Edição 133 - Jornal Rascunho - Gazeta do Povo
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10<br />
MAIO DE 2011<br />
Entre oito e oitenta<br />
Na prosa e no verso, livros de MIGUEL SANCHES NETO são medianos<br />
: : MARCOS PASCHE<br />
RIO DE JANEIRO – RJ<br />
A<br />
crítica literária, quan<strong>do</strong><br />
realizada com seriedade, é<br />
uma tarefa bastante árdua,<br />
como o são to<strong>do</strong>s os ofícios<br />
desempenha<strong>do</strong>s com afi nco e sinceridade.<br />
Mas, por para<strong>do</strong>xal que pareça,<br />
estan<strong>do</strong> o crítico diante de extremos<br />
— o livro grandioso ou o péssimo, que<br />
ele sequer considera literário —, sua<br />
tarefa analítica (se não podemos empregar<br />
aqui o termo “facilidade”, para<br />
que não façamos uma pecaminosa<br />
contradição) ganha certo conforto,<br />
pois em geral são numerosos os motivos<br />
que provocam em nós a sensação<br />
<strong>do</strong> en<strong>do</strong>sso ou da repulsa.<br />
No primeiro caso, o estudioso<br />
inevitavelmente contamina seu juízo<br />
pela paixão (sem a qual não há crítica<br />
apaixonante), no entender dele regalada<br />
pela obra de excelência, e a partir<br />
disso elabora um discurso em comunhão<br />
com o que foi li<strong>do</strong>; no segun<strong>do</strong>,<br />
rechaça-se tu<strong>do</strong> o que se lhe apresenta<br />
em desacor<strong>do</strong> com as verdades<br />
que carrega dentro de si, e nesse caso<br />
a paixão assume uma tonalidade diversa,<br />
e, grávida de gravidade, gravase<br />
nas páginas com as tintas negras<br />
da reprovação. Tu<strong>do</strong> muito subjetivo,<br />
é verdade, mas a objetividade — que<br />
(acertadamente) se cobra da crítica<br />
literária, porém em muitos momentos<br />
solicitan<strong>do</strong> (equivocadamente) a<br />
expulsão da pessoalidade — a objetividade,<br />
dizia eu, e seus mecanismos<br />
de legitimação nascem sempre em<br />
algum espaço particular, pois nada<br />
<strong>do</strong> que pertence ao conhecimento<br />
HUGO HARADA/DIVULGAÇÃO<br />
humano brota em árvores ou é extraí<strong>do</strong><br />
de alguma pedra.<br />
Mas os livros medianos parecem<br />
mais desconfortáveis para a<br />
crítica precisamente por se situarem<br />
numa terceira via, a qual, neste contexto,<br />
não costuma ser muito fértil,<br />
visto não ser tão curta a ponto de<br />
inviabilizar o trânsito, nem tão longa<br />
a desafi ar o horizonte e nos impulsionar<br />
ao deslocamento. Fique claro<br />
que aqui não se defendem nocivas<br />
dicotomias, pois seria absolutamente<br />
danoso caso a crítica se limitasse<br />
à etiquetação <strong>do</strong> que é bom e <strong>do</strong> que<br />
é ruim, de maneira direta e simples,<br />
mas a vida por vezes coloca-nos<br />
diante de situações que nos inspiram<br />
um inevitável “ou oito ou oitenta”.<br />
Esta é a impressão que nos<br />
causam os mais recentes livros de<br />
Miguel Sanches Neto: Então você<br />
quer ser escritor? (de contos) e<br />
Alugo palavras (de poemas).<br />
Em ambos os casos, o autor<br />
nunca escreve de forma rasteira;<br />
não cede aos azulejos frios<br />
da abstração nem se embala pela<br />
chapa quente <strong>do</strong>s tiroteios neonaturalistas;<br />
também não decai na<br />
gozação banalizada que se acredita<br />
transgressora nem se confi na na<br />
seriedade experimental refratária<br />
a qualquer espontaneidade. Tanto<br />
na prosa quanto no verso, o paranaense<br />
não se submete aos receituários<br />
da época, revelan<strong>do</strong> um<br />
trabalho elabora<strong>do</strong> com i<strong>do</strong>neidade<br />
e autonomia. No entanto, mesmo a<br />
evitação <strong>do</strong>s vícios somada a essas<br />
virtudes não conferem às peças em<br />
questão maior expressividade.<br />
NARRAÇÃO DE ESTÓRIAS<br />
O volume de contos dá exemplo<br />
mais preciso <strong>do</strong> que estamos a apontar.<br />
Então você quer ser escritor?<br />
é composto por 16 narrativas,<br />
as quais desautorizam nossas expectativas<br />
de que por detrás <strong>do</strong> rótulo de<br />
“prosa de fi cção” esconder-se-ia um<br />
trata<strong>do</strong> narcisista de concepções artísticas<br />
em nome da emancipação da<br />
literatura contemporânea (as expectativas<br />
fi cam mais plausíveis porque<br />
Miguel Sanches é professor universitário<br />
de Literatura Brasileira). Em<br />
decorrência dessa atitude voluntária<br />
<strong>do</strong> autor de esquivar sua prosa <strong>do</strong><br />
exagero metadiscursivo, percebe-se<br />
um livro pauta<strong>do</strong> pelo princípio básico,<br />
mas não primário, da narração<br />
de estórias de caráter cotidiano com<br />
algum fator distintivo. E nisso o volume<br />
<strong>do</strong>ta-se de frescor, pois ainda<br />
vemos que a prosa de fi cção pode<br />
continuar a falar <strong>do</strong> que não necessariamente<br />
nos pertence, mas está<br />
bem a nosso la<strong>do</strong>, como o menino<br />
que custa a perceber a morte <strong>do</strong> pai,<br />
o jovem que desaparece de sua cidade<br />
após uma desilusão amorosa e<br />
os moleques que se aventuram para<br />
formar um time de futebol.<br />
Mas os temas e a fi guração (em<br />
senti<strong>do</strong> contrário à abstração) não<br />
bastam para fazer com que um texto<br />
possa ser considera<strong>do</strong> artístico. E aí<br />
se vê que se o autor acertou ao proibir<br />
a presença homogênea de ruminações<br />
teóricas, ele errou ao não<br />
alicerçar sua forma narrativa sobre<br />
técnicas de composição que garantiriam<br />
ao conjunto maior densidade<br />
estética. Aqui se buscou negar o<br />
O AUTOR<br />
MIGUEL<br />
SANCHES NETO<br />
Nasceu em 1965, em Bela<br />
Vista <strong>do</strong> Paraíso, Norte <strong>do</strong><br />
Paraná. Estreou em 1991, com<br />
o livro de poemas Inscrições<br />
a giz. Entre poesia, conto,<br />
romance e literatura infantil, já<br />
publicou mais de dez títulos.<br />
Também atua como cronista<br />
<strong>do</strong> jornal <strong>Gazeta</strong> <strong>do</strong> <strong>Povo</strong> e<br />
como professor de Literatura<br />
Brasileira da Universidade<br />
Estadual de Ponta Grossa (PR).<br />
ENTÃO VOCÊ QUER<br />
SER ESCRITOR?<br />
Miguel Sanches Neto<br />
Record<br />
224 págs.<br />
ALUGO PALAVRAS<br />
Miguel Sanches Neto<br />
Edelbra<br />
109 págs.<br />
TRECHO<br />
ENTÃO VOCÊ QUER<br />
SER ESCRITOR?<br />
“Lembra-se então de que<br />
já tinha visto as folhas<br />
viçosas da planta na outra<br />
visita e até pensara em<br />
arrancá-la. Nesta semana,<br />
ela soltou um imenso<br />
pendão com uma fl or na<br />
ponta. Por ter uma haste<br />
longa e ser pesada, a fl or<br />
tinha pendi<strong>do</strong> justamente<br />
sobre o túmulo <strong>do</strong> pai,<br />
num último abraço.<br />
caminho da literatura dissociada da<br />
vida, mas se falou da vida sem a dicção<br />
mais típica da literatura, e por<br />
isso não parece que se tenha alcança<strong>do</strong><br />
nem uma nem outra esfera.<br />
O texto que abre o livro — Sangue<br />
— aponta para uma grave <strong>do</strong>ença<br />
da época presente: a indiferença<br />
diante das tragédias que enchem a<br />
pauta de programas televisivos e os<br />
olhos de seus especta<strong>do</strong>res que, indecisos<br />
entre a comiseração e o fascínio,<br />
aguardam sequiosos pelo momento<br />
de levarem suas vantagens.<br />
No curto relato, narra-se um grave<br />
acidente ro<strong>do</strong>viário envolven<strong>do</strong> um<br />
carro com quatro jovens e um caminhão<br />
transporta<strong>do</strong>r de repolhos.<br />
O acidente é presencia<strong>do</strong> por i<strong>do</strong>sos<br />
que viajam num ônibus rumo<br />
a Aparecida <strong>do</strong> Norte, no interior<br />
de São Paulo, os quais descem para<br />
assistir de perto e atuarem como coadjuvantes<br />
no bárbaro espetáculo:<br />
Então percebi que as pessoas<br />
guardavam repolhos no compartimento<br />
das malas. Iriam até Aparecida<br />
<strong>do</strong> Norte e só voltariam para<br />
casa <strong>do</strong>is dias depois, mas saqueavam<br />
a carga <strong>do</strong> caminhão. Meu vizinho,<br />
um senhor de rosto obscenamente<br />
bronzea<strong>do</strong>, ainda me olhava,<br />
esperan<strong>do</strong> que eu agradecesse.<br />
Algumas das incursões feitas<br />
por Miguel Sanches na seara da crônica<br />
dão ao livro fi rme poder de observação<br />
<strong>do</strong> tempo em que se insere,<br />
conforme demonstra o conto cita<strong>do</strong>.<br />
Porém a contemplação mais ampla,<br />
alvejan<strong>do</strong> o homem e alguns de seus<br />
dilemas, independentes <strong>do</strong> tempo,<br />
mostra-se escassa justamente por<br />
ser desprovida da penetração aguçada<br />
no interior <strong>do</strong>s personagens, os<br />
quais vivenciam situações de grande<br />
tensão emotiva, as quais são relatadas<br />
com escassa tensão narrativa.<br />
Mesmo em seus melhores lances,<br />
como em Redentor, protagoniza<strong>do</strong><br />
por um homem típico das convenções<br />
mas algo atormenta<strong>do</strong> por<br />
seus desejos homossexuais, a construção<br />
<strong>do</strong> personagem e a análise<br />
de seus pensamentos e ações não<br />
exploram as procelas sentimentais<br />
que se poderiam esperar de alguém<br />
com tal perfi l. Numa noite na Zona<br />
Sul <strong>do</strong> Rio, Pedro, homem casa<strong>do</strong> e<br />
que veio à cidade para um congresso<br />
de seu trabalho, leva um travesti<br />
para seu quarto, mas interrompe<br />
subitamente o ato sexual a que havia<br />
da<strong>do</strong> início. A cena inspira forte<br />
dramaticidade, mas é amenamente<br />
descrita pelo narra<strong>do</strong>r:<br />
Pedro foi ao banheiro, tirou<br />
o preservativo com papel higiênico<br />
e tomou um banho rápi<strong>do</strong>. Ela<br />
entrou no banheiro só de saia e<br />
sandália, para arrumar a peruca<br />
no espelho. Então ele viu a imagem<br />
de Cristo tatuada na barriga,<br />
um Cristo meio selvagem. Pedro<br />
teve vontade de chorar.<br />
Noutro conto, Para o seu bem,<br />
cuja atmosfera agônica tem o sangue<br />
social, a ausência de des<strong>do</strong>bramento<br />
narrativo (o qual nos aproxima da<br />
complexidade anímica <strong>do</strong> personagem,<br />
levan<strong>do</strong>-nos a conhecer e desconhecer<br />
o homem) deixa artifi cial a<br />
“conversão” <strong>do</strong> pacato menino Fábio<br />
Júnior ao crime, visto que tu<strong>do</strong> se processa<br />
de mo<strong>do</strong> imediato e, por isso,<br />
inverossímil demais: o rapaz fala uma<br />
vez com um trafi cante; o trafi cante vai<br />
a casa dele, e então ele fuma maconha<br />
pela primeira vez; bem adiante, Fábio<br />
Júnior já consome drogas mais pesadas,<br />
e num trajeto percorri<strong>do</strong> por<br />
velocista olímpico, torna-se, a um só<br />
tempo, trafi cante e ladrão (que se dá<br />
ao luxo de ir a um culto evangélico desacompanha<strong>do</strong><br />
sem temer qualquer<br />
perseguição): “Estou com dinheiro,<br />
compro e ven<strong>do</strong> droga agora. Tive<br />
que matar o [trafi cante] Pânico porque<br />
ele estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> com minha<br />
menina, e fi quei com os clientes dele.<br />
To<strong>do</strong>s têm me<strong>do</strong> <strong>do</strong> menino Júnior, o<br />
vulgo pegou mesmo”.<br />
Esta é a tônica geral <strong>do</strong> livro,<br />
a comprovar um surpreendente antagonismo:<br />
a literatura de vocação<br />
mimética, cujo pressuposto centrase<br />
na representação da realidade, é<br />
justamente a que costuma se afastar<br />
<strong>do</strong> real que pretende abraçar<br />
com seus laços pragmáticos. E no<br />
caso específi co de nossos convivas<br />
de tempo e de país, muito <strong>do</strong> que se<br />
publica forma uma literatura sem<br />
interesse ou capacidade de edifi carse<br />
pelo acúmulo <strong>do</strong> que nossa ainda<br />
jovem mas vigorosa tradição legou<br />
como valiosos ensinamentos.<br />
POESIA<br />
Fato semelhante ocorre em<br />
Alugo palavras, sexto livro de<br />
poemas <strong>do</strong> autor de Então você<br />
quer ser escritor?. A considerável<br />
produção de Miguel Sanches<br />
Neto na escrita em verso não nos<br />
permite supor que o novo volume<br />
seja mero desenfa<strong>do</strong> ou passeio<br />
intelectual <strong>do</strong> prosa<strong>do</strong>r em seus<br />
momentos de folga; mas, por outro<br />
la<strong>do</strong>, vê-se de fato que a prática<br />
ainda não é sinônimo de primor.<br />
Apesar de dividi<strong>do</strong> em quatro<br />
partes, há no livro um fi o coesivo manifesta<strong>do</strong><br />
pela confi ssão e pela memória,<br />
num lirismo ao qual se associam<br />
passagens metalingüísticas. Aqui,<br />
mais uma vez, a despeito de não nadar<br />
nas ondas de seus confrades hodiernos,<br />
a escrita de Miguel Sanches<br />
situa-se num patamar além <strong>do</strong>s que<br />
nada têm a dizer e aquém <strong>do</strong>s que<br />
dizem muito e dizem bem: “Maria da<br />
Glória/ por que foste embora?// Maria<br />
das Dores/ que tal se te fores? //<br />
Maria <strong>do</strong>s Anjos,/ escute o meu pranto.//<br />
Maria das Neves, por que não<br />
te atreves?// Maria da Penha, largue<br />
tu<strong>do</strong> e venha” (Todas as Marias).<br />
Mas no gênero lírico o autor<br />
paranaense realiza com alguma<br />
freqüência feitos de alcance<br />
mais considerável, especialmente<br />
quan<strong>do</strong> o discurso poupa-se das<br />
palavras para aprofundar-se na<br />
refl exão e na densidade imagética:<br />
“Acolhes tu<strong>do</strong> que brilha./ O espelho<br />
<strong>do</strong>s olhos/ é tua única mobília”<br />
(Aden<strong>do</strong> quase romântico).<br />
E o grande salto desta poética<br />
ocorre quan<strong>do</strong> se mesclam os recursos<br />
pelos quais o texto tem acesso<br />
à morada da poesia, ou dela é proveniente.<br />
Ao formar um amálgama<br />
de engenho discursivo, densidade<br />
refl exiva e carga emotiva, cujo somatório<br />
tem o poder de inaugurar<br />
novos senti<strong>do</strong>s, o autor põe no livro<br />
e no mun<strong>do</strong> a pincelada forte de<br />
suas impressões digitais, as quais<br />
colocam a esmo tu<strong>do</strong> o que se enquadrava<br />
no meio e no mesmo:<br />
FAMÍLIA<br />
Uma toalha por dia<br />
pra toda a família.<br />
Primeiro, seca-se o pai,<br />
é quem trabalha mais.<br />
A mãe sempre o secunda,<br />
e a toalha já se inunda.<br />
A irmã vem logo depois,<br />
limpo e vívi<strong>do</strong> é seu corpo.<br />
Aos moleques imun<strong>do</strong>s,<br />
resta o teci<strong>do</strong> to<strong>do</strong> úmi<strong>do</strong>.<br />
Em outra toalha, pequena,<br />
secam o rosto e a cabeça.<br />
E neste ritual de higiene<br />
há algo de Santa Ceia.<br />
É sempre mais difícil o trabalho<br />
de autores lança<strong>do</strong>s à narrativa<br />
e à poesia simultaneamente. O caso<br />
de Miguel Sanches Neto nos faz<br />
supor que o vigor dessas duas estradas<br />
pode se dar a partir da unifi<br />
cação <strong>do</strong>s caminhos, em contínua<br />
alteração das alteridades.