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Masoquismo originário: ser de objeto e semblante - Escola Letra ...

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<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>:<br />

<strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

Eduardo A. Vidal<br />

Freud, em seus "Três ensaios", circunscreve a noção <strong>de</strong> masoquismo a um tempo<br />

<strong>de</strong> satisfação <strong>de</strong> uma pulsão parcial, a chamada sadomasoquista. Fica estabelecido<br />

na sua teorízação um enlace essencial entre o masoquismo e o campo<br />

pulsional.<br />

O masoquismo, no entanto, só po<strong>de</strong>rá <strong>ser</strong> nomeado "<strong>originário</strong>" quando correlacioaado<br />

à escrita metapsicológica dos conceitos fundamentais <strong>de</strong> inconsciente e <strong>de</strong><br />

pulsão. Essa é a resposta freudiana para uma satisfação que sempre se produz mal<br />

<strong>de</strong>mais. O analista é convocado a intervir no sofrimento trazido pela própria satisfação<br />

e é neste campo paradoxal on<strong>de</strong> ele encontra as maiores resistências ao tratamento.<br />

Lacan introduz a categoria do impossível para o gozo que obstaculiza o funcionamento<br />

do princípio 4o prazer. Toma a questão por on<strong>de</strong> convém: não retroce<strong>de</strong> ante o gozo<br />

e entrega sua invenção, o <strong>objeto</strong> a, com o qual o gozo, sob transferência, passa a <strong>ser</strong><br />

elaborado. Constitui sua resposta para os pontos <strong>de</strong> impasse da clínica freudiana. É<br />

necessário avançar na direção da Durcharbeitungesgotando, na travessia, a repetição<br />

do gozo. On<strong>de</strong> era isso, o gozo, <strong>de</strong>ve o sujeito advir. O analista <strong>de</strong>ve saber <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

lugar é coaveniente agir: o <strong>semblante</strong> <strong>de</strong> objete cumpre uma função separadora<br />

a<strong>de</strong>quada para suportar os efeitos <strong>de</strong> ruptura e perda no campo pulsional. O ato analítico<br />

produz no seu horizonte um novo sujeito como resposta ao real da pulsão. O masoquismo<br />

<strong>originário</strong>, enlaçado ao <strong>originário</strong> do recalque, está no fundamento do sujeito<br />

dividido ante o gozo. Essa fundação, não <strong>ser</strong>ia abordável essencialmente no final <strong>de</strong><br />

análise enquanto ali possa advir um sujeito localizado na estrutura que o origina: a<br />

linguagem?<br />

A partir <strong>de</strong> 1915 a questão do masoquismo recai sobre seu caráter <strong>originário</strong>. Suas<br />

implicações teóricas e clínicas são solidárias dos fundamentos metapsicológicos do<br />

inconsciente. O tempo do recalque <strong>originário</strong> se especifica como fundação do inconsciente<br />

no ato <strong>de</strong> fixação do representante à pulsão. Ponto <strong>de</strong> partida e <strong>de</strong> limite da<br />

estrutura - nó mental exigível à constituição do saber inconsciente, como uma re<strong>de</strong><br />

articulada <strong>de</strong> representações. É, ao mesmo tempo, a indicação da falha do saber. A<br />

operação <strong>de</strong>ixa um resto que Freud teoriza nos anos seguintes <strong>de</strong>sembocando (1920)<br />

no masoquismo <strong>originário</strong>, nome freudiano do gozo, adscrito à pulsão <strong>de</strong> morte.<br />

Em "Pulsões e <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> pulsão" o masoquismo é formulado na sua relação com<br />

o sadismo. A hipótese do par antagônico -Gegensafipaar-enunciada em 1905, ganha<br />

134 LETOA FREUDIANA - Ano XI - n" 10/11/12


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

um novo sentido. O par não se <strong>de</strong>fine só por uma ação complementaria pois introduz<br />

o modo <strong>de</strong> oposição em que a pulsão efetua seu circuito. Gegensatzpaar porta na sua<br />

formação <strong>de</strong> vocábulo, a oposição - o contraste - e o lugar, <strong>de</strong>r Satz, a frase. O par é<br />

a própria frase gramatical e a mutação <strong>de</strong> ativo em passivo, inflexão da voz verbal. A<br />

pulsão realiza seus <strong>de</strong>stinos - Schicksale —, constitui seu fim "chegando a <strong>de</strong>stino".<br />

Como não ouvir ali a ressonância trágica ao evocar o po<strong>de</strong>r do Outro <strong>de</strong>terminando <strong>de</strong><br />

forma inexorável a série <strong>de</strong> atos do sujeito? Freud estabelece os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> "uma"<br />

pulsão; o caso particular da pulsão sadomasoquista compromete a conjugação dos<br />

<strong>de</strong>stinos: conversão ao contrário - Verhehrung ins Gegenteil - e volta a própria pessoa<br />

- Wenãung gegen die eigene fierson. Verkehrungaponta para a conversão inseparável<br />

<strong>de</strong> movimento e <strong>de</strong> circulação. Wendung indica tanto a volta como o ponto <strong>de</strong> virada<br />

a partir do qual se produz uma mudança <strong>de</strong> rumo no trajeto da pulsão. O enlace dos<br />

dois <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong>termina o movimento que se realiza quando, enganchado ao Outro em<br />

cuja direção parte, efetua nesse campo o retorno, isto é, constitui o ponto <strong>de</strong> giro a<br />

partir do qual se oriente contra a própria pessoa. Desenha-se, nesse circuito, uma<br />

topologia <strong>de</strong> borda cujo ponto <strong>de</strong> partida é o sadismo <strong>de</strong>finido como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r - Gewahtatigkeit. Trata-se <strong>de</strong> um primeiro tempo que consiste em acionar um<br />

po<strong>de</strong>r -Machtbetatigung- contra outra pessoa constituída, em <strong>objeto</strong>, por essa mesma<br />

ação. O sadismo alcança <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo um <strong>objeto</strong> alheio. O infans-a criança, escreve<br />

Freud - se esforça em tornar-se senhor -Herr - <strong>de</strong> seus próprios membrqs. Este tempo<br />

primeiro do par" correspon<strong>de</strong> a um alheamento no <strong>objeto</strong> - einfrem<strong>de</strong>s Objekt- que<br />

lhe fornece uma imagem <strong>de</strong> domínio dos membros. Opera uma implicação do narcisismo<br />

sobre a satisfação autoerótica da pulsão parcial, O sadismo introduz o "primeiro<br />

grau narcisista construído" - die konstruierte narzifitische Vorstufe <strong>de</strong>s Sadismus -<br />

cujo efeito é a precipitação <strong>de</strong> uma forma, <strong>de</strong> uma formação narcisista -einenarziBtische<br />

Bildung. Tem, concomitantemente, a função <strong>de</strong> constituir a fonte <strong>de</strong> órgão da<br />

pulsão - Organquelle - na musculatura, capaz <strong>de</strong> uma ação, que visa tanto o <strong>objeto</strong><br />

alheio como o próprio corpo. Verifica-se a precedência lógica do sadismo <strong>originário</strong><br />

na constituição do Ziel - fim e alvo pulsional - através do campo do Outro. O sadismo,<br />

assim <strong>de</strong>scrito, carece ainda <strong>de</strong>valor <strong>de</strong>gozo.<br />

O segundo tempo do circuito implica a volta contra a própria pessoa com a mutação<br />

<strong>de</strong> ativo em passivo. Nesses termos Freud se refere tanto à reversão das posições <strong>de</strong><br />

sujeito e <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> como às vozes verbais, essenciais para nossa pontuação. Com o<br />

retorno da pulsão se produz o abandono -Aufgeben -do <strong>objeto</strong>. O corpo próprio, fonte<br />

<strong>de</strong> órgão que se encontra no ponto <strong>de</strong> partida, é também lugar <strong>de</strong> retorno da pulsão. O<br />

percurso se faz através do campo do Outro on<strong>de</strong> o <strong>objeto</strong> é "perdido". O sujeito vem<br />

a constituir-se no lugar vazio do <strong>objeto</strong>, substituindo-se - ersatz - a essa falta. A<br />

satisfação da pulsão é complexa não se realizando jamais <strong>de</strong> forma direta; é necessário<br />

contar um terceiro tempo na satisfação propriamente masoquista. A operação é a<br />

seguinte: uma pessoa alheia - einefrem<strong>de</strong> Person - vem a ocupar o lugar do sujeito<br />

que, agora i<strong>de</strong>ntificado com o <strong>objeto</strong> abandonado, procura o gozo. Este tempo mostra<br />

que o gozo se alcança <strong>de</strong> modo precário, por um <strong>de</strong>svio que inclui o gozo do Outro,<br />

LETRA FREUDIANA -Ano XI -n s 10/11/12 135


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

quando o sujeito se faz <strong>objeto</strong> <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> alheia. A pulsão <strong>de</strong>screve uma estrutura<br />

<strong>de</strong> borda cujo "ponto <strong>de</strong> partida" é a função <strong>de</strong> um certo <strong>objeto</strong> perdido, implicando<br />

um sujeito acéfalo. O sujeito só se encontra no retorno quando se torna (wird, na forma<br />

passiva em alemão) término da pulsão. O infinitivo voz passiva: "<strong>ser</strong> batido, maltratado<br />

..." fecha o circuito pulsional quando emerge o "<strong>ser</strong>" do verbo. Ainda é necessário uma<br />

terceira forma gramatical -aí a ativida<strong>de</strong> da pulsão é máxima -para o gozo masoquista.<br />

Lacan <strong>de</strong>stacou no tesouro da língua o infinitivo na sua forma pronominal sefaire: o<br />

sujeito solicita a ação do Outro e implica sua divisão em ato (fazer-se), em prol <strong>de</strong> um<br />

gozo, que força a barreira do princípio do prazer. As frases "fazer-se comer, cagar,<br />

olhar, ouvir" realizam o contorno gramatical do <strong>objeto</strong> perdido do gozo, <strong>objeto</strong> a,<br />

mais-<strong>de</strong>-gozar. Cada pulsão parcial comportaria, no circuito da sua satisfação, o gozo<br />

virtualmente masoquista <strong>de</strong> fazer-se <strong>objeto</strong> do Outro.<br />

O <strong>objeto</strong> se faz presente na pulsão no seu estatuto <strong>de</strong> perda. O sujeito, por outro<br />

lado, sustenta-se como <strong>de</strong>sejante em uma complexa montagem significante, o fantasma,<br />

conjugado às vestimentas, i (a), do <strong>objeto</strong>. O fantasma está logicamente imbrícado<br />

no corte gramatical da pulsão (e Freud postulou o axioma do fantasma após ter<br />

formulado a gramática da pulsão). Seu escrito "Bate-se numa criança" (Ein Kind wird<br />

geschlagen - 1919) faz surgir o sujeito gramatical, o eu (ich), originariamente reprimido,<br />

ao qual o fantasma - como o forro à vestimenta - outorga consistência. A<br />

construção em análise estabelece os tempos lógicos do fantasma fundamental. Entre<br />

o tempo da frase <strong>de</strong> sujeito anônimo "Bate-se numa criança" e a frase "O pai bate na<br />

criança" é construído o segundo tempo, sempre elidido, no fantasma. Em princípio<br />

esse tempo nunca fez parte da lembrança, não teve nenhum acesso a consciência e nem<br />

existência real. É uma frase <strong>de</strong> caráter axiomático estabelecida pela construção: "Eu<br />

sou batido pelo pai". Ich wer<strong>de</strong> vom Vater geschlagen. A frase, <strong>de</strong>purada da série<br />

imaginária on<strong>de</strong> o sujeito aparece "irreconhecivelmente disfarçado", se escreve no<br />

limite em que lei e gozo confluem, relação genital proibida e excitação libidinal<br />

regressiva. Tempo que une no fantasma o efeito do recalque <strong>originário</strong> com. o gozo<br />

masoquista. Ponto nodal em que o sujeito se efetua como divisão na ca<strong>de</strong>ia significante,<br />

confessando <strong>ser</strong> um <strong>objeto</strong> que goza ao anular-se sob o po<strong>de</strong>r do Outro. Com o fantasma<br />

o neurótico dá uma resposta a disjunção entre corpo e gozo, separação que a pulsão<br />

não cessa <strong>de</strong> produzir. O pai, seu gozo, dá consistência ao Outro que não há. O resíduo<br />

do masoquismo <strong>originário</strong> (1924) enlaçado ao pai atravessa as fases libidinais oral,<br />

anal e fálica; <strong>ser</strong> <strong>de</strong>vorado / maltratado / castrado / copulado pelo pai. O fantasma,<br />

suporte do <strong>de</strong>sejo, aprisiona na sua trama um resto <strong>de</strong> gozo inacessível ao sujeito. A<br />

construção fantasmática se impõe, na análise, como exigência lógica diante da impossibilida<strong>de</strong><br />

entre saber e gozo.<br />

Freud postula, em 1915, um sadismo primário, secundado pelo masoquismo, <strong>de</strong><br />

acordo com o percurso - topológico - da pulsão. Porém, no que se refere ao gozo,<br />

Freud estabelece uma outra distinção. O sadismo é <strong>originário</strong> em seu en<strong>de</strong>reçamento<br />

ao Outro mas não integra nenhuma finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> causar dor, nem mesmo <strong>de</strong> gozar com<br />

o sofrimento. Só o masoquismo introduz essa dimensão <strong>de</strong> satisfação, ou seja, um valor<br />

<strong>de</strong> gozo para o sujeito. Ele <strong>ser</strong>á nomeado gozo somente quando a dor tenha sido<br />

136 LETRA FREUDIANA -Ano XI -n'10/11/12


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

experimentada pelo próprio sujeito, evocando um estímulo sexual concomitante. O<br />

masoquismo <strong>ser</strong>ia "<strong>originário</strong>" em relação ao gozo. O sadismo, como vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar<br />

com a dor <strong>de</strong> um Outro, supõe o tempo prévio <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação masoquista do<br />

sujeito com o <strong>objeto</strong> ao qual se inflige a cruelda<strong>de</strong>. Desta maneira se esclarece o<br />

paradoxo aparente da frase <strong>de</strong> Freud: "O gozo da dor" -SchmerzgenieBen-sena então<br />

um fim originariamente - ursprünglich - masoquista mas que somente po<strong>de</strong> tornar-se<br />

um fim <strong>de</strong> pulsão no originariamente - ursprünglich - sádico". A pulsão é uma<br />

transgressão ao princípio do prazer e o masoquismo se encontra virtualmente no<br />

circuito <strong>de</strong> sua satisfação.<br />

Freud, em "Além do princípio do prazer", aborda o masoquismo no marco da<br />

repetição. A torção <strong>de</strong> 1920 - a <strong>ser</strong> entendida em sentido topológico - estabelece um<br />

"não-todo" na regulação do aparelho. Um "além" do prazer é exigível para localizar,<br />

a partir do gozo, o sujeito na estrutura. Tenta-se extrair as conseqüências no domínio<br />

da satisfação, <strong>de</strong> uma compulsão à repetição - Wie<strong>de</strong>rholungszwang - que contradiz<br />

o prazer, evocando <strong>de</strong>sprazer para a instância do eu. Paradoxalmente, <strong>de</strong>sprazer -<br />

Unlust - para um sistema traz satisfação - Befriedigung - para outro. Correlaciona o<br />

<strong>de</strong>sprazer, já não com o limite do prazer, mas com uma satisfação que exce<strong>de</strong> esse<br />

limite. O aparelho pulsional busca sua total satisfação - vollen Befriedigung - no<br />

caminho <strong>de</strong> repetira primeira experiência <strong>de</strong> satisfação. As formações <strong>de</strong> substitutos,<br />

como as sublimações, são insuficientes para fazer cessar a tensão - Spannung. O<br />

caminho regressivo está impedido pelas resistências que o recalque mantém - halten.<br />

É uma parada - outro sentido do verbo halten, uma barreira que o recalque faz ao gozo.<br />

Por esta operação o caminho para trás -<strong>de</strong>r Weg nach rüchwarts-é permanentemente<br />

<strong>de</strong>slocado. A pulsão obtém só uma diferença, aquela que se produz entre a satisfação<br />

encontrada e a satisfação <strong>de</strong>mandada. Essa diferença <strong>de</strong> satisfação é o momento<br />

propulsor do aparelho, momento <strong>de</strong> passagem da impossível satisfação pulsional<br />

"total" ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uma pura diferença.<br />

A constatação <strong>de</strong> um gozo que, na repetição, se exerce contrariando o prazer produz<br />

o giro clínico e teórico mais radical da teoria freudiana. Com o termo "pulsão <strong>de</strong> morte",<br />

Freud formula uma resposta para a tendência primária da pulsão a reconstruir um<br />

estado, sempre anterior da satisfação. Pulsão silenciosa cuja ação só é verificável a<br />

partir <strong>de</strong> sua associação com Eros. A pulsão parcial sadomasoquista constitui a pedra<br />

angular <strong>de</strong>sta verificação. O sadismo vem obrigatoriamente em primeiro lugar, talvez<br />

porque revela o que o masoquismo oculta. De fato, o sadismo implica um movimento<br />

<strong>de</strong> exteriorização que Freud segue cuidadosamente. Uma questão se impõe: como um<br />

organismo po<strong>de</strong>rá livrar-se <strong>de</strong> uma pulsão que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o interior, o ameaça na con<strong>ser</strong>vação<br />

da sua própria vida. O sadismo <strong>ser</strong>ia o caminho proporcionado por Eros para<br />

facilitar a expulsão fora do eu - abdrangen - da pulsão <strong>de</strong> morte. A mistura -<br />

Vermengung- pulsional que é primária, indica uma direção para a pulsão e possibilita<br />

o enlace necessário com um <strong>objeto</strong> exterior.<br />

Freud encontra para sua formulação pontos <strong>de</strong> apoio em dois resultados da<br />

investigação com organismos unicelulares. O primeiro se refere à relação da vida com<br />

a procriação e a morte. O segundo aponta a necessida<strong>de</strong>, para a vida celular, do<br />

LETRAFREUDIANA-AnoXI-n«10/ll/12 137


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

afastamento dos produtos nocivos 4o seu metabolismo. O sadismo, eximo pulsão<br />

parcial, opera algo equivalente a esse afastamento ao expulsar a pulsão <strong>de</strong> morte sobre<br />

o <strong>objeto</strong>. Na fase oral coinci<strong>de</strong> a incorporação com a <strong>de</strong>struição do <strong>objeto</strong>. Sob a égi<strong>de</strong><br />

anal se efetua a expulsão eficaz que prossegue, na primazia genital, com o domínio do<br />

<strong>objeto</strong> até o ponto exigido da realização do ato sexual. Esta expulsão prefigura o lugar<br />

do <strong>objeto</strong> a, reduto do gozo, como fora-corpo. A pulsão sadomasoquista opera a<br />

disjunção entre corpoegozo. Osadismo, essencialmente expulsivo, estabelece a região<br />

fora do corpo on<strong>de</strong> o <strong>objeto</strong> é chamado a cair. O masoquismo não provém do retomo<br />

- Ruckwendung - do sadismo contra o próprio eu. A complementarida<strong>de</strong> e a ação<br />

conjunta do par são questionáveis. O sadismo, ao fazer surgir o <strong>objeto</strong>, introduz a<br />

equivalência na pulsão: "uma volta da pulsão - Wendung - do <strong>objeto</strong> ao eu não é em<br />

princípio outra coisa que a volta do eu ao <strong>objeto</strong>". A questão do masoquismo se situa<br />

na margem <strong>de</strong>sta equivalência. Seria a volta, sobre o eu, da pulsão em uma fase anterior<br />

e virtual, pulsão <strong>de</strong> morte. O masoquismo po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> então consi<strong>de</strong>rado primário.<br />

Hipótese sugestiva que apresenta o masoquismo como ação direta da pulsão e fundamento<br />

do gozo radicalmente inacessível.<br />

A consi<strong>de</strong>ração da condição primária 4o masoquismo conduz a uma subversão da<br />

relação do sujeito ao gozo. "O problema econômico do masoquismo", 1924, é a<br />

reformulação ética, teórica e clínica resultante do encontro da pulsão <strong>de</strong> morte com a<br />

segunda tópica. Isso não pensa, isso goza - marca a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, o hiato existente<br />

entre inconsciente e isso. O supereu, em conexão estreita com o isso, é a instância<br />

imperativa que or<strong>de</strong>na gozar. O eu se especifica na sua <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> três senhores:<br />

isso, supereu e mundo externo. Nesta insolúvel divisão se encontra o masoquismo nas<br />

suas três vertentes: erógeno, feminino e moral. Po<strong>de</strong>mos afirmar que nenhum outro<br />

saber foi tão longe como a psicanálise ao especificar um gozo, que na repetição, age<br />

contra a vida. O gozo masoquista é esse "singular enigma" que vem a subverter a<br />

or<strong>de</strong>nação do princípio do prazer - realida<strong>de</strong>. A série <strong>de</strong>sprazer-prazer respondia a<br />

variação aumento-diminuição <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>s. A dor e o <strong>de</strong>sprazer funcionavam, no<br />

marco do prazer, como sinal protetor do aparelho psíquico. O masoquismo esboça a<br />

região <strong>de</strong> outra satisfação —em conseqüência acarreta um questionamento ético - on<strong>de</strong><br />

o aumento <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> evoca paradoxalmente um gozo e, a dor, inseparável do<br />

autoerotismo, é corrompida, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> <strong>ser</strong> um sinal eficaz para a pre<strong>ser</strong>vação da<br />

vida. Em um passo mais radical <strong>de</strong>sse questionamento, está ainda a pergunta sobre a<br />

existência <strong>de</strong> algum dispositivo que opere no sentido da vida, quando, originariamente,<br />

a nível do organismo age a pulsão <strong>de</strong> morte. É urgência do <strong>ser</strong> vivo <strong>de</strong>sembaraçar-se<br />

o mais rápido possível da pulsão <strong>de</strong>sagregadora atuante no seu interior. A função<br />

primária da libido consiste em encaminhá-la em direção ao exterior sob a forma <strong>de</strong><br />

pulsão <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, com seu correlato, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Neste nível, tratar-se-ia<br />

<strong>de</strong> uma função <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa vital do organismo; este movimento se distingue do sadismo<br />

<strong>originário</strong> {Ursadismus). Escreve Freud: "Se se consente alguma imprecisão, po<strong>de</strong><br />

dizer-se que a pulsão <strong>de</strong> morte atuante no interior do organismo - sadismo <strong>originário</strong><br />

-é idêntica ao masoquismo". Esta formulação não é imprecisa, é paradoxal. O sadismo<br />

<strong>originário</strong> supõe uma função e um tempo a mais que a expulsão, pois já implica uma<br />

138 LETRA FREUDIANA- Ano XI -a» 10/11/12


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

satisfação <strong>de</strong>corrente do gozo sobre um <strong>objeto</strong>. Esse gozo se alcança a partir do tempo<br />

- lógico -, <strong>de</strong> liga entre pulsão <strong>de</strong> morte e libido. A equivalência entre sadismo<br />

<strong>originário</strong> e masoquismo acontece no campo do gozo e pressupõe a localização <strong>de</strong> um<br />

sujeito que pa<strong>de</strong>ce. Com significantes diversos provenientes da física e química<br />

(Vermischung, mescla; Entmischung, <strong>de</strong>smescla; Vermengung, mistura; Verquicktmg,<br />

amálgama <strong>de</strong> mercúrio; Legierung, liga <strong>de</strong> metais), Freud procura circunscrever a<br />

complexida<strong>de</strong> da união dos componentes pulsionais, uniões <strong>de</strong> proporções variáveis,<br />

umas reversíveis - as misturas físicas - outras relativamente fixas - as ligas químicas.<br />

Essas uniões instáveis alternam-se com estados <strong>de</strong> fixi<strong>de</strong>z, metaforizando a relação<br />

paradoxal sujeito *•* gozo. Supondo uma constante significante on<strong>de</strong> as uniões se<br />

produzem, po<strong>de</strong> propor-se a relação que diz: a parte da união não transposta para o<br />

exterior permanece ligada, fixada no interior. É o masoquismo <strong>originário</strong> erógeno que<br />

tem o "próprio <strong>ser</strong> por <strong>objeto</strong>" - das eigene Wesen zum Objekt. O masoquismo<br />

<strong>originário</strong> é "testemunha" -Zeuge -e "resto" - Ubetrest- daquela fase <strong>de</strong> formação<br />

em que aconteceu a liga da pulsão <strong>de</strong> morte com Eros. Freud se refere a sua frase nos<br />

"Três ensaios": "Sim, que no organismo não ocorre nada <strong>de</strong> significativo que não ceda<br />

seu componente à excitação da pulsão parcial". O termo "organismo" preten<strong>de</strong> cernir<br />

miticamente um tempo "anterior" a alienação ao Outro. A liga das pulsões é ato <strong>de</strong><br />

mortificação do organismo com seu correlato, a emergência da erogeneida<strong>de</strong>, a borda<br />

da pulsão parcial. Esse po<strong>de</strong>ria <strong>ser</strong> o sentido <strong>de</strong> um masoquismo <strong>originário</strong> erógeno<br />

que interpretamos como a fase primária da ação do significante sobre o "organismo".<br />

O significante mortifica o corpo e isso não ocorre sem ce<strong>de</strong>r um componente à<br />

excitação da pulsão parcial. Esta fase fundante registra o efeito <strong>de</strong> urna marca situavel<br />

no advento do sujeito na linguagem. O traço unário representa a forma mais elementar<br />

<strong>de</strong> marca recebida do Outro e o masoquismo <strong>originário</strong> a contagem <strong>de</strong> gozo advindo,<br />

pelo golpe repetitivo <strong>de</strong>sse traço. Trata-se da abertura radical e traumática ao Outro.<br />

O buraco <strong>de</strong>sse traumatismo -valha a homofonia em francês: trou-matisme, trop-matisme,<br />

déficit e excesso <strong>de</strong> um gozo essencialmente ina<strong>de</strong>quado - prefigura o lugar do<br />

<strong>objeto</strong> mais-<strong>de</strong>-gozar. Não escapou a Freud a íntima afinida<strong>de</strong> do masoquismo <strong>originário</strong><br />

com o "<strong>ser</strong> por <strong>objeto</strong>". O que se origina banhado na linguagem é o "<strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong>"<br />

para o gozo do Outro. O masoquismo <strong>originário</strong> é o resto da liga pulsional on<strong>de</strong> se<br />

consuma o <strong>ser</strong> do sujeito idêntico ao <strong>objeto</strong> a, resto real.<br />

Para uma formulação unitária do masoquismo <strong>de</strong>ve levar-se em conta o <strong>ser</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>objeto</strong> que o funda. Sobre essa experiência <strong>de</strong> "<strong>ser</strong>" se constituem as formas <strong>de</strong><br />

masoquismo feminino e moral. Cabe assinalar que o dito masoquismo feminino não<br />

era para Freud inerente à mulher. O texto <strong>de</strong> 1924 apresenta a estrutura do fantasma<br />

<strong>de</strong> homens perversos masoquistas que encenam a obediência incondicional ao po<strong>de</strong>r<br />

do Outro, querendo <strong>ser</strong> tratados como crianças em estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo. Denomina-o<br />

feminino, apotiori (segundo exemplos extremos), por representar fantasmaticamente<br />

a feminilida<strong>de</strong>: <strong>ser</strong> copulado, parir, etc. Os seguidores <strong>de</strong> Freud estabeleceram a<br />

seguinte equação: Mulher = <strong>Masoquismo</strong>. O masoquismo feminino, no entanto,<br />

correspon<strong>de</strong> a um fantasma masculino que tem como função obturar a pergunta por<br />

um gozo não todo articulável ao falo. A colaboração ativa, nessa teorização, das<br />

LETRA FREUDIANA -Ano XI -n» 10/11/12 139


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

analistas mulheres parece respon<strong>de</strong>r a um interesse do sexo em velar a pergunta pelo<br />

gozo da mulher. A resposta antecipada - o gozo da mulher <strong>ser</strong>ia masoquista - <strong>ser</strong>viu<br />

<strong>de</strong> tampa a questão e se prestou a uma longa série <strong>de</strong> preconceitos e malentendidos<br />

arraigados na transmissão da psicanálise. Sob o nome <strong>de</strong> masoquismo feminino Freud<br />

<strong>de</strong>signa as "encenações reais" <strong>de</strong> sujeitos perversos, cujos atos <strong>de</strong>sembocam inexoravelmente<br />

na satisfação masturbatória ou representam, por si só, a satisfação sexual<br />

completa. A resposta perversa, se bem não passe pela realização do ato sexual, está<br />

sujeita a ele. A diferença do ato neurótico, que é sempre efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo articulado ao<br />

fantasma, o ato perverso se dirige ao ato sexual, ou, mais especificamente à certeza<br />

<strong>de</strong>sse ato: o <strong>objeto</strong> on<strong>de</strong> o gozo se refugia. O gozo no <strong>ser</strong> falante provém da falta <strong>de</strong><br />

um órgão que naturalmente assegure a cópula. A questão do gozo feminino se abre<br />

precisamente no lugar on<strong>de</strong> a função do órgão <strong>de</strong> prazer, passível <strong>de</strong> <strong>ser</strong> negativizada,<br />

é afetada <strong>de</strong> contingência. É nesse nível que o perverso masoquista atua arremedando<br />

a suposta posição passiva da mulher no ato sexual. Tampouco <strong>de</strong>ve supor-se passivida<strong>de</strong><br />

em seu empreendimento perverso pois para alcançar a satisfação realiza uma<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scomunal, um "trabalho <strong>de</strong> cão". O masoquista interessa-se pela disjunção<br />

entre corpo e gozo e a interroga em seu "rigor" <strong>de</strong> separação. A posição perversa<br />

<strong>de</strong>fine-se pelo modo em que o sujeito já "sabe" situar-se nessa separação. O contrato<br />

celebrado pelo masoquista com seu partenaire mostra que "sabe" quais são os passos<br />

para alcançar o gozo e nada po<strong>de</strong> <strong>ser</strong> <strong>de</strong>ixado, nesse campo, ao mero acaso. Não é o<br />

caso da pulsão on<strong>de</strong> o sujeito não sabe <strong>de</strong> antemão sua localização no gozo, ficando à<br />

<strong>de</strong>riva do Outro. A pulsão sadomasoquista não se confun<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo nenhum com a<br />

perversão, é eminentemente separadora pois opera a função do <strong>objeto</strong> a. O masoquista<br />

respon<strong>de</strong> a essa separação com sua i<strong>de</strong>ntificação a esse <strong>objeto</strong> caído do Outro. No<br />

fundamento da estrutura perversa encontra-se sempre - embora <strong>de</strong>negada - essa<br />

i<strong>de</strong>ntificação ao <strong>objeto</strong> a oriunda do masoquismo. Como <strong>objeto</strong>-<strong>de</strong>jeto se propõe<br />

tampar a falta do Outro - há sempre algo <strong>de</strong> humorístico em seu projeto - e, nessa<br />

posição capturar o gozo. Rejeitado, menos do que nada, encena, em caráter <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstração, o resto impossível. Por meio <strong>de</strong>ssa manobra escamoteia sua divisão <strong>de</strong><br />

sujeito e oculta o que busca <strong>de</strong>spertar no Outro: a angustia, sinal insuportável do <strong>objeto</strong><br />

que <strong>de</strong>via faltar. E à voz do Outro que seu gozo está suspenso. Freud não menciona<br />

explicitamente a incidência <strong>de</strong>ssa voz na perversão masoquista. No entanto, a voz po<strong>de</strong><br />

<strong>ser</strong> inferida da constelação imaginária em que o sujeito se faz representar como uma<br />

criança <strong>de</strong>samparada, frente ao po<strong>de</strong>r ilimitado do Outro. Esta posição se expressa<br />

novamente, na fantasia masoquista, como culpa por haver infringido algo <strong>de</strong>terminado<br />

que <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> pago com sofrimento e martírios. Demonstra-se que a culpa é uma<br />

racionalização do gozo sustentado no <strong>objeto</strong> a, voz imperativa do Outro.<br />

A culpa é o fator que conduz ao masoquismo moral, à terceira forma <strong>de</strong>scrita por<br />

Freud. Este termo abrange uma série <strong>de</strong> problemas cruciais da clínica da neurose, cujo<br />

<strong>de</strong>nominador comum é a ação solapada do sentimento <strong>de</strong> culpa "inconsciente", como<br />

resistência tenaz, contra o curso da análise. A culpa reflete o que aconteceu ao neurótico<br />

com seu <strong>de</strong>sejo. O termo "moral" <strong>de</strong>veria alertar-nos <strong>de</strong> que o combate compromete<br />

uma dimensão ética. O neurótico é aquele que ce<strong>de</strong> «obre seu <strong>de</strong>sejo mantendo-se<br />

140 LETRA FREUDIANA - Ano XI - n' 10/11/12


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e<br />

aferrado à comodida<strong>de</strong> que seu fantasma lhe brinda. Covardia moral <strong>de</strong> quem se<br />

resguarda da castração e goza com sua impotência. Inibido, <strong>de</strong>svalorizado, o eu diz<br />

não estar à altura da <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>smesurada do supereu. O neurótico conduz o paradoxo<br />

da sua divisão a um impasse. O mesmo risco corre a psicanálise que, reconhecendo a<br />

cruelda<strong>de</strong> do supereu, atua no sentido <strong>de</strong> apaziguá-lo; essa intervenção, movida pelo<br />

horror ao gozo do supereu, oferece saídas <strong>de</strong> adaptação ao eu sofredor confinando-o,<br />

numa posição perigosamente masoquista. Não só <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al se compõe o mandato do<br />

supereu; retorna nele a causa do <strong>de</strong>sejo rejeitada e, se a exigência é vã, a sua razão não<br />

é. O sintoma aloja-se na divisão do sujeito, comprometendo o pa<strong>de</strong>cimento masoquista<br />

do eu com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo do supereu. A repetição no sintoma do gozo proibido<br />

<strong>de</strong>saloja paulatinamente a pergunta pelo <strong>de</strong>sejo. O "secreto sentido" do masoquismo<br />

moral se encontra na implicação do fantasma no sintoma. O sentimento <strong>de</strong> culpa traz<br />

como seu reverso a necessida<strong>de</strong> expectante <strong>de</strong> um castigo proveniente <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r<br />

parental. O <strong>de</strong>sejo fantasmático <strong>de</strong> <strong>ser</strong> batido, castigado pelo pai, tem sua tradução no<br />

sintoma e no supereu, seu intérprete. A análise <strong>de</strong> Freud situa a ação na estrutura: a<br />

instância do supereu em suas duas vertentes, her<strong>de</strong>ira do complexo paterno e voz da<br />

falha do pai. Precipitado das pulsões do isso o supereu retém o caráter imperioso do<br />

gozo equiparável a um imperativo categórico altamente <strong>de</strong>ssubjetivado - uma autorida<strong>de</strong><br />

impessoal -que clama: goza! Que a culpa se escute no limiar da consciência, fala<br />

da falha estrutural do gozo no aparelho <strong>de</strong> linguagem. É impossível dar uma resposta<br />

que satisfaça o mandamento <strong>de</strong> gozar; isso ten<strong>de</strong> a gerar no sujeito o sentimento <strong>de</strong><br />

sua culpabilida<strong>de</strong>. A severida<strong>de</strong> do supereu provém da <strong>de</strong>smescla pulsional - Triebentmischung-<br />

que traz consigo a perigosa exacerbação da pulsão <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição orientada<br />

contra o eu e, concomitantemente, uma ressexualização da moral por um retorno a<br />

laços incestuosos interditados e abandonados. A instância ética no sujeito encarna o<br />

paradoxo <strong>de</strong> uma mescla pulsional que subjuga o eu e o con<strong>de</strong>na a sua <strong>de</strong>struição,<br />

conjugando no ato suicida, o gozo libidinal com a pulsão <strong>de</strong> morte. Que o supereu<br />

esteja na causa do masoquismo moral <strong>de</strong>ve-se à função do <strong>objeto</strong> a, da qual essa<br />

instância participa - uma voz incorporada, resto do <strong>de</strong>sejo do Outro quando alcançou<br />

a forma <strong>de</strong> um mandamento. A parte vocalizada, muitas vezes audível, da divisão se<br />

impõe ruidosamente no masoquismo moral. A outra parte, a silenciosa, a sofredora, o<br />

eu como efeito masoquista, não <strong>de</strong>ve <strong>ser</strong> esquecida. A permanência do sintoma aporta<br />

um benefício consi<strong>de</strong>rável ao eu. Nos extremos <strong>de</strong> uma série encontramos a inibição,<br />

grau zero do movimento, em que domina a estagnação imaginária do eu, e a passagem<br />

ao ato suicida em que o eu, i<strong>de</strong>ntificado ao <strong>objeto</strong> a, sai <strong>de</strong> cena e se precipita realizando<br />

a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> aniquilar-se.<br />

A teorização do "Problema econômico do masoquismo" é a resposta <strong>de</strong> Freud para<br />

um problema crucial da clínica. Os limites encontrados sucessivamente na rememoração,<br />

na interpretação e na resistência provocaram uma nova intervenção que consistia<br />

em cernir, sob transferência, a presença do gozo, autorizando sua repetição até o ponto<br />

em que um saber se elaborasse na análise: Durcharbeitung, trabalho através <strong>de</strong> uma<br />

repetição para que numa nova relação ao gozo, um novo sujeito possa produzir-se. Em<br />

LETRA FREUDIANA - Ano XI - n s 10/11/12 141


Masoqaissto of tginário: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong>-e <strong>semblante</strong><br />

seu questionamento sobre o final da análise ("A análise finita e a infinita", 1937) Freud<br />

consi<strong>de</strong>ra que é tarefa essencial elucidar a composição pulsional do sujeito impedindo<br />

que o masoquismo leve o tratamento ao fracasso. "Já a influência psíquica do simples<br />

masoquismo submete nosso po<strong>de</strong>r {Kümen) a uma dura prova".<br />

As conseqüências dos avanços e dos impasses freudianos são extraídos por Lacan<br />

que elabora a lógica do ato analítico, único a realizar o trajeto completo da experiência:<br />

conduziro sujeito, comodamente ancorado em seu fantasma, à inconsistência do Outro,<br />

à questão <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo. O ato analítico é resposta - diferente a do fantasma - a esse<br />

ponto nodal do recalque e masoquismo <strong>originário</strong>s. O saber inconsciente se apresenta<br />

furado no lugar on<strong>de</strong> se espera um saber sobre o gozo. O "<strong>originário</strong>" é esse nó do<br />

impossível que escreve a falha do saber. O ato analítico realiza o corte que inci<strong>de</strong> na<br />

economia do gozo. Interroga a consistência do <strong>objeto</strong>, chamado no fantasma a obturar .<br />

a falta do Outro, e o reconduz ao seu estatuto <strong>de</strong> vazio cuja borda a pulsão não cessa<br />

<strong>de</strong> contornar. Não é uma travessia sem risco.<br />

O ato analítico não é técnico; é ético pois em seu horizonte está o gozo ante o qual<br />

não se <strong>de</strong>ve retroce<strong>de</strong>r nem avançar sem responsabilida<strong>de</strong>.<br />

Como vive a pulsão aquele que atravessou a totalida<strong>de</strong> do ciclo da experiência<br />

analítica, é a verificação que Lacan propõe para o final da análise. Chegar ao final<br />

supõe ter passado pelos tempos lógicos que se or<strong>de</strong>nam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do tratamento<br />

quando o sujeita é forçado a constituir-se no dispositivo da palavra. É na significância<br />

que encontrara seu <strong>ser</strong> <strong>de</strong> gozo, seu <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e, com isso, a tentação da saída pela<br />

via da passagem ao ato. Ali, on<strong>de</strong> o gozo opaco da repetição domina, a pergunta <strong>de</strong>ve<br />

vir: O que "é" o sujeito para o gozo do Outro? Se a análise se interrompe neste ponto,<br />

que já supõe um questionamento do sujeito-suposto-saber, existe o risco <strong>de</strong> uma<br />

fixação do sujeito ao gozo do Outro. É necessário ir além no circuito da pulsão e nesse<br />

trajeto o <strong>de</strong>sejo do analista é <strong>de</strong>cisivo. O analisante entrega seu <strong>ser</strong> para encontrar a<br />

solução à equação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejo: (-


<strong>Masoquismo</strong> <strong>originário</strong>: <strong>ser</strong> <strong>de</strong> <strong>objeto</strong> e <strong>semblante</strong><br />

a outro saber - o analista "rejeitou o <strong>ser</strong> que não sabia a causa do seu fantasma no<br />

mesmo momento em que, no final, se tornou esse saber suposto" - um saber escrito<br />

com/pela letra. A função da letra (lettré) é fazer borda ao <strong>ser</strong> (l'etré), fazer litoral ao<br />

gozo impossível, não sem provocar <strong>de</strong>sgarramento do <strong>semblante</strong>. O horror que suscita<br />

o discurso analítico provém <strong>de</strong>ssa ruptura. Freud convoca a esse lugar quando não ce<strong>de</strong><br />

sobre o ponto do impossível e o marca com o significante "<strong>originário</strong>". Para o analista<br />

não é suficiente <strong>ser</strong> o <strong>de</strong>jeto <strong>de</strong>sse honor, <strong>de</strong>ve saber sua causa. É necessário algo <strong>de</strong><br />

entusiasmo ao <strong>de</strong>cidir-se a perseverar nessa causa, talvez um gaio saber, -"sçavoit"<br />

— em que pulse um <strong>de</strong>sejo inédito.<br />

Bibliografia<br />

FREUD, S. Três ensaios a uma teoria sexual; Pulsões e <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong>pulsão; Bate-se numa criança;<br />

Além do princípio do prazer; O problema econômico do masoquismo; A análise finita e a<br />

infinita (G.W. Band, 5,10,12,13,16).<br />

LACAN, J. Seminários: As formações do inconsciente; A ética da psicanálise (publicado); A<br />

angústia; Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (publicado);L

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