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31 O HOMOEROTISMO EM CAIO FERNANDO ABREU ... - FACEVV

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O <strong>HOMOEROTISMO</strong> <strong>EM</strong> <strong>CAIO</strong> <strong>FERNANDO</strong> <strong>ABREU</strong>: UM CENÁRIO DE PRECONCEITO E<br />

VIOLÊNCIA <strong>EM</strong> TERÇA-FEIRA GORDA<br />

<strong>31</strong><br />

Cecília Luíza de Melo Rezende<br />

Cláudia Campolina Tartáglia<br />

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora<br />

Resumo: Vivemos numa sociedade em que a questão da homossexualidade é geradora de<br />

repressão, discriminação e preconceito quanto aos valores sociais, históricos e éticos ditados por<br />

uma classe dominante heterossexual em detrimento ás minorias homossexuais. Este artigo aborda o<br />

conto Terça-feira gorda extraído do livro Morangos mofados (2005). Tem como objeto de estudo<br />

refletir, analisar e evidenciar no conto a marginalização, a perseguição sexual e moral sofrida por<br />

homossexuais e como isso reflete na nossa realidade. Por outro lado propôr a legitimidade de<br />

diferentes identidades sexuais, de forma que a orientação sexual escolhida tenha uma esfera de<br />

aceitabilidade para todos. Esta obra é carregada de subjetividade, em que o envolvimento afetivo e<br />

sexual entre duas pessoas é confrontado com a repressão e o preconceito sexual.<br />

Palavras-chave: Repressão; Preconceito; Homossexuais; Violência; Moral.<br />

Introdução<br />

O encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas, também<br />

pode ser uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio<br />

maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado [...] A<br />

experiência gay nada tem de redutora, classificadora, se assim o<br />

quisermos, é um mistério insondável, um ponto de partida, uma pergunta<br />

mais do que uma resposta.<br />

Denílson Lopes<br />

Apesar do novo milênio estar iniciando assiste-se a uma crise humana global. O homem busca<br />

redefinições quanto aos valores éticos, sociais e pessoais. E neste movimento, a pessoa torna-se<br />

impotente face a tantas informações.<br />

Sentimentos de solidão surgem e o ser humano mergulha em uma grande dor ao perceber sua<br />

existência. Passa a viajar por este universo humano buscando a felicidade, o prazer em sua essência.<br />

Ficcionista da geração dos anos 70 Caio Fernando Abreu expressa, sobretudo em seus livros, as crises<br />

existenciais de jovens que viveram, ao mesmo tempo, a ditadura militar, a queda dos ideais<br />

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esquerdistas e a liberalização dos costumes. Sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos<br />

de qualquer ordem, evidenciando uma marca própria, justamente com uma linguagem fora dos padrões<br />

tradicionais vigentes.<br />

O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia da repressão acontecer no carnaval, justamente<br />

no período em que são toleradas determinadas práticas, mas não a homossexualidade.<br />

Vê-se que a visão preconceituosa da sociedade heterossexual continua em qualquer situação, seja ela<br />

uma festa desregrada como o carnaval ou em encontros sociais formais e faz-se presente até os dias<br />

atuais.<br />

Morangos mofados<br />

A obra Morangos mofados de autoria de Caio Fernando de Abreu, foi publicada em 1982, produzida<br />

num contexto autoritário ,em que a censura, a repressão e a perseguição política eram constantes.<br />

Mesmo assim o autor apresenta através de seus contos aspectos sociais, históricos e sexuais<br />

vivenciados pelos personagens.<br />

É uma literatura que suscita questões sociais vivenciadas pelos indivíduos acerca de seus valores,<br />

identidades, condutas e ideologias de acordo com os valores tradicionais das sociedades<br />

conservadoras e autoritárias e convida os leitores a uma postura crítico-reflexiva em relação ao<br />

posicionamento preestabelecido pela classe dominante.<br />

O livro é composto por dezoito contos, dividido em três partes, cuja organização é dialética: a primeira<br />

(tese) é intitulada “O mofo”, a segunda (antítese) chama-se “Os morangos” e a terceira (síntese) é<br />

nomeada pelo conto que dá título ao livro, Morangos mofados. Nessa coletânea de contos, em alguns<br />

a temática é o homoerotismo, outros em que centraliza a repressão política ou o processo de escrita.<br />

Seus contos são permeados de poesia, lirismo e sonhos. Entretanto, a dor se configura como elemento<br />

predominante na narrativa.<br />

O conto Terça-feira gorda situa-se na primeira parte do livro intitulada “O mofo”, que sugere através da<br />

temática dos textos uma metáfora para a “putrefação” e o mascaramento de parte da sociedade. Por<br />

um lado, muitos personagens usam máscaras para dissimular seu caráter preconceituoso, agressivo e<br />

opressor, enquanto outros, que são vítimas das ações inescrupulosas e violentas daqueles, não têm<br />

coragem de vestir máscaras. Desta forma, este conto está denunciando um lado repressor da<br />

sociedade, em que o “mofo” é o elemento essencial que determina o caráter discriminativo e violento<br />

do contexto social.<br />

É importante salientar que existe uma conexão entre o contexto social em que o conto foi produzido e a<br />

postura dos personagens. Os agressores no conto adotam uma posição ideológica favorável às ideias<br />

autoritárias e preconceituosas difundidas no período de publicação do livro Morangos mofados, em<br />

1982. Este período embora de transição da ditadura para um regime democrático deixa marcas que<br />

são reproduzidas nas relações sociais entre os indivíduos.<br />

Àqueles que tem a coragem de romper com os padrões tradicionais são severamente perseguidos e<br />

punidos como ficou demonstrado no conto Terça-feira gorda pelos personagens homossexuais. Já os<br />

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detentores das regras morais e conservadoras, agem de acordo com o sistema de forma opressora,<br />

repressora e violentadora de todos os que “desrespeitam” os valores morais e éticos da sociedade.<br />

Morangos mofados apresenta uma linguagem considerada vulgar, mas que é colocada no mesmo<br />

plano da culta, em que o autor constrói seus contos explorando a posição do narrador ou a ausência<br />

dele, numa narrativa que é fragmentada e lacunar, densa e complexa.<br />

Terça-feira gorda: contextualização da obra literária<br />

Este conto aborda questões relacionadas com a festa do carnaval, da discriminação sexual, da<br />

violência verbal e física, do uso de drogas, do espaço público, das máscaras e fantasias, de forma que<br />

os personagens são envolvidos num cenário carnavalesco, próximo a praia. Nesta obra, o lirismo está<br />

presente na prosa e o drama caracteriza o tom dessa história.<br />

O conto é narrado em primeira pessoa, em que se apresenta uma história de amor e desejo entre dois<br />

homossexuais através do qual um se sente atraído pelo outro desde o primeiro momento em que se<br />

olham. Ao relatar o acontecimento que ocorria entre eles, o narrador-personagem acentua de<br />

subjetividade a história, fazendo com que o envolvimento afetivo e sexual entre eles torna-se cada vez<br />

mais forte, como é relatado no início da narração um “reconhecimento” entre os dois amantes. Esse<br />

reconhecimento se dá pela confirmação dos movimentos dos corpos seja através da (dança, sorriso,<br />

olhar) e não pelas palavras.<br />

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos<br />

quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei,<br />

quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola,<br />

uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro<br />

dos copos de plástico (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 56).<br />

Nota-se que o processo de identificação é vivenciado entre eles tanto no plano do prazer quanto no<br />

sexual de forma que eles adotaram uma postura pública livre de preconceitos que envolveram pessoas<br />

do mesmo sexo. Essa liberdade de opção sexual é descrita na passagem do conto:<br />

Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta,<br />

passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E<br />

não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de um homem gostando<br />

de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta,<br />

passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu<br />

era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que<br />

por acaso era de homem também (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 57).<br />

Observa-se pela descrição erótica descrita dos personagens, demonstra que essa relação homoerótica<br />

de desejo, de atração sexual entre eles perpassa toda a narrativa. Note-se que o outro é apresentado<br />

com o estereótipo de homem, com características masculinas: forte, com pêlos, malhado, carnes rijas e<br />

duras, pele morena ao sol, que por acaso gosta de um outro corpo, que por acaso é de outro homem.<br />

Desta forma o corpo masculino desperta desejo e este será tratado de acordo com Lopes abaixo:<br />

O desejo é uma forma de pertencimento, de encontro, mesmo quando não de inclusão. O<br />

encontro entre dois homens se dá sutil e inesperadamente. As palavras não são<br />

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pronunciadas não pela recusa ao dizer, mas para se aprender com o corpo. Os olhares são<br />

físicos, não de voyeur. Olhares não se desviam, falam (LOPES apud MARQUES FILHO;<br />

CAMARGO, 2007, p. 80).<br />

Por um lado é esse olhar físico que fala tudo o que as palavras ocultam dizer neste momento é que<br />

causa a sedução, o desejo, a vontade de ficarem juntos a um estado homoafetivo e homoerótico entre<br />

os dois personagens. Por outro lado, o olhar homofóbico dos “outros” que não respeitam a identidade e<br />

liberdade dos homossexuais fica atrelada a uma manifestação de vozes que julgam e condenam-nos<br />

como mostra o fragmento a seguir:<br />

passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As<br />

nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol.<br />

Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam (<strong>ABREU</strong>,<br />

2005, p. 57).<br />

Fica evidente que mesmo numa festa de carnaval em que é permitido culturalmente agir de uma<br />

maneira livre, nesses momentos é que se percebe como a sociedade age hipocritamente em que<br />

critica as pessoas por não terem sua liberdade sexual tolhida. Estes personagens não usavam<br />

máscaras para se esconder e disfarçar as suas identidades sexuais, ao contrário poderiam utilizar da<br />

festa de carnaval para cobrir o rosto e o perigo de suas escolhas. A máscara vem do italiano,<br />

maschera, trata-se de um objeto utilizado em bailes de máscaras e serve para enfeitar o rosto e<br />

propiciar uma dissimulação. A máscara simboliza o sentido de assumir-se socialmente (posições,<br />

emoções) para quem não as utiliza. O fragmento a seguir ilustra a como o carnaval apesar de ser<br />

considerado um período de liberdade total, perpassa por momentos de repressão e violência diante da<br />

falta de máscara dos amantes:<br />

veados, a gente, ainda ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um<br />

tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha as Plêiades, só o<br />

que eu sabia ver, que em raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado,<br />

ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara.<br />

Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara.<br />

Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, e eu nem sei se era<br />

alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso<br />

não usar máscara, ainda mais no Carnaval (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 58).<br />

Esses personagens não escondiam atrás das máscaras a sua sexualidade, o seu desejo, o medo do<br />

olhar reprovador “dos outros” que denigre a escolha alheia. Eles se assumiram, e procuraram viver com<br />

intensidade e liberdade aquele momento de satisfação que estavam sentindo um pelo outro, num<br />

período de regime militar onde as marcas são a repressão e opressão.<br />

Nesse conto os personagens são construídos a partir de uma não identidade, isto é, eles se conhecem,<br />

se aceitam sem saberem pelo nome, idade, profissão e moradia um do outro, pois o que importa para<br />

eles é desfrutar o prazer, o corpo, o momento amoroso que estão compartilhando juntos. Observa-se<br />

através do trecho no conto essa não-identificação de ambas os personagens: “...não vou perguntar teu<br />

nome, nem tua idade,teu telefone, teu signo ou endereço, ele disse... [...] O que você mentir eu<br />

acredito, eu disse, que nem marcha antiga de Carnaval” (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 59).<br />

À medida que eles se entregam plenamente na praia, a narrativa adquire uma linguagem homoerótica<br />

referente à união e fusão dos dois corpos em um, de forma que nessa entrega completa através do ato<br />

pleno de amor como demonstrado no fragmento abaixo:<br />

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a gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos<br />

completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão<br />

simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos<br />

nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela<br />

fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz<br />

amor. E brilhamos (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 59).<br />

Nessa passagem, observa-se que o contato físico e erótico entre os personagens acontece em<br />

ambiente público. Dessa forma, eles assumem diante da sociedade um comportamento que causa<br />

impacto e transgressão aos padrões morais vigentes em relação ao espaço privado por estarem nus.<br />

Eis que surge novamente um grupo de rapazes mascarados diante dos dois e começam a agredi-los<br />

com palavras de baixo calão e pontapés inesperados como é demonstrado no trecho abaixo:<br />

Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão<br />

agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no<br />

chão. Estavam todos em volta, Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os<br />

olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca<br />

molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis<br />

tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu<br />

correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos (<strong>ABREU</strong>, 2005, p.<br />

59).<br />

Nesse momento observa-se que as cenas de perseguição e repressão sexual contadas pelo narradorprotagonista<br />

apresentam fatos de violência física, psicológica, causando no leitor comoção ao ver o<br />

companheiro ser cruelmente espancado até a morte.<br />

Segundo Marilene Chauí (1991, p. 9) a repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de<br />

interdições, normas, valores, regras estabelecidas históricas e culturalmente para controlar o exercício<br />

da sexualidade. Nesse sentido entendemos que o grupo agressor se apodera desse conjunto de<br />

fatores característicos da repressão sexual para comandar a sexualidade dos personagens.<br />

A violência psicológica seria traduzida na forma do “ai, ai, gritavam, olha as loucas” fazendo referência<br />

aos dois enquanto a agressão física está relacionada com “o pontapé nas costas fez com que me<br />

levantasse. Ele ficou no chão [...] o brilho de um dente caído na areia” (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 59).<br />

Segundo Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) o grupo social que causou a agressão física seguida de<br />

morte a um homem do par homoerótico, corresponde ao interesse homofóbico de impedir o<br />

homoerotismo e impôr fidelidade ao heterossexismo 1 . Ambos os autores referem ao grupo social com<br />

controle e poder preponderante sobre o “outro” no caso o par homossexual, devido às questões<br />

culturais, históricas e morais envolvidas na nossa sociedade.<br />

A homofobia cumpre com três propósitos narrativos no discurso social:<br />

1) serve para legitimar as ideologias sociais que se circunscrevem em torno do heterossexismo<br />

compulsório 2 ;<br />

1 Heterossexismo: segundo a perspectiva de Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) ele considera o heterossexismo a<br />

legitimidade somente da relação sexual binária entre homem e mulher, característica do patriarcado e prestigiada pela<br />

sociedade.<br />

2 Heterossexismo compulsório: é o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade<br />

com intuito de reforçar ou dar legitimidade às premissas heterossexuais (FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 2).<br />

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2) exclui da sexualidade legítima todos aqueles indivíduos sociais que não cumprem com as normas do<br />

heterossexismo compulsório;<br />

3) funciona para narrar sua própria inexistência, ao negar a dinâmica da discriminação sexual<br />

(FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 6-7).<br />

No final termina com uma metáfora poética fazendo alusão a morte de um dos personagens: “a queda<br />

lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”. A<br />

metáfora suaviza a discriminação, os rótulos, e a intolerância entre o grupo de pessoas homofóbicas<br />

que violentaram cruelmente um dos personagens homossexuais.<br />

Terça-feira gorda de carnaval: cenário de preconceito e violência<br />

Neste conto surge espaço para as vozes marginalizadas, pois a questão social é enfocada e<br />

centralizada pelo autor. Diante disso faz-se necessário a utilização de um conceito de Hutcheon (1991,<br />

p.170), que segundo ela, “as vozes ex-cêntricas representam as vozes minoritárias quanto à classe<br />

social, raça, etnia, identidade sexual diante de um poder hegemônico branco, masculino, heterossexual<br />

e burguês”. Essas vozes, no conto Terça-feira gorda de carnaval, apresentam personagens centrais<br />

discriminados social e sexualmente, vozes que experienciam situações de desrespeito, intolerância e<br />

violência física até culminar na morte.<br />

A festa de carnaval, considerada a maior festa popular brasileira e a mais grandiosa manifestação<br />

folclórica que envolve um grande público, é um período de exposição do corpo, de valorização da<br />

dança, da fantasia e extrapolação da sexualidade, marcada pela orgia e “liberdade”. A tônica do<br />

carnaval é o “desregramento”, a postura de liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, sendo<br />

que as vozes maldosas e irônicas dos personagens no conto adotam uma posição de condenação e<br />

ruptura frente aos homossexuais, levando a narrativa à constatação de um paradoxo social. Nesse<br />

sentido, a proposição de Franco Jr. (apud PORTO; PORTO, 2004, p. 71) e bastante elucidativa: “O<br />

carnaval, em Terça-feira gorda, alegoriza a própria tessitura de violência sombria mesclada a<br />

explosões circunstanciais de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser<br />

alegre irresponsável e brutal.”<br />

A terça-feira é o último dia de carnaval, dia de despedida da orgia, que antecede a quaresma e por<br />

outro lado é chamada de Terça-feira gorda dada ao título do conto porque era o último dia em que os<br />

cristãos comiam carne antes do jejum da quaresma, na qual também havia a abstinência de sexo e até<br />

mesmo das diversões, como circo, teatro ou festas.<br />

Nota-se no conto que o preconceito tem a ver com as circunstâncias em que a discriminação ocorre:<br />

durante uma festa carnavalesca. Frente a esta festividade pondera-se que:<br />

O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No<br />

carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se<br />

contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vivese<br />

conforme as suas leis estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é<br />

uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um<br />

“mundo invertido” (“monde à l’envers) (BAKHTIN, 1981, p. 105).<br />

O autor aponta que o carnaval se caracterizaria por proceder a uma inversão de valores do cotidiano,<br />

ou seja, deveria corresponder à vida desviada de seu curso normal.<br />

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De acordo com essa inversão de valores, os sujeitos sociais deveriam aceitar à manifestação de<br />

práticas homoeróticas, no entanto, não é isso que ocorre: a sociedade identifica os homossexuais,<br />

estabelece um limite entre eles e os demais e os expulsa por estarem profanando as normas dos<br />

heterossexuais, pois o que prepondera são as regras estabelecidas pelas convenções sociais.<br />

No conto, aparecem várias cenas de agressão verbal e física frente ao desejo dos personagens de<br />

exercerem suas escolhas e poderem vivenciar sua opção afetivo-sexual naquele momento. Eles são<br />

surpreendidos violentamente durante a narrativa tanto psicologicamente, socialmente, moralmente e<br />

fisicamente tendo como saldo negativo as experiências vividas pelos homossexuais, tais como: os<br />

encontros frustrados, a liberdade de escolha reprimida e os projetos de sonhos inacabados.<br />

Em Terça-feira gorda de carnaval, Abreu dá vozes àqueles que estão à margem dos processos<br />

sociais, abrindo espaço para a reflexão e discussão sobre o discurso da minoria. Com isso o autor<br />

coloca ao leitor através da representação desse conto, um leque de questionamentos referentes a<br />

valores, condutas e regras sociais, levando-o a ter um posicionamento crítico e induzindo-o a construir<br />

um ponto de vista em torno da temática da homossexualidade. O desfecho do conto culmina em<br />

violência física, sendo que o autor relata esse fato social de modo metafórico.<br />

Fechando os olhos então como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três<br />

imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção.<br />

Depois a Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a<br />

queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços<br />

sangrentos (<strong>ABREU</strong>, 2005, p. 59).<br />

A produção de conhecimentos sobre a homossexualidade<br />

O homossexual do século XIX tornou-se uma personagem: um passado, uma história, uma<br />

infância, um caráter, uma forma de vida; também é uma morfologia, com uma anatomia<br />

indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas,<br />

escapa à sua sexualidade [...]... agora o homossexual é uma espécie (FOUCAULT, 2009, p.<br />

50).<br />

O ser humano na sua existência é dividido em classes essenciais quanto à sexualidade: dualidade<br />

heterossexualidade/homossexualidade. Essas classes seriam meras identidades socioculturais que<br />

condicionam as maneiras das pessoas de viver, sentir, pensar, amar, sofrer, etc. e não uma lei universal<br />

da diferença de sexos. Consequentemente, o homossexual não é um sujeito que existe ou existiu<br />

independente do hábito cultural e descritivo que o criou. Segundo Costa (apud NUNAN, 2003, p. 25-26)<br />

“propõe que os conceitos homossexualidade e homossexualismo sejam substituídos pelo termo<br />

homoerotismo referindo-se à possibilidade que certos sujeitos têm de sentir diversos tipos de atração<br />

erótica ou de relacionar fisicamente com outros do mesmo sexo biológico”. O vocábulo<br />

homossexualismo surgiu no século XIX, e não será utilizado porque o sufixo “ismo” remete à categoria<br />

de doença. Já os termos homossexualidade, homossexual e gay, estes dois últimos considerados<br />

sinônimos, são palavras carregadas de preconceito e remetem aos séculos XVIII e XIX. No século<br />

XVIII, por exemplo, a medicina classificava os homossexuais como invertidos sexuais. Com isso, a<br />

homossexualidade passou a ser vista, dentro do contexto religioso e moral como inserido por ideias de<br />

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pecado, perversão e anomalia, enfim, de forma a transgredir a heteronormatividade 3 (FOSTER apud<br />

CALEGARI, 2010, p. 2).<br />

O preconceito contra homossexuais é chamado de homofobia, apesar de o termo heterossexismo<br />

também aparecer na literatura especializada. A homofobia é um termo cunhado por George Weinberg<br />

apud (NUNAN, 2003, p. 78) definido como uma aversão ou medo irracional de homossexuais.<br />

Os homossexuais são frequentemente taxados de anormais, imorais, pecadores, marginais, pedófilos,<br />

promíscuos, doentes, efeminados, complicados e pouco confiáveis (SIMON; WOLFE apud NUNAN,<br />

2003, p. 79).<br />

Embora seja correto afirmar que a epidemia da AIDS acelerou a expansão dos estudos sobre a<br />

homossexualidade no Brasil durante os anos de 1990, ela é considerada uma “doença gay”, e é<br />

comum ouvir dizer que a epidemia “ veio para punir esses pervertidos”.<br />

O discurso homofóbico apresenta o homossexual como uma espécie de criatura<br />

contraditória e impossível, pois é, ao mesmo tempo, um ser inadaptado socialmente, uma<br />

espécie de “monstro” raro antinatural, um ser que representa o fracasso moral e, sobretudo,<br />

um pervertido sexualmente (MARQUES FILHO; CAMARGO, 2007, s.p.).<br />

Esse discurso homofóbico perpassa uma concepção degenerativa da imagem e da identidade<br />

homossexual que se reflete na discriminação, na intolerância e na violência.<br />

Considerações finais<br />

Segundo a análise do conto Terça-feira gorda, Abreu em seus escritos aborda no espaço narrativo a<br />

questão da sexualidade e do relacionamento pessoal com o contexto cultural, político, religioso e social<br />

vigente.Sua obra contribui para abrir o espaço da discussão homoerótica tanto no âmbito literário<br />

quanto no público/social.<br />

Caio Fernando Abreu ressalta neste conto que os personagens homossexuais são grupos minoritários<br />

marginalizados da sociedade sendo acusados muitas vezes de transgressores das regras sociais e<br />

morais impostas pela elite conservadora.<br />

O livro Morangos mofados foi escrito nos anos 70, mas os acontecimentos que são retratados na<br />

narrativa persistem na atualidade.<br />

Os movimentos militantes dos direitos civis das minorias ganharam força nos últimos anos sendo que<br />

os homossexuais foram atendidos na reivindicação de alguns destes direitos. Entretanto a luta contra<br />

uma sociedade homofóbica que veicula um discurso ideologicamente elaborado sobre a imagem e a<br />

identidade do homossexual ainda persiste tanto pelo desrespeito e violência quanto pela ausência de<br />

políticas públicas para reverter aquele quadro.<br />

3 Heteronormatividade: entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento<br />

monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família nuclear.<br />

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Referências:<br />

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:<br />

Forense-Universitária, 1981.<br />

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Morangos mofados. Disponível em:<br />

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