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apropriação e regulação da água doce no brasil pré-industrial - UFF

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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Socie<strong>da</strong>de – www.uff.br/revistavitas<br />

Nº 1, setembro de 2011<br />

APROPRIAÇÃO E REGULAÇÃO DA ÁGUA DOCE NO BRASIL<br />

RESUMO<br />

PRÉ-INDUSTRIAL<br />

Manuel Domingos Neto 1<br />

Maria Elizabeth Duarte Silvestre 2<br />

Este artigo discute características <strong>da</strong> <strong>regulação</strong> aqui instituí<strong>da</strong> com a chega<strong>da</strong> do colonizador<br />

estendendo-se até o final <strong>da</strong> Primeira República. Ao referir-se a um período em que a escassez não<br />

estava pauta<strong>da</strong> – pelo me<strong>no</strong>s não como hoje – este texto soa extemporâneo. Mas consideramos que a<br />

análise <strong>da</strong>s transformações pelas quais passou a <strong>regulação</strong> pertinente à <strong>água</strong> <strong>doce</strong> é indispensável para<br />

a compreensão <strong>da</strong> atual política hídrica. Este trabalho é um primeiro produto de um esforço<br />

desenvolvido pelos autores para estabelecer as relações entre duas temáticas estratégicas: a defesa do<br />

ambiente e a defesa militar.<br />

Palavras-chave: Água, Regulação, Ambiente, Defesa Ambiental, Defesa militar, Brasil, estudos<br />

estratégicos<br />

ABSTRACT<br />

This article focuses on water regulation in Brazil from the colonial period to the end of its First<br />

Republic. Although at that time water shortage was <strong>no</strong>t yet an issue, he study is important to a better<br />

understanding of the present water policies. This article is part of a larger study about the relationship<br />

between two strategical issues: environment defense and military defense.<br />

Keywords: Water, Water Regulation, Environment, Environment Defense, Limitary Defense, Brazil,<br />

Strategical studies<br />

Na déca<strong>da</strong> passa<strong>da</strong> ganhou espaço na cena internacional o debate acerca <strong>da</strong>s<br />

perspectivas de escassez <strong>da</strong> <strong>água</strong> <strong>doce</strong>. 3 No Brasil, essa discussão passou a ser coloca<strong>da</strong>,<br />

sobretudo, <strong>no</strong> bojo <strong>da</strong> implementação <strong>da</strong> lei que instituiu a Política Nacional de<br />

Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos<br />

(Lei 9433/97). Conduzi<strong>da</strong> em grande parte pelo Estado, a abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> problemática<br />

hídrica tende a ser <strong>no</strong>rmativa, até mesmo <strong>no</strong>s discursos acadêmicos, mais voltados para<br />

consoli<strong>da</strong>r os princípios expressos na referi<strong>da</strong> lei, veicular suas ver<strong>da</strong>des e reforçar<br />

mitos do que)gua <strong>doce</strong>”.<br />

1 Professor do Instituto de Estudos Estratégicos – <strong>UFF</strong><br />

2 Professora do Departamento de Ciências Econômicas - UFPI<br />

3 Água <strong>doce</strong> é aquela que possui teor de Sólidos Totais Dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/L (REBOUÇAS,<br />

BRAGA e TUNDISI, 1999, p. V).


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Nº 1, setembro de 2011<br />

A reforma hídrica em curso é apresenta<strong>da</strong> como alternativa racional de uso <strong>da</strong><br />

<strong>água</strong> de sorte a garantir a todos – hoje e amanhã – acesso a esse elemento <strong>da</strong> natureza a<br />

um só tempo escasso, essencial e insubstituível e permitir o chamado desenvolvimento<br />

sustentável. O conteúdo conflitivo <strong>da</strong> <strong>apropriação</strong>, uso e controle <strong>da</strong> <strong>água</strong>, desaparece;<br />

reforça-se a ideia de que a escassez – ou sua possibili<strong>da</strong>de – pode ser evita<strong>da</strong> via<br />

legislação e gerenciamento adequados; sobretudo, reafirma-se a perspectiva de que não<br />

existe racionali<strong>da</strong>de fora <strong>da</strong>s atuais regras estabeleci<strong>da</strong>s pelo capital.<br />

Muitos são levados a crer que a preocupação com a conservação <strong>da</strong> <strong>água</strong> é coisa<br />

recente e que <strong>no</strong> Brasil não havia <strong>no</strong>rmas para a <strong>apropriação</strong> e o uso <strong>da</strong> <strong>água</strong>, donde a<br />

presente ameaça. Na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, lembra-se o Código de Águas de 1934,<br />

afirma-se seu caráter “avançado” para a época em que foi editado e sua incapaci<strong>da</strong>de de<br />

responder às deman<strong>da</strong>s do século XXI.<br />

Essencial à vi<strong>da</strong> e à produção, insubstituível e quantitativamente limita<strong>da</strong>, a <strong>água</strong><br />

<strong>doce</strong> é a um só tempo objeto de partilha e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, pivô de conflitos, meio de fazer<br />

guerras e de submeter inimigos. Por to<strong>da</strong> parte sua presença condicio<strong>no</strong>u a ocupação de<br />

territórios, possibilitou o surgimento de socie<strong>da</strong>des sedentárias, o desenvolvimento <strong>da</strong><br />

agricultura e o aparecimento de povoados e vilas. Em decorrência de seu caráter<br />

estratégico, a <strong>apropriação</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong> <strong>doce</strong> encontra-se estreitamente vincula<strong>da</strong> à produção<br />

e repartição <strong>da</strong> riqueza e é objeto de <strong>regulação</strong> – ain<strong>da</strong> que não necessariamente escrita –<br />

em to<strong>da</strong> e qualquer socie<strong>da</strong>de. No Brasil jamais foi diferente.<br />

As tensões provoca<strong>da</strong>s pela <strong>apropriação</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong> provêm de tempos imemoriais.<br />

Os homens sempre guerrearam por recursos naturais. Hoje, os maiores conflitos são<br />

provocados pelo controle <strong>da</strong>s reservas de petróleo. A descoberta <strong>da</strong>s reservas do <strong>pré</strong>-sal<br />

tem sido argui<strong>da</strong> como uma justificativa indiscutível para investimentos <strong>no</strong> sistema de<br />

defesa militar. Mas, a julgar pela frenética disputa pelo domínio de recursos naturais, os<br />

recursos hídricos tendem a se configurar como objeto de disputa ca<strong>da</strong> vez mais<br />

relevante. Neste caso, antes de se pensar em defesa militar, caberia refletir sobre como<br />

foi construí<strong>da</strong> a escassez de <strong>água</strong> e como o Estado buscou regular seu uso.<br />

As relações entre homens e natureza e, portanto, as formas de <strong>apropriação</strong> e uso<br />

<strong>da</strong> <strong>água</strong> devem ser trata<strong>da</strong>s como relações sociais e de poder e as <strong>no</strong>rmas que as<br />

regulam, fruto de pressões que os diversos grupos sociais exercem sobre o Estado, como<br />

resultado e condição <strong>da</strong> reprodução destas relações. Nossa abor<strong>da</strong>gem segue na<br />

contramão <strong>da</strong> abun<strong>da</strong>nte literatura sobre recursos hídricos produzi<strong>da</strong> recentemente.


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Salvo raras exceções, a <strong>água</strong> vem sendo trata<strong>da</strong> como tema atinente a biólogos,<br />

químicos, engenheiros, sanitaristas, geólogos e outros profissionais <strong>da</strong>s ditas áreas<br />

técnicas. Ora, mais do que nunca a <strong>regulação</strong> do uso <strong>da</strong> <strong>água</strong> é assunto eminentemente<br />

político, como de resto tudo o que diz respeito aos recursos naturais. A compreensão<br />

aprofun<strong>da</strong> do problema hídrico deman<strong>da</strong> forçosamente uma abor<strong>da</strong>gem multifacetária.<br />

A <strong>água</strong> é essencial à produção e, numa socie<strong>da</strong>de mercantil, é impossível se<br />

compreender a lógica subjacente às <strong>no</strong>rmas que regulam sua <strong>apropriação</strong> sem ter em<br />

conta os interesses econômicos em disputa.<br />

Já se tor<strong>no</strong>u lugar comum afirmar que este é um país rico em <strong>água</strong> <strong>doce</strong>.<br />

Estimativas compila<strong>da</strong>s por P. H. Gleick et. al. (2009, p. 215-220) para o Pacific<br />

Institute indicam o Brasil como o país que possui o maior volume de <strong>água</strong> <strong>doce</strong><br />

re<strong>no</strong>vável do mundo. Aldo Rebouças (2001, p. 337) informa que as reservas<br />

subterrâneas são calcula<strong>da</strong>s em 112 mil km³ com recarga aproxima<strong>da</strong> de 3,4 mil<br />

km³/a<strong>no</strong> e que à ocasião, o uso de 25,0% <strong>da</strong> recarga disponibilizaria 5 mil m³/hab/a<strong>no</strong>,<br />

volume bem superior ao mínimo de 2 mil m³/hab/a<strong>no</strong> que segundo a Organização <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU) são necessários para a manutenção <strong>da</strong> produção.<br />

O Brasil é um dos países mais ricos em <strong>água</strong> <strong>doce</strong>. Pero Vaz de Caminha captou<br />

o significado dessa riqueza. As <strong>água</strong>s eram “muitas, infin<strong>da</strong>s”, relatava, antes de apontar<br />

para as condições quanto a ativi<strong>da</strong>de que por séculos caracterizaria a América<br />

Portuguesa, a agropecuária: “[a terra] em tal maneira é graciosa que, querendo-a<br />

aproveitar, <strong>da</strong>r-se-á nela tudo por bem <strong>da</strong>s <strong>água</strong>s que tem”. Cem a<strong>no</strong>s depois,<br />

Brandônio, personagem de “Diálogos <strong>da</strong>s grandezas do Brasil”, dizia: “A umi<strong>da</strong>de de<br />

que gozam to<strong>da</strong>s as terras do Brasil a faz ser tão frutífera <strong>no</strong> produzir, que infini<strong>da</strong>de de<br />

estacas de diversos paus metidos na terra cobram raízes, e em breve tempo, chegam a<br />

<strong>da</strong>r frutos [...] (BRANDÃO, 1997, p. 3).<br />

Segundo Gilberto Freyre (2002) as “muitas <strong>água</strong>s” do Brasil serviram ao<br />

expansionismo e à mobili<strong>da</strong>de simbolizados pelos bandeirantes e à fixação e<br />

estabili<strong>da</strong>de representa<strong>da</strong>s pela lavoura. No seu entender os grandes rios <strong>da</strong>vam “[...]<br />

grandeza à terra [...], mas grandeza sem possibili<strong>da</strong>des econômicas para a técnica e o<br />

conhecimento <strong>da</strong> época”. Ao transbor<strong>da</strong>r destruíam plantações e moradias, dizimavam<br />

rebanhos ou deterioravam o pasto. Por essa razão foram “colaboradores incertos [...] do<br />

homem agrícola na formação econômica e social do <strong>no</strong>sso país”. Contudo, foram eles os<br />

rios “do bandeirante e do missionário, que os subiam vencendo dificul<strong>da</strong>des de que<strong>da</strong>s


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de <strong>água</strong> e de curso irregular à procura de ouro, escravos e de almas para Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo”.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, para o autor de “Casa grande & senzala”, do século XVI<br />

ao século XIX to<strong>da</strong> riqueza rural <strong>brasil</strong>eira esteve vincula<strong>da</strong> a rios como o Mamanguape,<br />

o Una, o Paranamirim, o Ipojuca e o Paraíba do Sul. Me<strong>no</strong>res e mais regulares eles<br />

[...] <strong>doce</strong>mente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a<br />

enverdecer os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde<br />

o café, a servir aos interesses e às necessi<strong>da</strong>des de populações fixas,<br />

humanas e animais, instala<strong>da</strong>s às suas margens. [Foram estes] os rios<br />

do senhor de engenho, do fazendeiro, do escravo, do comércio de<br />

produtos <strong>da</strong> terra (FREYRE, 2002, p. 53).<br />

Tradicionalmente estratégicos <strong>no</strong> comércio e nas guerras os rios navegáveis<br />

foram fun<strong>da</strong>mentais para a penetração, o conhecimento e a ocupação do “Novo Mundo”.<br />

Vale dizer: para a conquista do território, a exploração de suas riquezas e a afirmação do<br />

poder colonial. Seguindo-os em busca de ouro, prata, pedras preciosas ou homens para<br />

escravizar, os “paulistas” partiam de São Vicente rumo aos “sertões” (Norte e Sul)<br />

abrindo caminhos para povoamentos futuros. Por séculos os rios foram as principais vias<br />

de comunicação <strong>brasil</strong>eira. Por eles viajava a madeira, cedo exporta<strong>da</strong> para a Europa e<br />

deles dependia boa parte do comércio inter<strong>no</strong> e exter<strong>no</strong> aqui realizado.<br />

Na Amazônia, região na qual a navegação fluvial ain<strong>da</strong> é decisiva para o<br />

transporte de pessoas e mercadorias, conforme Berta Becker e Claudio Egler (2006) e<br />

Rodrigo Medeiros (2006), após a expulsão dos comerciantes estrangeiros (meados do<br />

século XVII) os rios foram cruciais para o controle do território e a expansão portuguesa<br />

além <strong>da</strong> linha demarca<strong>da</strong> em Tordesilhas. Na ausência de uma base econômica e<br />

populacional estável a Coroa estimulou o estabelecimento de missões religiosas nas<br />

margens dos rios e construiu fortes nas principais desembocaduras. A estratégia impediu<br />

o retor<strong>no</strong> dos estrangeiros – cujos navios foram proibidos de navegar <strong>no</strong>s rios<br />

amazônicos – e possibilitou incursões de reconhecimento e levantamento <strong>da</strong>s riquezas<br />

regionais.<br />

Certo é que, independentemente de tamanho, trajeto e condições de<br />

navegabili<strong>da</strong>de os rios desempenharam relevante papel na formação territorial <strong>brasil</strong>eira<br />

entendi<strong>da</strong>, como observa Milton Santos (2008, p. 62), como o “conjunto formado pelos<br />

sistemas naturais existentes em <strong>da</strong>do país ou numa <strong>da</strong><strong>da</strong> área e pelos acréscimos que os<br />

homens superimpuseram a esses sistemas naturais”. Portugal, desde o início <strong>da</strong>


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colonização, reforçou a tendência natural dos seres huma<strong>no</strong>s de se estabelecerem<br />

próximos às fontes de <strong>água</strong> <strong>doce</strong>. O Regimento que instruiu Tomé de Souza na escolha<br />

do sítio em que seria fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de de Salvador (Bahia), parcialmente transcrito por<br />

Nireu Cavalcanti (2004), dizia que o mesmo deveria adequar-se à defesa, comportar um<br />

porto, ser sadio, possuir bons ares e abastança de <strong>água</strong>. 4 Para este estudioso, tudo indica<br />

que tais recomen<strong>da</strong>ções eram comuns.<br />

Dependendo <strong>da</strong>s circunstâncias preponderava um ou outro critério.<br />

Segurança e perspectivas de ativi<strong>da</strong>des altamente rendosas – como a exploração de<br />

pedras e metais preciosos – decisivos. No território que hoje constitui o Estado de<br />

Minas Gerais, <strong>no</strong> interior do Estado do Rio de Janeiro e Goiás inúmeras ci<strong>da</strong>des têm sua<br />

origem direta ou indiretamente vincula<strong>da</strong> à extração do ouro e de pedras preciosas. Por<br />

outro lado, embora a primeira casa portuguesa na Baia de Guanabara tenha se localizado<br />

às margens de um rio, ao escolher o local em que a ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro foi ergui<strong>da</strong><br />

– o morro do Castelo – a defesa foi priori<strong>da</strong>de. Distante de qualquer fonte de <strong>água</strong> <strong>doce</strong><br />

e difícil acesso à <strong>água</strong> subterrânea, a história <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, por aproxima<strong>da</strong>mente 150 a<strong>no</strong>s<br />

capital <strong>brasil</strong>eira, desde sua origem é marca<strong>da</strong> por problemas <strong>no</strong> abastecimento de <strong>água</strong><br />

potável.<br />

Na maior parte do território <strong>água</strong>s superficiais e chuvas regulares serviram à<br />

agricultura sem que fossem necessárias significativas obras hídricas. A existência de<br />

solos férteis e úmidos, rios e boa pluviosi<strong>da</strong>de na Zona <strong>da</strong> Mata Nordestina e <strong>no</strong><br />

Recôncavo Baia<strong>no</strong> foram decisivos <strong>no</strong> sucesso <strong>da</strong> produção açucareira colonial. A falta<br />

de <strong>água</strong> não obstaculizou o cultivo do cacau na Bahia, do mate <strong>no</strong> sul do país ou do café<br />

<strong>no</strong> vale do Rio Paraíba do Sul. Tampouco <strong>no</strong> chamado sertão <strong>no</strong>rdesti<strong>no</strong> – situado em<br />

parte <strong>no</strong> cristali<strong>no</strong>, com elevados índices de evapotranspiração e pluviosi<strong>da</strong>de me<strong>no</strong>r e<br />

mais irregular do que o restante do país – a falta de <strong>água</strong> impediu a multiplicação do<br />

gado vacum e cavalar. Como principal meio de transporte terrestre, força de tração,<br />

alimento e matéria auxiliar na indústria açucareira o gado criado à solta integrava-se à<br />

indústria açucareira, à mineração e ao comércio regional. Em parte significativa do<br />

semiárido a seca só se tor<strong>no</strong>u sinônimo de calami<strong>da</strong>de social com a decadência <strong>da</strong><br />

pecuária, o adensamento populacional e a expansão <strong>da</strong> agricultura de subsistência em<br />

fins do século XIX (DOMINGOS NETO, 2010; DOMINGOS NETO e BORGES,<br />

4 Regimento e Foral: documentos do gover<strong>no</strong> português que estabeleciam <strong>no</strong>rmas jurídicas e<br />

administrativas de estruturação do poder local e traçavam diretrizes para a escolha do local e onde uma<br />

ci<strong>da</strong>de seria fun<strong>da</strong><strong>da</strong> (CAVALCANTI, 2004).


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1987). No Rio Grande do Sul, a visão de lavradores perdendo suas colheitas é fenôme<strong>no</strong><br />

recente.<br />

Além de saciar a sede do homem e do gado, propiciar o cultivo de alimentos<br />

e constituir, por longo período, a principal via de transporte do Brasil, a <strong>água</strong> fornecia<br />

alimento e força motriz, servia a práticas religiosas, ao deleite <strong>da</strong> população e ao<br />

descanso e asseio dos viajantes. Areia e pedra necessárias às construções e argila para os<br />

mais variados fins eram retira<strong>da</strong>s dos rios, neles eram lavados utensílios e roupas,<br />

vertiam-se lixo e as <strong>água</strong>s servi<strong>da</strong>s. As margens eram as preferi<strong>da</strong>s para os cultivos de<br />

subsistência, porém, quando manti<strong>da</strong>s, facilitavam a caça de peque<strong>no</strong>s animais.<br />

Fazen<strong>da</strong>s, vilas e ci<strong>da</strong>des tendiam a surgir próximas às fontes de <strong>água</strong> como<br />

testemunham incontáveis ruas, bairros e ci<strong>da</strong>des <strong>brasil</strong>eiros cujos <strong>no</strong>mes remetem à<br />

<strong>água</strong>. Beira-Rio, Lava-Pés, Barro Branco, Águas Belas, Águas Claras, Paraíba do Sul,<br />

Três Rios, Piratininga, Piauí, Poti e Iguatemi são alguns exemplos.<br />

Como em grande parte do Planeta, <strong>no</strong> Brasil a <strong>apropriação</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong><br />

associou-se à posse <strong>da</strong> terra e os direitos sobre o solo aos direitos sobre o subsolo e suas<br />

riquezas. 5 Vale dizer: a posse <strong>da</strong> terra conferia direitos às <strong>água</strong>s superficiais e<br />

subterrâneas que nela se encontrassem. Contudo, por ser insubstituível e essencial à<br />

vi<strong>da</strong>, possuir múltiplas utilizações (não raro conflitantes) e ser dota<strong>da</strong> de<br />

particulari<strong>da</strong>des como o uso compartilhado, a <strong>água</strong>, desde a Antigui<strong>da</strong>de e nas mais<br />

diferentes civilizações sempre foi objeto de regulações especiais.<br />

A progressiva instituição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> terra levaria também à<br />

proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong>. Porém, <strong>da</strong>do o papel estratégico dos rios navegáveis, era<br />

costume na Europa que incluí-los <strong>no</strong> patrimônio Real e a Coroa portuguesa – tal como<br />

posteriormente o Estado nacional <strong>brasil</strong>eiro – procurou manter controle sobre essas vias<br />

reservando para si a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mesmas. Conforme disposto <strong>no</strong> Livro II, título XV,<br />

§ 7 <strong>da</strong>s Ordenações Manuelinas 6 e <strong>no</strong> Livro II, Título XXVI <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas<br />

em seu, § 8, assim como as estra<strong>da</strong>s e as ruas públicas, os rios navegáveis e aqueles que<br />

5 Os direitos que derivam <strong>da</strong> associação entre a posse <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> <strong>água</strong> hoje são conhecidos como<br />

direitos ribeirinhos. Em outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de direito, a doutrina <strong>da</strong> “<strong>apropriação</strong> <strong>pré</strong>via”, a <strong>água</strong> pertence<br />

ao primeiro usuário. Nasci<strong>da</strong> nas áreas de mineração do oeste america<strong>no</strong>, onde a <strong>água</strong> precisava ser<br />

desvia<strong>da</strong> de seu curso natural para acompanhar os veios do ouro, sua abrangência é geograficamente<br />

restrita. Atualmente, os defensores <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong> <strong>água</strong> em uma mercadoria como qualquer outra a<br />

defendem como exemplo de racionali<strong>da</strong>de dos agentes frente à escassez de <strong>água</strong> <strong>doce</strong>.<br />

6 As Ordenações do Rei<strong>no</strong> consoli<strong>da</strong>vam a ordem jurídica portuguesa e, complementa<strong>da</strong>s Cartas Régias,<br />

Resoluções, Ordenações avulsas e Alvarás tinham vigência <strong>no</strong> Brasil. As Afonsinas tiveram vigência do<br />

descobrimento 1500 a 1514; as Manuelinas de 1514 a 1603 e as Filipinas, que remontam ao período <strong>da</strong><br />

dominação espanhola, de 1603 a 1917, quando entrou em vigor o Código Civil (OLIVEIRA, 2002).


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os formam, sendo cau<strong>da</strong>is e permanentes ain<strong>da</strong> que de uso comum, seriam proprie<strong>da</strong>de<br />

Real. O uso dessas <strong>água</strong>s estaria sujeito a uma “doação” ou “concessão de uso Real”.<br />

Ademais, diferentemente do que faz crer o discurso hegemônico o uso <strong>da</strong><br />

<strong>água</strong> <strong>no</strong> Brasil – fosse ela proprie<strong>da</strong>de de particulares, <strong>da</strong> Coroa ou do Estado – jamais<br />

esteve livre de regulações. Essencial, insubstituível e dota<strong>da</strong> de peculiari<strong>da</strong>des como o<br />

uso compartilhado, embora abun<strong>da</strong>nte e sujeita as mesmas leis de proprie<strong>da</strong>de que<br />

outros minerais, desde o início <strong>da</strong> colonização a <strong>água</strong> foi objeto de <strong>no</strong>rmas especiais.<br />

O controle sobre rios particulares e a intenção de proteger a <strong>água</strong> impedindo<br />

o desmatamento <strong>da</strong>s matas ciliares é clara na carta de sesmaria <strong>da</strong><strong>da</strong> a Francisco de Pina<br />

(16/02/1611) pela Câmara do Rio Janeiro em parte transcrita por Nireu Cavalcanti<br />

(2004, p. 35). Sugerindo o que hoje receberia a de<strong>no</strong>minação de legislação de proteção<br />

ambiental, a Carta alertava que ao longo do rio Carioca deveria ser mantido o “mato<br />

virgem, o qual não derrubará, nem se cortará de maneira que esteja sempre em pé”,<br />

estando o fi<strong>da</strong>lgo proibido de ali cultivar “[...] bananais e legumes e as mais coisas que<br />

se plantam”. Mostrando que desde então se procurava preservar os diversos usos <strong>da</strong><br />

<strong>água</strong> e que era costume que os trechos dos rios à montante fossem reservados para usos<br />

mais exigentes em quali<strong>da</strong>de a Carta determinava que “ao servir-se do dito Rio com sua<br />

<strong>água</strong> para assim beber e lavar a roupa fará na parte e lugar para isso”. Contudo, o<br />

cumprimento <strong>da</strong> lei exigia contínua e severa vigilância e <strong>no</strong> citado rio essa só se fez<br />

presente após a inauguração de um aqueduto que levava <strong>água</strong> às dezesseis bicas de um<br />

chafariz <strong>no</strong> Largo de Santo Antônio (atual Largo <strong>da</strong> Carioca), núcleo central <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de 7 ,<br />

em 1723. Porém, apenas entre a nascente e o ponto inicial <strong>da</strong> obra. No restante,<br />

“abandonado pela fiscalização pública [...] instalou-se um ver<strong>da</strong>deiro colar de<br />

lavanderias públicas, bebedouros de animais e reservatórios de lixo e esgoto”<br />

(CAVALCANTI, 2004, p. 35).<br />

Em 1797, alegando necessi<strong>da</strong>de de proteger as florestas e os rios do Brasil,<br />

uma Carta Régia <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 13 de março tor<strong>no</strong>u patrimônio Real às “matas e arvoredos<br />

existentes à bor<strong>da</strong> <strong>da</strong> costa ou de rios que desembocassem imediatamente <strong>no</strong> mar e de<br />

qualquer via fluvial capaz de permitir a passagem de janga<strong>da</strong>s transportadoras de<br />

madeiras”. As terras já doa<strong>da</strong>s que se enquadravam nestas condições retornaram à Coroa<br />

7 Até então a <strong>água</strong> <strong>no</strong> Rio de Janeiro era, basicamente, trazi<strong>da</strong> por “aguadeiros” do distante rio e vendi<strong>da</strong> a<br />

altos preços. Em fins do Império apenas as repartições públicas, as igrejas e umas poucas residências<br />

recebiam <strong>água</strong> domiciliar. Apenas em 1876, tem início as obras para levar <strong>água</strong> aos domicílios na mais<br />

importante ci<strong>da</strong>de do país.


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e os sesmeiros receberam <strong>no</strong>vas concessões. Para facilitar a fiscalização e o<br />

cumprimento <strong>da</strong> lei – cujos infratores estavam sujeitos a severas penas – <strong>no</strong>vos<br />

instrumentos administrativos foram instituídos, informa Evaristo Eduardo de Miran<strong>da</strong><br />

(s/d, s/p). A medi<strong>da</strong> procurava coibir o contrabando e resguar<strong>da</strong>r uma fonte de riqueza<br />

para a Metrópole: a exportação de pau-<strong>brasil</strong>, mog<strong>no</strong>, cedro e outras madeiras <strong>no</strong>bres,<br />

utiliza<strong>da</strong>s <strong>no</strong> mobiliário e na construção de embarcações. Mas seu alcance mais amplo.<br />

Já então se sabia que conservar as florestas significava também conservar os rios, ou<br />

seja, manter as vias pelas quais a madeira chegava aos portos. Impunha-se, pois,<br />

controlar o corte <strong>da</strong>s árvores nas matas próximas às margens – tal como ocorria em<br />

Portugal 8 .<br />

Porém, com o desenvolvimento <strong>da</strong> indústria açucareira cresceu a necessi<strong>da</strong>de<br />

de <strong>água</strong> <strong>no</strong>s engenhos e alguns proprietários solicitaram mu<strong>da</strong>nça na legislação. Assim,<br />

“em benefício <strong>da</strong> agricultura e <strong>da</strong> causa pública”, o Alvará de 04/03/1819 estendeu ao<br />

Brasil “e a to<strong>da</strong>s as Províncias do Rei<strong>no</strong> de Portugal e Domínios Ultramari<strong>no</strong>s” alguns<br />

parágrafos do Alvará de 27/11/1804 que regulava a construção e o uso de <strong>água</strong>s <strong>no</strong><br />

Alentejo.<br />

A partir <strong>da</strong>í, independentemente de pertencerem ou não ao patrimônio Real,<br />

[...] uma povoação [...] ou [...] proprietário em particular<br />

[necessitando construir] canal ou leva<strong>da</strong> [para] tirar <strong>água</strong> de algum<br />

Rio, Ribeira, Paul ou Nascente [e] regar [suas] terras ou para as<br />

esgotar sendo inun<strong>da</strong><strong>da</strong>s [...] poderia faze-lo, [devendo, para isso,]<br />

requerer licença a um Ministro <strong>da</strong> Vara Branca do Termo ou Comarca<br />

ao qual caberia demarcar o lugar por onde passaria a dita construção<br />

(Alvará de 27/11/1804, § 11).<br />

As dificul<strong>da</strong>des em fazer cumprir a lei <strong>no</strong> vasto e distante território eram<br />

e<strong>no</strong>rmes. Para Cid Tomanik Pompeu (1972) o Alvará apenas reconheceu a situação de<br />

fato existente e permitiu a utilização livre dessas correntes, tornando letra-morta o<br />

disposto nas “Ordenações”. Formalmente, entretanto, a utilização dessas <strong>água</strong>s seguia<br />

requerendo autorização e estava sujeita a condicionali<strong>da</strong>des.<br />

O Alvará de 1804 regulava a <strong>apropriação</strong> e o uso <strong>da</strong> natureza – <strong>água</strong>, terras e<br />

florestas – na clara perspectiva de promover a produção e a riqueza, ou seja, aquilo que<br />

8 Ao longo do rio Tejo (10 léguas em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s margens) proibia-se “descascar” e cortar certas<br />

árvores para fazer carvão ou cinzas mesmo por seus proprietários (OF, T.V, T. LXXV). Em terras comuns<br />

do Alentejo a exploração de matas silvestres cujas árvores serviam para madeira e lenha deveria obedecer<br />

a certo ordenamento e era expressamente proibido cortar ou destruir as árvores <strong>no</strong>vas e brotos (Alvará de<br />

27 de <strong>no</strong>vembro de 1804, OF. L. IV).


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hoje comumente se de<strong>no</strong>minaria desenvolvimento. Era preciso conservar os “interesses<br />

dos lavradores [para que] se promovesse também a melhor cultura”, dizia. Tal como os<br />

atuais institucionalistas, afirmava que não poderia haver dúvi<strong>da</strong>s a respeito dos direitos<br />

de ca<strong>da</strong> um – proprietários e lavradores. Aliás, esclarecer dúvi<strong>da</strong>s e evitar interpretações<br />

divergentes de leis anteriores era seu propósito. Porém, ao contrário dos discursos que<br />

presidem as intervenções nas formas de <strong>apropriação</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong> <strong>doce</strong> como parte <strong>da</strong><br />

estratégia de combate à escassez – existente ou potencial – o citado Alvará não deixava<br />

claro que regulava relações sociais e de poder o que implica dizer, relações conflituosas.<br />

Assim, embora em <strong>no</strong>me <strong>da</strong> “cultura” fosse necessário resguar<strong>da</strong>r os interesses dos<br />

lavradores, a afirmação destes direitos não poderia prejudicar “a classe dos<br />

proprietários, que deveria tirar vantagem do melhoramento de seus <strong>pré</strong>dios [...]”, diz em<br />

sua justificativa inicial.<br />

As relações de vizinhança eram trata<strong>da</strong>s minuciosamente. Conforme seu<br />

parágrafo 11, os do<strong>no</strong>s dos terre<strong>no</strong>s pelos quais passasse uma corrente de <strong>água</strong> não<br />

poderiam impedir a construção de canais ou obras necessárias ao esgotamento de áreas<br />

inun<strong>da</strong><strong>da</strong>s embora devessem ser ressarcidos dos prejuízos que viessem a sofrer em<br />

decorrência <strong>da</strong>s mesmas. Caso tais obras afetassem “Quintas <strong>no</strong>bres e mura<strong>da</strong>s e [...]<br />

quintaes dos Prédios urba<strong>no</strong>s nas Ci<strong>da</strong>des ou nas Villas”, podendo causar-lhes prejuízos,<br />

a licença para a construção deveria ser concedi<strong>da</strong> por “expressa” Resolução de sua<br />

Majestade e, ain<strong>da</strong> assim, se não houvesse prejuízo a outra já “construí<strong>da</strong>, seja para a<br />

rega de terras ou para alguns engenhos”, mas, apenas “quando possa haver commo<strong>da</strong><br />

divisão <strong>da</strong> <strong>água</strong> de forma que não fique inútil a cultura já feita, ou o Engenho já<br />

construído” (Alvará de 1804, § 12).<br />

Procurando conciliar o direito de proprie<strong>da</strong>de com o direito de acesso à <strong>água</strong>,<br />

seu parágrafo 13 estabelecia que os do<strong>no</strong>s <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des que <strong>no</strong> futuro fossem<br />

mura<strong>da</strong>s ou vala<strong>da</strong>s não se obrigavam a <strong>da</strong>r caminho ou passagem por suas terras.<br />

To<strong>da</strong>via, estavam obrigados a deixar passar a <strong>água</strong> e a consertar o aqueduto. Caso uma<br />

mu<strong>da</strong>nça do aqueduto não prejudicasse a passagem <strong>da</strong> <strong>água</strong>, poderiam esses<br />

proprietários requere-la, à condição de arcar com os custos <strong>da</strong>s obras. Previa, também,<br />

acesso aos aquedutos por produtores que não os houvessem custeado devendo, para isso,<br />

pagar “sua cota parte <strong>da</strong> despeza [...] aos que os fizeram construir [...]” A ocorrência de<br />

conflitos era prevista, ficando estabelecido que sendo “[...] necessario haver divisão<br />

judicial <strong>da</strong> <strong>água</strong>, nesta se seguirá o arbítrio de Louvados inteligentes”.


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O advento do Império não trouxe mu<strong>da</strong>nças <strong>no</strong> que concerne ao domínio <strong>da</strong>s<br />

<strong>água</strong>s. A Constituição de 25 de março de 1824 (artigo 179, XVIII) determi<strong>no</strong>u a<br />

elaboração de um Código Civil e validou o disposto nas Ordenações Filipinas até que o<br />

referido Código fosse promulgado, informa Adriane Stoll de Oliveira (2002),<br />

continuando em vigor o disposto em 1804 até 1917.<br />

O domínio/proprie<strong>da</strong>de legal <strong>da</strong> terra não implicava necessariamente sua posse<br />

efetiva. A capaci<strong>da</strong>de de exercer controle sobre o território e, por extensão, sobre seus<br />

recursos contava mais do que títulos legais. A licenciosi<strong>da</strong>de <strong>no</strong> uso <strong>da</strong>s <strong>água</strong>s<br />

pertencentes ao patrimônio Real e a vitória dos posseiros piauienses em prolonga<strong>da</strong> luta<br />

contra os sesmeiros baia<strong>no</strong>s (século XVIII) demonstram que as determinações legais<br />

pouco significam frente à incapaci<strong>da</strong>de de garantir os direitos e obrigações que delas<br />

emanam. O mesmo se conclui <strong>da</strong> leitura do belo livro de Denise Santana (2007) sobre<br />

as <strong>água</strong>s na ci<strong>da</strong>de de São Paulo. A rica hidrografia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de não evitou as frequentes<br />

queixas contra a falta de <strong>água</strong> <strong>no</strong> decorrer do século XVIII. A razão <strong>da</strong> “escassez” e de<br />

contínuos conflitos era o desvio <strong>da</strong> <strong>água</strong> - que deveria servir à coletivi<strong>da</strong>de - para<br />

proveito de poucos. O mesmo se pode dizer a respeito do lançamento de dejetos e <strong>água</strong>s<br />

servi<strong>da</strong>s em certos pontos dos rios, inutilizando-os para usos mais exigentes em<br />

potabili<strong>da</strong>de. Na ausência de vigilância constante, inclusive <strong>no</strong>turna, as leis não se<br />

cumpriam. É razoável supor que nas ci<strong>da</strong>des em que a captação e canalização de<br />

nascentes e riachos por particulares era mais fácil se reproduzissem os mesmos conflitos<br />

aí registrados Sem minimizar o poder econômico e o prestígio social dos contendores,<br />

diferentemente do que ocorria nas áreas mais distantes dos poderes estabelecidos, rurais<br />

ou não, ali era comum recorrer-se à justiça para fazer valer os direitos de vizinhança<br />

estabelecidos em Lei.<br />

O século XIX foi marcado por grandes transformações na vi<strong>da</strong> <strong>brasil</strong>eira: a<br />

vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte portuguesa para o Brasil, o boom cafeeiro <strong>no</strong> vale do Paraíba do Sul e,<br />

em segui<strong>da</strong>, <strong>no</strong> Oeste paulista, refletiu-se sobre o espaço urba<strong>no</strong> direta ou indiretamente<br />

vinculado à produção e à comercialização do café. Nas últimas déca<strong>da</strong>s do século o fim<br />

<strong>da</strong> escravidão, a instituição <strong>da</strong> República e as grandes levas de imigrantes que chegaram<br />

ao país reforçaram o aumento <strong>da</strong> população urbana favorecendo a dinamização do<br />

comércio, o nascimento de indústrias leves e de peças e implementos dirigidos para o<br />

setor exportados nas ci<strong>da</strong>des vincula<strong>da</strong>s à produção e exportação do café; vários bancos<br />

surgiram. Entre o último terço do século XIX e 1930 o poder público investiu – ou


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financiou inversões priva<strong>da</strong>s – em portos, linhas de navegação, ferrovias, transporte<br />

urba<strong>no</strong>, aterros, loteamentos e arruamentos. O espaço <strong>da</strong>s modificando profun<strong>da</strong>mente<br />

como indicam, dentre outros, Wilson Suzigan (1986) e Maurício Abreu (2001).<br />

A <strong>água</strong> ganhou <strong>no</strong>vos usos, a deman<strong>da</strong> aumentou. O crescimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des<br />

exigia ampliação e melhorias <strong>no</strong>s recentes e precários serviços de abastecimento de <strong>água</strong><br />

potável, energia e saneamento. Datava de 1876 as primeiras obras visando levar <strong>água</strong><br />

aos domicílios na capital do Império. Até então apenas as repartições públicas, Igrejas e<br />

umas poucas residências recebiam <strong>água</strong> domiciliar. Em resposta, multiplicaram-se as<br />

pequenas hidrelétricas construí<strong>da</strong>s em rios particulares cuja energia – principal uso<br />

<strong>industrial</strong> <strong>da</strong>s <strong>água</strong>s – era consumi<strong>da</strong> pelos próprios produtores ou comercializa<strong>da</strong>. Seu<br />

desti<strong>no</strong>: iluminação pública, tecelagens, serrarias, indústrias de beneficiamento de<br />

produtos agrícolas e mineradoras.<br />

A indústria exigia a desvinculação entre a proprie<strong>da</strong>de do subsolo e do solo.<br />

As que<strong>da</strong>s d’<strong>água</strong> e as minas precisavam estar disponíveis para permitir o ple<strong>no</strong><br />

desenvolvimento <strong>da</strong> produção de energia, <strong>da</strong> mineração e <strong>da</strong> metalurgia. Assim ocorrera<br />

na Europa, alertara Claude Henri Gorceix (2000, s/p) em 1875, a propósito <strong>da</strong>s minas. O<br />

cientista convi<strong>da</strong>do para montar a primeira Escola de Minas <strong>no</strong> Brasil argumentou junto<br />

ao Imperador que a realização de “trabalhos grandiosos” e a sustentação <strong>da</strong>s guerras, há<br />

muito se sabia, exigiam que o subsolo fosse declarado “proprie<strong>da</strong>de pública”. As minas<br />

deveriam estar sujeitas a uma legislação particular e caberia ao Estado explorá-las “ou<br />

entregá-las à indústria priva<strong>da</strong>, sob condições determina<strong>da</strong>s pela natureza e situação <strong>da</strong><br />

jazi<strong>da</strong>”. Porém, o Brasil era um país eminentemente agrário O poder dos do<strong>no</strong>s de terra<br />

prevaleceu.<br />

A primeira Constituição republicana manteve associa<strong>da</strong>s ao solo a<br />

proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s minas e <strong>da</strong>s <strong>água</strong>s. Afinal o trabalho escravo mal acabara de ser abolido<br />

e fazia apenas meio século que a própria terra se tornara objeto de compra e ven<strong>da</strong>. 9<br />

Contudo, a possibili<strong>da</strong>de de futuras limitações dos direitos sobre a <strong>água</strong> em favor do<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> produção mineral foi prevista.<br />

Dizia a Constituição de 1891:<br />

9 Lei 601 de 1850, conheci<strong>da</strong> como Lei de Terras.<br />

O direito de proprie<strong>da</strong>de mantém-se em to<strong>da</strong> a sua plenitude salva a<br />

des<strong>apropriação</strong> por necessi<strong>da</strong>de ou utili<strong>da</strong>de pública mediante <strong>pré</strong>via<br />

indenização. As minas pertencem aos proprietários do solo salvas as


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limitações que forem estabeleci<strong>da</strong>s por lei a bem <strong>da</strong> exploração deste<br />

ramo de indústria (C.F. 1891, art. 72, § 17).<br />

As transformações na socie<strong>da</strong>de <strong>brasil</strong>eira sinalizavam para a necessi<strong>da</strong>de de<br />

<strong>no</strong>vas definições legais acerca do domínio e uso <strong>da</strong> <strong>água</strong> <strong>doce</strong>. A tentativa de efetuar<br />

essas mu<strong>da</strong>nças e elaborar uma legislação específica para as <strong>água</strong>s proposta pelo<br />

professor Alfredo Valadão em 1907, fracassou. Até 1934 as <strong>água</strong>s permaneceriam<br />

regi<strong>da</strong>s pelos direitos de proprie<strong>da</strong>de e vizinhança consubstanciados, a partir de 1917, <strong>no</strong><br />

Código Civil 10 cujo artigo 526 preceituava:<br />

A proprie<strong>da</strong>de do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em to<strong>da</strong> a<br />

altura e em to<strong>da</strong> a profundi<strong>da</strong>de, úteis ao seu exercício, não podendo,<br />

to<strong>da</strong>via, o proprietário opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a uma<br />

altura ou profundi<strong>da</strong>de tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los<br />

(Re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15/01/1919).<br />

Finalmente, em 1934, <strong>no</strong> bojo <strong>da</strong>s ações modernizadoras enceta<strong>da</strong>s pela<br />

chama<strong>da</strong> Revolução de Trinta, com o Decreto 24.643 o Brasil ganhou uma legislação de<br />

<strong>água</strong>s específica: o Código de Águas. Na condução dos trabalhos que levaram a adoção<br />

deste dispositivo legal estava um militar, Juarez Távora, um oficial de mentali<strong>da</strong>de<br />

moderna, ou seja, plenamente envolvido <strong>no</strong>s esforços pela <strong>industrial</strong>ização do país. O<br />

Brasil <strong>da</strong>va passos cruciais rumo a superação <strong>da</strong> eco<strong>no</strong>mia agroexportadora e o Código<br />

de Águas foi um instrumento essencial desse processo. Em 1997, a Lei n. 9.433 altera<br />

princípios fun<strong>da</strong>ntes do Código de 1934. A alteração correspondia a uma <strong>no</strong>va fase do<br />

desenvolvimento capitalista <strong>no</strong> país. O Brasil urba<strong>no</strong> e <strong>industrial</strong>izado precisaria<br />

disciplinar a <strong>apropriação</strong> e a <strong>regulação</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong> <strong>doce</strong> conforme <strong>no</strong>vos interesses<br />

hegemônicos.<br />

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