que lhe cortou o baraço.<br />

VOLTAS<br />

Foi a Esperança julgada<br />

por sentença da Ventura,<br />

que, pois me teve à pendura,<br />

que fosse dependurada.<br />

Vem Cupido co a espada,<br />

corta-lhe cerco o baraço.<br />

Cupido, foste madraço!<br />

88.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio<br />

Vosso bem querer, Senhora:<br />

vosso mal melhor me fora.<br />

VOLTAS<br />

Já'gora certo conheço<br />

ser melhor todo tormento<br />

onde o arrependimento<br />

se compra por justo preço.<br />

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38


Enganou-me um bom começo;<br />

mas o fim me diz agora<br />

que o mal melhor me fora.<br />

Quando um bem é tão danoso<br />

que, sendo bem, dá cuidado,<br />

o dano fica obrigado<br />

a ser menos perigoso.<br />

Mas se a mim, por desditoso,<br />

co bem me foi mal, Senhora,<br />

co vosso mal bem me fora.<br />

57.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Esconjuro-te, Domingas,<br />

pois me dás tanto cuidado,<br />

que me digas se te vingas:<br />

viverei menos penado.<br />

VOLTAS<br />

Juravas-me que outras cabras<br />

folgavas de apascentar;<br />

eu, por não me magoar,<br />

fingia que eram palavras.<br />

Agora d'arte te vingas<br />

d'algum meu doudo pecado,<br />

qu'inda [que] queiras, Domingas,<br />

não posso ser enganado.<br />

Qualquer cousa busca o seu;<br />

a fonte vai para o Tejo,<br />

e tu para o teu desejo<br />

por te vingares do meu.<br />

De mi te esqueces, Domingas,<br />

como eu faço do meu gado.<br />

Praza a Deus que, se te vingas,<br />

que moura desesperado.<br />

Na fantasia te pinto;<br />

falo-te, responde o monte;<br />

busco o rio, busco a fonte,<br />

endoideço, e não o sinto.<br />

Domingas! no vale brado;<br />

responde o eco: —Domingas!<br />

E tu ainda te não vingas<br />

de me ver doudo tornado?<br />

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39


53.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Descalça vai para a fonte<br />

Leonor pela verdura;<br />

vai formosa, e não segura.<br />

VOLTAS<br />

Leva na cabeça o pote,<br />

o testo nas mãos de prata,<br />

cinta de fina escarlata,<br />

saindo de chamalote;<br />

traz a vasquinha de cote,<br />

mais branca que a nove pura;<br />

vai formosa, e não segura.<br />

Descobre a touca a garganta,<br />

cabelos d'ouro o trançado,<br />

— fita, de cor d'encarnado,<br />

tão linda que o mundo espanta —;<br />

chave nela graça tanta<br />

que dá graça à formosura;<br />

vai formosa, e não segura.<br />

89.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Irme quieto, madre,<br />

á aquela galera,<br />

con el marinero<br />

á ser marinera.<br />

VOLTAS<br />

Madre, si me fuere,<br />

dó quiera que vó,<br />

no lo quiero yo,<br />

que el Amor lo quiere.<br />

Aquél niño fiero<br />

hace que me muera,<br />

por un marinero<br />

á ser marinera.<br />

Él, que todo puede,<br />

madre, no podrá,<br />

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40


pues el alma vá,<br />

que el cuerpo se quede.<br />

Con él, por quién muero,<br />

voy, porque no muera;<br />

que, si es marinero,<br />

seré marinera.<br />

Es tirana ley,<br />

del niño Señor,<br />

que por un amor<br />

se desenhe un Rey:<br />

pues desta manera<br />

quiere, yo me quiero<br />

por un marinero<br />

hacer marinera.<br />

Decid, ondas, ¿cuándo<br />

vistes vos doncella,<br />

siendo tierna y bella,<br />

andar navegando?<br />

|Pues| más no se espera<br />

daquel niño fiero,<br />

vea yo quién quiero,<br />

sea marinera.<br />

40.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Menina formosa e crua,<br />

bem sei eu<br />

quem deixará de ser seu,<br />

se vós quiséreis ser sua.<br />

VOLTAS<br />

Menina mais que na idade,<br />

se, para me querer bem,<br />

vos não vejo ter vontade,<br />

é porque outrem vo-la tem;<br />

tem-vo-la, e faz-vo-la crua.<br />

Porém eu<br />

já tomara não ser meu,<br />

se vós não fôreis tão sua.<br />

Nos olhos e na feição<br />

vos vi, quando vos olhava,<br />

tanta graça que vos dava<br />

de graça este coração;<br />

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41


não no quisestes de crua,<br />

por ser meu:<br />

se outrem vos dera o seu<br />

pode ser fôreis mais sua.<br />

Menina, tende maneira<br />

que ainda não venha a ser<br />

— pois não quereis quem vos quer, —<br />

que queirais quem vos não queira.<br />

Olhai, não me sejais crua;<br />

que pois eu<br />

quero ser vosso e não meu,<br />

sede vós minha e não sua.<br />

68.<br />

Glosa<br />

a este moto:<br />

Vos tenéis mi corazón.<br />

Mi corazón me han robado,<br />

y Amor, viendo mis enojos,<br />

me dijo: fuéte llevado<br />

por los más hermosos hojos<br />

que desque vivo he mirado.<br />

Gracias sobrenaturales,<br />

te lo tienen en prisión,<br />

y si Amor tiene razón,<br />

Señora, por la señales<br />

vos tenéis mi corazón.<br />

69.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

De dentro tengo mi mal,<br />

que de fuera no hay señal.<br />

VOLTAS<br />

Mi nueva y dulce querella,<br />

es invisible á la gente;<br />

el alma sola la siente,<br />

que el cuerpo no es digno della.<br />

Como la viva centena<br />

se encubra en el pedernal<br />

de dentro tengo mi mal.<br />

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42


86.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Se alma ver-se não pode<br />

onde pensamentos ferem,<br />

que farei para me crerem?<br />

VOLTAS SUAS<br />

N'alma uma só ferida<br />

faz na vida mil sinais;<br />

tanto se descobre mais<br />

quanto é mais escondida.<br />

Se esta dor tão conhecida<br />

me não vêm, porque não querem,<br />

que farei para me crerem?<br />

Se pudesse bem ver<br />

quanto calo, e quanto sento,<br />

depois de tanto tormento<br />

cuidaria alegre ser.<br />

Mas se não me querem crer<br />

olhos que tão mal me ferem,<br />

que farei para me crerem?<br />

100.<br />

Esparsa<br />

ao mesmo assunto<br />

Não posso chegar ao cabo<br />

de tamanho desarranjo,<br />

que sendo vós, Senhora, Anjo,<br />

vos queira tanto o diabo.<br />

Dais manifesto sinal<br />

de minha muita firmeza,<br />

que os diabos querem mal<br />

aos Anjos, por natureza.<br />

43.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Deu, Senhora, por sentença<br />

Amor, que fôsseis doente,<br />

para fazerdes à gente<br />

doce e formosa a doença.<br />

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43


VOLTAS<br />

Não sabendo Amor curar,<br />

foi a doença fazer<br />

formosa, para se ver,<br />

doce para se passar.<br />

Então, vendo a diferença<br />

que há de vós a toda a gente,<br />

mandou que fôsseis doente<br />

para glória da doença.<br />

E digo-vos, de verdade,<br />

que a saúde anda invejosa,<br />

por ver estar tão formosa<br />

em vós essa enfermidade.<br />

Não façais logo detença,<br />

Senhora, em estar doente,<br />

porque adoecerá a gente<br />

com desejos da doença.<br />

Que eu, por ter, formosa Dama,<br />

a doença que em vós vejo,<br />

vos confesso que desejo<br />

de cair convosco em cama.<br />

Se consentis que me vença<br />

este mal, não houve gente<br />

de saúde tão contente<br />

como eu serei da doença.<br />

19.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Menina formosa<br />

dizei: de que vem<br />

serdes rigorosa<br />

a quem vos quer bem?<br />

VOLTAS<br />

Não sei quem assola<br />

vossa formosura;<br />

que quem é tão dura<br />

não pode ser bela.<br />

Vós sereis formosa,<br />

mas a razão tem<br />

que quem é irosa<br />

não parece bem.<br />

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44


A mostra é de bela,<br />

as o obras são cruas;<br />

pois qual destas duas<br />

ficará na sela?<br />

Se ficar irosa<br />

não vos está bem.<br />

fique antes formosa,<br />

que mais força tem.<br />

O Amor, formoso<br />

se pinta e se chama:<br />

se é amor, ama,<br />

se ama, é piedoso.<br />

Diz agora a grosa<br />

que este texto tem,<br />

que quem é formosa<br />

há-de querer bem.<br />

Havei dó, menina,<br />

dessa formosura;<br />

que se a terra é dura,<br />

seca-se a bonina.<br />

Sede piedosa;<br />

não veja ninguém<br />

que, por rigorosa,<br />

percais tanto bem.<br />

55.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Ferro, fogo, frio e calma,<br />

todo o mundo acabarão;<br />

mas nunca vos tirarão,<br />

alma minha da minh'alma!<br />

VOLTAS<br />

Não vos guardei, quando vinha,<br />

em torre, força, ou engenho;<br />

que mais guardada vos tenho<br />

em vós, que sois alma minha.<br />

Ali, nem frio nem calma,<br />

não podem ter jurdição;<br />

na vida sim, porém não<br />

em vós, que tenho por alma.<br />

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45


8.<br />

Cantiga<br />

a este cantar velho:<br />

Sois formosa e tudo tendes,<br />

senão que tendes os olhos verdes.<br />

VOLTAS<br />

Ninguém vos pode tirar<br />

[o] serdes bem assombrada;<br />

mas heis-me de perdoar,<br />

que os olhos não valem nada.<br />

Fostes mal aconselhada<br />

em querer que fossem verdes:<br />

trabalhai de os esconderdes.<br />

A vossa testa é jardim,<br />

onde Amor se desenfada;<br />

é branca e bem talhada,<br />

que parece de marfim.<br />

Assim é; e, quanto a mim,<br />

isso nasce de a terdes<br />

tão perto dos olhos verdes.<br />

Os cabelos desatados<br />

o mesmo Sol escurecem;<br />

senão que, por serem ondados,<br />

algum tanto desmerecem:<br />

mas, à fé, que se parecem<br />

a furto dos olhos verdes,<br />

não vos pese de os terdes.<br />

As pestanas têm mostrado<br />

ser raios que abrasam vidas;<br />

se não foram tão compridas<br />

tudo o mais era pintado:<br />

elas me tinham levado<br />

já sem o vós saberdes,<br />

se não foram os olhos verdes.<br />

O mimo desse carão<br />

nem pôr-lhe os olhos consente:<br />

e ser liso e transparente<br />

rouba todo o coração.<br />

Inda assim achareis gente<br />

que lhe não pese de o terdes;<br />

mas não seja cos olhos verdes.<br />

Esse riso é composto<br />

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46


de quantas graças nasceram;<br />

senão que alguns me disseram<br />

vos faz covinhas no rosto.<br />

Na vontade tenho posto<br />

dar-vos a alma, se quiserdes,<br />

a troco dos olhos verdes.<br />

Nunca se viu, nem se escreve<br />

boca nem graça igual,<br />

se não fora de coral<br />

e os dentes de cor de neve.<br />

Dou-me a Deus, que me leve!<br />

Sofrerei quanto tiverdes,<br />

não me tenhais os olhos verdes.<br />

Essa garganta merece<br />

outras palavras, não minhas,<br />

senão que é feita em rosquinhas<br />

de alfenim, o que parece.<br />

Eu sei quem se ofrece<br />

a tomar tudo o que tendes,<br />

e também os olhos verdes.<br />

Essas mãos são ferropeias,<br />

só o vê-las, enfeitiça;<br />

senão que são alvas e cheias,<br />

e têm a feição roliça,<br />

com que apelais por justiça,<br />

pera com elas prenderdes<br />

quem vê vossos olhos verdes.<br />

A vossa galantaria<br />

matará a quem falardes;<br />

tendes uns desdéns e tardes<br />

que eu logo vos roubaria.<br />

Dou-me a Santa Maria!<br />

Sou cujo de quanto tendes,<br />

também desses olhos verdes.<br />

5.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Pastora da serra,<br />

da serra da Estrela,<br />

perco-me por ela.<br />

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47


VOLTAS<br />

Nos seus olhos belos<br />

tanto Amor se atreve,<br />

que abrasa entre a neve<br />

quantos ousam vê-los.<br />

Não solta os cabelos<br />

Aurora mais bela:<br />

perco-me por ela.<br />

Não teve esta serra<br />

no meio da altura<br />

mais que a formosura<br />

que nela se encerra.<br />

Bem céu fica a terra<br />

que tem tal estrela:<br />

perco-me por ela.<br />

Sendo entre pastores<br />

causa de mil males,<br />

não se ouvem nos vales<br />

senão seus louvores.<br />

Eu só por amores<br />

não sei falar nela:<br />

sei morrer por ela.<br />

De alguns que, sentindo,<br />

seu mal vão mostrando,<br />

se ri, não cuidando<br />

que inda paga, rindo.<br />

Eu, triste, encobrindo<br />

só meus males dela,<br />

perco-me por ela.<br />

Se flores deseja<br />

por ventura delas,<br />

das que colhe, belas,<br />

mil morrem de inveja.<br />

Não há quem não veja<br />

todo o melhor nela:<br />

perco-me por ela.<br />

Se na água corrente<br />

seusolhos inclina,<br />

faz luz cristalina<br />

parar a corrente.<br />

Tal se vê, que sente,<br />

por ver-se, água nela:<br />

perco-me por ela.<br />

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48


64.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Amores de uma casada<br />

que eu vi pelo meu mel.<br />

VOLTAS<br />

Nua casada fui pôr<br />

os olhos, de si senhores;<br />

cuidei que fossem amores,<br />

eles fizeram-se Amor.<br />

Faz-se o desejo maior<br />

donde o remédio não vai<br />

em perigo de meu mal.<br />

Não me pareceu que Amor<br />

pudesse tanto comigo<br />

que donde entra por amigo<br />

se levante por senhor.<br />

Leva-me de dor em dor<br />

e de sinal em sinal,<br />

cada vez para mor mal.<br />

84.<br />

Glosa<br />

a este moto:<br />

Foi-se gastando a esperança,<br />

fui entendendo os enganos;<br />

do mal ficaram meus danos<br />

e do bem só a lembrança.<br />

Nunca em prazeres passados<br />

tive firmeza segura,<br />

antes tão arrebatados<br />

que inda não eram chegados<br />

quando nos levou ventura.<br />

E como quem desconfia<br />

ter em tal sorte mudança,<br />

no meio desta porfia,<br />

de quanto bem pretendia<br />

foi-se gastando a esperança.<br />

Não tive por desatino<br />

a ocasião de perdê-la;<br />

mas foi culpa do destino,<br />

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49


que a ninguém, como mais digno,<br />

Amor pudera sustê-la.<br />

Dei-lhe tudo o que era seu,<br />

não receando tais danos<br />

deste, a quem alma lhe deu;<br />

quando já não era meu,<br />

foi entendendo os enganos.<br />

Fiquei, deste mal sobejo<br />

a quem a causa compete,<br />

dizer-lhe tudo o que vejo,<br />

que Amor aceita o desejo,<br />

mas mente no que promete.<br />

Que, se a mim se me obrigou<br />

a dar-me bens soberanos,<br />

foi engano que ordenou,<br />

que do bem tudo levou,<br />

do mal ficaram meus danos.<br />

E se de dor tão desigual<br />

sofro em mim com padecê-los,<br />

quero de novo sofrê-los;<br />

que, por a causa ser tal,<br />

não determino ofendê-los.<br />

Dobre-se o mal, falte a vida,<br />

cresça a fé, falte a esperança,<br />

pois foi mal agradecida;<br />

fique a dor n'alma imprimida,<br />

e do bem só a lembrança.<br />

29.<br />

Glosa<br />

a este mato alheio:<br />

Trabalhos descansariam<br />

se para vós trabalhasse;<br />

tempos tristes passariam<br />

se alguma hora vos lembrasse.<br />

GLOSA<br />

Nunca o prazer se conhece<br />

senão depois da tormenta;<br />

tão pouco o bem permanece<br />

que, se o descanso floresce,<br />

logo o trabalho arrebenta.<br />

Sempre os bens se lograriam,<br />

mas os males tudo atalham;<br />

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50


porém, já que assim porfiam,<br />

onde descansos trabalham,<br />

trabalhos descansariam.<br />

Qualquer trabalho me fora<br />

por vós grão contentamento;<br />

nada sentira, Senhora,<br />

se vira disto alguma hora<br />

em vós um conhecimento.<br />

Por mal que o mal me tratasse<br />

tudo por bem tomaria;<br />

posto que o corpo cansasse,<br />

a alma descansaria,<br />

se para vós trabalhasse.<br />

Quem vossas cruezas já<br />

sofreu, a tudo se pôs;<br />

costumado ficará;<br />

e muito melhor será,<br />

se trabalhar para vós.<br />

Tristezas esqueceriam,<br />

posto que mal me trataram;<br />

anos não me lembrariam,<br />

que, como estoutros passaram,<br />

tempos tristes passariam.<br />

Se fosse galardoado<br />

este trabalho tão duro,<br />

não vivera magoado;<br />

mas não o foi o passado,<br />

como o será o futuro?<br />

De cansar não cansaria,<br />

se quiséreis que cansasse;<br />

cansar, morrer, fá-lo-ia,<br />

tudo, enfim, me esqueceria,<br />

se alguma hora vos lembrasse.<br />

66.<br />

Cantiga<br />

a este moto seu:<br />

Pus o coração nos olhos<br />

e os olhos pus no chão,<br />

por vingar o coração.<br />

VOLTAS<br />

O coração invejoso<br />

como dos olhos andava,<br />

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51


sempre remoques me dava<br />

que não era o meu mimoso:<br />

venho eu, de piedoso<br />

do senhor meu coração,<br />

boto os meus olhos no chão.<br />

42.<br />

Trovas<br />

a uma dama doente<br />

Olhai que dura sentença<br />

foi Amor dar contra mi:<br />

que, porque em vós me<br />

perdi, em vós me busca a doença.<br />

Claro está<br />

que em vós só me achará;<br />

que em mim, se me vem buscar,<br />

não poderá mais achar<br />

que a forma do que eu fui já.<br />

Que se em vós Amor se pôs,<br />

Senhora, é forçado assim<br />

que o mal, que me busca a mi,<br />

que vos faça mal a vós.<br />

Sem mentir,<br />

Amor me quis destruir<br />

por modo nunca cuidado,<br />

pois vos há-de ser forçado<br />

pesar-vos de vos servir.<br />

Mas sois tão desconhecida,<br />

e são meus males de sorte<br />

que vos ameaça a morte<br />

porque me negais a vida.<br />

Se por boa<br />

tal justiça se pregoa,<br />

quando desta sorte for,<br />

havei vós perdão de Amor,<br />

que a parte já vos perdoa.<br />

Mas o que mais temo, enfim,<br />

é que nesta diferença<br />

que se não torne a doença<br />

se me não tornais a mim.<br />

De verdade,<br />

que já vossa humanidade<br />

de que se queixe não tem;<br />

pois para as almas também<br />

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52


fez Amor enfermidade.<br />

116.<br />

Esparsa<br />

do Autor ao desconcerto do mundo<br />

Os bons vi sempre passar<br />

no mundo graves tormentos;<br />

e, para mais m'espantar,<br />

os maus vi sempre nadar<br />

em mar de contentamentos.<br />

Cuidando alcançar assim<br />

o bem tão mal ordenado,<br />

fui mau, mas fui castigado.<br />

Assim que, só para mim<br />

anda o mundo concertado.<br />

82.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Pequenos contentamentos,<br />

i buscar quem contenteis,<br />

que a mim não me conheceis,<br />

VOLTAS<br />

Os gostos, que tantas dores<br />

fizeram já valer menos,<br />

não os aceita pequenas,<br />

quem nunca teve maiores.<br />

Bem parecem vãos favores,<br />

pois tão tarde me quereis<br />

qu'inda me não conheceis.<br />

Ofereceis-me alegria,<br />

tendo-me já cego e mouco:<br />

é baixeza aceitar pouco<br />

quem tanto vos merecia.<br />

Ide-vos por outra via,<br />

pois o bem que me deveis<br />

nunca mo satisfareis.<br />

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53


52.<br />

Cantiga<br />

a este mato seu:<br />

Descalça vai pela neve:<br />

assim faz quem Amor serve.<br />

VOLTAS<br />

Os privilégios que os reis<br />

não podem dar, pode Amor,<br />

que faz qualquer amador<br />

livre das humanas leis.<br />

Mortes e guerras cruéis,<br />

ferro, frio, fogo e neve,<br />

tudo sofre quem o serve.<br />

Moça formosa despreza<br />

todo o frio e toda a dor<br />

(olhai quanto pode Amor<br />

mais que a própria natureza):<br />

medo nem delicadeza<br />

lhe impede que passe a nove;<br />

assim faz quem Amor serve.<br />

Por mais trabalhos que leve,<br />

a tudo se ofereceria;<br />

passa pela nove fria,<br />

mais alva que a própria neve;<br />

com todo o frio se atreve;<br />

vede em que fogo ferve<br />

o triste que o Amor serve.<br />

49.<br />

Improviso<br />

A umas Senhoras que, jogando<br />

perto de uma janela, Ihes caíram<br />

três paus e deram na cabeça<br />

de Camões:<br />

Para evitar dias maus<br />

da vida triste que passo,<br />

mandem-me dar um baraço,<br />

que já cá tenho três paus.<br />

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54


20.<br />

Trovas<br />

a uma Senhora que estava<br />

rezando por umas contas<br />

Peço-vos que me digais<br />

as orações que rezastes<br />

se são pelos que matastes,<br />

se por vós, que assim matais?<br />

Se são por vós, são perdidas;<br />

que, qual será a oração<br />

que seja satisfação,<br />

Senhora, de tantas vidas?<br />

Que, se vedes quantos vêm<br />

a só vida vos pedir,<br />

como vos há Deus ouvir<br />

se vós não ouvis ninguém?<br />

Não podeis ser perdoada<br />

com mãos a matar tão prontas,<br />

que, se numa trazeis contas,<br />

na outra trazeis espada<br />

Se dizeis que encomendando<br />

os que matastes andais,<br />

se rezais por quem matais,<br />

para que matais rezando?<br />

Que, se na força do orar<br />

levantais as mãos aos<br />

Céus, não as ergueis para Deus,<br />

erguei-las para matar.<br />

E quando os olhos cerrais<br />

toda enlevada na fé,<br />

cerram-se os de quem vos vê,<br />

para nunca verem mais.<br />

Pois se assim forem tratados<br />

os que vos vêm quando orais,<br />

essas horas que rezais<br />

são as horas dos finados.<br />

Pois logo, se sais servida<br />

que tantos mortos não sejam,<br />

não rezeis onde vos vejam,<br />

ou vede para dar vida.<br />

Ou, se quereis escusar<br />

estes males que causastes,<br />

ressuscitai quem matastes,<br />

não tereis por quem rezar.<br />

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55


24.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Vi chorar uns claros olhos<br />

quando deles me partia.<br />

Oh! que mágoa! Oh! que alegria!<br />

VOLTAS<br />

Pelo meu apartamento<br />

se arrasaram todos d'água.<br />

Quem cuidou que em tanta mágoa<br />

achasse contentamento?<br />

Julgue todo entendimento<br />

qual mais sentir se devia:<br />

se esta dor, se esta alegria!<br />

Quando mais perdido estive,<br />

então deu a esta alma minha<br />

na maior mágoa que tinha<br />

o maior gosto que tive.<br />

Assim, se minh'alma vive<br />

foi porque me defendia<br />

desta dor esta alegria.<br />

O bem que Amor me não deu no<br />

tempo que o desejei,<br />

quando dele me apartei<br />

me confessou que era meu.<br />

Agora, que farei eu<br />

se a fortuna me desvia<br />

de lograr esta alegria?<br />

Não sei se foi enganado,<br />

pois me tinha defendido<br />

das iras de mal querido<br />

no mel de ser apartado.<br />

Agora peno dobrado,<br />

achando no fim do dia<br />

o princípio d'alegria.<br />

72.<br />

Cantiga<br />

a este moto sei:<br />

Se de meu mal me contento,<br />

é porque para vós vejo<br />

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56


em todo o mundo desejo<br />

e em ninguém merecimento.<br />

VOLTAS<br />

Para quem vos soube olhar,<br />

tão impossível foi ser<br />

o poder-vos merecer,<br />

como o não vos desejar.<br />

Pois logo a meu pensamento<br />

nenhum remédio lhe vejo,<br />

senão se der o desejo<br />

asas ao merecimento.<br />

92.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia<br />

Perdigão perdeu a pena,<br />

não há mal que lhe não venha:<br />

VOLTAS<br />

Perdigão, que o pensamento<br />

subiu em alto lugar,<br />

perde a pena do voar,<br />

ganha a pena do tormento.<br />

Não tem no ar nem no vento<br />

asas, com que se sustenha:<br />

não há mal que lhe não venha.<br />

Quis voar a uma alta torre<br />

mas achou-se desasado;<br />

e, vendo-se depenado,<br />

de puro penado morre.<br />

Se a queixumes se socorre,<br />

lança no fogo mais lenha:<br />

não há mal que lhe não venha.<br />

27.<br />

Trovas<br />

a umas Senhoras que haviam de ser<br />

terceiras para com uma Dama sua<br />

Pois a tantas perdições,<br />

Senhoras, quereis dar vida,<br />

ditosa seja a ferida<br />

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57


que tem tais cirurgiões!<br />

Pois ventura<br />

me subiu a tanta altura<br />

que me sejais veladoras,<br />

ditosa seja a tristura<br />

que se cura<br />

por vossos rogos, Senhoras!<br />

Ser minha pena mortal,<br />

já que entendeis que é assim,<br />

não quero falar por mim,<br />

que por mim fala meu mal.<br />

Sois formosas,<br />

haveis de ser piedosas,<br />

por ser tudo duma cor;<br />

que pois Amor vos fez rosas<br />

milagrosas,<br />

fazei milagres d'amor.<br />

Pedi a quem vós sabeis<br />

que saiba de meu trabalho,<br />

não pelo que eu nisso valho,<br />

mas pelo que vós valeis.<br />

Que o valer<br />

de vosso alto merecer,<br />

com lho pedir de giolhos,<br />

fará que em meu padecer<br />

possa ver<br />

o poder que têm seus olhos.<br />

Vossa muita formosura<br />

co a sua tanto vai<br />

que me rio de meu mal<br />

quando cuido em quem mo cura.<br />

A meus ais<br />

peço-vos que lhe valhais,<br />

Damas de Amor tão validas,<br />

que nunca tal dor sintais<br />

que queirais<br />

onde não sejais queridas.<br />

103.<br />

Cantiga<br />

a este vilancete pastoril<br />

— Deus te salve, Vasco amigo<br />

Não me falas? Como assim?<br />

— Bofé, Gil, não estava aqui<br />

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58


VOLTAS<br />

Pois onde te hão-de falar,<br />

se não estás onde apareces?<br />

— Se Madanela conheces,<br />

nela me podes achar.<br />

— E como te hão-de ir buscar,<br />

aonde fogem de ti?<br />

— Pois nem eu estou em mi.<br />

Porque te não acharei<br />

em ti, como em Madanela?<br />

— Porque me fui perder nela<br />

o dia que me ganhei.<br />

— Quem tão bem fala, não sei<br />

como anda fora de si.<br />

— Ela fala dentro em mi.<br />

Como estás aqui presente,<br />

se lá tens a alma e a vida?<br />

— Porque é de uma alma perdida<br />

aparecer sempre à gente.<br />

— Se és morto, bem se consente<br />

que todos fujam de ti.<br />

— Eu também fujo de mi.<br />

45.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Minha alma, lembrai-vos dela.<br />

Pois o ver-vos tenho em mais<br />

que mil vidas que me deis,<br />

assim como a que me dais,<br />

meu bem, já que mo negais,<br />

meus olhos, não nos negueis.<br />

E se a tal estado vim,<br />

guiado de minha estrela,<br />

quando houverdes dó de mim,<br />

minha vida, dai-lhe a fim,<br />

minha alma. lembrai-vos dela.<br />

17.<br />

Cantiga<br />

a este cantar velho:<br />

Coifa de beirame<br />

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59


namorou Joane.<br />

VOLTAS<br />

por cousa tão pouca<br />

andas namorado?<br />

Amas a toucado<br />

e não quem o touca?<br />

Ando cega e louca<br />

por ti, meu Joane;<br />

tu, pelo beirame.<br />

Amas o vestido?<br />

És falso amador.<br />

Tu não vês que Amor<br />

se pinta despido?<br />

Cego e perdido<br />

andas por beirame,<br />

e eu por ti, Joane.<br />

Se alguém te vir,<br />

que dirá de ti?<br />

Que deixas a mi<br />

por cousa tão vil!<br />

Terá bem que rir,<br />

pois amas beirame,<br />

e a mim não, Joane.<br />

Quem ama assim<br />

há-de ser amada;<br />

ando maltratada<br />

de amores, por ti.<br />

Ama-me a mi,<br />

e deixa o beirame,<br />

que é razão, Joane!<br />

A todos encanta<br />

tua parvoíce;<br />

de tua doidice<br />

Gonçalo se espanta<br />

e zombando canta:<br />

— Coifa de beirame<br />

namorou Joane!<br />

Eu não sei que viste<br />

neste meu toucado,<br />

que tão namorado<br />

dele te sentiste.<br />

Não te veja triste:<br />

ama-me, Joane,<br />

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60


e deixa o beirame!<br />

(Joane gemia,<br />

Maria chorava,<br />

assim lamentava<br />

o mal que sentia;<br />

os olhos feria,<br />

e não o beirame<br />

que matou Joane.)<br />

Não sei de que vem<br />

Amares vestido;<br />

que o mesmo Cupido<br />

vestido não tem.<br />

Sabes de que vem<br />

amares beirame?<br />

Vem de ser Joane.<br />

59.<br />

Glosa<br />

ao mesmo moto<br />

Posible es a mi cuidado<br />

poderme hacer satisfecho,<br />

si fuera posible al hado<br />

hacer no echo lo echo,<br />

y futuro lo pasado.<br />

Si olvido pudiera haber,<br />

fuera remedio sufrible;<br />

mas ya que no puede ser,<br />

para contento me hacer,<br />

todo es poco lo posible.<br />

54.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Na fonte está Leonor<br />

lavando a talha e chorando,<br />

as amigas perguntando:<br />

vistes lá o meu amor?<br />

VOLTAS<br />

Posto o pensamento nele,<br />

porque a tudo o Amor a obriga,<br />

cantava, mas a cantiga<br />

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61


eram suspiros por ele.<br />

Nisto estava Leonor<br />

o seu desejo enganando,<br />

às amigas perguntando:<br />

vistes lá o meu amor?<br />

O rosto sobre uma mão,<br />

os olhos no chão pregados,<br />

que, do chorar já cansados,<br />

algum descanso lhe dão.<br />

Desta sorte Leonor<br />

suspende de quando em quando<br />

sua dor; e, em si tornando,<br />

mais pesada sente a dor.<br />

Não deita dos olhos água,<br />

que não quer que a dor se abrande<br />

Amor, porque em mágoa grande<br />

seca as lágrimas a mágoa.<br />

Que, depois de seu amor<br />

soube novas, perguntando,<br />

d'improviso a vi chorando.<br />

Olhai que extremos de dor!<br />

30.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Ojos, herido me habéis,<br />

acabad ya de matarme;<br />

mas, muerto, volve á mirarme,<br />

por que me resucitéis.<br />

VOLTAS<br />

Pues me distes tal herida,<br />

con gana de darme muerte,<br />

el morir me es dulce suerte,<br />

pues con morir me dais vida.<br />

Ojos, ¿qué os detenéis?<br />

Acabad ya de matarme;<br />

mas muerto volved á mirarme,<br />

por que me resuscitéis.<br />

La llaga cierto ya es mía,<br />

aunque, ojos, vos no queráis;<br />

mas si la muerte me dais,<br />

el morir me es alegría.<br />

Y así digo que acabéis,<br />

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62


ojos, ya de matarme;<br />

mas muerto, volved á mirarme,<br />

por que me resucitéis.<br />

23.<br />

Trovas<br />

a uma Dama que lhe jurara<br />

sempre por seus olhos<br />

Quando me quer enganar<br />

a minha bela perjura,<br />

para mais me confirmar<br />

o que quer certificar,<br />

pelos seus olhos mo jura.<br />

Como meu contentamento<br />

todo se rege por eles,<br />

imagina o pensamento<br />

que se faz agravo a eles<br />

não crer tão grão juramento.<br />

Porém, como em casos tais<br />

ando já visto e corrente,<br />

sem outros certos sinais,<br />

quanto me ela jura mais<br />

tanto mais cuido que mente.<br />

Então, vendo-lhe ofender<br />

uns tais olhos como aqueles,<br />

deixo-me antes tudo crer,<br />

só pela não constranger<br />

a jurar falso por eles.<br />

3.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Vida da minh'alma<br />

não vos posso ver:<br />

isto não é vida<br />

para se sofrer!<br />

VOLTAS<br />

Quando vos eu via,<br />

esse bem lograva,<br />

a vida estimava;<br />

mais então vivia,<br />

porque vos servia<br />

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63


só para vos ver.<br />

Já que vos não vejo,<br />

para que é viver?<br />

Vivo sem razão,<br />

porque em minha dor<br />

não a pôs Amor,<br />

que inimigos são.<br />

Mui grande traição<br />

me obriga a fazer<br />

que viva, Senhora,<br />

sem vos poder ver.<br />

Não me atrevo já,<br />

minha tão querida,<br />

a chamar-vos vida,<br />

porque a tenho má.<br />

Ninguém cuidará,<br />

que isto pode ser,<br />

sendo-me vós vida,<br />

não poder viver!<br />

109.<br />

Trovas<br />

que o Autor mandou da cadeia<br />

em que o tinha embargado por<br />

uma dívida Miguel Roiz, Fios-Secos<br />

de alcunha, que se embarcava para fora,<br />

ao Conde do Redondo, Viso-Rei, pedindo-lhe<br />

o fizesse desembargar<br />

Que diabo há tão danado<br />

que não tema a cutilada<br />

dos fios secos da espada<br />

do fero Miguel armado?<br />

Pois se tanto um golpe seu<br />

soa na infernal cadeia,<br />

do que o demônio arreceia,<br />

como não fugirei eu?<br />

Com razão lhe fugiria,<br />

se contra ele, e contra tudo,<br />

não tivesse um forte escudo<br />

só em Vossa Senhoria.<br />

Portanto, Senhor, proveja,<br />

pois me tem ao remo atado,<br />

que, antes que seja embarcado,<br />

eu desembargado seja.<br />

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64


108.<br />

Esparsa<br />

a um fidalgo, na Índia, que lhe<br />

tardava com uma camisa galante,<br />

que lhe prometera<br />

Quem no mundo quiser ser<br />

havido por singular,<br />

para mais se engrandecer<br />

há-de trazer sempre o dar<br />

nas ancas do prometer.<br />

E já que vossa mercê<br />

largueza tem por divisa,<br />

como todo mundo vê,<br />

há mister que tanto dê<br />

que venha [a] dar a camisa.<br />

36.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Quem se confia em olhos,<br />

nas meninas deles vê,<br />

que meninas não têm fé.<br />

VOLTAS<br />

Quem põe suas confianças<br />

em meninas sem assento,<br />

ofereça o sofrimento<br />

a duzentas mil mudanças.<br />

Mostram no ar esperanças,<br />

mas em seus olhos se vê<br />

como não têm n'alma fé.<br />

Enganam ao parecer,<br />

porque, no caso de amar,<br />

são mulheres no matar<br />

e meninas no querer.<br />

Quem em seus olhos se crer,<br />

cem mil graças neles vê;<br />

vê-las, sim, mas não ter fé.<br />

Amostram-vos num momento<br />

favores assim a molhos;<br />

mas na mudança dos olhos<br />

se lhe muda o pensamento.<br />

Em nada têm assento,<br />

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65


e o que mais neles se vê<br />

é formosura sem fé.<br />

99.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama de apelido Anjos,<br />

que lhe chamou diabo<br />

MOTO:<br />

Senhora, pois me chamais<br />

tão sem razão tão mau nome,<br />

inda o diabo vos tome,<br />

VOLTAS<br />

Quem quer que viu, ou que leu,<br />

terá por novo e moderno<br />

ter quem vive no Inferno<br />

o pensamento no Céu.<br />

Mas se a vós vos pareceu<br />

que me estava bem tal nome,<br />

esse diabo vos tome.<br />

Perdido mais que ninguém<br />

confesso, Senhora, ser;<br />

mas diabo não quer<br />

aos Anjos tamanho bem.<br />

Pois logo não me convém,<br />

ou se me convém tal nome<br />

será para que vos tome.<br />

Se vos benzeis com cautela,<br />

como de Anjo, e não de luz,<br />

mal pode fugir da Cruz<br />

quem vós tendes posto nela.<br />

Mas já que foi minha estrela,<br />

ser diabo, e ter tal nome,<br />

guardai-vos, que vos não tome<br />

Já que chegais tanto ao cabo,<br />

co as mãos postas aos Céus,<br />

vou sempre pedindo a Deus<br />

que vos leve este diabo.<br />

Eu, Senhora, não me gabo;<br />

mas, pois que me dais tal nome,<br />

tomo-o, para que vos tome.<br />

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66


79.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama mal empregada<br />

MOTO SEU:<br />

Menina, não sei dizer,<br />

vendo vos tão acabada,<br />

quão triste estou por vos ver<br />

formosa e mal empregada.<br />

VOLTAS<br />

Quem tão mal vos empregou,<br />

pouco de mi se doía,<br />

pois não viu quanto me ia<br />

em tirar-me o que tirou.<br />

Obriga o primor que tem<br />

lindeza tão extremada<br />

que digam quantos a vêm:<br />

— Fermosa e mal empregada!<br />

Tomastes da formosura<br />

quanto dela desejastes,<br />

e com ela me guardastes<br />

para tão triste ventura.<br />

Matáveis sendo solteira,<br />

matais agora em casada;<br />

matais de toda a maneira;<br />

Fermosa e mal empregada!<br />

80.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Há um bem que chega e foge;<br />

e chama-se este bem tal,<br />

ter bem para sentir mal.<br />

VOLTAS<br />

Quem viveu sempre num ser,<br />

inda que seja em pobreza,<br />

não viu o bem da riqueza,<br />

nem o mal de empobrecer:<br />

não ganhou para perder;<br />

mas ganhou com vida igual<br />

não ter bem nem sentir mal.<br />

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67


039.<br />

Glosa<br />

ao mesmo moto<br />

Querendo Amor esconder-vos<br />

em parte que vos não visse,<br />

com extremos de querer-vos<br />

cegou-me os olhos com ver-vos,<br />

levou-os, sem que vos visse.<br />

Eu, cego, mas atinado,<br />

quando vi que vos não via,<br />

do mesmo Amor indignado,<br />

já vedes qual ficaria<br />

sem vós e com meu cuidado.<br />

006.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama,<br />

em forma de carta<br />

Querendo escrever um dia<br />

o mal que tanto estimei,<br />

cuidando no que poria,<br />

vi Amor que me dizia:<br />

escreve, que eu notarei.<br />

E como para se ler<br />

não era história pequena<br />

a que de mim quis fazer,<br />

das asas tirou a pena<br />

com que me fez escrever.<br />

E, logo como a tirou,<br />

me disse: Aviva os espíritos,<br />

que, pois em teu favor sou,<br />

esta pena que te dou<br />

fará voar teus escritos.<br />

E dando-me a padecer<br />

tudo o que quis que pusesse,<br />

pude, enfim, dele dizer<br />

que me deu com que escrevesse<br />

o que me deu a escrever.<br />

Eu, qu' este engano entendi,<br />

disse-lhe: — que escreverei?<br />

Respondeu, dizendo assim:<br />

— Altos afeitos de ti,<br />

e daquela a quem te dei.<br />

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68


E já que te manifesto<br />

todas minhas estranhezas,<br />

escreve, pois que te prezas,<br />

milagres dum claro gesto<br />

e, de quem o viu, tristezas.<br />

Ah! Senhora, em quem se apura,<br />

a fé de meu pensamento!<br />

Escutai e estai a tento,<br />

que, com vossa formosura,<br />

iguala Amor meu tormento.<br />

E, posto que tão remota<br />

estejais de me escutar,<br />

por me não remediar,<br />

ouvi, que, pois Amor nota,<br />

milagres se hão-de notar:<br />

Nota<br />

Escrevem vários autores,<br />

que, junto da clara fonte<br />

do Ganges, os moradores<br />

vivem do cheiro das flores<br />

que nascem naquele monte.<br />

Se os sentidos podem dar<br />

mantimento ao viver,<br />

não é, logo, d'espantar,<br />

se estes vivem de cheirar,<br />

que viv' eu só de vos ver.<br />

uma árvore se conhece,<br />

que, na geral alegria,<br />

ela só tanto entristece, que,<br />

como é noite, floresce,<br />

e perde as flores de dia.<br />

Eu, que em ver-vos sinto o preço<br />

que em vossa vista consiste,<br />

em a vendo me entristeço,<br />

porque sei que não mereço<br />

a glória de viver triste.<br />

Um rei de grande poder<br />

com veneno foi criado,<br />

porque, sendo costumado,<br />

não lhe pudesse empecer<br />

se depois lhe fosse dado.<br />

Eu, que criei de pequena<br />

a vida a quanto padece,<br />

desta sorte me acontece,<br />

que não me faz mal a pena<br />

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69


senão quando me falece.<br />

Quem da doença real,<br />

de longe, enfermo se sente,<br />

por segredo natural<br />

fica são, vendo somente<br />

um volátil animal.<br />

Do mal que Amor em mim cria,<br />

quando aquela Fênix vejo,<br />

são de todo ficaria;<br />

mas fica-me hidropisia,<br />

que quanto mais, mais desejo.<br />

Da bívora é verdadeiro<br />

se a consorte vai buscar,<br />

que, em se querendo juntar,<br />

deixa a peçonha primeiro,<br />

porque lhe impede o gerar.<br />

Assim quando me apresento<br />

à vossa vista inumana,<br />

a peçonha do tormento<br />

deixo a parte, porque dana<br />

tamanho contentamento.<br />

Querendo Amor sustentar-se,<br />

fez uma vontade esquiva<br />

d'uma estátua namorar-se;<br />

depois, por manifestar-se,<br />

converteu-a em mulher viva.<br />

De quem me irei queixando,<br />

ou quem direi que m'engana,<br />

se vou seguindo e buscando<br />

uma imagem que, de humana,<br />

em pedra se vai tornando?<br />

De uma fonte se sabia,<br />

da qual certo se provava<br />

que, quem sobr' ela jurava,<br />

se falsidade dizia,<br />

dos olhos logo cegava.<br />

Vós, que minha liberdade,<br />

Senhora, tiranizais,<br />

injustamente mandais<br />

quando vos falo verdade<br />

que vos não possa ver mais.<br />

Da palma se escreve e canta<br />

ser tão dura e tão forçosa,<br />

que peso não a quebranta,<br />

mas antes, de presunçosa,<br />

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70


com ele mais se levanta.<br />

Co peso do mal que dais,<br />

a constância que em mim vejo<br />

não somente ma dobrais,<br />

mas dobra-se meu desejo,<br />

com que então vos quero mais.<br />

Se alguém os olhos quiser<br />

as andorinhas quebrar,<br />

logo a mãe, sem se deter,<br />

uma erva lhe vai buscar,<br />

que lhe faz outros nascer.<br />

Eu, que os olhos tenho a tento<br />

nos vossos, que estrelas são,<br />

cegam-se os do entendimento,<br />

mas nascem-me os da razão<br />

de folgar com meu tormento.<br />

Lá para onde o sol sai<br />

descobrimos, navegando,<br />

um novo rio admirando,<br />

que o lenho que nele cai,<br />

em pedra se vai tornando.<br />

Não se espantem disto as gentes;<br />

mais razão será que espante<br />

um coração tão possante<br />

que, com lágrimas ardentes,<br />

se converte em diamante.<br />

Pode um mudo nadador<br />

na linha e cana influir<br />

tão venenoso vigor<br />

que faz mais não se bulir<br />

o braço do pescador.<br />

Se começam de beber<br />

deste veneno excelente<br />

meus olhos, sem se deter,<br />

não se sanem mais mover<br />

a nada que se apresente.<br />

Isto são claros sinais<br />

do muito que em mim podeis:<br />

nem podeis desejar mais;<br />

que, se ver-vos desejais,<br />

em mim claro vos vereis.<br />

E quereis ver a que fim<br />

em mim tanto bem se pôs?<br />

Porque quis Amor assim<br />

que, por vos verdes a vós,<br />

também me vísseis a mim.<br />

Dos males que me ordenais,<br />

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71


que inda tenho por pequenos,<br />

sabei, se nos escutais,<br />

que já não sei dizer mais,<br />

nem vós podeis saber menos.<br />

Mas já que a tanto tormento<br />

não se acha quem resista,<br />

eu, Senhora, me contento<br />

de terdes meu sofrimento<br />

por alvo de vossa vista.<br />

Quantos contrários consente<br />

Amor, por mais padecer!<br />

Que aquela vista excelente,<br />

que me faz viver contente,<br />

me faça tão triste ser!<br />

Mas dou este entendimento<br />

ao mal que tanto me ofende,<br />

como na vela se entende<br />

que, se apaga co vento,<br />

co mesmo vento se acende.<br />

Experimentou-se alguma hora<br />

da ave que chamam Camão,<br />

que, se da casa onde mora<br />

vê adúltera a senhora,<br />

morre de pura paixão.<br />

A dor é tão sem medida,<br />

que remédio lhe não vai;<br />

mas, oh ditoso animal,<br />

que pode perder a vida<br />

quando vê tamanho mal!<br />

Nos gostos de vos querer<br />

estava agora enlevado,<br />

se não fora salteado<br />

das lembranças de temer<br />

ser por outrem desamado.<br />

Estas suspeitas tão frias,<br />

com que o pensamento sonha,<br />

são assim como as Harpias,<br />

que as mais doces iguarias,<br />

vão converter em peçonha.<br />

Faz-me este mal infinito<br />

não poder já mais dizer,<br />

por não vir a corromper<br />

os gostos que tenho escrito<br />

cos males que hei-de escrever.<br />

Não quero que se apregoe<br />

mal tanto para encobrir,<br />

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72


porque, enquanto aqui se ouvir,<br />

nenhuma outra coisa soe<br />

que a glória de vos servir.<br />

107.<br />

Cantiga<br />

a uma mulher que foi açoutada<br />

por um homem de apelido<br />

Quaresma, na Índia<br />

MOTO:<br />

Não estejais agravada,<br />

senão se for de vós mesma;<br />

porque a mulher que é errada<br />

com razão pela Coresma<br />

deve ser disciplinada.<br />

VOLTAS<br />

Quererdes profano amor<br />

em Coresma, é consciência:<br />

açoutes e penitência<br />

vos está muito melhor.<br />

Não fiqueis disto afrontada,<br />

pois a culpa é vossa mesma;<br />

que mulher que é tão malvada<br />

é bem que pela Coresma<br />

seja bem disciplinada.<br />

Se a penitência vos vai,<br />

mui bem açoutada estais;<br />

pois por Coresma pagais<br />

vossos vícios do carnal.<br />

Não torneis a ser errada,<br />

nem condeneis a vós mesma,<br />

pois estais já emendada;<br />

e não sereis por Coresma<br />

outra vez disciplinada.<br />

090.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama a quem<br />

não podia encontrar<br />

MOTO:<br />

Qual terá culpa de nós<br />

neste mal que todo é meu?<br />

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73


quando vindes, não vou eu,<br />

quando vou, não vindes vós<br />

VOLTAS<br />

Reinando Amor em dous peitos,<br />

tece tantas falsidades,<br />

que, de conformes vontades,<br />

faz desconformes efeitos.<br />

Igualmente vive em nós;<br />

mas, por desconcerto seu,<br />

vos leva, se venho eu,<br />

me leva, se vindes vós.<br />

061.<br />

Cantiga<br />

a uma Dama que estava<br />

vestida de dó<br />

MOTO:<br />

De atormentado e perdido,<br />

já vos não peço senão<br />

que tenhais no coração<br />

o que tendes no vestido.<br />

VOLTAS<br />

Se de dó vestida andais<br />

por quem já vida não tem,<br />

porque não no haveis de quem<br />

vós tantas vezes matais?<br />

Que brado sem ser ouvido,<br />

e nunca vejo senão<br />

cruezas no coração,<br />

e grande dó no vestido.<br />

018.<br />

Trovas<br />

a uma Senhora a quem deram um<br />

pedaço de cetim amarelo pera uma<br />

filha de quem se tinha suspeita<br />

Se derivais da verdade<br />

esta palavra Sitim,<br />

achareis, sem falsidade,<br />

que após o Si, tem o Tim,<br />

que tine em toda a cidade.<br />

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74


Bem vejo que me entendeis;<br />

mas porque não fale em vão,<br />

sabei que a esta nação<br />

tanto que o Si concedeis<br />

o Tim logo está na mão.<br />

E quem da fama se arreda,<br />

que tudo vai descobrir,<br />

deve sempre de fugir<br />

de sitins, porque da seda<br />

seu natural é rugir.<br />

Mas pano fino e delgado,<br />

qual raxa e outros assim,<br />

dura, aquenta e é calado,<br />

amoroso, e dá de si,<br />

mais que sitim, nem borcado.<br />

Mas estes, que sedas são<br />

com quem s'enganam mil Damas,<br />

mais vos tomam do que dão;<br />

prometem, mas não darão<br />

senão nódoas para as famas.<br />

E se não me quereis crer,<br />

ou tomais outro caminho,<br />

por exemplo o podeis ver,<br />

quando lá virdes arder<br />

a casa de algum vizinho.<br />

Ó feminina simpleza,<br />

donde estão culpas a pares,<br />

que por um Dom de nobreza,<br />

deixam deões de natureza,<br />

mais altos e singulares<br />

— um dom que anda enxertado<br />

no nome, e nas obras não! —<br />

(Falo como experimentado;<br />

que, sitim desta feição,<br />

eu tenho muito cortado.)<br />

Dizem-me que era amarelo;<br />

a quem assim o quis dar,<br />

só para me Deus vingar,<br />

se vem à mão, amarelo,<br />

o que eu não posso cuidar.<br />

Porque quem sabe viver<br />

por estas artes manhosas<br />

(isto bem pode não ser),<br />

dá a meninas formosas<br />

somente podias fazer.<br />

Quem vos isto diz, Senhora,<br />

serviu nas vossas armadas<br />

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75


muito, mas anda já fora;<br />

e pode ser que inda agora<br />

traz abertas as frechadas.<br />

E, posto que desfavores<br />

o tiram de servidor,<br />

quer-vos ventura melhor;<br />

que dos antigos amores<br />

inda lhe fica este amor.<br />

021.<br />

Cantiga<br />

a este mato alheio:<br />

Se me levam águas<br />

nos olhos as levo.<br />

VOLTAS<br />

Se de saudade<br />

morrerei ou não,<br />

meus olhos dirão<br />

de mim a verdade.<br />

Por eles me atrevo<br />

a lançar as águas<br />

que mostrem as mágoas<br />

que nesta alma levo.<br />

As águas que em vão<br />

me fazem chorar,<br />

se elas são do mar<br />

estas d'amar são.<br />

Por elas relevo<br />

todas minhas mágoas;<br />

que, se força d'águas<br />

me leva, eu as levo.<br />

Todas me entristecem,<br />

todas são salgadas;<br />

porém as choradas<br />

doces me parecem.<br />

Correi, doces águas,<br />

que, se em vós me enlevo,<br />

não doem as mágoas<br />

que no peito levo!<br />

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76


076.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

Vede bem se nos meus dias<br />

os desgostos vi sobejos,<br />

pois tenho medo a desejos<br />

e quero mal a alegrias.<br />

VOLTAS<br />

Se desejos fui já ter,<br />

serviram de atormentar-me;<br />

se algum pôde alegrar-me,<br />

quis-me antes entristecer.<br />

Passei anos, passei dias,<br />

em desgostos tão sobejas<br />

que, só por não ter desejos,<br />

perderei mil alegrias.<br />

087.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga alheia:<br />

Se me desta terra for,<br />

eu vos levarei, amor.<br />

VOLTAS<br />

Se me for, e vos deixar<br />

(ponho, por caso, que possa),<br />

esta alma minha, que é vossa,<br />

convosco me há-de ficar.<br />

Assim que, só por levar<br />

a minh'alma, se me for,<br />

vos levarei, meu amor.<br />

Que mal pode maltratar-me<br />

que convosco seja mal?<br />

Ou que bem pode ser tal<br />

que sem vós possa alegrar-me?<br />

O mal não pode enojar-me,<br />

o bem me será maior<br />

se vos levar, meu amor.<br />

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77


097.<br />

Esparsa<br />

a uma Dama por quem penava<br />

Se na alma e no pensamento<br />

por vosso me manifesto,<br />

não me pesa do que sento;<br />

que, se não sofrer tormento,<br />

faço ofensa a vosso gesto.<br />

E, pois quanto Amor ordena<br />

e quanto esta alma deseja<br />

tudo à morte me condena,<br />

não quero senão que seja<br />

tudo pena, pena, pena.<br />

113.<br />

Trovas<br />

que Luís de Camões fez, na Índia,<br />

a certos fidalgos a quem convidara para cear<br />

A primeira iguaria foi posta<br />

a Casco de Ataíde. entre dous pratos,<br />

e diria assim:<br />

Se não quereis padecer<br />

uma ou duas horas tristes,<br />

sabeis que haveis de fazer?<br />

Volveros por do venistes,<br />

que aqui não há que comer.<br />

E posto que aqui leiais<br />

trovinha que vos enleia,<br />

corrido não estejais;<br />

porque por mais que corrais<br />

não heis-de alcançar a ceia.<br />

A segunda, a D. Franeisco d'Almeida:<br />

Heliogábalo zombava<br />

das pessoas convidadas,<br />

e de sorte as enganava<br />

que as iguarias que dava<br />

vinham nos pratos pintadas.<br />

Não temais tal travessura,<br />

pois já não pode ser nova;<br />

que a ceia está mui segura<br />

de vos não vir em pintura,<br />

mas há-de vir toda em trova.<br />

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78


A terceira, a Heitor da Silveira:<br />

Ceia não a papareis;<br />

contudo, porque não minta,<br />

para beber achareis,<br />

não Caparica, mas tinta,<br />

e mil cousas que papeis.<br />

E vós torceis o focinho,<br />

com esta anfibologia?<br />

Pois sabei que a Poesia<br />

vos dá aqui tinta por vinho,<br />

e papéis por iguaria.<br />

A quarta foi posta a João Lopes Leitão,<br />

a quem o Autor mandou um moto,<br />

que vai adiante, sobre uma peça<br />

de cacha, que este mandas ü a da Dama:<br />

Porque os que vos convidaram<br />

vosso estômago não danem,<br />

por justa causa ordenaram,<br />

se trovas vos enganaram,<br />

que trovas vos desenganem.<br />

Vós tereis isto por tacha,<br />

converter tudo em trovar;<br />

pois se me virdes zombar,<br />

não cuideis, Senhor, que é cacha,<br />

que aqui não há cachar.<br />

Finge que, responde João Lopes Leitão:<br />

Pesar ora não de São!<br />

Eu juro pelo Céu bento<br />

se de comer me não dão,<br />

que eu não sou camaleão<br />

que me hei-de manter do vento.<br />

Finge que responde o Autor:<br />

Senhor, não vos agasteis,<br />

porque Deus vos proverá;<br />

e se mais saber quereis,<br />

nas costas deste lereis<br />

as iguarias que há.<br />

Vira o papel, que dizia assim:<br />

Tendes nem migalha assada,<br />

cousa nenhuma de molho,<br />

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79


e nada feito em empada,<br />

e vento de tigelada,<br />

picar no dente em remalho.<br />

De fumo tendes tassalhos,<br />

aves da pena que sente<br />

quem de fome anda doente;<br />

bocejar de vinho e de alhos,<br />

manjar em branco excelente.<br />

A quinta e derradeira iguaria foi posta<br />

a Francisco de Melo e dizia:<br />

De um homem que teve o ceptro<br />

da veia maravilhosa,<br />

não foi cousa duvidosa<br />

que se lhe tornava em metro<br />

o que ia a dizer em prosa.<br />

De mim vos quero apostar<br />

que faça cousas mais novas<br />

de quanto podeis cuidar:<br />

esta ceia, que é manjar,<br />

vos faça na boca em trovas.<br />

034.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Vejo-a n'alma pintada<br />

quando me pede o desejo<br />

o natural que não vejo.<br />

Se só no ver puramente<br />

me transformei no que vi,<br />

de vista tão excelente<br />

mal poderei ser ausente<br />

enquanto o não for de mi.<br />

Porque a alma namorada<br />

a traz tão bem debuxada,<br />

e a memória tanto voa<br />

que se a não vejo em pessoa,<br />

vejo-a n'alma pintada.<br />

O desejo, que se estende<br />

ao que menos se concede,<br />

sobre vós pede e pretende,<br />

como o doente que pede<br />

o que mais se lhe defende.<br />

Eu, que em ausência não vejo,<br />

tenho piedade e pejo<br />

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80


de me ver tão pobre estar,<br />

que então não tenho que dar<br />

quando me pede o desejo,<br />

Como aquele que cegou<br />

é cousa vista e notória<br />

que a natureza ordenou<br />

que se lhe dobre em memória<br />

o que em vista lhe faltou;<br />

assim a mim, que não rejo<br />

os olhos ao que desejo,<br />

na memória e na firmeza<br />

me concede a natureza<br />

o natural que não vejo.<br />

025.<br />

Cantiga<br />

a este mato alheio:<br />

Trocai o cuidado,<br />

Senhora, comigo;<br />

vereis o perigo<br />

que é ser desamado.<br />

VOLTAS<br />

Se trocar desejo<br />

o amor entre nós,<br />

é para que em vós<br />

vejais o que vejo.<br />

E sendo trocado<br />

este amor comigo,<br />

ser-vos-á castigo<br />

terdes meu cuidado.<br />

Tendes o sentido<br />

d'amor livre e isento;<br />

e cuidais que é vento<br />

ser tão mal querido.<br />

Não seja o cuidado<br />

tão vosso inimigo<br />

que queira o perigo<br />

de ser desamado.<br />

Mas nunca foi tal<br />

este meu querer,<br />

que a quem tanto quer<br />

queira tanto mal.<br />

Seja eu maltratado,<br />

e nunca o castigo<br />

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81


vos mostre o perigo<br />

que é ser desamado.<br />

050.<br />

Cantiga<br />

este moto:<br />

Quem disser que a barca pende,<br />

dir-lhe hei, mana, que mente.<br />

VOLTAS<br />

Se vos quereis embarcar<br />

e para isso estais no cais,<br />

entrai logo; que tardais?<br />

Olhai que está preamar!<br />

E se outrem, por vos fretar,<br />

vos disser que esta que pende,<br />

dir-lhe hei, mana, que mente.<br />

Esta barca é de carreira,<br />

tem seus aparelhos novos;<br />

não há como ela outra em Povos,<br />

boa de leme e veleira.<br />

Mas, se por ser a primeira,<br />

vos disser alguém que pende,<br />

dir-lhe hei, mana, que mente.<br />

098.<br />

Esparsa<br />

a uma Dama que lhe chamou<br />

cara-sem-olhos<br />

Sem olhos vi o mal claro<br />

que dos olhos se seguiu:<br />

pois cara-sem-olhos viu<br />

olhos que lhe custam caro.<br />

De olhos não faço menção,<br />

pois quereis que olhos não sejam;<br />

vendo-vos, olhos sobejam,<br />

não vos vendo olhos não são.<br />

114.<br />

Cantiga<br />

a João Lopez, Leitão, na Índia,<br />

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82


por causa de uma peça de cacha<br />

que este mandou a alguma Dama<br />

que se lhe fazia donzela<br />

MOTO:<br />

Se vossa dama vos dá<br />

tudo quanto vós quisestes,<br />

dizei: para que lhe destes<br />

o que vos ela fez já?<br />

VOLTAS<br />

Sendo os restos envidados<br />

e vós de cachas mil contos,<br />

sabeis com quão poucos pontos<br />

que lhos achastes quebrados.<br />

Se o que tem, isso vos dá,<br />

vós mui bem lho merecestes,<br />

porque, se a cacha lhe destes,<br />

tinha-vo-la feita já.<br />

001.<br />

Trovas<br />

a uma Dama que lhe mandou<br />

pedir algumas obras suas<br />

Senhora, se eu alcançasse<br />

no tempo que ler quereis,<br />

que a dita dos meus papéis<br />

pela minha se trocasse;<br />

e por ver<br />

tudo o que posso escrever<br />

em mais breve relação,<br />

indo eu onde eles vão,<br />

por mim só quisésseis ler;<br />

Depois de ver um cuidado<br />

tão contente de seu mal,<br />

veríeis o natural<br />

do que aqui vedes pintado;<br />

que o perfeito<br />

Amor, de que sou sujeito,<br />

vereis áspero e cruel,<br />

aqui com tinta e papel,<br />

em mim co sangue no peito.<br />

Que um contino imaginar<br />

naquilo que Amor ordena,<br />

é pena que, enfim, por pena<br />

se não pode declarar;<br />

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83


que, se eu levo<br />

dentro n'alma quanto devo<br />

de trasladar em papéis,<br />

vede qual melhor lereis:<br />

se a mim, se aquilo que escrevo?<br />

095.<br />

Cantiga<br />

a este moto:<br />

Dó la mi ventura?<br />

Que no veio alguma.<br />

VOLTAS<br />

Sepa quién padece<br />

que en la sepultura<br />

se esconde ventura de<br />

quién la merece.<br />

Allá me parece<br />

que quiere fortuna<br />

que yo halle alguna.<br />

Naciendo mezquino,<br />

dolor fué mi cama;<br />

tristeza fué el ama,<br />

cuidado el padrino.<br />

Vestióse el destino,<br />

negra vestidura;<br />

huyó la ventura.<br />

No se halló tormento,<br />

que allí no se hallase;<br />

ni bien que pasase,<br />

sino como viento.<br />

¡Oh, que nacimiento,<br />

que luego en la cuna<br />

me seguió fortuna!<br />

Esta dicha mía,<br />

que siempre busqué,<br />

buscandola, hallé<br />

que no la hallaría;<br />

que quién nace en día<br />

d'estrella tan dura,<br />

nunca halla ventura.<br />

No puso mi estrella<br />

más ventura en mí;<br />

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84


así vive en fin<br />

quién nace sin ella.<br />

No me quejo della;<br />

quéjome que atura<br />

vida tan escura.<br />

118.<br />

SUPER FLUMINA ...<br />

Sôbolos rios que vão<br />

por Babilônia, m'achei,<br />

onde sentado chorei<br />

as lembranças de Sião<br />

e quanto nela passei.<br />

Ali o rio corrente<br />

de meus olhos foi manado,<br />

e tudo bem comparado,<br />

Babilônia ao mal presente,<br />

Sião ao tempo passado.<br />

Ali, lembranças contentes<br />

n'alma se representaram,<br />

e minhas cousas ausentes<br />

se fizeram tão presentes<br />

como se nunca passaram.<br />

Ali, depois de acordado,<br />

co rosto banhado em água,<br />

deste sonho imaginado,<br />

vi que todo o bem passado<br />

não é gosto, mas é mágoa.<br />

E vi que todos os danos<br />

se causavam das mudanças<br />

e as mudanças dos anos;<br />

onde vi quantos enganos<br />

faz o tempo às esperanças.<br />

Ali vi o maior bem<br />

quão pouco espaço que dura,<br />

o mal quão depressa vem,<br />

e quão triste estado tem<br />

quem se fia da ventura.<br />

Vi aquilo que mais vai,<br />

que então se entende melhor<br />

quanto mais perdido for;<br />

vi o bem suceder mal,<br />

e o mal, muito pior.<br />

E vi com muito trabalho<br />

comprar arrependimento;<br />

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85


vi nenhum contentamento,<br />

e vejo-me a mim, que espalho<br />

tristes palavras ao vento.<br />

Bem são rios estas águas,<br />

com que banho este papel;<br />

bem parece ser cruel<br />

variedade de mágoas<br />

e confusão de Babel.<br />

Como homem que, por exemplo<br />

dos transes em que se achou,<br />

depois que a guerra deixou,<br />

pelas paredes do templo<br />

suas armas pendurou:<br />

Assim, depois que assentei<br />

que tudo o tempo gastava,<br />

da tristeza que tomei nos<br />

salgueiros pendurei os órgãos<br />

com que cantava.<br />

Aquele instrumento ledo<br />

deixei da vida passada,<br />

dizendo: — Música amada,<br />

deixo-vos neste arvoredo<br />

à memória consagrada.<br />

Flauta minha que, tangendo,<br />

os montes fazíeis vir<br />

para onde estáveis, correndo;<br />

e as águas, que iam descendo,<br />

tornavam logo a subir:<br />

jamais vos não ouvirão<br />

os tigres, que se amansavam,<br />

e as ovelhas, que pastavam,<br />

das ervas se fartarão<br />

que por vos ouvir deixavam.<br />

Já não fareis docemente<br />

em rosas tornar abrolhos<br />

na ribeira florescente;<br />

nem poreis freio à corrente,<br />

e mais, se for dos meus olhos.<br />

Não movereis a espessura,<br />

nem podereis já trazer<br />

atrás vós a fonte pura,<br />

pois não pudestes mover<br />

desconcertos da ventura<br />

Ficareis oferecida<br />

à Fama, que sempre vela,<br />

flauta de mim tão querida;<br />

porque, mudando-se a vida,<br />

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86


se mudam os gostos dela.<br />

Acha a tenta mocidade<br />

prazeres acomodados,<br />

e logo a maior idade<br />

já sente por pouquidade<br />

aqueles gostos passados.<br />

Um gosto que hoje se alcança,<br />

amanhã já o não vejo;<br />

assim nos traz a mudança<br />

de esperança em esperança,<br />

e de desejo em desejo.<br />

Mas em vida tão escassa<br />

que esperança será forte?<br />

Fraqueza da humana sorte,<br />

que, quanto da vida passa<br />

está receitando a morte!<br />

Mas deixar nesta espessura<br />

o canto da mocidade,<br />

não cuide a gente futura<br />

que será obra da idade<br />

o que é força da ventura.<br />

Que idade, tempo, o espanto<br />

de ver quão ligeiro passe,<br />

nunca em mim puderam tanto<br />

que, posto que deixe o canto,<br />

a causa dele deixasse.<br />

Mas, em tristezas e enojas<br />

em gosto e contentamento,<br />

por sol, por neve, por vento,<br />

terné presente a los ojos<br />

por quien muero tan contento.<br />

Órgãos e flauta deixava,<br />

despojo meu tão querido,<br />

no salgueiro que ali estava<br />

que para troféu ficava<br />

de quem me tinha vencido.<br />

Mas lembranças da afeição<br />

que ali cativo me tinha,<br />

me perguntaram então:<br />

que era da música minha<br />

que eu cantava em Sião?<br />

Que foi daquele cantar<br />

das gentes tão celebrado?<br />

Porque o deixava de usar?<br />

Pois sempre ajuda a passar<br />

qualquer trabalho passado.<br />

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87


Canta o caminhante ledo<br />

no caminho trabalhoso.<br />

por antr'o espesso arvoredo<br />

e, de noite, o temeroso<br />

cantando, refreia o medo.<br />

Canta o preso documente<br />

os duros grilhões tocando;<br />

canta o segador contente;<br />

e o trabalhador, cantando,<br />

o trabalho menos sente.<br />

Eu, qu'estas cousas senti<br />

n'alma, de mágoas tão cheia<br />

Como dirá, respondi,<br />

quem tão alheio está de si<br />

doce canto em terra alheia?<br />

Como poderá cantar<br />

quem em choro banh'o peito?<br />

Porque se quem trabalhar<br />

canta por menos cansar,<br />

eu só descansos enjeito.<br />

Que não parece razão<br />

nem seria cousa idônea,<br />

por abrandar a paixão,<br />

que cantasse em Babilônia<br />

as cantigas de Sião.<br />

Que, quando a muita graveza<br />

de saudade quebrante<br />

esta vital fortaleza,<br />

antes moura de tristeza<br />

que, por abrandá-la, cante.<br />

Que se o fino pensamento<br />

só na tristeza consiste,<br />

não tenho medo ao tormento<br />

que morrer de puro triste,<br />

que maior contentamento?<br />

Nem na flauta cantarei<br />

O que passo, e passei já,<br />

nem menos o escreverei,<br />

porque a pena cansará,<br />

e eu não descansarei.<br />

Que, se vida tão pequena<br />

se acrescenta em terra estranha,<br />

e se amor assim o ordena,<br />

razão é que canse a pena<br />

de escrever pena tamanha.<br />

Porém se, para assentar<br />

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88


o que sente o coração,<br />

a pena já me cansar<br />

não canse para voar<br />

a memória em Sião.<br />

Terra bem-aventurada,<br />

se, por algum movimento,<br />

d'alma me fores mudada,<br />

minha pena seja dada<br />

a perpétuo esquecimento.<br />

A pena deste desterro,<br />

que eu mais desejo esculpida<br />

em pedra, ou em duro ferro,<br />

essa nunca sela ouvida,<br />

em castigo de meu erro.<br />

E se eu cantar quiser,<br />

em Babilônia sujeito,<br />

Jerusalém, sem te ver,<br />

a voz, quando a mover,<br />

se me congele no peito.<br />

A minha língua se apegue<br />

às fauces, pois te perdi,<br />

se, enquanto viver assim,<br />

houver tempo em que te negue<br />

ou que me esqueça de ti.<br />

Mas ó tu, terra de Glória,<br />

se eu nunca vi tua essência,<br />

como me lembras na ausência?<br />

Não me lembras na memória,<br />

senão na reminiscência.<br />

Que a alma é tábua rasa,<br />

que, com a escrita doutrina<br />

celeste, tanto imagina,<br />

que voa da própria casa<br />

e sobe à pátria divina.<br />

Não é, logo, a saudade<br />

das terras onde nasceu<br />

a carne, mas é do Céu,<br />

daquela santa cidade,<br />

donde esta alma descendeu.<br />

E aquela humana figura,<br />

que cá me pôde alterar,<br />

não é quem se há-de buscar:<br />

é raio de formosura,<br />

que só se deve de amar.<br />

Que os olhos e a luz que ateia<br />

o fogo que cá sujeita,<br />

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89


não do sol, mas da candeia,<br />

é sombra daquela Idéia<br />

que em Deus está mais perfeita.<br />

E os que cá me cativaram<br />

são poderosos afeitos<br />

que os corações têm sujeitos;<br />

sofistas que me ensinaram<br />

maus caminhos por direitos.<br />

Destes, o mando tirano<br />

me obriga, com desatino,<br />

a cantar ao som do dano<br />

cantares d'amor profano<br />

por versos d'amor divino.<br />

Mas eu, lustrado co santo<br />

Raio, na terra de dor,<br />

de confusão e de espanto,<br />

como hei-de cantar o canto<br />

que só se deve ao Senhor?<br />

Tanto pode o beneficio<br />

da Graça, que dá saúde,<br />

que ordena que a vida mude;<br />

e o que tomei por vício<br />

me faz grau para a virtude;<br />

e faz que este natural<br />

amor, que tanto se preza,<br />

suba da sombra ao Real,<br />

da particular beleza<br />

para a Beleza geral.<br />

Pique logo pendurada<br />

a flauta com que tangi,<br />

ó Jerusalém sagrada,<br />

e tome a lira dourada,<br />

para só cantar de ti.<br />

Não cativo e ferrolhado<br />

na Babilônia infernal,<br />

mas dos vicias desatado,<br />

e cá desta a ti levado,<br />

Pátria minha natural.<br />

E se eu mais der a cerviz<br />

a mundanos acidentes,<br />

duros, tiranos e urgentes,<br />

risque-se quanto já fiz<br />

do grão livro dos viventes.<br />

E tomando já na mão<br />

a lira santa, e capaz<br />

doutra mais alta invenção,<br />

cale-se esta confusão,<br />

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90


cante-se a visão da paz.<br />

Ouça-me o pastor e o Rei,<br />

retumbe este acento santo,<br />

mova-se no mundo espanto,<br />

que do que já mal cantei<br />

a palinódia já canto.<br />

A vós só me quero ir,<br />

Senhor e grão Capitão<br />

da alta torre de Sião,<br />

à qual não posso subir<br />

se me vós não dais a mão.<br />

No grão dia singular<br />

que na lira o douto som<br />

Jerusalém celebrar,<br />

lembrai-vos de castigar<br />

os ruins filhos de Edom.<br />

Aqueles que tintos vão<br />

no pobre sangue inocente,<br />

soberbos co poder vão,<br />

arrasai-os igualmente,<br />

conheçam que humanos são.<br />

E aquele poder tão duro<br />

dos afeitos com que venho,<br />

que encenem alma e engenho,<br />

que já me entraram o muro<br />

do livre alvedrio que tenho;<br />

estes, que tão furiosos<br />

gritando vêm a escalar-me,<br />

maus espíritos danosos,<br />

que querem como forçosos<br />

do alicerce derrubar-me;<br />

Derrubai-os, fiquem sós,<br />

de forças fracos, imbeles,<br />

porque não podemos nós<br />

nem com eles ir a Vós,<br />

nem sem Vós tirar-nos deles.<br />

Não basta minha fraqueza,<br />

para me dar defensão,<br />

se vós, santo Capitão,<br />

nesta minha fortaleza<br />

não puserdes guarnição.<br />

E tu, ó carne que encantas,<br />

filha de Babel tão feia,<br />

toda de misérias cheia,<br />

que mil vezes te levantas,<br />

contra quem te senhoreia:<br />

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91


eato só pode ser<br />

quem co a ajuda celeste<br />

contra ti prevalecer,<br />

e te vier a fazer<br />

o mal que lhe tu fizeste;<br />

Quem com disciplina crua<br />

se fere mais que uma vez,<br />

cuja alma, de vícios nua,<br />

faz nódoas na carne sua,<br />

que já a carne n'alma fez.<br />

E boato quem tomar<br />

seus pensamentos recentes<br />

e em nascendo os afogar,<br />

por não virem a parar<br />

em vícios graves e urgentes;<br />

Quem com eles logo der<br />

na pedra do furar santo,<br />

e, batendo, os desfizer<br />

na Pedra, que veio a ser<br />

enfim cabeça do Canto;<br />

Quem logo, quando imagina<br />

nos vícios da carne má,<br />

os pensamentos declina<br />

àquela Carne divina<br />

que na Cruz esteve já.<br />

Quem do vil contentamento<br />

cá deste mundo visível,<br />

quanto ao homem for possível,<br />

passar logo o entendimento<br />

para o mundo inteligível:<br />

ali achará alegria<br />

em tudo perfeita e cheia,<br />

de tão suave harmonia<br />

que nem, por pouca, recreia,<br />

nem, por sobeja, enfastia.<br />

Ali verá tão-profundo<br />

mistério na suma alteza<br />

que, vencida a natureza,<br />

os mores faustos do mundo<br />

julgue por maior baixeza<br />

Ó tu, divino aposento,<br />

minha pátria singular!<br />

Se só com te imaginar<br />

tanto sobe o entendimento,<br />

que fará se em ti se achar?<br />

Ditoso quem se partir<br />

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92


para ti, terra excelente,<br />

tão justo e tão penitente<br />

que, depois de a ti subir<br />

lá descanse eternamente.<br />

094.<br />

Cantiga<br />

a este moto seu:<br />

Venceu-me Amor, não o nego;<br />

tem mais força qu'eu assaz;<br />

que, como é cego, e rapaz,<br />

dá-me porrada de cego!<br />

VOLTAS<br />

Só porque é rapaz ruim,<br />

dei-lhe um bofete, zombando;<br />

diz-me: — Ó mau, estais-me dando<br />

porque sois maior que mim?<br />

pois se vos eu descarrego...<br />

Em dizendo isto, chaz!<br />

torna-m'outra. Tá! rapaz,<br />

que dás porrada de cego!<br />

016.<br />

Trovas<br />

a umas suspeitas<br />

Suspeitas, que me quereis?<br />

Que eu vos quero dar lugar,<br />

que, de certas, me mateis,<br />

se a causa de que nasceis<br />

vos quisesse confessar.<br />

Que de não lhe achar desculpa<br />

a grande mágoa passada<br />

me tem a alma tão cansada<br />

que, se me confessa a culpa,<br />

tê-la-ei por desculpada.<br />

Ora vede que perigos<br />

têm cercado o coração,<br />

que, no meio da opressão,<br />

a seus próprios inimigos<br />

vai pedir a defensão!<br />

Que, suspeitas, eu bem sei,<br />

como se claro vos visse,<br />

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93


que é certo o que já cuidei;<br />

que nunca mal suspeitei<br />

que certo me não saísse.<br />

Mas queria esta certeza<br />

daquela que me atormenta;<br />

por que em tamanha estreiteza<br />

ver que disso se contenta<br />

é descanso da tristeza.<br />

Porque se esta só verdade<br />

me confessa, limpa e nua<br />

de cautela e falsidade,<br />

não pode a minha vontade<br />

desconformar-se da sua.<br />

Por segredo namorado<br />

é certo estar conhecido<br />

que o mal de ser enjeitado<br />

mais atormenta sabido,<br />

mil vezes, que suspeitado.<br />

Mas eu só, em quem se ordena<br />

novo modo de querela,<br />

de medo da dor pequena,<br />

venho achar na maior pena<br />

o refrigério para ela.<br />

Já nas iras me inflamei,<br />

nas vinganças, nos furores<br />

que já, doudo, imaginei;<br />

e já mais doudo o jurei<br />

de arrancar d'alma os amores.<br />

Já determinei mudar-me<br />

pra outra parte com ira;<br />

depois vim a concertar-me que<br />

era bom certificar-me<br />

no que mostrava a mentira.<br />

Mas depois já de cansadas<br />

as fúrias do imaginar,<br />

vinha enfim a arrebentar<br />

em lágrimas magoadas<br />

e bem para magoar.<br />

E deixando-se vencer<br />

os meus fingidos enganos,<br />

de tão claros desenganos<br />

não posso menos fazer<br />

que contentar-me cos danos.<br />

E pedir que me tirassem<br />

este mal de suspeitar<br />

que me vejo atormentar,<br />

ainda que me confessassem<br />

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94


quanto me pode matar.<br />

Olhai bem se me trazeis,<br />

Senhora, posto no fim;<br />

pois neste estado a que vim,<br />

para que vós confesseis<br />

se dão os tratos a mim.<br />

Mas para que tudo possa<br />

Amor, que tudo encaminha,<br />

tal justiça lhe convinha;<br />

porque da culpa que é vossa<br />

venha a ser a morte minha.<br />

Justiça tão mal olhada,<br />

olhai com que cor se doura,<br />

que quer, no fim da jornada,<br />

que vós sejais confessada<br />

para que eu seja o que moura!<br />

Pois confessai-vos já' gora,<br />

inda que tenho temor<br />

que nem nest' última hora<br />

me há-de perdoar Amor<br />

vossos pecados, Senhora.<br />

E assim vou desesperado,<br />

porque estes são os costumes<br />

de amor que é mal empregado,<br />

do qual vou já condenado<br />

ao inferno, de ciúmes!<br />

028.<br />

Glosas<br />

ao moto que lhe enviou Dona<br />

Francisca de Aragão para que Iho<br />

glosasse:<br />

Mas porém a que cuidados ?<br />

1ª.<br />

Tanto maiores tormentos<br />

foram sempre os que sofri,<br />

daquilo que cabe em mi,<br />

que não sei que pensamentos<br />

são os para que nasci.<br />

Quando vejo este meu peito<br />

a perigos arriscados<br />

inclinado, bem suspeito<br />

que a cuidados sou sujeito;<br />

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95


Mas porém a que cuidados ?<br />

2ª.<br />

Que vindes em mim buscar,<br />

cuidados, que sou cativo,<br />

e não tenho que vos dar?<br />

Se vindes a me matar,<br />

já há muito que não vivo;<br />

se vindes, porque me dais<br />

tormentos desesperados,<br />

eu, que sempre sofri mais,<br />

não digo que não venhais;<br />

Mas porém a quê, cuidados?<br />

3ª.<br />

Se as penas que Amor me deu<br />

vêm por tão suaves meios,<br />

não há que temer receios,<br />

que vai um cuidado meu<br />

por mil descansos alheios.<br />

Ter nuns olhos tão formosos<br />

os sentidos enlevados,<br />

bem sei que em baixos estados<br />

são cuidados perigosos;<br />

Mas porém, ah! que cuidados!<br />

Carta<br />

que Luís de Camões mandou<br />

a Dona Francisca de Aragão,<br />

com as glosas acima:<br />

Senhora<br />

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m., crendo me<br />

seria assim mais seguro: mas agora que é servida de me<br />

tornar a ressuscitar, por mostrar seus poderes, lembro-lhe<br />

que uma vida trabalhosa é menos de agradecer que uma<br />

morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo<br />

me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se dela, não<br />

me fica mais que desejar, que poder acertar com este<br />

moto de v. m., ao qual dei três entendimentos, segundo as<br />

palavras dele puderam sofrer: se forem bons, é o moto de<br />

v. m.; se maus, são as glosas minhas.<br />

046.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Tudo pode uma afeição.<br />

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96


Tem tal jurdição Amor<br />

n'alma donde se aposenta<br />

e de que se faz senhor,<br />

que a liberta e isenta<br />

de todo o humano temor.<br />

E com mui justa razão,<br />

como senhor soberano,<br />

que Amor não consente dano;<br />

e pois me sofre tenção,<br />

gritarei por desengano:<br />

tudo pode uma afeição.<br />

070.<br />

Cantiga<br />

a este moto seu:<br />

De que me serve fugir<br />

da morte, dor e perigo,<br />

se me eu levo comigo?<br />

VOLTAS<br />

Tenho-me persuadido,<br />

por razão conveniente,<br />

que não posso ser contente,<br />

pois que pude ser nascido.<br />

Anda sempre tão unido<br />

o meu tormento comigo<br />

que eu mesmo sou meu perigo.<br />

E se de mi me livrasse,<br />

nenhum gosto me seria;<br />

que, não sendo eu, não teria<br />

mal que esse bem me tirasse.<br />

Força é logo que assim passe,<br />

ou com desgosto comigo,<br />

ou sem gosto e sem perigo.<br />

047.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

¿Para que me dan tormento,<br />

aprovechando tan poco?<br />

Perdido, mas no tan loco<br />

que descubra lo que siento.<br />

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97


VOLTAS<br />

Tiempo perdido es aquel<br />

que se pasa en darme afán,<br />

pues quanto más me lo dán<br />

tanto menos siento del.<br />

¿Que descubra lo que siento?<br />

No lo haré, que no es tan poco;<br />

que no puede ser tan loco<br />

quién tiene tal pensamiento.<br />

Sepan que me manda Amor,<br />

que de tan dulce querella,<br />

a nadie dé parte della,<br />

porque la sienta mayor.<br />

Es tan dulce mi tormento<br />

que aun se me antoja poco;<br />

y si es mucho, quedo loco<br />

de gusto de lo que siento.<br />

044.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Sem ventura é por de mais.<br />

Todo o trabalhado bem<br />

promete gostoso fruito,<br />

mas os trabalhos que vêm<br />

para quem dita não tem,<br />

valem pouco e custam muito.<br />

Rompe toda a pedra dura,<br />

faz os homens imortais<br />

o trabalho, quando atura;<br />

mas querer achar ventura<br />

sem ventura, é por de mais.<br />

075.<br />

Cantiga<br />

a esta cantiga velha:<br />

Apartaram-se os meus olhos<br />

de mim tão longe...<br />

Falsos amores,<br />

falsos, maus, enganadores !<br />

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98


VOLTAS<br />

Trataram-me com cautela<br />

por me enganar mais asinha;<br />

dei-lhe posse da alma minha,<br />

foram-me fugir co ela.<br />

Não há vê-los, nem há vê-la,<br />

de mim tão longe...<br />

Falsos amores,<br />

falsos, maus, enganadores!<br />

Entreguei-lhe a liberdade,<br />

e enfim, da vida o melhor:<br />

foram-se, e do desamor<br />

fizeram necessidade.<br />

Quem teve a sua vontade<br />

de mim tão longe?<br />

Falsos amores,<br />

e tão cruéis matadores!<br />

Não se pôs serra nem mar<br />

entre nós, que fora em vão;<br />

pôs-se vossa condição,<br />

que não doce é de passar.<br />

Só ela vos quis deixar<br />

de mim tão longe!<br />

Falsos amores!<br />

...e oxalá que enganadores!<br />

009.<br />

Outras voltas ao mesmo moto<br />

Tudo tendes singular,<br />

com que os corações rendeis,<br />

senão que rindo fazeis<br />

covinhas para enterrar;<br />

e para ressuscitar<br />

em força a graça que tendes;<br />

senão que tendes os olhos verdes.<br />

Tudo, Senhora, alcançais,<br />

quanto ser formosa alcança;<br />

senão que dais esperança<br />

cos olhos com que matais.<br />

Se acaso os levantais,<br />

[é para as almas renderdes;<br />

senão que tendes os olhos verdes].<br />

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99


067.<br />

Cantiga<br />

a este moto seu:<br />

Pus meus olhos numa funda,<br />

e fiz um tiro com ela<br />

às grades de uma janela.<br />

VOLTAS<br />

uma Dama, de malvada,<br />

tomou seus olhos na mão<br />

e tirou me uma pedrada<br />

com eles ao coração.<br />

Armei minha funda então,<br />

e pus os meus olhos nela:<br />

trape! quebro-lh'a janela.<br />

078.<br />

Cantiga<br />

a três Damas que lhe diziam<br />

que o amavam<br />

MOTO:<br />

Não sei se me engana Helena,<br />

se Maria, se Joana,<br />

não sei qual delas me engana.<br />

VOLTAS<br />

Uma diz que me quer bem,<br />

outra jura que mo quer;<br />

mas, em jura de mulher<br />

quem crerá, se elas não crêem?<br />

Não posso não crer a Helena,<br />

a Maria, nem Joana,<br />

mas não sei qual mais me engana.<br />

Uma faz-me juramentos<br />

que só meu amor estima;<br />

a outra diz que se fina;<br />

Joana, que bebe os ventos.<br />

Se cuido que mente Helena,<br />

também mentirá Joana;<br />

mas quem mente, não me engana.<br />

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100


058.<br />

Glosa<br />

a este moto alheio:<br />

Todo es poco lo posible.<br />

Ved que enganos señorea<br />

nuestro juicio tan loco,<br />

que por mucho que se crea,<br />

todo el bien que se desea,<br />

alcançado, queda poco.<br />

Un bien de cualquiera grado,<br />

si de haberse es imposible,<br />

queda mucho deseado,<br />

mas para mucho, alcanzado,<br />

todo es poco lo posible<br />

104.<br />

Cantiga<br />

a üa mulher que se chamava Grada de Morais<br />

MOTO:<br />

Olhos em que estão mil flores<br />

e com tanta graça olhais,<br />

que parece que os Amores<br />

moram onde vós morais.<br />

VOLTAS<br />

Vêm-se rosas e boninas,<br />

olhos, nesse vosso ver;<br />

vêm-se mil almas arder<br />

no fogo dessas meninas.<br />

E di-lo hão minhas dores,<br />

meus suspiros, e meus ais;<br />

e dirão mais, que os Amores<br />

moram onde vós morais.<br />

037.<br />

Glosa<br />

a este moto:<br />

Sem vós e com meu cuidado<br />

Olha; com quem e sem quem.<br />

Vendo amor que, com vos ver,<br />

mais levemente sofria<br />

os males que me fazia,<br />

não me pode isto sofrer;<br />

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101


conjurou-se com meu fado,<br />

um novo mal me ordenou;<br />

ambos me levam forçado<br />

não sei onde, pois que sou<br />

sem vós e com meu cuidado.<br />

Não sei qual é mais estranho<br />

destes dous males que sigo,<br />

se não vos ver, se comigo<br />

levar inimigo tamanho.<br />

O que fica e o que vem,<br />

um me mata, outro desejo.<br />

Com tal mal e sem tal bem,<br />

em tais extremos me vejo:<br />

olhai com quem e sem quem,<br />

074.<br />

Cantiga<br />

a este moto alheio:<br />

De pequena tomei Amor,<br />

porque o não entendi;<br />

agora que o conheci,<br />

mata-me com desfavor.<br />

VOLTAS<br />

Vi-o moço e pequenino,<br />

e a mesma idade ensina<br />

que se incline uma menina,<br />

às mostras de um menino.<br />

Ouvi-lhe chamar Amor,<br />

pelo nome me venci;<br />

nunca tal engano vi,<br />

nem tamanho desamor.<br />

Cresceu-me de dia em dia<br />

com a idade a afeição,<br />

porque amor de criação,<br />

n'alma e na vida se cria.<br />

Criou-se em mim este amor,<br />

e senhoreou-se de mi:<br />

agora que o conheci,<br />

mata-me com desfavor.<br />

As flores me torna abrolhos,<br />

a morte me determina<br />

quem eu trouxe de menina<br />

nas meninas dos meus olhos.<br />

Desta mágoa e desta dor<br />

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102


tenho sabido enfim,<br />

por amor me perco a mim,<br />

por quem de mim perde o amor.<br />

Parece ser caso estranho<br />

o que Amor em mim ordena,<br />

que em idade tão pequena<br />

haja tormento tamanho.<br />

milagres de Amor,<br />

hei-os de sofrer assim,<br />

até que haja dó de mi<br />

quem entender esta dor.<br />

111.<br />

Cantiga<br />

a este moto que lhe mandou<br />

o Viso-Rei, na Índia, para<br />

que Luís de Camões lhe<br />

fizesse umas voltas<br />

MOTO:<br />

Muito sou meu inimigo,<br />

pois que não tiro de mi<br />

cuidados com que nasci,<br />

que põem a vida em perigo.<br />

Oxalá que fora assim!<br />

VOLTAS<br />

Viver eu, sendo mortal,<br />

de cuidados rodeado,<br />

parece meu natural;<br />

que a peçonha não faz mal<br />

a quem foi nela criado.<br />

Tanto sou meu inimigo,<br />

que, por não tirar de mi<br />

cuidados, com que nasci,<br />

porei a vida em perigo.<br />

Oxalá que fora assim!<br />

Tanto vim a acrescentar<br />

cuidados, que nunca amansam<br />

enquanto a vida durar,<br />

que canso já de cuidar<br />

como cuidados não cansam.<br />

Se estes cuidados que digo<br />

dessem fim a mi e a si,<br />

fariam pazes comigo;<br />

que pôr a vida em perigo,<br />

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103


o bom fora para mi.<br />

110.<br />

Trovas<br />

que Heitor da Silveira mandou ao<br />

mesmo Conde, invernando em Goa<br />

Vossa Senhoria creia<br />

que não apura o engenho<br />

fome, se é como a que tenho,<br />

mas a fraca e corta a veia.<br />

E quem o contrário sente<br />

está farto em toda a hora,<br />

como estou faminto agora.<br />

Mas Marta, se está contente,<br />

dá-lhe pouco de quem chora.<br />

E pois Vossa Senhoria,<br />

em geral, a tudo acode,<br />

acuda a mim, que só<br />

dar-me no engenho valia.<br />

Esperte esta musa minha,<br />

que o tempo traz sonolenta,<br />

valha-me nesta tormenta<br />

com essa doce mezinha<br />

que só dá vida e a contenta.<br />

Acuda com provisão<br />

não de papel, mas provida<br />

de ouro e prata: que esta vida<br />

não sustentam papéis, não.<br />

De feitor a tesoureiro<br />

ser-me ia trabalho grande;<br />

Vossa Senhoria mande<br />

algum remédio primeiro<br />

com que a morte o ferro abrande.<br />

Ajuda de Luís de Camões:<br />

Nos livros doutos se trata,<br />

que o grande Aquiles insano<br />

deu a morte a Heitor troiano;<br />

mas agora a fome mata<br />

o nosso Heitor lusitano.<br />

Só ela o pode acabar,<br />

se essa vossa condição<br />

liberal e singular<br />

não mete entre eles bastão<br />

bastante para o fartar.<br />

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104


96.<br />

Trovas<br />

{Vós} sois uma dama<br />

das feias do mundo;<br />

de toda a má fama<br />

sois cabo profundo.<br />

A vossa figura<br />

não é para ver;<br />

em vosso poder<br />

não há formosura.<br />

{Vós} fostes dotada<br />

de toda a maldade;<br />

perfeita beldade<br />

de vós é tirada.<br />

Sois muito acabada<br />

de tacha e de glosa:<br />

pois, quanto a formosa,<br />

em vós não há nada.<br />

De grão merecer<br />

sois bem apartada;<br />

andais alongada<br />

do bem parecer.<br />

Bem claro mostrais<br />

em vós fealdade:<br />

não há i maldade<br />

que não precedais.<br />

De fresco carão<br />

vos vejo ausente;<br />

em vós é presente<br />

a má condição.<br />

De ter perfeição<br />

mui alheia estais;<br />

mui muito alcançais<br />

de pouca razão.<br />

102<br />

Cantiga<br />

a este vilancete pastoril:<br />

— ¿Porqué no miras, Giraldo,<br />

mi zampoña como suena ?<br />

— Porque no me mira Elena.<br />

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105


VOLTAS<br />

—Vuelve acá, no estês pasmado,<br />

¡mira que gentil sonar!<br />

—¿Como te podrá mirar quién<br />

no puede ser mirado?<br />

— {¡Y} que bueno enamorado!<br />

¿No dirás, si es mala o buena?<br />

— No, que me hizo mudo Elena.<br />

— Mira tan dulce armonía,<br />

déjate desos enojes.<br />

—Tengo clavados los ojos<br />

con que mirar te podía.<br />

— Así Dios te de alegría:<br />

¿no vés cuán dulce y serena?<br />

— No, porque no veo Elena.<br />

FIM<br />

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106

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