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Publicação da Associação Mineira - AMP

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Ano XIII / Nº 19 - <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Edição especial para o XXIII Congresso Brasileiro ABP - Outubro / 2004<br />

Diretrizes em Psiquiatria nova clínica novas instituições novas intervenções<br />

12 a 15 de outubro de 2005 MinasCentro Belo Horizonte Minas Gerais


E d i t o r i a l<br />

E viva a Arte!<br />

Em recente mostra interna de<br />

uma Facul<strong>da</strong>de de Arte de BH<br />

-Escola Guignard- a jovem artista<br />

Tatiana Cavinato, bem dentro<br />

dos impasses contemporâneos,<br />

brinca com as idéias. Seu trabalho<br />

consiste numa linha reta, branca,<br />

traça<strong>da</strong> no chão. Aí é instalado<br />

um frango, que fascinado pela<br />

linha, bico voltado para o chão,<br />

contempla a linha sem que na<strong>da</strong><br />

o distraia. Por outro lado o expectador,<br />

fascinado pela cena, no<br />

mesmo espaço de tempo, também<br />

observa e, <strong>da</strong>li, não desloca seu<br />

olhar. Se pensarmos que um dos<br />

sentidos <strong>da</strong> palavra diretriz no<br />

nosso Aurélio é linha reguladora<br />

do traçado de um caminho ou<br />

de uma estra<strong>da</strong>, por certo não<br />

deixaremos de <strong>da</strong>r umas boas<br />

gargalha<strong>da</strong>s ao pensarmos que<br />

os atuais manuais de diretrizes<br />

diagnósticas nos lembram um<br />

pouco essa linha que hipnotiza,<br />

dispensa raciocínio e nos puxa<br />

para o fascínio do puro olhar.<br />

Mas, como o Aurélio também<br />

traz o sentido matemático de tal palavra,<br />

diretriz diz respeito a uma<br />

linha ou superfície <strong>da</strong> qual se gera<br />

outras linhas e superfícies, que<br />

tornam possíveis traçados e caminhos<br />

inusita-dos, fazendo até<br />

com que se possa escrever certo<br />

por linhas tortas.E sem precisar<br />

ser Deus. Aliás, sendo-se só<br />

humano, demasiado humano.<br />

Melhor para nós.<br />

O Risco - <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Comissão editorial: Elizabeth Uchôa - Francisco Goyatá - Gil<strong>da</strong> Paoliello (Coordenadora) - Hélio Lauar<br />

- Luciana Nogueira Carvalho - Luis Carlos Calil (Uberaba) - Maria Cristina de Oliveira Contigli - Paulo Roberto Vaz de Melo - Stélio Lage - Van<strong>da</strong> Pignataro Pereira (Coordenadora) - Jornalista<br />

Responsável: Cândi<strong>da</strong> B Lemos - reg. prof. MG 02299 - Projeto gráfico e editoração: Visiva Editoração Lt<strong>da</strong>. - <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Av. João Pinheiro, 161 - Centro<br />

- 30130-180 - Belo Horizonte - Tel.: (31) 3213-7457 - Site: www.psiquiatriamg.org • e-mail: amp@psiquiatria.org - Os artigos para o publicação devem ser enviados para gil<strong>da</strong>@br.inter.<br />

net. - Os artigos recebidos serão analisados pela Comissão Editorial para possível publicação. - Os artigos assinados de "O Risco" são de inteira responsabili<strong>da</strong>de de seus autores. - As<br />

ilustrações desta edição são de autoria de Hélio Lauar.<br />

PÁGINA 2<br />

Dirigir um tratamento é, em<br />

primeiro lugar, fazer com que o<br />

sujeito, cuja presença não se<br />

pode anular, construa suas diretrizes.<br />

Isso significa, se quisermos<br />

nos afastar do fascínio, que<br />

o sujeito que dirige o tratamento<br />

ou aquele que se põe em tratamento,<br />

além dos avanços <strong>da</strong><br />

ciência, também devem se colocar<br />

em causa. Melhor dizendo,<br />

devem se interrogar, um sobre<br />

a ação que executa e o outro<br />

sobre sua responsabili<strong>da</strong>de com<br />

relação a sua participação no<br />

próprio sofrimento.<br />

Caso contrário, o risco é ficar<br />

como o frango fascinado pela<br />

linha, na ilusão de que a tecnologia<br />

traria a resposta última para<br />

nossas angústias. Sem duvi<strong>da</strong>,<br />

ela aju<strong>da</strong>, desde que não fiquemos<br />

na postura do amansador<br />

de feras, que na segurança de<br />

tê-las domado to<strong>da</strong>s, se surpreende<br />

porque recebeu no<br />

próprio pescoço o efeito de seu<br />

desconhecimento: as pessoas<br />

são não-to<strong>da</strong>s domesticáveis.<br />

Que a reflexão gera<strong>da</strong> pelos<br />

diversos artigos deste número<br />

tão especial nos possibilite traçar<br />

diretrizes para a construção de<br />

um congresso conseqüente.<br />

Agradecemos a Hélio Lauar<br />

o cui<strong>da</strong>do pelo trabalho gráfico<br />

e aos colegas que prontamente<br />

atenderam a nosso pedido de<br />

apontarem suas diretrizes.<br />

Gil<strong>da</strong> Paoliello/<br />

Van<strong>da</strong> C.Pignataro Pereira<br />

Coordenadoras de <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>AMP</strong><br />

Parâmetro para a varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clínica<br />

Anunciemos: o próximo Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria será<br />

realizado, em Belo Horizonte, Minas<br />

Gerais, de 12 a 15 de outubro de<br />

2005. Para nossa sorte já começa<br />

abençoado por Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>,<br />

nossa padroeira queri<strong>da</strong>; no<br />

dia <strong>da</strong>s crianças, trazendo neste<br />

cenário a troca de conhecimentos<br />

e a síntese <strong>da</strong>s novas formas de<br />

atendimento. Em pleno feriado<br />

nacional, o que permite e facilita<br />

a todos organizar suas agen<strong>da</strong>s<br />

para viajar e conhecer lugares e<br />

pessoas e para buscar novos conhecimentos.<br />

Tudo se encaixa perfeitamente<br />

no nosso tema:<br />

Diretrizes em psiquiatria, nova<br />

clínica, novas instituições novas<br />

intervenções. Sabemos que a psiquiatria<br />

tem ampliado seus conhecimentos<br />

em um ritmo acelerado<br />

nos últimos anos. Falamos hoje<br />

uma linguagem que vai do sujeito<br />

ás neurociências.Há especialistas<br />

em infância e adolescência,<br />

adultos, geriatria, dependências<br />

químicas, forense, psicotera pias,<br />

psicofarma cologistas, interconsultas,<br />

etc...<br />

Como ficamos diante de tantos<br />

conhecimentos, com uma procura<br />

ca<strong>da</strong> vez maior pela especiali<strong>da</strong>de<br />

e com tantas interlocuções na<br />

área médica e nas áreas afins, as<br />

associações de classe, as instituições<br />

de pesquisa, universitárias e<br />

públicas freqüentemente são convoca<strong>da</strong>s<br />

a criar parâmetros para a<br />

varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clinica, para as varias<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de instituições de<br />

saúde mental, para as intervenções<br />

farmacológicas, psicoterá picas,<br />

institucionais etc. Se, por um lado,<br />

as universa-lizações de conduta<br />

podem servir de pa râmetro para<br />

o exercício <strong>da</strong> profissão e para a<br />

comparação de <strong>da</strong>dos de eficiência<br />

e eficácia nos tratamentos por<br />

outro lado precisamos garantir<br />

um espaço para o estilo de ca<strong>da</strong><br />

um, para uma ética que viabilize<br />

a escolha do psiquiatra por esta<br />

ou aquela corrente teórica e do<br />

paciente como aquilo que ele busca<br />

como forma de atendimento.<br />

É essa a proposta <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />

Brasileira de Psiquiatria, em conjunto<br />

com a <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de<br />

Psiquiatria. Esse é o nosso convite<br />

para todos os colegas do Brasil a<br />

estar conosco no XXIII Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria e no X<br />

Congresso Mineiro de Psiquiatria,<br />

que erão realizados no MinasCentro,<br />

em Belo Horizonte.<br />

A ABP é o veículo intermediador<br />

entre as várias fontes de<br />

conhecimentos e os executores<br />

dos programas, na construção de<br />

um novo modelo assistencial, na<br />

promoção <strong>da</strong> saúde e na reflexão<br />

sobre a mente humana, com intuito<br />

de humanizar e melhorar em<br />

todos os níveis o atendimento e o<br />

tratamento psiquiátrico.<br />

Maria Cristina Oliveira Contigli<br />

Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria


A <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria (<strong>AMP</strong>) têm o prazer de<br />

convi<strong>da</strong>r psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, estu<strong>da</strong>ntes e demais<br />

profissionais <strong>da</strong> saúde, para o maior evento científico <strong>da</strong> psiquiatria brasileira.<br />

A Comissão organizadora do Congresso (COMOR) está composta por Marco Antonio Alves Brasil, Cristina<br />

Contigli, Gil<strong>da</strong> Paolielo, Josimar França, Luiz Alberto Hetem, Maurício Leão.<br />

A Comissão científica (COCIEN) está composta por Itiro Shirakawa, Hélio Lauar, Luciana Carvalho, Maria<br />

Tavares Cavalcanti, Maurício Viotti Daker, Rogério Wolf de Aguiar.<br />

O tema oficial do Congresso foi escolhido para atender a expectativa <strong>da</strong> especiali<strong>da</strong>de e dos profissionais<br />

<strong>da</strong> saúde mental de trabalhar a partir de diretrizes científicas e sociais pactua<strong>da</strong>s pela ABP, capazes de criar<br />

parâmetros para a nova clínica, rotinas para o funcionamento <strong>da</strong>s novas instituições, permitindo a troca de<br />

experiência a partir <strong>da</strong>s novas intervenções e dos seus resultados.<br />

Belo Horizonte foi escolhi<strong>da</strong> como sede para o evento e está apta a receber todos os interessados com conforto<br />

e pratici<strong>da</strong>de.<br />

Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />

Diretrizes em Psiquiatria nova clínica novas instituições novas intervenções<br />

Sejam todos bem-vindos!<br />

Marco Antônio Alves Brasil<br />

Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />

Maria Cristina Contigli<br />

PÁGINA 3


Diretrizes em Psiquiatria. Na construção de um estado de direitos,<br />

o psiquiatra se vê confrontado com sua ciência e sua responsabili<strong>da</strong>de<br />

social. Neste contexto as associações de classe, as instituições de pesquisa,<br />

universitárias e públicas, freqüentemente são convoca<strong>da</strong>s a criar<br />

parâmetros para a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clínica, para as várias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

de instituições em saúde mental e para as intervenções farmacológicas,<br />

psicoterápicas, institucionais, etc. Se por um lado, as universalizações<br />

<strong>da</strong> conduta podem servir de parâmetro para o exercício <strong>da</strong> profissão e<br />

para a comparação de <strong>da</strong>dos de eficiência e eficácia nos tratamentos,<br />

por outro lado, precisamos garantir um espaço para o estilo de ca<strong>da</strong> um,<br />

para uma ética que viabilize a escolha do psiquiatra, por esta ou aquela<br />

corrente teórica e do paciente por aquilo que ele busca como forma de<br />

atendimento.<br />

O programa científico do evento está sendo construído sob coordenação<br />

<strong>da</strong> Comissão Científica (COCIEN) e aberto à participação de todos<br />

associados quites, departamentos e federa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ABP que poderão indicar<br />

relatores, com os respectivos interesses temáticos, e também temas<br />

para as ativi<strong>da</strong>des científicas. Ca<strong>da</strong> relator poderá participar de apenas<br />

uma mesa redon<strong>da</strong>, mas poderá estar incluído em outras ativi<strong>da</strong>des tais<br />

como: simpósios dos departamentos, cursos, sessão de casos clínicos,<br />

vídeos e ou pôsteres, onde a indicação é por convite ou por seleção a<br />

partir de sugestão pessoal. As indicações deverão ser feitas através de<br />

formulários específicos disponíveis em www.abpbrasil.org.br, e envia<strong>da</strong>s<br />

on-line a partir de 01/02/2005.<br />

Para o bom an<strong>da</strong>mento dos nossos trabalhos, fique atento, às<br />

<strong>da</strong>tas limite:<br />

10/04/05 para envio de sugestões on-line,<br />

15/05/05 para envio de pôsteres, casos clínicos e vídeos.<br />

O programa científico consta de: mesas redon<strong>da</strong>s, cursos, conferências,<br />

encontros com o especialista, simpósios de ensino, simpósios de<br />

departamentos <strong>da</strong> ABP, sessões de casos clínicos e de vídeos, fóruns e<br />

pôsteres.<br />

Estão previstos prêmios para os melhores pôsteres <strong>da</strong> categoria Ensino<br />

/ Prática Clínica e <strong>da</strong> categoria Pesquisas Originais (Ensaios Clínicos e<br />

Revisão Sistemática), e para os melhores casos apresentados nas sessões<br />

de casos clínicos e de vídeos.<br />

PÁGINA 4<br />

Itiro Shirakawa<br />

Coordenador <strong>da</strong> Comissão Científica<br />

I n f o r m a ç õ e s<br />

A ABP promove concursos de trabalhos científicos e premia os<br />

melhores trabalhos. Conheça os prêmios: Prêmio Prof. Álvaro Rubim<br />

de Pinho para o melhor trabalho em Ética em Psiquiatria ou Psiquiatria<br />

Legal; Prêmio Prof. Luiz Cerqueira para o melhor trabalho<br />

em Saúde Mental; Prêmio Prof. Ulysses Vianna Filho para o melhor<br />

trabalho em temas psiquiátricos; Prêmio Jovem Psiquiatra para o<br />

melhor trabalho de pesquisa em psiquiatria, realizado por médico<br />

residente em psiquiatria ou formado até 5 anos; Prêmio Dr. Oswald<br />

Moraes Andrade para o melhor trabalho na área de dependência<br />

química; Prêmio Dr. Zaldo Rocha para o melhor trabalho na área <strong>da</strong><br />

psiquiatria <strong>da</strong> Infância e Adolescência. Todos os prêmios possuem<br />

regulamentos e comissões julgadoras próprias disponíveis<br />

no site <strong>da</strong> ABP, www.abpbrasil.org.br.<br />

O período de inscrições para Provas de Título de Especialista em Psiquiatria<br />

e para as áreas de atuação em Psiquiatria Forense, Psiquiatria<br />

<strong>da</strong> Infância e Adolescência será de 05 de janeiro a 31 de maio de<br />

2005. Informamos que as referi<strong>da</strong>s provas serão realiza<strong>da</strong>s no<br />

dia 12 de outubro de 2005, em Belo Horizonte.<br />

A Assembléia de Delegados <strong>da</strong> ABP acontecerá no dia 11 de outubro<br />

de 2005, em Belo Horizonte.<br />

Realização:<br />

<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />

<strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />

Secretaria Executiva do XXIII CBP<br />

<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria WWW.abpbrasil.org.br | Av. Presidente<br />

Wilson 164 | nono an<strong>da</strong>r | Rio de Janeiro | Brasil | 20030-<br />

020 telefax 021 22214409 / 21997500 | congresso@abpbrasil.org.br


Cautela e caldo de galinha não fazem mal para ninguém<br />

Em tempos de tantas novas intervenções,<br />

e até por ser esse um<br />

dos subtemas do próximo Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria, a ser<br />

realizado em Belo Horizonte, talvez<br />

seja oportuno algumas palavras de<br />

cautela.<br />

A psicofarmacoterapia moderna<br />

nasceu em meados do século passado,<br />

com a descoberta do efeito benéfico<br />

<strong>da</strong> clorpromazina em pacientes<br />

com esquizofrenia e <strong>da</strong> imipramina<br />

em casos de “depressão vital”. Suas<br />

conseqüências ocasionaram revolução<br />

científica, de acordo com<br />

Thomas Kuhn 1 , visto que provocaram<br />

mu<strong>da</strong>nça de paradigma. A abor<strong>da</strong>gem<br />

e mesmo o entendimento dos<br />

transtornos mentais se modificaram<br />

radicalmente depois do aparecimento<br />

dos psicofármacos.<br />

Seguindo essa linha de raciocínio,<br />

o surgimento dos novos an tipsicóticos<br />

e dos novos antide pressivos não<br />

tiveram o mesmo impacto e não representaram<br />

nova revolução, como<br />

querem alguns, mas tão somente<br />

um avanço, uma grande evolução.<br />

Por que? Porque não houve mu<strong>da</strong>nça<br />

de paradigma: utilizavam-se<br />

medicamentos antes e continuou-se<br />

a utilizá-los depois que os de nova<br />

geração foram disponi bilizados. O<br />

avanço se deu no sentido <strong>da</strong> maior<br />

tolerabili<strong>da</strong>de com eficácia comparável,<br />

que permitiram que o seu uso<br />

fosse disseminado e passasse a ser<br />

feito também para pacientes com<br />

quadros mais leves.<br />

Interessante notar que a difusão<br />

<strong>da</strong> nova prática (psicofarmacoterapia)<br />

foi acompanha<strong>da</strong> pela difusão<br />

de novos conceitos. Já em 1961,<br />

por exemplo, o laboratório Merck, que<br />

havia recém lançado a amitriptilina,<br />

adquiriu 50 mil exemplares de livro<br />

sobre diagnóstico de depressão para<br />

distribuição em nível mundial. Em<br />

que medi<strong>da</strong> isso continua sendo feito<br />

atualmente? Naquela época, quando<br />

os psico fármacos estavam sendo<br />

Luiz Alberto B. Hetem 1 | Marco Antonio Brasil 2 | Josimar França 3<br />

introduzidos, tratava-se de algo<br />

necessário, visto que se anunciava<br />

uma revolução científica, mas será<br />

possível (e necessário) empregar a<br />

mesma estratégia 40 anos depois?<br />

Quem sabe um pouco <strong>da</strong> história<br />

do desenvolvimento dos conceitos<br />

de transtorno de pânico, distimia,<br />

fobia social, trans torno de ansie<strong>da</strong>de<br />

generaliza<strong>da</strong>, transtorno obsessivocompulsivo<br />

e acompanhou, mais<br />

recentemente, o do transtorno de<br />

estresse pós-traumático e transtorno<br />

de déficit de atenção e hiperativi<strong>da</strong>de<br />

não tem dificul<strong>da</strong>de em perceber<br />

nítido paralelismo entre a divulgação<br />

destes diagnósticos e de seus tratamentos<br />

farmaco-lógicos. Evidente<br />

que houve avanços significativos e<br />

que muito do que é dito é ver<strong>da</strong>deiro,<br />

mas não se pode negar que há<br />

interesses financeiros e estratégias de<br />

marketing por trás desse trabalho. Por<br />

isso tudo, cautela. Na<strong>da</strong> de começar<br />

a prescrever um novo medicamento<br />

antes que se tenham <strong>da</strong>dos de literatura<br />

de boa quali<strong>da</strong>de, com população<br />

de pacientes representativa <strong>da</strong><br />

amostra que freqüenta seu local de<br />

atendimento e de se conhecer bem<br />

os riscos dessa prática. Afinal, os que<br />

sempre levam a pior nos casos de<br />

“furor terapêutico” são os pacientes.<br />

E em que medi<strong>da</strong> os novos medicamentos<br />

(em sentido amplo – anti<br />

­hipertensivos, anti­inflamatórios,<br />

antibióticos, antidepressivos, antipsicóticos,<br />

antiarrítmicos, ansiolíticos<br />

e outros) representam ver<strong>da</strong>deiro<br />

progresso? Presume-se, entre<br />

os pesquisadores, que somente 5 a<br />

10 por cento deles oferecem ganhos<br />

terapêuticos genuínos e que apenas<br />

1 por cento proporciona ganho<br />

terapêutico realmente importante,<br />

representando assim algo inovador 2 .<br />

Por outro lado, ter no mercado tantos<br />

medicamentos quanto possível<br />

continuará sendo necessário até que<br />

o conhecimento sobre a neurobiologia<br />

dos transtornos mentais permita<br />

abor<strong>da</strong>gem farma cológica mais específica<br />

e definitiva.<br />

Se no campo <strong>da</strong> psiquiatria clínica<br />

há que se estar sempre atento à influência<br />

financeira e merca dológica, na<br />

prática cotidiana – afinal os clientes <strong>da</strong><br />

indústria farmacêutica são os médicos<br />

e não os pacientes, no <strong>da</strong> psiquiatria<br />

social é preciso cui<strong>da</strong>do com as interferências<br />

político-ideológicas. Hoje<br />

em dia, muito se fala a respeito <strong>da</strong><br />

reforma <strong>da</strong> assistência psiquiátrica.<br />

E com relação ao que tem sido feito<br />

e ao modo como isso tem ocorrido é<br />

difícil evitar analogia com uma antiga<br />

anedota – Um policial encontra um<br />

sujeito ro<strong>da</strong>ndo em volta de um poste<br />

de luz, procurando alguma coisa no<br />

chão, e pergunta o que aconteceu.<br />

Ele responde que perdeu as chaves<br />

de casa. O policial então pergunta se<br />

foi por ali que ele acha que as perdeu,<br />

ao que o sujeito responde: “Não, foi<br />

a uns três quarteirões <strong>da</strong>qui!”. Ao<br />

escutar isso, o policial, espantado,<br />

questiona o porquê dele estar procurando<br />

as chaves ali, debaixo do poste<br />

de luz, apenas para escutar que não<br />

haveria o menor sentido procurar na<br />

escuridão se nem na luz ele as está<br />

encontrando.<br />

São evidentes que os macrohospitais<br />

psiquiátricos como também<br />

os serviços psiquiátricos de má quali<strong>da</strong>de<br />

têm que ser fechados e que<br />

os CAPS representaram um avanço<br />

no atendimento dos pacientes com<br />

transtornos mentais. Mas acreditar<br />

que os últimos substituirão os primeiros<br />

com sucesso é, no mínimo,<br />

ingenui<strong>da</strong>de e no máximo, incompetência.<br />

Por isso, também se fazem<br />

necessários cautela, bom senso e<br />

visão desapaixona<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa reali<strong>da</strong>de.<br />

Os psiquiatras brasileiros<br />

já têm maturi<strong>da</strong>de suficiente para<br />

tolerar o desconforto gerado pela<br />

dúvi<strong>da</strong>, pela ambigüi<strong>da</strong>de e conseqüente<br />

insegurança diante <strong>da</strong> tarefa<br />

que têm pela frente: participar mais<br />

ativamente dessa mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> as-<br />

sistência. Como fazer reforma <strong>da</strong><br />

assistência psiquiátrica sem a participação<br />

dos psiquiatras? Quem além<br />

deles possui capacitação para propor<br />

serviços substitutivos como uni<strong>da</strong>des<br />

psiquiátricas em hospital geral, leitos<br />

psiquiátricos em enfermarias comuns<br />

de hospitais gerais ou especializados,<br />

serviços de inter consulta, emergência<br />

psiquiátrica e assistência psiquiátrica<br />

de urgência em Pronto Socorro Geral,<br />

Hospital-dia e retaguar<strong>da</strong> aos colegas<br />

do Programa de Assistência à Família?<br />

Por maior que seja a boa vontade<br />

<strong>da</strong>s equipes que constituem os vários<br />

CAPS (I,II,II, i e ad), elas não dão e<br />

nunca <strong>da</strong>rão conta do atendimento<br />

integral do paciente com transtorno<br />

mental nas suas diferentes fases<br />

(intervenção em crise agu<strong>da</strong>, intercorrências<br />

clínicas, manutenção e<br />

reabilitação). Já há inclusive relatos<br />

de pacientes que estão cronificando<br />

em alguns CAPS 3 .<br />

No XXIII Congresso Brasileiro<br />

de Psiquiatria, em Belo Horizonte,<br />

muitas dessas questões serão discuti<strong>da</strong>s.<br />

Espera-se que tais discussões<br />

cheguem a bom termo. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

os maiores beneficiários serão os<br />

pacientes.<br />

1 Professor do Programa de Pós-graduação em<br />

Saúde Mental <strong>da</strong> FMRP (USP); Tesoureiro­adjunto<br />

<strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />

2 Professor-adjunto do Departamento de Psiquiatria<br />

e Medicina Legal (UFRJ); Presidente <strong>da</strong><br />

<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />

3 Professor aposentado de Psiquiatria <strong>da</strong> UnB;<br />

Professor de Psiquiatria <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Medicina<br />

do Planalto Central e Vice Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />

Brasileira de Psiquiatria<br />

Referências bibliográficas<br />

1. Kuhn TS. The structure of scientific revolutions,<br />

3 rd edition. The University of Chicago Press, 1996.<br />

2. Healey D. The antidepressant era. Harvard<br />

University Press, 1997.<br />

3. França JMF. Serviços substitutivos: o que já<br />

temos e o que é preconizado. Apresentado na<br />

Jorna<strong>da</strong> de Psiquiatria <strong>da</strong> Região Norte, 2004.<br />

PÁGINA 5


Em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 uma<br />

amiga, no final <strong>da</strong> sua adolescência,<br />

teve uma crise psicótica. Soube, na<br />

ocasião, que ela havia sido interna<strong>da</strong><br />

no “Juqueri” (1) . O fato foi comentado<br />

a boca pequena, logo não se falou<br />

mais no assunto e nunca mais tive<br />

notícias dela. Recentemente, ao<br />

atender um jovem em seu primeiro<br />

episódio psicótico, seu tio que o<br />

acompanhava, identificou­se como<br />

parente <strong>da</strong> família <strong>da</strong>quela amiga <strong>da</strong><br />

déca<strong>da</strong> de 50. A pergunta sobre ela<br />

foi inevitável. Fiquei sabendo que ela<br />

continua interna<strong>da</strong> até hoje, após 50<br />

anos. Foram feitas algumas tentativas<br />

de levá­la para casa, mas, cronifica<strong>da</strong>,<br />

não sabia mais viver fora do hospital.<br />

Com a descoberta <strong>da</strong> ação antipsicótica<br />

<strong>da</strong> clorpromazina, em 1952, a<br />

prática psiquiátrica, de que “não havia<br />

na<strong>da</strong> a fazer”, a não ser a internação<br />

em grandes asilos, começou a mu<strong>da</strong>r.<br />

À medi<strong>da</strong> que pessoas com esquizofrenia<br />

passaram a melhorar dos surtos<br />

com os antipsicóti cos, novas hipóteses<br />

sobre a causali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> esquizofrenia<br />

começaram a surgir. Hipóteses como<br />

a “posição esquizo-paranóide”, de<br />

Melanie Klein “<strong>da</strong> mãe esquizofrenogênica”,<br />

de Fri<strong>da</strong> Fromm-Reichman;<br />

“do duplo-vínculo”, de Bateson; foram<br />

substituí<strong>da</strong>s pela hipótese <strong>da</strong> hiperfunção<br />

dopaminérgica de Carlson e<br />

Lundqvist.<br />

Na déca<strong>da</strong> de 1960 surgem por<br />

todo o Brasil, inúmeros hospitais<br />

psiquiátricos privados, em grades<br />

áreas <strong>da</strong> periferia, conveniados com<br />

a previdência social, com a finali<strong>da</strong>de<br />

de internar e tratar com os novos<br />

psicofármacos, as mais diversas manifestações<br />

<strong>da</strong> patologia psiquiátrica.<br />

Já não são asilos tão grandes, mas<br />

ain<strong>da</strong> dimensionados para 400 a 500<br />

leitos. Os bons hospitais incorporam<br />

os conhecimentos sobre “comuni<strong>da</strong>des<br />

terapêuticas”, de Maxwell Jones, e<br />

contratam equipes multidisciplinares.<br />

Boa parte dos hospitais passa a tratar<br />

os pacientes, além dos psicofármacos,<br />

com técnicas grupais, principalmente<br />

a dos “grupos operativos”, divulga<strong>da</strong><br />

por Pichon-Rivière, <strong>da</strong> Argentina.<br />

No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, estavam<br />

internados no “Juqueri”, em<br />

São Paulo, cerca de 16 mil pacientes!<br />

Contra situações como essa surgiu o<br />

movimento <strong>da</strong> “antipsiquiatria”, de<br />

Laing, Cooper e Szasz. Esse movimento<br />

negava a existência <strong>da</strong> doença<br />

psiquiátrica, particularmente <strong>da</strong> esquizofrenia,<br />

(1) Como era conhecido o<br />

Hospital Psiquiátrico Franco <strong>da</strong> Rocha,<br />

o maior hospital psiquiátrico do Estado<br />

de São Paulo durante a maior parte<br />

PÁGINA 6<br />

Divergências em psiquiatria<br />

do Século XX.<br />

Afirmando que a socie<strong>da</strong>de é que<br />

produzia e discriminava “os loucos”<br />

e contra-indicava a internação e o<br />

tratamento farmacológico. No todo,<br />

o movimento mostrou-se equivocado,<br />

mas teve o mérito de chamar a atenção<br />

sobre a segregação e a discriminação<br />

do portador de transtorno psiquiátrico,<br />

bem como <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se incluir<br />

a família no tratamento.<br />

A déca<strong>da</strong> de 1980 caracterizou-se<br />

pelas pesquisas em neuroimagem<br />

estrutural <strong>da</strong> esquizofrenia por Johnstone,<br />

Crow e Andreasen. Verificou­se<br />

que, além de alterações neuroquímicas,<br />

alterações biológicas e estruturais<br />

também estavam presentes nos<br />

quadros psicóticos.<br />

Um fato particular, nessa déca<strong>da</strong>,<br />

merece ser citado. Em 1983 Marcos P.<br />

T. Ferraz assumiu a Coordenadoria de<br />

Saúde Mental do Estado de São Paulo,<br />

justamente quando a grande imprensa<br />

noticiou com alarde a morte, por<br />

queimadura de sol, de uma paciente<br />

interna<strong>da</strong> no “Juqueri”. Marcos Ferraz<br />

criou uma comissão de sindicância na<br />

qual eu, então Chefe do Departamento<br />

de Psiquiatria <strong>da</strong> Escola Paulista de<br />

Medicina, fui incluído. A comissão<br />

verificou que a senhora que morrera<br />

havia passado o dia todo deita<strong>da</strong> no<br />

páteo, nua, sob o sol inclemente de<br />

verão. Ela estava interna<strong>da</strong> num<br />

pavilhão chamado de “pavilhão <strong>da</strong>s<br />

nudistas”. Estavam interna<strong>da</strong>s há 20,<br />

30 anos, haviam cronificado, ficavam<br />

nuas rasgando suas roupas, já não<br />

sabiam e não tinham mais o hábito<br />

de usar vestimentas. Foi a primeira<br />

vez que voltei a me perguntar se a<br />

minha amiga ain<strong>da</strong> estaria viva, lá<br />

no “Juqueri”. Na ocasião, a comissão<br />

verificou, ao abrir as portas dos quartos<br />

fortes, a existência de pacientes,<br />

agachados em posição catatônica,<br />

alheios à sua própria existência. Marcos<br />

Ferraz proibiu o uso dos quartos<br />

fortes, mas a cultura <strong>da</strong> enfermagem<br />

estava tão enraiza<strong>da</strong> que em qualquer<br />

nova agitação, os pacientes eram<br />

reconduzidos para lá. Num gesto “a<br />

Pinel”, Marcos Ferraz mandou retirar as<br />

portas dos quartos fortes para que não<br />

mais fossem utilizados. Penso, então,<br />

que foi Marcos Ferraz quem começou<br />

a primeira reforma psiquiátrica em<br />

São Paulo, instalando em sua gestão,<br />

mais de 100 equipes básicas de saúde<br />

mental, compostas por psiquiatra, assistente<br />

social, psicólogo e enfermeiro,<br />

em postos e centros de saúde, ambulatorizando<br />

o atendimento psiquiátrico<br />

e integrando­o com profissionais de<br />

outras especiali<strong>da</strong>des médicas. Cito<br />

Itiro Shirakawa<br />

Marcos Ferraz, na parte pragmática,<br />

sem esquecer de sua formação em<br />

que levou em conta ensinamentos de<br />

Franco <strong>da</strong> Rocha e de Luiz Cerqueira,<br />

entre outros.<br />

Em 1985, fiz um curto estágio em<br />

Chicago. Conheci instituições dedica<strong>da</strong>s<br />

à reabilitação de portadores de esquizofrenia.<br />

Começavam com ativi<strong>da</strong>des<br />

protegi<strong>da</strong>s e após 2 a 3 anos no programa<br />

eram alocados em moradias que<br />

eles mesmos administravam. Existiam<br />

várias moradias compartilha<strong>da</strong>s por vários<br />

portadores de esquizofrenia. Muitos<br />

moravam em prédios, em pequenos<br />

apartamentos, individualmente. Assustado,<br />

perguntei se eles não temiam que<br />

aqueles que moravam individualmente<br />

poderiam suici<strong>da</strong>r-se. Um dos técnicos<br />

me respondeu que era um risco que valia<br />

à pena correr. Voltando ao Brasil, narrei<br />

em minhas palestras a experiência<br />

vivi<strong>da</strong>. Já na déca<strong>da</strong> de 1990 vi surgir<br />

o primeiro CAPS, em São Paulo, criado<br />

pr Ana Pitta. Um dia, numa palestra,<br />

Ana Pitta disse que se inspirara no meu<br />

relato feito em uma palestra. Não pude<br />

deixar de sentir uma satisfação íntima.<br />

A déca<strong>da</strong> de 1990 foi chama<strong>da</strong><br />

pela APA (associação estadunidense<br />

de psiquiatria) como “a déca<strong>da</strong> do<br />

cérebro”. A literatura foi inun<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

trabalhos de neuroimagem funcional<br />

e sua correlação com a neuropsicologia<br />

em esquizofrenia. Estudos com<br />

genética, com crianças de risco, não<br />

deixam mais dúvi<strong>da</strong>s quanto à origem<br />

biológica <strong>da</strong> esquizofrenia. Em 1989<br />

a clozapina foi reabilita<strong>da</strong> por John<br />

Kane como arma poderosa para o<br />

tratamento <strong>da</strong> esquizofrenia.A reabilitação<br />

<strong>da</strong> clozapina deu origem ao<br />

surgimento de novos antipsicóticos,<br />

chamados de antipsicóticos de segun<strong>da</strong><br />

geração, com a mesma eficácia dos<br />

de primeira geração, mais seguros,<br />

com menos efeitos colaterais, mais<br />

toleráveis e confortáveis para o tratamento<br />

<strong>da</strong> esquizofrenia. No Brasil,<br />

os CAPS foram multiplicando-se, o<br />

tratamento psiquiátrico passou a ser<br />

mais ambulatorial, foram surgindo os<br />

grupos de auto-aju<strong>da</strong>, após o pioneiro<br />

Projeto Fênix criado por Luiz Barros,<br />

em São Paulo. E, graças aos grupos<br />

de auto-aju<strong>da</strong>, os antipsicóticos de<br />

segun<strong>da</strong> geração passaram a ser<br />

disponibilizados pela rede pública na<br />

vira<strong>da</strong> do século XX para o XXI.<br />

Em 1993, por ocasião do congresso<br />

Mundial de Psiquiatria, realizado no<br />

Rio de Janeiro, havia no Brasil cerca<br />

de 85 mil leitos psiquiátricos. Hoje<br />

há cerca de 45 mil leitos psiquiátricos.<br />

Nestes pouco mais de 10 anos,<br />

equipamentos tipo CAPS vêm sendo<br />

criados pelo Brasil todo. Hoje, privilegia-se<br />

o tratamento ambulatorial, a<br />

desinternação, o hospital dia, a criação<br />

de moradias. Ao lado <strong>da</strong>s conquistas<br />

<strong>da</strong> psicofarmacologia, deve-se propiciar<br />

um tratamento psicossocial ao<br />

portador de transtorno psiquiátrico,<br />

particularmente de psicose crônicas,<br />

que permita sua inclusão social, dentro<br />

de uma concepção ver<strong>da</strong>deiramente<br />

biopsicossocial. Finalmente, a WPA<br />

(<strong>Associação</strong> psiquiátrica Mundial)<br />

lançou o programa antiestigma <strong>da</strong><br />

esquizofrenia, que está sendo conduzido<br />

no Brasil por Cecília Villares,<br />

mostrando que tais pessoas não devem<br />

ser segre ga<strong>da</strong>s ou discrimina<strong>da</strong>s<br />

e têm direito à inclusão no mercado<br />

de trabalho.<br />

Termino minhas considerações com<br />

uma reflexão. Sem dúvi<strong>da</strong> nenhuma,<br />

os avanços <strong>da</strong> psicofarmacolo gia<br />

permitiram a ambulatorização <strong>da</strong><br />

psiquiatria. Os grandes asilos estão<br />

deixando de existir. Felizmente hoje,<br />

no “Juqueri”, após 30 anos, o número<br />

de internações caiu de 16 mil para menos<br />

de 2 mil. É inconcebível pensar-se<br />

em internações de 20, 30 anos ou para<br />

a vi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> em grandes asilos. Mas<br />

há necessi<strong>da</strong>de de um equilíbrio nas<br />

ações governamentais em Programas<br />

de Saúde Mental. Espero que haja<br />

um estudo para a manutenção de um<br />

número mínimo de leitos psiquiátricos,<br />

para internações de casos agudos, por<br />

pouco tempo, nas diversas regiões<br />

do país. Para tanto, deve-se levar<br />

em conta os estudos epidemiológicos<br />

sobre a incidência e prevalência dos<br />

transtornos psiquiátricos, de que é<br />

impossível evitar que ocorram casos<br />

novos, agudos.<br />

A minha experiência não é de<br />

um epidemiologista. É de um clínico<br />

que está exercendo a psiquiatria<br />

há quase quatro déca<strong>da</strong>s. E, neste<br />

momento, constato. pesaroso, que<br />

famílias voltam a trancar seu parente,<br />

portador de transtorno psicótico em<br />

reagudização, em pequenos quartos.<br />

Tal fato vem ocorrendo por uma política<br />

radical de desospitalização, <strong>da</strong><br />

volta <strong>da</strong> psicologização do transtorno<br />

psiquiátrico ou até mesmo por razões<br />

econômicas. Famílias desprepara<strong>da</strong>s<br />

recebem um salário mínimo para ficar<br />

com seu parente em casa. Como<br />

precisam sobreviver, trancam-no em<br />

casa. Situação que vivenciei no início<br />

de minha carreira, há 40 anos....<br />

Coordenador <strong>da</strong> Comissão Científica do XXIII CBP


A proposta de discussão sobre<br />

uma nova clínica, sobre novas<br />

instituições e sobres novas intervenções,<br />

tema escolhido para o<br />

próximo Congresso Brasileiro de<br />

Psiquiatria a realizar-se em Belo<br />

Horizonte, em outubro de 2005 não<br />

me parece tarefa fácil. Vivemos em<br />

um mundo insanamente moderno,<br />

com uma valorização absoluta dos<br />

resultados imediatos, somando-se<br />

a progressiva desvalorização dos<br />

contatos humanos. Como então<br />

articular o conceito <strong>da</strong>s novas diretrizes<br />

psiquiátricas se o novo se<br />

renova a ca<strong>da</strong> dia? A Psiquiatria não<br />

se salvou, pelo contrário, arrastase<br />

na degra<strong>da</strong>ção progressiva <strong>da</strong>s<br />

relações médico-paciente e assiste<br />

ain<strong>da</strong>, com alguma distância, a luta<br />

de sobrevivência de colegas médicos<br />

de outras especiali<strong>da</strong>des com os<br />

gestores dos planos de saúde. Infelizmente,<br />

muitas vezes pensa-se o<br />

novo em detrimento do velho, como<br />

se o renovar fosse algo totalmente<br />

desvencilhado do antigo. De acordo<br />

com o Dicionário Aurélio, o novo<br />

poderia ser conceituado como “o<br />

que tem pouco tempo de existência,<br />

o de pouca i<strong>da</strong>de, o que ain<strong>da</strong> não<br />

foi posto em uso, o recente, o original”.<br />

É neste ultimo que poderíamos<br />

ancorar os objetivos em relação às<br />

novas diretrizes determina<strong>da</strong>s pelo<br />

tema. Nos interessa e muito discutir<br />

com diferentes especialistas, aprender<br />

com eles, trocar experiências<br />

sem, entretanto, nos esquecermos<br />

do engano <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des absolutas,<br />

váli<strong>da</strong>s para todos, aquelas que desconsideram<br />

o particular <strong>da</strong> clínica<br />

do caso a caso, onde o original, o<br />

peculiar de ca<strong>da</strong> um está falseado ou<br />

mesmo completamente encoberto.<br />

O mundo globalizado tornou-se<br />

pequeno, rápido, de fácil acesso, o<br />

outro, o diferente, as outras culturas<br />

nos chegam quase instantaneamente<br />

via Internet. As conseqüências<br />

desta rapidez on-line, maravilhosa<br />

do ponto de vista científico e tecnológico,<br />

já se apresenta com efeitos<br />

desastrosos na clínica. Como exemplo,<br />

cito a cruel<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s conversas<br />

via internet e a exposição posterior<br />

destas mesmas falas em salas de<br />

aula por adolescentes, tema já de<br />

diversos trabalhos e reportagens ou<br />

ain<strong>da</strong> e talvez mais desumano as<br />

dicas de adolescentes em como se<br />

tornar anorética ou como se suici<strong>da</strong>r,<br />

As novas e as falsas diretrizes<br />

Luciana Carvalho<br />

encontra<strong>da</strong>s em vários sites. Aqui,<br />

o novo é o novo mesmo, entendido<br />

como aprender a li<strong>da</strong>r com situações<br />

antes inexistentes.<br />

A nova clínica, lugar privilegiado<br />

para o embate com a dura reali<strong>da</strong>de<br />

do exercício profissional, marca<strong>da</strong><br />

por situações inespera<strong>da</strong>s, situações<br />

de risco, melhoras importantes na<br />

quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> de nossos pacientes,<br />

nos dá credibili<strong>da</strong>de, nos salva<br />

<strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de contemporânea,<br />

nos aproxima do ideal hipo crático<br />

(“onde existir amor pelo ho mem,<br />

existirá amor pela arte mé dica”). Na<br />

apresentação de casos clínicos, nas<br />

conferências, nas discussões <strong>da</strong>s<br />

mesas redon<strong>da</strong>s, na apresentação<br />

de trabalhos realizados, nas sessões<br />

de pôsteres, o Psiquiatra, jovem ou<br />

velho, se renova, se atualiza, se<br />

alimenta <strong>da</strong>queles que valorizam a<br />

cena do atendimento.<br />

Nunca se pesquisou tanto o funcionamento<br />

cerebral, as técnicas<br />

de neuroimagem, a neurobiologia<br />

molecular, os estudos poligênicos,<br />

cujas descobertas devemos utilizar<br />

sempre que possível, pois cumprem<br />

o papel de uma ciência promissora<br />

que aposta na melhoria <strong>da</strong> saúde<br />

e desmistifica antigas culpas antes<br />

outorga<strong>da</strong>s as famílias e ao próprio<br />

paciente “não melhora porque<br />

não quer”, é assim por causa <strong>da</strong><br />

maneira que foi criado “etc. Estes<br />

novos conhecimentos são bastante<br />

promissores, alguns ain<strong>da</strong> só ao<br />

nível de pesquisas e outros tais<br />

como os novos psicofármacos já<br />

nos permitem melhoras altamente<br />

significativas no controle dos<br />

sintomas e minimização de efeitos<br />

colaterais, aumentando a tolerabili<strong>da</strong>de<br />

e a adesão dos pacientes<br />

aos tratamentos. Várias áreas do<br />

cérebro, antes pouco conheci<strong>da</strong>s<br />

tornaram-se importantes com os<br />

avanços decorrentes dos métodos<br />

de imagem. Assim, pela primeira vez<br />

foi possível estu<strong>da</strong>r em um indivíduo<br />

vivo a anatomia do seu sistema<br />

nervoso central. Estas técnicas<br />

vêm se desenvolvendo e a ca<strong>da</strong><br />

dia se tornam mais sofistica<strong>da</strong>s.<br />

A tomografia computadoriza<strong>da</strong>, a<br />

ressonância nuclear magnética e a<br />

tomografia por emissão de pósitrons<br />

revolucionaram a propedêutica<br />

neurológica, uma importante área<br />

de diagnóstico diferencial com a<br />

Psiquiatria. As técnicas recentes<br />

de ativação, onde a captação de<br />

glicose pelo neurônio é proporcional<br />

a sua ativi<strong>da</strong>de nos aponta como<br />

uma <strong>da</strong>s mais promissoras áreas<br />

de compreensão <strong>da</strong> fisiopatologia<br />

do sistema nervoso. Espera-se um<br />

amplo debate tanto em nível de<br />

métodos de investigação diagnóstica<br />

como de recursos terapêuticos<br />

com o rigor necessário ao exercício<br />

de uma clínica ética, limita<strong>da</strong> pelos<br />

altos custos dos procedimentos<br />

técnicos em um país marcado pelo<br />

descrédito e insensibili<strong>da</strong>de dos<br />

governantes em relação à saúde<br />

<strong>da</strong> população”.<br />

Na era pós reforma psiquiátrica,<br />

temos de garantir o local <strong>da</strong> assistência,<br />

já amplamente problema tiza<br />

do anteriormente. Sabemos que<br />

a opção pelos tratamentos ambu latoriais<br />

é sempre menos traumática e<br />

onerosa, mas nem sempre possí vel.<br />

As situações de emergência<br />

variam caso a caso, deman<strong>da</strong>m<br />

intervenções diferentes. O idoso<br />

sempre deverá ser avaliado clinicamente,<br />

as crianças quase sempre<br />

ficam mais calmas na presença dos<br />

pais, os adolescentes pelo contrário,<br />

agitam e agridem os familiares. As<br />

situações são diversas e as soluções<br />

nem sempre muito complica<strong>da</strong>s.<br />

Uma boa equipe, um local seguro<br />

e disponibili<strong>da</strong>de de medicamentos<br />

é sinônimo de um bom manejo.<br />

Entretanto, não é só o paciente<br />

que está em crise, pois há uma<br />

ruptura do equilíbrio doméstico.<br />

Sabendo-se que o fracasso ou o<br />

sucesso do tratamento depende<br />

<strong>da</strong> adesão familiar, esta deverá ser<br />

acolhi<strong>da</strong> com a mesma prontidão<br />

sempre que estiver presente. Mas<br />

tratar a crise não basta, já que a<br />

aceitação dos sintomas residuais e<br />

<strong>da</strong> tolerância dos efeitos colaterais<br />

medicamentosos constitui ain<strong>da</strong><br />

um grande desafio. Como reabilitar<br />

para a produtivi<strong>da</strong>de, para a manutenção<br />

dos antigos laços sociais e a<br />

construção dos novos? Talvez aqui<br />

o novo se imponha, no sentido <strong>da</strong><br />

invenção de estratégias criativas,<br />

econômicas e lúdicas, que possam<br />

garantir o exercício pleno <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

de se viver dignamente, apesar<br />

do transtorno mental.<br />

Psiquiatra infantil, Prof. <strong>da</strong> Residência de Psiquiatria<br />

Infantil <strong>da</strong> FHEMIG; Membro <strong>da</strong> Comissão<br />

Científica <strong>da</strong> XXIII CDP.<br />

PÁGINA 7


Alguns movimentos contemporâneos se<br />

deram conta de que na Psiquiatria o consenso<br />

não é fácil. Trouxeram a tona uma<br />

crítica positivista ao discurso psiquiátrico,<br />

propondo que o mesmo se reduzisse a<br />

uma espécie de língua bem fala<strong>da</strong>, taxonômica,<br />

sob as bases de uma simplificação<br />

a-teórica, desprovi<strong>da</strong> <strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de teórica<br />

basea<strong>da</strong> na filosofia. Acusa<strong>da</strong> de imprecisão,<br />

a Psiquiatria Clássica, viu aportar no<br />

seu âmago o ideal cientificista, fez parceria<br />

com a biologia e com a epidemiologia. Mas<br />

será que assim poderíamos apostar numa<br />

espécie de vale-tudo, onde o que conta é<br />

a eficiência e a eficácia <strong>da</strong> prática?<br />

A idéia de que a Psiquiatria do discurso<br />

morreu ou morrerá faz com que vivamos<br />

diante de um caos irredutível. Curioso.<br />

Atualmente a nossa crise quer saber qual<br />

o marco teórico que nos concerne e se a<br />

neurociência nos salvará <strong>da</strong> imprecisão<br />

conceitual, e colocará fim aos erros <strong>da</strong><br />

prática clínica e reduzirá to<strong>da</strong> disfunção<br />

causal. Estaria decretado o fim de to<strong>da</strong><br />

crise? Impossível deixar de reconhecer que<br />

apesar de tanta pretensão, a crise nunca<br />

passa, mas, sustentamos que mesmo no<br />

reino do caos há inércia ou oportunismo em<br />

que diz que não é possível distinguir o certo<br />

do errado, ou que não se pode distinguir a<br />

Psiquiatria do que não é Psiquiatria. Devemos<br />

acreditar que o pensamento reflexivo<br />

e crítico pode nos <strong>da</strong>r direção, construirá<br />

a Psiquiatria como práxis, permitindo uma<br />

reflexão sobre o papel e a prática.<br />

Pensar é ansioso e onde a ansie<strong>da</strong>de está<br />

ausente não se pode fazer existir a Psiquiatria.<br />

O pensar reflexivo e a ansie<strong>da</strong>de são<br />

PÁGINA 8<br />

Diretrizes instáveis<br />

Hélio Lauar<br />

produtos de um mal-estar provocado por<br />

uma práxis em permanente crise, instável,<br />

questionável e capaz de questionar Se ela<br />

passa a ser aceita e a dispensar justificativas,<br />

se tornando estabeleci<strong>da</strong> e inquestionável,<br />

ela deixa de ser um Psiquiatria de<br />

quali<strong>da</strong>de. Na Psiquiatria importa menos<br />

o seu último produto e mais o que a problemática<br />

e as questões levanta<strong>da</strong>s pelos<br />

seus processos de criação legou ao estado<br />

<strong>da</strong> arte. Psiquiatria é essencialmente um<br />

processo, e é esse processo que lhe confere<br />

seu significado e valor. Em Psiquiatria,<br />

como na filosofia grega, pensar é agir. A<br />

Psiquiatria deve ser toma<strong>da</strong> portando como<br />

um modo reflexivo de ação, e este processo<br />

é capaz de criar uma consciência histórica<br />

e de orientar eticamente to<strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de. Ë<br />

justamente esta instabili<strong>da</strong>de que permite<br />

a ela ser rigorosa.<br />

Não existe Psiquiatria estabeleci<strong>da</strong> ou<br />

inquestionável. Ou se é Psiquiatria ou se é<br />

inquestionável. Não se pode pretender os<br />

dois lugares. É constrangedor a mera repetição<br />

de modelos consagrados no passado<br />

como modelos de conformi<strong>da</strong>de, rebeldia,<br />

ou inovação, sem a devi<strong>da</strong> critica a estas<br />

formas e ao seu tempo. A Psiquiatria deve<br />

estar sempre pronta a <strong>da</strong>r respostas aos<br />

problemas do seu tempo, e para isso deve<br />

saber romper com o pré estabelecido, e<br />

aprender a observar o presente. O novo é<br />

antes de tudo uma ampliação, que transforma<br />

a Psiquiatria e o próprio Psiquiatra,<br />

num ritmo de descontinui<strong>da</strong>de permanente,<br />

onde o passado é apenas um referente.<br />

De na<strong>da</strong> adianta repetir conforma<strong>da</strong>mente<br />

o mesmo que já foi feito ou dito para se<br />

garantir pertencimento e aprovação corporativa.<br />

É preciso escrever de um jeito<br />

diferente, de um jeito ain<strong>da</strong> desconhecido,<br />

e ain<strong>da</strong> assim contribuir para a escrita <strong>da</strong><br />

Psiquiatria como um universal compartilhado,<br />

sem se desviar. Assim é preciso<br />

contribuir para uma ver<strong>da</strong>deira guerra de<br />

idéias, fazendo parte de um contexto social,<br />

cultural e histórico determinado. Aquele<br />

que se agarra ao estabelecido, como uma<br />

bóia de salvação, numa tentativa de se<br />

furtar à crise, ignora a história. A grandeza<br />

de uma época está em não permitir que a<br />

Psiquiatria confronta<strong>da</strong> com a ansie<strong>da</strong>de e<br />

com a instabili<strong>da</strong>de que lhe caracterizam,<br />

prefira <strong>da</strong>r meia volta e recorrer, ain<strong>da</strong> que<br />

sem saber, à segurança degenerativa <strong>da</strong>s<br />

coisas estabeleci<strong>da</strong>s.<br />

Porque apostar em diretrizes para a<br />

psiquiatria, se to<strong>da</strong> diretriz é instável e<br />

portanto, transitória? Uma diretriz é sempre<br />

uma Utopia, um ideal político e social de<br />

difícil ou impossível realização. É preciso<br />

confiar à Utopia, tal como Conte, a tarefa<br />

de melhorar as instituições políticas e de<br />

desenvolver a idéias científicas. Ela não<br />

pode se constituir num modelo teórico que<br />

se presta meramente a comparar intervenções<br />

e seus resultados, medindo nelas o<br />

bem e mal que elas contem. Ela deve se<br />

construir como expressão instável de um<br />

grupo social, pronto para transformá-la,<br />

se opondo a ideologia que produz ver<strong>da</strong>de<br />

onde há não saber. Ao contrário <strong>da</strong> ideologia,<br />

a Utopia deve guar<strong>da</strong>r para si a sua<br />

condição de irrealizável, e nesse sentido o<br />

fun<strong>da</strong>mento de uma constante renovação.<br />

Utopia é correção, mas não deve ser redu-


zi<strong>da</strong> a uma aspiração, a um sonho genérico,<br />

uma apologia do ideal que se distancia <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>. Ela deve se empenhar<br />

em ser uma força transfor-madora <strong>da</strong><br />

própria reali<strong>da</strong>de e dos seus mecanismos<br />

de estagnação. Na antigui<strong>da</strong>de, cruzar o<br />

Rio Rubicão era atravessar <strong>da</strong> Itália para<br />

a Gália Cisalpina. Daí a idéia de que a<br />

to<strong>da</strong> travessia é uma ultrapassagem, uma<br />

descontinuação, um rompimento, um novo<br />

caminho assumido. Ultrapassado o umbral<br />

na<strong>da</strong> mais será o mesmo, nem a reali<strong>da</strong>de<br />

nem aquele que a transformou. Uma diretriz<br />

deve enfrentar o obstáculo, o que impede<br />

ou dificulta o movimento ou progresso <strong>da</strong><br />

práxis. Atravessar o rubicão. Ela deve ser<br />

o ato que ultrapassa o umbral, o rubicão, e<br />

que ganha corpo e consistência, no desejo<br />

inovador e na ação que busca os meios<br />

desta renovação. Ultrapassar é uma decisão<br />

revolucionária, ato de insubordinação<br />

com o enfrentamento <strong>da</strong>s consequências<br />

que podem <strong>da</strong>í advir.<br />

Uma diretriz, assim pensa<strong>da</strong>, é uma<br />

construção político-social utópica que visa<br />

transformar a instituição psiquiatria, e o<br />

próprio psiquiatra, de modo a torna-los<br />

capazes de responder às questões do seu<br />

tempo. To<strong>da</strong> resposta é o possível, o fruto<br />

<strong>da</strong> escolha do momento na intercessão de<br />

discursos, um calculo baseado no modelo<br />

e não o modelo em si mesmo. Um modelo<br />

é a potência para a ação e o acolhimento<br />

ético do seu efeito.<br />

Apontar uma diretriz é tentar responder<br />

a pergunta: que ética para a Psiquiatria? Ao<br />

trabalhamos esta questão, nos <strong>da</strong>mos conta<br />

que é preciso pensar a ética para além <strong>da</strong><br />

ética corporativa, queremos a Ética como<br />

um norte, uma diretriz para a clínica, para<br />

os trabalhos institucionais, e intervenções<br />

em geral. Poderíamos retomar o debate<br />

entre a virtude e a moral para nos aproximar<br />

do tema, tal como ele é tratado pela<br />

filosofia, como uma ciência <strong>da</strong> conduta.<br />

Existem duas concepções fun<strong>da</strong>mentais<br />

para esta ciência: a primeira que a considera<br />

ciência do fim que norteia a conduta<br />

dos homens, e dos meios para atingir tal<br />

fim; e a segun<strong>da</strong>, que a considera como<br />

ciência do móvel <strong>da</strong> conduta humana e<br />

procura determinar esse móvel com vistas<br />

a determinar ou disciplinar a mesma<br />

conduta. Estas duas concepções fazem<br />

interagir o mundo antigo e o moderno, e<br />

falam linguagens diferentes e diversas. A<br />

primeira fala a linguagem do ideal a que<br />

o homem está dirigido pela sua natureza,<br />

e por conseguinte, fala <strong>da</strong> sua essência. A<br />

segun<strong>da</strong> fala dos motivos, <strong>da</strong>s causas, ou<br />

forças que determinam o homem, e pretende<br />

ater-se ao conhecimento dos fatos.<br />

A confusão que lhes permeia se atém ao<br />

tratamento que dão ao bem. Justamente<br />

aí é que as concepções de Ética demarcam<br />

suas maiores e significativas diferenças.<br />

A análise <strong>da</strong> concepção do bem demonstra<br />

pelo menos duas grandes concepções<br />

distintas: a noção do bem como reali<strong>da</strong>de<br />

perfeita, ideal ou a noção do bem como<br />

objeto do desejo.<br />

Em 1992, A<strong>da</strong>uto Novaes organizou<br />

uma coletânea sobre Ética, na qual se<br />

perguntava como pensa-la a partir <strong>da</strong>s<br />

contradições de um mundo que produz<br />

uma ciência e seus intelectuais dedicados<br />

a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo<br />

tempo, princípios de vi<strong>da</strong> e armas de morte;<br />

progressos nas comunicações e mecanismos<br />

sutis e aberrantes de censura? Eis as<br />

questões: falso bem, falsa justiça, falsa<br />

liber<strong>da</strong>de, falsa virtude que, ao criarem o<br />

homem <strong>da</strong> concórdia, <strong>da</strong> submissão e <strong>da</strong><br />

boa-fé o tornam duas vezes escravo: <strong>da</strong><br />

superstição e <strong>da</strong>s convenções. Ele propõe<br />

pensar as razões pelas quais os homens se<br />

comportam de determina<strong>da</strong> maneira e por<br />

que <strong>da</strong>s doutrinas morais conserva vestígios<br />

de servidão, no momento mesmo em que<br />

promete instaurar a liber<strong>da</strong>de.<br />

Uma diretriz será Ética se ela não se fizer<br />

entrincheira<strong>da</strong> em argumentos morais, se<br />

o seu preceito universal não for impeditivo<br />

de singulari<strong>da</strong>des responsáveis, tanto<br />

do psiquiatra quanto do sujeito que lhe<br />

deman<strong>da</strong> atendimento. Badiou, 1995, no<br />

debate sobre a Ética, recusa a noção de<br />

homem universal, e ao em vez de estabelecer<br />

padrões conservadores e ou narcísicos,<br />

produz um inconformismo ativo, produtivo,<br />

expresso em palavras e atos. Esta seria uma<br />

nova concepcão de Ética, capaz de nomear<br />

o vazio, esse núcleo em torno do qual de<br />

organiza a situação, perfurando saberes<br />

estabelecidos, nomeando o não-saber,<br />

abrindo o campo para novos saberes, conferindo<br />

a eles os poderes transformadores<br />

do acontecimento. Uma Ética que incita à<br />

reflexão e ao debate.<br />

Psiquiatra, Mestre em Psicologia Social UFMG, Professor Assistente<br />

III PUC MINAS, Preceptor Chefe <strong>da</strong> Residência de Psiquiatria do<br />

Instituto Raul Soares FHEMIG, Membro <strong>da</strong> COCIEM XXIII Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria <strong>da</strong> ABP.<br />

PÁGINA 9


Na perspectiva inaugura<strong>da</strong> pela<br />

ciência do século XVI, as contribuições<br />

de Bacon, assim como as de<br />

Galileu e Descartes, foram cruciais<br />

para que o discurso coman<strong>da</strong>do<br />

pela certeza cedesse seu lugar ao<br />

agenciado pelo saber. Por conseguinte,<br />

na fórmula utópica <strong>da</strong> “Nova<br />

Atlântica” encontramos, na ver<strong>da</strong>de,<br />

um giro de discurso. A partir dele,<br />

nas ciências, já não há mais lugar<br />

para uma incontrola<strong>da</strong> geniali<strong>da</strong>de,<br />

a sorte, o arbitrário e as sínteses<br />

precipita<strong>da</strong>s. As tradicionais formas<br />

de transmissão do conhecimento,<br />

seja por repetição ou pela revelação,<br />

são considera<strong>da</strong>s inadequa<strong>da</strong>s para<br />

promover a ver<strong>da</strong>de que a nova<br />

estrutura de discurso pretende alcançar.<br />

Desta maneira, o homem é<br />

retirado do centro de correspondências<br />

secretas, o universo deixa de ser<br />

concebido num contexto de símbolos<br />

que correspondem a arquétipos divinos,<br />

o empreendimento científico<br />

distancia-se de uma incomunicável<br />

experiência mística.<br />

A tradição clássica e medieval foi<br />

assim progressivamente destituí<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> sua inabalável valorização secular.<br />

Não que ela fosse totalmente<br />

errônea; apenas havia sido erigi<strong>da</strong><br />

em função de certos fins, promovidos<br />

pela soberania do discurso que<br />

a instituíra. Com seu declínio, a<br />

resignação <strong>da</strong> soberba intelectual é<br />

substituí<strong>da</strong> pela liber<strong>da</strong>de crítica, a<br />

cultura retórica e literária pelo caráter<br />

técnico e científico, a filosofia de<br />

palavras pela filosofia de obras. Os<br />

ideais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> técnica, contrários à<br />

virtude aristotélica, transformam-se<br />

em valioso propulsor cultural.<br />

O homem moderno her<strong>da</strong> os<br />

efeitos destas mu<strong>da</strong>nças e <strong>da</strong> crítica<br />

à ingênua confiança em antigas<br />

convicções. Destrona<strong>da</strong> a tradição,<br />

surge uma ciência democrática,<br />

cooperativa e útil, que desaloja a<br />

autori<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> a um mestre<br />

PÁGINA 10<br />

Liberação, despe<strong>da</strong>çamento e fissura<br />

desinteressado. O conhecimento<br />

técnico e prático passa a sobrepujar<br />

o exclusivamente teórico e<br />

idolatrado. Trata-se, sobretudo, do<br />

surgimento de uma nova concepção<br />

de ciência, indissociável dos valores<br />

éticos. O dever do homem já não<br />

consiste mais em celebrar sua infinita<br />

liber<strong>da</strong>de, nem em manter sua<br />

essencial contemplação com o Todo,<br />

mas de assumir que a potência dos<br />

seus limitados dons exige uma habili<strong>da</strong>de<br />

tecnológica para fomentar<br />

continuamente, numa obra coletiva,<br />

a hegemonia prometi<strong>da</strong> pela nova<br />

posição do saber. Como nos afirmou<br />

Foucault: no horizonte o que se visa<br />

é o triunfo <strong>da</strong> razão, pelo adequado e<br />

bom uso <strong>da</strong> ciência e sua aplicação.<br />

Instala-se uma nova ordem, cuja<br />

meta é o avanço simultâneo em<br />

direção à abundância, à liber<strong>da</strong>de e<br />

à felici<strong>da</strong>de.<br />

Portanto, nesta direção, modernamente,<br />

a nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

ciência e <strong>da</strong> ética associa-se a uma<br />

progressiva e crescente correspondência<br />

do saber tecnológico com as<br />

necessi<strong>da</strong>des individuais ou coletivas<br />

que ele deve regular. Inclui-se aí o<br />

âmbito <strong>da</strong> Lei e, neste sentido, o<br />

saber é animado numa articulação<br />

que ambiciona liberar o homem de<br />

to<strong>da</strong> opressão. A arbitrarie<strong>da</strong>de e a<br />

violência do poder deslocam-se pela<br />

regulação democrática e liberal do<br />

Estado de Direito e do mercado.<br />

Demoli<strong>da</strong>s antigas, inertes e<br />

opressoras crenças, a ciência apóiase<br />

numa nova concepção <strong>da</strong> relação<br />

do homem com a natureza. Seu papel<br />

é o de instituir um novo domínio lógico<br />

<strong>da</strong> razão, objetiva ou instrumental.<br />

O mundo declinado <strong>da</strong> mitologia<br />

e <strong>da</strong> magia cede lugar ao fetichismo<br />

<strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de científica. To<strong>da</strong>via,<br />

quanto mais se desvanece a ilusão<br />

manti<strong>da</strong> por remotas ideologias,<br />

mais inexoravelmente o homem se<br />

aprisiona num novo circuito <strong>da</strong> Lei<br />

Stélio Lage Alves<br />

naturaliza<strong>da</strong> que poderia regular<br />

uma eficácia de controle e domínio<br />

prévios e, portanto, <strong>da</strong> conquista e<br />

consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> suprema liber<strong>da</strong>de.<br />

Paradoxalmente, a tentativa de<br />

superação <strong>da</strong> natureza acaba resultando<br />

numa impossibili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong><br />

mais profun<strong>da</strong>, pois a derroca<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s tradições, num mesmo golpe,<br />

desencadeia a montagem de uma<br />

nova era onde, a meio caminho,<br />

sucumbe e cai prostra<strong>da</strong>, em estado<br />

de abandono, a prometi<strong>da</strong> força<br />

criativa de libertação.<br />

Neste sentido, o declínio de convicções<br />

tradicionais, fun<strong>da</strong>mental<br />

para a instalação do domínio iluminista<br />

do saber, acaba desembocando,<br />

por inversão, numa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

discurso caracteriza<strong>da</strong> pela relação<br />

entre a carência humana e a produção<br />

de múltiplos objetos para a satisfação.<br />

O triunfo <strong>da</strong> instrumentali<strong>da</strong>de<br />

torna-se ação estratégica, enquanto<br />

a tecnologia encarrega-se de manter<br />

a oferta de massa regi<strong>da</strong> pela nova<br />

concepção de Lei, <strong>da</strong>s trocas e do<br />

mercado. Nesta nova lógica, o elogio<br />

ao consumo integra a devoração universal<br />

pelo capital. Mais que nunca<br />

é preciso que ele circule, sempre<br />

volátil. Com a demolição de pontos<br />

fixos que poderiam embargá­lo, a<br />

cadeia dos investimentos torna-se<br />

incessante e o valor do capital se<br />

propaga, sem limites. Prisioneiro <strong>da</strong><br />

on<strong>da</strong> <strong>da</strong> nova espécie de fé capitalista,<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> numa redefinição<br />

concreta do Bem, o giro inicialmente<br />

desencadeado nos Seiscentos acaba<br />

desaguando numa dinâmica de<br />

trocas dilacera<strong>da</strong>s pela fugaci<strong>da</strong>de<br />

e por intensas decomposições.<br />

Um mundo construído de objetos<br />

duráveis transforma-se gra<strong>da</strong>tivamen<br />

te num mercado de produtos e<br />

signos disponíveis projetados para<br />

as (in)satisfações. A durabili<strong>da</strong>de<br />

desloca-se para a obsolescência:<br />

o que prometia satisfazer antes já<br />

não vale mais. Nesta direção, tudo<br />

é adotado instantaneamente, para<br />

depois ser imediatamente descartado.<br />

As “leis de mercado” substituem,<br />

progressivamente, “as leis<br />

<strong>da</strong> natureza” e as “leis <strong>da</strong> história”.<br />

Em termos do contrato social, <strong>da</strong>s<br />

trocas ca<strong>da</strong> vez mais velozes, o pacto<br />

destitui-se do compromisso com<br />

a via <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de formal.<br />

Em vista disso, a desonesti<strong>da</strong>de é<br />

destaca<strong>da</strong>, melhor dizendo, eleva<strong>da</strong><br />

como eficaz quali<strong>da</strong>de social. O mecanismo<br />

perverso <strong>da</strong> recusa passa<br />

a manifestar-se como elemento<br />

prevalente nas relações.<br />

Nesta direção, o lugar <strong>da</strong> dominação,<br />

esvaziado pela crítica às<br />

sagra<strong>da</strong>s concepções, é substituído<br />

pela introdução de nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de alienação. Contrariando a otimista<br />

meta progressiva de liberação, uma<br />

infini<strong>da</strong>de de imagens e informações,<br />

multiplica<strong>da</strong>s e transmiti<strong>da</strong>s pelo desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> tecnologia, regula<br />

e ordena universalmente as relações.<br />

Na fragmentação universaliza<strong>da</strong>, os<br />

veículos de comunicação sutilmente<br />

vão instituindo um modelo pleno e<br />

global de unificação. Num controle<br />

revigorado, os ideais esfacelados penetram<br />

os diversos grupos, a mo<strong>da</strong>,<br />

os esportes, atingindo de maneira<br />

considerável as relações coletivas,<br />

familiares e priva<strong>da</strong>s.<br />

Com o declínio dos valores tradicionais<br />

e o sucedâneo deslocamento<br />

que alimentou a hipérbole <strong>da</strong> insatisfação,<br />

trata-se agora de experimentar<br />

a efemeri<strong>da</strong>de generaliza<strong>da</strong>, com<br />

seu desconforto e mal estar. Neste<br />

quadro sombrio, se as redes de segurança<br />

ain<strong>da</strong> não se desintegraram<br />

completamente, pelo menos foram<br />

consideravelmente enfraqueci<strong>da</strong>s.<br />

Convivemos com uma mescla <strong>da</strong><br />

pacata e brutal desregulamentação<br />

que, acopla<strong>da</strong> à desigual<strong>da</strong>de, atinge<br />

ca<strong>da</strong> vez maiores proporções.<br />

Emerge o desafio <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des:


a pós-moderni<strong>da</strong>de parece reencontrar<br />

o fracasso que a moderni<strong>da</strong>de<br />

prometia ter deixado, uma vez por<br />

to<strong>da</strong>s, para trás.<br />

Asfixiados pela massificação,<br />

torna-se inútil o movimento que<br />

procura desprender-nos <strong>da</strong> multidão,<br />

<strong>da</strong> poluição e <strong>da</strong> transmissão<br />

globaliza<strong>da</strong>, em todos os setores <strong>da</strong><br />

comunicação. Lutamos uma batalha<br />

venci<strong>da</strong> e convivemos impotentemente<br />

com inúmeros descalabros.<br />

O panegírico <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana<br />

ain<strong>da</strong> provoca apupos, quando transparece<br />

o registro fúnebre depositado<br />

no fosso <strong>da</strong> história <strong>da</strong> civilização:<br />

a miséria, a fome, a violência, as<br />

epidemias mortíferas, as catástrofes<br />

ecológicas e as guerras.<br />

O colapso <strong>da</strong> ordem agora parece<br />

manifestar­se em todos os níveis –<br />

global, nacional, institucional, teórico<br />

e ambiental – configurando­se ca<strong>da</strong><br />

vez mais a ausência do consenso e<br />

a falência de uma ordenação conceitual.<br />

Deste momento em diante, ser<br />

livre significa não acreditar em na<strong>da</strong>,<br />

numa atitude niilista em que prevalece<br />

a expiração <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de<br />

e a recusa diacrônica <strong>da</strong> história.<br />

Nesta direção, o que atualmente<br />

se mostra sempre permaneceu no<br />

mesmo lugar. Por conseguinte, onde<br />

Aristóteles situara o Bem Supremo,<br />

Kant instalara a razão pura e Hegel,<br />

o ápice <strong>da</strong> espiral dialética do saber,<br />

à pós­moderni<strong>da</strong>de só restava escavar,<br />

em sua coleção de instantâneos,<br />

a face terrível de um limite onde<br />

qualquer forma do Absoluto se esvai.<br />

Nesta degra<strong>da</strong>ção de todo princípio<br />

unificador e no declínio paulatino<br />

de to<strong>da</strong> espécie de proteção,<br />

ao sucessor do homem “liberado”<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna cabe agora,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, o desamparo<br />

desta nova posição. No além do oco<br />

escavado, o desespero - revigorado<br />

pelo sepulcro vazio de Deus - revela<br />

o que sempre se manifestou como a<br />

eminente ameaça <strong>da</strong> morte no processo<br />

de civilização. Quanto a isto,<br />

vale lembrar que Freud, apropriandose<br />

do pensamento de sua época e<br />

<strong>da</strong> tradição de um longo passado,<br />

teve a ver<strong>da</strong>deira audácia dos que<br />

reconduzem o saber ao lugar <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Daí ele nunca ter se esquivado<br />

em transmitir no circuito racional<br />

<strong>da</strong> ciência que quanto ao desejo,<br />

destacado e decantado <strong>da</strong>s ordens<br />

míticas e do sentido, no limite em<br />

que a vi<strong>da</strong> se conjuga com a morte,<br />

na<strong>da</strong> há senão falta.<br />

Seguramente adentramos numa<br />

nova era. A tecno-ciência, sustenta<strong>da</strong><br />

em infinitas interfaces e nos instantes<br />

eternizados por minúsculos chips, é<br />

capaz de nos seduzir com uma nova<br />

arquitetura <strong>da</strong> informação. Em futuro<br />

breve, estaremos num tempo ain<strong>da</strong><br />

mais acelerado, quando a fita binária<br />

do micropro cessa dor de silício e o bit<br />

forem substituídos pela seqüência<br />

giratória de átomos e o qubit do<br />

holograma quântico na computação.<br />

Por conseguinte, os conceitos de<br />

identi<strong>da</strong>de, autonomia e liber<strong>da</strong>de<br />

exigem desde já uma reformulação.<br />

Certamente a vi<strong>da</strong> moderna<br />

preparou o terreno para qualquer<br />

coisa, menos para o que permaneça<br />

imóvel. Numa dimensão de ver<strong>da</strong>deira<br />

heterogenei<strong>da</strong>de, tudo é rapi<strong>da</strong>mente<br />

engolfado, numa dinâmica<br />

aparentemente dispersa e destituí<strong>da</strong><br />

de direção. Progressivamente<br />

desaparece o que outrora permitia<br />

decidir qual o movimento, seja para<br />

frente, seja o de retira<strong>da</strong>. Então, é<br />

preciso também apontar uma outra<br />

novi<strong>da</strong>de desta nossa época: agora<br />

já nem parece mais haver meios de<br />

uma adequação para os momentos<br />

de catarse. Entramos no domínio <strong>da</strong><br />

veloci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> precipitação, numa<br />

direção díspar <strong>da</strong> compreensão.<br />

Enquanto isto, um jato contínuo<br />

de morte e destruição, em cenas<br />

mais multiplica<strong>da</strong>s, apresenta-se<br />

nas ruas, noticiários, cinemas e<br />

televisão. Como atores céticos,<br />

naufragamos nesta on<strong>da</strong> de agressão<br />

generaliza<strong>da</strong> e, sobretudo,<br />

atordoamo-nos com o sumo temor<br />

<strong>da</strong> nossa eliminação. Na<strong>da</strong> mais favorável<br />

para um retorno às sombras<br />

e ilusões. Neste panorama de laços<br />

rotos e desintegrados, <strong>da</strong> instalação<br />

progressiva de um permanente estado<br />

de pânico, estratégias remotas<br />

de dominação emergem revitaliza<strong>da</strong>s<br />

como recursos de salvação.<br />

Nesta perspectiva, mesmo que<br />

desacredita<strong>da</strong>s, as religiões continuam<br />

inabaláveis. Mais que isso, o<br />

mundo parece mais religioso do que<br />

costumava ser, mas de uma maneira<br />

diferente <strong>da</strong> tradicional. Por um lado,<br />

no ocidente, um ver<strong>da</strong>deiro véu de<br />

opaci<strong>da</strong>de opera, em nome de Deus,<br />

a favor de uma pseudolegitimação<br />

<strong>da</strong> ganância facilita<strong>da</strong>. A fraudulência,<br />

disfarça<strong>da</strong> em promessas<br />

impossíveis, torna-se encantamento<br />

convincente. A relação com a ver<strong>da</strong>de<br />

recebe <strong>da</strong>í o desprezo, pois mais<br />

vale cultivar a artimanha de sempre<br />

enganar o outro, em prol <strong>da</strong> razão<br />

nunca confessa<strong>da</strong> que mantém assegurado<br />

um Bem do tipo umbilical.<br />

Desta maneira, em renova<strong>da</strong>s práticas<br />

neopentecostais, a nostálgica<br />

generosi<strong>da</strong>de do “transcendental”<br />

mais apurado converte-se numa<br />

maniqueísta e proveitosa prática de<br />

manipulação.<br />

Por outro lado, no mundo islâmico,<br />

a situação se tornou bastante<br />

dramática. A moderni<strong>da</strong>de, técnica<br />

e competitiva, avassalou e aniquilou,<br />

como um tufão, leal<strong>da</strong>des e<br />

soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>des. Ao mesmo tempo,<br />

assolou identi<strong>da</strong>des primordiais,<br />

assenta<strong>da</strong>s em valores consagrados<br />

pela tradição. Nesta ruína dos anteparos<br />

sociais, o fun<strong>da</strong>mentalismo<br />

lançou sua semeadura, florescendo<br />

como um violento processo de<br />

retribalização. Como decorrência,<br />

a paz, a tolerância e a liber<strong>da</strong>de<br />

tornaram-se as primeiras vítimas<br />

num confronto inevitável, instalado<br />

entre esta radical retoma<strong>da</strong> de um<br />

eixo <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de islâmica e a Nova<br />

Ordem Mundial, manti<strong>da</strong> por um<br />

capitalismo imperialista, grosseiro<br />

e neoconservador. Se os tratados e<br />

organizações internacionais são ignorados<br />

e sacrificados pela utilização<br />

bilateral do terror, injustiça e força<br />

brutal, pouco importa. O que parece<br />

contar é o domínio de certos valores,<br />

seja o apelo crítico que desintegra<br />

os fun<strong>da</strong>mentos de algumas crenças<br />

e religiões, seja a distorção <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de em sua versão monolítica<br />

e peremptória de revelação.<br />

Enquanto isto, nos altares laboratórios<br />

a ciência persegue desenfrea<strong>da</strong>,<br />

extremamente otimista, tudo o<br />

que não vai bem e não funciona, o<br />

que se opõe à vi<strong>da</strong> e as agruras que<br />

devemos enfrentar. Somos assim<br />

pressionados, num afrontamento<br />

inesgotável. Com o discurso <strong>da</strong> ciência,<br />

o Real é tratado numa perspectiva<br />

vertiginosa e interminável<br />

que se propaga num funcionamento<br />

infinitesimal e, ao mesmo tempo,<br />

ilimitado. Desta maneira, nesta mesma<br />

direção, a tecno-ciência parece<br />

edificar seu sarcófago. O fascinante<br />

e avançado desenvolvimento tecnológico<br />

que envolve as descobertas e<br />

invenções compassa também com<br />

o horror: o êxito de uma conquista<br />

acaba sendo também acompanhado<br />

por desdobramentos incon troláveis,<br />

formando uma ver<strong>da</strong>deira mortalha<br />

com os desastres que acarretou.<br />

Claro, podemos celebrar, pois não<br />

morremos mais tão facilmente como<br />

os antigos. To<strong>da</strong>via, temos que nos<br />

curvar agora às novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

que causam o término <strong>da</strong> nossa existência:<br />

superbactérias, vírus imbatíveis,<br />

déficits ecológicos irreversíveis<br />

como o buraco <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> de ozônio.<br />

Ou ain<strong>da</strong>, se a isto sobrevivermos,<br />

caberá restar como um dos experimentos<br />

médicos que efetivamente só<br />

mantém a putrefação em vi<strong>da</strong> tardia,<br />

tal como uma versão tecnológica do<br />

conto de Allan Poe, “O caso do Sr.<br />

Valdemar”.<br />

O Outro decomposto e estilhaçado:<br />

eis a herança moderna! Nesta<br />

direção, a fissura exposta pela pósmoderni<strong>da</strong>de<br />

articula-se ao ponto<br />

limite <strong>da</strong> falta a Ser e do desamparo.<br />

Mal-estar, desconforto!<br />

Como já dizia Freud, é bem provável<br />

que a condição humana não<br />

tenha se tornado somente agora mais<br />

frágil e errática, mas que o processo<br />

de civilização tenha produzido, em<br />

to<strong>da</strong>s as épocas, o que hoje apenas<br />

se revela de maneira bem mais<br />

contundente.<br />

Psiquiatra, Psicanalista, Diplomado em Estudos<br />

Avançados de Filosofia do Direito, Moral e Política,<br />

pela Universi<strong>da</strong>de Complutense de Madrid<br />

PÁGINA 11


Em outubro de 2004 haverá o<br />

XXIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria<br />

em Belo Horizonte com o<br />

tema – Diretrizes em Psiquiatria:<br />

Nova Clínica, Novas Instituições,<br />

Novas Intervenções. A proposição<br />

desse tema levou em conta a necessi<strong>da</strong>de<br />

de discutirmos no campo<br />

psiquiátrico brasileiro diretrizes para<br />

a nossa ação e, mais do que isso,<br />

discutirmos os pressupostos, as<br />

bases, para essa ação. É curioso<br />

que ao tema central Diretrizes,<br />

segue-se imediatamente três vezes a<br />

palavra Nova - Nova Clínica, Novas<br />

Instituições, Novas Intervenções.<br />

Vivemos em uma época em que,<br />

diferentemente do que acontecia<br />

no passado, o que é valorizado é o<br />

Novo – se queremos positivar algo<br />

dizemos que é novo, o que nos fascina<br />

é sempre a juventude e não a<br />

suposta experiência dos idosos, já<br />

não somos nem mesmo modernos,<br />

mas pós-modernos ... No entanto,<br />

se formos buscar as diretrizes de<br />

nossa prática psiquiátrica, serão elas<br />

de fato Novas? E se o são, em que<br />

sentido? Em que direção?<br />

Para responder a esse questionamento<br />

temos que nos perguntar<br />

inicialmente que diretrizes segue<br />

hoje a psiquiatria. A medicina caminha<br />

a passos largos em busca<br />

de suas evidências. Há evidências<br />

em psiquiatria? As informações<br />

internáuticas nos atualizam e nos<br />

colocam frente a uma enormi<strong>da</strong>de de<br />

conhecimento a ca<strong>da</strong> minuto, o que<br />

muitas vezes nos dá a sensação de<br />

soterramento diante de tantas e tantas<br />

informações. Para li<strong>da</strong>r com esse<br />

excesso de informações, elaboram-<br />

PÁGINA 12<br />

A clínica não é feita de evidências<br />

se revisões sistemáticas que tentam<br />

<strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> junção <strong>da</strong>s inúmeras<br />

experiências feitas, na tentativa de<br />

encontrarmos conclusões mais uniformes,<br />

mais “conformes à ver<strong>da</strong>de”.<br />

Mas existiria de fato algum meio de<br />

nos livrarmos <strong>da</strong> angústia que um<br />

ato sempre gera em nós? Teríamos<br />

como ter certeza de que agimos <strong>da</strong><br />

melhor maneira ao tomarmos uma<br />

determina<strong>da</strong> decisão clínica?<br />

Comentando um artigo publicado<br />

no The Lancet por Rosalind Raine<br />

e cols - An experimental study of<br />

determinants of group judgments<br />

in clinical guideline development –<br />

(Raine R, Sanderson C, Hutchings<br />

A, Carter S, Larkin K, Black N. Lancet<br />

2004 Jul 31; 364(9432):429-37) –,<br />

nos quais os autores ao examinar o<br />

efeito do julgamento na interpretação<br />

<strong>da</strong> evidência por dezesseis grupos<br />

de desenvolvimento de guidelines,<br />

apontam para o fato de que apenas<br />

51% dos 192 itens estu<strong>da</strong>dos concor<strong>da</strong>vam<br />

com os resultados de uma<br />

revisão sistemática <strong>da</strong> evidência,<br />

Burgers e Everdingen concluem que<br />

“outros fatores que não a evidência<br />

disponível afetam as decisões do<br />

grupo” e comentam que grupos<br />

mistos de psiquiatras e médicos de<br />

família apresentam em geral uma<br />

concordância menor que grupos<br />

compostos exclusivamente por médicos<br />

de família. Para referen<strong>da</strong>r essa<br />

afirmação citam um estudo holandês<br />

(Med Contact 59 (2004), pp. 493-496,<br />

citado por Burgers, JS e Everdingen,<br />

JE, Lancet 2004, Jul 31; 364(9432):<br />

392-393) que demonstrou que um<br />

grupo multidisci plinar, composto<br />

para produzir um guideline sobre o<br />

Maria Tavares Cavalcanti<br />

tratamento de depressão maior, não<br />

conseguiu chegar a um consenso<br />

sobre o antidepressivo de primeira<br />

escolha por causa <strong>da</strong>s diferentes<br />

interpretações dos <strong>da</strong>dos em virtude<br />

de diferentes perspectivas dos<br />

profissionais – os psiquiatras eram<br />

favoráveis aos ISRS em detrimento<br />

dos tricíclicos, enquanto os médicos<br />

de família não tinham preferência.<br />

Ou seja, “medicina é uma ciência<br />

probabilística e a prática clínica<br />

envolve tentativa e erro. Por esse<br />

motivo, a incerteza deve ser incorpora<strong>da</strong><br />

e não excluí<strong>da</strong> dos guidelines,<br />

que se destinam à necessi<strong>da</strong>de de<br />

informação por parte dos pacientes”<br />

(Edwards, A Communicating risks.<br />

BMJ 327(2003), pp. 691-692, citado<br />

por Burgers, JS e Everdingen, JE,<br />

op. cit., p.393).<br />

Em um outro artigo de opinião<br />

(Commentary) publicado no Journal<br />

of Clinical Psychiatry, por Alan<br />

Gelenberg (Gelenberg, AJ, J Clin<br />

Psychiatry; 65 (6): 750-751, Jun<br />

2004) e intitulado “Honoring our<br />

evidence base”, Gelenberg aponta<br />

para o fato de que em medicina e também<br />

na psiquiatria há um crescente<br />

número de guidelines, algoritmos<br />

e conferências de consenso que<br />

buscam auxiliar os médicos em sua<br />

prática. Segundo este autor, essas<br />

ferramentas são úteis, sobretudo,<br />

para as fases iniciais de pacientes<br />

pouco complicados e exemplifica<br />

com a escolha de um ISRS para<br />

um paciente com Transtorno Depressivo<br />

Maior e um antipsicótico de<br />

segun<strong>da</strong> geração para um paciente<br />

esquizofrênico. No entanto, diz ele,<br />

o que fazer quando deixamos para<br />

trás o terreno dos pacientes “fáceisde-tratar”,<br />

não complicados, e adentramos<br />

no mundo real dos pacientes<br />

resistentes ao tratamento, comórbidos,<br />

complexos. Freqüentemente,<br />

a evidência tropeça nesse ponto.<br />

“Deve haver poucos (se algum) estudos<br />

prospectivos, randomizados,<br />

duplo-cego, controlados, envolvendo<br />

pacientes como o Sr. X, com seus<br />

múltiplos transtornos psiquiátricos<br />

e clínicos, abuso de substâncias e<br />

falta de resposta aos tratamentos<br />

padronizados. Mesmo em tais casos,<br />

no entanto, o raciocínio do médico<br />

deve permanecer o mais próximo<br />

<strong>da</strong> evidência possível, mantendo-se<br />

dentro do rigor científico. Diagnóstico<br />

e tratamento devem sempre se<br />

fun<strong>da</strong>r em <strong>da</strong>dos e não na “fé”. Muito<br />

freqüentemente, mesmo médicos<br />

bem treinados acreditam na magia<br />

e feitiçaria de gurus”. (Gelenberg,<br />

2004, op.cit., p.750).<br />

Há situações clínicas, porém, em<br />

que o conhecimento padronizado se<br />

esgota e o paciente passa a caminhar<br />

conosco em um terreno de incertezas.<br />

Nesse caso, diz Gelenberg, o<br />

médico tem a obrigação de partilhar<br />

a sua incerteza com o paciente. Não<br />

há na<strong>da</strong> de impróprio em utilizarmos<br />

medicamentos que estão fora dos<br />

guidelines, desde que o pensamento<br />

que esteja conduzindo o profissional<br />

seja lógico e razoável e o paciente<br />

esteja suficientemente informado do<br />

que está se passando e tenha <strong>da</strong>do<br />

o seu consentimento.<br />

“A medicina moderna vem se<br />

tornando mais complexa e também<br />

a psiquiatria. Nós temos um maior<br />

número de tratamentos e, com isso,


um maior potencial para interações e<br />

outros eventos adversos. As fronteiras<br />

categoriais entre diagnósticos e<br />

grupos farmacológicos se tornaram<br />

menos rígi<strong>da</strong>s e distintas. (...) A<br />

despeito dos inúmeros avanços, a<br />

medicina em grande parte ain<strong>da</strong> é<br />

arte. “Ouvir com o terceiro ouvido”,<br />

mantendo-se afinado às nuances <strong>da</strong><br />

comunicação humana, e usando a<br />

empatia e a compaixão são ain<strong>da</strong><br />

[ferramentas] essenciais para a boa<br />

prática. Mas estejamos nós tratando<br />

de casos simples ou complexos,<br />

empregando tratamentos de primeira<br />

linha ou conduzindo regimes novos<br />

e criativos, nós precisamos sempre<br />

raciocinar de forma sistemática e rigorosa<br />

e permanecer o mais próximo<br />

<strong>da</strong> evidência científica o quanto for<br />

humanamente possível. O aprendizado<br />

ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é muito mais<br />

do que um clichê”. (Gerenberg, 2004,<br />

op. cit., p. 751).<br />

Podemos aferir, com base nesses<br />

dois comentários, que a medicina em<br />

geral e a psiquiatria em particular<br />

são maiores que as evidências, embora<br />

não possam prescindir delas.<br />

Portanto, um congresso que quer<br />

discutir a fundo as Diretrizes em<br />

Psiquiatria terá de levar em conta<br />

necessariamente o que temos de<br />

evidência nesse campo, mas apontar<br />

para que mesmo as evidências são<br />

falhas, não se constituindo numa<br />

garantia em si mesmas, pois fazem<br />

parte de um contexto. A clínica não<br />

é feita de evidências, pois a clínica<br />

depende sempre de um julgamento<br />

e de uma decisão, julgamento e<br />

decisão esses necessariamente<br />

atravessados pelo cenário e atores<br />

que compõem aquele ato. Em seu<br />

livro recém lançado – Por um fio –<br />

Drausio Varela comenta a situação,<br />

ocorri<strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong> medicina<br />

norte-americana, de uma senhora<br />

portadora de um câncer grave que<br />

pergunta ao médico se ela poderia<br />

passar o Dia de Ação de Graças<br />

com os filhos que moravam em<br />

outro Estado. O médico nega por<br />

ser o período em que ela deveria<br />

se submeter à quimioterapia e ela<br />

se submete à decisão do médico.<br />

Varela aponta para o absurdo <strong>da</strong><br />

situação uma vez que dificilmente<br />

aquela senhora estaria viva no ano<br />

seguinte para passar essa mesma<br />

<strong>da</strong>ta com seus filhos, o que de fato<br />

aconteceu. (Varela, D. Por um fio.<br />

São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s letras,<br />

2004). Certamente as evidências<br />

consulta<strong>da</strong>s pelo médico apontavam<br />

pela pertinência de se manter aquela<br />

periodici<strong>da</strong>de para a quimioterapia,<br />

no entanto, a periodici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

muitas vezes é outra...<br />

Resta discutirmos a questão <strong>da</strong>s<br />

Novi<strong>da</strong>des no campo psiquiátrico:<br />

Nova Clínica, Novas Instituições,<br />

Novas Intervenções.<br />

“O que existiu, é o que existirá;<br />

o que se fez é o que se fará; não há<br />

na<strong>da</strong> de novo sob o sol. Há ao menos<br />

uma única coisa <strong>da</strong> qual se diga: -<br />

Finalmente, algo de novo! – Não,<br />

isso já existia nos séculos passados.<br />

Apenas não temos lembranças do<br />

antigamente; <strong>da</strong> mesma forma, os<br />

acontecimentos futuros não deixarão<br />

lembranças atrás de si”. Eclesiastes<br />

(1, 2-11)<br />

A julgar pelo Eclesiastes não há<br />

na<strong>da</strong> de novo sob o sol. O que se<br />

fez, é o que se fará. Mas seremos<br />

tão radicais assim? Não há na<strong>da</strong> de<br />

novo mesmo sob o sol no que diz<br />

respeito às sen<strong>da</strong>s psiquiátricas?<br />

O primeiro elemento que salta aos<br />

olhos quando pensamos nas novi<strong>da</strong>des<br />

presentes em nosso campo são<br />

os psicofármacos. De fato, eles parecem<br />

introduzir algo novo em nossa<br />

prática – a possibili<strong>da</strong>de de intervir<br />

farmacologicamente nos humores,<br />

nos pensamentos, na angústia, na<br />

vontade, na dor, no prazer etc. No<br />

entanto, mesmo eles não são a panacéia<br />

tantas vezes apregoa<strong>da</strong>. Além<br />

dos efeitos colaterais, há a questão<br />

<strong>da</strong> resistência aos medicamentos, a<br />

necessi<strong>da</strong>de de trocá-los, tudo aquilo<br />

que escapa de sua ação e revela o<br />

que do sujeito está presente em sua<br />

sintomatologia. Uma <strong>da</strong>s questões<br />

que mais surpreende e perplexifica<br />

o jovem psiquiatra é quando ele se<br />

depara, depois de muito penar, que<br />

talvez, apesar do discurso manifesto,<br />

aquele sujeito não queira ou não possa<br />

mesmo “se livrar” <strong>da</strong>quele sintoma<br />

apesar de to<strong>da</strong> a dor e o sofrimento<br />

que ele lhe causa. O que fazer nesses<br />

casos? Não é incomum recebermos,<br />

no ambulatório, pacientes que circularam<br />

por diversos residentes, ca<strong>da</strong><br />

vez com novos diagnósticos e novas<br />

medicações. O trabalho necessário<br />

é muitas vezes suspendermos o<br />

afã diagnóstico, deixarmos a dúvi<strong>da</strong><br />

e a incerteza aparecerem, e ter<br />

paciência para esperar, escutando<br />

aquilo que o paciente nos traz por<br />

meses a fio, até que a criação e o<br />

fortalecimento do vínculo possam vir<br />

a favorecer um novo posicionamento<br />

<strong>da</strong>quele sujeito.<br />

Seria essa uma Nova Clínica?<br />

Não creio. A clínica permanece sendo<br />

a escuta e a observação atenta<br />

dos sujeitos que nos procuram em<br />

busca de regulari<strong>da</strong>des sim, mas<br />

sem perder de vista a especifici<strong>da</strong>de<br />

e a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela situação e<br />

<strong>da</strong>quele sujeito que temos diante de<br />

nós. Há uma observação clássica de<br />

Jean Oury, cita<strong>da</strong> por Octavio Serpa<br />

Jr, na qual Oury aponta que a clínica<br />

é o ponto zero, o ponto no qual<br />

to<strong>da</strong>s as nossas certezas ficam em<br />

suspenso - “diante de ca<strong>da</strong> paciente<br />

que vemos pela primeira vez tudo<br />

é zerado” - a fim de que possamos<br />

mergulhar na paisagem do outro.<br />

(Serpa Jr, OD Clínica e evidência: em<br />

que se baseiam as nossas decisões?<br />

In Silva Filho JF e Serpa Jr. OD (org)<br />

O ensino, a pesquisa, seus métodos<br />

e a psiquiatria. Cadernos IPUB, Instituto<br />

de psiquiatria <strong>da</strong> UFRJ, 1999,<br />

pp.61-78).<br />

Talvez pudéssemos fazer observações<br />

semelhantes no que<br />

diz respeito às Novas Instituições<br />

e Novas Intervenções, mas nesse<br />

caso necessitaríamos aprofun<strong>da</strong>r<br />

a discussão, pois, de fato, parece<br />

que há ao menos a colocação de<br />

pesos diferenciados no que seriam<br />

as instituições e intervenções prioriza<strong>da</strong>s<br />

nesse momento e uma política<br />

pública de saúde mental explícita<br />

nesse sentido, política pública que<br />

deixou o papel e partiu para uma<br />

ação efetiva, com conseqüências<br />

visíveis e fun<strong>da</strong>mentais. Basta para<br />

exemplificarmos esse fato o número<br />

de Centros de Atenção Psicossocial<br />

hoje existentes no país – mais de<br />

540 -, enquanto há dez anos tínhamos<br />

bem menos de uma centena.<br />

Portanto, nesse cenário, há algo<br />

de novo e importante acontecendo<br />

e é fun<strong>da</strong>mental que a psiquiatria<br />

e os psiquiatras participem desse<br />

processo, discutindo o papel e a<br />

importância <strong>da</strong> clínica psiquiátrica<br />

nessas novas instituições e intervenções.<br />

Essa será também uma<br />

<strong>da</strong>s funções do XXIII Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria, que ocorrerá<br />

em Belo Horizonte, em outubro<br />

de 2004 e para o qual contamos<br />

com a participação expressiva dos<br />

psiquiatras brasileiros.<br />

Psiquiatra, Prof. do IPUB UFRJ, Membro do COCIEN<br />

do XXII e XXIII CBP.<br />

PÁGINA 13


O tema que tratarei – a proposta<br />

de introdução <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s<br />

formulações ideográficas nos futuros<br />

sistemas de diagnóstico em<br />

psiquiatria – necessita ser situado<br />

por uma reflexão sobre o contexto<br />

histórico­científico do qual estas<br />

emergem. Iniciarei, pois, por retomar,<br />

ain<strong>da</strong> que resumi<strong>da</strong>mente,<br />

o estado de coisas no qual se<br />

encontrava a psiquiatria após a<br />

implantação em nível mundial dos<br />

manuais diagnósticos baseados na<br />

formulação de critérios explícitos e<br />

padronizados de sintomas mentais.<br />

A partir dos anos 80 com a implantação<br />

mundial dos manuais de<br />

diagnóstico baseados na formulação<br />

explícita de critérios de inclusão<br />

e de exclusão de determina<strong>da</strong>s<br />

constelações clínicas sob uma determina<strong>da</strong><br />

denominação técnica,<br />

foi a própria clínica psiquiátrica<br />

que entrou em crise e passou a<br />

estar sob ameaça pelo avanço de<br />

tais instrumentos como substitutos<br />

<strong>da</strong> arte do psiquiatra junto a seu<br />

paciente. Ou seja, tais abor<strong>da</strong>gens<br />

pragmáticas, visando a confiabili<strong>da</strong>de<br />

do diagnóstico, parecem ter<br />

atingido seus objetivos de utili<strong>da</strong>de,<br />

a um grande custo para própria<br />

psiquiatria.<br />

No plano <strong>da</strong> concepção psicopatológica<br />

e <strong>da</strong> ética subjacente a tais<br />

sistemas diagnósticos, as questões<br />

pareciam ain<strong>da</strong> mais complica<strong>da</strong>s.<br />

O caráter contingente, temporário<br />

e convencional dos sistemas de<br />

diagnósticos psiquiátricos contemporâneos<br />

torna explícita a vocação<br />

não-ontológica <strong>da</strong>s categorias por<br />

eles cria<strong>da</strong>s, mas impõe - ato contínuo<br />

– a constante vigilância ética,<br />

psicopatológica e filosófica de seus<br />

usos concretos na cultura. Dito em<br />

outras palavras, a atitude pragmática<br />

em relação à linguagem,<br />

subjacente a qualquer elaboração<br />

PÁGINA 14<br />

de acordos quanto às definições<br />

diagnósticas em psiquiatria, implica<br />

em se fixar certos valores e recortes<br />

arbitrários sobre a experiência<br />

psicopatológica – em última instância,<br />

sobre as paixões e sofrimentos<br />

humanos – implantando­os como<br />

pontos fixos a partir dos quais se<br />

organiza uma área estável e nãoconflitiva<br />

de entendimento mínimo,<br />

compartilha<strong>da</strong> pelos participantes<br />

desse jogo de linguagem. Ou<br />

seja, longe de serem ateóricos,<br />

tais procedimentos se fun<strong>da</strong>m na<br />

incorporação implícita de certas<br />

visões de mundo – como tais, sempre<br />

problemáticas - na construção<br />

de suas categorias. É justamente<br />

esse acordo sobre tais elementos<br />

ideológico-valorativos que permite<br />

a estabili<strong>da</strong>de – a confiabili<strong>da</strong>de –<br />

do jogo de linguagem assim criado.<br />

São os riscos éticos e culturais,<br />

consciente ou inconscientemente<br />

assumidos pela adesão a um<br />

sistema diagnóstico que impõem<br />

uma atitude permanente de recuo<br />

e de crítica em relação à visão de<br />

mundo e de homem implanta<strong>da</strong>s<br />

na pragmática de sua construção.<br />

Isso parece longe de ser o caso nas<br />

condições atuais. Aquilo que Cláudio<br />

Banzato descreve como “a aposta<br />

na biologia” – a convicção, sempre<br />

posterga<strong>da</strong>, de que um dia a genética<br />

psiquiátrica e as neurociências<br />

<strong>da</strong>rão as explicações completa,<br />

definitiva e exclusiva para to<strong>da</strong>s as<br />

condições psicopatológicas - fornece<br />

a justificativa de se sustentar<br />

um reducionismo explicativo, de<br />

cunho (futurístico) biológico, que<br />

transparece no imaginário social<br />

evocado pela difusão midiática<br />

<strong>da</strong>s novas categorias diagnósticas,<br />

com as quais opera a psiquiatria<br />

contemporânea.<br />

Esse reducionismo explicativo<br />

fornece substrato a uma desimpli-<br />

cação histórico-política e subjetiva<br />

do paciente em relação a seu<br />

sofrimento e a situar o discurso<br />

<strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des médico­científicas<br />

como o único capaz de responder<br />

ao padecimento mental implicado<br />

em tais processos psicopatológicos.<br />

Confronta<strong>da</strong> a tais tensões e aos<br />

impasses advindos <strong>da</strong> aposta na<br />

“confiabili<strong>da</strong>de” dos diagnósticos,<br />

mas também ameaça<strong>da</strong> em sua<br />

sobrevivência enquanto prática clínica,<br />

a psiquiatria contemporânea,<br />

no limiar de novas revisões de seus<br />

dois principais Manuais de Diagnósticos<br />

Psiquiátricos - DSM e CID<br />

vêem-se interpela<strong>da</strong> a revalorizar<br />

as questões propriamente clínicas,<br />

culturais e subjetivas em sua práxis<br />

diagnóstica e na organização dos<br />

fatos relevantes para o estabelecimento<br />

de sua nosografia.<br />

É nesse contexto que surge, na<br />

cena atual, a proposta de introdução<br />

de formulações ideográficas na<br />

elaboração do diagnóstico psiquiátrico,<br />

proposta <strong>da</strong> qual o professor<br />

Juan Mezzich, diretor <strong>da</strong> Seção de<br />

Diagnóstico e Classificação <strong>da</strong> World<br />

Psychiatric Association e futuro<br />

presidente <strong>da</strong> WPA é um dos principais<br />

articuladores e responsáveis.<br />

Trata-se, como sugere o nome, de<br />

uma reformulação na estratégia e<br />

na ênfase do modelo diagnóstico,<br />

através <strong>da</strong> sistematização de uma<br />

abor<strong>da</strong>gem individualiza<strong>da</strong> do<br />

paciente, que se propõe a levar<br />

em conta o contexto subjetivo e<br />

biopsicossocial do qual emerge<br />

seu padecimento psicopatológico<br />

e a restabelecer a importância <strong>da</strong><br />

entrevista psiquiátrica aberta nesse<br />

processo.<br />

Uma proposta inicial, ain<strong>da</strong> não<br />

testa<strong>da</strong> clinicamente, foi publica<strong>da</strong><br />

no número de maio de 2003 do The<br />

British Journal of Psychiatry, sob o<br />

título de “Essentials of the World<br />

Formulações ideográ<br />

Mário Eduardo<br />

Psychiatric Associations’s International<br />

Guidelines for Diagnostic Assessement<br />

(IGDA) e traduzi<strong>da</strong> para<br />

o português pelo Departamento<br />

de Diagnóstico e Classificação em<br />

Psiquiatria <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira<br />

de Psiquiatria (tradução disponível<br />

no site <strong>da</strong>quela enti<strong>da</strong>de). Trata­se,<br />

portanto, de um guia com diretrizes<br />

para o diagnóstico psiquiátrico<br />

elaborado pela WPA/OMS, que se<br />

propõe a articular a abor<strong>da</strong>gem<br />

nomotética, atualmente em uso nos<br />

modernos Manuais de diagnóstico,<br />

com uma perspectiva ideográfica,<br />

ou seja, personaliza<strong>da</strong>, <strong>da</strong> experiência<br />

psico patológica.<br />

O elemento do grego – idios, que<br />

remete ao que é próprio, especial,<br />

é aqui articulado a graphein – escrever.<br />

Busca-se, pois, uma forma<br />

de registro diagnóstico que possa<br />

<strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> dimensão singular de<br />

ca<strong>da</strong> paciente, tal como essa se dá<br />

a conhecer na entrevista psiquiátrica<br />

comum. O próprio IGDA, em<br />

seu capítulo dedicado à entrevista<br />

clínica, destaca a importância de<br />

o médico adotar uma postura de<br />

“escuta atenta e interessa<strong>da</strong>, respeitar<br />

os desejos e a digni<strong>da</strong>de do<br />

paciente, assim como facilitar sua<br />

participação na entrevista, procurando<br />

engajá-lo em uma conversa<br />

natural”.<br />

Enquanto proposta trata-se<br />

de uma profun<strong>da</strong> modificação<br />

em relação aos procedimentos<br />

diagnósticos até então em vigor,<br />

que encontravam sua justificativa<br />

precisamente na medi<strong>da</strong> em que<br />

podiam reduzir os fatos clínicos<br />

a categorias nosográficas gerais,<br />

previamente estabeleci<strong>da</strong>s, não<br />

deixando qualquer espaço para a<br />

toma<strong>da</strong> em consideração <strong>da</strong>quilo<br />

que pudesse singularizar um sujeito<br />

em relação a seu transtorno. A<br />

clínica, coloca<strong>da</strong> em eclipse pelos


ficas do diagnóstico<br />

Costa Pereira<br />

sistemas diagnósticos vigentes,<br />

reaparece aqui solicita<strong>da</strong> e valoriza<strong>da</strong>.<br />

Nesse sentido, o grande<br />

investimento de uma instituição<br />

psiquiátrica internacional do porte<br />

<strong>da</strong> WPA na elaboração do IGDA<br />

pode ser tomado como sintoma e<br />

como tentativa de resposta oficial<br />

aos impasses colocados pela ênfase<br />

quase exclusiva nos manuais diagnósticos<br />

e o conseqüente declínio<br />

<strong>da</strong> relevância <strong>da</strong> clínica psiquiátrica<br />

a que tal postura conduziu.<br />

O projeto IGDA constitui o resultado<br />

de uma déca<strong>da</strong> de trabalhos<br />

de uma força-tarefa cria<strong>da</strong> em<br />

1994 pela Seção de Classificação<br />

e Diagnóstico <strong>da</strong> WPA, composta<br />

por especialistas de várias nacionali<strong>da</strong>des<br />

“que representam várias<br />

correntes teóricas e sub-áreas <strong>da</strong><br />

psiquiatria”. Seu objetivo era o de<br />

estabelecer diretrizes gerais para<br />

o diagnóstico psiquiátrico a serem<br />

emprega<strong>da</strong>s em âmbito mundial,<br />

tendo como meta o estabelecimento<br />

de uma abor<strong>da</strong>gem sistemática,<br />

que associasse os avanços obtidos<br />

através dos métodos pragmáticos<br />

de diagnóstico, com uma atenção<br />

individualiza<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> paciente,<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na entrevista clínica aberta<br />

que levasse em consideração as<br />

dimensões pessoais, culturais, familiares<br />

e contextuais implica<strong>da</strong>s no<br />

processo psicopatológico (observase<br />

que ao longo de todo o texto do<br />

IGDA é continuamente sublinha<strong>da</strong><br />

a necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer<br />

as nuances culturais relaciona<strong>da</strong>s<br />

ao processo do adoecer mental<br />

e às expectativas em relação ao<br />

tratamento).<br />

O IGDA opera referindo­se à<br />

seguinte definição de “Transtorno<br />

Mental”: “... [este] é concebido<br />

nestas diretrizes como um conjunto<br />

reconhecível de sintomas clínicos<br />

e comportamentos, associados na<br />

maioria dos casos com sofrimento,<br />

desarmonia psíquica e interferência<br />

no funcionamento a<strong>da</strong>ptativo e na<br />

participação social”. Não é o caso de<br />

realizarmos aqui o comentário de tal<br />

definição, bastando­nos ressaltar<br />

que ela repousa implicitamente sobre<br />

uma certa concepção de sujeito,<br />

de linguagem e de valores sociais<br />

que estão longe de serem neutros<br />

ou assepticamente operacionais.<br />

Em particular, o fato de colocarem<br />

na mesma ordem de significância<br />

os elementos que dizem respeito<br />

aos interesses do sujeito e aqueles<br />

que se referem ao “funcionamento<br />

a<strong>da</strong>ptativo” no tecido social. Como,<br />

pois, pretender que um sistema de<br />

diagnósticos respon<strong>da</strong> simultaneamente<br />

a exigências tão díspares,<br />

senão contraditórias? Nisso o IGDA<br />

porta claramente as marcas de<br />

seu tempo: destituído de utopias,<br />

avesso aos radicalismos, ele tende<br />

a assimilar em pé de igual<strong>da</strong>de<br />

posições éticas e psicopatológicas<br />

inconciliáveis e visões do sofrimento<br />

humano irredutíveis, sem temer os<br />

impasses ou as contradições. Talvez<br />

pecando por um ecletismo acrítico<br />

e por um aplacamento de fortes<br />

tensões teóricas, o IGDA interpela<br />

os insatisfeitos a precisarem suas<br />

críticas e, sobretudo, a proporem<br />

melhores soluções para os problemas<br />

concretos a que ele tenta<br />

responder.<br />

O IGDA parte igualmente <strong>da</strong><br />

seguinte exigência fun<strong>da</strong>mental: “a<br />

avaliação do paciente psiquiátrico<br />

como um todo e não somente como<br />

um portador de doenças”. Dessa<br />

forma justifica­se a necessi<strong>da</strong>de<br />

de uma abor<strong>da</strong>gem diagnóstica<br />

abrangente que associe a avaliação<br />

padroniza<strong>da</strong> multiaxial com uma<br />

avaliação personaliza<strong>da</strong> ideográfica,<br />

tendo por pano de fundo a<br />

recomen<strong>da</strong>ção do uso de critérios<br />

diagnósticos culturalmente contextualizados.<br />

Já em sua “Introdução” é citado<br />

o filósofo e historiador <strong>da</strong> medicina<br />

Pedro Lain-Entralgo que argumenta<br />

que “o diagnóstico é mais do que<br />

apenas identificar uma doença<br />

(diagnóstico nosológico) e é mais<br />

do que distinguir uma doença de<br />

outra (diagnóstico diferencial); na<br />

ver<strong>da</strong>de, o diagnóstico consiste<br />

no entendimento amplo do que<br />

se passa na mente e no corpo <strong>da</strong><br />

pessoa que se apresenta aos cui<strong>da</strong>dos<br />

médicos. Esse entendimento<br />

deve ser considerado no contexto<br />

histórico e cultural de ca<strong>da</strong> paciente<br />

para ter sentido”.<br />

Essa mesma introdução deixa<br />

entender que a tarefa de se<br />

estabelecer bases confiáveis do<br />

diagnóstico estaria satisfatoriamente<br />

resolvi<strong>da</strong> no atual estado<br />

de desenvolvimento <strong>da</strong> nosografia<br />

psiquiátrica, colocando-se agora o<br />

desafio de se aumentar a vali<strong>da</strong>de<br />

dessas formulações, “levando-se<br />

em consideração símbolos e significados<br />

que sejam pertinentes à<br />

identi<strong>da</strong>de e às perspectivas dos<br />

pacientes”. Ou seja, tal proposta<br />

explicita uma sensibili<strong>da</strong>de à dimensão<br />

significante e subjetiva do<br />

adoecer mental, que examinaremos<br />

mais adiante.<br />

Em sua forma atual, o IGDA está<br />

constituído, além <strong>da</strong> “Introdução”,<br />

por dez capítulos nos quais são<br />

apresenta<strong>da</strong>s as diferentes diretrizes<br />

propostas para o diagnóstico<br />

psiquiátrico. Os aspectos contemplados<br />

são:<br />

1) Bases conceituais: perspectivas<br />

históricas, culturais e clínicas<br />

2) Entrevista clínica<br />

3) Uso de fontes adicionais de<br />

informação<br />

4) Avaliação dos sintomas e do<br />

estado mental<br />

5) Procedimentos complementares<br />

de avaliação relacionados a<br />

aspectos psicopatoló gicos, neuropsicológicos<br />

e físicos<br />

6) Procedimentos complementares<br />

de avaliação relacionados ao<br />

funcionamento, contexto social,<br />

cultura e quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong><br />

7) Formulação diagnóstica multiaxial<br />

padroniza<strong>da</strong><br />

8) Formulação diagnóstica ideográfica<br />

(personaliza<strong>da</strong>)<br />

9) Diagnóstico e plano de tratamento<br />

e<br />

10) Organização dos registros<br />

clínicos.<br />

São sugeridos ain<strong>da</strong> três modelos<br />

de formulários relacionados ao<br />

projeto de diagnóstico psiquiátrico<br />

ali explicitado:<br />

1) Formulário do diagnóstico<br />

multiaxial padronizado<br />

2) Formulário do diagnóstico<br />

ideográfico e<br />

3) Formulário do plano de tratamento.<br />

O elemento mais inovador do<br />

IGDA, em relação às tendências<br />

atuais do diagnóstico psiquiátrico,<br />

estão expressas no capítulo 8 sob<br />

o título de “Formulações ideográficas”.<br />

Estas se baseiam na entrevista<br />

com o paciente e, no nível de seu<br />

registro, devem ser expressas em<br />

um estilo narrativo e coloquial. A<br />

apresentação global dessa proposta<br />

é bastante sintética e vários elementos<br />

importantes encontram-se<br />

antes subentendidos do que teoricamente<br />

construídos. Reconhece-se,<br />

contudo, explicitamente a importância<br />

<strong>da</strong> perspectiva do paciente<br />

e <strong>da</strong> dimensão não-dedutiva do<br />

encontro clínico. Significantes como<br />

“intuição clínica”, “arte” médica e<br />

“contextualização” dos sintomas<br />

encontram-se claramente inscritos<br />

no texto.<br />

A ênfase na dimensão ideográfica<br />

PÁGINA 15


do diagnóstico, ou seja, a busca de<br />

seu caráter personalizado, repousa<br />

segundo o IGDA na identificação<br />

dos problemas clínicos e na sua<br />

contextualização. Recomen<strong>da</strong>-se,<br />

igualmente, aquilo que se considera<br />

como “aspectos positivos do<br />

paciente”, ou seja, “pertinentes ao<br />

tratamento <strong>da</strong> condição clínica e<br />

promoção <strong>da</strong> saúde: maturi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, habili<strong>da</strong>des, talentos,<br />

recursos sociais, apoios e<br />

afirmações pessoais e espirituais”.<br />

Também aqui parece transparecer<br />

a ênfase na chama<strong>da</strong> “condição<br />

clínica”, implicitamente considera<strong>da</strong><br />

como “doentia” uma vez que os aspectos<br />

positivos do paciente assim<br />

o são considerados em relação a<br />

suas capaci<strong>da</strong>des de promoverem<br />

a “saúde”. Na mesma perspectiva<br />

pode ser considera<strong>da</strong> a referência<br />

aos “talentos” e “habili<strong>da</strong>des” do<br />

paciente, termos que claramente<br />

comportam elementos valorativos<br />

imersos em ideais sociais.<br />

O IGDA tem ain<strong>da</strong> assim a virtude<br />

de relembrar a todos a natureza<br />

clínica <strong>da</strong> prática psiquiátrica, com<br />

to<strong>da</strong>s suas vicissitudes, impasses e<br />

desafios. A clínica psiquiátrica constitui<br />

um campo complexo – assim<br />

como o de to<strong>da</strong> a medicina - no<br />

qual se entrecruzam abor<strong>da</strong>gens<br />

de naturezas técnico­científicas<br />

muito diversas. Ela representa um<br />

espaço culturalmente estruturado,<br />

capaz de acolher as expressões de<br />

um sujeito com seus conflitos, seus<br />

desejos, suas angústias, em suas<br />

relações com seu próprio corpo, com<br />

sua sexuali<strong>da</strong>de, com seus ideais<br />

e com o outro. A ela é igualmente<br />

delegado o cui<strong>da</strong>do com as chama<strong>da</strong>s<br />

situações-limite e <strong>da</strong>s crises<br />

freqüentemente devastadoras por<br />

elas engendra<strong>da</strong>s – momentos de<br />

ver<strong>da</strong>deiros abalos nas formas<br />

habituais de instalação do sujeito<br />

no mundo e no tempo, que colocam<br />

em questão os fun<strong>da</strong>mentos<br />

de sua existência. Seu potencial<br />

transformador ou a tendência à<br />

re-acoma<strong>da</strong>ção nas velhas formas<br />

de organização subjetiva serão<br />

em muito decididos em função do<br />

PÁGINA 16<br />

tipo de escuta e de acolhi<strong>da</strong> que<br />

forem <strong>da</strong><strong>da</strong>s ao paciente naquele<br />

momento crucial. Dessa forma,<br />

a re-instalação de um reconhecimento<br />

à importância <strong>da</strong> clínica<br />

psiquiátrica e a abertura à escuta<br />

<strong>da</strong> palavra espontânea do paciente<br />

nesse contexto corresponde a um<br />

ato potencialmente revolucionário<br />

de exposição de to<strong>da</strong>s as partes<br />

implica<strong>da</strong>s nessa situação médica<br />

ao real do pathos humano. Nessa<br />

situação, o dispositivo protetor<br />

constituído pelo saber médicopsiquiátrico<br />

mostra-se muitas vezes<br />

impotente para abafar tal contato,<br />

permitindo assim a instalação de<br />

efeitos que podem ser benéficos<br />

para o paciente, para o psiquiatra<br />

e para a própria psiquiatria, em<br />

termos <strong>da</strong> manutenção de sua vitali<strong>da</strong>de<br />

clínica.<br />

O acolhimento <strong>da</strong> dimensão propriamente<br />

subjetiva <strong>da</strong> experiência<br />

psicopatológica é, portanto, possibilitado<br />

pela escuta <strong>da</strong> narrativa<br />

livremente produzi<strong>da</strong> pelo paciente,<br />

atitude essa capaz de colocar em<br />

marcha os efeitos potencialmente<br />

disruptivos e/ou ela borativos desse<br />

ato de palavra oriun<strong>da</strong> do sofrimento<br />

vivo e dirigi<strong>da</strong> a um outro. É bem<br />

ver<strong>da</strong>de que, por vezes no IGDA,<br />

a ênfase <strong>da</strong> entrevista psiquiátrica<br />

recai na sua dimensão de “coleta<br />

de <strong>da</strong>dos”, reconduzindo assim o<br />

encontro clínico ao âmbito do contato<br />

de um paciente supostamente<br />

ignorante <strong>da</strong>s determinações do<br />

próprio padecimento, com uma<br />

autori<strong>da</strong>de científica, garanti<strong>da</strong> na<br />

figura do médico. Em outros momentos,<br />

porém, o processo escuta e<br />

de entrevista é descrito nos termos<br />

de uma douta ignorância, capaz de<br />

acolher o singular e o inusitado,<br />

sendo esta expressa por como significantes<br />

“arte”, “empatia”, “busca<br />

de contato”.<br />

Evidentemente estamos longe<br />

<strong>da</strong>s grandes problematizações teóricas<br />

sobre a estrutura do encontro<br />

psiquiatra – paciente, tais como<br />

emergiam nas obras de Freud,<br />

Binswanger ou Minkowski. Contudo,<br />

a abertura a tais questões permane-<br />

ce e a própria criação do IGDA e sua<br />

ênfase nos aspectos ideográficos<br />

e na estrutura narrativa dessa dimensão<br />

do diagnóstico psiquiátrico<br />

são um reconhecimento do caráter<br />

irredutível do sofrimento humano<br />

exclusivamente a um jogo de linguagem<br />

próprio às ciências naturais<br />

e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se garantir<br />

um espaço à palavra <strong>da</strong>quele que<br />

sofre, espaço esse capaz de deixar<br />

emergir o que não seria dedutível,<br />

nem previsível <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de de<br />

tal pessoa.<br />

Evidencia<strong>da</strong> tal clivagem entre<br />

physis e linguagem, constitutiva do<br />

campo psiquiátrico, cabe aos psicanalistas<br />

e demais psicopató logos se<br />

manifestarem sobre as potenciali<strong>da</strong>des<br />

e riscos dessa nova maneira<br />

de conceber o campo psiquiátrico<br />

que, em última instância, consiste<br />

em reconhecer as capaci<strong>da</strong>des revitalizadoras<br />

<strong>da</strong> velha e incerta clínica<br />

e <strong>da</strong> escuta dedica<strong>da</strong> ao paciente.<br />

Percebe-se, assim, que no contexto<br />

do IGDA algumas reflexões<br />

fun<strong>da</strong>mentais para a compreensão<br />

teórica e psicopatológica <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de<br />

do paciente e <strong>da</strong> natureza<br />

do encontro clínico não são conduzi<strong>da</strong>s<br />

a seus extremos, parecendo<br />

antes que se por um lado o valor <strong>da</strong><br />

escuta do paciente é reconhecido,<br />

por outro aquilo que emerge desse<br />

ato de palavra corre o risco de ser<br />

utilizado apenas como álibi para<br />

legitimar uma prática que separa o<br />

sujeito e seu sintoma, que sustenta<br />

ideais sociais de a<strong>da</strong>ptação e de reabilitação<br />

e que não compreende, de<br />

fato, o impacto do encontro clínico<br />

e <strong>da</strong> palavra sobre os destinos subjetivos<br />

de seu padecimento mental.<br />

Essa distância entre as aberturas<br />

que tal proposta pode introduzir na<br />

clínica psiquiátrica contemporânea<br />

e sua efetivação concreta no plano<br />

ético e prático permanece como<br />

um desafio a ser elaborado tanto<br />

teórico, quanto praticamente.<br />

Pode-se dizer, para concluir, que<br />

a recente chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> proposta de<br />

uma abor<strong>da</strong>gem diagnóstica em<br />

psiquiatria que leva explicitamente<br />

em conta a palavra e a dimensão<br />

simbólica singular de ca<strong>da</strong> indivíduo<br />

pode representar um grande<br />

avanço em relação a uma clínica<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> exclusivamente no diagnóstico<br />

formal e generalizante, tal<br />

como pratica<strong>da</strong> nos últimos anos.<br />

Contudo, a condição para que<br />

esse objetivo não seja letra morta<br />

ou mera propagan<strong>da</strong> vazia é a de<br />

que a palavra do paciente e as circunstâncias<br />

de escuta por parte do<br />

médico possam efetivamente ser<br />

teorizados e aplicados de forma a<br />

permitir a expressão singular de um<br />

sujeito, de seu sofrimento e de suas<br />

formas de li<strong>da</strong>r com seus impasses<br />

e conflitos, com conseqüências dialéticas<br />

concretas sobre ele próprio<br />

e sobre o cui<strong>da</strong>do médico que lhe<br />

é dedicado.<br />

Sem isso, a nova situação corre o<br />

risco de ser ain<strong>da</strong> mais grave e perniciosa<br />

do que a precedente, uma<br />

vez que travestiria de humanismo<br />

e de escuta do outro, aquilo que,<br />

em última instância, não passaria<br />

de uma justificativa aos olhos do<br />

paciente e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para uma<br />

prática arbitrária de reduzir o sofrimento<br />

humano a um dispositivo<br />

político de controle e de poder –<br />

como bem adverte Foucault, que<br />

paralisa o sujeito em uma posição<br />

de objeto definido pelo Outro, seja<br />

este Outro, um senhor prestigioso<br />

autorizado pela ciência.<br />

É assim, que em nossos dias, o<br />

discurso psiquiátrico assume junto<br />

à cultura o poder de organizador de<br />

nossas formas de conceber nossas<br />

próprias paixões e sofrimentos. A<br />

discussão dos substratos éticos<br />

e filosóficos <strong>da</strong>s classificações <strong>da</strong><br />

Psiquiatria assume um caráter<br />

fun<strong>da</strong>mental e a Psicopatologia,<br />

longe de ter-se tornado uma língua<br />

morta, deve ser retoma<strong>da</strong> nesses<br />

debates com urgência e em to<strong>da</strong><br />

sua radicali<strong>da</strong>de.<br />

Psicanalista, Psiquiatra. Professor do Departamento<br />

de Psicologia Médica e Psiquiatria <strong>da</strong><br />

UNIC<strong>AMP</strong>. Diretor do Laboratório de Psicopatologia<br />

Fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> UNIC<strong>AMP</strong>. Professor do<br />

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes<br />

Sapientiae de São Paulo.


Psiquiatrias: de onde viemos, quem somos<br />

e para que uma associação?<br />

Não tem como falar sobre a<br />

história <strong>da</strong> Psiquiatria sem injustiça,<br />

privilegiando um momento,<br />

ou um autor e esquecendo outros<br />

tantos. Somos filhos de nosso<br />

tempo e de nossa perspectiva<br />

para olhar o mundo.<br />

Foi muito grande a evolução<br />

<strong>da</strong> Psiquiatria nos séculos XIX e<br />

XX. Com os recursos para diagnóstico<br />

por imagem que existem<br />

atualmente, se torna desejável<br />

que também façamos um registro<br />

do interior de nós mesmos e<br />

de nossa prática.<br />

No cenário atual, vemos médicos<br />

que atendem pacientes<br />

psiquiátricos com condutas que<br />

nos remetem a uma viagem no<br />

tempo: existem os repetidores<br />

de mantras institucionais<br />

paralisantes que permanecem<br />

imersos em sombrias cavernas<br />

anacrônicas, com conceitos e<br />

terapêuticas sem qualquer respeitabili<strong>da</strong>de<br />

científica, voltando<br />

a um saber de posição marginal<br />

em relação à medicina.<br />

Em sua infância, a Psiquiatria<br />

manifestou-se pelo cui<strong>da</strong>do em<br />

humanizar o tratamento, com os<br />

trabalhos e práticas de Philippe<br />

Pinel (1745­1826). Os achados<br />

de substratos orgânicos em<br />

muitas doenças mentais, tendo<br />

a Paralisia Geral Progressiva<br />

como para digma, introduziram<br />

a Psiquiatria no campo <strong>da</strong>s disciplinas<br />

médicas.<br />

Na adolescência, como uma<br />

colecionadora, iniciou a organização<br />

nosológica com Kraepelin,<br />

a fenomenologia de Jaspers e a<br />

formulação do inconsciente com<br />

Freud, em 1900. Rebelde, a corrente<br />

Antipsiquiatria, na déca<strong>da</strong><br />

de 1960 valeu pela irreverência,<br />

resultando na popularização do<br />

tema com a ven<strong>da</strong>gem de livros<br />

verborrágicos: na Inglaterra,<br />

Ronald D. Laing, com a obra “O<br />

eu dividido” (1960), e David G.<br />

Cooper, autor de “Psiquiatría<br />

Luís Carlos Calil<br />

e antipsiquiatria” (1967) e “A<br />

morte <strong>da</strong> familia” (1971). Questionando<br />

e culpando a família e<br />

o Estado, que estariam, segundo<br />

os autores, convertendo a enfermi<strong>da</strong>de<br />

mental em um mito,<br />

sendo os psiquiatras, instrumentos<br />

do poder opressor.<br />

Nasce “O eu dividido” dentro<br />

de alguns psiquiatras, que não<br />

encontram uma identi<strong>da</strong>de clara,<br />

ora não são ninguém, ora querem<br />

ser todos. Os psiquiatras<br />

pré-genitais, que não atingiram<br />

a fase, na qual meninos e meninas<br />

percebem suas diferenças<br />

e se assustam por não serem<br />

totipotentes. Psiquiatras não<br />

são neurologistas, não são psicólogos,<br />

quando têm clara sua<br />

identi<strong>da</strong>de, são somente Psiquiatras.<br />

Que bom ser diferente<br />

e no encontro poder se completar.<br />

A Antipsiquiatria, como todo<br />

movimento <strong>da</strong> contracultura, foi<br />

efêmera.<br />

A derruba<strong>da</strong> literal de hospitais<br />

psiquiátricos, por Basaglia,<br />

além de gerar empregos na<br />

área de construção civil, que os<br />

reconstruiu, ajudou a relembrar<br />

as lições de Pinel que quase dois<br />

séculos antes, alertara na direção<br />

de um tratamento humanístico<br />

nos hospitais psiquiátricos.<br />

Impulsionado pelo mapeamen<br />

to genético, a identificação<br />

de mais gens relacionados aos<br />

transtornos mentais, em breve,<br />

deve trazer avanços comparáveis<br />

ao <strong>da</strong> Clorpromazina, na<br />

déca<strong>da</strong> de 1950.<br />

Saindo <strong>da</strong> caverna, olhando<br />

para além <strong>da</strong>s sombras, neste<br />

início de século XXI, a Psiquiatria,<br />

sabendo de sua identi<strong>da</strong>de,<br />

pode atingir a i<strong>da</strong>de adulta e<br />

maturi<strong>da</strong>de. Fazendo revisão<br />

crítica em sua história, rejeitando<br />

concepções mágicas e<br />

místicas, o discurso panfletário,<br />

a pseudologia fantástica, pode<br />

assimilar o que produziu de me-<br />

lhor e concentrar-se na busca<br />

<strong>da</strong> superação de suas deficiências.<br />

Retomar um caminho que<br />

nunca deveria ter abandonado,<br />

um modelo claramente médico<br />

para tratamento e pesquisas em<br />

Psiquiatria.<br />

Dado este panorama <strong>da</strong><br />

Psiquiatria, um dos papéis associativos<br />

mais relevantes, no<br />

momento, será o de manter a<br />

identi<strong>da</strong>de do médico psiquiatra,<br />

estar próxima a residentes de<br />

Psiquiatria, psiquiatras e pesquisadores<br />

<strong>da</strong> área, para levar<br />

aos seus associados o que há de<br />

melhor em suas áreas de conhecimento.<br />

É um papel educativo<br />

que se refletirá em um corpo<br />

profissional e de assistência<br />

qualifica<strong>da</strong> ao paciente.<br />

Está em vias de se concretizar<br />

a norma <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Médica<br />

Brasileira, em que o Título de<br />

Especialista deverá ser revali<strong>da</strong>do<br />

a ca<strong>da</strong> cinco anos. Uma<br />

iniciativa que pode ser vista<br />

com pouca simpatia por alguns,<br />

que se verão obrigados a viajar<br />

no tempo, saindo <strong>da</strong> bruxaria<br />

medieval para os dias atuais,<br />

se quiserem ter a denominação<br />

de Especialistas em Psiquiatria.<br />

Com os meios eletrônicos<br />

disponíveis, a educação continua<strong>da</strong><br />

médico-psiquiátrica deve<br />

ser permanente, ir além dos<br />

Congressos, que são o encontro<br />

maior dos especialistas.<br />

Atualizar conhecimentos que<br />

subsidiem habili<strong>da</strong>des. Sendo<br />

representante de especialistas,<br />

assegurar que estes mantenham<br />

vivo o cui<strong>da</strong>do com a profissão.<br />

Sabendo que somos, poderemos<br />

saber para onde queremos<br />

ir, neste percurso, nossa associação<br />

pode ser de grande aju<strong>da</strong>.<br />

Psiquiatra pela AMB-ABP. Professor de Psiquiatria<br />

<strong>da</strong> FMTM. Membro <strong>da</strong> Comissão de Revali<strong>da</strong>ção de<br />

TE e <strong>da</strong> Comissão de Residência Médica <strong>da</strong> ABP.<br />

PÁGINA 17


O que escrever para O Risco, importante<br />

informativo <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />

<strong>Mineira</strong> de Psiquiatria, sobre o tema<br />

do próximo Congresso Brasileiro de<br />

Psiquiatria, em Belo Horizonte, no<br />

próximo ano, congresso nacional,<br />

a ca<strong>da</strong> vez, consegue agregar mais<br />

pessoas, sob a égide <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />

Brasileira de Psiquiatria. Na<strong>da</strong> mais<br />

oportuno que este tema, Diretrizes<br />

em Psiquiatria.<br />

Podemos aproveitá-lo para fazer<br />

uma declaração de princípios.<br />

Quando está tudo muito moderno,<br />

pode parecer que estou<br />

velho. Nem tanto! São apenas<br />

duas déca<strong>da</strong>s de prática cotidiana<br />

de psiquiatria clínica, de ensino e<br />

de psicanálise. Quero dizer, com<br />

Zizek, em seus últimos artigos,<br />

no Caderno “Mais” <strong>da</strong> Folha de<br />

São Paulo, que não existem várias<br />

éticas. Um comitê de ética para<br />

ca<strong>da</strong> profissão. Só uma para a<br />

humani<strong>da</strong>de.<br />

O que nos dirige deve ser a<br />

opção radical pelo sujeito levado<br />

às ultimas conseqüências de seu<br />

Desejo, de sua Singulari<strong>da</strong>de e de<br />

sua Contingência na Cultura. Obra<br />

aberta – em construção, surpreendente<br />

esse tal sujeito. Não se<br />

resume a classificação nem a regras<br />

de conduta nem a burocracia<br />

mortificante, esse tal sujeito.<br />

Não existem psiquiatrias adjetiva<br />

<strong>da</strong>s. Uma só já basta para uma<br />

práxis tão complexa quanto diversa,<br />

apoia<strong>da</strong> nas ciências e na linguagem.<br />

Hoje, mais que nunca, construções<br />

inacaba<strong>da</strong>s, sujeitas a reformas,<br />

marchas e contramar chas, e nossa<br />

constante vigilância ética.<br />

Não podemos admitir o psiquiatra<br />

independente de escola,<br />

de comunicação com os colegas<br />

pares e ímpares, com os colegas<br />

de disciplinas afins e de outros<br />

campos do Saber.<br />

PÁGINA 18<br />

Gente não é bem de consumo<br />

Como não se estarrecer vendo<br />

os colegas “correndo atrás do prejuízo”,<br />

atendendo rapi<strong>da</strong>mente as<br />

pessoas? Não podemos suportar<br />

ficar sem a antiga troca de idéias<br />

sobre os casos, as situações limite<br />

e os inclassificáveis. Não prescin<strong>da</strong>mos<br />

do coleguismo companheiro e<br />

corajoso que não teme a conversa<br />

franca e respeitosa, sem meias<br />

palavras e conchavos.<br />

Horrorizamos-nos com o que<br />

fizeram do manual de classificação<br />

internacional de doenças. Ele se diz<br />

ateórico, apolítico e neutro. Nós e<br />

nossos pacientes somos teóricos<br />

políticos (forjamos conceitos há<br />

séculos) mesmo quando abstêmios<br />

<strong>da</strong> política partidária e fazemos<br />

escolhas na clínica em todos os<br />

nossos atos, desde o mais simples<br />

gesto até o mais complexo exame.<br />

A Medicina, <strong>da</strong> qual a Psiquiatria<br />

é <strong>da</strong>s últimas filhas, é profissão antiqüíssima<br />

e, desde seus pri mór dios<br />

até à época <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de, exige<br />

nossa presença viva, nosso corpo e<br />

nossa palavra gasta até às letras.<br />

Voltemos a perguntar ao paciente<br />

se o remédio está bom. A<br />

prescrever segundo preceitos ortodoxos,<br />

respeitando priori<strong>da</strong>des,<br />

al go ritmos, <strong>da</strong> clínica médica, <strong>da</strong><br />

psiquiatria e, dentro do possível,<br />

obedecendo ao diálogo com as<br />

outras especiali<strong>da</strong>des médicas.<br />

Saibamos indicar os colegas e sugerir<br />

inter consultas. Busquemos<br />

supervisões com os sábios.<br />

Procuremos saber se o paciente<br />

está à vontade conosco, se o ambiente<br />

de tratamento está o mais<br />

confortável possível. Não estou<br />

aludindo a luxo.<br />

Tenhamos compaixão pelo sofrimento<br />

humano.<br />

Não esqueçamos deste pobre ser<br />

que mata, destrói e sente prazer nisso,<br />

sem que nos impliquemos também.<br />

Francisco José dos Reis Goyatá<br />

Em que participamos dos terrorismos:<br />

oficiais ou extra­oficiais?<br />

De Estado ou de grupelhos? Devemos<br />

arregaçar mangas e tornar<br />

nossa profissão uma prática de<br />

cultura, liber<strong>da</strong>de e participação.<br />

Com nossos colegas de outras<br />

profissões que são sérios como<br />

nós, estu<strong>da</strong>m como nós e sabem<br />

como nós. Sem a tábula rasa que<br />

indica o marco a partir do qual um<br />

sabe mais do que outro. A nossa<br />

ignorância ain<strong>da</strong> é bem maior...<br />

então não faltará o que aprender.<br />

Devemos apoiar a organização<br />

de nossos pacientes, apoiar o laço<br />

social que possam fazer, desatrelados<br />

de qualquer saber prévio<br />

ou manual de instrução, colaborando<br />

e não induzindo. A eles os<br />

direitos, os deveres compartilhados<br />

e a amizade leal do trabalho.<br />

Uma boa dose de não-saber<br />

ativo não faz mal a ninguém neste<br />

mundo que já se atolou nas<br />

glórias do saber levado às últimas<br />

conseqüências, principalmente na<br />

medicina nazista.<br />

Sigamos os princípios médicos<br />

mais fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Saúde não é negócio; segurosaúde<br />

não é seguro de carro. Gente<br />

não é bem de consumo.<br />

Cuidemos para que nossos patrocinadores<br />

nos auxiliem em nossas<br />

jorna<strong>da</strong>s e não o inverso: patrocinem<br />

nossos corações e mentes.<br />

Arejemos nossas relações; a<br />

festa faz parte de nossa vi<strong>da</strong>, congresso<br />

é para rever velhos amigos<br />

e amigas deste e de outros estados,<br />

deste país continental e do<br />

mundo. Nossos hermanos latinoamericanos,<br />

africanos e tantos...<br />

Digamos não à promessa do<br />

kinder ovo: ca<strong>da</strong> vazio, uma surpresinha.<br />

Há momentos na nossa<br />

clínica que são de vazio mesmo,<br />

falta de solução em curto prazo e<br />

sofrimento. Quando não a inominável<br />

morte. Autorizemo-nos a<br />

chorar junto aos familiares e amigos.<br />

Sejamos amigos do colega que<br />

passa por dificul<strong>da</strong>de. Voltemos à<br />

Psiquiatria clássica, ao conceito,<br />

ao pensamento psiquiátrico, como<br />

no balé contemporâneo se aprende<br />

o clássico, para ousar com novas<br />

coreografias corporais.<br />

Avancemos nas pesquisas e<br />

queiramos tocar o desconhecido,<br />

mas evitemos o vanguardismo<br />

experi men talista, que não conta a<br />

conta do incontável que é uma vi<strong>da</strong><br />

humana, segundo Alain Badiou.<br />

Lutemos por dispositivos de<br />

tratamento abertos, onde bate o<br />

sol e entra ar, que respeitem ao<br />

máximo o corpo do outro com suas<br />

marcas e histórias. Não podemos<br />

nos render ao experimentalismo<br />

fútil, empirista e pragmatista de<br />

intervir diretamente em neurônios<br />

e genes. Sobretudo evitemos o erro<br />

eu genista, hitlerista e stalinista, a<br />

massa igualitária e higiênica.<br />

Leiamos os consensos científicos<br />

aplicando-os no caso a caso.<br />

Apoiemos as universi<strong>da</strong>des públicas<br />

de quali<strong>da</strong>de.<br />

Valorizemos a praça e a nossa<br />

velha roça onde repousamos <strong>da</strong><br />

civilização. Nossos direitos de lazer<br />

e de repouso, de sonho e de paixão.<br />

Amemos a poesia e tentemos a<br />

tolerância religiosa.<br />

Tentemos ir além <strong>da</strong> utopia, ao<br />

impossível.<br />

Apostemos que, além de nós e<br />

do esforço que fizermos, a força <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> palavra humana vencerá.<br />

Mestrando em Psicologia pela UFME, Membro <strong>da</strong><br />

Diretoria <strong>da</strong> <strong>AMP</strong>


Diretriz é o conjunto de instruções<br />

ou indicações para se traçar e<br />

levar a termo um plano, uma ação,<br />

é uma norma de procedimentos.<br />

Psiquiatria é a parte <strong>da</strong> medicina<br />

especializa<strong>da</strong> no estudo e no tratamento<br />

<strong>da</strong>s doenças mentais;<br />

estu<strong>da</strong>m-se, investigam-se sintomas,<br />

síndromes, doenças e seus<br />

tratamentos em to<strong>da</strong>s as áreas do<br />

saber pertinentes.<br />

A tarefa <strong>da</strong> psiquiatria tem sido<br />

hercúlea, <strong>da</strong><strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de de<br />

seu campo de ação. A psiquiatria<br />

vem seguindo seu rumo através de<br />

águas revoltas e com ingerências<br />

de to<strong>da</strong> sorte, como as ideológicas,<br />

econômicas e políticas, internas e<br />

externas. Mas os pacientes estão<br />

aí, não há como negar o padecimento,<br />

a doença. E não há como<br />

lhes negar atenção <strong>da</strong> forma mais<br />

apropria<strong>da</strong>, conforme as diretrizes<br />

clínico­científicas vigentes. É a<br />

tarefa <strong>da</strong> psiquiatria.<br />

Buscamos ca<strong>da</strong> vez mais insistentemente<br />

conhecimentos que<br />

nos iluminem em nossa tarefa. É<br />

impressionante o número de trabalhos<br />

científicos e a divulgação<br />

de textos em geral em psiquiatria.<br />

Já há especialistas em investigar<br />

investigações! As repercussões na<br />

mídia são até massacrantes. Os<br />

avanços são notáveis em to<strong>da</strong>s as<br />

direções, mas, claro, ninguém mais<br />

do que nós, psiquiatras, sabemos<br />

<strong>da</strong> incompletude e infinitude de<br />

nossa tarefa. Li<strong>da</strong>mos com a vi<strong>da</strong>,<br />

e com o que há de mais nobre e<br />

vivo na vi<strong>da</strong>.<br />

Feliz infinitude! Imaginem a<br />

cena: “Doutor, respondi to<strong>da</strong>s<br />

as questões do questionário e fiz<br />

aqueles exames. Está aqui, deu<br />

esquizofrenia D3SHT6XY.” “Ótimo”,<br />

diz o médico, “agora basta<br />

Uma tarefa hercúlea<br />

empregar a técnica de McJacobsohn<br />

associa<strong>da</strong> a uma intervenção<br />

combina<strong>da</strong> com raios neuroendoreguladores<br />

anti D3SHT6XY. Tome,<br />

faça isso que acor<strong>da</strong>rá amanhã<br />

muito bem!” É claro que nesse<br />

admirável mundo novo não haverá<br />

mais psiquiatras, para quê haveria?<br />

Mas não é só por interesses corporativistas<br />

que a infinitude é boa.<br />

Que mundo seria aquele? Ain<strong>da</strong><br />

acredito em Jaspers, quando diz:<br />

“Mas o conceito de enfermi<strong>da</strong>de<br />

psíquica adquire no homem uma<br />

dimensão completamente nova.<br />

No ser humano a sua incompletude,<br />

a sua abertura, a sua liber<strong>da</strong>de<br />

e as suas ilimita<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

são o fun<strong>da</strong>mento mesmo do seu<br />

estar adoentado.” Quando tudo se<br />

limitar a um “D3SH <strong>da</strong>s quantas”,<br />

onde terão lugar a liber<strong>da</strong>de e as<br />

ilimita<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des? Será a<br />

extinção do humano? Um mundo<br />

insosso.<br />

É complicado mesmo. E não<br />

acho que Freud explique. Não<br />

tem explicação, foge ao nosso<br />

alcance. Por que deveríamos ter<br />

explicação para tudo? Só em nossa<br />

imaginação fantasiosa, em nosso<br />

narcisismo.<br />

Certo, li<strong>da</strong>mos com o incomensurável.<br />

Mas há muito que fazer no<br />

âmbito de nossa tarefa. É o que,<br />

de imediato, interessa, estamos<br />

sintonizados nisso. Buscamos<br />

mesmo uma evidência científica<br />

arrasadora. Às vezes conseguimos<br />

– vencemos! – ou chegamos<br />

perto. É uma luta. Como dito, os<br />

avanços têm sido notáveis nesse<br />

sentido. Seria uma idéia em sentido<br />

kantiano, como diria Jaspers,<br />

um ponto futuro infinitamente<br />

distante, mas que nos indica frutífero<br />

e ver<strong>da</strong>deiro caminho de<br />

Maurício Viotti Daker<br />

investigação. Os resultados estão<br />

aí. Às vezes fazemos ver<strong>da</strong>deiros<br />

milagres em nossa clínica, mesmo<br />

que, quase sempre, não saibamos<br />

exatamente como aconteceram.<br />

Vamos no rumo, quando possível<br />

de forma mais precisa, com evidências,<br />

mas muitas vezes “pegando<br />

o boi pelo chifre”, ca<strong>da</strong> caso, um<br />

caso. Ciência, vivência, intuição,<br />

empatia, simpatia... Entra tudo.<br />

Diretrizes em psiquiatria: não<br />

resolverá tudo, mas, quanto mais,<br />

melhor. E claro, de quali<strong>da</strong>de, bem<br />

estabeleci<strong>da</strong>s! Implica reducionismo,<br />

não é possível “abraçar o<br />

mundo”. Atrevo-me a dizer que<br />

nunca, nunca mesmo, por princípio,<br />

tornaremos tudo em nossa<br />

área verificável. Mas quanto mais<br />

verificável e replicável, melhor, não<br />

resta dúvi<strong>da</strong>. Tudo isso suscita uma<br />

questão: e o que não é verificável<br />

e replicável? Que fazer com isto?<br />

O que não é evidente não está<br />

em evidência! Aquelas teorias<br />

fenomenológico-antropológicas,<br />

aqueles aprofun<strong>da</strong>mentos sintomatológicos<br />

psicopatológi cos,<br />

mesmo muito <strong>da</strong>s explicações<br />

freudianas, não os vejo mais em<br />

nossas produções especiali za<strong>da</strong>s<br />

psiquiátricas. O mundo acelerado<br />

de hoje não tem mais tempo para<br />

essas “divagações”? Divagação<br />

seria mesmo o contraposto de<br />

diretriz. Precisamos estar assim<br />

tão sintonizados no objetivável?<br />

E o resultado terapêutico, que<br />

interessa, no fim <strong>da</strong>s contas será<br />

melhor de um jeito, ou de outro?<br />

O subjetivo não é tão essencial em<br />

nossa prática?<br />

É complicado mesmo. Lembranos<br />

discussões seculares sobre a<br />

clínica e a pesquisa, sobre o humanismo<br />

e a ciência. Quem faz ciência<br />

“emburrece” para a clínica, quem<br />

clinica não vê sentido em tanta<br />

pesquisa “inútil” e nessa “bobice”<br />

de evidência pra tudo. É claro que,<br />

guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s proporções e<br />

em que pese um fundo de ver<strong>da</strong>de,<br />

tudo isso é contornável. De na<strong>da</strong><br />

adianta uma coisa sem a outra.<br />

O fato, certamente, é que ninguém<br />

é capaz de tudo. Por isso<br />

somos uma socie<strong>da</strong>de (e temos<br />

uma associação). Tem soado mais<br />

elegante ser acadêmico e cientista.<br />

Seria uma forma de competente<br />

dedicação, até de sacrifício, em<br />

prol <strong>da</strong> maioria? Donde a boa receptivi<strong>da</strong>de?<br />

Os estabelecedores<br />

de diretrizes. Quando assim o<br />

são e não estereótipo em função<br />

de benefício próprio, na<strong>da</strong> mais<br />

meritório.<br />

Diretrizes, consensos... Não nos<br />

esqueçamos também: há que os<br />

a<strong>da</strong>ptar a nossas reali<strong>da</strong>des socioculturais<br />

e econômicas ou criá-los<br />

de acordo com elas, um belo papel<br />

para a nação psiquiátrica.<br />

Em conjunto, seguimos nosso<br />

rumo. Minas é palco propício tanto<br />

para diretrizes, para ciência e<br />

eficiência, como para divagações<br />

críticas numa boa conversa confidente.<br />

Vamos galgar montanhas,<br />

no topo de ca<strong>da</strong> uma delas uma<br />

vitória e a constatação de que no<br />

caminho há outras tantas, até<br />

de pedra, pedra no caminho. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, são muitas as diretrizes<br />

possíveis, amplas em psiquiatria.<br />

Com os estimados colegas vamos<br />

passá-las a limpo!<br />

Prof. Adjunto Doutor do Departamento de Saúde<br />

Mental <strong>da</strong> FM-UFMG<br />

Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Acadêmica Psiquiátrica<br />

de Minas Gerais – AAP­MG<br />

PÁGINA 19


PÁGINA 20<br />

A psiquiatria no<br />

sistema de saúde nacional<br />

Márcio Pinheiro<br />

Graças ao empenho dos nossos dirigentes,<br />

iremos sediar no próximo ano o<br />

Congresso <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de<br />

Psiquiatria. Que oportuni<strong>da</strong>de rara de um<br />

congraçamento não apenas entre nós psiquiatras<br />

mineiros, mas também com todos<br />

colegas do Brasil. O tema é provocativo e<br />

certamente irá gerar muitos trabalhos que<br />

irão tratar <strong>da</strong> evolução de nossa profissão na<br />

medi<strong>da</strong> que novos <strong>da</strong>dos e evidências nos<br />

levam a modificar para melhor o exercício<br />

de nossa profissão. A pergunta maior será<br />

essa: para onde estará indo a psiquiatria<br />

no Brasil?<br />

Podemos levar essa pergunta para várias<br />

áreas de nossas ativi<strong>da</strong>des, começando<br />

pelo aspecto mais amplo: o de como a<br />

Psiquiatria irá se inserir no Sistema de<br />

Saúde Brasileiro e chegando até as pesquisas<br />

mais minuciosas relaciona<strong>da</strong>s com<br />

o funcionamento cerebral na saúde e na<br />

doença. Como iremos nos amol<strong>da</strong>r a essas<br />

mu<strong>da</strong>nças que se acumulam e que irão<br />

fatalmente influenciar as nossas práticas,<br />

instituições e intervenções?<br />

Estamos em plena era do movimento<br />

anti-manicomial, em um esforço muito<br />

grande de descentrar a psiquiatria dos<br />

hospitais e colocá-la como parte integrante<br />

de nossas comuni<strong>da</strong>des. No setor público,<br />

isso tem progredido até certo ponto, mas<br />

no setor privado ain<strong>da</strong> falta muito a ser<br />

feito. Não sabemos ain<strong>da</strong> até que ponto<br />

os planos e seguros saúde irão se unir a<br />

esse movimento, criando possibili<strong>da</strong>des<br />

de atendimentos psiquiátricos comunitários<br />

que irão impedir que pacientes sejam<br />

internados gerando maiores custos para<br />

eles. Essa mu<strong>da</strong>nça de foco do psiquiatra,<br />

para um atendimento comunitário e para<br />

uma cooperação com outras disciplinas,<br />

tem muito a ver com o aparecimento de<br />

novos programas comunitários.<br />

Na nossa clínica, o que estamos percebendo<br />

é um número ca<strong>da</strong> vez maior de<br />

pacientes segurados sejam eles <strong>da</strong> Unimed<br />

ou dos Planos e Seguros Saúde. Isso é uma<br />

mu<strong>da</strong>nça substancial que irá afetar as nossas<br />

práticas na medi<strong>da</strong> que, provavelmente,<br />

irão diminuir substancialmente o número<br />

de pacientes particulares que atendemos e<br />

iremos trabalhar sob as limitações impostas<br />

por essas empresas. Como poderemos nos<br />

a<strong>da</strong>ptar a essas mu<strong>da</strong>nças? Como poderemos<br />

sugerir a estas empresas os tipos de<br />

atendimentos que devem oferecer aos seus<br />

segurados para que sintamos à vontade de<br />

trabalhar com elas? E, porque não dizer,<br />

como iremos negociar com as empresas<br />

as recompensas que nos parecem justas<br />

pelos trabalhos prestados?<br />

Na área de nossas intervenções esta mos<br />

também no meio de muitos progressos,<br />

especialmente na área <strong>da</strong>s intervenções<br />

medicamentosas. Como acompanhar isso<br />

para estarmos sempre atuali zados e podermos<br />

assim oferecer o melhor para os<br />

nossos pacientes? Isso nos leva ao nosso<br />

relacionamento com a indústria farmacêutica<br />

e até que ponto nós poderemos manter<br />

uma certa autonomia na hora de decidirmos<br />

o que prescrever? Essas questões estarão<br />

aí para serem trabalha<strong>da</strong>s.<br />

Por fim, como iremos integrar os nossos<br />

conhecimentos respeitando as tendências<br />

de nossos colegas mais por um ou por<br />

outro aspecto do nosso trabalho clínico.<br />

Por exemplo, como iremos conviver com<br />

colegas que não pensam como nós em<br />

termos <strong>da</strong> etiologia e do tratamento <strong>da</strong>s<br />

doenças mentais? Aqui vai ser preciso uma<br />

certa humil<strong>da</strong>de para aceitar que no nosso<br />

campo tão vasto e complexo ninguém<br />

pode se arvorar em ser dono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Devemos ser capazes de escutarmos uns<br />

aos outros na medi<strong>da</strong> que estu<strong>da</strong>mos como<br />

melhor servir aos nossos pacientes. Nossa<br />

profissão deve abrigar a todos, desde os<br />

psiquiatras mais biológicos aos mais psicanalistas,<br />

numa colaboração que só pode nos<br />

tornar mais eficientes no nosso trabalho.<br />

No ano que vem em Belo Horizonte teremos<br />

a oportuni<strong>da</strong>de de receber colegas de<br />

todo o Brasil, para trocarmos idéias sobre<br />

essas questões e certamente muitas outras<br />

que irão surgir dentro dos temas propostos.<br />

Vamos trabalhar para que esse evento seja<br />

um grande sucesso!<br />

Psiquiatra e Psicanalista


A partir <strong>da</strong> crise <strong>da</strong> cosmologia<br />

medieval destroem-se os<br />

substratos pagãos que persistem<br />

por trás do novo ideário cristão<br />

e deses-truturam-se as formas<br />

antigas de expressão <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de<br />

imaginária. Acentua-se na<br />

cena religiosa a distância entre o<br />

bem e o mal e rejeitam-se agora<br />

os dois mecanismos simbólicos<br />

centrais na experiência antiga<br />

do homem com o imaginário: o<br />

sacrifício e o êxtase. As emoções<br />

desviantes do homem não podem<br />

mais encontrar, no abrigo religioso,<br />

a legitimi<strong>da</strong>de necessária para<br />

serem nomea<strong>da</strong>s.<br />

A questão <strong>da</strong> saúde mental<br />

é maior que os interesses de<br />

qualquer campo especializado do<br />

conhecimento ou mesmo campo<br />

profissional.<br />

A loucura diz respeito à própria<br />

cultura humana. É dela constitutiva<br />

e dela cui<strong>da</strong>r é a grande<br />

loucura <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de moderna.<br />

Nós psiquiatras amamos muito<br />

nossos pacientes, pois amar é prometer<br />

o que nunca será cumprido.<br />

Todos nós, profissionais <strong>da</strong> saúde<br />

mental, cui<strong>da</strong>dores, familiares e<br />

os próprios pacientes, amamos<br />

além do nosso bom senso.<br />

Ao fazermos o texto <strong>da</strong> Lei <strong>da</strong><br />

Saúde Mental (Paulo Delgado),<br />

no Brasil, tínhamos certeza que<br />

estávamos legislando em causa<br />

própria. Afinal, um louco (doente<br />

mental), de certa forma, é algo de<br />

nós pego em flagrante.<br />

Se pegarmos um giz e fizermos<br />

um círculo nele poderíamos<br />

ficar presos. E se o acariciarmos<br />

poderíamos torná-lo vicioso. Dessa<br />

forma, algo que construímos<br />

nos aprisiona e nos afeiçoa. Para<br />

O Semblante <strong>da</strong> Loucura<br />

sair do círculo de giz e do círculo<br />

vicioso é necessário romper o<br />

círculo de crenças e valores que<br />

tanto desenhamos e afagamos.<br />

Fazer uma descolonização de nós<br />

mesmos. Compreender a loucura<br />

como produtora de valores, tanto<br />

de serviços, como de bens materiais<br />

e simbólicos.<br />

Do que nos envergonhamos;<br />

muito de nossas loucuras, vem<br />

de sermos brasileiros. As nossas<br />

máscaras constituem-se na insistência<br />

de nossa incompetência coletiva,<br />

nas oportuni<strong>da</strong>des perdi<strong>da</strong>s<br />

que remontam às nossas origens<br />

históricas, de povo mestiço e de<br />

legitimi<strong>da</strong>de duvidosa.<br />

A identi<strong>da</strong>de brasileira é configura<strong>da</strong><br />

pela adoção <strong>da</strong> imagem de<br />

Macunaíma, de Mário de Andrade,<br />

como legítimo representante do<br />

modo de ser brasileiro, o herói sem<br />

nenhum caráter, no qual a tipici<strong>da</strong>de<br />

é a ausência de tipi-ci<strong>da</strong>de.<br />

As marchas e contra-marchas <strong>da</strong>s<br />

personali<strong>da</strong>des públicas justificam<br />

essa imagem.<br />

Para entender o Brasil, é preciso<br />

colocá-lo em seu contexto, a<br />

América Latina, com a qual não<br />

se identifica integralmente, mas<br />

participa <strong>da</strong>quela mesma comuni<strong>da</strong>de<br />

de origem ibérica, com<br />

traços religiosos comuns, além de<br />

estilos políticos e de insucessos<br />

equivalentes no árduo caminho<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de política, ética e<br />

econômica.<br />

Assumir a condição mestiça é<br />

nosso imperativo de autentici<strong>da</strong>de<br />

e a condição para a discussão de<br />

nossos problemas coletivos.<br />

Em tempos passados, viajantes<br />

aportavam ao Brasil e, passado<br />

um tempo, escreviam relatos<br />

João Ferreira <strong>da</strong> Silva Filho<br />

que muito alimentaram o imaginário<br />

dos europeus com o nosso<br />

exotismo. Muitas mentiras, com<br />

sabor de aventuras, tornaramse<br />

ver<strong>da</strong>deiras, como autênticas<br />

premonições sobre a reali<strong>da</strong>de<br />

futura (agora presente).<br />

O conhecido Hans Staden,<br />

que não se passava por doutor, e<br />

assim era apenas um aventureiro<br />

sem saber a demonstrar, foi feito<br />

prisioneiro pelos tupinambás, o<br />

que lhe rendeu um livro chamado<br />

de História Verídica. Foi um<br />

best-seller de seu tempo e até<br />

inspirou muitos dos autores do<br />

movimento <strong>da</strong> antropofagia. O<br />

tuxaua Cunhambebe o atiçava e<br />

os bugres diziam: aí vai nossa<br />

comi<strong>da</strong> pulando!<br />

Já o doutor Blumenau, ao começar<br />

sua colonização no sul do país,<br />

ficou surpreso com a “honesti<strong>da</strong>de”<br />

peculiar <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des. Ohne<br />

Geld zu spenden, hier is garnichts<br />

zu erlangen, und man muss die<br />

Leute von oben bis unten kaufen.<br />

Como não me agra<strong>da</strong> a bajulação<br />

pelos que falam javanês, aí vai uma<br />

possível tradução: sem dinheiro<br />

para <strong>da</strong>r, na<strong>da</strong> se consegue aqui,<br />

e a gente é obriga<strong>da</strong> a comprar<br />

todo mundo, de cima abaixo. Uma<br />

corrupção ativa, inclusive do austero<br />

doutor.<br />

Esse fenômeno, no campo <strong>da</strong><br />

saúde mental brasileiro, faz com<br />

que muitas vezes percamos o<br />

senso crítico e nos esqueçamos<br />

de rir de nós mesmos, como se a<br />

própria psiquiatria não nos tivesse<br />

ensinado a rir de muitas ver<strong>da</strong>des,<br />

ou já não tivesse produzido muitas<br />

ridículas ver<strong>da</strong>des.<br />

Há, nos dias que passam, uma<br />

rebiologização de temas e discus-<br />

sões anteriormente ligados à luta<br />

política. Talvez tenha se esgotado<br />

a concepção do humano anuncia<strong>da</strong><br />

no século XVI: Comigo me desavim,/<br />

No estremo som do perigo;/<br />

Não posso aturar comigo/ Nem<br />

posso fugir de mim. (Francisco<br />

de Sá de Miran<strong>da</strong>. Cantiga VII).<br />

É como o amarelo do Brasil:<br />

brasileiro tem vergonha <strong>da</strong> glória.<br />

Chora pelo dever cumprido,<br />

nosso bronze “vale ouro”; prata”<br />

vale ouro”; chegar lá “vale ouro”.<br />

Só briga com quem não conhece,<br />

porque se conhecer, vira amigo.<br />

Ganhar, para brasileiro, é difícil,<br />

porque os outros, muitas vezes,<br />

são mesmo melhores, mas, também,<br />

porque os outros, muitas<br />

vezes, são o que queremos ser.<br />

Assim, derrotá-los é derrotar o<br />

nosso desejo, é derrotar aquilo<br />

que nos permite nos diferenciar,<br />

na fala, do nosso outro, o povo<br />

comum e nos coloca, desse modo,<br />

no poder. Afinal uma terra tão lin<strong>da</strong>,<br />

só teria a estragá-la aqueles<br />

que a habitam. Vencer, muitas<br />

vezes, os europeus, ou seus replicantes<br />

australianos, canadenses,<br />

americanos é colocar no podium<br />

o Brasil dos brasileiros. Por isso<br />

os nossos iatistas vencem pelos<br />

seus sobrenomes (Scheidt, Grael<br />

etc). Os outros amarelam, pelos<br />

seus nomes. Têm o ouro como<br />

objeto deslocado de desejo e não<br />

como meio de afirmação de uma<br />

pretensa superiori<strong>da</strong>de nacional.<br />

Nós, brasileiros, envergonha<strong>da</strong>mente,<br />

já somos internacionais<br />

e até parecemos loucos.<br />

Decano do Centro de Ciências <strong>da</strong> Saúde – CCS/<br />

UFRJ<br />

PÁGINA 21


Como de hábito, leio o jornal de cabo a<br />

rabo. Na primeira quinzena de fevereiro,<br />

deparei-me com um necrológio peculiar:<br />

noticiava-se a morte de um ci<strong>da</strong>dão falecido<br />

devido a cinco causa mortis. O latim não<br />

estava no plural, mas o despautério era<br />

evidente; se um ci<strong>da</strong>dão deve sua morte a<br />

cinco causas, pode se concluir que morreu<br />

cinco vezes e não apenas uma ou, pensarse<br />

nos gatos que têm sete ou nove vi<strong>da</strong>s,<br />

dependendo <strong>da</strong> cultura.<br />

A morte é uma só, pode ser devi<strong>da</strong> a<br />

causas naturais ou pode ser provoca<strong>da</strong>.<br />

Neste segundo tópico inserir-se-iam as<br />

acidentais (ou ocasiona<strong>da</strong>s por acidentes<br />

involuntários, como a que<strong>da</strong> de um aeroplano...),<br />

as causa<strong>da</strong>s por auto­aniquilação<br />

(ou suicídio), a outros agentes não­naturais<br />

ou não­acidentais (assassinatos, balas<br />

perdi<strong>da</strong>s e quejandos...) e, finalmente, por<br />

razões indetermina<strong>da</strong>s ou indetermináveis.<br />

Aparentemente, numa primeira leitura, o<br />

penitente mencionado no necrológio somou<br />

to<strong>da</strong>s estas causas para se chegar às cinco<br />

que eram menciona<strong>da</strong>s.<br />

Parênteses devido: balas perdi<strong>da</strong>s não<br />

são acidentes; são situações previsíveis e<br />

paradigmáticas <strong>da</strong> omissão do estado em<br />

proteger devi<strong>da</strong>mente os ci<strong>da</strong>dãos, quer<br />

paguem ou não impostos.<br />

É evidente que o autor do anúncio<br />

necrológico estava reproduzindo, quiçá<br />

espantado, o que constava no atestado<br />

de óbito, oriundo de uma classificação <strong>da</strong><br />

Organização Mundial <strong>da</strong> Saúde – OMS ­ que<br />

lista, de forma internacional, as doenças<br />

e as causas de morte. Se a morte pode<br />

ser responsabili<strong>da</strong>de de cinco causas e é<br />

tão definitiva, como se classificariam as<br />

doenças que a ela conduzem? Existiria uma<br />

só doença, caracteriza<strong>da</strong> pela ausência de<br />

saúde ou seriam inumeráveis as causas que<br />

dela nos priva? Afinal, por quê se afirmar<br />

de quantas causas se parte desta para o<br />

desconhecido? A quem pode isto interessar?<br />

Ao partinte ou aos insignes ficantes?<br />

PÁGINA 22<br />

Das necessi<strong>da</strong>des desnecessárias<br />

J. Romildo Bueno<br />

A necessi<strong>da</strong>de de classificar, de tentar<br />

<strong>da</strong>r nomes aos bois que parecem, mas<br />

não são iguais é mais antiga que a Sé de<br />

Braga, A classificação mais perfeita talvez<br />

seja a de Orwell, em Animal Farm, quando<br />

deduz que todos os porcos são iguais, só<br />

que alguns são mais iguais que outros...<br />

Quando Linnaeus, ou Lineu (para os<br />

íntimos...) inaugurou sua taxonomia do<br />

reino vegetal, criou a necessi<strong>da</strong>de de se<br />

estendê-la ao reino animal, copiando as<br />

taboas classificatórias dos minerais e dos<br />

elementos naturais. Até aí, tudo bem. Este<br />

esforço nos conduziu ao homo quasisapiens<br />

e ajudou a entender a teoria <strong>da</strong> evolução.<br />

De repente, além <strong>da</strong>s doenças que nos<br />

afligem criamos a necessi<strong>da</strong>de de nomeálas,<br />

de saber suas origens, sua evolução<br />

para se determinar como e onde atuar<br />

para impedir seu objetivo final. Deu-se<br />

origem ao diag nóstico que traz em seu<br />

bojo o prognóstico que irá determinar a<br />

forma <strong>da</strong> intervenção terapêutica. A importância<br />

deste fato, a definição deste olhar<br />

especializado, a criação <strong>da</strong> clínica é uma<br />

destas necessi<strong>da</strong>des que nunca se tornam<br />

desnecessárias: uns ci<strong>da</strong>dãos, através de<br />

estudo e dedicação, se tornam mais iguais<br />

que outros e a eles se delega um poder: o<br />

de diagnosticar e de tratar condições que<br />

interferem com a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> de<br />

outrem. Esta outorga, esta renuncia social<br />

pode ser questiona<strong>da</strong>, cassa<strong>da</strong> ou extinta.<br />

Quando, durante a revolução cultural<br />

maoísta, extinguiu-se esta delegação de<br />

poder o resultado foi bem conhecido: sem<br />

o conhecimento é impossível que todos os<br />

ci<strong>da</strong>dãos possam olhar clinicamente, ouvir<br />

pacientemente e interpretar corretamente,<br />

isto é alguns podem diagnosticar, classificar,<br />

tratar, outros não.<br />

Entretanto, os que podem, além de rabiscarem<br />

mal e porcamente suas observações<br />

e prescrições, escondem-se em um jargão<br />

hermético, impenetrável, por vezes injustificável,<br />

e que tem sua origem em corpo-<br />

rativismo pseudocientífico, semelhante a<br />

sectarismos medievais de conseqüências<br />

<strong>da</strong>nosas, como a Idéia que a terra era o<br />

centro do mundo e todo o universo, tal<br />

qual ala de baianas de escola de samba,<br />

evolvia ao seu redor.<br />

A grafia dos médicos que têm a obrigação<br />

de informar corretamente os padecentes<br />

que buscam seus conselhos e serviços, de<br />

orientá-los sobre todos os passos e conseqüências<br />

de sua ação, deveria ser uma<br />

caligrafia e não uma cacografia insondável<br />

até mesmo para ausentes farmacêuticos<br />

ou despachados balconistas especializados<br />

em “empurroterapia”.<br />

As causas acima menciona<strong>da</strong>s contribuem<br />

para que os códigos classificatórios se tornem<br />

necessários para possibilitar o correto<br />

trabalho de amanuenses e estatísticos que<br />

trabalham para a saúde pública e precisam<br />

elaborar mapas, cartas, previsões et caterva.<br />

Suponhamos que eu entre em consultório<br />

psiquiátrico e seja atendido por especialista,<br />

titulado, professor universitário,<br />

funcionário público <strong>da</strong> secretaria municipal<br />

de saúde e ardoroso defensor dos atuais<br />

sistemas classificatórios que incluem uma<br />

doença principal e inúmeras “comorbi<strong>da</strong>des”.<br />

Com certeza mais certa que a morte,<br />

sairei <strong>da</strong> consulta com, PELO MENOS, uns<br />

três diagnósticos; entrei doente, saí moribundo,<br />

com três possíveis causae mortis!<br />

Posso até não ser corretamente tratado,<br />

mas morrerei tranqüilo com esta tríplice<br />

causali<strong>da</strong>de, meu atestado de óbito será<br />

uma perfeição!!!<br />

O atual sistema adotado, catalogado na<br />

CID –10, engloba transtornos mentais que<br />

se dividem em categorias e sub-categorias<br />

e que são numerados de F­ 00 a F – 99.<br />

Ca<strong>da</strong> “F” pode comportar de 1 até 10 subitens,<br />

totalizando cerca de 399 entra<strong>da</strong>s.<br />

Se combinarmos 399 elementos seja 2 a 2,<br />

3 a 3 ou 4 a 4, vai sobrar “comorbi<strong>da</strong>de”<br />

e faltar gente...


Existe uma pia<strong>da</strong> antiga, corrente nas déca<strong>da</strong>s<br />

de 60-70 e que se baseava no sucesso<br />

dos ansiolíticos entre todos os especialistas<br />

médicos, para-médicos, militares, boticários<br />

e papagaios-de-vizinhas: quando não<br />

se sabe o que ou que fazer, encaminha-se<br />

o queixoso para o psiquiatra. O psiquiatra<br />

sempre arranja um diagnóstico e estipula<br />

um tratamento, seja orgânico, medicamentoso<br />

ou ain<strong>da</strong> uma análise interminável que<br />

deixava pacientes, familiares, pe<strong>da</strong>gogos<br />

e profissionais felicíssimos. O importante<br />

não era deixar de fazer pipi na cama, mas<br />

sim se saber por quê o lençol amanhece<br />

molhado e, na falta do mordomo, a mãe<br />

é sempre culpa<strong>da</strong>... É a época de uma<br />

proliferação diagnóstica altamente criativa:<br />

pitís, distúrbios neuro-vegetativos,<br />

distonia vago-simpática, coração irritável e<br />

colón idem, agressivi<strong>da</strong>de infanto-juvenil,<br />

síndromes de desa<strong>da</strong>ptação, ansie<strong>da</strong>de<br />

diurna, ansie<strong>da</strong>de produtiva, ansie<strong>da</strong>de<br />

neurótica, atenção flutuante e tantas outras<br />

coisas como gastura, úlcera de estresse,<br />

espinhela caí<strong>da</strong>, encostos e possessões.<br />

Dizem as más línguas, destas que se<br />

o dono morder inadverti<strong>da</strong>mente morre<br />

envenenado, que no rastro de sucesso do<br />

meprobamato e dos benzodiazepínicos,<br />

diversos compostos foram sintetizados e<br />

outros de síntese anterior passaram a ser<br />

re-avaliados: causavam uma sensação vaga<br />

de bem-estar e na<strong>da</strong> mais. A indústria farmacêutica<br />

teria chegado à conclusão que<br />

se indicação não existisse, não fazia mal,<br />

A PSIQUIATRIA INVENTARIA UMA DOENÇA<br />

onde o novo milagre pudesse ser utilizado.<br />

A racional subjacente era que a psiquiatria<br />

de na<strong>da</strong> sabia, os pacientes eram todos<br />

sugestionáveis e um remédio, principalmente<br />

se é amargo, dá “dor no fígado”<br />

ou causa náusea é sempre eficaz e ain<strong>da</strong><br />

aju<strong>da</strong> a aumentar a ven<strong>da</strong> de “hépatoprotetores”.<br />

A situação era tão cômica que<br />

substâncias capazes de causar dependência<br />

eram vendi<strong>da</strong>s livremente sob o rótulo de<br />

antidistônicos: o Brasil inteiro sofria de<br />

“distonia vago-simpatica”, misturava-se<br />

ao ansiolítico ou ataráxico um bloqueador<br />

muscarínico, derivado de atropina e um<br />

estimulante alfa-adrenérgico e tudo estava<br />

resolvido. Houve mesmo um colunista<br />

social que chegou a propor se colocasse<br />

benzodiazepínico na água trata<strong>da</strong> que<br />

chegava às residências que recebiam o<br />

precioso líquido...<br />

Exageros perdoados, fica o fato: quanto<br />

maior a confusão diagnóstica, menor a<br />

quali<strong>da</strong>de do tratamento e as possibili<strong>da</strong>-<br />

des de recuperação: curar-se de uma só<br />

doença já é tão difícil, o que se dirá para<br />

se safar de três...<br />

Parece que estamos revivendo esta<br />

situação pirandelliana: para ca<strong>da</strong> novo<br />

medicamento, procura-se uma patologia<br />

estalando de nova; se o efeito antidepressor<br />

é fraco por quê não empregar a<br />

substância nas distonias, digo distimias...<br />

Se se emprega o recurso <strong>da</strong>s comorbi<strong>da</strong>des,<br />

coincidentemente multiplicam-se as<br />

possibili<strong>da</strong>des de indicações terapêuticas.<br />

Resta saber-se a quem serve esta pulverização<br />

diagnóstica. Ao especialista, com<br />

certeza não representa auxílio; antes o<br />

contrário; ao paciente também não – uma<br />

doença já é calvário suficiente, talvez sirva<br />

para contentar hipocondríacos de plantão.<br />

Ao lado disto, cria-se uma dificul<strong>da</strong>de<br />

de comunicação com outros especialistas,<br />

médicos ou não: hoje em dia o que mais<br />

se vê é a banalização dos diagnósticos<br />

de depressão, pânico ou fobias; todos os<br />

colunáveis, os pretendentes a um passeio<br />

na ilha de Caras ou de Coroas, têm uma<br />

ou mais destas condições.<br />

A “babelização” taxonômica prejudica<br />

o ensino <strong>da</strong> psiquiatria: ao invés de se<br />

estu<strong>da</strong>r psicopatologia, semiologia psiquiátrica<br />

ou combinações terapêuticas, o<br />

pobre residente se vê lendo as instruções<br />

de emprego, o modo de usar do DSM-IV-R<br />

ou <strong>da</strong> CID-10 e, a partir deste mergulho<br />

na sapiência, passa a juntar coincidências<br />

com mor bi<strong>da</strong>des, “psicopatologiza”<br />

o cotidiano e nos transforma a todos em<br />

transtornados.<br />

Resta a pergunta pertinente e que não<br />

quer se calar: a quem serve esta complicação?<br />

Aos psico-planejadores que nunca viram<br />

um paciente e vivem nos ditando regras<br />

sobre como diagnosticá-lo e a melhor maneira<br />

de tratá-lo?<br />

Aos senhores-professores-doutores que<br />

só assim conseguem fazer diagnósticos<br />

geniais?<br />

Aos especialistas de ponta, que estão<br />

na linha de frente e mal e porcamente têm<br />

tempo para colher <strong>da</strong>dos anamnésticos e<br />

se sentem seguros rabiscando uma sigla<br />

alfa-numérica?<br />

Aos sintetizadores de medicamentos<br />

que necessitam prová-los no uso diário?<br />

Aos fazedores de estatísticas oficiais<br />

que precisam mostrar serviço aos órgãos<br />

competentes?<br />

A este respeito e “a nível de” especulação<br />

só me sobra perplexa ignorância.<br />

Psiquiatra<br />

PÁGINA 23


No momento atual, no Brasil, novos referenciais<br />

para a Saúde Mental estão sendo<br />

propostos na rede pública de assistência,<br />

a alta prevalência de morbi<strong>da</strong>de psiquiátrica<br />

configura­a como um dos principais<br />

problemas de saúde <strong>da</strong> população, exigindo<br />

estratégias específicas nos Programas<br />

de Saúde <strong>da</strong> Família. Ao mesmo tempo,<br />

a grande disseminação que a questão <strong>da</strong><br />

atenção psiquiátrica alcançou na mídia produz<br />

desde o questionamento do modelo de<br />

assistência anteriormente vigente, centrado<br />

na internação psiquiátrica, até a inclusão<br />

dos transtornos mentais na cobertura dos<br />

planos e seguros privados de saúde.<br />

Paralelamente há uma propedêutica e<br />

uma terapêutica de ponta, que permitem<br />

o tratamento de casos severos antes assolados<br />

por efeitos colaterais muitas vezes<br />

incapacitantes, convive, paradoxalmente,<br />

em nosso meio, o modelo manicomial mais<br />

arcaico, sob a forma de convênios públicos<br />

e privados com hospitais psiquiátricos, cuja<br />

eficácia em termos <strong>da</strong> reabilitação psicossocial<br />

dos pacientes é nula. Por outro lado,<br />

esse mesmo avanço tecno ló gico produz,<br />

de forma inquietante, um certo deslumbramento<br />

generalizado com as promessas de<br />

a<strong>da</strong>ptação social embuti<strong>da</strong>s nos ideais contemporâneos<br />

de imagem, de desempenho e<br />

de juventude, que faz proliferar diagnósticos<br />

psiquiátricos - nem sempre fornecidos por<br />

psiquiatras, é bom lembrar - que recobrem<br />

dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> existência no que é próprio<br />

do nosso tempo massificante, consumista<br />

e pobre em rituais simbólicos.<br />

O saber psiquiátrico está em seu auge. A<br />

opção por esta especiali<strong>da</strong>de, antes mal vista<br />

pelos médicos, tem crescido e alcançado<br />

PÁGINA 24<br />

Um retrato <strong>da</strong> psiquiatria quando jovem<br />

Flashes em busca de diretrizes<br />

Musso Garcia Greco<br />

um novo status. O discurso científico abarca<br />

agora temas <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, antes relegados<br />

pela Medicina às chama<strong>da</strong>s Ciências<br />

Humanas, à Literatura e àquela que pode<br />

ser considera<strong>da</strong> a área “sem-teto”, entre<br />

as Ciências, a Psicanálise. As revistas de<br />

entretenimento, os jornais e os programas<br />

de TV dedicam espaço de honra a temas<br />

como depressão, transtornos alimentares,<br />

síndrome do pânico, ou distúrbios de<br />

atenção (a última “mo<strong>da</strong>” em diagnóstico,<br />

depois do boom do transtorno bipolar do<br />

humor, que quase todo mundo achava que<br />

tinha na vira<strong>da</strong> do século XX), criando uma<br />

nova cultura na população, independente<br />

<strong>da</strong> cama<strong>da</strong> social.<br />

A excitação que cerca o florescimento<br />

dessa nova fase <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Psiquiatria,<br />

entretanto, leva também a um incremento<br />

<strong>da</strong> arrogância nos meios profissionais, muito<br />

próxima <strong>da</strong> que observamos entre os adolescentes,<br />

ou entre os novos-ricos. Tanto para<br />

uns, quanto para outros, um narcisismo revigorado<br />

(pela energia do corpo, pelo poder<br />

<strong>da</strong> fortuna, ou pela aceitação social de um<br />

novo saber) pode obscurecer a sabedoria.<br />

No caso <strong>da</strong> Psiquiatria, a sabedoria de não<br />

tomar como explicação absoluta todo novo<br />

conhecimento do DSM, banalizando-o, e de<br />

não ceder ao apelo fácil de recobrir to<strong>da</strong> a<br />

complexi<strong>da</strong>de de um comportamento humano<br />

pela psicopatologia.<br />

Percebemos na prática cotidiana dos<br />

consultórios e ambulatórios que a própria<br />

consulta psiquiátrica corre o risco de<br />

perder seu caráter investigativo, para se<br />

tornar um “debate” sobre as vantagens<br />

de um psicofármaco sobre outro. Debate<br />

este promovido pelo próprio paciente, que<br />

muitas vezes já se apresenta ao médico<br />

com um diagnóstico (o “seu” diagnóstico)<br />

e uma proposta terapêutica (o “seu” remédio,<br />

geralmente o que foi divulgado num<br />

programa dominical de televisão, na capa<br />

de uma revista semanal de informação, ou<br />

em uma revista feminina), e não com uma<br />

pergunta sobre seu possível sofrimento. Ou<br />

tornar-se uma “aula” reducionista sobre<br />

uma possível causa neuroquímica/sindrômica<br />

de um mal de amor, de uma dor de<br />

existir, ou de um desconhecimento sobre<br />

o desejo. Ou ain<strong>da</strong> - o que talvez seja seu<br />

pior destino - tornar-se um simples e rápido<br />

procedimento de “encaixe” de qualquer<br />

queixa a uma prescrição no receituário.<br />

Não só essas facetas <strong>da</strong> descaracterização<br />

<strong>da</strong> clínica psiquiátrica merecem<br />

preocupação. A biologização <strong>da</strong> prática<br />

psiquiátrica caminha a passos largos para a<br />

tornar uma espécie de “sub-especiali<strong>da</strong>de”<br />

<strong>da</strong> Neurologia, ou uma mera Taxionomia,<br />

que descarta os avanços <strong>da</strong>s pesquisas<br />

acerca dos mecanismos inconscientes e<br />

sócio-psicológicos que sempre auxiliaram<br />

na expansão do conhecimento do universo<br />

mental humano. Afora a Genética, a Farmacologia,<br />

a Epidemiologia, a Sociobiologia, a<br />

Enfermagem e as especiali<strong>da</strong>des médicas<br />

(principalmente aquelas que cui<strong>da</strong>m dos<br />

diagnósticos por imagem e por dosagem,<br />

bem como <strong>da</strong>s pesquisas em eletrofisiologia<br />

e neuroanatomia), parecem ter sido<br />

reduzi<strong>da</strong>s as parcerias <strong>da</strong> Psiquiatria - por<br />

exemplo: com a Sociologia, a Antropologia,<br />

a Psicologia, a Psicanálise, a Pe<strong>da</strong>gogia, o<br />

Direito, a Filosofia, as Ciências Políticas, a<br />

Terapia Ocupacional, o Movimento <strong>da</strong> Luta<br />

Antimanicomial etc. -, que constituíam uma


forma de operar a partir <strong>da</strong> “douta ignorância”.<br />

Esta posição ética consiste em “saber<br />

não saber” no momento de uma avaliação,<br />

para que se construa, realmente, para<br />

ca<strong>da</strong> caso clínico, e para ca<strong>da</strong> fenômeno<br />

psicossocial, a interpretação mais próxima<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de subjetiva, e apenas a oferta<br />

terapêutica necessária.<br />

Portanto, no caminho para o amadurecimento<br />

dessa jovem especiali<strong>da</strong>de, aqui<br />

“fotografa<strong>da</strong>” muito brevemente, algumas<br />

linhas reguladoras precisam ser traça<strong>da</strong>s.<br />

As sete sugestões que se seguem pretendem<br />

agregar pontos para uma discussão<br />

maior que possa revelar com mais nitidez<br />

a direção que devemos tomar, não pretendendo,<br />

evidentemente, encampar todos os<br />

matizes <strong>da</strong> questão:<br />

1) na assistência aos portadores de<br />

transtornos mentais em momento emergencial<br />

ou de crise, as propostas de tratamento e<br />

acompanhamento devem evitar qualquer<br />

forma de anulação subjetiva, promovendo<br />

ou criando recursos que propiciem, tão<br />

logo seja possível, sua reinserção na esfera<br />

social, e assegurando a singularização dos<br />

projetos terapêuticos, e o protagonismo dos<br />

pacientes na rotina de qualquer instituição<br />

porventura necessária a esses projetos;<br />

2) o psiquiatra deve buscar a multidisciplinarie<strong>da</strong>de<br />

- ou mesmo a inter e a<br />

transdisciplinarie<strong>da</strong>de, quando necessárias<br />

- na montagem dos projetos terapêuticos de<br />

seus pacientes, articulando diversos saberes<br />

em torno de uma política democrática de<br />

tratamento;<br />

3) as famílias dos portadores de patologias<br />

mais severas devem estar no<br />

foco <strong>da</strong> atenção psiquiátrica, por meio<br />

de orientações acerca do cotidiano com o<br />

paciente, como: reconhecimento de sua<br />

estrutura psíquica peculiar, manejo <strong>da</strong> medicação,<br />

detecção dos sinais e aumento <strong>da</strong>s<br />

opções no enfrentamento <strong>da</strong>s crises, informação<br />

sobre avanços psicofarmacológicos e<br />

eventuais efeitos colaterais, monito ramento<br />

de programas de habilitação em tarefas<br />

domésticas, orientação quanto ao cui<strong>da</strong>do<br />

com a saúde como um todo (odontologia,<br />

clínica geral, especiali<strong>da</strong>des, exames laboratoriais,<br />

etc.), informação sobre os meios<br />

necessários para obtenção de benefícios<br />

assegurados por lei, convite à participação<br />

em ativi<strong>da</strong>des que favoreçam a inserção<br />

comunitária, informação sobre Associações<br />

de Usuários e Familiares, para a aumentar<br />

a capaci<strong>da</strong>de de fazer opções, conhecendo<br />

melhor os processos de adoe cimento<br />

psíquico e as formas de enfren tamento,<br />

além de aprender a discernir os meandros<br />

<strong>da</strong> Política Pública de Saúde Mental e os<br />

avanços científicos na área;<br />

4) no tratamento, deve-se lançar mão<br />

de todos os recursos terapêuticos disponíveis,<br />

sem desconsiderar a condição<br />

pessoal dos pacientes, no sentido de que<br />

têm uma história e devem encontrar saí<strong>da</strong>s<br />

individuais e sociais próprias, para além<br />

<strong>da</strong> mera supressão <strong>da</strong>s crises e do impedimento<br />

de comportamentos indesejáveis<br />

do ponto de vista <strong>da</strong> Ordem Pública, que<br />

sempre atribuiu à Psiquiatria as funções de<br />

controle social, coação e segregação;<br />

5) formalizar um modelo clínico que<br />

esteja inserido no contexto de uma construção<br />

teórico-prática despoja<strong>da</strong> de<br />

idealizações como: coerência e abolição<br />

de contradições no mundo; um conceito<br />

universal de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia que apagasse to<strong>da</strong>s<br />

as diferenças, inclusive aquelas decorrentes<br />

<strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des de uma estrutura clínica<br />

como a psicose; uma definição padroniza<strong>da</strong><br />

de estrutura familiar; regras de comportamento<br />

para equilibrar nossos neurotransmissores<br />

e nossa vi<strong>da</strong>, para acabar de vez<br />

com as indeseja<strong>da</strong>s (e tão humanas...)<br />

“paixões d´alma”; enfim, uma vi<strong>da</strong> “feliz,<br />

equilibra<strong>da</strong>, harmoniosa e proveitosa” a<br />

que todos devessem aceder, a qualquer<br />

preço, ain<strong>da</strong> que por meio do consumo de<br />

artifícios químicos, eletrônicos, cirúrgicos ou<br />

discursivos que atendessem ao imperativo<br />

impossível de uma “saúde” plena, própria<br />

do superego moderno, que intima ao gozo<br />

(“goze de to<strong>da</strong>s as maneiras!”), embora,<br />

paradoxalmente, ordene também seu regramento<br />

(gordura light, café sem cafeína,<br />

sexo seguro, mulher sem t.p.m., homem<br />

metrossexual etc.);<br />

6) evitar a banalização do saber<br />

psiquiátrico, resistindo aos apelos de<br />

simplificação formulados pelos meios de<br />

comunicação, com a conseqüente vulgarização<br />

de critérios diagnósticos e terapêuticos,<br />

que, mol<strong>da</strong>dos pelo resultado habitualmente<br />

cartesiano <strong>da</strong> tentativa jornalística de tornar<br />

um assunto compreensível para o grande<br />

público, perdem a dimensão dialética e<br />

complexa que está presente na entrevista<br />

psiquiátrica e na pesquisa acadêmica<br />

referente a temas psiquiátricos: tanto na<br />

consulta, quanto na investigação científica,<br />

é preciso não apenas levantar o sintoma,<br />

mas querer saber sobre o enigma do sintoma;<br />

7) por fim, em uma época de reprodutibili<strong>da</strong>de<br />

técnica, e que preconiza o “faça<br />

você mesmo”, em tudo favorável a procedimentos<br />

como a automedicação desenfrea<strong>da</strong>,<br />

cabe ao psiquiatra retomar a condução<br />

de uma clínica <strong>da</strong> escuta, em oposição<br />

a uma prática de uso fetichista do psicofármaco,<br />

servindo-se deste regulador<br />

de gozo no corpo para convocar o sujeito<br />

a um encontro com a palavra, em vez de<br />

sustentar a posição de sentir-se obrigado<br />

a prescrevê-lo, de acordo com a deman<strong>da</strong><br />

ca<strong>da</strong> dia mais especializa<strong>da</strong> de um paciente<br />

“que sabe o que quer”, ansioso que está por<br />

consumir todos os produtos que a Ciência<br />

moderna coloca à sua disposição, para se<br />

tornar, ele próprio, um objeto de consumo<br />

mais desejável.<br />

Psiquiatra, psicanalista membro-aderente <strong>da</strong> Escola Brasileira de<br />

Psicanálise, especialista em Saúde Mental pela ESMIG, mestre em<br />

Psicologia pela UFMG, diretor clínico <strong>da</strong> Casa Freud<br />

PÁGINA 25


Vivendo em um mundo<br />

confundido pelo fenômeno <strong>da</strong><br />

globalização, onde os ideais,<br />

os conceitos e os paradigmas<br />

foram quebrados, sem que se<br />

tenham ain<strong>da</strong> novas referências<br />

construí<strong>da</strong>s, a ca<strong>da</strong> dia<br />

nos defrontamos, no exercício<br />

<strong>da</strong> clínica, com estas mu<strong>da</strong>nças,<br />

que se refletem em novos<br />

sintomas, que nos in<strong>da</strong>gam<br />

sobre qual a melhor conduta,<br />

nos exigindo modificações em<br />

nossas táticas e estratégias.<br />

A proposta do XXIII Congresso<br />

Brasileiro de Psiquiatria,<br />

“Diretrizes em Psiquiatria”, a<br />

acontecer em Belo Horizonte,<br />

em 2005, não poderia ser mais<br />

oportuna: vai ao encontro <strong>da</strong><br />

proposta <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Mundial<br />

de Psiquiatria de introduzir<br />

“formulações ideográficas” na<br />

revisão dos sistemas de diagnósticos<br />

atuais, O próximo congresso<br />

anuncia, assim, já em<br />

seu tema uma missão fun<strong>da</strong>mental:<br />

trazer conseqüências.<br />

Nova clínica, novas instituições,<br />

novas intervenções são<br />

as coordena<strong>da</strong>s apresenta<strong>da</strong>s<br />

para trabalharmos estas diretrizes.<br />

Vejamos então.<br />

Qual o cenário atual <strong>da</strong> Psiquiatria?<br />

Existe efetivamente<br />

uma nova clínica? No momento<br />

em que preparo este material,<br />

realizamos em Belo Horizonte<br />

o Pré-congresso Brasileiro de<br />

Psiquiatria, promovido pela <strong>Associação</strong><br />

<strong>Mineira</strong> de psiquiatria<br />

PÁGINA 26<br />

Menos fascínio, mais responsabili<strong>da</strong>de<br />

e participo de uma mesa exatamente<br />

sobre novas formas<br />

de intervenção, abor<strong>da</strong>ndo os<br />

CAPS, as Residências Terapêuticas,<br />

os Acompanhantes<br />

Terapêuticos e as novas formas<br />

de internação.<br />

Os <strong>da</strong>dos absolutos são<br />

promissores. Tomando como<br />

exemplo Barbacena, ci<strong>da</strong>de<br />

mineira de 150 mil habitantes,<br />

ex-paradigma do modelo manicomial,<br />

metáfora <strong>da</strong> loucura,<br />

pode ser considera<strong>da</strong>, atualmente,<br />

paradigma do modelo<br />

substitutivo ao manicômio:<br />

com 4 mil leitos psiquiátricos<br />

em 1978, conta, atualmente,<br />

com 600 leitos, 20 Residências<br />

Terapêuticas, ocupa<strong>da</strong>s<br />

por 164 pacientes desospitalizados,<br />

1 CAPS, um hospitaldia<br />

para álcool e drogas, um<br />

ambulatório atendendo 1200<br />

pacientes-mês e centro de<br />

convivência, que atende 600<br />

pacientes-mês. Apresentava,<br />

até o ano 2000, 130 internações<br />

agu<strong>da</strong>s mensais e hoje,<br />

4 anos após a implantação<br />

dos serviços citados, interna<br />

mensalmente 13 pacientes.<br />

Estes <strong>da</strong>dos iniciais e atuais<br />

são comparados por escalas de<br />

avaliação <strong>da</strong> eficácia do novo<br />

modelo, seguindo diretrizes<br />

rigorosamente científicas.<br />

O trabalho de desospitalização<br />

e inclusão social está sendo<br />

feito de acordo com referências<br />

clínicas e sociais claras, con-<br />

Gil<strong>da</strong> Paoliello<br />

siderando as particulari<strong>da</strong>des<br />

e possibili<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um<br />

dos pacientes, dentro de diretrizes<br />

éticas que respeitam a<br />

subjetivi<strong>da</strong>de. A medicação é<br />

garanti<strong>da</strong> pelo SUS e a assistência<br />

psiquiátrica é feita por<br />

sistema de rede ambulatório-<br />

CAPS-centro de convivência.<br />

Uma marca interessante dessa<br />

abor<strong>da</strong>gem é a participação e<br />

responsabilização dos familiares<br />

e dos próprios pacientes<br />

no processo terapêutico. Se<br />

esta é uma clínica de exceção,<br />

dentro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira,<br />

ela delineia um modelo exeqüível<br />

e de bons resultados,<br />

podendo ser referência para a<br />

nova clínica.<br />

Outro recurso promissor<br />

é o farmacológico, principalmente<br />

os antipsicóticos, que,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, está sendo aliado<br />

importante <strong>da</strong> reforma psiquiátrica,<br />

permitindo uma desospitalização<br />

responsável, tanto<br />

pela maior eficácia como pela<br />

melhor adesão ao tratamento<br />

por parte dos pacientes, pela<br />

diminuição dos efeitos colaterais.<br />

Por outro lado, encontramos<br />

mundialmente um outro tipo<br />

de movimento na Psiquiatria:<br />

na última déca<strong>da</strong>, decidi<strong>da</strong>mente,<br />

esta deixou de ser uma<br />

margem na Medicina, tendo<br />

conquistado neste campo lugar<br />

definido e reconhecido.<br />

Entretanto, a teima obstina<strong>da</strong><br />

na busca de se nor matizar em<br />

um modelo médico­científico<br />

acaba por limitá-la, provocando<br />

conseqüências desastrosas.<br />

Concor<strong>da</strong>mos que o<br />

modelo cien tifico seja uma <strong>da</strong>s<br />

diretrizes importantes para a<br />

Psiquiatria. Mas não a única.<br />

Este mo delo não tem métodos<br />

para decidir sobre questões<br />

éticas e, em sua objetivi<strong>da</strong>de,<br />

exclui o sujeito. Ciência, ética<br />

e subjetivi<strong>da</strong>de articula<strong>da</strong>s<br />

seriam boas diretrizes para a<br />

Psiquiatria.<br />

Há, efetivamente, uma crise<br />

conceitual <strong>da</strong> Psiquiatria. Já<br />

não temos grandes mestres<br />

que nos tragam garantias de<br />

conhecimento e uma linguagem<br />

psicopatológica comum<br />

que nos permita uma prática<br />

referen<strong>da</strong><strong>da</strong>. Muito pelo<br />

contrário. Como comenta o<br />

Professor João Romildo Bueno<br />

(Psiquiatria Hoje, ano XIII,<br />

no.1), “a epidemia nosográfica<br />

que impera atualmente e tem<br />

no DSM sua referência mais<br />

acaba<strong>da</strong>, impede quem dela<br />

é contagiado de construir um<br />

diagnóstico adequado, uma<br />

vez que este foi substituído<br />

por um conjunto de critérios<br />

de inclusão e exclusão sintomaticamente<br />

orientado”, que<br />

se apresenta como a-histórico,<br />

a-teórico e a-doutrinário. Além<br />

disso, o banimento de tudo que<br />

faz menção à origem psíquica e<br />

somática, como explicitado na


apresentação <strong>da</strong> última versão<br />

<strong>da</strong> Classificação de Transtornos<br />

Mentais e de Comportamento<br />

<strong>da</strong> CID-10, torna este conjunto<br />

classifi­catório também asexuado<br />

(lembrando que a pulsão<br />

sexual se situa como conceito<br />

exatamente entre o psíquico<br />

e o somático), sem qualquer<br />

relação com as diferenças ou<br />

com a linguagem, com to<strong>da</strong>s<br />

as conseqüências que isso<br />

acarreta na clínica.<br />

A teima em persistir neste<br />

objetivismo e “rigor científico”<br />

purista acaba provocando um<br />

rigor mortis, com a extinção <strong>da</strong><br />

clínica, do paciente enquanto<br />

sujeito e do psiquiatra enquanto<br />

clínico, desconhecendo que<br />

a queixa do paciente é feita de<br />

inibição, sintoma e angústia.<br />

Filha de Psique e do biológico,<br />

a Psiquiatria é mesmo mestiça,<br />

sonho e pó, multifaceta<strong>da</strong>,<br />

dividi<strong>da</strong>, tão demasia<strong>da</strong>mente<br />

humana quanto nós. Lembrando<br />

Charcot, “a teoria é boa,<br />

mas não impede que as coisas<br />

aconteçam”: a prática sempre<br />

deve anteceder às elaborações<br />

teóricas; se esta ordem se<br />

inverte, a clínica se transforma<br />

em um leito de Procusto,<br />

onde <strong>da</strong>dos sobre o paciente<br />

são selecionados para caberem<br />

dentro desta ou <strong>da</strong>quela<br />

concepção. A inversão destes<br />

valores deixa em seu rastro<br />

inúmeras mutilações. Também<br />

a consideração do sintoma<br />

deve ir além <strong>da</strong> objetivação <strong>da</strong><br />

ciência, considerando este fenômeno<br />

sempre presente, mas<br />

nem sempre bem conduzido,<br />

que é a transferência. Nunca<br />

é demais lembrar que a clínica,<br />

o psiquiatra, o paciente e<br />

seu sintoma caminham juntos,<br />

às vezes tropeçando em um<br />

impossível de suportar, que<br />

nem sempre a objetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

ciência pode apreender.<br />

Para a discussão e a resposta<br />

a estes impasses propomos<br />

estas questões: como fica a singulari<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> clínica do sujeito<br />

no trabalho coletivo dos novos<br />

dispositivos de assistência?<br />

Qual o papel do psiquiatra no<br />

novo modelo or ga nizacional de<br />

equipe multi disciplinar para a<br />

condução do processo clínico?<br />

A adesão ao tratamento<br />

é maior nesse modelo que no<br />

tradicional?<br />

Como traçar propostas claras<br />

para a avaliação sistemática<br />

de políticas e de programas de<br />

saúde mental? O novo modelo<br />

assistencial oferece respostas<br />

consistentes às deman<strong>da</strong>s, levando<br />

em conta os usuários, os<br />

seus familiares, as instituições<br />

e os trabalhadores de saúde<br />

mental?<br />

O que têm a nos dizer hoje<br />

as neurociências, a psicanálise<br />

e a psiquiatria social sobre as<br />

psicoses e nossas velhas neuroses?<br />

O cotidiano atual nos<br />

traz novas formas de adoecer.<br />

Como a psiquiatria responde a<br />

essas novas reali<strong>da</strong>des psíquicas<br />

desvela<strong>da</strong>s?<br />

Esperamos que o congresso<br />

nos possibilite uma discussão<br />

proveitosa dessas questões tão<br />

fun<strong>da</strong>mentais para nossa prática.<br />

Que possamos extrair <strong>da</strong><br />

nossa experiência e <strong>da</strong> teoria<br />

que nos norteia novas contribuições.<br />

A ciência, a ética e<br />

a subjetivi<strong>da</strong>de são diretrizes<br />

fun<strong>da</strong>mentais para o advir de<br />

uma boa clínica, com um bom<br />

uso dos recursos terapêuticos –<br />

os psicofármacos, a Psicanálise<br />

e os dispositivos organizacionais,<br />

desde a internação até as<br />

oficinas profissionalizantes, e<br />

um bom destino para os achados<br />

neurobiológicos, trazendo<br />

a possibili<strong>da</strong>de de fazer surgir<br />

no paciente o sujeito e o ci<strong>da</strong>dão<br />

responsável.<br />

Assim, nosso congresso<br />

terá conseqüências e estará<br />

justificado.<br />

Psiquiatra/Psicanalista<br />

Coordenadora <strong>da</strong> Comissão de Publicações <strong>da</strong> <strong>AMP</strong><br />

Membro <strong>da</strong> Comissão Organizadora do XXIIICBP<br />

PÁGINA 27


Identificação<br />

Nome: Edifício Niemeyer<br />

Data de nascimento: Projeto aprovado em 20 de Outubro de 1954<br />

I<strong>da</strong>de: 50 anos<br />

Endereço: Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de, Belo Horizonte.<br />

História Clínica<br />

Por desgaste de tempo e condições adversas atribuí<strong>da</strong>s ao uso, poluição e suji<strong>da</strong>des<br />

em geral sofreu reforma em to<strong>da</strong> a parte externa na déca<strong>da</strong> de 1990. Não apresenta<br />

queixas à não ser quanto às garagens abertas. Sistema circulatório de água renovado<br />

em algumas uni<strong>da</strong>des devido a entupimentos e desgaste natural.<br />

História Pessoal<br />

Foi projetado pelo arquiteto Oscar de Niemeyer Soares Filho e foi aprovado pela<br />

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 20 de Outubro de 1954.<br />

Seu terreno situa-se na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de, projeta<strong>da</strong>, já na planta original <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, para abrigar o Palácio do Governo e as Secretarias de Estado em localização<br />

nobre.<br />

No referido terreno foi construí<strong>da</strong> uma residência, assemelha<strong>da</strong> a um castelinho,<br />

cujo projeto aprovado na Prefeitura Municipal em 10 de Agosto de 1906, foi de responsabili<strong>da</strong>de<br />

técnica foi do arquiteto João Morandi.<br />

A região apresentava outras construções pareci<strong>da</strong>s, mas de maior imponência (algumas<br />

ain<strong>da</strong> estão preserva<strong>da</strong>s).<br />

Demolido o “Castelinho”, manteve-se o uso residencial <strong>da</strong> área, mas desta feita<br />

com a inovação de um novo modelo de habitação: apartamentos.<br />

Tem irmãos espalhados por várias ci<strong>da</strong>des brasileiras como São Paulo, São José<br />

dos Campos, Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis, Mendes, Belo Horizonte, Ouro Preto,<br />

Diamantina, Recife, Brasília, Belém etc.<br />

Outros irmãos encontram-se construídos em paises como Argélia, Congo, Cuba, Emirados<br />

Árabes, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Israel, Itália, Líbia e Venezuela.<br />

Apesar de ser conhecido pelo nome do pai, sente-se renegado por ele, já que não<br />

consta <strong>da</strong> lista de seus projetos nas publicações que reúnem a história <strong>da</strong> família.<br />

Tem plena consciência de sua importância para o desenvolvimento <strong>da</strong> arquitetura<br />

brasileira por seu partido inovador para a época em que foi projetado.<br />

Tem plena consciência dos espaços generosos que oferece em seu interior.<br />

Sabe <strong>da</strong> importância do espaço que ocupa em meio a construções de uso público.<br />

Promoveu a democratização do “sucesso” de morar na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de. Foi fun<strong>da</strong>mental<br />

na restrição <strong>da</strong> altura máxima de construções na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de.<br />

IMPRESSO<br />

PÁGINA 28<br />

LAUDO ADMISSIONAL<br />

Motivo: Investigação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de para FAZER PARTE DA HISTÓRIA DE BELO<br />

HORIZONTE, e de inspirar a MARCA do XXIII Congresso Brasileiro <strong>da</strong> ABP<br />

Arquiteta perita: Abigail Pinto de Carvalho, CREA MG 15 620/D<br />

História Familiar<br />

Seu pai ain<strong>da</strong> é vivo, lúcido e com plena capaci<strong>da</strong>de de trabalho aos 97 anos de i<strong>da</strong>de.<br />

Sua semelhança com seus irmãos extrapola o físico, são todos importantes para a<br />

arquitetura brasileira. Tem a mesma i<strong>da</strong>de do Colégio Estadual Central e <strong>da</strong> Biblioteca<br />

Pública, sua vizinha de Praça.<br />

Ele, e alguns de seus irmãos são protegidos pelas leis de tombamento e proteção<br />

do Patrimônio Histórico e Artístico Municipal, Estadual e Federal.<br />

A<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de (às mu<strong>da</strong>nças e tarefas)<br />

Permanece com o mesmo uso para o qual foi projetado mantendo também o “status”<br />

de morar-bem. Sofreu um pouco com o excesso de trânsito a sua volta, com a poluição<br />

sonora e ambiental, mas se valorizou com o bom estado de conservação <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong><br />

Liber<strong>da</strong>de e do seu entorno. Ele se relaciona bem com os imóveis de outras déca<strong>da</strong>s<br />

situados na vizinhança. Expectativa de permanecer com caráter importante por to<strong>da</strong> a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Belo Horizonte.<br />

Avaliação do estado mental<br />

Aparência cui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Higienizado. Pensamento claro, lógico e formal. Memória preserva<strong>da</strong><br />

e com boa compreensão de seu papel na ci<strong>da</strong>de.<br />

Diagnósticos<br />

Inovador edifício de apartamentos<br />

Personali<strong>da</strong>de<br />

Conclusão<br />

O edifício tem condições de:<br />

1 - representar Belo Horizonte, na sua capaci<strong>da</strong>de de receber confortavelmente<br />

seus convi<strong>da</strong>dos, de modo moderno e prático em espaços generosos e com intimi<strong>da</strong>de<br />

2 - representar os mineiros na sua vocação insurgente, estabelecendo seu estilo<br />

inovador, mas sempre com a capaci<strong>da</strong>de de conviver bem com seus visinhos<br />

3 - representar os interesses <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria e <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />

<strong>Mineira</strong> de Psiquiatria de criar para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria uma marca<br />

forte que diga do tema do Congresso marcado pela palavra diretriz e pela repetição<br />

<strong>da</strong> palavra novo. Diretrizes em psiquiatria: nova clínica, novas instituições, novas<br />

intervenções. Apostar na idéia de que todo conhecimento de constrói laminarmente e<br />

freqüentado por amplos espaços vazios que apontam para a existência de interrupções<br />

que permitem a novi<strong>da</strong>de num edifício que permanece como história de um trabalho.<br />

<strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />

Filia<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />

Av. João Pinheiro 161 Centro 30130-180<br />

Belo Horizonte Minas Gerais Tel.: (31) 3213-7457

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