O brinquedo, a criação e a imaginação A riqueza do brinquedo ...
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O <strong>brinque<strong>do</strong></strong>, a <strong>criação</strong> e a <strong>imaginação</strong><br />
A <strong>riqueza</strong> <strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong> decorre de sua capacidade de instigar a<br />
<strong>imaginação</strong> infantil. E não, como muitos acreditam, da possibilidade de imitação<br />
de gestos, informações, atitudes e crenças veiculadas na situação de brincar.<br />
Não se trata, portanto, de eleger um modelo ideal a ser persegui<strong>do</strong> na<br />
formação infantil. A princípio, julgou-se que esse modelo deveria vir <strong>do</strong>s pais.<br />
Anos mais tarde, esse papel passou a ser recomendável também aos<br />
professores. Atualmente, ele se estende igualmente aos heróis <strong>do</strong> cinema, da<br />
história em quadrinhos, da televisão e, como não poderia deixar de ser, aos<br />
<strong>brinque<strong>do</strong></strong>s. Em conjunto, ou em separa<strong>do</strong>, deles se espera a atitude exemplar,<br />
capaz de atrair, sensibilizar e cativar as crianças.<br />
Aqueles que se colocam como interlocutores da criança na descoberta<br />
de novas experiências, até então abafadas, têm efetivamente um papel<br />
significativo a cumprir. Entretanto, se o objetivo final restringir-se unicamente à<br />
imitação, deixam de ser interlocutores (se é que, de fato, se propuseram a<br />
tanto) para ser impositores de normas, práticas e valores. Em nome da<br />
socialização, revelam-se, na verdade, instrumentos de <strong>do</strong>minação.<br />
A imitação, considerada como meta, representa um sinal de<br />
conformismo e de estagnação. Supõe que as crianças devem assimilar nos<br />
<strong>brinque<strong>do</strong></strong>s a reprodução da sociedade, adestran<strong>do</strong>-se assim a geração de<br />
amanhã. A atração exercida por um í<strong>do</strong>lo qualquer, seja ele um super-herói <strong>do</strong><br />
cinema, das revistas, da tevê ou <strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong>, é usada não só como fator de<br />
reverência aos seus feitos, mas como modelo a ser imita<strong>do</strong>.<br />
Essa manipulação, que se oferece a todas as classes sociais, até mesmo<br />
à <strong>do</strong>minante para que se reproduza enquanto tal, envolve também as diferentes<br />
faixas etárias. É certo que influencia o comportamento de to<strong>do</strong>s, mas nem<br />
sempre é assimilada passivamente. Se a criança não pôde participar <strong>do</strong><br />
processo de <strong>criação</strong> <strong>do</strong>s objetos que irão entretê-la e se muitos desses objetos<br />
dificultam a possibilidade de “interferência” infantil no desenvolvimento da<br />
brincadeira (caso, por exemplo, <strong>do</strong>s <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s eletrônicos), nem por isso ela<br />
perde ou anula sua capacidade de recriá-los simbolicamente.<br />
A criatividade e o lixo da história<br />
De uns anos para cá, floresceu o ufanismo em torno da idéia de<br />
criatividade. Chegou-se a atribuir ao brasileiro a capacidade de ser<br />
extremamente criativo, a ponto de poder compensar as falhas de sua formação<br />
com o uso da criatividade. Assim, tornou-se comum, por exemplo, a exaltação<br />
<strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong> feito com sucata. E da criatividade infantil em fazer “história a<br />
partir <strong>do</strong> lixo da história”.<br />
Dadas as condições sociais precárias em que vive boa parte da<br />
população, não deixa de ser váli<strong>do</strong> procurar extrair daquilo que restou <strong>do</strong> meio<br />
ambiente, ou mesmo de outros materiais disponíveis, a matéria-prima para<br />
realização ou confecção <strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong>. A questão é: como fazê-lo? Como as<br />
crianças podem se apropriar <strong>do</strong> conhecimento e <strong>do</strong>s meios necessários para<br />
transformar em <strong>brinque<strong>do</strong></strong> diferentes tipos de materiais? Aí entra a criatividade.
Graças a ela, pais e professores são capazes de enumerar vários exemplos de<br />
crianças que transformaram latas usadas, jornais e revistas velhas, tampinhas<br />
de cerveja e refrigerante, copos plásticos descartáveis, pedaços de madeira ou<br />
refugos de uma indústria qualquer em <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s inusita<strong>do</strong>s. Casos é que não<br />
faltam de gente que “tirou mel das pedras”.<br />
Nada há que se possa duvidar desses casos. Tampouco menosprezar tal<br />
tipo de atividade. O que se pode é questionar o uso e o abuso da prática de<br />
fazer <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s com sucata, identifican<strong>do</strong> uma simples atividade com<br />
criatividade.<br />
Em primeiro lugar, a idéia de reaproveitamento de material usa<strong>do</strong> ou de<br />
material refuga<strong>do</strong> pela indústria se torna sugestiva não pela idéia em si, mas<br />
principalmente se estiver relacionada com um problema real de dificuldade na<br />
obtenção <strong>do</strong> material para confecção de <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s. Mais ainda: deve<br />
subordinar-se a uma proposta educativa de trabalho com um determina<strong>do</strong> tipo<br />
de material, sobre o qual serão discuti<strong>do</strong>s fundamentos, propriedades,<br />
qualidades técnicas de transformação, de acabamento etc. Enfim, não é o<br />
material que define o programa, mas é a proposta educativa de trabalho,<br />
utilizan<strong>do</strong> um certo material, que deve determinar quais os seus equivalentes na<br />
falta ou na impossibilidade de se ter a matéria-prima desejada. Por exemplo,<br />
quan<strong>do</strong> num curso de confecção de <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s em madeira não se pode obter<br />
o material bruto, talvez seja possível recorrer a compensa<strong>do</strong>s, cedi<strong>do</strong>s como<br />
sucata por uma serraria.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, pode-se evitar a utilização simplória da criatividade como<br />
justificativa da banalização ou da ingenuidade com que muitas escolas<br />
conduzem cursos de “ atividades manuais” no Brasil. Está claro que a culpa não<br />
deve recair exclusivamente no professor, já que também ele foi forma<strong>do</strong> dentro<br />
da proposta educacional discrimina<strong>do</strong>ra da inteireza das relações entre o ser e o<br />
fazer.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, como pode haver criatividade sem que os alunos travem<br />
um contato com a matéria com a qual vão trabalhar (barro, madeira, lata etc.),<br />
conhecen<strong>do</strong>-a intimamente, para depois se assenhorearem das técnicas e <strong>do</strong>s<br />
instrumentos utiliza<strong>do</strong>s em sua transformação?<br />
Tanto <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> professor como <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alunos, a criatividade tem<br />
si<strong>do</strong> muitas vezes utilizada como guardiã mágica, preservan<strong>do</strong> intacta a<br />
constituição <strong>do</strong> saber escolar ao “driblar” suas falhas, ou como instrumento<br />
capaz de alimentar esperanças artísticas em ensaios banaliza<strong>do</strong>res e simplistas<br />
da produção cultural.<br />
O <strong>brinque<strong>do</strong></strong> e a criatividade<br />
Há várias possibilidades de entendimento da criatividade. Existem<br />
explicações que valorizam a pessoa que cria; outras enfatizam o processo<br />
cria<strong>do</strong>r; há as que conferem destaque ao produto acaba<strong>do</strong> e há também<br />
aquelas que privilegiam os aspectos ambientais que interferem no processo<br />
cria<strong>do</strong>r. Não se trata de perspectivas estanques, que necessariamente se<br />
excluam entre si. Em certos casos chegam a reunir mais de um desses<br />
elementos.<br />
Sinteticamente, essa multiplicidade de caminhos e conceitos pode ser<br />
distribuída em três orientações básicas, conforme as premissas que as<br />
fundamentam.
A primeira delas é aquela que define a criatividade como um <strong>do</strong>m.Nesta<br />
perspectiva, poucas pessoas têm “jeito” ou aptidão para criar. Sen<strong>do</strong> a<br />
criatividade uma dádiva de nascença, ela é restrita a determinadas pessoas.<br />
Trata-se de uma seleção que privilegia “os que podem criar” e discrimina to<strong>do</strong>s<br />
os demais que, segun<strong>do</strong> ela, não “levam jeito” para a coisa.<br />
Essa interpretação aparece quan<strong>do</strong>, por exemplo, um professor se dirige<br />
aos alunos para ensinar-lhes a fazer determina<strong>do</strong>s <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s artesanalmente,<br />
usan<strong>do</strong> a fórmula: “Eu crio, vocês copiam”. A cada gesto, a cada operação e a<br />
cada instante, os alunos são leva<strong>do</strong>s a seguir rigorosamente as prescrições<br />
ditadas pelo mestre. E, no final, a avaliação será feita em razão da maior ou<br />
menor fidelidade ao modelo imposto. Ela pode aparecer, também, quan<strong>do</strong> os<br />
pais resolverem determinar quais <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s industrializa<strong>do</strong>s irão comprar para<br />
seus filhos, sem fazer nenhum tipo de consulta a eles. De forma arbitrária, os<br />
pais atribuem às crianças a incapacidade de discernir sobre o que querem e<br />
sobre o que é “bom” para eles. Num e noutro caso, reconhece-se a existência<br />
de diferenças entre professores e alunos, de um la<strong>do</strong>, e entre pais e filhos, de<br />
outro. Supõe-se, entretanto, que elas não podem ser diminuídas ou superadas.<br />
Aniquila-se a possibilidade de expressão das crianças pela <strong>do</strong>minação<br />
autoritária explícita.<br />
Uma segunda forma de interpretação da criatividade coloca-se no<br />
extremo oposto da perspectiva anterior. Assumin<strong>do</strong> uma postura<br />
aparentemente aberta, nega que a criatividade seja uma qualidade intrínseca de<br />
uns poucos bem-<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s. Ao contrário, entende ao exercício da criatividade<br />
como prática passível e possível de ser realizada por to<strong>do</strong>s. No Brasil, alguns de<br />
seus mais ar<strong>do</strong>rosos defensores sustentam não apenas esse aspecto, mas<br />
também que a criatividade estaria alojada no próprio caráter <strong>do</strong> brasileiro, o que<br />
– entre outras coisas – explicaria o “nosso famoso jeitinho”.<br />
É um posicionamento que pode ser depreendi<strong>do</strong> em situações nas quais,<br />
por exemplo, um professor de atividades artísticas procura comportar-se como<br />
um “colega de classe” de seus alunos. Sua proposta básica se resume em<br />
solicitar aos alunos que “façam o <strong>brinque<strong>do</strong></strong> que bem quiserem” porque “o<br />
professor não deve impor nada”. Do mesmo mo<strong>do</strong>, uma atitude semelhante<br />
pode ser percebida em pais que afirmam: “Dou a meu filho os <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s<br />
(industrializa<strong>do</strong>s) que não pude ter na infância”. Em ambos os casos, deixa-se<br />
de reconhecer as diferenças entre alunos e professores e entre filhos e pais em<br />
nome da “liberdade” para se criar à vontade, de um la<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> altruísmo e da<br />
generosidade de outro.<br />
Sob a aparência de um clima de diálogo e de liberdade, reina de fato a<br />
ilusão, tanto de participação quanto de liberdade de <strong>criação</strong> cultural. Quan<strong>do</strong><br />
um pai, por exemplo, ainda que movi<strong>do</strong> por boas intenções, presenteia seus<br />
filhos com <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s eletrônicos para que, assim, eles possam exercer sua<br />
criatividade, ajustan<strong>do</strong>-a aos novos tempos da informática, acaba reforçan<strong>do</strong><br />
essa ilusão. O <strong>brinque<strong>do</strong></strong> eletrônico é um produto simplifica<strong>do</strong> dessa nova<br />
tecnologia. Transmite a seus possui<strong>do</strong>res a ilusão de <strong>do</strong>mínio das criações mais<br />
avançadas (naves espaciais, pequenos robôs, veículos com coman<strong>do</strong> a<br />
distância etc.). Tanto pais quanto filhos permanecem, de fato, desconhecen<strong>do</strong><br />
os fundamentos da informática, mas têm a ilusão de viver plenamente<br />
adapta<strong>do</strong>s a ela pelo consumo “criativo” de produtos internos modernos. A<br />
posse <strong>do</strong> objeto-<strong>brinque<strong>do</strong></strong> vem minimizar o mal-estar ou o “atraso cultural”<br />
causa<strong>do</strong> pelo não-conhecimento. Do mesmo mo<strong>do</strong>, o professor ao “dar
liberdade” e “abolir imposições” acaba rejeitan<strong>do</strong> a figura <strong>do</strong> mestre soberano,<br />
<strong>do</strong>no <strong>do</strong> saber, mas também abdica de sua atuação educativa, que não é feita<br />
de imposições, mas tampouco de concessões absurdas (o que é dar<br />
liberdade?). São posturas que se inspiram muito mais no desejo de “ganhar o<br />
aluno” e passar por um ”cara legal”, mesmo que para tanto se tenha que<br />
dissimular a ausência de um projeto educativo realmente democrático. Pais e<br />
professores bloqueiam, então, as possibilidades de expressão da criança,<br />
exercen<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>minação tão ou mais autoritária que a primeira, por<br />
esconder-se nas teias traiçoeiras da manipulação.<br />
A terceira perspectiva questiona as outras duas e propõe outro<br />
encaminhamento. A criatividade nem é <strong>do</strong>m de um determina<strong>do</strong> número de<br />
privilegia<strong>do</strong>s bem-nasci<strong>do</strong>s, nem tampouco é prática que necessariamente<br />
ocorre quan<strong>do</strong> se “dá liberdade”. A criatividade supõe trabalho. Um ator<br />
criativo, conforme se diz, é resulta<strong>do</strong> de um processo que envolve 90% de<br />
transpiração e 10% de inspiração. Ao professor cabe organizar um projeto<br />
educacional em que ele se coloque como media<strong>do</strong>r entre os alunos e a cultura.<br />
O mesmo poderia ser dito <strong>do</strong>s pais em relação aos filhos. Nesse projeto, os<br />
diálogos não são um objeto em si mesmo. Nem devem limitar-se a colocações<br />
entre pais e filhos ou entre alunos e professores. O diálogo <strong>do</strong> aluno (ou <strong>do</strong><br />
filho) é, como diz Marilena Chauí, “um diálogo com o pensamento, com a<br />
cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais e transmitidas pela<br />
linguagem e pelos gestos <strong>do</strong> professor, simples media<strong>do</strong>r”. O fato de pais e<br />
professores se colocarem na condição de media<strong>do</strong>res e não na de “prima<strong>do</strong>nas”,<br />
recusan<strong>do</strong> também a função de serem “um colega a mais”, é um<br />
procedimento aberto e democrático que, reconhecen<strong>do</strong> as diferenças, delas<br />
não se vale nem para impor o seu ponto de vista nem para estabelecer um falso<br />
diálogo, disfarce <strong>do</strong> autoritarismo manipula<strong>do</strong>r. Pais e professores não se<br />
eximem, assim, <strong>do</strong> seu compromisso e <strong>do</strong> seu projeto democrático em relação<br />
à educação. A criatividade resulta, então, no processo de produção de algo<br />
novo, conscientemente novo, através <strong>do</strong> trabalho realiza<strong>do</strong> por agentes<br />
atuantes na cultura, a partir de elementos preexistentes numa dada realidade.<br />
No trabalho criativo, pessoas determinadas expressam-se por completo no seu<br />
fazer, na sua obra, e o fazem de mo<strong>do</strong> singular.<br />
Imaginação e re<strong>criação</strong> <strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong><br />
O exercício da criatividade não se limita à <strong>criação</strong>, mas também se refere<br />
à re<strong>criação</strong> <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>brinque<strong>do</strong></strong>. O <strong>brinque<strong>do</strong></strong> industrializa<strong>do</strong>, por<br />
exemplo, faz parte <strong>do</strong> imaginário social porque é uma das formas pelas quais a<br />
sociedade se representa a si mesma. Ocorre que, não sen<strong>do</strong> a sociedade<br />
homogênea, o imaginário também não se constitui de forma homogênea. A<br />
existência de classes sociais não só indica relações de <strong>do</strong>minação, de<br />
contradição e de conflito, como revela, igualmente, uma pluralidade de<br />
perspectivas nas formas de representação social. O <strong>brinque<strong>do</strong></strong> industrializa<strong>do</strong> é<br />
uma merca<strong>do</strong>ria criada para formar nas crianças mo<strong>do</strong>s de agir e de pensar<br />
correspondentes aos da classe <strong>do</strong>minante. Contu<strong>do</strong>, se uma determinada<br />
maneira de representar a sociedade consegue se sobrepor às demais, por força<br />
<strong>do</strong> exercício da <strong>do</strong>minação, isso não significa que grupos sociais distintos<br />
reproduzam e reiterem essa interpretação. O quadro se torna ainda mais<br />
complexo quan<strong>do</strong> entram em cena grupos etários diferentes.
O imaginário social não é algo solto no ar, pairan<strong>do</strong> sobre as<br />
consciências de adultos e crianças. É uma construção de grupos sociais<br />
determina<strong>do</strong>s. Faz parte da realidade social não como prática, mas como<br />
interpretação que grupos determina<strong>do</strong>s fazem dessa realidade social. O<br />
<strong>brinque<strong>do</strong></strong> torna-se, portanto, um elemento importante na compreensão <strong>do</strong><br />
imaginário na medida em que põe em questão não só o antagonismo das<br />
relações entre as classes sociais, mas também o antagonismo das relações<br />
entre o imaginário adulto e infantil.<br />
Ao contrário <strong>do</strong> que se dá com os adultos, as crianças não procuram no<br />
<strong>brinque<strong>do</strong></strong> uma forma de evasão. Desejam, sim, explorar e conhecer melhor o<br />
real, crian<strong>do</strong>-o ou recrian<strong>do</strong>-o à sua maneira. Assim, o uso e o senti<strong>do</strong> que<br />
atribuem ao <strong>brinque<strong>do</strong></strong> nem sempre é aquilo que as aparências sugerem; nem<br />
sempre é o óbvio, como geralmente ocorre quan<strong>do</strong> adultos estão brincan<strong>do</strong>.<br />
No <strong>brinque<strong>do</strong></strong>, o mo<strong>do</strong> de pensar e agir da criança freqüentemente se opõe ao<br />
mo<strong>do</strong> de agir e pensar <strong>do</strong> adulto. Isso acontece quan<strong>do</strong> as crianças, por<br />
exemplo, “encostam” <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s mais caros e sofistica<strong>do</strong>s e se apegam a<br />
outros bem simples, aos quais o mun<strong>do</strong> adulto não dá valor algum. Nesses,<br />
porém, encontram as crianças uma matéria fértil para sua fabulação.<br />
O exercício da fantasia é, para a criança, uma possibilidade de libertação<br />
para que seus desejos se manifestem e se realizem. Ela se torna ainda mais<br />
importante na medida em que permite às crianças expressar simbolicamente<br />
tu<strong>do</strong> aquilo que foi reprimi<strong>do</strong>, através de um processo fluente, natural e sem<br />
culpa. Essa capacidade inventiva é maior nas crianças por sua sensibilidade<br />
diante das coisas que povoam o mun<strong>do</strong>. As cores, os movimentos, o vento, as<br />
folhas das árvores, os sons, os animais, as flores, as formas, o fogo, a água, a<br />
terra, a areia, as nuvens, o sol, o céu, as estrelas, a lua e outros tantos<br />
elementos representam para a criança um mun<strong>do</strong> imenso, infinito na surpresa e<br />
nas promessas. Cada um deles é capaz de suscitar na criança longos momentos<br />
de contemplação e êxtase.<br />
Aos poucos, porém, à medida que as crianças vão crescen<strong>do</strong> e que a<br />
sociedade procura moldá-las à sua imagem – árida, adulta e limitada –, muito se<br />
perde da sensibilidade e da <strong>riqueza</strong> expressiva. Os senti<strong>do</strong>s atrofiam-se, são<br />
abafa<strong>do</strong>s pela sociedade e, com eles, inibe-se a <strong>imaginação</strong>.<br />
Os <strong>brinque<strong>do</strong></strong>s se revelam extremamente importantes nesse processo, já<br />
que permitem um espaço em que as crianças podem resistir a essa tentativa de<br />
mutilação social <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Eis aí, “escondida”, uma das manifestações mais<br />
cruéis da violência da sociedade em que vivemos. Ao criar o <strong>brinque<strong>do</strong></strong> <strong>do</strong> seu<br />
entretenimento ou ao atribuir novas significações ao <strong>brinque<strong>do</strong></strong> que recebe<br />
pronto, a criança nega as rédeas e as prisões adultas que lhe reservaram. E se<br />
renova, liberan<strong>do</strong> seus senti<strong>do</strong>s, em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s.<br />
Oliveira, Paulo de Salles. O que é o <strong>brinque<strong>do</strong></strong>, pág 59-71