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O Defunto - Unama

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nead<br />

Núcleo de Educação<br />

a Di st â nci a<br />

Universidade da Amazônia<br />

O <strong>Defunto</strong><br />

de Eça de Queirós<br />

www.nead.unama.br<br />

NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA<br />

Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal<br />

CEP: 66060-902<br />

Belém – Pará<br />

Fones: (91) 4009-3196 /4009-3197<br />

www.nead.unama.br<br />

E-mail: nead@unama.br<br />

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O <strong>Defunto</strong><br />

de Eça de Queirós<br />

CAPÍTULO I<br />

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No ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tão abundante em mercês<br />

divinas, reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia,<br />

onde herdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem e<br />

gentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas.<br />

Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao<br />

lado e na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para<br />

além do adro, onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo, era o escuro e<br />

gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza e maneiras<br />

sombrias, que já na madureza da sua idade, todo grisalho, desposara uma menina<br />

falada em Castela pela sua alvura, cabelos cor de sol claro, e colo de garça real.<br />

D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa Senhora do Pilar, de<br />

quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sangue<br />

bravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por<br />

vezes uma noite ruidosa de taverna com dados e pichéis de vinho.<br />

Por amor, e pelas facilidades desta santa vizinhança, tomara ele o piedoso<br />

costume, desde a sua chegada a Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de<br />

Prima, a sua divina madrinha e de lhe pedir, em três Ave-Marias, a bênção e a graça.<br />

Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com<br />

lebréus ou falcão, ainda voltava para, à saudação de Vésperas, murmurar<br />

docemente uma Salve-Rainha.<br />

E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum<br />

ramo de junquilhos, ou cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e<br />

cuidado galante, em frente ao altar da Senhora.<br />

A esta venerada igreja do Pilar vinha também cada domingo D. Leonor, a tão<br />

falada e formosa mulher do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda,<br />

de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, e por dois possantes lacaios que<br />

a ladeavam e guardavam como torres. Tão ciumento era o senhor D. Alonso que, só<br />

por lho haver severamente ordenado o seu confessor, e com medo de ofender a<br />

Senhora, sua vizinha, permitia esta visita fugitiva, a que ele ficava espreitando<br />

sofregamente, de entre as rexas de uma gelosia, os passos e a demora. Todos os<br />

lentos dias da lenta semana os passava a senhora D. Leonor no encerro do gradeado<br />

solar de granito negro, não tendo, para se recrear e respirar, mesmo nas calmas do<br />

Estio, mais que um fundo de jardim verde-negro, cercado de tão altos muros, que<br />

apenas se avistava, emergindo deles, aqui, além, alguma ponta de triste cipreste. Mas<br />

essa curta visita a Nossa Senhora do Pilar bastou para que D. Rui se enamorasse<br />

dela tresloucadamente, na manhã de Maio em que a viu de joelhos ante o altar, numa<br />

réstia de sol, aureolada pelos seus cabelos de ouro, com as compridas pestanas<br />

pendidas sobre o livro de Horas, o rosário caindo de entre os dedos finos, fina toda ela<br />

e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra, mais branca entre as<br />

rendas negras e os negros cetins que à volta do seu corpo cheio de graças se<br />

quebravam, em pregas duras, sobre as lajes da capela, velhas lajes de sepulturas.<br />

Quando depois dum momento de enleio e de delicioso pasmo se ajoelhou, foi menos<br />

para a Virgem do Pilar, sua divina Madrinha, do que para aquela aparição mortal, de<br />

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quem não sabia o nome nem a vida, e só que por ela daria vida e nome, se ela se<br />

rendesse por tão incerto preço. Balbuciando, com uma prece ingrata, as três Ave-<br />

Marias com que cada manhã saudava Maria, apanhou o seu sombreiro, desceu<br />

levemente a nave sonora e no portal se quebrou, esperando por ela entre os<br />

mendigos lazarentos que se catavam ao sol. Mas, quando ao cabo de um tempo, em<br />

que D. Rui sentiu no coração um desusado bater de ansiedade e medo, a senhora D.<br />

Leonor passou e se deteve, molhando os dedos na pia de mármore de água benta, os<br />

seus olhos, sob o véu descido, não se ergueram para ele, ou tímidos ou desatentos.<br />

Com a aia de olhos muito abertos colada aos vestidos, entre os dois lacaios, como<br />

entre duas torres, atravessou vagarosamente a adro, pedra por pedra, gozando<br />

decerto, como encarcerada, o desafogado ar e o livre sol que o inundavam. E foi<br />

espanto para D. Rui quando ela penetrou na sombria arcada, de grossos pilares,<br />

sobre que assentava o palácio, e desapareceu por uma esguia porta recoberta de<br />

ferragens. Era, pois, essa a tão falada D. Leonor, a linda e nobre senhora de Lara...<br />

Então começaram sete arrastados dias, que ele gastou sentado a um poial da<br />

sua janela, considerando aquela negra porta recoberta de ferragens como se fosse a<br />

do Paraíso, e por ela devesse sair um anjo para lhe anunciar a Bem-Aventurança. Até<br />

que chegou o vagaroso domingo: e passando ele no adro, à hora de Prima, ao repicar<br />

dos sinos, com um molho de cravos amarelos para a sua divina Madrinha, cruzou D.<br />

Leonor, que saía de entre os pilares da escura arcada, branca, doce e pensativa,<br />

como uma lua de entre nuvens. Os cravos quase lhe caíram naquele gostoso alvoroço<br />

em que o peito lhe arfou mais que um mar, e a alma toda lhe fugiu em tumulto através<br />

do olhar com que a devorava. E ela ergueu também os olhos para D. Rui, mas uns<br />

olhos repousados, uns olhos serenos, em que não luzia curiosidade, nem mesmo<br />

consciência de se estarem trocando com outros, tão acesos e enegrecidos pelo<br />

desejo. O moço cavaleiro não entrou na igreja, com piedoso receio de não prestar à<br />

sua Madrinha divina a atenção, que decerto lhe roubaria toda aquela que era só<br />

humana, mas dona já do seu coração, e nele divinizada.<br />

Esperou sofregamente à porta, entre os mendigos, secando os cravos com o<br />

ardor das mãos trêmulas, pensando quanto era demorado o rosário que ela rezava.<br />

Ainda D. Leonor descia a nave, já ele sentia dentro de alma o doce rugir das sedas<br />

fortes que ela arrastava nas lajes. A branca senhora passou — e o mesmo distraído<br />

olhar, desatento e calmo, que espalhou pelos mendigos e pelo adro, o deixou<br />

escorregar sobre ele, ou porque não compreendesse aquele moço que de repente<br />

se tornara tão pálido, ou porque não o diferenciava ainda das coisas e das formas<br />

indiferentes.<br />

D. Rui abalou, com um fundo suspiro; e, no seu quarto, pôs devotamente ante<br />

a imagem da Virgem as flores que não oferecera, na igreja, ao seu altar. Toda a sua<br />

vida se tornou então um longo queixume por sentir tão fria e desumana aquela<br />

mulher, única entre as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coração ligeiro<br />

e errante. Numa esperança, a que antevia bem o desengano, começou a rondar os<br />

muros altos do jardim — ou embuçado numa capa, com o ombro contra uma<br />

esquina, lentas horas se quedava contemplando as grades das gelosias, negras e<br />

grossas como as dum cárcere.<br />

Os muros não se fendiam, das grades não saía sequer um rasto de luz<br />

prometedora. Toda o solar era como um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás<br />

das frias pedras havia ainda um frio peito. Para se desafogar compôs, com piedoso<br />

cuidado, em noites veladas sobre o pergaminho, trovas gementes que o não<br />

desafogavam. Diante do altar da Senhora do Pilar, sobre as mesmas lajes onde a<br />

vira ajoelhada, pousava ele os joelhos, e ficava, sem palavras de oração, num<br />

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cismar amargo e doce, esperando que o seu coração serenasse e se consolasse,<br />

sob a influência d'Aquela que tudo consola e serena. Mas sempre se erguia mais<br />

desditoso e tendo apenas a sensação de quanto eram frias e rígidas as pedras<br />

sobre que ajoelhara. O mundo todo só lhe parecia conter rigidez e frieza.<br />

Outras claras manhãs de domingo encontrou D. Leonor: e sempre os olhos<br />

dela permaneciam descuidados e como esquecidos, ou quando se cruzavam com os<br />

seus era tão singelamente, tão limpos de toda a emoção, que D. Rui os preferiria<br />

ofendidos e faiscando de ira, ou soberbamente desviados com soberbo desdém.<br />

Decerto D. Leonor já conhecia: — mas, assim, conhecia também a ramalheteira<br />

mourisca agachada diante do seu cesto ä beira da fonte; ou os pobres que se<br />

catavam ao sol diante do portal da Senhora.<br />

Nem D. Rui já podia pensar que ela fosse desumana e fria. Era apenas<br />

soberanamente remota, como uma estrela que nas alturas gira e refulge, sem saber<br />

que, em baixo, num mundo que ela não distingue, olhos que ela não suspeita a<br />

contemplam, a adoram e lhe entregam o governo da sua ventura e sorte.<br />

Então D. Rui pensou:<br />

— Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a<br />

ambos nos tenha na sua graça!<br />

E como era cavaleiro muito discreto, desde que a reconheceu assim<br />

inabalável na sua indiferença, não procurou, nem sequer ergueu mais os olhos para<br />

as grades das suas janelas, e até nem penetrava na igreja de Nossa Senhora<br />

quando casualmente, do portal, a avistava ajoelhada, com a sua cabeça tão cheia<br />

de graça e de ouro, pendida sobre o Livro de Horas.<br />

CAPÍTULO II<br />

A velha aia, de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, não tardara<br />

em contar ao senhor de Lara que um moço audaz, de gentil parecer, novo morador<br />

nas velhas casas do arcediago, constantemente se atravessava no adro, se postava<br />

diante da igreja para atirar o coração pelos olhos à senhora D. Leonor. Bem<br />

amargamente o sabia já o ciumento fidalgo, porque quando da sua janela<br />

espreitava, como um falcão, a airosa senhora a caminho da igreja, observara os<br />

giros, as esperas, os olhares dardejados daquele moço galante — e puxara as<br />

barbas de furor. Desde então, na verdade, a sua mais intensa ocupação era odiar D.<br />

Rui, o impudente sobrinho do cônego, que ousava erguer o seu baixo desejo até à<br />

alta senhora de Lara. Constantemente agora o trazia vigiado por um serviçal — e<br />

conhecia todos os seus passos e pousos, e os amigos com quem caçava ou folgava,<br />

e até quem lhe talhava os gibões, e até quem lhe polia a espada, e cada hora do seu<br />

viver. E mais ansiosamente ainda vigiava D. Leonor — cada um dos seus<br />

movimentos, os mais fugitivos modos, os silêncios e o conversar com as aias, as<br />

distrações sobre o bordado, o jeito de cismar sob as árvores do jardim, e o ar e a cor<br />

com que recolhia da igreja... Mas tão inalteradamente serena, no seu sossego de<br />

coração, se mostrava a senhora D. Leonor, que nem o ciúme mais imaginador de<br />

culpas poderia achar manchas naquela pura neve. Redobradamente áspero então<br />

se voltava o rancor de D. Alonso contra o sobrinho do cônego por ter apetecido<br />

aquela pureza, e aqueles cabelos cor de sol claro, e aquele colo de garça real, que<br />

eram só seus, para esplêndido gosto da sua vida. E quando passeava na sombria<br />

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galeria do solar, sonora e toda de abóbada, embrulhado na sua samarra orlada de<br />

peles, com o bico de barba grisalha espetado para diante, a grenha crespa eriçada<br />

para trás e os punhos cerrados, era sempre remoendo o mesmo fel:<br />

— Tentou contra a virtude dela, tentou contra a minha honra... É culpado por<br />

duas culpas e merece duas mortes!<br />

Mas o seu furor quase se misturou um terror, quando soube que D. Rui já não<br />

esperava no adro a senhora D. Leonor, nem rondava amorosamente os muros do<br />

palacete, nem penetrava na igreja quando ela lá rezava, aos domingos; e que tão<br />

inteiramente se alheava dela que uma manhã, estando rente da arcada, e sentindo<br />

bem ranger e abrir a porta por onde a senhora ia aparecer, permanecera de costas<br />

voltadas, sem se mover, rindo com um cavaleiro gordo, que lhe lia um pergaminho.<br />

Tão bem afetada indiferença só servia decerto (pensou D. Alonso) a esconder<br />

alguma bem danada tenção! Que tramava ele, o destro enganador? Tudo no<br />

desabrido fidalgo se exacerbou — ciúme, rancor, vigilância, pesar da sua idade<br />

grisalha e feia. No sossego de D. Leonor suspeitou manha e fingimento; — e<br />

imediatamente lhe vedou as visitas à Senhora do Pilar.<br />

Nas manhãs costumadas corria ele à igreja para rezar o rosário, a levar as<br />

desculpas de D. Leonor — "que no puede venir (murmurava curvado diante do altar)<br />

por lo que sabeis, virgem purissima!" Cuidadosamente visitou e reforçou todos os<br />

negros ferrolhos das portas do seu solar.<br />

De noite soltava dois mastins nas sombras do jardim murado.<br />

À cabeceira do vasto leito, junto da mesa onde ficava a lâmpada, um relicário<br />

e o copo de vinho quente com canela e cravo para lhe retemperar as forças — luzia<br />

sempre uma grande espada nua. Mas, com tantas seguranças, mal dormia — e a<br />

cada instante se solevava em sobressalto de entre as fundas almofadas, agarrando<br />

a senhora D. Leonor com mão bruta e sôfrega, que lhe pisava o colo, para rugir<br />

muito baixo, numa ânsia: "Diz que me queres só a mim!..." Depois, com a alvorada,<br />

lá se empoleirava, a espreitar, como um falcão, as janelas de D. Rui. Nunca o<br />

avistava, agora, nem à porta da igreja às horas de missa, nem recolhendo do<br />

campo, a cavalo, ao toque de Ave-Marias. E por o sentir assim sumido dos sítios e<br />

giros costumados — é que mais o suspeitava dentro do coração de D. Leonor.<br />

Enfim, uma noite, depois de muito trilhar o lajedo da galeria, remoendo<br />

surdamente desconfianças e ódios, gritou pelo intendente e ordenou que se<br />

preparassem trouxas e cavalgaduras. Cedo, de madrugada, partiria, com a senhora<br />

D. Leonor, para a sua herdade de Cabril, a duas léguas de Segóvia! A partida não<br />

foi de madrugada, como uma fuga de avarento que vai esconder longe o seu<br />

tesouro: — mas, realizada com aparato e demora, ficando a liteira diante da arcada,<br />

a esperar longas horas, de cortinas abertas, enquanto um cavalariço passeava pelo<br />

adro a mula branca do fidalgo, enxairelada à mourisca, e do lado do jardim a récua<br />

de machos, carregados de baús, presos às argolas, sob o sol e a mosca, aturdiam a<br />

viela com o tilintar dos guizos. Assim D. Rui soube a jornada do senhor de Lara: — e<br />

assim a soube toda a cidade.<br />

Fora um grande contentamento para D. Leonor, que gostava de Cabril, dos<br />

seus viçosos pomares, dos jardins, para onde abriam, rasgadamente e sem grades,<br />

as janelas dos seus aposentos claros: aí ao menos tinha largo ar, pleno sol, e<br />

alegretes a regar, um viveiro de pássaros, e tão compridas ruas de loureiro ou teixo,<br />

que eram quase a liberdade. E depois esperava que no campo se aligeirassem<br />

aqueles cuidados que traziam, nos derradeiros tempos, tão enrugado e taciturno seu<br />

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marido e senhor. Mas não logrou esta esperança, porque ao cabo de uma semana<br />

ainda se não desanuviara a face de D. Alonso — nem decerto havia frescura de<br />

arvoredos, sussurros de águas correntes, ou aromas esparsos nos rosais em flor,<br />

que calmassem agitação tão amarga e funda. Como em Segóvia, na galeria sonora<br />

de grande abóbada, sem descanso passeava, enterrado na sua samarra, com o bico<br />

da barba espetado para diante, a grenha basta eriçada para trás, e um jeito de<br />

arreganhar silenciosamente o beiço, como se meditasse maldades a que gozava de<br />

antemão o sabor acre. E todo o interesse da sua vida de concentrava num serviçal,<br />

que constantemente galopava entre Segóvia e Cabril, e que ele por vezes esperava<br />

no começo da aldeia, junto ao Cruzeiro, ficando a escutar o homem que<br />

desmontava, ofegante, e logo lhe dava novas apressadas.<br />

Uma noite em que D. Leonor, no seu quarto, rezava o terço com as aias, à luz<br />

duma tocha de cera, o senhor de Lara entrou muito vagarosamente, trazendo na<br />

mão uma folha de pergaminho e uma penha mergulhada no seu tinteiro de osso.<br />

Com um rude aceno despediu as aias, que o temiam como a um lobo. E,<br />

empurrando um escabelo para junto da mesa, volvendo para D. Leonor a face a que<br />

impusera tranqüilidade e agrado, como se apenas viesse pôr coisas naturais e fáceis:<br />

— Senhora — disse — quero que me escrevais aqui uma carta que muito<br />

convém escrever...<br />

Tão costumada era nela a submissão, que, sem outro reparo ou curiosidade,<br />

indo apenas pendurar na barra do leito o rosário em que rezara, se acomodou sobre<br />

o escabelo, e os seus dedos finos, com muita aplicação, para que a letra fosse<br />

esmerada e clara, traçaram a primeira linha curta que o Senhor de Lara ditara e era:<br />

"Meu cavaleiro..." Mas quando ele ditou a outra, mais longa, e dum modo amargo, D.<br />

Leonor arrojou a pena, como se a pena a escaldasse, e, recuando da mesa, gritou,<br />

numa aflição:<br />

— Senhor, para que convém que eu escreva tais coisas e tão falsas?...<br />

Num brusco furor, o senhor de Lara arrancou do cinto um punhal, que lhe<br />

agitou junto à face, rugindo surdamente:<br />

— Ou escreveis o que vos mando e que a mim me convém, ou, por Deus, que<br />

vos vara o coração!...<br />

Mais branca que a cera da tocha que os alumiava, com a carne arrepiada<br />

ante aquele ferro que luzia, num tremor supremo e que tudo aceitava, D. Leonor<br />

murmurou:<br />

— Pela Virgem Maria, não me façais mal!... Nem vos agasteis, senhor, que eu<br />

vivo para vos obedecer e servir... Agora, mandai, que eu escreverei.<br />

Então, com os punhos cerrados nas bordas da mesa, onde pousara o punhal,<br />

esmagando a frágil e desditosa mulher sob o olhar duro que fuzilava, o senhor de Lara<br />

ditou, atirou roucamente, aos pedaços, aos repelões, uma carta que dizia, quando<br />

finda e traçada em letra bem incerta e trêmula: — "Meu cavaleiro: Muito mal haveis<br />

compreendido, ou muito mal pagais o amor que vos tenho, e que não vos pude nunca,<br />

em Segóvia, mostrar claramente... Agora aqui estou em Cabril, ardendo por vos ver; e<br />

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se o vosso desejo corresponde ao meu, bem facilmente o podeis realizar, pois que<br />

meu marido se acha ausente noutra herdade, e esta de Cabril é toda fácil e aberta.<br />

Vinde esta noite, entrai pela porta do jardim, do lado da azinhaga, passando o<br />

tanque, até o terraço. Aí avistareis uma escada encostada a uma janela da casa,<br />

que é a janela do meu quarto, onde sereis bem docemente agasalhado pôr quem<br />

ansiosamente vos espera...."<br />

— Agora, senhora, assinai por baixo o vosso nome, que isso, sobretudo convém!<br />

D. Leonor traçou vagarosamente o seu nome, tão vermelha como se a<br />

despissem diante de uma multidão.<br />

— E agora — ordenou o marido mais surdamente, através dos dentes<br />

cerrados — endereçai a D. Rui de Cardenas!<br />

Ela ousou erguer os olhos, na surpresa daquele nome desconhecido.<br />

— Andai!... A D. Rui de Cardenas! — gritou o homem sombrio.<br />

E ela endereçou a sua desonesta carta a D. Rui de Cardenas.<br />

D. Alonso meteu o pergaminho no cinto, junto ao punhal que embainhara, e<br />

saiu em silêncio com a barba espetada, abafando o rumor dos passos nas lajes do<br />

corredor.<br />

Ela ficara sobre o escabelo, as mãos cansadas e caídas no regaço, num<br />

infinito espanto, o olhar perdido na escuridão da noite silente. Menos escura lhe<br />

parecia a morte que essa escura aventura em que se sentia envolvida e levada!<br />

Quem era esse D. Rui de Cardenas, de quem nunca ouvira falar, que nunca<br />

atravessara a sua vida, tão quieta, tão pouco povoada de memórias e de homens? E<br />

ele decerto a conhecia, a encontrara, a seguira, ao menos com os olhos, pois que<br />

era coisa natural e bem ligada receber dela carta de tanta paixão e promessa...<br />

Assim, um homem, e moço decerto bem nascido, talvez gentil, penetrava no<br />

seu destino bruscamente, trazido pela mão de seu marido? Tão intimamente mesmo<br />

se entranhara esse homem na sua vida, sem que ela se apercebesse, que já para<br />

ele se abria de noite a porta do seu jardim, e contra a sua janela, para ele subir, se<br />

arrumava de noite uma escada!... E era seu marido que muito secretamente<br />

escancarava a porta, e muito secretamente levantava a escada... Para quê?...<br />

Então, num relance, D. Leonor compreendeu a verdade, a vergonhosa<br />

verdade, que lhe arrancou um grito ansiado e mal sufocado. Era uma cilada! O<br />

senhor de Lara atraía a Cabril esse D. Rui com uma promessa magnífica, para dele<br />

se apoderar, e decerto o matar, indefeso e solitário! E ela, o seu amor, o seu corpo,<br />

eram as promessas que se faziam rebrilhar ante os olhos seduzidos do moço<br />

desventuroso. Assim seu marido usava a sua beleza, o seu leito, como a rede de<br />

ouro em que devia cair aquela presa estouvada! Onde haveria maior ofensa?<br />

E também quanta imprudência! Bem poderia esse D. Rui de Cardenas<br />

desconfiar, não aceder a convite tão abertamente amoroso, e depois mostrar por<br />

toda a Segóvia, rindo e triunfando, aquela carta em que lhe fazia oferta do seu leito e<br />

do seu corpo a mulher de Alonso de Lara! Mas não! O desventurado correria a Cabril<br />

— e para morrer, miseravelmente morrer no negro silêncio da noite, sem padre, nem<br />

sacramentos, com a alma encharcada em pecado de amor! Para morrer, decerto —<br />

porque nunca o senhor de Lara permitiria que vivesse o homem que recebera tal<br />

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carta. Assim, aquele moço morria por amor dela, e por um amor que, sem lhe valer<br />

nunca um gosto, lhe valia logo a morte! Dec01erto por amor dela — pois que tal ódio<br />

do senhor de Lara, ódio que, com tanta deslealdade e vilania, se cevava, só podia<br />

nascer de ciúmes, que lhe escureciam todo o dever de cavaleiro e de cristão. Sem<br />

dúvida ele surpreendera olhares, passos, tenções deste senhor D. Rui, mal<br />

acautelado por bem namorado.<br />

Mas como? Quando? Confusamente se lembrava ela de um moço que um<br />

domingo a cruzara no adro, a esperara ao portal da igreja, com um molho de cravos<br />

na mão... Seria esse? Era de nobre parecer, muito pálido, com grandes olhos negros<br />

e quentes. Ela passara — indiferente.... Os cravos que segurava na mão eram<br />

vermelhos e amarelos... A quem os levava?... Ah! Se o pudesse avisar, bem cedo,<br />

de madrugada! Como, se não havia em Cabril serviçal ou aia de quem se fiasse?<br />

Mas deixar que uma bruta espada varasse traiçoeiramente aquele coração, que<br />

vinha cheio dela, palpitando por ela, todo na esperança dela!... Oh! A desabrida e<br />

ardente correria de D. Rui, desde Segóvia a Cabril, com a promessa de encantador<br />

jardim aberto, da escada posta contra a janela, sob a mudez e proteção da noite!<br />

Mandaria realmente o senhor de Lara encostar uma escada à janela? Decerto, para<br />

com mais facilidade o poderem matar, ao pobre, e doce, e inocente moço, quando<br />

ele subisse, mal seguro sobre um frágil degrau, as mãos embaraçadas, a espada a<br />

dormir na bainha.... E assim, na outra noite, em face ao seu leito, a sua janela<br />

estaria aberta, e uma escada estaria erguida contra a sua janela à espera de um<br />

homem! Emboscado na sombra do quarto, seu marido seguramente mataria esse<br />

homem... Mas se o senhor de Lara esperasse fora dos muros da quinta, assaltasse<br />

brutalmente, nalguma azinhaga, aquele D. Rui de Cardenas, e, ou por menos destro,<br />

ou por menos forte, num terçar de armas, caísse ele traspassado, sem que o outro<br />

conhecesse a quem matara? E ela, no seu quarto, sem saber, e todas as portas<br />

abertas, e a escada erguida, e aquele homem assomado à janela na sombra macia<br />

da noite tépida, e o marido que a devia defender morto no fundo duma azinhaga...<br />

Que faria ela, Virgem Mãe? Oh! Decerto repeliria, soberbamente, o moço temerário.<br />

Mas o espanto dele e a cólera do seu desejo enganado! "Por Vós é que eu vim<br />

chamado, senhora!" E ali trazia, sobre o coração, a carta dela, com seu nome, que a<br />

sua mão traçara. Como lhe poderia contar a emboscada e o dolo? Era tão longo de<br />

contar, naquele silêncio e solidão da noite, enquanto os olhos dele, úmidos e negros,<br />

a estivessem suplicando e trespassando... Desgraçada dela se o senhor de Lara<br />

morresse, a deixasse solitária, sem defesa, naquela vasta casa aberta! Mas quanto<br />

desgraçada também se aquele moço, chamado por ela, e que a amava, e que por<br />

esse amor vinha correndo deslumbrante, encontrasse a morte no sítio da sua<br />

esperança, que era o sítio do seu pecado, e, morto em pleno pecado, rolasse para a<br />

eterna desesperança... Vinte e cinco anos, ele — se era o mesmo de quem se<br />

lembrava, pálido, e tão airoso, com um gibão de veludo roxo e um ramo de cravos<br />

na mão, à porta da igreja, em Segóvia.... Duas lágrimas saltaram dos cansados<br />

olhos de D. Leonor. E dobrando os joelhos, levantando a alma toda para o céu, onde<br />

a Lua se começava a levantar, murmurou, numa infinita mágoa e fé:<br />

— Oh! Santa Virgem do Pilar, Senhora minha, vela por nós ambos, vela por<br />

todos nós!....<br />

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CAPÍTULO III<br />

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D. Rui entrava, pela hora da calma, no fresco pátio da sua casa, quando de<br />

um banco de pedra, na sombra, se ergueu um moço de campo, que tirou de dentro<br />

do surrão uma carta, lhe entregou, murmurando:<br />

— Senhor, dai-vos pressa em ler, que tenho de voltar a Cabril, a quem me<br />

mandou...<br />

D. Rui abriu o pergaminho; e, no deslumbramento que o tomou, bateu com<br />

ele contra o peito, como para o enterrar no coração...<br />

O moço do campo insistia, inquieto:<br />

— Aviai, senhor, aviai! Nem precisais responder. Basta que me deis um sinal<br />

de vos ter vindo o recado...<br />

Muito pálido, D. Rui arrancou uma das luvas bordadas a retrós, que o moço<br />

enrolou e sumiu no surrão. E já abalava na ponta das alpercatas leves, quando, com<br />

um aceno, D. Rui ainda o deteve:<br />

— Escuta. Que caminho tomas tu para Cabril?<br />

— O mais curto e sozinho para gente afoita, que é pelo Cerro dos Enforcados.<br />

— Bem.<br />

D. Rui galgou as escadas de pedra, e no seu aposento, sem mesmo tirar o<br />

sombreiro, de novo leu junto da gelosia aquele pergaminho divino, em que D. Leonor<br />

o chamava de noite ao seu quarto, à posse inteira do seu ser. E não o maravilhava<br />

esta oferta — depois de uma tão constante, imperturbada indiferença. Antes nela<br />

logo percebeu um amor muito astuto, por ser muito forte que, com grande paciência,<br />

se esconde ante os estorvos e os perigos, e mudamente prepara a sua hora de<br />

contentamento, melhor e mais deliciosa por tão preparada.<br />

Sempre ela o amara, pois, desde a manhã bendita em que os seus olhos se<br />

tinham cruzado no portal de Nossa Senhora. E enquanto ele rondava aqueles muros<br />

do jardim, maldizendo uma frieza que lhe parecia mais fria que a dos frios muros, já<br />

ela lhe dera a sua alma, e cheia de constância, com amorosa sagacidade,<br />

recalcando o menor suspiro, adormecendo desconfianças, preparava a noite<br />

radiante em que lhe daria também o seu corpo.<br />

Tanta firmeza, tão fino engenho nas coisas do amor, ainda lha tornavam mais<br />

bela e mais apetecida! Com que impaciência olhava então o Sol, tão desapressado<br />

nessa tarde em descer para os montes! Sem repouso, no seu quarto, com a gelosias<br />

cerradas para melhor concentrar a sua felicidade, tudo aprontava amorosamente<br />

para a triunfal jornada: as finas roupas, as finas rendas, um gibão de veludo negro e<br />

as essências perfumadas. Duas vezes desceu à cavalariça a verificar se o seu<br />

cavalo estava bem ferrado e bem pensado. Sobre o soalho, vergou e revergou, para<br />

a experimentar, a folha da espada que levaria à cinta... Mas o seu maior cuidado era<br />

o caminho para Cabril, apesar de bem o conhecer, e a aldeia apinhada em torno ao<br />

mosteiro franciscano, e a velha ponte romana com o seu Calvário, e a azinhaga<br />

funda que levava à herdade do senhor de Lara. Ainda nesse Inverno pôr lá passara,<br />

indo montear com dois amigos de Astorga, e avistara a torre dos de Lara, e pensara:<br />

— "Eis a torre da minha ingrata!" Como se enganava! As noites agora eram de Lua,<br />

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e ele sairia de Segóvia caladamente, pela porta de S. Mauros. Um galope curto o<br />

punha no Cerro dos Enforcados... Bem o conhecia também, esse sítio de tristeza e<br />

pavor, com os seus quatro pilares de pedra, onde se enforcavam os criminosos, e<br />

onde os seus corpos ficavam, baloiçados da ventania, ressequidos do sol, até que<br />

as cordas apodrecessem e as ossadas caíssem, brancas e limpas da carne pelo<br />

bico dos corvos. Por trás do cerro era a lagoa das Donas.<br />

A derradeira vez que por lá andara, fora em dia do apóstolo S. Matias, quando<br />

o corregedor e as confrarias de caridade e paz, em procissão, iam dar sepultura<br />

sagrada às ossadas caídas no chão negro, esburgadas pelas aves. Daí o caminho,<br />

depois, corria liso e direito a Cabril.<br />

Assim D. Rui meditava a sua jornada venturosa, enquanto a tarde ia caindo.<br />

Mas, quando escureceu, e em torno às torres da igreja começaram a girar os<br />

morcegos, e nas esquinas do adro se acenderam os nichos das Almas, o valente<br />

moço sentiu um medo estranho, o medo daquela felicidade que se acercava e que lhe<br />

parecia sobrenatural. Era, pois, certo, que essa mulher de divina formosura, famosa<br />

em Castela, e mais inacessível que um astro, seria sua, toda sua, no silêncio e<br />

segurança duma alcova, dentro em breves instantes, quando ainda se não tivessem<br />

apagado diante dos retábulos das Almas aqueles lumes devotos? E o que fizera ele<br />

para lograr tão grande bem? Pisara as lajes de um adro, esperara no portal de uma<br />

igreja, procurando com os olhos outros dois olhos, que não se erguiam, indiferentes<br />

ou desatentos. Então, sem dor, abandonara a sua esperança... E eis que de repente<br />

aqueles olhos distraídos o procuram, e aqueles braços fechados se lhe abrem, largos<br />

e nus, e com o corpo e com a alma aquela mulher lhe grita: — "Oh! mal-avisado, que<br />

não me entendeste! Vem! Quem te desanimou já te pertence!" Houvera jamais igual<br />

ventura? Tão alta, tão rara era, que decerto atrás dela, se não erra a lei humana, já<br />

devia caminhar a desventura! Já na verdade caminhava; — pois quanta desventura<br />

em saber que depois de tal ventura, quando de madrugada, saindo dos divinos<br />

braços, ele recolhesse a Segóvia, a sua Leonor, o bem sublime da sua vida, tão<br />

inesperadamente adquirido por um instante, recairia logo sob o poder de outro amo!<br />

Que importava! Viessem depois dores e zelos! Aquela noite era esplendidamente sua,<br />

o mundo todo uma aparência vã e a única realidade esse quarto de Cabril, mal<br />

alumiado, onde ela o esperaria, com os cabelos soltos! Foi com sofreguidão que<br />

desceu a escada, se arremessou sobre o seu cavalo. Depois, por prudência,<br />

atravessou o adro muito lentamente, com o sombreiro bem levantado da face, como<br />

um passeio natural, a procurar fora dos muros a frescura da noite. Nenhum encontro o<br />

inquietou até à porta de S. Mauros. Aí, um mendigo, agachado na escuridão dum<br />

arco, e que tocava monotonamente a sua sanfona, pediu, em lamúria, à virgem e a<br />

todos os santos, que levassem aquele gentil cavaleiro na sua doce e santa guarda. D.<br />

Rui parara para lhe atirar uma esmola, quando se lembrou que nessa tarde não fora à<br />

igreja, à hora de vésperas, rezar e pedir a bênção à sua divina madrinha.<br />

Com um salto, desceu logo do cavalo, porque, justamente, rente ao velho<br />

arco, tremeluzia uma lâmpada alumiando um retábulo. Era uma imagem da Virgem<br />

com o peito traspassado pôr sete espadas. D. Rui ajoelhou, pousou o sombreiro nas<br />

lajes e com as mãos erguidas, muito zelosamente, rezou uma Salve-Rainha. O<br />

clarão amarelo da luz envolvia o rosto da Senhora, que, sem sentir as dores dos<br />

sete ferros, ou como se eles só dessem inefáveis gozos, sorria com os lábios muito<br />

vermelhos. Enquanto ele rezava, no convento de São Domingos, ao lado, a sinete<br />

começou a tocar a agonia. De entre a sombra negra do arco, cessando a sanfona, o<br />

mendigo murmurou: — "Lá está um frade a morrer!" D. Rui disse uma Ave-Maria<br />

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pelo frade que morria. A Virgem das sete espadas sorria docemente — o toque de<br />

agonia não era, pois, de mau presságio! D. Rui cavalgou alegremente e partiu.<br />

Para além da porta de S. Mauros, depois de alguns casebres de oleiros, o<br />

caminho seguia, esguio e negro, entre altas piteiras. Por trás das colinas, ao fundo<br />

da planície escura, subia o primeiro clarão amarelo e lânguido, da Lua-cheia, ainda<br />

escondida. E D. Rui marchava a passo, receando chegar a Cabril muito cedo, antes<br />

que as aias e os moços findassem o serão e o rosário. Por que não lhe marcara D.<br />

Leonor a hora, naquela carta tão clara e tão pensada?... Então a sua imaginação<br />

corria adiante, rompia pelo jardim de Cabril, galgava aladamente a escada prometida<br />

— e ele largava também atrás, numa carreira sôfrega, que arrancava as pedras do<br />

caminho mal junto. Depois sofreava o cavalo ofegante. Era cedo, era cedo! E<br />

retomava o passo penoso, sentindo o coração contra o peito, como ave presa que<br />

bate às grades.<br />

Assim chegou ao Cruzeiro, onde a estrada se fendia em duas, mais juntas<br />

que as pontas de uma forquilha, ambas cortando através de pinheiral. Descoberto<br />

diante da imagem crucificada, D. Rui teve um instante de angústia, pois não se<br />

recordava qual delas levava ao Cerro dos Enforcados. Já se embrenhara na mais<br />

cerrada, quando, de entre os pinheiros calados, uma luz surgiu, dançando no<br />

escuro. Era uma velha em farrapos, com as longas melenas soltas, vergada sobre<br />

um bordão e levando uma candeia.<br />

— Para onde vai este caminho? — gritou Rui.<br />

A velha balançou mais alto a candeia, para mirar o cavaleiro.<br />

— Para Xarama<br />

E luz e velha imediatamente se sumiram, fundidas na sombra, como se ali<br />

tivessem surgido somente para avisar o cavaleiro do seu caminho errado.... Já ele<br />

virara arrebatadamente; e, rodeando o Calvário, galopou pela outra estrada mais<br />

larga, até avistar, sobre claridade do céu os pilares negros, os madeiros negros do<br />

Cerro dos Enforcados.<br />

Então estacou, direito nos estribos. Num cômoro alto, seco, sem erva ou urze,<br />

ligados por um muro baixo, todo esbrechado, lá se erguiam, negros, enormes, sobre<br />

a amarelidão do luar, os quatro pilares de granito semelhantes aos quatro cunhais<br />

duma casa desfeita. Sobre os pilares pousavam quatro grossas traves. Das traves<br />

pendiam quatro enforcados negros e rígidos, no ar parado e mudo. Tudo em torno<br />

parecia morto como eles.<br />

Gordas aves de rapina dormiam empoleiradas sobre os madeiros. Para além,<br />

rebrilhava lividamente a água morta da lagoa das Donas. E, no céu, a Lua ia grande<br />

e cheia.<br />

D. Rui murmurou o Padre-Nosso devido por todo o cristão àquelas almas<br />

culpadas. Depois impeliu o cavalo, e passava — quando, no imenso silêncio e na<br />

imensa solidão, se ergueu, ressoou uma voz, uma voz que o chamava, suplicante e<br />

lenta:<br />

— Cavaleiro, detende-vos, vinde cá!....<br />

D. Rui colheu bruscamente as rédeas e, erguido sobre os estribos, atirou os<br />

olhos espantados por todo o sinistro ermo. Só avistou o cerro áspero, a água<br />

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rebrilhante e muda, os madeiros, os mortos. Pensou que fora ilusão da noite ou<br />

ousadia de algum demônio errante. E, serenamente, picou o cavalo, sem<br />

sobressalto ou pressa, como numa Rua de Segóvia. Mas, por trás, a voz tornou,<br />

mais urgentemente o chamou, ansiosa quase aflita:<br />

— Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui!...<br />

De novo D. Rui estacou e, virado sobre a sela, encarou afoitamente os quatro<br />

corpos pendurados das travas. Do lado deles soava a voz, que, sendo humana, só<br />

podia sair de forma humana! Um desses enforcados, pois, o chamara, com tanta<br />

pressa e ânsia. Restaria nalguns, por maravilhosa mercê de Deus, alento e vida? Ou<br />

seria que, por maior maravilha, uma dessas carcaças meio apodrecidas o detinha<br />

para lhe transmitir avisos de Além-da-Campa?... Mas que a voz rompesse dum peito<br />

vivo ou dum peito morto, grande covardia era abalar, espavoridamente, sem a<br />

atender e a ouvir.<br />

Atirou logo para dentro do cerro o cavalo, que tremia; e, parando, direito e<br />

calmo, com a mão na ilharga, depois de fitar, um por um, os quatro corpos<br />

suspensos, gritou:<br />

— Qual de vós, homens enforcados, ousou chamar pôr D. Rui de Cardenas?<br />

Então aquele que voltava as costas à Lua-cheia, respondeu, do alto da corda, muito<br />

quieta e naturalmente, como um homem que conversa da sua janela para a rua:<br />

— Senhor, fui eu.<br />

D. Rui fez avançar para diante dele o cavalo. Não lhe distinguia a face,<br />

enterrada no peito, escondida pelas longas enegras melenas pendentes. Só<br />

percebeu que tinha as mãos soltas e desamarradas, e também soltos os pés nus, já<br />

ressequidos e da cor do betume.<br />

— Que me queres?<br />

O enforcado, suspirando, murmurou:<br />

— Senhor, fazei-me a grande mercê de me cortar esta corda em que estou<br />

pendurado.<br />

D. Rui arrancou a espada e de um golpe certo, cortou a corda meio<br />

apodrecida. Com um sinistro som de ossos entrechocados o corpo caiu no chão,<br />

onde jazeu um momento, estirado. Mas, imediatamente, se endireitou sobre os pés<br />

mal seguros e ainda dormentes — e ergueu para D. Rui uma face morta, que era<br />

uma caveira com a pele muito colada, e mais amarela que a Lua que nela batia. Os<br />

olhos não tinham movimento nem brilho. Ambos os beiços se lhe arreganhavam num<br />

sorriso empedernido. De entre os dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua<br />

muito negra.<br />

D. Rui não mostrou terror, nem asco. E embainhando serenamente a espada:<br />

— Tu estás morto ou vivo? — perguntou.<br />

O homem encolheu os ombros com lentidão:<br />

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— Senhor, não sei... Quem sabe o que é a vida? Quem sabe o que é a morte?<br />

— Mas que queres de mim?<br />

O enforcado, com os longos dedos descarnados, alargou o nó da corda que<br />

ainda lhe laçava o pescoço e declarou muito serena e firmemente:<br />

— Senhor, eu tenho de ir convosco a Cabril, onde vós ides.<br />

O cavaleiro estremeceu num tão forte assombro, repuxando as rédeas, que o<br />

seu bom cavalo se empinou como assombrado também.<br />

— Comigo a Cabril?!...<br />

O homem curvou o espinhaço, a que se viam os ossos todos, mais agudos<br />

que os dentes de uma serra, através de um longo rasgão da camisa de estamenha:<br />

— Senhor — suplicou — não me negueis. Que eu tenho a receber grande<br />

salário se vos fizer grande serviço!<br />

Então D. Rui pensou de repente que bem podia ser aquela uma traça<br />

formidável do Demónio. E, cravando os olhos muito brilhantes na face morta que<br />

para ele se erguia, ansiosa, à espera do seu consentimento — fez um lento e largo<br />

Sinal-da-Cruz.<br />

O enforcado vergou os joelhos com assustada reverência:<br />

— Senhor, para que me experimentais com esse sinal? Só por ele<br />

alcançamos remissão, e eu só dele espero misericórdia.<br />

Então D. Rui pensou que, se esse homem não era mandado pelo Demônio,<br />

bem podia ser mandado por Deus! E logo devotamente, com um gesto submisso em<br />

que tudo entregava ao Céu, consentiu, aceitou o pavoroso companheiro:<br />

— Vem comigo, pois, a Cabril, se Deus te manda! Mas eu nada te pergunto e<br />

tu nada me perguntes.<br />

Desceu logo o cavalo à estrada, toda alumiada da Lua. O enforcado seguia<br />

ao seu lado, com passos tão ligeiros, que mesmo quando D. Rui galopava ele se<br />

conservava rente ao estribo, como levado por um vento mudo. Por vezes, para<br />

respirar mais livremente, repuxava o nó da corda que lhe enroscava o pescoço. E,<br />

quando passavam entre sebes onde errasse o aroma de flores silvestres, o homem<br />

murmurava com infinito alívio e delicia:<br />

— Como é bom correr!<br />

D. Rui ia num assombro, num tormentoso cuidado. Bem compreendia agora<br />

que era aquele um cadáver reanimado por Deus, para um estranho e encoberto<br />

serviço. Mas para que lhe dava Deus tão medonho companheiro? Para o proteger?<br />

Para impedir que D. Leonor, amada do Céu pela sua piedade, caísse em culpa<br />

mortal? E, para tão divina incumbência de tão alta mercê, já não tinha o Senhor anjos<br />

no Céu, que necessitasse empregar um supliciado?... Ah! Como ele voltaria<br />

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alegremente a rédea para Segóvia, se não fora a galante lealdade de cavaleiro, o<br />

orgulho de nunca recuar, e a submissão às ordens de Deus, que sentia sobre si<br />

pesarem... Dum alto da estrada, de repente, avistaram Cabril, as torres do convento<br />

franciscano alvejando ao luar, os casais adormecidos entre as hortas. Muito<br />

silenciosamente, sem que um cão ladrasse detrás das cancelas ou de cima dos<br />

muros, desceram a velha ponte romana. Diante do Calvário, o enforcado caiu de<br />

joelhos nas lajes, ergueu os lívidos ossos da mãos, ficou longamente rezando, entre<br />

longos suspiros. Depois ao entrar na azinhaga, bebeu muito tempo, e<br />

consoladamente, de uma fonte que corria e cantava sob as frondes de um salgueiro.<br />

Como a azinhaga era muito estreita, ele caminhava adiante do cavaleiro, todo<br />

encurvado, os braços cruzados fortemente sobre o peito, sem um rumor.<br />

A Lua ia alta no céu. D. Rui considerava com amargura aquele disco, cheio e<br />

lustroso, que espargia tanta claridade, e tão indiscreta, sobre o seu segredo. Ah!<br />

Como se estragava a noite que devia ser divina! Uma enorme Lua surdia de entre os<br />

montes para tudo alumiar. Um enforcado descia da forca para o seguir e tudo saber.<br />

Deus assim o ordenara. Mas que tristeza chegar à doce porta, docemente<br />

prometida, com tal intruso ao seu lado, sob aquele céu todo claro!<br />

Bruscamente, o enforcado estacou, erguendo o braço, de onde a manga<br />

pendia em farrapos. Era o fim da azinhaga que desembocava em caminho mais<br />

largo e mais batido: — e diante deles alvejava o comprido muro da Quinta do senhor<br />

de Lara, tendo aí um mirante, com varandins de pedra, e todo revestido de hera.<br />

— Senhor — murmurou o enforcado, segurando com respeito o estribo de D.<br />

Rui — logo a poucos passos deste mirante é a porta por onde deveis penetrar no<br />

jardim. Convém que aqui deixeis o cavalo, amarrado a uma árvore, se o tendes por<br />

seguro e fiel. Que na empresa em que vamos, já é de mais o rumor dos nossos pés!...<br />

Silenciosamente D. Rui apeou, prendeu o cavalo, que sabia fiel e seguro, ao<br />

tronco dum álamo seco. E tão submisso se tornara àquele companheiro imposto por<br />

Deus, que sem outro reparo o foi seguindo rente do muro que o luar batia.<br />

Com vagarosa cautela, e na ponta dos pés nus, avançava agora o enforcado,<br />

vigiando o alto do muro, sondando a negrura da sebe, parando a escutar rumores<br />

que só para ele eram percebíveis — porque nunca D. Rui conhecera noite mais<br />

fundamente adormecida e muda.<br />

E tal susto, em quem devia ser indiferente a perigos humanos, foi lentamente<br />

enchendo também o valoroso cavaleiro de tão viva desconfiança, que tirava o<br />

punhal da bainha, enrodilhava a capa no braço, e marchava em defesa, com o olhar<br />

faiscando, como num caminho de emboscada e briga. Assim chegaram a uma porta<br />

baixa, que o enforcado empurrou, e que se abriu sem gemer nos gonzos.<br />

Penetraram numa rua ladeada de espessos teixos até a um tanque cheio de água,<br />

onde boiavam folhas de nenúfares, e que toscos bancos de pedra circundavam,<br />

cobertos pela rama de arbustos em flor.<br />

— Por ali! — murmurou o enforcado, estendendo o braço mirrado.<br />

Era, além do tanque, uma avenida que densas e velhas árvores abobadavam<br />

e escureciam. Por ela se meteram, como sombras na sombra, o enforcado adiante,<br />

D. Rui seguindo muito subtilmente, sem roçar um ramo, mal pisando a areia.<br />

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Um leve fio de água sussurrava entre relvas. Pelos troncos subiam rosas<br />

trepadeiras, que cheiravam docemente. O coração de D. Rui recomeçou a bater<br />

numa esperança de amor.<br />

— Chuta! — fez o enforcado.<br />

E D. Rui quase tropeçou no sinistro homem que estacava, com os braços<br />

abertos como as traves de uma cancela. Diante deles quatro degraus de pedra<br />

subiam a um terraço, onde a claridade era larga e livre. Agachados, treparam os<br />

degraus — e ao fundo dum jardim sem árvores, todo em canteiros de flores bem<br />

recortados, orlados de buxo curto, avistaram um lado da casa batido pela Lua-cheia.<br />

Ao meio, entre as janelas de peitoril fechadas, um balcão de pedra, com manjericões<br />

aos cantos, conservava as vidraças abertas, largamente. O quarto, dentro, apagado,<br />

era como um buraco de treva na claridade da fachada que o luar banhava. E,<br />

arrimada contra o balcão, estava uma escada com degraus de corda.<br />

Então o enforcado empurrou D. Rui vivamente dos degraus para a escuridão<br />

da avenida. E aí, com um modo urgente, dominando o cavaleiro, exclamou:<br />

— Senhor! Convém agora que me deis o vosso sombreiro e a capa! Vós<br />

quedais aqui na escuridão destas árvores. Eu vou trepar àquela escada e espreitar<br />

para aquele quarto... E se for como desejais, aqui voltarei, e com Deus sede feliz...<br />

D. Rui recuou no horror de que tal criatura subisse a tal janela!<br />

E bateu o pé, gritou surdamente:<br />

— Não, por Deus!<br />

Mas a mão do enforcado, lívida na escuridão, bruscamente lhe arrancou o<br />

sombreiro da cabeça, lhe puxou a capa do braço. E já se cobria, já se embuçava,<br />

murmurando agora, numa súplica ansiosa:<br />

— Não mo negueis, senhor, que se vos fizer grande serviço, ganharei grande<br />

mercê!<br />

E galgou os degraus: — estava no alumiado e largo terraço.<br />

D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E — oh maravilha! — era ele, D. Rui, todo<br />

ele, na figura e no modo, aquele homem que, por entre os canteiros e o buxo curto,<br />

avançava, airoso e leve, com a mão na cintura, a face erguida risonhamente para a<br />

janela, a longa pluma escarlate do chapéu balançando em triunfo. O homem<br />

avançava no luar esplêndido. O quarto amoroso lá estava esperando, aberto e<br />

negro. E D. Rui olhava, com olhos que faiscavam, tremendo de pasmo e cólera. O<br />

homem chegara à escada: destraçou a capa, assentou o pé no degrau de corda! —<br />

"Oh! lá sobe, o maldito!" — rugiu D. Rui. O enforcado subia. Já a alta figura, que era<br />

dele, D. Rui, estava a meio da escada, toda negra contra a parede branca. Parou!...<br />

Não! Não parara: subia, chegava, — já sobre o rebordo da varanda pousara o<br />

joelho cauteloso. D. Rui olhava, desesperadamente, com os olhos, com a alma, com<br />

todo o seu ser... E eis que, de repente, do quarto negro surge um negro vulto, uma<br />

furiosa voz brada: — "vilão, vilão!" — e uma lâmina de adaga faísca, e cai, e outra<br />

vez se ergue, e rebrilha, e se abate, e ainda refulge, e ainda se embebe!... Como um<br />

fardo, do alto da escada, pesadamente, o enforcado cai sobre a terra mole.<br />

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Vidraças, portadas do balcão logo se fecham com fragor, E não houve mais senão o<br />

silêncio, a serenidade macia, a Lua muito alta e redonda no céu de Verão.<br />

Num relance D. Rui compreendera a traição, arrancara a espada, recuando<br />

para a escuridão da avenida — quando — oh milagre! Correndo através do terraço,<br />

aparece o enforcado, que lhe agarra a manga e lhe grita:<br />

— A cavalo, senhor, e abalar, que o encontro não era de amor, mas de morte!....<br />

Ambos descem arrebatadamente a avenida, costeiam o tanque sob o refúgio<br />

dos arbustos em flor, metem pela rua estreita orlada de teixos, varam a porta — e<br />

um momento param, ofegantes, na estrada, onde a Lua, mais refulgente, mais cheia,<br />

fazia como um puro dia.<br />

E então, só então, D. Rui descobriu que o enforcado conservava cravada no<br />

peito, até aos copos, a adaga, cuja ponta lhe saia pelas costas, luzidia e limpa!...<br />

Mas já o pavoroso homem o empurrava, o apressava:<br />

— A cavalo, senhor, e abalar, que ainda está sobre nós a traição!<br />

Arrepiado, numa ânsia de findar aventura tão cheia de milagre e de horror, D. Rui<br />

colheu as rédeas, cavalgou sofregamente. E logo, em grande pressa, o enforcado<br />

saltou também para a garupa do cavalo fiel. Todo se arrepiou o bom cavaleiro, ao<br />

sentir nas suas costas o roçar daquele corpo morto, dependurado de uma forca,<br />

atravessado por uma adaga. Com que desespero galopou então pela estrada<br />

infindável! Em carreira tão violenta o enforcado nem oscilava, rígido sobre a garupa,<br />

como um bronze num pedestal. E D. Rui a cada momento sentia um frio mais regelado<br />

que lhe regelava os ombros, como se levasse sobre eles um saco cheio de gelo.<br />

Ao passar no cruzeiro murmurou: — "Senhor, valei-me!" — Para além do<br />

cruzeiro, de repente, estremeceu com o quimérico medo de que tão fúnebre<br />

companheiro, para sempre, o ficasse acompanhando, e se tornasse seu destino<br />

galopar através do mundo, numa noite eterna, levando um morto à garupa... E não<br />

se conteve, gritou para trás, no vento da carreira que os vergastava:<br />

— Para onde quereis que vos leve?<br />

O enforcado, encostando tanto o corpo a D. Rui que o magoou com os copos<br />

da adaga, segredou:<br />

— Senhor, convém que me deixeis no Cerro! Doce e infinito alívio para o bom<br />

cavaleiro — pois o Cerro estava perto, e já lhe avistava, na claridade desmaiada, os<br />

pilares e as traves negras... Em breve estacou o cavalo, que tremia, branqueando de<br />

espuma.<br />

Logo o enforcado, sem rumor, escorregou da garupa, segurou, como bom<br />

serviçal, o estribo de D. Rui. E com a caveira erguida, a língua negra mais saída de<br />

entre os dentes brancos, murmurou em respeitosa súplica:<br />

— Senhor, fazei-me agora a grande mercê de me pendurar outra vez da<br />

minha trave.<br />

D. Rui estremeceu de horror:<br />

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— Por Deus! Que vos enforque, eu?....<br />

O homem suspirou, abrindo os braços compridos:<br />

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— Senhor, por vontade de Deus é, e por vontade d`Aquela que é mais cara a<br />

Deus!<br />

Então, resignado, submisso aos mandados do Alto, D. Rui apeou — e<br />

começou a seguir o homem, que subia para o Cerro pensativamente, vergando o<br />

dorso, de onde saía espetada e luzidia, a ponta da adaga. Pararam ambos sob a<br />

trave vazia. Em torno das outras traves pendiam as outras carcaças. O silêncio era<br />

mais triste e fundo que os outros silêncios da terra. A água da lagoa enegrecera. A<br />

Lua descia e desfalecia. D. Rui considerou a trave onde restava, curto no ar, o<br />

pedaço de corda que ele cortara com a espada.<br />

— Como quereis que vos pendure? — exclamou. — Àquele pedaço de corda<br />

não posso chegar com a mão: nem eu só basto para lá vos içar.<br />

— Senhor — respondeu o homem — aí a um canto deve haver um longo rolo<br />

de corda. Uma ponta dela ma atareis a este nó que trago no pescoço: a outra ponta<br />

a arremessareis por cima da trave, e puxando depois, forte como sois, bem me<br />

podereis reenforcar.<br />

Ambos curvados, com passos lentos, procuraram o rolo de corda. E foi o<br />

enforcado que o encontrou, o desenrolou... Então D. Rui descalçou as luvas. E<br />

ensinado por ele (que tão bem o aprendera do carrasco) atou uma ponta da corda ao<br />

laço que o homem conservava no pescoço, e arremessou fortemente a outra ponta, que<br />

ondeou no ar, passou sobre a trave, ficou pendurada rente ao chão. E o rijo cavaleiro,<br />

fincando os pés, retesando os braços, puxou, içou o homem, até ele se quedar,<br />

suspenso, negro no ar, como um enforcado natural entre os outros enforcados.<br />

— Estais bem assim?<br />

Lenta e sumida, veio a voz do morto:<br />

— Senhor, estou como devo.<br />

Então D. Rui, para o fixar, enrolou a corda em voltas grossa ao pilar de pedra.<br />

E tirando o sombreiro, limpando com as costas da mão o suor que o alagava,<br />

contemplou o seu sinistro e miraculoso companheiro. Estava já rígido como antes,<br />

com a face pendida sob as melenas caídas, os pés inteiriçados, todo puído e<br />

carcomido como uma velha carcaça.<br />

No peito conservava a adaga cravada. Por cima, dois corvos dormiam quietos.<br />

— E agora que mais quereis? — perguntou D. Rui, começando a calçar as luvas.<br />

Sumidamente, do alto, o enforcado murmurou:<br />

— Senhor, muito vos rogo agora que, ao chegar a Segóvia, tudo conteis<br />

fielmente a Nossa Senhora do Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê<br />

para a minha alma, por este serviço que, a seu mandado, vos fez o meu corpo!<br />

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Então, D. Rui de Cardenas tudo compreendeu — e, ajoelhando devotamente<br />

sobre o chão de dor e morte, rezou uma longa oração por aquele bom enforcado.<br />

Depois galopou para Segóvia. A manhã clareava, quando ele transpôs a porta<br />

de S. Mauros. No ar fino os sinos claros tocavam a matinas. E entrando na igreja de<br />

Nossa Senhora do Pilar, ainda no desalinho da sua terrível jornada, D. Rui, de rojo<br />

ante o altar, narrou ã sua Divina Madrinha a ruim tenção que levara a Cabril, o<br />

socorro que do Céu recebera, e, com quentes lágrimas de arrependimento e<br />

gratidão, lhe jurou que nunca mais poria desejo onde houvesse pecado, nem no seu<br />

coração daria entrada a pensamento que viesse do Mundo e do Mal.<br />

CAPÍTULO IV<br />

A essa hora, em Cabril, D. Alonso de Lara, com olhos esbugalhados de<br />

pasmo e terror, esquadrinhava todas as ruas e recantos e sombras do seu jardim.<br />

Quando ao alvorecer, depois de escutar ã porta da câmara onde nessa noite<br />

encerrara D. Leonor, ele descera subtilmente ao jardim e não encontrara, debaixo do<br />

balcão, rente à escada, como deliciosamente esperava, o corpo de D. Rui de<br />

Cardenas, teve por certo que o homem odioso, ao tombar, ainda com um resto débil<br />

de vida, se arrastara sangrando e arquejando, na tentativa de alcançar o cavalo e<br />

abalar de Cabril... Mas, com aquela rija adaga que ele três vezes lhe enterrara no<br />

peito, e que no peito lhe deixara, não se arrastaria o vilão por muitas jardas, e<br />

nalgum canto devia jazer frio e inteiriçado. Rebuscou então cada rua, cada sombra,<br />

cada maciço de arbustos. E — maravilhoso caso! — não descobria o corpo, nem<br />

pegadas, nem terra que houvesse sido remexida, nem sequer rasto de sangue sobre<br />

a terra! E, todavia, com mão certeira e faminta de vingança, três vezes ele lhe<br />

embebera a adaga no peito, e no peito lha deixara!<br />

E era Rui de Cardenas o homem que ele matara — que muito bem o<br />

conhecera logo, do fundo apagado do quarto de onde espreitava, quando ele, à<br />

claridade da Lua, veio através do terraço, confiado, ligeiro, com a mão na cintura, a<br />

face risonhamente erguida e a pluma do sombreiro meneando em triunfo! Como podia<br />

ser coisa tão rara — um corpo mortal sobrevivendo a um ferro, que três vezes lhe vara<br />

o coração e no coração lhe fica cravado? E a maior raridade era que nem no chão,<br />

debaixo da varanda, onde corria ao longo do muro uma tira de goivos e cecéns,<br />

deixara um vestígio aquele corpo forte, caindo de tão alto pesadamente, inertemente,<br />

como um fardo! Nem uma flor machucada — todas direitas, viçosas, como novas, com<br />

gotas leves de orvalho! Imóvel de espanto, quase de terror, D. Alonso de Lara ali<br />

parava, considerando o balcão, medindo a altura da escada, olhando<br />

esgazeadamente os goivos direitos, frescos, sem uma haste ou folha vergada.<br />

Depois recomeçava a correr loucamente o terraço, a avenida, a rua de teixos,<br />

na esperança ainda duma pegada, dum galho partido, de uma nódoa de sangue na<br />

areia fina.<br />

Nada! Todo o jardim oferecia um desusado arranjo e limpeza nova, como se<br />

sobre ele nunca houvesse passado nem o vento que desfolha, nem o sol que murcha.<br />

Então, ao entardecer, devorado pela incerteza e mistério, tomou um cavalo, e<br />

sem escudeiro ou cavalariço, partiu para Segóvia. Curvado e escondidamente, como<br />

um foragido, penetrou no seu palácio pela porta do pomar: e o seu primeiro cuidado<br />

foi correr à galeria de abóbada, destrancar as portas da janela e espreitar<br />

avidamente a casa de D. Rui de Cardenas.<br />

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Todas as gelosias da velha morada do arcediago estavam escuras, abertas,<br />

respirando a fresquidão da noite: — e à porta, sentado num banco de pedra, um<br />

moço de cavalariça afinava preguiçosamente a bandurra.<br />

D. Alonso de Lara desceu à sua câmara, lívido, pensando que não houvera<br />

certamente desgraça em casa onde todas as janelas se abrem para refrescar, e no<br />

portão da rua os moços folgam. Então bateu as palmas, pediu furiosamente a ceia.<br />

E, apenas sentado, ao topo da mesa, na sua alta sede de couro lavrado, mandou<br />

chamar o intendente, a quem ofereceu logo, com estranha familiaridade, um copo de<br />

vinho velho. Enquanto o homem, de pé, bebia respeitosamente, D. Alonso, metendo<br />

os dedos pelas barbas e forçando a sua sombria face a sorrir, perguntava pelas<br />

novas e rumores de Segóvia. Nesses dias da sua estada em Cabril, nenhum caso<br />

criara pela cidade espanto e murmuração?... O intendente limpou os beiços, para<br />

afirmar que nada ocorrera em Segóvia de que andasse murmuração, a não ser que<br />

a filha do senhor D. Gutierres, tão moça e tão rica herdeira, tomara o véu no<br />

convento das Carmelitas Descalças.<br />

D. Alonso insistia, fitando vorazmente o intendente. E não se travara uma<br />

grande briga?... Não se encontrara ferido, na estrada de Cabril, um cavaleiro moço,<br />

muito falado?... O intendente encolhia os ombros: nada ouvira, pela cidade, de brigas<br />

ou de cavaleiros feridos. Com um aceno desabrido D. Alonso despediu o intendente.<br />

Apenas ceara, parcamente, logo voltou à galeria a espreitar as janelas de D.<br />

Rui. Estavam agora cerradas; na última, da esquina, tremeluzia uma claridade. Toda<br />

a noite D. Alonso velou, remoendo incansavelmente o mesmo espanto. Como<br />

pudera escapar aquele homem, com uma adaga atravessada no coração? Como<br />

pudera?... Ao luzir da manhã, tomou uma capa, um largo sombreiro, desceu ao adro,<br />

todo embuçado e encoberto, e ficou rondando por diante da casa de D. Rui. Os<br />

sinos tocaram a matinas. Os mercadores, com os gibões mal abotoados, saíam a<br />

erguer as portadas das lojas, a pendurar as tabuletas. Já os hortelões, picando os<br />

burros carregados de seiras, atiravam os pregões da hortaliça fresca, e frades<br />

descalços, com o alforge aos ombros, pediam esmola, benziam as moças. Beatas<br />

embiocadas, com grossos rosários negros, enfiavam gulosamente para a igreja.<br />

Depois o pregoeiro da cidade, parando a um canto do adro, tocou uma buzina, e<br />

numa voz tremenda começou a ler um edital.<br />

O senhor de Lara, parava junto do chafariz, pasmado, como embebido no<br />

cantar das três bicas de água. De repente pensou que aquele edital, lido pelo<br />

pregoeiro da cidade, se referia talvez a D. Rui, ao seu desaparecimento... Correu à<br />

esquina do adro — mas já o homem enrolara o papel, se afastava majestosamente,<br />

batendo nas lajes com a sua vara branca. E, quando se voltava para espiar de novo<br />

a casa, eis que os seus olhos atônitos encontram D. Rui, D. Rui que ele matara — e<br />

que vinha caminhando para a igreja de Nossa Senhora, ligeiro, airoso, a face<br />

risonha e erguida no fresco ar da manhã, de gibão claro, de plumas claras, com uma<br />

das mãos pousando na cinta, a outra meneando distraidamente um bastão com<br />

borlas de torçal de ouro!<br />

D. Alonso recolheu então a casa com passos arrastados e envelhecidos. No<br />

alto da escadaria de pedra, achou o seu velho capelão, que o viera saudar, e que,<br />

penetrando com ele na antecâmara, depois de pedir, com reverência, novas da<br />

senhora D. Leonor, lhe contou logo dum prodigioso caso, que causava pela cidade<br />

grave murmuração e espanto. Na véspera, de tarde, indo o corregedor visitar o cerro<br />

das forcas, pois se acercava a festa dos Santos Apóstolos, descobrira, com muito<br />

pasmo e muito escândalo, que um dos enforcados tinha uma adaga cravada no<br />

peito! Fora gracejo de um pícaro sinistro?<br />

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Vingança que nem a morte saciara?... E para maior prodígio ainda, o corpo<br />

fora despendurado da forca, arrastado em horta ou jardim (pois que presas aos<br />

velhos farrapos se encontravam folhas tenras) e depois novamente enforcado e com<br />

nova!... E assim ia a turbulência dos tempos, que nem os mortos se furtavam a<br />

ultrajes! D. Alonso escutava com as mãos a tremer, os pêlos arrepiados. E<br />

imediatamente, numa ansiosa agitação, bradando, tropeçando contra as portas, quis<br />

partir, e por seus olhos verificar a fúnebre profanação. Em duas mulas ajaezadas à<br />

pressa, ambos abalaram para o Cerro dos Enforcados, ele e o capelão arastado e<br />

aturdido. Numeroso povo de Segóvia se juntara já no Cerro, pasmando para o<br />

maravilhoso horror — o morto que fora morto!... Todos se arredaram ante o nobre<br />

senhor de Lara, que arremessando-se pelo cabeço acima, estacara o olhar,<br />

esgazeado e lívido, para o enforcado e para a adaga que lhe varava o peito. Era a<br />

sua adaga: — fora ele que matara o morto! Galopou espavoridamente para Cabril. E<br />

aí se encerrou com o seu segredo, começando logo a amarelecer, a definhar,<br />

sempre arredado da senhora D. Leonor, escondido pelas ruas sombrias do jardim,<br />

murmurando palavras ao vento, até que na madrugada de S. João uma serva, que<br />

voltava da fonte com a sua bilha, o encontrou morto, por baixo do balcão de pedra,<br />

todo estirado no chão, com os dedos encravados no canteiro de goivos, onde<br />

parecia ter longamente esgaravatado a terra, a procurar...<br />

CAPÍTULO V<br />

Para fugir a tão lamentáveis memórias, a senhora D. Leonor, herdeira de<br />

todos os bens da casa da Lara, recolheu ao seu palácio de Segóvia. Mas como<br />

agora sabia que o senhor D. Rui de Cardenas escapara miraculosamente à<br />

emboscada de Cabril, e como cada manhã, espreitando de entre as gelosias, meio<br />

cerradas, o seguia, com olhos que se não fartavam e se umedeciam, quando ele<br />

cruzava o adro para entrar na igreja, não quis ela, com receio das pressas e<br />

impaciências do seu coração, visitar a Senhora do Pilar enquanto durasse o seu<br />

luto. Depois, uma manhã de Domingo, quando, em vez de crepes negros, se pôde<br />

cobrir de sedas roxas, desceu a escadaria do seu palácio, pálida de uma emoção<br />

nova e divina, pisou as lajes do adro, transpôs as portas da igreja. D. Rui de<br />

Cardenas estava ajoelhado diante do altar, onde depusera o seu ramo votivo<br />

de cravos amarelos e brancos. Ao rumor das sedas finas, ergueu os olhos com uma<br />

esperança muito pura e toda feita de graça celeste, como se um anjo o chamasse.<br />

D. Leonor ajoelhou, com o peito a arfar, tão pálida e tão feliz que a cera das tochas<br />

não era mais pálida, nem mais felizes as andorinhas que batiam as asas livres pelas<br />

ogivas da velha igreja.<br />

Ante esse altar, e de joelhos nessas lajes, foram eles casados pelo bispo de<br />

Segóvia, D. Martinho, no Outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela<br />

Isabel e Fernando, muito fortes e muito católicos, por quem Deus operou grandes<br />

feitos sobre a terra e sobre o mar.<br />

FIM<br />

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