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91 QUANDO O MEDO REAL IMPOSSIBILITA O JOGO ... - FACEVV

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<strong>QUANDO</strong> O <strong>MEDO</strong> <strong>REAL</strong> <strong>IMPOSSIBILITA</strong> O <strong>JOGO</strong> IMAGINÁRIO: A ATIVIDADE<br />

LÚDICA E A CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN<br />

Revista <strong>FACEVV</strong> / ISSN 1984-<strong>91</strong>33 / Vila Velha / Número 8 / Jan. / Jun. 2012<br />

<strong>91</strong><br />

Ivone Martins de Oliveira 149<br />

Zinia Fraga Intra 150<br />

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar aspectos da relação entre o real e o imaginário na<br />

brincadeira da criança com síndrome de Down. Toma como referência os estudos de Vigotski a<br />

respeito do desenvolvimento humano para analisar atividades lúdicas realizadas por crianças com<br />

desenvolvimento típico e atípico numa brinquedoteca. O estudo tem como foco uma menina de cinco<br />

anos com síndrome de Down em situações de jogo imaginário. Apresenta e analisa a mediação do<br />

adulto durante esses jogos e problematiza a não participação dessa menina em brincadeiras que<br />

envolvem outras crianças e adultos fantasiados, devido ao medo das fantasias. Diante disso, o<br />

trabalho discute a interferência da emoção no movimento da criança com síndrome de Down, entre o<br />

plano real e o imaginário, durante atividades lúdicas na brinquedoteca.<br />

Palavras-chave: Criança. Síndrome de Down. Jogo imaginário. Desenvolvimento<br />

infantil.<br />

Abstract: The paper aims at analyzing aspects of the relation between the real and the imaginary in<br />

the games played by children with Down syndrome. It uses as reference the Vigotski studies regarding<br />

human development in order to analyze ludic activities done by children with typical and atypical<br />

development in a playroom. The study focuses on a five-year old girl with Down syndrome in<br />

imaginary games situations, presents and analyses the mediation of an adult during the games and<br />

discusses the non-involvement of that girl in games that require the participation of other children and<br />

adults wearing costumes, because they are afraid of the costumes. Accordingly, the paper discusses<br />

the interference of emotion in the child with Down syndrome movement between the real and<br />

imaginary plans during the ludic activities held in the playroom.<br />

Keywords: Child. Down syndrome. Imaginary game. Child development.<br />

Introdução<br />

Era a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo. Tinha medo de<br />

tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria [...]. Ouvia conto de fada e<br />

estremecia. Não brincava mais de nada, nem de amarelinha. 151<br />

O livro “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque, apresenta a história de<br />

uma personagem dominada pelo medo. Chapeuzinho Amarelo nem brincava de<br />

149 Professora do Centro de Educação da UFES. Doutora em Educação.<br />

150 Professora da Rede Municipal de Vila Velha. Mestre em Educação.<br />

151 BUARQUE, C. Chapeuzinho Amarelo. São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 1992.


tanto medo. Medo de objetos e de eventos reais, medo de situações imaginadas.<br />

A imaginação e a fantasia da criança têm sido tematizadas especialmente por<br />

estudos que abordam seus modos de participação em jogos imaginários. A<br />

brincadeira vem sendo apontada por muitos autores como uma atividade que<br />

caracteriza a infância e que tem um papel fundamental no desenvolvimento de<br />

formas superiores de pensamento, incluindo nelas a dimensão afetiva e<br />

emocional. 152<br />

Ao analisar a mediação pedagógica no desenvolvimento do jogo imaginário<br />

no contexto de uma brinquedoteca, Intra e Oliveira 153 destacam a incorporação de<br />

papéis pelas crianças e o desempenho de ações em brincadeiras mais estruturadas.<br />

Enfocam brincadeiras de assustar o outro, discutindo sobre a maneira como<br />

meninas e meninos com desenvolvimento típico se envolvem nesses jogos, além de<br />

apontar o papel da mediação pedagógica de maneira a permitir à criança<br />

incrementar essa atividade lúdica, bem como lidar com os próprio medos. As<br />

brincadeiras de assustar o outro são compreendidas como parte de um conjunto de<br />

práticas culturais, construídas historicamente, que cumprem uma função de auxiliar<br />

o homem a lidar com os próprios medos.<br />

Porém, enquanto algumas crianças demonstram prazer diante de atividades<br />

lúdicas que inspiram medo, como a leitura de histórias infantis sobre lobo mau ou o<br />

uso de fantasias de bruxa, outras crianças têm mais dificuldades e resistência a se<br />

envolver nessas atividades. Conforme apontam Intra e Oliveira, por trás dessa<br />

resistência, pode se configurar uma dificuldade em separar o plano real e o<br />

imaginário, o que é mais comum em crianças pequenas.<br />

Nossos estudos têm indicado, ainda, que, devido às peculiaridades de seu<br />

desenvolvimento, crianças com síndrome de Down também podem apresentar um<br />

modo de articulação entre o plano real e o imaginário, que dificulta sua inserção em<br />

atividades lúdicas caracterizadas por objetos, personagens ou configurações que lhe<br />

inspirem medo. Diante disso, este trabalho se propõe a analisar aspectos da relação<br />

entre o real e o imaginário na brincadeira da criança com síndrome de Down.<br />

152 Vigotski, 1984; Brougère, 1995; Arce e Duarte, 2006.<br />

153 INTRA, Z. F.; OLIVEIRA, I. M. Brincadeira de faz de conta, medo e mediação pedagógica. In:<br />

CAPELLINI, V. L. M. F.; MANZONI, R. M. Políticas públicas, práticas pedagógicas e ensinoaprendizagem:<br />

diferentes olhares sobre o processo educacional. São Paulo: Cultura Acadêmica,<br />

2008.<br />

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Imaginação e brincadeira de faz de conta no desenvolvimento infantil<br />

Para Vigotski, 154 o que caracteriza a imaginação é a possibilidade de<br />

organizar, de uma forma totalmente nova, um conjunto de informações,<br />

conhecimentos ou vivências por meio de combinações singulares. Mais do que uma<br />

função psíquica, ela deveria ser abordada como um “sistema psicológico”, ressalta o<br />

autor, tendo em vista a complexidade de sua configuração. A imaginação encontra-<br />

se na base de todos os processos criativos; articula-se de forma estreita com todas<br />

as funções psíquicas superiores – memória, percepção e atenção, entre outras,<br />

fornecem substrato para o seu delineamento –; estabelece uma relação de<br />

constituição mútua com o pensamento conceitual, fornecendo-lhe elementos para<br />

um distanciamento do universo perceptual e concreto e uma atuação no plano<br />

abstrato – lógico-racional –, ao mesmo tempo em que se nutre desses elementos,<br />

ampliando suas possibilidades de configuração; é orientada também pelo universo<br />

emocional.<br />

A imaginação, como possibilidade de reprodução/produção/criação de<br />

imagens que se elaboram a partir de vivências e conhecimentos do sujeito, só pode<br />

se desenvolver, conforme aponta Vigotski, no plano simbólico, implicando, para tal, a<br />

emergência da própria linguagem. Referindo-se aos estudos de Bleuler, Vigotski<br />

destaca suas contribuições para a compreensão do papel da linguagem no<br />

desenvolvimento da imaginação: “A linguagem libera a criança das impressões<br />

imediatas sobre o objeto, oferece-lhe a possibilidade de representar para si mesma<br />

algum objeto que não tenha visto e pensar nele”. 155<br />

Considerando o papel da linguagem no desenvolvimento infantil e suas<br />

contribuições para a emergência da atividade imaginária, Vigotski chama a atenção<br />

para os obstáculos que podem se delinear quando o sujeito apresenta<br />

comprometimentos na linguagem. Fazendo referência a estudos sobre sujeitos com<br />

afasia, decorrente de lesão cerebral ou de outras afecções, o autor menciona<br />

resultados que indicam a diminuição sensível dos processos imaginários.<br />

Uma das atividades típicas do universo infantil em que a imaginação se<br />

manifesta é a brincadeira de faz de conta, contexto em que a criança interage com<br />

154 VIGOTSKI, L. S. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

155 VIGOTSKI, L. S. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

p. 122.<br />

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objetos e situações a partir de significados atribuídos a eles que se distanciam do<br />

real. Para o autor, “A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o<br />

campo do significado e o campo da percepção visual – ou seja, entre situações no<br />

pensamento e situações reais”. 156 Por suas características, o jogo imaginário pode<br />

ser compreendido como um momento de transição entre o pensamento infantil,<br />

aderido às situações imediatas e preso ao perceptual-concreto, e o pensamento do<br />

adulto, marcado pela possibilidade de distanciamento do real e atuação no plano<br />

abstrato.<br />

Na brincadeira de faz de conta, a criança é capaz de substituir um objeto por<br />

outro, uma situação por outra ou assumir o lugar de outra pessoa, executando ações<br />

que originariamente não seriam apropriadas para aquele objeto, situação ou pessoa.<br />

Nesse caso, o pensamento separa-se das situações reais que lhe deram origem e<br />

migra para o plano simbólico. A ação da criança é movida pelo significado e não<br />

pelos objetos: um cabo de vassoura pode se transformar em um cavalo.<br />

Mas, de início, a criança ainda não é capaz de se libertar por completo do<br />

ambiente imediato. Ela não consegue atuar com base exclusivamente no significado,<br />

necessitando de apoios na realidade, como um objeto com o qual possa realizar<br />

ações semelhantes àquelas executadas com um cavalo, para que a brincadeira se<br />

configure. A princípio, essa brincadeira se encontra estreitamente vinculada às<br />

situações reais, podendo ser compreendida a partir do contexto que lhe deu origem.<br />

Assim, ressalta-se mais a memória do que a imaginação, uma vez que as ações da<br />

criança parecem estar mais próximas de uma “lembrança” de situações vividas do<br />

que da criação de novas combinações. Embora haja avanços, destaca-se, ainda, o<br />

fato de que a “[...] criança é capaz de fazer mais do que ela pode compreender”. 157<br />

Como a imaginação é parte do funcionamento psíquico especificamente<br />

humano, para Vigotski, seu desenvolvimento segue as mesmas leis dos demais<br />

processos psíquicos: emerge nas relações sociais, a partir da apropriação da cultura<br />

mediada pela linguagem. Tendo em vista, ainda que, segundo o autor, as leis<br />

básicas do desenvolvimento são as mesmas tanto para sujeitos com<br />

desenvolvimento típico como aqueles com um modo de constituição atípico – apesar<br />

de o desenvolvimento apresentar certas peculiaridades no caso dos últimos –, suas<br />

considerações sobre a imaginação e a brincadeira de faz de conta podem fornecer<br />

156 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. p.118.<br />

157 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. p.114.<br />

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suporte para a compreensão da atividade imaginária da criança com síndrome de<br />

Down em situações de jogo imaginário.<br />

O desenvolvimento da criança com síndrome de Down e a brincadeira de faz<br />

de conta<br />

A síndrome de Down é uma condição orgânica causada por alterações na<br />

composição do cromossomo 21, que podem gerar, nos sujeitos acometidos por essa<br />

síndrome, comprometimentos orgânicos, atrasos no desenvolvimento e deficiência<br />

intelectual, quando comparados com sujeitos com desenvolvimento típico. 158<br />

Mancini 159 indica que o atraso no desenvolvimento não deve ser entendido em uma<br />

perspectiva linear, pois pode se alterar conforme a idade. Seu estudo mostra que<br />

diferenças em algumas áreas, como a mobilidade, podem ser mais perceptíveis aos<br />

dois anos de idade do que aos cinco; o que ocorre com frequência bem menor nas<br />

áreas de comunicação expressiva, compreensão e resolução de problemas.<br />

O estudo de Flabiano 160 indica que o desenvolvimento cognitivo de crianças<br />

com síndrome de Down segue o mesmo percurso daquelas com desenvolvimento<br />

típico, sobretudo no que se refere à representação, mas de forma mais lenta. As<br />

crianças com síndrome de Down “[...] teriam mais dificuldades para lidar com o que<br />

ultrapassa o domínio da ação nos campos perceptivo e motor, necessitando de um<br />

período de tempo maior para a constituição da representação mental, quando<br />

comparadas com DT [desenvolvimento típico]”, 161 o que implicaria um atraso na<br />

atividade simbólica.<br />

Baseados em estudos que apontam a plasticidade fenotípica de crianças com<br />

síndrome de Down, Moreira at al. 162 e Silva e Kleinhans 163 sugerem a submissão<br />

158 Moreira at al., 2002; Mancini at al., 2003; Flabiano, 2010.<br />

159 MANCINI, M. et al. Comparação do desempenho funcional de crianças portadoras de síndrome de<br />

Down e crianças com desenvolvimento normal aos 2 e 5 anos de idade. Arquivos de Neuropsiquiatria,<br />

São Paulo, v. 61, n. 2-B, p. 409-415, 2003.<br />

160 FLABIANO, F. C. A constituição da representação pela criança com síndrome de Down.<br />

2010. 177 f. Tese (Doutorado em Ciências da Reabilitação) – Universidade de São Paulo, Programa<br />

de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação, São Paulo-SP, 2010.<br />

161 FLABIANO, F. C. A constituição da representação pela criança com síndrome de Down. 2010.<br />

177 f. Tese (Doutorado em Ciências da Reabilitação) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-<br />

Graduação em Ciências da Reabilitação, São Paulo-SP, 2010, p. 53.<br />

162 MOREIRA, L. M. A.; EL-HANI, C. N.; GUSMÃO, F. A. F. A síndrome de Down e sua patogênese:<br />

considerações sobre o determinismo genético. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 22,<br />

n. 2, p. 96-99, 2002.<br />

163 SILVA, M. F. M.; KLEINHANS, A. C. S. Processos cognitivos e plasticidade cerebral na síndrome<br />

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desses sujeitos a programas de intervenção psicomotora e pedagógica o mais cedo<br />

possível de forma a propiciar a eles avanços significativos em seu desenvolvimento.<br />

Silva e Kleinhans afirmam que as possibilidades de plasticidade e de avanços<br />

no desenvolvimento estão atreladas “[...] à qualidade, duração e forma de<br />

estimulação que recebe o indivíduo com a síndrome”. 164 As autoras ressaltam a<br />

importância de um trabalho articulado entre família, escola e profissionais da área da<br />

saúde para se alcançar os resultados positivos nesse processo de intervenção. No<br />

trabalho a ser realizado com a criança, o conhecimento sobres suas possibilidades e<br />

potencialidades é fundamental, considerando as diferenças individuais e a área<br />

lesionada com a síndrome. Segundo Silva e Kleinhans:<br />

Reconhecendo as características do fenótipo de pessoas com SD,<br />

deveríamos concentrar as atividades nas áreas em que há maior<br />

potencial. Assim, na medida em que o sujeito percebe que pode<br />

realizar determinadas tarefas com êxito, haverá satisfação e maior<br />

motivação para enfrentar aquelas que têm maior dificuldade,<br />

contribuindo para que, dessa forma, seu desenvolvimento físico e<br />

mental vá avançando passo a passo. 165<br />

Castro, Panhoca e Zanoli 166 investigaram o processo comunicativo de<br />

crianças com síndrome de Down e comportamentos autísticos com um quadro de<br />

privação de estímulos, oportunidades de contatos sociais e interação com<br />

dispositivos culturais diversificados em momentos de brincadeira de faz de conta. Ao<br />

analisar a interação comunicativa de duas crianças entre si e dessas crianças com<br />

uma terapeuta fonoaudióloga durante as atividades lúdicas, as autoras destacam o<br />

potencial dessa brincadeira para o desenvolvimento do pensamento abstrato e da<br />

ampliação das construções imaginárias. Indicam avanços, pelos sujeitos da<br />

pesquisa, na interação comunicativa, iniciando pela intenção em se comunicar por<br />

meio de gestos e expressões faciais bem como da fala, e no uso de brinquedos com<br />

finalidade simbólica. Porém, alertando para o fato de que o trabalho terapêutico não<br />

é suficiente para o desenvolvimento global dessas crianças, as autoras apontam a<br />

de Down. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 12, n. 1, p. 123-138, 2006.<br />

164 SILVA, M. F. M.; KLEINHANS, A. C. S. Processos cognitivos e plasticidade cerebral na síndrome<br />

de Down. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 2006, v. 12, n. 1, p. 123-138; p. 134.<br />

165 SILVA, M. F. M.; KLEINHANS, A. C. S. Processos cognitivos e plasticidade cerebral na síndrome<br />

de Down. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 2006, v. 12, n. 1, p. 123-138; p. 135.<br />

166 CASTRO, G. S.; PANHOCA, I.; ZANOLI, M. L. Interação comunicativa em contexto lúdico de duas<br />

crianças com síndrome de Down, comportamentos autísticos e privação de estímulos. Psicologia:<br />

Reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 24, n. 4, p. 730-738, 2011.<br />

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necessidade de ampliação das possibilidades de interação e de contato com<br />

universos culturais diferenciados.<br />

Embora a maior parte dos trabalhos encontrados a respeito de questões<br />

referentes ao desenvolvimento da criança com síndrome de Down tenha sido<br />

produzida no contexto clínico, esses estudos trazem elementos interessantes para a<br />

discussão sobre o desenvolvimento da imaginação nessas crianças, quando<br />

enfocam questões referentes à linguagem, ao papel de outras pessoas e do meio<br />

cultural mais amplo em seu desenvolvimento.<br />

Distanciando-se do contexto clínico, o estudo de Victor 167 buscou<br />

compreender aspectos da brincadeira de faz de conta de crianças com síndrome de<br />

Down em classes especiais destinadas à educação infantil, inseridas em uma escola<br />

regular. Acompanhando a brincadeira de quatro crianças na sala de aula e no<br />

parque, a pesquisadora constatou que, nas atividades lúdicas desenvolvidas por<br />

todas elas, o jogo imaginário esteve presente, embora com frequência variada.<br />

Utilizando critérios de ordem verbal e comportamental para selecionar os eventos<br />

caracterizados por brincadeiras de faz de conta, a autora percebeu, dentre outros<br />

aspectos, que, embora as crianças iniciassem situações de jogo imaginário, estes<br />

não tinham continuidade. Elas pareciam não saber como conduzir a brincadeira, que<br />

ações desenvolver com dado objeto ou quais as possibilidades de ação diante dos<br />

personagens incorporados.<br />

Constatações como essas reafirmam nossa intenção de prosseguir na<br />

discussão sobre o real e o imaginário na brincadeira de faz de conta em crianças<br />

com síndrome de Down.<br />

Metodologia<br />

Para avançar nas discussões sobre a atividade imaginária da criança com<br />

síndrome de Down, este trabalho apoiou-se em dados de uma pesquisa realizada<br />

numa brinquedoteca de uma instituição de ensino superior, organizada com o<br />

objetivo de propiciar a pesquisadores da área educacional um espaço para a<br />

implementação de projetos de intervenção lúdica com crianças e de pesquisas sobre<br />

167 VICTOR, S.L. Aspectos presentes na brincadeira de faz-de-conta da criança com síndrome<br />

de Down. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.<br />

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a brincadeira infantil. Trata-se de um estudo de caso que teve como sujeitos crianças<br />

de um orfanato e crianças com síndrome de Down que vivem com suas famílias.<br />

A pesquisa de campo foi desenvolvida na brinquedoteca, uma vez por<br />

semana, num período de quatro meses. Foram realizadas atividades lúdicas livres e<br />

também dirigidas por um grupo de pesquisadoras. Para planejar e avaliar as<br />

atividades desenvolvidas, o grupo de pesquisa reunia-se uma vez por semana. O<br />

registro dos dados foi feito por meio de gravações em vídeo e diário de campo.<br />

Com o objetivo de compreender a relação entre o real e o imaginário na<br />

brincadeira da criança com síndrome de Down, vamos enfocar, neste trabalho,<br />

atividades lúdicas nas quais Angélica, criança com síndrome de Down, esteve<br />

envolvida.<br />

Imaginação e medo nas atividades lúdicas da criança com síndrome de Down<br />

Na época da pesquisa, Angélica tinha cinco anos. Vivia com seus pais e uma<br />

irmã mais nova. Apresentava uma linguagem comprometida pela síndrome.<br />

Costumava faltar com frequência às sessões na brinquedoteca, o que dificultou um<br />

trabalho de intervenção pedagógica mais constante em relação a ela.<br />

Angélica não participava de muitas brincadeiras e interagia pouco com as<br />

outras crianças. Passava a maior parte do tempo no canto da leitura, contando e<br />

recontando histórias, apesar de não saber ler. Segundo sua mãe, em casa, ela tinha<br />

muitos livros e revistinhas e gostava de manuseá-los e ler as imagens. Isso pode<br />

justificar o fato de ela preferir o cantinho da leitura. Talvez se sentisse mais segura<br />

perto dos objetos conhecidos por ela, conforme aponta Victor em seu estudo.<br />

Muitas vezes, algumas das pesquisadoras tentavam levá-la para outros<br />

cantos da brinquedoteca, mas ela só permanecia nesses espaços se um adulto<br />

ficasse com ela. Certo dia, à convite de uma pesquisadora, a menina saiu do canto<br />

da leitura, e as duas se dirigiram para o espaço da casinha. A pesquisadora tomou a<br />

iniciativa de começar a brincadeira, fazendo suco de laranja:<br />

Após preparar o suco, a pesquisadora oferece-o a Angélica e esta o recusa,<br />

balançando a cabeça em sentido negativo.<br />

Pesq: Você não quer suco de laranja?<br />

Angélica coloca a mão direita perto da boca e faz movimentos de abrir e fechar a<br />

mão, indicando que quer comer.<br />

Pesq: Você quer comer, né? Então eu vou fazer uma comida para você.<br />

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Elaine: Tia, quer comer!<br />

Pesq: Nós vamos fazer o quê? Que comida? Arroz, feijão...<br />

Angélica: Carninha.<br />

Pesq: Carninha. Então está bom. Eu vou fazer arroz, feijão e carninha.<br />

Angélica entrou no jogo proposto pela pesquisadora e participou<br />

adequadamente da brincadeira. No evento transcrito, envolve-se no jogo imaginário<br />

e chega a direcionar a brincadeira, recusando o suco e indicando que quer comer,<br />

por meio de gestos, além de expressar verbalmente o que gostaria de comer. Gestos<br />

e fala perpassam a interação e permitem a circulação de sentidos na brincadeira.<br />

Embora a criança se expresse verbalmente com poucas palavras, sua fala e gestos<br />

são significados pela pesquisadora, que os toma como referência para manter o<br />

diálogo e a brincadeira.<br />

Mediando a relação da criança com o jogo, a pesquisadora cria condições<br />

para que se ampliem suas possibilidades de atuação no plano imaginário, que,<br />

nesse evento ocorre por meio do uso de gestos e palavras. Na brincadeira de<br />

casinha, os gestos se delineiam não para atuar sobre um objeto, atribuindo a ele<br />

outro significado, mas para expressar um suposto desejo: “comer” e não “beber<br />

suco”; a palavra enunciada também indica um desejo em relação ao que comer:<br />

“carninha”. Conduzida pela pesquisadora no jogo, Angélica transita entre o real e o<br />

imaginário, evidenciando suas possibilidades de atuação no plano simbólico.<br />

Entretanto, Angélica não é apenas conduzida pelo outro. Também toma a<br />

iniciativa de começar o jogo. No decorrer da brincadeira no espaço temático da<br />

casinha, ela assume um papel mais ativo e executa ações de quem cozinha:<br />

Angélica está em pé, próxima ao fogão. Com um pote de brinquedo na mão, ela<br />

sorri.<br />

Angélica: Bolo de chocolate.<br />

Pesq: Vai ter cobertura?<br />

Angélica: Sim.<br />

Pesq: Então eu quero!<br />

Angélica coloca o pote dentro do forno e mexe nos botões do fogão, para aumentar<br />

ou diminuir a temperatura.<br />

Nesse trecho, a criança assume um personagem e desenvolve ações<br />

apropriadas ao papel que escolhido; interage com a pesquisadora e se manifesta<br />

verbalmente a respeito do que está fazendo. E mais que isso, com um sorriso, ela<br />

manifesta certo prazer por estar brincando. Novamente gestos e palavras<br />

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configuram o contexto da brincadeira: fazer bolo. Porém, nesse caso, os gestos<br />

incidem sobre um objeto que representa outro: um pote de brinquedo vira uma tigela<br />

com massa para bolo de chocolate, que é colocada por ela no forno do fogão de<br />

brinquedo. Pode-se dizer que, em certo nível de complexidade, o significado se<br />

sobrepõe aos objetos. A criança encontra-se em um espaço temático composto por<br />

brinquedos que remetem a uma cozinha e, diante do fogãozinho, executa ações<br />

típicas de quem prepara um bolo. Diante disso, cabe indagar se, nesse caso, o<br />

brinquedo “[...] é mais lembrança de alguma coisa que realmente aconteceu do que<br />

imaginação”, 168 conforme aponta Vigotski. Gestos que indicam um nível maior de<br />

distanciamento da situação imediata podem ser observados quando Angélica brinca<br />

com o pote de brinquedos fazendo de conta que é uma tigela com massa para bolo.<br />

Na continuidade do jogo, Angélica revela novas possibilidades de atuação no<br />

plano imaginário, quando interage com um objeto não existente no plano real:<br />

fazendo de conta que há uma torneira afixada na parede, Angélica passa as mãos<br />

nos objetos que estão à sua frente, apresentando movimentos de quem lava louça.<br />

Em uma evidente sobreposição do significado sobre os objetos na brincadeira, ela<br />

cria novas funções para objetos existentes, atua com um objeto inexistente, assume<br />

o papel de uma dona de casa ou de quem cuida dos afazeres domésticos.<br />

Os eventos transcritos indicam, ainda, que a criança também toma a iniciativa<br />

de começar uma brincadeira mais estruturada e envolve outros personagens no jogo<br />

que desencadeia.<br />

Discorrendo sobre a brincadeira de crianças com síndrome de Down, Victor 169<br />

apresenta alguns aspectos que dificultam a sua inserção na brincadeira de faz de<br />

conta: o fato de elas estarem muito mais próximas da realidade objetiva do que da<br />

realidade subjetiva, da fantasia e da imaginação; as dificuldades em relação à<br />

linguagem; o funcionamento cognitivo comprometido e as condições socioculturais a<br />

que são submetidas. Apesar de todas essas dificuldades, certamente também<br />

enfrentadas por Angélica, seu envolvimento nas brincadeiras revela que ela é capaz<br />

de participar de jogos propostos por outros, além de iniciar, ela própria, um jogo<br />

imaginário.<br />

168 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984, p. 117.<br />

169 VICTOR, S.L. Aspectos presentes na brincadeira de faz-de-conta da criança com síndrome<br />

de Down. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.<br />

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Constatamos que Angélica participou, ainda, de outras situações de jogo<br />

imaginário, apesar de, na maioria das vezes, preferir ficar no canto da leitura.<br />

Entretanto, quando o foco eram atividades lúdicas que lhe inspiravam medo, ela se<br />

retraía e se recusava a participar, como no evento transcrito a seguir:<br />

Fantasiado com uma máscara de monstro, William circula pela brinquedoteca<br />

brincando de assustar outras crianças. A certa altura, ele dirige-se para o canto da leitura<br />

onde se encontram Ana Cláudia, fantasiada de fantasma, Angélica e uma pesquisadora.<br />

William tenta assustá-las. A pesquisadora toca em Angélica e fala:<br />

– Gente, um monte! – referindo-se à Ana Cláudia e William que estão fantasiados.<br />

– Não, tô com medo! – fala Angélica, enquanto se desvencilha da mão da<br />

pesquisadora.<br />

– Nossa! Ele foi embora, ainda bem que ele foi embora, não é, Angélica? Gente,<br />

outro fantasma aqui!<br />

Angélica lê gibis. Ana Cláudia, fantasiada de fantasma, abraça a pesquisadora, que<br />

se encolhe, põe as mãos na cabeça e pede ajuda a Angélica dizendo:<br />

– Ai, gente, por favor, me ajuda, Angélica! Ai, meu Deus, o que fazer?<br />

Angélica, que estava lendo história, vira-se para a pesquisadora e observa-a. Aponta<br />

para o fantasma e diz:<br />

– Tô com medo! – Enquanto fala, ela se encolhe, retraindo os ombros, de forma<br />

semelhante à pesquisadora.<br />

– Tá com medo? O que a gente faz, então? – pergunta a pesquisadora.<br />

Angélica volta a ler revistinha. Ana Cláudia volta a abraçar a pesquisadora, que diz:<br />

– Ai, meu Deus, ela tá me pegando. O que é que faz, Angélica? Me ajuda.<br />

A pesquisadora toca o braço de Angélica, pedindo ajuda, mas ela continua a leitura e<br />

tira a mão dela de seu braço, falando rigidamente: “Medo!”, sem olhar para a pesquisadora.<br />

– Opa, ai me Deus, vou para lá com esse fantasma, então – fala a pesquisadora,<br />

levantando-se e se afastando, juntamente com Ana Cláudia.<br />

Nesse evento, como em outras brincadeiras de assustar, Angélica recusou-se<br />

a participar, apesar das várias tentativas da pesquisadora de inseri-la na brincadeira<br />

e possibilitar sua interação com outra criança. No jogo desenvolvido com as outras<br />

crianças, a pesquisadora assumiu o papel de quem se assusta e/ou manifesta medo<br />

e pedia ajuda a Angélica, como uma forma de tentar incluí-la na brincadeira. Ela<br />

esperava que a menina enfrentasse o seu medo e que participasse do jogo<br />

imaginário, mas, diante da recusa incisiva de Angélica, afastou-se juntamente com a<br />

criança fantasiada.<br />

Durante a brincadeira, a menina evitava olhar para as crianças fantasiadas e,<br />

por três vezes, pronunciou a palavra “medo” para justificar sua não participação. É<br />

interessante ressaltar a maneira como Angélica identifica e nomeia o estado<br />

emocional de que é acometida diante das crianças fantasiadas.<br />

Nas brincadeiras de assustar, outras crianças apresentavam manifestações<br />

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de medo, entretanto, ao que tudo indica, sempre no plano do imaginário e com um<br />

sorriso evidenciando, assim, que o prazer em estar brincando com essa situação era<br />

maior que um possível medo no plano real. Enquanto brincavam, as crianças<br />

simulavam estar com medo.<br />

Vigotski destaca que, no jogo imaginário, a “[...] criança vê um objeto, mas<br />

age de maneira diferente em relação àquilo que vê”, 170 caracterizando um<br />

distanciamento do plano perceptual concreto. Alguns eventos aqui apresentados<br />

apontam que Angélica tinha certo trânsito pelo universo imaginário, mas, ao deparar-<br />

se com crianças fantasiadas, ela não aderiu à brincadeira. No evento relatado, de<br />

forma semelhante a algumas crianças de dois anos e meio, a menina manifestou<br />

medo diante de uma criança fantasiada com uma máscara de monstro e outra com<br />

uma fantasia de fantasma, o que impediu sua participação no jogo imaginário<br />

desencadeado entre essas crianças e a pesquisadora. Durante a brincadeira, ela<br />

mantinha o olhar fixo nas revistinhas, evitando se voltar para os colegas.<br />

Fantasias que cobriam o rosto das crianças causaram medo a Angélica, na<br />

medida em que a elas foi atribuído um significado (outro) que não era nem o de uma<br />

máscara de cartolina, ou um pedaço de pano branco com dois furos no centro para<br />

que as crianças pudessem enxergar enquanto se movimentavam, nem o de<br />

fantasias para brincar de assustar o outro. Os sentidos atribuídos por ela às<br />

fantasias produziram um estado de intensa tensão emocional que impediu a atuação<br />

no plano imaginário.<br />

Quando máscaras e fantasias pouco comuns eram introduzidas nas sessões<br />

de atividades lúdicas, as crianças menores tinham como reação a rigidez da<br />

musculatura, o olhar assustado e a recusa em mover-se em direção àqueles<br />

fantasiados. No contato com situações que provocavam medo na brincadeira, tanto<br />

essas crianças como Angélica apresentavam uma reação emocional que<br />

neutralizava suas possibilidades de entrar ou continuar no jogo, evidenciando uma<br />

característica da emoção, que é o esmaecimento da atividade representativa.<br />

Para Wallon, a emoção só pode se configurar na medida em que interrompe<br />

ou dificulta o fluxo da atividade representativa, deixando o indivíduo submetido ao<br />

tumulto decorrente do efeito de reações orgânicas de ordens diversas: “Enquanto<br />

mantém o organismo ocupado com reações opostas à atividade de relação, o abalo<br />

170 VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. p. 117.<br />

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visceral e muscular que propaga a emoção e a impõe se acompanha de impressões<br />

em conflito com a percepção das coisas exteriores [...]”. 171 Nos processos interativos<br />

estabelecidos com as crianças pequenas e com Angélica durante as atividades<br />

lúdicas, havia dificuldades em estabelecer aproximações entre elas e as fantasias<br />

que lhes causavam medo, mesmo com orientações e informações sobre as fantasias<br />

e o plano imaginário – diante desses objetos, a emoção se sobrepunha às<br />

possibilidades de ampliação do conhecimento e das vivências com eles.<br />

Nas situações de medo, de modo geral, após a intervenção das<br />

pesquisadoras, lentamente as crianças menores se aproximavam das pessoas<br />

fantasiadas ou com máscaras. Quando os objetos do medo se tornavam conhecidos<br />

e as crianças percebiam que eles não lhes causavam ameaças, algumas delas<br />

passavam a utilizá-los nas brincadeiras.<br />

Em seus estudos sobre a emoção, Wallon chama a atenção para o papel da<br />

atividade representativa como meio de enfrentar os tumultos da emoção e reduzir os<br />

seus efeitos: “Não nos livramos da emoção apenas ao reduzi-la às suas corretas<br />

proporções, mas sim, e principalmente, pelo esforço para representá-la”, 172 diz o<br />

autor, que ressalta, ainda, o fato de as crianças serem acompanhadas de intensa<br />

emotividade diante da “fragilidade de sua vida intelectual”. No evento relatado,<br />

Angélica conseguiu nomear seu estado emocional diante das fantasias, mas,<br />

naquele momento, isso não foi suficiente para o enfrentamento do medo.<br />

Em outra cena, Angélica não só demonstra o medo pela fantasia de bruxa,<br />

como também pede a proteção das pesquisadoras, enunciando algumas vezes que<br />

está com medo. Nesse momento, a mediação do adulto faz com que, aos poucos, a<br />

menina se aproxime daquilo que lhe causa medo.<br />

Diante da Pesquisadora 1 fantasiada de bruxa, Angélica puxa a Pesquisadora 2 que<br />

está próxima e diz: “Tô com medo”. A Pesquisadora 1 fala para a menina não ficar com<br />

medo e passa a fantasia de bruxa para Elisa [...]. A Pesquisadora 2 entra em cena e tenta<br />

convencer a menina de que não há motivo para ficar com medo da Pesquisadora 1, dizendo<br />

que agora a bruxa é Elisa. Angélica continua dizendo à Pesquisadora 2: “Tô com medo”.<br />

Enquanto a Pesquisadora 1 auxilia Elisa a vestir a fantasia, de mãos dadas com Angélica, a<br />

Pesquisadora 2 pede para Elisa imitar uma risada de bruxa. Diante da risada, Angélica sorri<br />

e levanta os braços para o alto. As pesquisadoras conversam com as meninas sobre o que<br />

uma bruxa faz. Aos poucos, Angélica fica mais descontraída e sorri. Apostando na<br />

superação do medo da fantasia por parte de Angélica, a Pesquisadora 2 diz que a próxima a<br />

171 WALLON. H. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. p. 86.<br />

172 WALLON. H. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. p. 86.<br />

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vestir a capa da bruxa será ela, mas Angélica aponta para Elisa e fala novamente: “Tô com<br />

medo”. A Pesquisadora 1 pede ajuda a Angélica para procurar o chapéu de bruxa para Elisa<br />

[...]. Elas acham o chapéu, Angélica pega-o, sem aparentemente expressar medo, e o<br />

entrega a Elisa.<br />

Percebe-se que, aos poucos e com o auxílio das pesquisadoras, Angélica<br />

arrisca-se a uma aproximação do objeto que lhe causa medo. Apesar de não querer<br />

vestir a fantasia, ela fica mais descontraída, acompanha a conversa das<br />

pesquisadoras sobre o que faz uma bruxa e sorri. Aos poucos ela vai perdendo o<br />

medo das fantasias e até consegue pegar o chapéu da bruxa e entregá-lo a Elisa,<br />

que estava fantasiada. Isso aponta a importância da mediação do adulto na<br />

brincadeira da criança, em suas possibilidades de transitar entre o real e o<br />

imaginário. Para auxiliar a criança com síndrome de Down na superação das<br />

dificuldades que se apresentam como obstáculos à brincadeira de faz de conta,<br />

Victor 173 aponta para o papel das relações sociais, da participação do outro no<br />

sentido de mediar a relação dessa criança com a brincadeira. No caso de Angélica,<br />

esse outro teria de assumir mais uma atribuição: auxiliá-la a lidar com o próprio<br />

medo na vivência de atividades lúdicas.<br />

Considerações finais<br />

O interesse em aprofundar a discussão sobre a relação entre o real e o<br />

imaginário na brincadeira da criança com síndrome de Down levou-nos a<br />

acompanhar o envolvimento de uma menina de cinco anos em atividades lúdicas<br />

numa brinquedoteca. A convivência com crianças com desenvolvimento típico e as<br />

possibilidades de brincadeira conjunta propiciaram um ambiente em que a criança<br />

com síndrome de Down foi desafiada a ampliar sua atuação no plano imaginário e<br />

enfrentar seus medos diante de brincadeiras de assustar o outro e de fantasias.<br />

Foi possível constatar que imaginação e realidade se (con)fundiam em<br />

algumas atividades lúdicas nas quais Angélica se envolvia, impedindo sua<br />

participação nas brincadeiras; o medo real impossibilitava a inserção no plano<br />

imaginário e sua vivência nesse universo. Assim como a Chapeuzinho Amarelo,<br />

Angélica terá que continuar o enfrentamento de seu medo, no plano do real, para<br />

173 VICTOR, S.L. Aspectos presentes na brincadeira de faz-de-conta da criança com síndrome<br />

de Down. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2000.<br />

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que, atuando no plano imaginário, possa transformar os personagens que a<br />

amedrontam em companheiros. A brincadeira de faz de conta e a literatura podem<br />

contribuir muito para isso. A brincadeira pode desvelar para Angélica um mundo<br />

novo, o mundo do imaginário no qual ela pode explorar seus temores de uma forma<br />

distanciada e segura. A literatura, como ressalta Rubem Alves, pode possibilitar<br />

espantar os “maus espíritos”, na medida em que eles são chamados pelo nome real:<br />

o “[...] objetivo da estória é dizer o nome, dar às crianças símbolos que lhes<br />

permitam falar sobre seus medos”. 174 Em todo esse percurso, a mediação dos<br />

adultos e de outras crianças é fundamental.<br />

Referências<br />

ALVES, R. O medo da sementinha. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.<br />

ARCE, A.; DUARTE, N. (Org.). Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as<br />

contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin. São Paulo: Xamã, 2006.<br />

BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 1995.<br />

BUARQUE, C. Chapeuzinho Amarelo. São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 1992.<br />

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crianças com síndrome de Down, comportamentos autísticos e privação de estímulos. Psicologia:<br />

Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 24, n. 4, p. 730-738, 2011.<br />

FLABIANO, F. C. A constituição da representação pela criança com síndrome de Down. 2010.<br />

177 f. Tese (Doutorado em Ciências da Reabilitação) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-<br />

Graduação em Ciências da Reabilitação, São Paulo-SP, 2010.<br />

INTRA, Z. F.; OLIVEIRA, I. M. Brincadeira de faz de conta, medo e mediação pedagógica. In:<br />

CAPELLINI, V. L. M. F.; MANZONI, R. M. Políticas públicas, práticas pedagógicas e ensinoaprendizagem:<br />

diferentes olhares sobre o processo educacional. São Paulo: Cultura Acadêmica,<br />

2008.<br />

MANCINI, M. C. et al. Comparação do desempenho funcional de crianças portadoras de síndrome de<br />

Down e crianças com desenvolvimento normal aos 2 e 5 anos de idade. Arquivos de Neuropsiquiatria,<br />

São Paulo, v. 61, n. 2-B, p. 409-415, 2003.<br />

MOREIRA, L. M. A.; EL-HANI, C. N.; GUSMÃO, F. A. F. A síndrome de Down e sua patogênese:<br />

considerações sobre o determinismo genético. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 22,<br />

n. 2, p. 96-99, 2002.<br />

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Down. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 12, n. 1, p. 123-138, 2006.<br />

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Down. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.<br />

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.<br />

VIGOTSKI, L. S. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

WALLON. H. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.<br />

174 ALVES, R. O medo da sementinha. São Paulo Edições Paulinas, 1987, p. 5.<br />

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