Publicação da Associação Mineira - AMP
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Ano XIII / Nº 19 - <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Edição especial para o XXIII Congresso Brasileiro ABP - Outubro / 2004<br />
Diretrizes em Psiquiatria nova clínica novas instituições novas intervenções<br />
12 a 15 de outubro de 2005 MinasCentro Belo Horizonte Minas Gerais
E d i t o r i a l<br />
E viva a Arte!<br />
Em recente mostra interna de<br />
uma Facul<strong>da</strong>de de Arte de BH<br />
-Escola Guignard- a jovem artista<br />
Tatiana Cavinato, bem dentro<br />
dos impasses contemporâneos,<br />
brinca com as idéias. Seu trabalho<br />
consiste numa linha reta, branca,<br />
traça<strong>da</strong> no chão. Aí é instalado<br />
um frango, que fascinado pela<br />
linha, bico voltado para o chão,<br />
contempla a linha sem que na<strong>da</strong><br />
o distraia. Por outro lado o expectador,<br />
fascinado pela cena, no<br />
mesmo espaço de tempo, também<br />
observa e, <strong>da</strong>li, não desloca seu<br />
olhar. Se pensarmos que um dos<br />
sentidos <strong>da</strong> palavra diretriz no<br />
nosso Aurélio é linha reguladora<br />
do traçado de um caminho ou<br />
de uma estra<strong>da</strong>, por certo não<br />
deixaremos de <strong>da</strong>r umas boas<br />
gargalha<strong>da</strong>s ao pensarmos que<br />
os atuais manuais de diretrizes<br />
diagnósticas nos lembram um<br />
pouco essa linha que hipnotiza,<br />
dispensa raciocínio e nos puxa<br />
para o fascínio do puro olhar.<br />
Mas, como o Aurélio também<br />
traz o sentido matemático de tal palavra,<br />
diretriz diz respeito a uma<br />
linha ou superfície <strong>da</strong> qual se gera<br />
outras linhas e superfícies, que<br />
tornam possíveis traçados e caminhos<br />
inusita-dos, fazendo até<br />
com que se possa escrever certo<br />
por linhas tortas.E sem precisar<br />
ser Deus. Aliás, sendo-se só<br />
humano, demasiado humano.<br />
Melhor para nós.<br />
O Risco - <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Comissão editorial: Elizabeth Uchôa - Francisco Goyatá - Gil<strong>da</strong> Paoliello (Coordenadora) - Hélio Lauar<br />
- Luciana Nogueira Carvalho - Luis Carlos Calil (Uberaba) - Maria Cristina de Oliveira Contigli - Paulo Roberto Vaz de Melo - Stélio Lage - Van<strong>da</strong> Pignataro Pereira (Coordenadora) - Jornalista<br />
Responsável: Cândi<strong>da</strong> B Lemos - reg. prof. MG 02299 - Projeto gráfico e editoração: Visiva Editoração Lt<strong>da</strong>. - <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria - Av. João Pinheiro, 161 - Centro<br />
- 30130-180 - Belo Horizonte - Tel.: (31) 3213-7457 - Site: www.psiquiatriamg.org • e-mail: amp@psiquiatria.org - Os artigos para o publicação devem ser enviados para gil<strong>da</strong>@br.inter.<br />
net. - Os artigos recebidos serão analisados pela Comissão Editorial para possível publicação. - Os artigos assinados de "O Risco" são de inteira responsabili<strong>da</strong>de de seus autores. - As<br />
ilustrações desta edição são de autoria de Hélio Lauar.<br />
PÁGINA 2<br />
Dirigir um tratamento é, em<br />
primeiro lugar, fazer com que o<br />
sujeito, cuja presença não se<br />
pode anular, construa suas diretrizes.<br />
Isso significa, se quisermos<br />
nos afastar do fascínio, que<br />
o sujeito que dirige o tratamento<br />
ou aquele que se põe em tratamento,<br />
além dos avanços <strong>da</strong><br />
ciência, também devem se colocar<br />
em causa. Melhor dizendo,<br />
devem se interrogar, um sobre<br />
a ação que executa e o outro<br />
sobre sua responsabili<strong>da</strong>de com<br />
relação a sua participação no<br />
próprio sofrimento.<br />
Caso contrário, o risco é ficar<br />
como o frango fascinado pela<br />
linha, na ilusão de que a tecnologia<br />
traria a resposta última para<br />
nossas angústias. Sem duvi<strong>da</strong>,<br />
ela aju<strong>da</strong>, desde que não fiquemos<br />
na postura do amansador<br />
de feras, que na segurança de<br />
tê-las domado to<strong>da</strong>s, se surpreende<br />
porque recebeu no<br />
próprio pescoço o efeito de seu<br />
desconhecimento: as pessoas<br />
são não-to<strong>da</strong>s domesticáveis.<br />
Que a reflexão gera<strong>da</strong> pelos<br />
diversos artigos deste número<br />
tão especial nos possibilite traçar<br />
diretrizes para a construção de<br />
um congresso conseqüente.<br />
Agradecemos a Hélio Lauar<br />
o cui<strong>da</strong>do pelo trabalho gráfico<br />
e aos colegas que prontamente<br />
atenderam a nosso pedido de<br />
apontarem suas diretrizes.<br />
Gil<strong>da</strong> Paoliello/<br />
Van<strong>da</strong> C.Pignataro Pereira<br />
Coordenadoras de <strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>AMP</strong><br />
Parâmetro para a varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clínica<br />
Anunciemos: o próximo Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria será<br />
realizado, em Belo Horizonte, Minas<br />
Gerais, de 12 a 15 de outubro de<br />
2005. Para nossa sorte já começa<br />
abençoado por Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>,<br />
nossa padroeira queri<strong>da</strong>; no<br />
dia <strong>da</strong>s crianças, trazendo neste<br />
cenário a troca de conhecimentos<br />
e a síntese <strong>da</strong>s novas formas de<br />
atendimento. Em pleno feriado<br />
nacional, o que permite e facilita<br />
a todos organizar suas agen<strong>da</strong>s<br />
para viajar e conhecer lugares e<br />
pessoas e para buscar novos conhecimentos.<br />
Tudo se encaixa perfeitamente<br />
no nosso tema:<br />
Diretrizes em psiquiatria, nova<br />
clínica, novas instituições novas<br />
intervenções. Sabemos que a psiquiatria<br />
tem ampliado seus conhecimentos<br />
em um ritmo acelerado<br />
nos últimos anos. Falamos hoje<br />
uma linguagem que vai do sujeito<br />
ás neurociências.Há especialistas<br />
em infância e adolescência,<br />
adultos, geriatria, dependências<br />
químicas, forense, psicotera pias,<br />
psicofarma cologistas, interconsultas,<br />
etc...<br />
Como ficamos diante de tantos<br />
conhecimentos, com uma procura<br />
ca<strong>da</strong> vez maior pela especiali<strong>da</strong>de<br />
e com tantas interlocuções na<br />
área médica e nas áreas afins, as<br />
associações de classe, as instituições<br />
de pesquisa, universitárias e<br />
públicas freqüentemente são convoca<strong>da</strong>s<br />
a criar parâmetros para a<br />
varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clinica, para as varias<br />
mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de instituições de<br />
saúde mental, para as intervenções<br />
farmacológicas, psicoterá picas,<br />
institucionais etc. Se, por um lado,<br />
as universa-lizações de conduta<br />
podem servir de pa râmetro para<br />
o exercício <strong>da</strong> profissão e para a<br />
comparação de <strong>da</strong>dos de eficiência<br />
e eficácia nos tratamentos por<br />
outro lado precisamos garantir<br />
um espaço para o estilo de ca<strong>da</strong><br />
um, para uma ética que viabilize<br />
a escolha do psiquiatra por esta<br />
ou aquela corrente teórica e do<br />
paciente como aquilo que ele busca<br />
como forma de atendimento.<br />
É essa a proposta <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />
Brasileira de Psiquiatria, em conjunto<br />
com a <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de<br />
Psiquiatria. Esse é o nosso convite<br />
para todos os colegas do Brasil a<br />
estar conosco no XXIII Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria e no X<br />
Congresso Mineiro de Psiquiatria,<br />
que erão realizados no MinasCentro,<br />
em Belo Horizonte.<br />
A ABP é o veículo intermediador<br />
entre as várias fontes de<br />
conhecimentos e os executores<br />
dos programas, na construção de<br />
um novo modelo assistencial, na<br />
promoção <strong>da</strong> saúde e na reflexão<br />
sobre a mente humana, com intuito<br />
de humanizar e melhorar em<br />
todos os níveis o atendimento e o<br />
tratamento psiquiátrico.<br />
Maria Cristina Oliveira Contigli<br />
Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria
A <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria (<strong>AMP</strong>) têm o prazer de<br />
convi<strong>da</strong>r psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, estu<strong>da</strong>ntes e demais<br />
profissionais <strong>da</strong> saúde, para o maior evento científico <strong>da</strong> psiquiatria brasileira.<br />
A Comissão organizadora do Congresso (COMOR) está composta por Marco Antonio Alves Brasil, Cristina<br />
Contigli, Gil<strong>da</strong> Paolielo, Josimar França, Luiz Alberto Hetem, Maurício Leão.<br />
A Comissão científica (COCIEN) está composta por Itiro Shirakawa, Hélio Lauar, Luciana Carvalho, Maria<br />
Tavares Cavalcanti, Maurício Viotti Daker, Rogério Wolf de Aguiar.<br />
O tema oficial do Congresso foi escolhido para atender a expectativa <strong>da</strong> especiali<strong>da</strong>de e dos profissionais<br />
<strong>da</strong> saúde mental de trabalhar a partir de diretrizes científicas e sociais pactua<strong>da</strong>s pela ABP, capazes de criar<br />
parâmetros para a nova clínica, rotinas para o funcionamento <strong>da</strong>s novas instituições, permitindo a troca de<br />
experiência a partir <strong>da</strong>s novas intervenções e dos seus resultados.<br />
Belo Horizonte foi escolhi<strong>da</strong> como sede para o evento e está apta a receber todos os interessados com conforto<br />
e pratici<strong>da</strong>de.<br />
Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />
Diretrizes em Psiquiatria nova clínica novas instituições novas intervenções<br />
Sejam todos bem-vindos!<br />
Marco Antônio Alves Brasil<br />
Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />
Maria Cristina Contigli<br />
PÁGINA 3
Diretrizes em Psiquiatria. Na construção de um estado de direitos,<br />
o psiquiatra se vê confrontado com sua ciência e sua responsabili<strong>da</strong>de<br />
social. Neste contexto as associações de classe, as instituições de pesquisa,<br />
universitárias e públicas, freqüentemente são convoca<strong>da</strong>s a criar<br />
parâmetros para a multiplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clínica, para as várias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
de instituições em saúde mental e para as intervenções farmacológicas,<br />
psicoterápicas, institucionais, etc. Se por um lado, as universalizações<br />
<strong>da</strong> conduta podem servir de parâmetro para o exercício <strong>da</strong> profissão e<br />
para a comparação de <strong>da</strong>dos de eficiência e eficácia nos tratamentos,<br />
por outro lado, precisamos garantir um espaço para o estilo de ca<strong>da</strong> um,<br />
para uma ética que viabilize a escolha do psiquiatra, por esta ou aquela<br />
corrente teórica e do paciente por aquilo que ele busca como forma de<br />
atendimento.<br />
O programa científico do evento está sendo construído sob coordenação<br />
<strong>da</strong> Comissão Científica (COCIEN) e aberto à participação de todos<br />
associados quites, departamentos e federa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ABP que poderão indicar<br />
relatores, com os respectivos interesses temáticos, e também temas<br />
para as ativi<strong>da</strong>des científicas. Ca<strong>da</strong> relator poderá participar de apenas<br />
uma mesa redon<strong>da</strong>, mas poderá estar incluído em outras ativi<strong>da</strong>des tais<br />
como: simpósios dos departamentos, cursos, sessão de casos clínicos,<br />
vídeos e ou pôsteres, onde a indicação é por convite ou por seleção a<br />
partir de sugestão pessoal. As indicações deverão ser feitas através de<br />
formulários específicos disponíveis em www.abpbrasil.org.br, e envia<strong>da</strong>s<br />
on-line a partir de 01/02/2005.<br />
Para o bom an<strong>da</strong>mento dos nossos trabalhos, fique atento, às<br />
<strong>da</strong>tas limite:<br />
10/04/05 para envio de sugestões on-line,<br />
15/05/05 para envio de pôsteres, casos clínicos e vídeos.<br />
O programa científico consta de: mesas redon<strong>da</strong>s, cursos, conferências,<br />
encontros com o especialista, simpósios de ensino, simpósios de<br />
departamentos <strong>da</strong> ABP, sessões de casos clínicos e de vídeos, fóruns e<br />
pôsteres.<br />
Estão previstos prêmios para os melhores pôsteres <strong>da</strong> categoria Ensino<br />
/ Prática Clínica e <strong>da</strong> categoria Pesquisas Originais (Ensaios Clínicos e<br />
Revisão Sistemática), e para os melhores casos apresentados nas sessões<br />
de casos clínicos e de vídeos.<br />
PÁGINA 4<br />
Itiro Shirakawa<br />
Coordenador <strong>da</strong> Comissão Científica<br />
I n f o r m a ç õ e s<br />
A ABP promove concursos de trabalhos científicos e premia os<br />
melhores trabalhos. Conheça os prêmios: Prêmio Prof. Álvaro Rubim<br />
de Pinho para o melhor trabalho em Ética em Psiquiatria ou Psiquiatria<br />
Legal; Prêmio Prof. Luiz Cerqueira para o melhor trabalho<br />
em Saúde Mental; Prêmio Prof. Ulysses Vianna Filho para o melhor<br />
trabalho em temas psiquiátricos; Prêmio Jovem Psiquiatra para o<br />
melhor trabalho de pesquisa em psiquiatria, realizado por médico<br />
residente em psiquiatria ou formado até 5 anos; Prêmio Dr. Oswald<br />
Moraes Andrade para o melhor trabalho na área de dependência<br />
química; Prêmio Dr. Zaldo Rocha para o melhor trabalho na área <strong>da</strong><br />
psiquiatria <strong>da</strong> Infância e Adolescência. Todos os prêmios possuem<br />
regulamentos e comissões julgadoras próprias disponíveis<br />
no site <strong>da</strong> ABP, www.abpbrasil.org.br.<br />
O período de inscrições para Provas de Título de Especialista em Psiquiatria<br />
e para as áreas de atuação em Psiquiatria Forense, Psiquiatria<br />
<strong>da</strong> Infância e Adolescência será de 05 de janeiro a 31 de maio de<br />
2005. Informamos que as referi<strong>da</strong>s provas serão realiza<strong>da</strong>s no<br />
dia 12 de outubro de 2005, em Belo Horizonte.<br />
A Assembléia de Delegados <strong>da</strong> ABP acontecerá no dia 11 de outubro<br />
de 2005, em Belo Horizonte.<br />
Realização:<br />
<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />
<strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />
Secretaria Executiva do XXIII CBP<br />
<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria WWW.abpbrasil.org.br | Av. Presidente<br />
Wilson 164 | nono an<strong>da</strong>r | Rio de Janeiro | Brasil | 20030-<br />
020 telefax 021 22214409 / 21997500 | congresso@abpbrasil.org.br
Cautela e caldo de galinha não fazem mal para ninguém<br />
Em tempos de tantas novas intervenções,<br />
e até por ser esse um<br />
dos subtemas do próximo Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria, a ser<br />
realizado em Belo Horizonte, talvez<br />
seja oportuno algumas palavras de<br />
cautela.<br />
A psicofarmacoterapia moderna<br />
nasceu em meados do século passado,<br />
com a descoberta do efeito benéfico<br />
<strong>da</strong> clorpromazina em pacientes<br />
com esquizofrenia e <strong>da</strong> imipramina<br />
em casos de “depressão vital”. Suas<br />
conseqüências ocasionaram revolução<br />
científica, de acordo com<br />
Thomas Kuhn 1 , visto que provocaram<br />
mu<strong>da</strong>nça de paradigma. A abor<strong>da</strong>gem<br />
e mesmo o entendimento dos<br />
transtornos mentais se modificaram<br />
radicalmente depois do aparecimento<br />
dos psicofármacos.<br />
Seguindo essa linha de raciocínio,<br />
o surgimento dos novos an tipsicóticos<br />
e dos novos antide pressivos não<br />
tiveram o mesmo impacto e não representaram<br />
nova revolução, como<br />
querem alguns, mas tão somente<br />
um avanço, uma grande evolução.<br />
Por que? Porque não houve mu<strong>da</strong>nça<br />
de paradigma: utilizavam-se<br />
medicamentos antes e continuou-se<br />
a utilizá-los depois que os de nova<br />
geração foram disponi bilizados. O<br />
avanço se deu no sentido <strong>da</strong> maior<br />
tolerabili<strong>da</strong>de com eficácia comparável,<br />
que permitiram que o seu uso<br />
fosse disseminado e passasse a ser<br />
feito também para pacientes com<br />
quadros mais leves.<br />
Interessante notar que a difusão<br />
<strong>da</strong> nova prática (psicofarmacoterapia)<br />
foi acompanha<strong>da</strong> pela difusão<br />
de novos conceitos. Já em 1961,<br />
por exemplo, o laboratório Merck, que<br />
havia recém lançado a amitriptilina,<br />
adquiriu 50 mil exemplares de livro<br />
sobre diagnóstico de depressão para<br />
distribuição em nível mundial. Em<br />
que medi<strong>da</strong> isso continua sendo feito<br />
atualmente? Naquela época, quando<br />
os psico fármacos estavam sendo<br />
Luiz Alberto B. Hetem 1 | Marco Antonio Brasil 2 | Josimar França 3<br />
introduzidos, tratava-se de algo<br />
necessário, visto que se anunciava<br />
uma revolução científica, mas será<br />
possível (e necessário) empregar a<br />
mesma estratégia 40 anos depois?<br />
Quem sabe um pouco <strong>da</strong> história<br />
do desenvolvimento dos conceitos<br />
de transtorno de pânico, distimia,<br />
fobia social, trans torno de ansie<strong>da</strong>de<br />
generaliza<strong>da</strong>, transtorno obsessivocompulsivo<br />
e acompanhou, mais<br />
recentemente, o do transtorno de<br />
estresse pós-traumático e transtorno<br />
de déficit de atenção e hiperativi<strong>da</strong>de<br />
não tem dificul<strong>da</strong>de em perceber<br />
nítido paralelismo entre a divulgação<br />
destes diagnósticos e de seus tratamentos<br />
farmaco-lógicos. Evidente<br />
que houve avanços significativos e<br />
que muito do que é dito é ver<strong>da</strong>deiro,<br />
mas não se pode negar que há<br />
interesses financeiros e estratégias de<br />
marketing por trás desse trabalho. Por<br />
isso tudo, cautela. Na<strong>da</strong> de começar<br />
a prescrever um novo medicamento<br />
antes que se tenham <strong>da</strong>dos de literatura<br />
de boa quali<strong>da</strong>de, com população<br />
de pacientes representativa <strong>da</strong><br />
amostra que freqüenta seu local de<br />
atendimento e de se conhecer bem<br />
os riscos dessa prática. Afinal, os que<br />
sempre levam a pior nos casos de<br />
“furor terapêutico” são os pacientes.<br />
E em que medi<strong>da</strong> os novos medicamentos<br />
(em sentido amplo – anti<br />
hipertensivos, antiinflamatórios,<br />
antibióticos, antidepressivos, antipsicóticos,<br />
antiarrítmicos, ansiolíticos<br />
e outros) representam ver<strong>da</strong>deiro<br />
progresso? Presume-se, entre<br />
os pesquisadores, que somente 5 a<br />
10 por cento deles oferecem ganhos<br />
terapêuticos genuínos e que apenas<br />
1 por cento proporciona ganho<br />
terapêutico realmente importante,<br />
representando assim algo inovador 2 .<br />
Por outro lado, ter no mercado tantos<br />
medicamentos quanto possível<br />
continuará sendo necessário até que<br />
o conhecimento sobre a neurobiologia<br />
dos transtornos mentais permita<br />
abor<strong>da</strong>gem farma cológica mais específica<br />
e definitiva.<br />
Se no campo <strong>da</strong> psiquiatria clínica<br />
há que se estar sempre atento à influência<br />
financeira e merca dológica, na<br />
prática cotidiana – afinal os clientes <strong>da</strong><br />
indústria farmacêutica são os médicos<br />
e não os pacientes, no <strong>da</strong> psiquiatria<br />
social é preciso cui<strong>da</strong>do com as interferências<br />
político-ideológicas. Hoje<br />
em dia, muito se fala a respeito <strong>da</strong><br />
reforma <strong>da</strong> assistência psiquiátrica.<br />
E com relação ao que tem sido feito<br />
e ao modo como isso tem ocorrido é<br />
difícil evitar analogia com uma antiga<br />
anedota – Um policial encontra um<br />
sujeito ro<strong>da</strong>ndo em volta de um poste<br />
de luz, procurando alguma coisa no<br />
chão, e pergunta o que aconteceu.<br />
Ele responde que perdeu as chaves<br />
de casa. O policial então pergunta se<br />
foi por ali que ele acha que as perdeu,<br />
ao que o sujeito responde: “Não, foi<br />
a uns três quarteirões <strong>da</strong>qui!”. Ao<br />
escutar isso, o policial, espantado,<br />
questiona o porquê dele estar procurando<br />
as chaves ali, debaixo do poste<br />
de luz, apenas para escutar que não<br />
haveria o menor sentido procurar na<br />
escuridão se nem na luz ele as está<br />
encontrando.<br />
São evidentes que os macrohospitais<br />
psiquiátricos como também<br />
os serviços psiquiátricos de má quali<strong>da</strong>de<br />
têm que ser fechados e que<br />
os CAPS representaram um avanço<br />
no atendimento dos pacientes com<br />
transtornos mentais. Mas acreditar<br />
que os últimos substituirão os primeiros<br />
com sucesso é, no mínimo,<br />
ingenui<strong>da</strong>de e no máximo, incompetência.<br />
Por isso, também se fazem<br />
necessários cautela, bom senso e<br />
visão desapaixona<strong>da</strong> <strong>da</strong> nossa reali<strong>da</strong>de.<br />
Os psiquiatras brasileiros<br />
já têm maturi<strong>da</strong>de suficiente para<br />
tolerar o desconforto gerado pela<br />
dúvi<strong>da</strong>, pela ambigüi<strong>da</strong>de e conseqüente<br />
insegurança diante <strong>da</strong> tarefa<br />
que têm pela frente: participar mais<br />
ativamente dessa mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> as-<br />
sistência. Como fazer reforma <strong>da</strong><br />
assistência psiquiátrica sem a participação<br />
dos psiquiatras? Quem além<br />
deles possui capacitação para propor<br />
serviços substitutivos como uni<strong>da</strong>des<br />
psiquiátricas em hospital geral, leitos<br />
psiquiátricos em enfermarias comuns<br />
de hospitais gerais ou especializados,<br />
serviços de inter consulta, emergência<br />
psiquiátrica e assistência psiquiátrica<br />
de urgência em Pronto Socorro Geral,<br />
Hospital-dia e retaguar<strong>da</strong> aos colegas<br />
do Programa de Assistência à Família?<br />
Por maior que seja a boa vontade<br />
<strong>da</strong>s equipes que constituem os vários<br />
CAPS (I,II,II, i e ad), elas não dão e<br />
nunca <strong>da</strong>rão conta do atendimento<br />
integral do paciente com transtorno<br />
mental nas suas diferentes fases<br />
(intervenção em crise agu<strong>da</strong>, intercorrências<br />
clínicas, manutenção e<br />
reabilitação). Já há inclusive relatos<br />
de pacientes que estão cronificando<br />
em alguns CAPS 3 .<br />
No XXIII Congresso Brasileiro<br />
de Psiquiatria, em Belo Horizonte,<br />
muitas dessas questões serão discuti<strong>da</strong>s.<br />
Espera-se que tais discussões<br />
cheguem a bom termo. Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
os maiores beneficiários serão os<br />
pacientes.<br />
1 Professor do Programa de Pós-graduação em<br />
Saúde Mental <strong>da</strong> FMRP (USP); Tesoureiroadjunto<br />
<strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />
2 Professor-adjunto do Departamento de Psiquiatria<br />
e Medicina Legal (UFRJ); Presidente <strong>da</strong><br />
<strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />
3 Professor aposentado de Psiquiatria <strong>da</strong> UnB;<br />
Professor de Psiquiatria <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Medicina<br />
do Planalto Central e Vice Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />
Brasileira de Psiquiatria<br />
Referências bibliográficas<br />
1. Kuhn TS. The structure of scientific revolutions,<br />
3 rd edition. The University of Chicago Press, 1996.<br />
2. Healey D. The antidepressant era. Harvard<br />
University Press, 1997.<br />
3. França JMF. Serviços substitutivos: o que já<br />
temos e o que é preconizado. Apresentado na<br />
Jorna<strong>da</strong> de Psiquiatria <strong>da</strong> Região Norte, 2004.<br />
PÁGINA 5
Em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 uma<br />
amiga, no final <strong>da</strong> sua adolescência,<br />
teve uma crise psicótica. Soube, na<br />
ocasião, que ela havia sido interna<strong>da</strong><br />
no “Juqueri” (1) . O fato foi comentado<br />
a boca pequena, logo não se falou<br />
mais no assunto e nunca mais tive<br />
notícias dela. Recentemente, ao<br />
atender um jovem em seu primeiro<br />
episódio psicótico, seu tio que o<br />
acompanhava, identificouse como<br />
parente <strong>da</strong> família <strong>da</strong>quela amiga <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de 50. A pergunta sobre ela<br />
foi inevitável. Fiquei sabendo que ela<br />
continua interna<strong>da</strong> até hoje, após 50<br />
anos. Foram feitas algumas tentativas<br />
de levála para casa, mas, cronifica<strong>da</strong>,<br />
não sabia mais viver fora do hospital.<br />
Com a descoberta <strong>da</strong> ação antipsicótica<br />
<strong>da</strong> clorpromazina, em 1952, a<br />
prática psiquiátrica, de que “não havia<br />
na<strong>da</strong> a fazer”, a não ser a internação<br />
em grandes asilos, começou a mu<strong>da</strong>r.<br />
À medi<strong>da</strong> que pessoas com esquizofrenia<br />
passaram a melhorar dos surtos<br />
com os antipsicóti cos, novas hipóteses<br />
sobre a causali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> esquizofrenia<br />
começaram a surgir. Hipóteses como<br />
a “posição esquizo-paranóide”, de<br />
Melanie Klein “<strong>da</strong> mãe esquizofrenogênica”,<br />
de Fri<strong>da</strong> Fromm-Reichman;<br />
“do duplo-vínculo”, de Bateson; foram<br />
substituí<strong>da</strong>s pela hipótese <strong>da</strong> hiperfunção<br />
dopaminérgica de Carlson e<br />
Lundqvist.<br />
Na déca<strong>da</strong> de 1960 surgem por<br />
todo o Brasil, inúmeros hospitais<br />
psiquiátricos privados, em grades<br />
áreas <strong>da</strong> periferia, conveniados com<br />
a previdência social, com a finali<strong>da</strong>de<br />
de internar e tratar com os novos<br />
psicofármacos, as mais diversas manifestações<br />
<strong>da</strong> patologia psiquiátrica.<br />
Já não são asilos tão grandes, mas<br />
ain<strong>da</strong> dimensionados para 400 a 500<br />
leitos. Os bons hospitais incorporam<br />
os conhecimentos sobre “comuni<strong>da</strong>des<br />
terapêuticas”, de Maxwell Jones, e<br />
contratam equipes multidisciplinares.<br />
Boa parte dos hospitais passa a tratar<br />
os pacientes, além dos psicofármacos,<br />
com técnicas grupais, principalmente<br />
a dos “grupos operativos”, divulga<strong>da</strong><br />
por Pichon-Rivière, <strong>da</strong> Argentina.<br />
No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, estavam<br />
internados no “Juqueri”, em<br />
São Paulo, cerca de 16 mil pacientes!<br />
Contra situações como essa surgiu o<br />
movimento <strong>da</strong> “antipsiquiatria”, de<br />
Laing, Cooper e Szasz. Esse movimento<br />
negava a existência <strong>da</strong> doença<br />
psiquiátrica, particularmente <strong>da</strong> esquizofrenia,<br />
(1) Como era conhecido o<br />
Hospital Psiquiátrico Franco <strong>da</strong> Rocha,<br />
o maior hospital psiquiátrico do Estado<br />
de São Paulo durante a maior parte<br />
PÁGINA 6<br />
Divergências em psiquiatria<br />
do Século XX.<br />
Afirmando que a socie<strong>da</strong>de é que<br />
produzia e discriminava “os loucos”<br />
e contra-indicava a internação e o<br />
tratamento farmacológico. No todo,<br />
o movimento mostrou-se equivocado,<br />
mas teve o mérito de chamar a atenção<br />
sobre a segregação e a discriminação<br />
do portador de transtorno psiquiátrico,<br />
bem como <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se incluir<br />
a família no tratamento.<br />
A déca<strong>da</strong> de 1980 caracterizou-se<br />
pelas pesquisas em neuroimagem<br />
estrutural <strong>da</strong> esquizofrenia por Johnstone,<br />
Crow e Andreasen. Verificouse<br />
que, além de alterações neuroquímicas,<br />
alterações biológicas e estruturais<br />
também estavam presentes nos<br />
quadros psicóticos.<br />
Um fato particular, nessa déca<strong>da</strong>,<br />
merece ser citado. Em 1983 Marcos P.<br />
T. Ferraz assumiu a Coordenadoria de<br />
Saúde Mental do Estado de São Paulo,<br />
justamente quando a grande imprensa<br />
noticiou com alarde a morte, por<br />
queimadura de sol, de uma paciente<br />
interna<strong>da</strong> no “Juqueri”. Marcos Ferraz<br />
criou uma comissão de sindicância na<br />
qual eu, então Chefe do Departamento<br />
de Psiquiatria <strong>da</strong> Escola Paulista de<br />
Medicina, fui incluído. A comissão<br />
verificou que a senhora que morrera<br />
havia passado o dia todo deita<strong>da</strong> no<br />
páteo, nua, sob o sol inclemente de<br />
verão. Ela estava interna<strong>da</strong> num<br />
pavilhão chamado de “pavilhão <strong>da</strong>s<br />
nudistas”. Estavam interna<strong>da</strong>s há 20,<br />
30 anos, haviam cronificado, ficavam<br />
nuas rasgando suas roupas, já não<br />
sabiam e não tinham mais o hábito<br />
de usar vestimentas. Foi a primeira<br />
vez que voltei a me perguntar se a<br />
minha amiga ain<strong>da</strong> estaria viva, lá<br />
no “Juqueri”. Na ocasião, a comissão<br />
verificou, ao abrir as portas dos quartos<br />
fortes, a existência de pacientes,<br />
agachados em posição catatônica,<br />
alheios à sua própria existência. Marcos<br />
Ferraz proibiu o uso dos quartos<br />
fortes, mas a cultura <strong>da</strong> enfermagem<br />
estava tão enraiza<strong>da</strong> que em qualquer<br />
nova agitação, os pacientes eram<br />
reconduzidos para lá. Num gesto “a<br />
Pinel”, Marcos Ferraz mandou retirar as<br />
portas dos quartos fortes para que não<br />
mais fossem utilizados. Penso, então,<br />
que foi Marcos Ferraz quem começou<br />
a primeira reforma psiquiátrica em<br />
São Paulo, instalando em sua gestão,<br />
mais de 100 equipes básicas de saúde<br />
mental, compostas por psiquiatra, assistente<br />
social, psicólogo e enfermeiro,<br />
em postos e centros de saúde, ambulatorizando<br />
o atendimento psiquiátrico<br />
e integrandoo com profissionais de<br />
outras especiali<strong>da</strong>des médicas. Cito<br />
Itiro Shirakawa<br />
Marcos Ferraz, na parte pragmática,<br />
sem esquecer de sua formação em<br />
que levou em conta ensinamentos de<br />
Franco <strong>da</strong> Rocha e de Luiz Cerqueira,<br />
entre outros.<br />
Em 1985, fiz um curto estágio em<br />
Chicago. Conheci instituições dedica<strong>da</strong>s<br />
à reabilitação de portadores de esquizofrenia.<br />
Começavam com ativi<strong>da</strong>des<br />
protegi<strong>da</strong>s e após 2 a 3 anos no programa<br />
eram alocados em moradias que<br />
eles mesmos administravam. Existiam<br />
várias moradias compartilha<strong>da</strong>s por vários<br />
portadores de esquizofrenia. Muitos<br />
moravam em prédios, em pequenos<br />
apartamentos, individualmente. Assustado,<br />
perguntei se eles não temiam que<br />
aqueles que moravam individualmente<br />
poderiam suici<strong>da</strong>r-se. Um dos técnicos<br />
me respondeu que era um risco que valia<br />
à pena correr. Voltando ao Brasil, narrei<br />
em minhas palestras a experiência<br />
vivi<strong>da</strong>. Já na déca<strong>da</strong> de 1990 vi surgir<br />
o primeiro CAPS, em São Paulo, criado<br />
pr Ana Pitta. Um dia, numa palestra,<br />
Ana Pitta disse que se inspirara no meu<br />
relato feito em uma palestra. Não pude<br />
deixar de sentir uma satisfação íntima.<br />
A déca<strong>da</strong> de 1990 foi chama<strong>da</strong><br />
pela APA (associação estadunidense<br />
de psiquiatria) como “a déca<strong>da</strong> do<br />
cérebro”. A literatura foi inun<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
trabalhos de neuroimagem funcional<br />
e sua correlação com a neuropsicologia<br />
em esquizofrenia. Estudos com<br />
genética, com crianças de risco, não<br />
deixam mais dúvi<strong>da</strong>s quanto à origem<br />
biológica <strong>da</strong> esquizofrenia. Em 1989<br />
a clozapina foi reabilita<strong>da</strong> por John<br />
Kane como arma poderosa para o<br />
tratamento <strong>da</strong> esquizofrenia.A reabilitação<br />
<strong>da</strong> clozapina deu origem ao<br />
surgimento de novos antipsicóticos,<br />
chamados de antipsicóticos de segun<strong>da</strong><br />
geração, com a mesma eficácia dos<br />
de primeira geração, mais seguros,<br />
com menos efeitos colaterais, mais<br />
toleráveis e confortáveis para o tratamento<br />
<strong>da</strong> esquizofrenia. No Brasil,<br />
os CAPS foram multiplicando-se, o<br />
tratamento psiquiátrico passou a ser<br />
mais ambulatorial, foram surgindo os<br />
grupos de auto-aju<strong>da</strong>, após o pioneiro<br />
Projeto Fênix criado por Luiz Barros,<br />
em São Paulo. E, graças aos grupos<br />
de auto-aju<strong>da</strong>, os antipsicóticos de<br />
segun<strong>da</strong> geração passaram a ser<br />
disponibilizados pela rede pública na<br />
vira<strong>da</strong> do século XX para o XXI.<br />
Em 1993, por ocasião do congresso<br />
Mundial de Psiquiatria, realizado no<br />
Rio de Janeiro, havia no Brasil cerca<br />
de 85 mil leitos psiquiátricos. Hoje<br />
há cerca de 45 mil leitos psiquiátricos.<br />
Nestes pouco mais de 10 anos,<br />
equipamentos tipo CAPS vêm sendo<br />
criados pelo Brasil todo. Hoje, privilegia-se<br />
o tratamento ambulatorial, a<br />
desinternação, o hospital dia, a criação<br />
de moradias. Ao lado <strong>da</strong>s conquistas<br />
<strong>da</strong> psicofarmacologia, deve-se propiciar<br />
um tratamento psicossocial ao<br />
portador de transtorno psiquiátrico,<br />
particularmente de psicose crônicas,<br />
que permita sua inclusão social, dentro<br />
de uma concepção ver<strong>da</strong>deiramente<br />
biopsicossocial. Finalmente, a WPA<br />
(<strong>Associação</strong> psiquiátrica Mundial)<br />
lançou o programa antiestigma <strong>da</strong><br />
esquizofrenia, que está sendo conduzido<br />
no Brasil por Cecília Villares,<br />
mostrando que tais pessoas não devem<br />
ser segre ga<strong>da</strong>s ou discrimina<strong>da</strong>s<br />
e têm direito à inclusão no mercado<br />
de trabalho.<br />
Termino minhas considerações com<br />
uma reflexão. Sem dúvi<strong>da</strong> nenhuma,<br />
os avanços <strong>da</strong> psicofarmacolo gia<br />
permitiram a ambulatorização <strong>da</strong><br />
psiquiatria. Os grandes asilos estão<br />
deixando de existir. Felizmente hoje,<br />
no “Juqueri”, após 30 anos, o número<br />
de internações caiu de 16 mil para menos<br />
de 2 mil. É inconcebível pensar-se<br />
em internações de 20, 30 anos ou para<br />
a vi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> em grandes asilos. Mas<br />
há necessi<strong>da</strong>de de um equilíbrio nas<br />
ações governamentais em Programas<br />
de Saúde Mental. Espero que haja<br />
um estudo para a manutenção de um<br />
número mínimo de leitos psiquiátricos,<br />
para internações de casos agudos, por<br />
pouco tempo, nas diversas regiões<br />
do país. Para tanto, deve-se levar<br />
em conta os estudos epidemiológicos<br />
sobre a incidência e prevalência dos<br />
transtornos psiquiátricos, de que é<br />
impossível evitar que ocorram casos<br />
novos, agudos.<br />
A minha experiência não é de<br />
um epidemiologista. É de um clínico<br />
que está exercendo a psiquiatria<br />
há quase quatro déca<strong>da</strong>s. E, neste<br />
momento, constato. pesaroso, que<br />
famílias voltam a trancar seu parente,<br />
portador de transtorno psicótico em<br />
reagudização, em pequenos quartos.<br />
Tal fato vem ocorrendo por uma política<br />
radical de desospitalização, <strong>da</strong><br />
volta <strong>da</strong> psicologização do transtorno<br />
psiquiátrico ou até mesmo por razões<br />
econômicas. Famílias desprepara<strong>da</strong>s<br />
recebem um salário mínimo para ficar<br />
com seu parente em casa. Como<br />
precisam sobreviver, trancam-no em<br />
casa. Situação que vivenciei no início<br />
de minha carreira, há 40 anos....<br />
Coordenador <strong>da</strong> Comissão Científica do XXIII CBP
A proposta de discussão sobre<br />
uma nova clínica, sobre novas<br />
instituições e sobres novas intervenções,<br />
tema escolhido para o<br />
próximo Congresso Brasileiro de<br />
Psiquiatria a realizar-se em Belo<br />
Horizonte, em outubro de 2005 não<br />
me parece tarefa fácil. Vivemos em<br />
um mundo insanamente moderno,<br />
com uma valorização absoluta dos<br />
resultados imediatos, somando-se<br />
a progressiva desvalorização dos<br />
contatos humanos. Como então<br />
articular o conceito <strong>da</strong>s novas diretrizes<br />
psiquiátricas se o novo se<br />
renova a ca<strong>da</strong> dia? A Psiquiatria não<br />
se salvou, pelo contrário, arrastase<br />
na degra<strong>da</strong>ção progressiva <strong>da</strong>s<br />
relações médico-paciente e assiste<br />
ain<strong>da</strong>, com alguma distância, a luta<br />
de sobrevivência de colegas médicos<br />
de outras especiali<strong>da</strong>des com os<br />
gestores dos planos de saúde. Infelizmente,<br />
muitas vezes pensa-se o<br />
novo em detrimento do velho, como<br />
se o renovar fosse algo totalmente<br />
desvencilhado do antigo. De acordo<br />
com o Dicionário Aurélio, o novo<br />
poderia ser conceituado como “o<br />
que tem pouco tempo de existência,<br />
o de pouca i<strong>da</strong>de, o que ain<strong>da</strong> não<br />
foi posto em uso, o recente, o original”.<br />
É neste ultimo que poderíamos<br />
ancorar os objetivos em relação às<br />
novas diretrizes determina<strong>da</strong>s pelo<br />
tema. Nos interessa e muito discutir<br />
com diferentes especialistas, aprender<br />
com eles, trocar experiências<br />
sem, entretanto, nos esquecermos<br />
do engano <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des absolutas,<br />
váli<strong>da</strong>s para todos, aquelas que desconsideram<br />
o particular <strong>da</strong> clínica<br />
do caso a caso, onde o original, o<br />
peculiar de ca<strong>da</strong> um está falseado ou<br />
mesmo completamente encoberto.<br />
O mundo globalizado tornou-se<br />
pequeno, rápido, de fácil acesso, o<br />
outro, o diferente, as outras culturas<br />
nos chegam quase instantaneamente<br />
via Internet. As conseqüências<br />
desta rapidez on-line, maravilhosa<br />
do ponto de vista científico e tecnológico,<br />
já se apresenta com efeitos<br />
desastrosos na clínica. Como exemplo,<br />
cito a cruel<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s conversas<br />
via internet e a exposição posterior<br />
destas mesmas falas em salas de<br />
aula por adolescentes, tema já de<br />
diversos trabalhos e reportagens ou<br />
ain<strong>da</strong> e talvez mais desumano as<br />
dicas de adolescentes em como se<br />
tornar anorética ou como se suici<strong>da</strong>r,<br />
As novas e as falsas diretrizes<br />
Luciana Carvalho<br />
encontra<strong>da</strong>s em vários sites. Aqui,<br />
o novo é o novo mesmo, entendido<br />
como aprender a li<strong>da</strong>r com situações<br />
antes inexistentes.<br />
A nova clínica, lugar privilegiado<br />
para o embate com a dura reali<strong>da</strong>de<br />
do exercício profissional, marca<strong>da</strong><br />
por situações inespera<strong>da</strong>s, situações<br />
de risco, melhoras importantes na<br />
quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> de nossos pacientes,<br />
nos dá credibili<strong>da</strong>de, nos salva<br />
<strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de contemporânea,<br />
nos aproxima do ideal hipo crático<br />
(“onde existir amor pelo ho mem,<br />
existirá amor pela arte mé dica”). Na<br />
apresentação de casos clínicos, nas<br />
conferências, nas discussões <strong>da</strong>s<br />
mesas redon<strong>da</strong>s, na apresentação<br />
de trabalhos realizados, nas sessões<br />
de pôsteres, o Psiquiatra, jovem ou<br />
velho, se renova, se atualiza, se<br />
alimenta <strong>da</strong>queles que valorizam a<br />
cena do atendimento.<br />
Nunca se pesquisou tanto o funcionamento<br />
cerebral, as técnicas<br />
de neuroimagem, a neurobiologia<br />
molecular, os estudos poligênicos,<br />
cujas descobertas devemos utilizar<br />
sempre que possível, pois cumprem<br />
o papel de uma ciência promissora<br />
que aposta na melhoria <strong>da</strong> saúde<br />
e desmistifica antigas culpas antes<br />
outorga<strong>da</strong>s as famílias e ao próprio<br />
paciente “não melhora porque<br />
não quer”, é assim por causa <strong>da</strong><br />
maneira que foi criado “etc. Estes<br />
novos conhecimentos são bastante<br />
promissores, alguns ain<strong>da</strong> só ao<br />
nível de pesquisas e outros tais<br />
como os novos psicofármacos já<br />
nos permitem melhoras altamente<br />
significativas no controle dos<br />
sintomas e minimização de efeitos<br />
colaterais, aumentando a tolerabili<strong>da</strong>de<br />
e a adesão dos pacientes<br />
aos tratamentos. Várias áreas do<br />
cérebro, antes pouco conheci<strong>da</strong>s<br />
tornaram-se importantes com os<br />
avanços decorrentes dos métodos<br />
de imagem. Assim, pela primeira vez<br />
foi possível estu<strong>da</strong>r em um indivíduo<br />
vivo a anatomia do seu sistema<br />
nervoso central. Estas técnicas<br />
vêm se desenvolvendo e a ca<strong>da</strong><br />
dia se tornam mais sofistica<strong>da</strong>s.<br />
A tomografia computadoriza<strong>da</strong>, a<br />
ressonância nuclear magnética e a<br />
tomografia por emissão de pósitrons<br />
revolucionaram a propedêutica<br />
neurológica, uma importante área<br />
de diagnóstico diferencial com a<br />
Psiquiatria. As técnicas recentes<br />
de ativação, onde a captação de<br />
glicose pelo neurônio é proporcional<br />
a sua ativi<strong>da</strong>de nos aponta como<br />
uma <strong>da</strong>s mais promissoras áreas<br />
de compreensão <strong>da</strong> fisiopatologia<br />
do sistema nervoso. Espera-se um<br />
amplo debate tanto em nível de<br />
métodos de investigação diagnóstica<br />
como de recursos terapêuticos<br />
com o rigor necessário ao exercício<br />
de uma clínica ética, limita<strong>da</strong> pelos<br />
altos custos dos procedimentos<br />
técnicos em um país marcado pelo<br />
descrédito e insensibili<strong>da</strong>de dos<br />
governantes em relação à saúde<br />
<strong>da</strong> população”.<br />
Na era pós reforma psiquiátrica,<br />
temos de garantir o local <strong>da</strong> assistência,<br />
já amplamente problema tiza<br />
do anteriormente. Sabemos que<br />
a opção pelos tratamentos ambu latoriais<br />
é sempre menos traumática e<br />
onerosa, mas nem sempre possí vel.<br />
As situações de emergência<br />
variam caso a caso, deman<strong>da</strong>m<br />
intervenções diferentes. O idoso<br />
sempre deverá ser avaliado clinicamente,<br />
as crianças quase sempre<br />
ficam mais calmas na presença dos<br />
pais, os adolescentes pelo contrário,<br />
agitam e agridem os familiares. As<br />
situações são diversas e as soluções<br />
nem sempre muito complica<strong>da</strong>s.<br />
Uma boa equipe, um local seguro<br />
e disponibili<strong>da</strong>de de medicamentos<br />
é sinônimo de um bom manejo.<br />
Entretanto, não é só o paciente<br />
que está em crise, pois há uma<br />
ruptura do equilíbrio doméstico.<br />
Sabendo-se que o fracasso ou o<br />
sucesso do tratamento depende<br />
<strong>da</strong> adesão familiar, esta deverá ser<br />
acolhi<strong>da</strong> com a mesma prontidão<br />
sempre que estiver presente. Mas<br />
tratar a crise não basta, já que a<br />
aceitação dos sintomas residuais e<br />
<strong>da</strong> tolerância dos efeitos colaterais<br />
medicamentosos constitui ain<strong>da</strong><br />
um grande desafio. Como reabilitar<br />
para a produtivi<strong>da</strong>de, para a manutenção<br />
dos antigos laços sociais e a<br />
construção dos novos? Talvez aqui<br />
o novo se imponha, no sentido <strong>da</strong><br />
invenção de estratégias criativas,<br />
econômicas e lúdicas, que possam<br />
garantir o exercício pleno <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
de se viver dignamente, apesar<br />
do transtorno mental.<br />
Psiquiatra infantil, Prof. <strong>da</strong> Residência de Psiquiatria<br />
Infantil <strong>da</strong> FHEMIG; Membro <strong>da</strong> Comissão<br />
Científica <strong>da</strong> XXIII CDP.<br />
PÁGINA 7
Alguns movimentos contemporâneos se<br />
deram conta de que na Psiquiatria o consenso<br />
não é fácil. Trouxeram a tona uma<br />
crítica positivista ao discurso psiquiátrico,<br />
propondo que o mesmo se reduzisse a<br />
uma espécie de língua bem fala<strong>da</strong>, taxonômica,<br />
sob as bases de uma simplificação<br />
a-teórica, desprovi<strong>da</strong> <strong>da</strong> densi<strong>da</strong>de teórica<br />
basea<strong>da</strong> na filosofia. Acusa<strong>da</strong> de imprecisão,<br />
a Psiquiatria Clássica, viu aportar no<br />
seu âmago o ideal cientificista, fez parceria<br />
com a biologia e com a epidemiologia. Mas<br />
será que assim poderíamos apostar numa<br />
espécie de vale-tudo, onde o que conta é<br />
a eficiência e a eficácia <strong>da</strong> prática?<br />
A idéia de que a Psiquiatria do discurso<br />
morreu ou morrerá faz com que vivamos<br />
diante de um caos irredutível. Curioso.<br />
Atualmente a nossa crise quer saber qual<br />
o marco teórico que nos concerne e se a<br />
neurociência nos salvará <strong>da</strong> imprecisão<br />
conceitual, e colocará fim aos erros <strong>da</strong><br />
prática clínica e reduzirá to<strong>da</strong> disfunção<br />
causal. Estaria decretado o fim de to<strong>da</strong><br />
crise? Impossível deixar de reconhecer que<br />
apesar de tanta pretensão, a crise nunca<br />
passa, mas, sustentamos que mesmo no<br />
reino do caos há inércia ou oportunismo em<br />
que diz que não é possível distinguir o certo<br />
do errado, ou que não se pode distinguir a<br />
Psiquiatria do que não é Psiquiatria. Devemos<br />
acreditar que o pensamento reflexivo<br />
e crítico pode nos <strong>da</strong>r direção, construirá<br />
a Psiquiatria como práxis, permitindo uma<br />
reflexão sobre o papel e a prática.<br />
Pensar é ansioso e onde a ansie<strong>da</strong>de está<br />
ausente não se pode fazer existir a Psiquiatria.<br />
O pensar reflexivo e a ansie<strong>da</strong>de são<br />
PÁGINA 8<br />
Diretrizes instáveis<br />
Hélio Lauar<br />
produtos de um mal-estar provocado por<br />
uma práxis em permanente crise, instável,<br />
questionável e capaz de questionar Se ela<br />
passa a ser aceita e a dispensar justificativas,<br />
se tornando estabeleci<strong>da</strong> e inquestionável,<br />
ela deixa de ser um Psiquiatria de<br />
quali<strong>da</strong>de. Na Psiquiatria importa menos<br />
o seu último produto e mais o que a problemática<br />
e as questões levanta<strong>da</strong>s pelos<br />
seus processos de criação legou ao estado<br />
<strong>da</strong> arte. Psiquiatria é essencialmente um<br />
processo, e é esse processo que lhe confere<br />
seu significado e valor. Em Psiquiatria,<br />
como na filosofia grega, pensar é agir. A<br />
Psiquiatria deve ser toma<strong>da</strong> portando como<br />
um modo reflexivo de ação, e este processo<br />
é capaz de criar uma consciência histórica<br />
e de orientar eticamente to<strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de. Ë<br />
justamente esta instabili<strong>da</strong>de que permite<br />
a ela ser rigorosa.<br />
Não existe Psiquiatria estabeleci<strong>da</strong> ou<br />
inquestionável. Ou se é Psiquiatria ou se é<br />
inquestionável. Não se pode pretender os<br />
dois lugares. É constrangedor a mera repetição<br />
de modelos consagrados no passado<br />
como modelos de conformi<strong>da</strong>de, rebeldia,<br />
ou inovação, sem a devi<strong>da</strong> critica a estas<br />
formas e ao seu tempo. A Psiquiatria deve<br />
estar sempre pronta a <strong>da</strong>r respostas aos<br />
problemas do seu tempo, e para isso deve<br />
saber romper com o pré estabelecido, e<br />
aprender a observar o presente. O novo é<br />
antes de tudo uma ampliação, que transforma<br />
a Psiquiatria e o próprio Psiquiatra,<br />
num ritmo de descontinui<strong>da</strong>de permanente,<br />
onde o passado é apenas um referente.<br />
De na<strong>da</strong> adianta repetir conforma<strong>da</strong>mente<br />
o mesmo que já foi feito ou dito para se<br />
garantir pertencimento e aprovação corporativa.<br />
É preciso escrever de um jeito<br />
diferente, de um jeito ain<strong>da</strong> desconhecido,<br />
e ain<strong>da</strong> assim contribuir para a escrita <strong>da</strong><br />
Psiquiatria como um universal compartilhado,<br />
sem se desviar. Assim é preciso<br />
contribuir para uma ver<strong>da</strong>deira guerra de<br />
idéias, fazendo parte de um contexto social,<br />
cultural e histórico determinado. Aquele<br />
que se agarra ao estabelecido, como uma<br />
bóia de salvação, numa tentativa de se<br />
furtar à crise, ignora a história. A grandeza<br />
de uma época está em não permitir que a<br />
Psiquiatria confronta<strong>da</strong> com a ansie<strong>da</strong>de e<br />
com a instabili<strong>da</strong>de que lhe caracterizam,<br />
prefira <strong>da</strong>r meia volta e recorrer, ain<strong>da</strong> que<br />
sem saber, à segurança degenerativa <strong>da</strong>s<br />
coisas estabeleci<strong>da</strong>s.<br />
Porque apostar em diretrizes para a<br />
psiquiatria, se to<strong>da</strong> diretriz é instável e<br />
portanto, transitória? Uma diretriz é sempre<br />
uma Utopia, um ideal político e social de<br />
difícil ou impossível realização. É preciso<br />
confiar à Utopia, tal como Conte, a tarefa<br />
de melhorar as instituições políticas e de<br />
desenvolver a idéias científicas. Ela não<br />
pode se constituir num modelo teórico que<br />
se presta meramente a comparar intervenções<br />
e seus resultados, medindo nelas o<br />
bem e mal que elas contem. Ela deve se<br />
construir como expressão instável de um<br />
grupo social, pronto para transformá-la,<br />
se opondo a ideologia que produz ver<strong>da</strong>de<br />
onde há não saber. Ao contrário <strong>da</strong> ideologia,<br />
a Utopia deve guar<strong>da</strong>r para si a sua<br />
condição de irrealizável, e nesse sentido o<br />
fun<strong>da</strong>mento de uma constante renovação.<br />
Utopia é correção, mas não deve ser redu-
zi<strong>da</strong> a uma aspiração, a um sonho genérico,<br />
uma apologia do ideal que se distancia <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>. Ela deve se empenhar<br />
em ser uma força transfor-madora <strong>da</strong><br />
própria reali<strong>da</strong>de e dos seus mecanismos<br />
de estagnação. Na antigui<strong>da</strong>de, cruzar o<br />
Rio Rubicão era atravessar <strong>da</strong> Itália para<br />
a Gália Cisalpina. Daí a idéia de que a<br />
to<strong>da</strong> travessia é uma ultrapassagem, uma<br />
descontinuação, um rompimento, um novo<br />
caminho assumido. Ultrapassado o umbral<br />
na<strong>da</strong> mais será o mesmo, nem a reali<strong>da</strong>de<br />
nem aquele que a transformou. Uma diretriz<br />
deve enfrentar o obstáculo, o que impede<br />
ou dificulta o movimento ou progresso <strong>da</strong><br />
práxis. Atravessar o rubicão. Ela deve ser<br />
o ato que ultrapassa o umbral, o rubicão, e<br />
que ganha corpo e consistência, no desejo<br />
inovador e na ação que busca os meios<br />
desta renovação. Ultrapassar é uma decisão<br />
revolucionária, ato de insubordinação<br />
com o enfrentamento <strong>da</strong>s consequências<br />
que podem <strong>da</strong>í advir.<br />
Uma diretriz, assim pensa<strong>da</strong>, é uma<br />
construção político-social utópica que visa<br />
transformar a instituição psiquiatria, e o<br />
próprio psiquiatra, de modo a torna-los<br />
capazes de responder às questões do seu<br />
tempo. To<strong>da</strong> resposta é o possível, o fruto<br />
<strong>da</strong> escolha do momento na intercessão de<br />
discursos, um calculo baseado no modelo<br />
e não o modelo em si mesmo. Um modelo<br />
é a potência para a ação e o acolhimento<br />
ético do seu efeito.<br />
Apontar uma diretriz é tentar responder<br />
a pergunta: que ética para a Psiquiatria? Ao<br />
trabalhamos esta questão, nos <strong>da</strong>mos conta<br />
que é preciso pensar a ética para além <strong>da</strong><br />
ética corporativa, queremos a Ética como<br />
um norte, uma diretriz para a clínica, para<br />
os trabalhos institucionais, e intervenções<br />
em geral. Poderíamos retomar o debate<br />
entre a virtude e a moral para nos aproximar<br />
do tema, tal como ele é tratado pela<br />
filosofia, como uma ciência <strong>da</strong> conduta.<br />
Existem duas concepções fun<strong>da</strong>mentais<br />
para esta ciência: a primeira que a considera<br />
ciência do fim que norteia a conduta<br />
dos homens, e dos meios para atingir tal<br />
fim; e a segun<strong>da</strong>, que a considera como<br />
ciência do móvel <strong>da</strong> conduta humana e<br />
procura determinar esse móvel com vistas<br />
a determinar ou disciplinar a mesma<br />
conduta. Estas duas concepções fazem<br />
interagir o mundo antigo e o moderno, e<br />
falam linguagens diferentes e diversas. A<br />
primeira fala a linguagem do ideal a que<br />
o homem está dirigido pela sua natureza,<br />
e por conseguinte, fala <strong>da</strong> sua essência. A<br />
segun<strong>da</strong> fala dos motivos, <strong>da</strong>s causas, ou<br />
forças que determinam o homem, e pretende<br />
ater-se ao conhecimento dos fatos.<br />
A confusão que lhes permeia se atém ao<br />
tratamento que dão ao bem. Justamente<br />
aí é que as concepções de Ética demarcam<br />
suas maiores e significativas diferenças.<br />
A análise <strong>da</strong> concepção do bem demonstra<br />
pelo menos duas grandes concepções<br />
distintas: a noção do bem como reali<strong>da</strong>de<br />
perfeita, ideal ou a noção do bem como<br />
objeto do desejo.<br />
Em 1992, A<strong>da</strong>uto Novaes organizou<br />
uma coletânea sobre Ética, na qual se<br />
perguntava como pensa-la a partir <strong>da</strong>s<br />
contradições de um mundo que produz<br />
uma ciência e seus intelectuais dedicados<br />
a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo<br />
tempo, princípios de vi<strong>da</strong> e armas de morte;<br />
progressos nas comunicações e mecanismos<br />
sutis e aberrantes de censura? Eis as<br />
questões: falso bem, falsa justiça, falsa<br />
liber<strong>da</strong>de, falsa virtude que, ao criarem o<br />
homem <strong>da</strong> concórdia, <strong>da</strong> submissão e <strong>da</strong><br />
boa-fé o tornam duas vezes escravo: <strong>da</strong><br />
superstição e <strong>da</strong>s convenções. Ele propõe<br />
pensar as razões pelas quais os homens se<br />
comportam de determina<strong>da</strong> maneira e por<br />
que <strong>da</strong>s doutrinas morais conserva vestígios<br />
de servidão, no momento mesmo em que<br />
promete instaurar a liber<strong>da</strong>de.<br />
Uma diretriz será Ética se ela não se fizer<br />
entrincheira<strong>da</strong> em argumentos morais, se<br />
o seu preceito universal não for impeditivo<br />
de singulari<strong>da</strong>des responsáveis, tanto<br />
do psiquiatra quanto do sujeito que lhe<br />
deman<strong>da</strong> atendimento. Badiou, 1995, no<br />
debate sobre a Ética, recusa a noção de<br />
homem universal, e ao em vez de estabelecer<br />
padrões conservadores e ou narcísicos,<br />
produz um inconformismo ativo, produtivo,<br />
expresso em palavras e atos. Esta seria uma<br />
nova concepcão de Ética, capaz de nomear<br />
o vazio, esse núcleo em torno do qual de<br />
organiza a situação, perfurando saberes<br />
estabelecidos, nomeando o não-saber,<br />
abrindo o campo para novos saberes, conferindo<br />
a eles os poderes transformadores<br />
do acontecimento. Uma Ética que incita à<br />
reflexão e ao debate.<br />
Psiquiatra, Mestre em Psicologia Social UFMG, Professor Assistente<br />
III PUC MINAS, Preceptor Chefe <strong>da</strong> Residência de Psiquiatria do<br />
Instituto Raul Soares FHEMIG, Membro <strong>da</strong> COCIEM XXIII Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria <strong>da</strong> ABP.<br />
PÁGINA 9
Na perspectiva inaugura<strong>da</strong> pela<br />
ciência do século XVI, as contribuições<br />
de Bacon, assim como as de<br />
Galileu e Descartes, foram cruciais<br />
para que o discurso coman<strong>da</strong>do<br />
pela certeza cedesse seu lugar ao<br />
agenciado pelo saber. Por conseguinte,<br />
na fórmula utópica <strong>da</strong> “Nova<br />
Atlântica” encontramos, na ver<strong>da</strong>de,<br />
um giro de discurso. A partir dele,<br />
nas ciências, já não há mais lugar<br />
para uma incontrola<strong>da</strong> geniali<strong>da</strong>de,<br />
a sorte, o arbitrário e as sínteses<br />
precipita<strong>da</strong>s. As tradicionais formas<br />
de transmissão do conhecimento,<br />
seja por repetição ou pela revelação,<br />
são considera<strong>da</strong>s inadequa<strong>da</strong>s para<br />
promover a ver<strong>da</strong>de que a nova<br />
estrutura de discurso pretende alcançar.<br />
Desta maneira, o homem é<br />
retirado do centro de correspondências<br />
secretas, o universo deixa de ser<br />
concebido num contexto de símbolos<br />
que correspondem a arquétipos divinos,<br />
o empreendimento científico<br />
distancia-se de uma incomunicável<br />
experiência mística.<br />
A tradição clássica e medieval foi<br />
assim progressivamente destituí<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> sua inabalável valorização secular.<br />
Não que ela fosse totalmente<br />
errônea; apenas havia sido erigi<strong>da</strong><br />
em função de certos fins, promovidos<br />
pela soberania do discurso que<br />
a instituíra. Com seu declínio, a<br />
resignação <strong>da</strong> soberba intelectual é<br />
substituí<strong>da</strong> pela liber<strong>da</strong>de crítica, a<br />
cultura retórica e literária pelo caráter<br />
técnico e científico, a filosofia de<br />
palavras pela filosofia de obras. Os<br />
ideais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> técnica, contrários à<br />
virtude aristotélica, transformam-se<br />
em valioso propulsor cultural.<br />
O homem moderno her<strong>da</strong> os<br />
efeitos destas mu<strong>da</strong>nças e <strong>da</strong> crítica<br />
à ingênua confiança em antigas<br />
convicções. Destrona<strong>da</strong> a tradição,<br />
surge uma ciência democrática,<br />
cooperativa e útil, que desaloja a<br />
autori<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> a um mestre<br />
PÁGINA 10<br />
Liberação, despe<strong>da</strong>çamento e fissura<br />
desinteressado. O conhecimento<br />
técnico e prático passa a sobrepujar<br />
o exclusivamente teórico e<br />
idolatrado. Trata-se, sobretudo, do<br />
surgimento de uma nova concepção<br />
de ciência, indissociável dos valores<br />
éticos. O dever do homem já não<br />
consiste mais em celebrar sua infinita<br />
liber<strong>da</strong>de, nem em manter sua<br />
essencial contemplação com o Todo,<br />
mas de assumir que a potência dos<br />
seus limitados dons exige uma habili<strong>da</strong>de<br />
tecnológica para fomentar<br />
continuamente, numa obra coletiva,<br />
a hegemonia prometi<strong>da</strong> pela nova<br />
posição do saber. Como nos afirmou<br />
Foucault: no horizonte o que se visa<br />
é o triunfo <strong>da</strong> razão, pelo adequado e<br />
bom uso <strong>da</strong> ciência e sua aplicação.<br />
Instala-se uma nova ordem, cuja<br />
meta é o avanço simultâneo em<br />
direção à abundância, à liber<strong>da</strong>de e<br />
à felici<strong>da</strong>de.<br />
Portanto, nesta direção, modernamente,<br />
a nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
ciência e <strong>da</strong> ética associa-se a uma<br />
progressiva e crescente correspondência<br />
do saber tecnológico com as<br />
necessi<strong>da</strong>des individuais ou coletivas<br />
que ele deve regular. Inclui-se aí o<br />
âmbito <strong>da</strong> Lei e, neste sentido, o<br />
saber é animado numa articulação<br />
que ambiciona liberar o homem de<br />
to<strong>da</strong> opressão. A arbitrarie<strong>da</strong>de e a<br />
violência do poder deslocam-se pela<br />
regulação democrática e liberal do<br />
Estado de Direito e do mercado.<br />
Demoli<strong>da</strong>s antigas, inertes e<br />
opressoras crenças, a ciência apóiase<br />
numa nova concepção <strong>da</strong> relação<br />
do homem com a natureza. Seu papel<br />
é o de instituir um novo domínio lógico<br />
<strong>da</strong> razão, objetiva ou instrumental.<br />
O mundo declinado <strong>da</strong> mitologia<br />
e <strong>da</strong> magia cede lugar ao fetichismo<br />
<strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de científica. To<strong>da</strong>via,<br />
quanto mais se desvanece a ilusão<br />
manti<strong>da</strong> por remotas ideologias,<br />
mais inexoravelmente o homem se<br />
aprisiona num novo circuito <strong>da</strong> Lei<br />
Stélio Lage Alves<br />
naturaliza<strong>da</strong> que poderia regular<br />
uma eficácia de controle e domínio<br />
prévios e, portanto, <strong>da</strong> conquista e<br />
consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> suprema liber<strong>da</strong>de.<br />
Paradoxalmente, a tentativa de<br />
superação <strong>da</strong> natureza acaba resultando<br />
numa impossibili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong><br />
mais profun<strong>da</strong>, pois a derroca<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s tradições, num mesmo golpe,<br />
desencadeia a montagem de uma<br />
nova era onde, a meio caminho,<br />
sucumbe e cai prostra<strong>da</strong>, em estado<br />
de abandono, a prometi<strong>da</strong> força<br />
criativa de libertação.<br />
Neste sentido, o declínio de convicções<br />
tradicionais, fun<strong>da</strong>mental<br />
para a instalação do domínio iluminista<br />
do saber, acaba desembocando,<br />
por inversão, numa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />
discurso caracteriza<strong>da</strong> pela relação<br />
entre a carência humana e a produção<br />
de múltiplos objetos para a satisfação.<br />
O triunfo <strong>da</strong> instrumentali<strong>da</strong>de<br />
torna-se ação estratégica, enquanto<br />
a tecnologia encarrega-se de manter<br />
a oferta de massa regi<strong>da</strong> pela nova<br />
concepção de Lei, <strong>da</strong>s trocas e do<br />
mercado. Nesta nova lógica, o elogio<br />
ao consumo integra a devoração universal<br />
pelo capital. Mais que nunca<br />
é preciso que ele circule, sempre<br />
volátil. Com a demolição de pontos<br />
fixos que poderiam embargálo, a<br />
cadeia dos investimentos torna-se<br />
incessante e o valor do capital se<br />
propaga, sem limites. Prisioneiro <strong>da</strong><br />
on<strong>da</strong> <strong>da</strong> nova espécie de fé capitalista,<br />
fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> numa redefinição<br />
concreta do Bem, o giro inicialmente<br />
desencadeado nos Seiscentos acaba<br />
desaguando numa dinâmica de<br />
trocas dilacera<strong>da</strong>s pela fugaci<strong>da</strong>de<br />
e por intensas decomposições.<br />
Um mundo construído de objetos<br />
duráveis transforma-se gra<strong>da</strong>tivamen<br />
te num mercado de produtos e<br />
signos disponíveis projetados para<br />
as (in)satisfações. A durabili<strong>da</strong>de<br />
desloca-se para a obsolescência:<br />
o que prometia satisfazer antes já<br />
não vale mais. Nesta direção, tudo<br />
é adotado instantaneamente, para<br />
depois ser imediatamente descartado.<br />
As “leis de mercado” substituem,<br />
progressivamente, “as leis<br />
<strong>da</strong> natureza” e as “leis <strong>da</strong> história”.<br />
Em termos do contrato social, <strong>da</strong>s<br />
trocas ca<strong>da</strong> vez mais velozes, o pacto<br />
destitui-se do compromisso com<br />
a via <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de formal.<br />
Em vista disso, a desonesti<strong>da</strong>de é<br />
destaca<strong>da</strong>, melhor dizendo, eleva<strong>da</strong><br />
como eficaz quali<strong>da</strong>de social. O mecanismo<br />
perverso <strong>da</strong> recusa passa<br />
a manifestar-se como elemento<br />
prevalente nas relações.<br />
Nesta direção, o lugar <strong>da</strong> dominação,<br />
esvaziado pela crítica às<br />
sagra<strong>da</strong>s concepções, é substituído<br />
pela introdução de nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />
de alienação. Contrariando a otimista<br />
meta progressiva de liberação, uma<br />
infini<strong>da</strong>de de imagens e informações,<br />
multiplica<strong>da</strong>s e transmiti<strong>da</strong>s pelo desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> tecnologia, regula<br />
e ordena universalmente as relações.<br />
Na fragmentação universaliza<strong>da</strong>, os<br />
veículos de comunicação sutilmente<br />
vão instituindo um modelo pleno e<br />
global de unificação. Num controle<br />
revigorado, os ideais esfacelados penetram<br />
os diversos grupos, a mo<strong>da</strong>,<br />
os esportes, atingindo de maneira<br />
considerável as relações coletivas,<br />
familiares e priva<strong>da</strong>s.<br />
Com o declínio dos valores tradicionais<br />
e o sucedâneo deslocamento<br />
que alimentou a hipérbole <strong>da</strong> insatisfação,<br />
trata-se agora de experimentar<br />
a efemeri<strong>da</strong>de generaliza<strong>da</strong>, com<br />
seu desconforto e mal estar. Neste<br />
quadro sombrio, se as redes de segurança<br />
ain<strong>da</strong> não se desintegraram<br />
completamente, pelo menos foram<br />
consideravelmente enfraqueci<strong>da</strong>s.<br />
Convivemos com uma mescla <strong>da</strong><br />
pacata e brutal desregulamentação<br />
que, acopla<strong>da</strong> à desigual<strong>da</strong>de, atinge<br />
ca<strong>da</strong> vez maiores proporções.<br />
Emerge o desafio <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des:
a pós-moderni<strong>da</strong>de parece reencontrar<br />
o fracasso que a moderni<strong>da</strong>de<br />
prometia ter deixado, uma vez por<br />
to<strong>da</strong>s, para trás.<br />
Asfixiados pela massificação,<br />
torna-se inútil o movimento que<br />
procura desprender-nos <strong>da</strong> multidão,<br />
<strong>da</strong> poluição e <strong>da</strong> transmissão<br />
globaliza<strong>da</strong>, em todos os setores <strong>da</strong><br />
comunicação. Lutamos uma batalha<br />
venci<strong>da</strong> e convivemos impotentemente<br />
com inúmeros descalabros.<br />
O panegírico <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de humana<br />
ain<strong>da</strong> provoca apupos, quando transparece<br />
o registro fúnebre depositado<br />
no fosso <strong>da</strong> história <strong>da</strong> civilização:<br />
a miséria, a fome, a violência, as<br />
epidemias mortíferas, as catástrofes<br />
ecológicas e as guerras.<br />
O colapso <strong>da</strong> ordem agora parece<br />
manifestarse em todos os níveis –<br />
global, nacional, institucional, teórico<br />
e ambiental – configurandose ca<strong>da</strong><br />
vez mais a ausência do consenso e<br />
a falência de uma ordenação conceitual.<br />
Deste momento em diante, ser<br />
livre significa não acreditar em na<strong>da</strong>,<br />
numa atitude niilista em que prevalece<br />
a expiração <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de<br />
e a recusa diacrônica <strong>da</strong> história.<br />
Nesta direção, o que atualmente<br />
se mostra sempre permaneceu no<br />
mesmo lugar. Por conseguinte, onde<br />
Aristóteles situara o Bem Supremo,<br />
Kant instalara a razão pura e Hegel,<br />
o ápice <strong>da</strong> espiral dialética do saber,<br />
à pósmoderni<strong>da</strong>de só restava escavar,<br />
em sua coleção de instantâneos,<br />
a face terrível de um limite onde<br />
qualquer forma do Absoluto se esvai.<br />
Nesta degra<strong>da</strong>ção de todo princípio<br />
unificador e no declínio paulatino<br />
de to<strong>da</strong> espécie de proteção,<br />
ao sucessor do homem “liberado”<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna cabe agora,<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente, o desamparo<br />
desta nova posição. No além do oco<br />
escavado, o desespero - revigorado<br />
pelo sepulcro vazio de Deus - revela<br />
o que sempre se manifestou como a<br />
eminente ameaça <strong>da</strong> morte no processo<br />
de civilização. Quanto a isto,<br />
vale lembrar que Freud, apropriandose<br />
do pensamento de sua época e<br />
<strong>da</strong> tradição de um longo passado,<br />
teve a ver<strong>da</strong>deira audácia dos que<br />
reconduzem o saber ao lugar <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
Daí ele nunca ter se esquivado<br />
em transmitir no circuito racional<br />
<strong>da</strong> ciência que quanto ao desejo,<br />
destacado e decantado <strong>da</strong>s ordens<br />
míticas e do sentido, no limite em<br />
que a vi<strong>da</strong> se conjuga com a morte,<br />
na<strong>da</strong> há senão falta.<br />
Seguramente adentramos numa<br />
nova era. A tecno-ciência, sustenta<strong>da</strong><br />
em infinitas interfaces e nos instantes<br />
eternizados por minúsculos chips, é<br />
capaz de nos seduzir com uma nova<br />
arquitetura <strong>da</strong> informação. Em futuro<br />
breve, estaremos num tempo ain<strong>da</strong><br />
mais acelerado, quando a fita binária<br />
do micropro cessa dor de silício e o bit<br />
forem substituídos pela seqüência<br />
giratória de átomos e o qubit do<br />
holograma quântico na computação.<br />
Por conseguinte, os conceitos de<br />
identi<strong>da</strong>de, autonomia e liber<strong>da</strong>de<br />
exigem desde já uma reformulação.<br />
Certamente a vi<strong>da</strong> moderna<br />
preparou o terreno para qualquer<br />
coisa, menos para o que permaneça<br />
imóvel. Numa dimensão de ver<strong>da</strong>deira<br />
heterogenei<strong>da</strong>de, tudo é rapi<strong>da</strong>mente<br />
engolfado, numa dinâmica<br />
aparentemente dispersa e destituí<strong>da</strong><br />
de direção. Progressivamente<br />
desaparece o que outrora permitia<br />
decidir qual o movimento, seja para<br />
frente, seja o de retira<strong>da</strong>. Então, é<br />
preciso também apontar uma outra<br />
novi<strong>da</strong>de desta nossa época: agora<br />
já nem parece mais haver meios de<br />
uma adequação para os momentos<br />
de catarse. Entramos no domínio <strong>da</strong><br />
veloci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> precipitação, numa<br />
direção díspar <strong>da</strong> compreensão.<br />
Enquanto isto, um jato contínuo<br />
de morte e destruição, em cenas<br />
mais multiplica<strong>da</strong>s, apresenta-se<br />
nas ruas, noticiários, cinemas e<br />
televisão. Como atores céticos,<br />
naufragamos nesta on<strong>da</strong> de agressão<br />
generaliza<strong>da</strong> e, sobretudo,<br />
atordoamo-nos com o sumo temor<br />
<strong>da</strong> nossa eliminação. Na<strong>da</strong> mais favorável<br />
para um retorno às sombras<br />
e ilusões. Neste panorama de laços<br />
rotos e desintegrados, <strong>da</strong> instalação<br />
progressiva de um permanente estado<br />
de pânico, estratégias remotas<br />
de dominação emergem revitaliza<strong>da</strong>s<br />
como recursos de salvação.<br />
Nesta perspectiva, mesmo que<br />
desacredita<strong>da</strong>s, as religiões continuam<br />
inabaláveis. Mais que isso, o<br />
mundo parece mais religioso do que<br />
costumava ser, mas de uma maneira<br />
diferente <strong>da</strong> tradicional. Por um lado,<br />
no ocidente, um ver<strong>da</strong>deiro véu de<br />
opaci<strong>da</strong>de opera, em nome de Deus,<br />
a favor de uma pseudolegitimação<br />
<strong>da</strong> ganância facilita<strong>da</strong>. A fraudulência,<br />
disfarça<strong>da</strong> em promessas<br />
impossíveis, torna-se encantamento<br />
convincente. A relação com a ver<strong>da</strong>de<br />
recebe <strong>da</strong>í o desprezo, pois mais<br />
vale cultivar a artimanha de sempre<br />
enganar o outro, em prol <strong>da</strong> razão<br />
nunca confessa<strong>da</strong> que mantém assegurado<br />
um Bem do tipo umbilical.<br />
Desta maneira, em renova<strong>da</strong>s práticas<br />
neopentecostais, a nostálgica<br />
generosi<strong>da</strong>de do “transcendental”<br />
mais apurado converte-se numa<br />
maniqueísta e proveitosa prática de<br />
manipulação.<br />
Por outro lado, no mundo islâmico,<br />
a situação se tornou bastante<br />
dramática. A moderni<strong>da</strong>de, técnica<br />
e competitiva, avassalou e aniquilou,<br />
como um tufão, leal<strong>da</strong>des e<br />
soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>des. Ao mesmo tempo,<br />
assolou identi<strong>da</strong>des primordiais,<br />
assenta<strong>da</strong>s em valores consagrados<br />
pela tradição. Nesta ruína dos anteparos<br />
sociais, o fun<strong>da</strong>mentalismo<br />
lançou sua semeadura, florescendo<br />
como um violento processo de<br />
retribalização. Como decorrência,<br />
a paz, a tolerância e a liber<strong>da</strong>de<br />
tornaram-se as primeiras vítimas<br />
num confronto inevitável, instalado<br />
entre esta radical retoma<strong>da</strong> de um<br />
eixo <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de islâmica e a Nova<br />
Ordem Mundial, manti<strong>da</strong> por um<br />
capitalismo imperialista, grosseiro<br />
e neoconservador. Se os tratados e<br />
organizações internacionais são ignorados<br />
e sacrificados pela utilização<br />
bilateral do terror, injustiça e força<br />
brutal, pouco importa. O que parece<br />
contar é o domínio de certos valores,<br />
seja o apelo crítico que desintegra<br />
os fun<strong>da</strong>mentos de algumas crenças<br />
e religiões, seja a distorção <strong>da</strong><br />
ver<strong>da</strong>de em sua versão monolítica<br />
e peremptória de revelação.<br />
Enquanto isto, nos altares laboratórios<br />
a ciência persegue desenfrea<strong>da</strong>,<br />
extremamente otimista, tudo o<br />
que não vai bem e não funciona, o<br />
que se opõe à vi<strong>da</strong> e as agruras que<br />
devemos enfrentar. Somos assim<br />
pressionados, num afrontamento<br />
inesgotável. Com o discurso <strong>da</strong> ciência,<br />
o Real é tratado numa perspectiva<br />
vertiginosa e interminável<br />
que se propaga num funcionamento<br />
infinitesimal e, ao mesmo tempo,<br />
ilimitado. Desta maneira, nesta mesma<br />
direção, a tecno-ciência parece<br />
edificar seu sarcófago. O fascinante<br />
e avançado desenvolvimento tecnológico<br />
que envolve as descobertas e<br />
invenções compassa também com<br />
o horror: o êxito de uma conquista<br />
acaba sendo também acompanhado<br />
por desdobramentos incon troláveis,<br />
formando uma ver<strong>da</strong>deira mortalha<br />
com os desastres que acarretou.<br />
Claro, podemos celebrar, pois não<br />
morremos mais tão facilmente como<br />
os antigos. To<strong>da</strong>via, temos que nos<br />
curvar agora às novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />
que causam o término <strong>da</strong> nossa existência:<br />
superbactérias, vírus imbatíveis,<br />
déficits ecológicos irreversíveis<br />
como o buraco <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> de ozônio.<br />
Ou ain<strong>da</strong>, se a isto sobrevivermos,<br />
caberá restar como um dos experimentos<br />
médicos que efetivamente só<br />
mantém a putrefação em vi<strong>da</strong> tardia,<br />
tal como uma versão tecnológica do<br />
conto de Allan Poe, “O caso do Sr.<br />
Valdemar”.<br />
O Outro decomposto e estilhaçado:<br />
eis a herança moderna! Nesta<br />
direção, a fissura exposta pela pósmoderni<strong>da</strong>de<br />
articula-se ao ponto<br />
limite <strong>da</strong> falta a Ser e do desamparo.<br />
Mal-estar, desconforto!<br />
Como já dizia Freud, é bem provável<br />
que a condição humana não<br />
tenha se tornado somente agora mais<br />
frágil e errática, mas que o processo<br />
de civilização tenha produzido, em<br />
to<strong>da</strong>s as épocas, o que hoje apenas<br />
se revela de maneira bem mais<br />
contundente.<br />
Psiquiatra, Psicanalista, Diplomado em Estudos<br />
Avançados de Filosofia do Direito, Moral e Política,<br />
pela Universi<strong>da</strong>de Complutense de Madrid<br />
PÁGINA 11
Em outubro de 2004 haverá o<br />
XXIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria<br />
em Belo Horizonte com o<br />
tema – Diretrizes em Psiquiatria:<br />
Nova Clínica, Novas Instituições,<br />
Novas Intervenções. A proposição<br />
desse tema levou em conta a necessi<strong>da</strong>de<br />
de discutirmos no campo<br />
psiquiátrico brasileiro diretrizes para<br />
a nossa ação e, mais do que isso,<br />
discutirmos os pressupostos, as<br />
bases, para essa ação. É curioso<br />
que ao tema central Diretrizes,<br />
segue-se imediatamente três vezes a<br />
palavra Nova - Nova Clínica, Novas<br />
Instituições, Novas Intervenções.<br />
Vivemos em uma época em que,<br />
diferentemente do que acontecia<br />
no passado, o que é valorizado é o<br />
Novo – se queremos positivar algo<br />
dizemos que é novo, o que nos fascina<br />
é sempre a juventude e não a<br />
suposta experiência dos idosos, já<br />
não somos nem mesmo modernos,<br />
mas pós-modernos ... No entanto,<br />
se formos buscar as diretrizes de<br />
nossa prática psiquiátrica, serão elas<br />
de fato Novas? E se o são, em que<br />
sentido? Em que direção?<br />
Para responder a esse questionamento<br />
temos que nos perguntar<br />
inicialmente que diretrizes segue<br />
hoje a psiquiatria. A medicina caminha<br />
a passos largos em busca<br />
de suas evidências. Há evidências<br />
em psiquiatria? As informações<br />
internáuticas nos atualizam e nos<br />
colocam frente a uma enormi<strong>da</strong>de de<br />
conhecimento a ca<strong>da</strong> minuto, o que<br />
muitas vezes nos dá a sensação de<br />
soterramento diante de tantas e tantas<br />
informações. Para li<strong>da</strong>r com esse<br />
excesso de informações, elaboram-<br />
PÁGINA 12<br />
A clínica não é feita de evidências<br />
se revisões sistemáticas que tentam<br />
<strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> junção <strong>da</strong>s inúmeras<br />
experiências feitas, na tentativa de<br />
encontrarmos conclusões mais uniformes,<br />
mais “conformes à ver<strong>da</strong>de”.<br />
Mas existiria de fato algum meio de<br />
nos livrarmos <strong>da</strong> angústia que um<br />
ato sempre gera em nós? Teríamos<br />
como ter certeza de que agimos <strong>da</strong><br />
melhor maneira ao tomarmos uma<br />
determina<strong>da</strong> decisão clínica?<br />
Comentando um artigo publicado<br />
no The Lancet por Rosalind Raine<br />
e cols - An experimental study of<br />
determinants of group judgments<br />
in clinical guideline development –<br />
(Raine R, Sanderson C, Hutchings<br />
A, Carter S, Larkin K, Black N. Lancet<br />
2004 Jul 31; 364(9432):429-37) –,<br />
nos quais os autores ao examinar o<br />
efeito do julgamento na interpretação<br />
<strong>da</strong> evidência por dezesseis grupos<br />
de desenvolvimento de guidelines,<br />
apontam para o fato de que apenas<br />
51% dos 192 itens estu<strong>da</strong>dos concor<strong>da</strong>vam<br />
com os resultados de uma<br />
revisão sistemática <strong>da</strong> evidência,<br />
Burgers e Everdingen concluem que<br />
“outros fatores que não a evidência<br />
disponível afetam as decisões do<br />
grupo” e comentam que grupos<br />
mistos de psiquiatras e médicos de<br />
família apresentam em geral uma<br />
concordância menor que grupos<br />
compostos exclusivamente por médicos<br />
de família. Para referen<strong>da</strong>r essa<br />
afirmação citam um estudo holandês<br />
(Med Contact 59 (2004), pp. 493-496,<br />
citado por Burgers, JS e Everdingen,<br />
JE, Lancet 2004, Jul 31; 364(9432):<br />
392-393) que demonstrou que um<br />
grupo multidisci plinar, composto<br />
para produzir um guideline sobre o<br />
Maria Tavares Cavalcanti<br />
tratamento de depressão maior, não<br />
conseguiu chegar a um consenso<br />
sobre o antidepressivo de primeira<br />
escolha por causa <strong>da</strong>s diferentes<br />
interpretações dos <strong>da</strong>dos em virtude<br />
de diferentes perspectivas dos<br />
profissionais – os psiquiatras eram<br />
favoráveis aos ISRS em detrimento<br />
dos tricíclicos, enquanto os médicos<br />
de família não tinham preferência.<br />
Ou seja, “medicina é uma ciência<br />
probabilística e a prática clínica<br />
envolve tentativa e erro. Por esse<br />
motivo, a incerteza deve ser incorpora<strong>da</strong><br />
e não excluí<strong>da</strong> dos guidelines,<br />
que se destinam à necessi<strong>da</strong>de de<br />
informação por parte dos pacientes”<br />
(Edwards, A Communicating risks.<br />
BMJ 327(2003), pp. 691-692, citado<br />
por Burgers, JS e Everdingen, JE,<br />
op. cit., p.393).<br />
Em um outro artigo de opinião<br />
(Commentary) publicado no Journal<br />
of Clinical Psychiatry, por Alan<br />
Gelenberg (Gelenberg, AJ, J Clin<br />
Psychiatry; 65 (6): 750-751, Jun<br />
2004) e intitulado “Honoring our<br />
evidence base”, Gelenberg aponta<br />
para o fato de que em medicina e também<br />
na psiquiatria há um crescente<br />
número de guidelines, algoritmos<br />
e conferências de consenso que<br />
buscam auxiliar os médicos em sua<br />
prática. Segundo este autor, essas<br />
ferramentas são úteis, sobretudo,<br />
para as fases iniciais de pacientes<br />
pouco complicados e exemplifica<br />
com a escolha de um ISRS para<br />
um paciente com Transtorno Depressivo<br />
Maior e um antipsicótico de<br />
segun<strong>da</strong> geração para um paciente<br />
esquizofrênico. No entanto, diz ele,<br />
o que fazer quando deixamos para<br />
trás o terreno dos pacientes “fáceisde-tratar”,<br />
não complicados, e adentramos<br />
no mundo real dos pacientes<br />
resistentes ao tratamento, comórbidos,<br />
complexos. Freqüentemente,<br />
a evidência tropeça nesse ponto.<br />
“Deve haver poucos (se algum) estudos<br />
prospectivos, randomizados,<br />
duplo-cego, controlados, envolvendo<br />
pacientes como o Sr. X, com seus<br />
múltiplos transtornos psiquiátricos<br />
e clínicos, abuso de substâncias e<br />
falta de resposta aos tratamentos<br />
padronizados. Mesmo em tais casos,<br />
no entanto, o raciocínio do médico<br />
deve permanecer o mais próximo<br />
<strong>da</strong> evidência possível, mantendo-se<br />
dentro do rigor científico. Diagnóstico<br />
e tratamento devem sempre se<br />
fun<strong>da</strong>r em <strong>da</strong>dos e não na “fé”. Muito<br />
freqüentemente, mesmo médicos<br />
bem treinados acreditam na magia<br />
e feitiçaria de gurus”. (Gelenberg,<br />
2004, op.cit., p.750).<br />
Há situações clínicas, porém, em<br />
que o conhecimento padronizado se<br />
esgota e o paciente passa a caminhar<br />
conosco em um terreno de incertezas.<br />
Nesse caso, diz Gelenberg, o<br />
médico tem a obrigação de partilhar<br />
a sua incerteza com o paciente. Não<br />
há na<strong>da</strong> de impróprio em utilizarmos<br />
medicamentos que estão fora dos<br />
guidelines, desde que o pensamento<br />
que esteja conduzindo o profissional<br />
seja lógico e razoável e o paciente<br />
esteja suficientemente informado do<br />
que está se passando e tenha <strong>da</strong>do<br />
o seu consentimento.<br />
“A medicina moderna vem se<br />
tornando mais complexa e também<br />
a psiquiatria. Nós temos um maior<br />
número de tratamentos e, com isso,
um maior potencial para interações e<br />
outros eventos adversos. As fronteiras<br />
categoriais entre diagnósticos e<br />
grupos farmacológicos se tornaram<br />
menos rígi<strong>da</strong>s e distintas. (...) A<br />
despeito dos inúmeros avanços, a<br />
medicina em grande parte ain<strong>da</strong> é<br />
arte. “Ouvir com o terceiro ouvido”,<br />
mantendo-se afinado às nuances <strong>da</strong><br />
comunicação humana, e usando a<br />
empatia e a compaixão são ain<strong>da</strong><br />
[ferramentas] essenciais para a boa<br />
prática. Mas estejamos nós tratando<br />
de casos simples ou complexos,<br />
empregando tratamentos de primeira<br />
linha ou conduzindo regimes novos<br />
e criativos, nós precisamos sempre<br />
raciocinar de forma sistemática e rigorosa<br />
e permanecer o mais próximo<br />
<strong>da</strong> evidência científica o quanto for<br />
humanamente possível. O aprendizado<br />
ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é muito mais<br />
do que um clichê”. (Gerenberg, 2004,<br />
op. cit., p. 751).<br />
Podemos aferir, com base nesses<br />
dois comentários, que a medicina em<br />
geral e a psiquiatria em particular<br />
são maiores que as evidências, embora<br />
não possam prescindir delas.<br />
Portanto, um congresso que quer<br />
discutir a fundo as Diretrizes em<br />
Psiquiatria terá de levar em conta<br />
necessariamente o que temos de<br />
evidência nesse campo, mas apontar<br />
para que mesmo as evidências são<br />
falhas, não se constituindo numa<br />
garantia em si mesmas, pois fazem<br />
parte de um contexto. A clínica não<br />
é feita de evidências, pois a clínica<br />
depende sempre de um julgamento<br />
e de uma decisão, julgamento e<br />
decisão esses necessariamente<br />
atravessados pelo cenário e atores<br />
que compõem aquele ato. Em seu<br />
livro recém lançado – Por um fio –<br />
Drausio Varela comenta a situação,<br />
ocorri<strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong> medicina<br />
norte-americana, de uma senhora<br />
portadora de um câncer grave que<br />
pergunta ao médico se ela poderia<br />
passar o Dia de Ação de Graças<br />
com os filhos que moravam em<br />
outro Estado. O médico nega por<br />
ser o período em que ela deveria<br />
se submeter à quimioterapia e ela<br />
se submete à decisão do médico.<br />
Varela aponta para o absurdo <strong>da</strong><br />
situação uma vez que dificilmente<br />
aquela senhora estaria viva no ano<br />
seguinte para passar essa mesma<br />
<strong>da</strong>ta com seus filhos, o que de fato<br />
aconteceu. (Varela, D. Por um fio.<br />
São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s letras,<br />
2004). Certamente as evidências<br />
consulta<strong>da</strong>s pelo médico apontavam<br />
pela pertinência de se manter aquela<br />
periodici<strong>da</strong>de para a quimioterapia,<br />
no entanto, a periodici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
muitas vezes é outra...<br />
Resta discutirmos a questão <strong>da</strong>s<br />
Novi<strong>da</strong>des no campo psiquiátrico:<br />
Nova Clínica, Novas Instituições,<br />
Novas Intervenções.<br />
“O que existiu, é o que existirá;<br />
o que se fez é o que se fará; não há<br />
na<strong>da</strong> de novo sob o sol. Há ao menos<br />
uma única coisa <strong>da</strong> qual se diga: -<br />
Finalmente, algo de novo! – Não,<br />
isso já existia nos séculos passados.<br />
Apenas não temos lembranças do<br />
antigamente; <strong>da</strong> mesma forma, os<br />
acontecimentos futuros não deixarão<br />
lembranças atrás de si”. Eclesiastes<br />
(1, 2-11)<br />
A julgar pelo Eclesiastes não há<br />
na<strong>da</strong> de novo sob o sol. O que se<br />
fez, é o que se fará. Mas seremos<br />
tão radicais assim? Não há na<strong>da</strong> de<br />
novo mesmo sob o sol no que diz<br />
respeito às sen<strong>da</strong>s psiquiátricas?<br />
O primeiro elemento que salta aos<br />
olhos quando pensamos nas novi<strong>da</strong>des<br />
presentes em nosso campo são<br />
os psicofármacos. De fato, eles parecem<br />
introduzir algo novo em nossa<br />
prática – a possibili<strong>da</strong>de de intervir<br />
farmacologicamente nos humores,<br />
nos pensamentos, na angústia, na<br />
vontade, na dor, no prazer etc. No<br />
entanto, mesmo eles não são a panacéia<br />
tantas vezes apregoa<strong>da</strong>. Além<br />
dos efeitos colaterais, há a questão<br />
<strong>da</strong> resistência aos medicamentos, a<br />
necessi<strong>da</strong>de de trocá-los, tudo aquilo<br />
que escapa de sua ação e revela o<br />
que do sujeito está presente em sua<br />
sintomatologia. Uma <strong>da</strong>s questões<br />
que mais surpreende e perplexifica<br />
o jovem psiquiatra é quando ele se<br />
depara, depois de muito penar, que<br />
talvez, apesar do discurso manifesto,<br />
aquele sujeito não queira ou não possa<br />
mesmo “se livrar” <strong>da</strong>quele sintoma<br />
apesar de to<strong>da</strong> a dor e o sofrimento<br />
que ele lhe causa. O que fazer nesses<br />
casos? Não é incomum recebermos,<br />
no ambulatório, pacientes que circularam<br />
por diversos residentes, ca<strong>da</strong><br />
vez com novos diagnósticos e novas<br />
medicações. O trabalho necessário<br />
é muitas vezes suspendermos o<br />
afã diagnóstico, deixarmos a dúvi<strong>da</strong><br />
e a incerteza aparecerem, e ter<br />
paciência para esperar, escutando<br />
aquilo que o paciente nos traz por<br />
meses a fio, até que a criação e o<br />
fortalecimento do vínculo possam vir<br />
a favorecer um novo posicionamento<br />
<strong>da</strong>quele sujeito.<br />
Seria essa uma Nova Clínica?<br />
Não creio. A clínica permanece sendo<br />
a escuta e a observação atenta<br />
dos sujeitos que nos procuram em<br />
busca de regulari<strong>da</strong>des sim, mas<br />
sem perder de vista a especifici<strong>da</strong>de<br />
e a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela situação e<br />
<strong>da</strong>quele sujeito que temos diante de<br />
nós. Há uma observação clássica de<br />
Jean Oury, cita<strong>da</strong> por Octavio Serpa<br />
Jr, na qual Oury aponta que a clínica<br />
é o ponto zero, o ponto no qual<br />
to<strong>da</strong>s as nossas certezas ficam em<br />
suspenso - “diante de ca<strong>da</strong> paciente<br />
que vemos pela primeira vez tudo<br />
é zerado” - a fim de que possamos<br />
mergulhar na paisagem do outro.<br />
(Serpa Jr, OD Clínica e evidência: em<br />
que se baseiam as nossas decisões?<br />
In Silva Filho JF e Serpa Jr. OD (org)<br />
O ensino, a pesquisa, seus métodos<br />
e a psiquiatria. Cadernos IPUB, Instituto<br />
de psiquiatria <strong>da</strong> UFRJ, 1999,<br />
pp.61-78).<br />
Talvez pudéssemos fazer observações<br />
semelhantes no que<br />
diz respeito às Novas Instituições<br />
e Novas Intervenções, mas nesse<br />
caso necessitaríamos aprofun<strong>da</strong>r<br />
a discussão, pois, de fato, parece<br />
que há ao menos a colocação de<br />
pesos diferenciados no que seriam<br />
as instituições e intervenções prioriza<strong>da</strong>s<br />
nesse momento e uma política<br />
pública de saúde mental explícita<br />
nesse sentido, política pública que<br />
deixou o papel e partiu para uma<br />
ação efetiva, com conseqüências<br />
visíveis e fun<strong>da</strong>mentais. Basta para<br />
exemplificarmos esse fato o número<br />
de Centros de Atenção Psicossocial<br />
hoje existentes no país – mais de<br />
540 -, enquanto há dez anos tínhamos<br />
bem menos de uma centena.<br />
Portanto, nesse cenário, há algo<br />
de novo e importante acontecendo<br />
e é fun<strong>da</strong>mental que a psiquiatria<br />
e os psiquiatras participem desse<br />
processo, discutindo o papel e a<br />
importância <strong>da</strong> clínica psiquiátrica<br />
nessas novas instituições e intervenções.<br />
Essa será também uma<br />
<strong>da</strong>s funções do XXIII Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria, que ocorrerá<br />
em Belo Horizonte, em outubro<br />
de 2004 e para o qual contamos<br />
com a participação expressiva dos<br />
psiquiatras brasileiros.<br />
Psiquiatra, Prof. do IPUB UFRJ, Membro do COCIEN<br />
do XXII e XXIII CBP.<br />
PÁGINA 13
O tema que tratarei – a proposta<br />
de introdução <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s<br />
formulações ideográficas nos futuros<br />
sistemas de diagnóstico em<br />
psiquiatria – necessita ser situado<br />
por uma reflexão sobre o contexto<br />
históricocientífico do qual estas<br />
emergem. Iniciarei, pois, por retomar,<br />
ain<strong>da</strong> que resumi<strong>da</strong>mente,<br />
o estado de coisas no qual se<br />
encontrava a psiquiatria após a<br />
implantação em nível mundial dos<br />
manuais diagnósticos baseados na<br />
formulação de critérios explícitos e<br />
padronizados de sintomas mentais.<br />
A partir dos anos 80 com a implantação<br />
mundial dos manuais de<br />
diagnóstico baseados na formulação<br />
explícita de critérios de inclusão<br />
e de exclusão de determina<strong>da</strong>s<br />
constelações clínicas sob uma determina<strong>da</strong><br />
denominação técnica,<br />
foi a própria clínica psiquiátrica<br />
que entrou em crise e passou a<br />
estar sob ameaça pelo avanço de<br />
tais instrumentos como substitutos<br />
<strong>da</strong> arte do psiquiatra junto a seu<br />
paciente. Ou seja, tais abor<strong>da</strong>gens<br />
pragmáticas, visando a confiabili<strong>da</strong>de<br />
do diagnóstico, parecem ter<br />
atingido seus objetivos de utili<strong>da</strong>de,<br />
a um grande custo para própria<br />
psiquiatria.<br />
No plano <strong>da</strong> concepção psicopatológica<br />
e <strong>da</strong> ética subjacente a tais<br />
sistemas diagnósticos, as questões<br />
pareciam ain<strong>da</strong> mais complica<strong>da</strong>s.<br />
O caráter contingente, temporário<br />
e convencional dos sistemas de<br />
diagnósticos psiquiátricos contemporâneos<br />
torna explícita a vocação<br />
não-ontológica <strong>da</strong>s categorias por<br />
eles cria<strong>da</strong>s, mas impõe - ato contínuo<br />
– a constante vigilância ética,<br />
psicopatológica e filosófica de seus<br />
usos concretos na cultura. Dito em<br />
outras palavras, a atitude pragmática<br />
em relação à linguagem,<br />
subjacente a qualquer elaboração<br />
PÁGINA 14<br />
de acordos quanto às definições<br />
diagnósticas em psiquiatria, implica<br />
em se fixar certos valores e recortes<br />
arbitrários sobre a experiência<br />
psicopatológica – em última instância,<br />
sobre as paixões e sofrimentos<br />
humanos – implantandoos como<br />
pontos fixos a partir dos quais se<br />
organiza uma área estável e nãoconflitiva<br />
de entendimento mínimo,<br />
compartilha<strong>da</strong> pelos participantes<br />
desse jogo de linguagem. Ou<br />
seja, longe de serem ateóricos,<br />
tais procedimentos se fun<strong>da</strong>m na<br />
incorporação implícita de certas<br />
visões de mundo – como tais, sempre<br />
problemáticas - na construção<br />
de suas categorias. É justamente<br />
esse acordo sobre tais elementos<br />
ideológico-valorativos que permite<br />
a estabili<strong>da</strong>de – a confiabili<strong>da</strong>de –<br />
do jogo de linguagem assim criado.<br />
São os riscos éticos e culturais,<br />
consciente ou inconscientemente<br />
assumidos pela adesão a um<br />
sistema diagnóstico que impõem<br />
uma atitude permanente de recuo<br />
e de crítica em relação à visão de<br />
mundo e de homem implanta<strong>da</strong>s<br />
na pragmática de sua construção.<br />
Isso parece longe de ser o caso nas<br />
condições atuais. Aquilo que Cláudio<br />
Banzato descreve como “a aposta<br />
na biologia” – a convicção, sempre<br />
posterga<strong>da</strong>, de que um dia a genética<br />
psiquiátrica e as neurociências<br />
<strong>da</strong>rão as explicações completa,<br />
definitiva e exclusiva para to<strong>da</strong>s as<br />
condições psicopatológicas - fornece<br />
a justificativa de se sustentar<br />
um reducionismo explicativo, de<br />
cunho (futurístico) biológico, que<br />
transparece no imaginário social<br />
evocado pela difusão midiática<br />
<strong>da</strong>s novas categorias diagnósticas,<br />
com as quais opera a psiquiatria<br />
contemporânea.<br />
Esse reducionismo explicativo<br />
fornece substrato a uma desimpli-<br />
cação histórico-política e subjetiva<br />
do paciente em relação a seu<br />
sofrimento e a situar o discurso<br />
<strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des médicocientíficas<br />
como o único capaz de responder<br />
ao padecimento mental implicado<br />
em tais processos psicopatológicos.<br />
Confronta<strong>da</strong> a tais tensões e aos<br />
impasses advindos <strong>da</strong> aposta na<br />
“confiabili<strong>da</strong>de” dos diagnósticos,<br />
mas também ameaça<strong>da</strong> em sua<br />
sobrevivência enquanto prática clínica,<br />
a psiquiatria contemporânea,<br />
no limiar de novas revisões de seus<br />
dois principais Manuais de Diagnósticos<br />
Psiquiátricos - DSM e CID<br />
vêem-se interpela<strong>da</strong> a revalorizar<br />
as questões propriamente clínicas,<br />
culturais e subjetivas em sua práxis<br />
diagnóstica e na organização dos<br />
fatos relevantes para o estabelecimento<br />
de sua nosografia.<br />
É nesse contexto que surge, na<br />
cena atual, a proposta de introdução<br />
de formulações ideográficas na<br />
elaboração do diagnóstico psiquiátrico,<br />
proposta <strong>da</strong> qual o professor<br />
Juan Mezzich, diretor <strong>da</strong> Seção de<br />
Diagnóstico e Classificação <strong>da</strong> World<br />
Psychiatric Association e futuro<br />
presidente <strong>da</strong> WPA é um dos principais<br />
articuladores e responsáveis.<br />
Trata-se, como sugere o nome, de<br />
uma reformulação na estratégia e<br />
na ênfase do modelo diagnóstico,<br />
através <strong>da</strong> sistematização de uma<br />
abor<strong>da</strong>gem individualiza<strong>da</strong> do<br />
paciente, que se propõe a levar<br />
em conta o contexto subjetivo e<br />
biopsicossocial do qual emerge<br />
seu padecimento psicopatológico<br />
e a restabelecer a importância <strong>da</strong><br />
entrevista psiquiátrica aberta nesse<br />
processo.<br />
Uma proposta inicial, ain<strong>da</strong> não<br />
testa<strong>da</strong> clinicamente, foi publica<strong>da</strong><br />
no número de maio de 2003 do The<br />
British Journal of Psychiatry, sob o<br />
título de “Essentials of the World<br />
Formulações ideográ<br />
Mário Eduardo<br />
Psychiatric Associations’s International<br />
Guidelines for Diagnostic Assessement<br />
(IGDA) e traduzi<strong>da</strong> para<br />
o português pelo Departamento<br />
de Diagnóstico e Classificação em<br />
Psiquiatria <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira<br />
de Psiquiatria (tradução disponível<br />
no site <strong>da</strong>quela enti<strong>da</strong>de). Tratase,<br />
portanto, de um guia com diretrizes<br />
para o diagnóstico psiquiátrico<br />
elaborado pela WPA/OMS, que se<br />
propõe a articular a abor<strong>da</strong>gem<br />
nomotética, atualmente em uso nos<br />
modernos Manuais de diagnóstico,<br />
com uma perspectiva ideográfica,<br />
ou seja, personaliza<strong>da</strong>, <strong>da</strong> experiência<br />
psico patológica.<br />
O elemento do grego – idios, que<br />
remete ao que é próprio, especial,<br />
é aqui articulado a graphein – escrever.<br />
Busca-se, pois, uma forma<br />
de registro diagnóstico que possa<br />
<strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> dimensão singular de<br />
ca<strong>da</strong> paciente, tal como essa se dá<br />
a conhecer na entrevista psiquiátrica<br />
comum. O próprio IGDA, em<br />
seu capítulo dedicado à entrevista<br />
clínica, destaca a importância de<br />
o médico adotar uma postura de<br />
“escuta atenta e interessa<strong>da</strong>, respeitar<br />
os desejos e a digni<strong>da</strong>de do<br />
paciente, assim como facilitar sua<br />
participação na entrevista, procurando<br />
engajá-lo em uma conversa<br />
natural”.<br />
Enquanto proposta trata-se<br />
de uma profun<strong>da</strong> modificação<br />
em relação aos procedimentos<br />
diagnósticos até então em vigor,<br />
que encontravam sua justificativa<br />
precisamente na medi<strong>da</strong> em que<br />
podiam reduzir os fatos clínicos<br />
a categorias nosográficas gerais,<br />
previamente estabeleci<strong>da</strong>s, não<br />
deixando qualquer espaço para a<br />
toma<strong>da</strong> em consideração <strong>da</strong>quilo<br />
que pudesse singularizar um sujeito<br />
em relação a seu transtorno. A<br />
clínica, coloca<strong>da</strong> em eclipse pelos
ficas do diagnóstico<br />
Costa Pereira<br />
sistemas diagnósticos vigentes,<br />
reaparece aqui solicita<strong>da</strong> e valoriza<strong>da</strong>.<br />
Nesse sentido, o grande<br />
investimento de uma instituição<br />
psiquiátrica internacional do porte<br />
<strong>da</strong> WPA na elaboração do IGDA<br />
pode ser tomado como sintoma e<br />
como tentativa de resposta oficial<br />
aos impasses colocados pela ênfase<br />
quase exclusiva nos manuais diagnósticos<br />
e o conseqüente declínio<br />
<strong>da</strong> relevância <strong>da</strong> clínica psiquiátrica<br />
a que tal postura conduziu.<br />
O projeto IGDA constitui o resultado<br />
de uma déca<strong>da</strong> de trabalhos<br />
de uma força-tarefa cria<strong>da</strong> em<br />
1994 pela Seção de Classificação<br />
e Diagnóstico <strong>da</strong> WPA, composta<br />
por especialistas de várias nacionali<strong>da</strong>des<br />
“que representam várias<br />
correntes teóricas e sub-áreas <strong>da</strong><br />
psiquiatria”. Seu objetivo era o de<br />
estabelecer diretrizes gerais para<br />
o diagnóstico psiquiátrico a serem<br />
emprega<strong>da</strong>s em âmbito mundial,<br />
tendo como meta o estabelecimento<br />
de uma abor<strong>da</strong>gem sistemática,<br />
que associasse os avanços obtidos<br />
através dos métodos pragmáticos<br />
de diagnóstico, com uma atenção<br />
individualiza<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> paciente,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na entrevista clínica aberta<br />
que levasse em consideração as<br />
dimensões pessoais, culturais, familiares<br />
e contextuais implica<strong>da</strong>s no<br />
processo psicopatológico (observase<br />
que ao longo de todo o texto do<br />
IGDA é continuamente sublinha<strong>da</strong><br />
a necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer<br />
as nuances culturais relaciona<strong>da</strong>s<br />
ao processo do adoecer mental<br />
e às expectativas em relação ao<br />
tratamento).<br />
O IGDA opera referindose à<br />
seguinte definição de “Transtorno<br />
Mental”: “... [este] é concebido<br />
nestas diretrizes como um conjunto<br />
reconhecível de sintomas clínicos<br />
e comportamentos, associados na<br />
maioria dos casos com sofrimento,<br />
desarmonia psíquica e interferência<br />
no funcionamento a<strong>da</strong>ptativo e na<br />
participação social”. Não é o caso de<br />
realizarmos aqui o comentário de tal<br />
definição, bastandonos ressaltar<br />
que ela repousa implicitamente sobre<br />
uma certa concepção de sujeito,<br />
de linguagem e de valores sociais<br />
que estão longe de serem neutros<br />
ou assepticamente operacionais.<br />
Em particular, o fato de colocarem<br />
na mesma ordem de significância<br />
os elementos que dizem respeito<br />
aos interesses do sujeito e aqueles<br />
que se referem ao “funcionamento<br />
a<strong>da</strong>ptativo” no tecido social. Como,<br />
pois, pretender que um sistema de<br />
diagnósticos respon<strong>da</strong> simultaneamente<br />
a exigências tão díspares,<br />
senão contraditórias? Nisso o IGDA<br />
porta claramente as marcas de<br />
seu tempo: destituído de utopias,<br />
avesso aos radicalismos, ele tende<br />
a assimilar em pé de igual<strong>da</strong>de<br />
posições éticas e psicopatológicas<br />
inconciliáveis e visões do sofrimento<br />
humano irredutíveis, sem temer os<br />
impasses ou as contradições. Talvez<br />
pecando por um ecletismo acrítico<br />
e por um aplacamento de fortes<br />
tensões teóricas, o IGDA interpela<br />
os insatisfeitos a precisarem suas<br />
críticas e, sobretudo, a proporem<br />
melhores soluções para os problemas<br />
concretos a que ele tenta<br />
responder.<br />
O IGDA parte igualmente <strong>da</strong><br />
seguinte exigência fun<strong>da</strong>mental: “a<br />
avaliação do paciente psiquiátrico<br />
como um todo e não somente como<br />
um portador de doenças”. Dessa<br />
forma justificase a necessi<strong>da</strong>de<br />
de uma abor<strong>da</strong>gem diagnóstica<br />
abrangente que associe a avaliação<br />
padroniza<strong>da</strong> multiaxial com uma<br />
avaliação personaliza<strong>da</strong> ideográfica,<br />
tendo por pano de fundo a<br />
recomen<strong>da</strong>ção do uso de critérios<br />
diagnósticos culturalmente contextualizados.<br />
Já em sua “Introdução” é citado<br />
o filósofo e historiador <strong>da</strong> medicina<br />
Pedro Lain-Entralgo que argumenta<br />
que “o diagnóstico é mais do que<br />
apenas identificar uma doença<br />
(diagnóstico nosológico) e é mais<br />
do que distinguir uma doença de<br />
outra (diagnóstico diferencial); na<br />
ver<strong>da</strong>de, o diagnóstico consiste<br />
no entendimento amplo do que<br />
se passa na mente e no corpo <strong>da</strong><br />
pessoa que se apresenta aos cui<strong>da</strong>dos<br />
médicos. Esse entendimento<br />
deve ser considerado no contexto<br />
histórico e cultural de ca<strong>da</strong> paciente<br />
para ter sentido”.<br />
Essa mesma introdução deixa<br />
entender que a tarefa de se<br />
estabelecer bases confiáveis do<br />
diagnóstico estaria satisfatoriamente<br />
resolvi<strong>da</strong> no atual estado<br />
de desenvolvimento <strong>da</strong> nosografia<br />
psiquiátrica, colocando-se agora o<br />
desafio de se aumentar a vali<strong>da</strong>de<br />
dessas formulações, “levando-se<br />
em consideração símbolos e significados<br />
que sejam pertinentes à<br />
identi<strong>da</strong>de e às perspectivas dos<br />
pacientes”. Ou seja, tal proposta<br />
explicita uma sensibili<strong>da</strong>de à dimensão<br />
significante e subjetiva do<br />
adoecer mental, que examinaremos<br />
mais adiante.<br />
Em sua forma atual, o IGDA está<br />
constituído, além <strong>da</strong> “Introdução”,<br />
por dez capítulos nos quais são<br />
apresenta<strong>da</strong>s as diferentes diretrizes<br />
propostas para o diagnóstico<br />
psiquiátrico. Os aspectos contemplados<br />
são:<br />
1) Bases conceituais: perspectivas<br />
históricas, culturais e clínicas<br />
2) Entrevista clínica<br />
3) Uso de fontes adicionais de<br />
informação<br />
4) Avaliação dos sintomas e do<br />
estado mental<br />
5) Procedimentos complementares<br />
de avaliação relacionados a<br />
aspectos psicopatoló gicos, neuropsicológicos<br />
e físicos<br />
6) Procedimentos complementares<br />
de avaliação relacionados ao<br />
funcionamento, contexto social,<br />
cultura e quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong><br />
7) Formulação diagnóstica multiaxial<br />
padroniza<strong>da</strong><br />
8) Formulação diagnóstica ideográfica<br />
(personaliza<strong>da</strong>)<br />
9) Diagnóstico e plano de tratamento<br />
e<br />
10) Organização dos registros<br />
clínicos.<br />
São sugeridos ain<strong>da</strong> três modelos<br />
de formulários relacionados ao<br />
projeto de diagnóstico psiquiátrico<br />
ali explicitado:<br />
1) Formulário do diagnóstico<br />
multiaxial padronizado<br />
2) Formulário do diagnóstico<br />
ideográfico e<br />
3) Formulário do plano de tratamento.<br />
O elemento mais inovador do<br />
IGDA, em relação às tendências<br />
atuais do diagnóstico psiquiátrico,<br />
estão expressas no capítulo 8 sob<br />
o título de “Formulações ideográficas”.<br />
Estas se baseiam na entrevista<br />
com o paciente e, no nível de seu<br />
registro, devem ser expressas em<br />
um estilo narrativo e coloquial. A<br />
apresentação global dessa proposta<br />
é bastante sintética e vários elementos<br />
importantes encontram-se<br />
antes subentendidos do que teoricamente<br />
construídos. Reconhece-se,<br />
contudo, explicitamente a importância<br />
<strong>da</strong> perspectiva do paciente<br />
e <strong>da</strong> dimensão não-dedutiva do<br />
encontro clínico. Significantes como<br />
“intuição clínica”, “arte” médica e<br />
“contextualização” dos sintomas<br />
encontram-se claramente inscritos<br />
no texto.<br />
A ênfase na dimensão ideográfica<br />
PÁGINA 15
do diagnóstico, ou seja, a busca de<br />
seu caráter personalizado, repousa<br />
segundo o IGDA na identificação<br />
dos problemas clínicos e na sua<br />
contextualização. Recomen<strong>da</strong>-se,<br />
igualmente, aquilo que se considera<br />
como “aspectos positivos do<br />
paciente”, ou seja, “pertinentes ao<br />
tratamento <strong>da</strong> condição clínica e<br />
promoção <strong>da</strong> saúde: maturi<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, habili<strong>da</strong>des, talentos,<br />
recursos sociais, apoios e<br />
afirmações pessoais e espirituais”.<br />
Também aqui parece transparecer<br />
a ênfase na chama<strong>da</strong> “condição<br />
clínica”, implicitamente considera<strong>da</strong><br />
como “doentia” uma vez que os aspectos<br />
positivos do paciente assim<br />
o são considerados em relação a<br />
suas capaci<strong>da</strong>des de promoverem<br />
a “saúde”. Na mesma perspectiva<br />
pode ser considera<strong>da</strong> a referência<br />
aos “talentos” e “habili<strong>da</strong>des” do<br />
paciente, termos que claramente<br />
comportam elementos valorativos<br />
imersos em ideais sociais.<br />
O IGDA tem ain<strong>da</strong> assim a virtude<br />
de relembrar a todos a natureza<br />
clínica <strong>da</strong> prática psiquiátrica, com<br />
to<strong>da</strong>s suas vicissitudes, impasses e<br />
desafios. A clínica psiquiátrica constitui<br />
um campo complexo – assim<br />
como o de to<strong>da</strong> a medicina - no<br />
qual se entrecruzam abor<strong>da</strong>gens<br />
de naturezas técnicocientíficas<br />
muito diversas. Ela representa um<br />
espaço culturalmente estruturado,<br />
capaz de acolher as expressões de<br />
um sujeito com seus conflitos, seus<br />
desejos, suas angústias, em suas<br />
relações com seu próprio corpo, com<br />
sua sexuali<strong>da</strong>de, com seus ideais<br />
e com o outro. A ela é igualmente<br />
delegado o cui<strong>da</strong>do com as chama<strong>da</strong>s<br />
situações-limite e <strong>da</strong>s crises<br />
freqüentemente devastadoras por<br />
elas engendra<strong>da</strong>s – momentos de<br />
ver<strong>da</strong>deiros abalos nas formas<br />
habituais de instalação do sujeito<br />
no mundo e no tempo, que colocam<br />
em questão os fun<strong>da</strong>mentos<br />
de sua existência. Seu potencial<br />
transformador ou a tendência à<br />
re-acoma<strong>da</strong>ção nas velhas formas<br />
de organização subjetiva serão<br />
em muito decididos em função do<br />
PÁGINA 16<br />
tipo de escuta e de acolhi<strong>da</strong> que<br />
forem <strong>da</strong><strong>da</strong>s ao paciente naquele<br />
momento crucial. Dessa forma,<br />
a re-instalação de um reconhecimento<br />
à importância <strong>da</strong> clínica<br />
psiquiátrica e a abertura à escuta<br />
<strong>da</strong> palavra espontânea do paciente<br />
nesse contexto corresponde a um<br />
ato potencialmente revolucionário<br />
de exposição de to<strong>da</strong>s as partes<br />
implica<strong>da</strong>s nessa situação médica<br />
ao real do pathos humano. Nessa<br />
situação, o dispositivo protetor<br />
constituído pelo saber médicopsiquiátrico<br />
mostra-se muitas vezes<br />
impotente para abafar tal contato,<br />
permitindo assim a instalação de<br />
efeitos que podem ser benéficos<br />
para o paciente, para o psiquiatra<br />
e para a própria psiquiatria, em<br />
termos <strong>da</strong> manutenção de sua vitali<strong>da</strong>de<br />
clínica.<br />
O acolhimento <strong>da</strong> dimensão propriamente<br />
subjetiva <strong>da</strong> experiência<br />
psicopatológica é, portanto, possibilitado<br />
pela escuta <strong>da</strong> narrativa<br />
livremente produzi<strong>da</strong> pelo paciente,<br />
atitude essa capaz de colocar em<br />
marcha os efeitos potencialmente<br />
disruptivos e/ou ela borativos desse<br />
ato de palavra oriun<strong>da</strong> do sofrimento<br />
vivo e dirigi<strong>da</strong> a um outro. É bem<br />
ver<strong>da</strong>de que, por vezes no IGDA,<br />
a ênfase <strong>da</strong> entrevista psiquiátrica<br />
recai na sua dimensão de “coleta<br />
de <strong>da</strong>dos”, reconduzindo assim o<br />
encontro clínico ao âmbito do contato<br />
de um paciente supostamente<br />
ignorante <strong>da</strong>s determinações do<br />
próprio padecimento, com uma<br />
autori<strong>da</strong>de científica, garanti<strong>da</strong> na<br />
figura do médico. Em outros momentos,<br />
porém, o processo escuta e<br />
de entrevista é descrito nos termos<br />
de uma douta ignorância, capaz de<br />
acolher o singular e o inusitado,<br />
sendo esta expressa por como significantes<br />
“arte”, “empatia”, “busca<br />
de contato”.<br />
Evidentemente estamos longe<br />
<strong>da</strong>s grandes problematizações teóricas<br />
sobre a estrutura do encontro<br />
psiquiatra – paciente, tais como<br />
emergiam nas obras de Freud,<br />
Binswanger ou Minkowski. Contudo,<br />
a abertura a tais questões permane-<br />
ce e a própria criação do IGDA e sua<br />
ênfase nos aspectos ideográficos<br />
e na estrutura narrativa dessa dimensão<br />
do diagnóstico psiquiátrico<br />
são um reconhecimento do caráter<br />
irredutível do sofrimento humano<br />
exclusivamente a um jogo de linguagem<br />
próprio às ciências naturais<br />
e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se garantir<br />
um espaço à palavra <strong>da</strong>quele que<br />
sofre, espaço esse capaz de deixar<br />
emergir o que não seria dedutível,<br />
nem previsível <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de de<br />
tal pessoa.<br />
Evidencia<strong>da</strong> tal clivagem entre<br />
physis e linguagem, constitutiva do<br />
campo psiquiátrico, cabe aos psicanalistas<br />
e demais psicopató logos se<br />
manifestarem sobre as potenciali<strong>da</strong>des<br />
e riscos dessa nova maneira<br />
de conceber o campo psiquiátrico<br />
que, em última instância, consiste<br />
em reconhecer as capaci<strong>da</strong>des revitalizadoras<br />
<strong>da</strong> velha e incerta clínica<br />
e <strong>da</strong> escuta dedica<strong>da</strong> ao paciente.<br />
Percebe-se, assim, que no contexto<br />
do IGDA algumas reflexões<br />
fun<strong>da</strong>mentais para a compreensão<br />
teórica e psicopatológica <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de<br />
do paciente e <strong>da</strong> natureza<br />
do encontro clínico não são conduzi<strong>da</strong>s<br />
a seus extremos, parecendo<br />
antes que se por um lado o valor <strong>da</strong><br />
escuta do paciente é reconhecido,<br />
por outro aquilo que emerge desse<br />
ato de palavra corre o risco de ser<br />
utilizado apenas como álibi para<br />
legitimar uma prática que separa o<br />
sujeito e seu sintoma, que sustenta<br />
ideais sociais de a<strong>da</strong>ptação e de reabilitação<br />
e que não compreende, de<br />
fato, o impacto do encontro clínico<br />
e <strong>da</strong> palavra sobre os destinos subjetivos<br />
de seu padecimento mental.<br />
Essa distância entre as aberturas<br />
que tal proposta pode introduzir na<br />
clínica psiquiátrica contemporânea<br />
e sua efetivação concreta no plano<br />
ético e prático permanece como<br />
um desafio a ser elaborado tanto<br />
teórico, quanto praticamente.<br />
Pode-se dizer, para concluir, que<br />
a recente chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> proposta de<br />
uma abor<strong>da</strong>gem diagnóstica em<br />
psiquiatria que leva explicitamente<br />
em conta a palavra e a dimensão<br />
simbólica singular de ca<strong>da</strong> indivíduo<br />
pode representar um grande<br />
avanço em relação a uma clínica<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> exclusivamente no diagnóstico<br />
formal e generalizante, tal<br />
como pratica<strong>da</strong> nos últimos anos.<br />
Contudo, a condição para que<br />
esse objetivo não seja letra morta<br />
ou mera propagan<strong>da</strong> vazia é a de<br />
que a palavra do paciente e as circunstâncias<br />
de escuta por parte do<br />
médico possam efetivamente ser<br />
teorizados e aplicados de forma a<br />
permitir a expressão singular de um<br />
sujeito, de seu sofrimento e de suas<br />
formas de li<strong>da</strong>r com seus impasses<br />
e conflitos, com conseqüências dialéticas<br />
concretas sobre ele próprio<br />
e sobre o cui<strong>da</strong>do médico que lhe<br />
é dedicado.<br />
Sem isso, a nova situação corre o<br />
risco de ser ain<strong>da</strong> mais grave e perniciosa<br />
do que a precedente, uma<br />
vez que travestiria de humanismo<br />
e de escuta do outro, aquilo que,<br />
em última instância, não passaria<br />
de uma justificativa aos olhos do<br />
paciente e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para uma<br />
prática arbitrária de reduzir o sofrimento<br />
humano a um dispositivo<br />
político de controle e de poder –<br />
como bem adverte Foucault, que<br />
paralisa o sujeito em uma posição<br />
de objeto definido pelo Outro, seja<br />
este Outro, um senhor prestigioso<br />
autorizado pela ciência.<br />
É assim, que em nossos dias, o<br />
discurso psiquiátrico assume junto<br />
à cultura o poder de organizador de<br />
nossas formas de conceber nossas<br />
próprias paixões e sofrimentos. A<br />
discussão dos substratos éticos<br />
e filosóficos <strong>da</strong>s classificações <strong>da</strong><br />
Psiquiatria assume um caráter<br />
fun<strong>da</strong>mental e a Psicopatologia,<br />
longe de ter-se tornado uma língua<br />
morta, deve ser retoma<strong>da</strong> nesses<br />
debates com urgência e em to<strong>da</strong><br />
sua radicali<strong>da</strong>de.<br />
Psicanalista, Psiquiatra. Professor do Departamento<br />
de Psicologia Médica e Psiquiatria <strong>da</strong><br />
UNIC<strong>AMP</strong>. Diretor do Laboratório de Psicopatologia<br />
Fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> UNIC<strong>AMP</strong>. Professor do<br />
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes<br />
Sapientiae de São Paulo.
Psiquiatrias: de onde viemos, quem somos<br />
e para que uma associação?<br />
Não tem como falar sobre a<br />
história <strong>da</strong> Psiquiatria sem injustiça,<br />
privilegiando um momento,<br />
ou um autor e esquecendo outros<br />
tantos. Somos filhos de nosso<br />
tempo e de nossa perspectiva<br />
para olhar o mundo.<br />
Foi muito grande a evolução<br />
<strong>da</strong> Psiquiatria nos séculos XIX e<br />
XX. Com os recursos para diagnóstico<br />
por imagem que existem<br />
atualmente, se torna desejável<br />
que também façamos um registro<br />
do interior de nós mesmos e<br />
de nossa prática.<br />
No cenário atual, vemos médicos<br />
que atendem pacientes<br />
psiquiátricos com condutas que<br />
nos remetem a uma viagem no<br />
tempo: existem os repetidores<br />
de mantras institucionais<br />
paralisantes que permanecem<br />
imersos em sombrias cavernas<br />
anacrônicas, com conceitos e<br />
terapêuticas sem qualquer respeitabili<strong>da</strong>de<br />
científica, voltando<br />
a um saber de posição marginal<br />
em relação à medicina.<br />
Em sua infância, a Psiquiatria<br />
manifestou-se pelo cui<strong>da</strong>do em<br />
humanizar o tratamento, com os<br />
trabalhos e práticas de Philippe<br />
Pinel (17451826). Os achados<br />
de substratos orgânicos em<br />
muitas doenças mentais, tendo<br />
a Paralisia Geral Progressiva<br />
como para digma, introduziram<br />
a Psiquiatria no campo <strong>da</strong>s disciplinas<br />
médicas.<br />
Na adolescência, como uma<br />
colecionadora, iniciou a organização<br />
nosológica com Kraepelin,<br />
a fenomenologia de Jaspers e a<br />
formulação do inconsciente com<br />
Freud, em 1900. Rebelde, a corrente<br />
Antipsiquiatria, na déca<strong>da</strong><br />
de 1960 valeu pela irreverência,<br />
resultando na popularização do<br />
tema com a ven<strong>da</strong>gem de livros<br />
verborrágicos: na Inglaterra,<br />
Ronald D. Laing, com a obra “O<br />
eu dividido” (1960), e David G.<br />
Cooper, autor de “Psiquiatría<br />
Luís Carlos Calil<br />
e antipsiquiatria” (1967) e “A<br />
morte <strong>da</strong> familia” (1971). Questionando<br />
e culpando a família e<br />
o Estado, que estariam, segundo<br />
os autores, convertendo a enfermi<strong>da</strong>de<br />
mental em um mito,<br />
sendo os psiquiatras, instrumentos<br />
do poder opressor.<br />
Nasce “O eu dividido” dentro<br />
de alguns psiquiatras, que não<br />
encontram uma identi<strong>da</strong>de clara,<br />
ora não são ninguém, ora querem<br />
ser todos. Os psiquiatras<br />
pré-genitais, que não atingiram<br />
a fase, na qual meninos e meninas<br />
percebem suas diferenças<br />
e se assustam por não serem<br />
totipotentes. Psiquiatras não<br />
são neurologistas, não são psicólogos,<br />
quando têm clara sua<br />
identi<strong>da</strong>de, são somente Psiquiatras.<br />
Que bom ser diferente<br />
e no encontro poder se completar.<br />
A Antipsiquiatria, como todo<br />
movimento <strong>da</strong> contracultura, foi<br />
efêmera.<br />
A derruba<strong>da</strong> literal de hospitais<br />
psiquiátricos, por Basaglia,<br />
além de gerar empregos na<br />
área de construção civil, que os<br />
reconstruiu, ajudou a relembrar<br />
as lições de Pinel que quase dois<br />
séculos antes, alertara na direção<br />
de um tratamento humanístico<br />
nos hospitais psiquiátricos.<br />
Impulsionado pelo mapeamen<br />
to genético, a identificação<br />
de mais gens relacionados aos<br />
transtornos mentais, em breve,<br />
deve trazer avanços comparáveis<br />
ao <strong>da</strong> Clorpromazina, na<br />
déca<strong>da</strong> de 1950.<br />
Saindo <strong>da</strong> caverna, olhando<br />
para além <strong>da</strong>s sombras, neste<br />
início de século XXI, a Psiquiatria,<br />
sabendo de sua identi<strong>da</strong>de,<br />
pode atingir a i<strong>da</strong>de adulta e<br />
maturi<strong>da</strong>de. Fazendo revisão<br />
crítica em sua história, rejeitando<br />
concepções mágicas e<br />
místicas, o discurso panfletário,<br />
a pseudologia fantástica, pode<br />
assimilar o que produziu de me-<br />
lhor e concentrar-se na busca<br />
<strong>da</strong> superação de suas deficiências.<br />
Retomar um caminho que<br />
nunca deveria ter abandonado,<br />
um modelo claramente médico<br />
para tratamento e pesquisas em<br />
Psiquiatria.<br />
Dado este panorama <strong>da</strong><br />
Psiquiatria, um dos papéis associativos<br />
mais relevantes, no<br />
momento, será o de manter a<br />
identi<strong>da</strong>de do médico psiquiatra,<br />
estar próxima a residentes de<br />
Psiquiatria, psiquiatras e pesquisadores<br />
<strong>da</strong> área, para levar<br />
aos seus associados o que há de<br />
melhor em suas áreas de conhecimento.<br />
É um papel educativo<br />
que se refletirá em um corpo<br />
profissional e de assistência<br />
qualifica<strong>da</strong> ao paciente.<br />
Está em vias de se concretizar<br />
a norma <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Médica<br />
Brasileira, em que o Título de<br />
Especialista deverá ser revali<strong>da</strong>do<br />
a ca<strong>da</strong> cinco anos. Uma<br />
iniciativa que pode ser vista<br />
com pouca simpatia por alguns,<br />
que se verão obrigados a viajar<br />
no tempo, saindo <strong>da</strong> bruxaria<br />
medieval para os dias atuais,<br />
se quiserem ter a denominação<br />
de Especialistas em Psiquiatria.<br />
Com os meios eletrônicos<br />
disponíveis, a educação continua<strong>da</strong><br />
médico-psiquiátrica deve<br />
ser permanente, ir além dos<br />
Congressos, que são o encontro<br />
maior dos especialistas.<br />
Atualizar conhecimentos que<br />
subsidiem habili<strong>da</strong>des. Sendo<br />
representante de especialistas,<br />
assegurar que estes mantenham<br />
vivo o cui<strong>da</strong>do com a profissão.<br />
Sabendo que somos, poderemos<br />
saber para onde queremos<br />
ir, neste percurso, nossa associação<br />
pode ser de grande aju<strong>da</strong>.<br />
Psiquiatra pela AMB-ABP. Professor de Psiquiatria<br />
<strong>da</strong> FMTM. Membro <strong>da</strong> Comissão de Revali<strong>da</strong>ção de<br />
TE e <strong>da</strong> Comissão de Residência Médica <strong>da</strong> ABP.<br />
PÁGINA 17
O que escrever para O Risco, importante<br />
informativo <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />
<strong>Mineira</strong> de Psiquiatria, sobre o tema<br />
do próximo Congresso Brasileiro de<br />
Psiquiatria, em Belo Horizonte, no<br />
próximo ano, congresso nacional,<br />
a ca<strong>da</strong> vez, consegue agregar mais<br />
pessoas, sob a égide <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />
Brasileira de Psiquiatria. Na<strong>da</strong> mais<br />
oportuno que este tema, Diretrizes<br />
em Psiquiatria.<br />
Podemos aproveitá-lo para fazer<br />
uma declaração de princípios.<br />
Quando está tudo muito moderno,<br />
pode parecer que estou<br />
velho. Nem tanto! São apenas<br />
duas déca<strong>da</strong>s de prática cotidiana<br />
de psiquiatria clínica, de ensino e<br />
de psicanálise. Quero dizer, com<br />
Zizek, em seus últimos artigos,<br />
no Caderno “Mais” <strong>da</strong> Folha de<br />
São Paulo, que não existem várias<br />
éticas. Um comitê de ética para<br />
ca<strong>da</strong> profissão. Só uma para a<br />
humani<strong>da</strong>de.<br />
O que nos dirige deve ser a<br />
opção radical pelo sujeito levado<br />
às ultimas conseqüências de seu<br />
Desejo, de sua Singulari<strong>da</strong>de e de<br />
sua Contingência na Cultura. Obra<br />
aberta – em construção, surpreendente<br />
esse tal sujeito. Não se<br />
resume a classificação nem a regras<br />
de conduta nem a burocracia<br />
mortificante, esse tal sujeito.<br />
Não existem psiquiatrias adjetiva<br />
<strong>da</strong>s. Uma só já basta para uma<br />
práxis tão complexa quanto diversa,<br />
apoia<strong>da</strong> nas ciências e na linguagem.<br />
Hoje, mais que nunca, construções<br />
inacaba<strong>da</strong>s, sujeitas a reformas,<br />
marchas e contramar chas, e nossa<br />
constante vigilância ética.<br />
Não podemos admitir o psiquiatra<br />
independente de escola,<br />
de comunicação com os colegas<br />
pares e ímpares, com os colegas<br />
de disciplinas afins e de outros<br />
campos do Saber.<br />
PÁGINA 18<br />
Gente não é bem de consumo<br />
Como não se estarrecer vendo<br />
os colegas “correndo atrás do prejuízo”,<br />
atendendo rapi<strong>da</strong>mente as<br />
pessoas? Não podemos suportar<br />
ficar sem a antiga troca de idéias<br />
sobre os casos, as situações limite<br />
e os inclassificáveis. Não prescin<strong>da</strong>mos<br />
do coleguismo companheiro e<br />
corajoso que não teme a conversa<br />
franca e respeitosa, sem meias<br />
palavras e conchavos.<br />
Horrorizamos-nos com o que<br />
fizeram do manual de classificação<br />
internacional de doenças. Ele se diz<br />
ateórico, apolítico e neutro. Nós e<br />
nossos pacientes somos teóricos<br />
políticos (forjamos conceitos há<br />
séculos) mesmo quando abstêmios<br />
<strong>da</strong> política partidária e fazemos<br />
escolhas na clínica em todos os<br />
nossos atos, desde o mais simples<br />
gesto até o mais complexo exame.<br />
A Medicina, <strong>da</strong> qual a Psiquiatria<br />
é <strong>da</strong>s últimas filhas, é profissão antiqüíssima<br />
e, desde seus pri mór dios<br />
até à época <strong>da</strong> virtuali<strong>da</strong>de, exige<br />
nossa presença viva, nosso corpo e<br />
nossa palavra gasta até às letras.<br />
Voltemos a perguntar ao paciente<br />
se o remédio está bom. A<br />
prescrever segundo preceitos ortodoxos,<br />
respeitando priori<strong>da</strong>des,<br />
al go ritmos, <strong>da</strong> clínica médica, <strong>da</strong><br />
psiquiatria e, dentro do possível,<br />
obedecendo ao diálogo com as<br />
outras especiali<strong>da</strong>des médicas.<br />
Saibamos indicar os colegas e sugerir<br />
inter consultas. Busquemos<br />
supervisões com os sábios.<br />
Procuremos saber se o paciente<br />
está à vontade conosco, se o ambiente<br />
de tratamento está o mais<br />
confortável possível. Não estou<br />
aludindo a luxo.<br />
Tenhamos compaixão pelo sofrimento<br />
humano.<br />
Não esqueçamos deste pobre ser<br />
que mata, destrói e sente prazer nisso,<br />
sem que nos impliquemos também.<br />
Francisco José dos Reis Goyatá<br />
Em que participamos dos terrorismos:<br />
oficiais ou extraoficiais?<br />
De Estado ou de grupelhos? Devemos<br />
arregaçar mangas e tornar<br />
nossa profissão uma prática de<br />
cultura, liber<strong>da</strong>de e participação.<br />
Com nossos colegas de outras<br />
profissões que são sérios como<br />
nós, estu<strong>da</strong>m como nós e sabem<br />
como nós. Sem a tábula rasa que<br />
indica o marco a partir do qual um<br />
sabe mais do que outro. A nossa<br />
ignorância ain<strong>da</strong> é bem maior...<br />
então não faltará o que aprender.<br />
Devemos apoiar a organização<br />
de nossos pacientes, apoiar o laço<br />
social que possam fazer, desatrelados<br />
de qualquer saber prévio<br />
ou manual de instrução, colaborando<br />
e não induzindo. A eles os<br />
direitos, os deveres compartilhados<br />
e a amizade leal do trabalho.<br />
Uma boa dose de não-saber<br />
ativo não faz mal a ninguém neste<br />
mundo que já se atolou nas<br />
glórias do saber levado às últimas<br />
conseqüências, principalmente na<br />
medicina nazista.<br />
Sigamos os princípios médicos<br />
mais fun<strong>da</strong>mentais.<br />
Saúde não é negócio; segurosaúde<br />
não é seguro de carro. Gente<br />
não é bem de consumo.<br />
Cuidemos para que nossos patrocinadores<br />
nos auxiliem em nossas<br />
jorna<strong>da</strong>s e não o inverso: patrocinem<br />
nossos corações e mentes.<br />
Arejemos nossas relações; a<br />
festa faz parte de nossa vi<strong>da</strong>, congresso<br />
é para rever velhos amigos<br />
e amigas deste e de outros estados,<br />
deste país continental e do<br />
mundo. Nossos hermanos latinoamericanos,<br />
africanos e tantos...<br />
Digamos não à promessa do<br />
kinder ovo: ca<strong>da</strong> vazio, uma surpresinha.<br />
Há momentos na nossa<br />
clínica que são de vazio mesmo,<br />
falta de solução em curto prazo e<br />
sofrimento. Quando não a inominável<br />
morte. Autorizemo-nos a<br />
chorar junto aos familiares e amigos.<br />
Sejamos amigos do colega que<br />
passa por dificul<strong>da</strong>de. Voltemos à<br />
Psiquiatria clássica, ao conceito,<br />
ao pensamento psiquiátrico, como<br />
no balé contemporâneo se aprende<br />
o clássico, para ousar com novas<br />
coreografias corporais.<br />
Avancemos nas pesquisas e<br />
queiramos tocar o desconhecido,<br />
mas evitemos o vanguardismo<br />
experi men talista, que não conta a<br />
conta do incontável que é uma vi<strong>da</strong><br />
humana, segundo Alain Badiou.<br />
Lutemos por dispositivos de<br />
tratamento abertos, onde bate o<br />
sol e entra ar, que respeitem ao<br />
máximo o corpo do outro com suas<br />
marcas e histórias. Não podemos<br />
nos render ao experimentalismo<br />
fútil, empirista e pragmatista de<br />
intervir diretamente em neurônios<br />
e genes. Sobretudo evitemos o erro<br />
eu genista, hitlerista e stalinista, a<br />
massa igualitária e higiênica.<br />
Leiamos os consensos científicos<br />
aplicando-os no caso a caso.<br />
Apoiemos as universi<strong>da</strong>des públicas<br />
de quali<strong>da</strong>de.<br />
Valorizemos a praça e a nossa<br />
velha roça onde repousamos <strong>da</strong><br />
civilização. Nossos direitos de lazer<br />
e de repouso, de sonho e de paixão.<br />
Amemos a poesia e tentemos a<br />
tolerância religiosa.<br />
Tentemos ir além <strong>da</strong> utopia, ao<br />
impossível.<br />
Apostemos que, além de nós e<br />
do esforço que fizermos, a força <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> palavra humana vencerá.<br />
Mestrando em Psicologia pela UFME, Membro <strong>da</strong><br />
Diretoria <strong>da</strong> <strong>AMP</strong>
Diretriz é o conjunto de instruções<br />
ou indicações para se traçar e<br />
levar a termo um plano, uma ação,<br />
é uma norma de procedimentos.<br />
Psiquiatria é a parte <strong>da</strong> medicina<br />
especializa<strong>da</strong> no estudo e no tratamento<br />
<strong>da</strong>s doenças mentais;<br />
estu<strong>da</strong>m-se, investigam-se sintomas,<br />
síndromes, doenças e seus<br />
tratamentos em to<strong>da</strong>s as áreas do<br />
saber pertinentes.<br />
A tarefa <strong>da</strong> psiquiatria tem sido<br />
hercúlea, <strong>da</strong><strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de de<br />
seu campo de ação. A psiquiatria<br />
vem seguindo seu rumo através de<br />
águas revoltas e com ingerências<br />
de to<strong>da</strong> sorte, como as ideológicas,<br />
econômicas e políticas, internas e<br />
externas. Mas os pacientes estão<br />
aí, não há como negar o padecimento,<br />
a doença. E não há como<br />
lhes negar atenção <strong>da</strong> forma mais<br />
apropria<strong>da</strong>, conforme as diretrizes<br />
clínicocientíficas vigentes. É a<br />
tarefa <strong>da</strong> psiquiatria.<br />
Buscamos ca<strong>da</strong> vez mais insistentemente<br />
conhecimentos que<br />
nos iluminem em nossa tarefa. É<br />
impressionante o número de trabalhos<br />
científicos e a divulgação<br />
de textos em geral em psiquiatria.<br />
Já há especialistas em investigar<br />
investigações! As repercussões na<br />
mídia são até massacrantes. Os<br />
avanços são notáveis em to<strong>da</strong>s as<br />
direções, mas, claro, ninguém mais<br />
do que nós, psiquiatras, sabemos<br />
<strong>da</strong> incompletude e infinitude de<br />
nossa tarefa. Li<strong>da</strong>mos com a vi<strong>da</strong>,<br />
e com o que há de mais nobre e<br />
vivo na vi<strong>da</strong>.<br />
Feliz infinitude! Imaginem a<br />
cena: “Doutor, respondi to<strong>da</strong>s<br />
as questões do questionário e fiz<br />
aqueles exames. Está aqui, deu<br />
esquizofrenia D3SHT6XY.” “Ótimo”,<br />
diz o médico, “agora basta<br />
Uma tarefa hercúlea<br />
empregar a técnica de McJacobsohn<br />
associa<strong>da</strong> a uma intervenção<br />
combina<strong>da</strong> com raios neuroendoreguladores<br />
anti D3SHT6XY. Tome,<br />
faça isso que acor<strong>da</strong>rá amanhã<br />
muito bem!” É claro que nesse<br />
admirável mundo novo não haverá<br />
mais psiquiatras, para quê haveria?<br />
Mas não é só por interesses corporativistas<br />
que a infinitude é boa.<br />
Que mundo seria aquele? Ain<strong>da</strong><br />
acredito em Jaspers, quando diz:<br />
“Mas o conceito de enfermi<strong>da</strong>de<br />
psíquica adquire no homem uma<br />
dimensão completamente nova.<br />
No ser humano a sua incompletude,<br />
a sua abertura, a sua liber<strong>da</strong>de<br />
e as suas ilimita<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />
são o fun<strong>da</strong>mento mesmo do seu<br />
estar adoentado.” Quando tudo se<br />
limitar a um “D3SH <strong>da</strong>s quantas”,<br />
onde terão lugar a liber<strong>da</strong>de e as<br />
ilimita<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des? Será a<br />
extinção do humano? Um mundo<br />
insosso.<br />
É complicado mesmo. E não<br />
acho que Freud explique. Não<br />
tem explicação, foge ao nosso<br />
alcance. Por que deveríamos ter<br />
explicação para tudo? Só em nossa<br />
imaginação fantasiosa, em nosso<br />
narcisismo.<br />
Certo, li<strong>da</strong>mos com o incomensurável.<br />
Mas há muito que fazer no<br />
âmbito de nossa tarefa. É o que,<br />
de imediato, interessa, estamos<br />
sintonizados nisso. Buscamos<br />
mesmo uma evidência científica<br />
arrasadora. Às vezes conseguimos<br />
– vencemos! – ou chegamos<br />
perto. É uma luta. Como dito, os<br />
avanços têm sido notáveis nesse<br />
sentido. Seria uma idéia em sentido<br />
kantiano, como diria Jaspers,<br />
um ponto futuro infinitamente<br />
distante, mas que nos indica frutífero<br />
e ver<strong>da</strong>deiro caminho de<br />
Maurício Viotti Daker<br />
investigação. Os resultados estão<br />
aí. Às vezes fazemos ver<strong>da</strong>deiros<br />
milagres em nossa clínica, mesmo<br />
que, quase sempre, não saibamos<br />
exatamente como aconteceram.<br />
Vamos no rumo, quando possível<br />
de forma mais precisa, com evidências,<br />
mas muitas vezes “pegando<br />
o boi pelo chifre”, ca<strong>da</strong> caso, um<br />
caso. Ciência, vivência, intuição,<br />
empatia, simpatia... Entra tudo.<br />
Diretrizes em psiquiatria: não<br />
resolverá tudo, mas, quanto mais,<br />
melhor. E claro, de quali<strong>da</strong>de, bem<br />
estabeleci<strong>da</strong>s! Implica reducionismo,<br />
não é possível “abraçar o<br />
mundo”. Atrevo-me a dizer que<br />
nunca, nunca mesmo, por princípio,<br />
tornaremos tudo em nossa<br />
área verificável. Mas quanto mais<br />
verificável e replicável, melhor, não<br />
resta dúvi<strong>da</strong>. Tudo isso suscita uma<br />
questão: e o que não é verificável<br />
e replicável? Que fazer com isto?<br />
O que não é evidente não está<br />
em evidência! Aquelas teorias<br />
fenomenológico-antropológicas,<br />
aqueles aprofun<strong>da</strong>mentos sintomatológicos<br />
psicopatológi cos,<br />
mesmo muito <strong>da</strong>s explicações<br />
freudianas, não os vejo mais em<br />
nossas produções especiali za<strong>da</strong>s<br />
psiquiátricas. O mundo acelerado<br />
de hoje não tem mais tempo para<br />
essas “divagações”? Divagação<br />
seria mesmo o contraposto de<br />
diretriz. Precisamos estar assim<br />
tão sintonizados no objetivável?<br />
E o resultado terapêutico, que<br />
interessa, no fim <strong>da</strong>s contas será<br />
melhor de um jeito, ou de outro?<br />
O subjetivo não é tão essencial em<br />
nossa prática?<br />
É complicado mesmo. Lembranos<br />
discussões seculares sobre a<br />
clínica e a pesquisa, sobre o humanismo<br />
e a ciência. Quem faz ciência<br />
“emburrece” para a clínica, quem<br />
clinica não vê sentido em tanta<br />
pesquisa “inútil” e nessa “bobice”<br />
de evidência pra tudo. É claro que,<br />
guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s proporções e<br />
em que pese um fundo de ver<strong>da</strong>de,<br />
tudo isso é contornável. De na<strong>da</strong><br />
adianta uma coisa sem a outra.<br />
O fato, certamente, é que ninguém<br />
é capaz de tudo. Por isso<br />
somos uma socie<strong>da</strong>de (e temos<br />
uma associação). Tem soado mais<br />
elegante ser acadêmico e cientista.<br />
Seria uma forma de competente<br />
dedicação, até de sacrifício, em<br />
prol <strong>da</strong> maioria? Donde a boa receptivi<strong>da</strong>de?<br />
Os estabelecedores<br />
de diretrizes. Quando assim o<br />
são e não estereótipo em função<br />
de benefício próprio, na<strong>da</strong> mais<br />
meritório.<br />
Diretrizes, consensos... Não nos<br />
esqueçamos também: há que os<br />
a<strong>da</strong>ptar a nossas reali<strong>da</strong>des socioculturais<br />
e econômicas ou criá-los<br />
de acordo com elas, um belo papel<br />
para a nação psiquiátrica.<br />
Em conjunto, seguimos nosso<br />
rumo. Minas é palco propício tanto<br />
para diretrizes, para ciência e<br />
eficiência, como para divagações<br />
críticas numa boa conversa confidente.<br />
Vamos galgar montanhas,<br />
no topo de ca<strong>da</strong> uma delas uma<br />
vitória e a constatação de que no<br />
caminho há outras tantas, até<br />
de pedra, pedra no caminho. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, são muitas as diretrizes<br />
possíveis, amplas em psiquiatria.<br />
Com os estimados colegas vamos<br />
passá-las a limpo!<br />
Prof. Adjunto Doutor do Departamento de Saúde<br />
Mental <strong>da</strong> FM-UFMG<br />
Presidente <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Acadêmica Psiquiátrica<br />
de Minas Gerais – AAPMG<br />
PÁGINA 19
PÁGINA 20<br />
A psiquiatria no<br />
sistema de saúde nacional<br />
Márcio Pinheiro<br />
Graças ao empenho dos nossos dirigentes,<br />
iremos sediar no próximo ano o<br />
Congresso <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de<br />
Psiquiatria. Que oportuni<strong>da</strong>de rara de um<br />
congraçamento não apenas entre nós psiquiatras<br />
mineiros, mas também com todos<br />
colegas do Brasil. O tema é provocativo e<br />
certamente irá gerar muitos trabalhos que<br />
irão tratar <strong>da</strong> evolução de nossa profissão na<br />
medi<strong>da</strong> que novos <strong>da</strong>dos e evidências nos<br />
levam a modificar para melhor o exercício<br />
de nossa profissão. A pergunta maior será<br />
essa: para onde estará indo a psiquiatria<br />
no Brasil?<br />
Podemos levar essa pergunta para várias<br />
áreas de nossas ativi<strong>da</strong>des, começando<br />
pelo aspecto mais amplo: o de como a<br />
Psiquiatria irá se inserir no Sistema de<br />
Saúde Brasileiro e chegando até as pesquisas<br />
mais minuciosas relaciona<strong>da</strong>s com<br />
o funcionamento cerebral na saúde e na<br />
doença. Como iremos nos amol<strong>da</strong>r a essas<br />
mu<strong>da</strong>nças que se acumulam e que irão<br />
fatalmente influenciar as nossas práticas,<br />
instituições e intervenções?<br />
Estamos em plena era do movimento<br />
anti-manicomial, em um esforço muito<br />
grande de descentrar a psiquiatria dos<br />
hospitais e colocá-la como parte integrante<br />
de nossas comuni<strong>da</strong>des. No setor público,<br />
isso tem progredido até certo ponto, mas<br />
no setor privado ain<strong>da</strong> falta muito a ser<br />
feito. Não sabemos ain<strong>da</strong> até que ponto<br />
os planos e seguros saúde irão se unir a<br />
esse movimento, criando possibili<strong>da</strong>des<br />
de atendimentos psiquiátricos comunitários<br />
que irão impedir que pacientes sejam<br />
internados gerando maiores custos para<br />
eles. Essa mu<strong>da</strong>nça de foco do psiquiatra,<br />
para um atendimento comunitário e para<br />
uma cooperação com outras disciplinas,<br />
tem muito a ver com o aparecimento de<br />
novos programas comunitários.<br />
Na nossa clínica, o que estamos percebendo<br />
é um número ca<strong>da</strong> vez maior de<br />
pacientes segurados sejam eles <strong>da</strong> Unimed<br />
ou dos Planos e Seguros Saúde. Isso é uma<br />
mu<strong>da</strong>nça substancial que irá afetar as nossas<br />
práticas na medi<strong>da</strong> que, provavelmente,<br />
irão diminuir substancialmente o número<br />
de pacientes particulares que atendemos e<br />
iremos trabalhar sob as limitações impostas<br />
por essas empresas. Como poderemos nos<br />
a<strong>da</strong>ptar a essas mu<strong>da</strong>nças? Como poderemos<br />
sugerir a estas empresas os tipos de<br />
atendimentos que devem oferecer aos seus<br />
segurados para que sintamos à vontade de<br />
trabalhar com elas? E, porque não dizer,<br />
como iremos negociar com as empresas<br />
as recompensas que nos parecem justas<br />
pelos trabalhos prestados?<br />
Na área de nossas intervenções esta mos<br />
também no meio de muitos progressos,<br />
especialmente na área <strong>da</strong>s intervenções<br />
medicamentosas. Como acompanhar isso<br />
para estarmos sempre atuali zados e podermos<br />
assim oferecer o melhor para os<br />
nossos pacientes? Isso nos leva ao nosso<br />
relacionamento com a indústria farmacêutica<br />
e até que ponto nós poderemos manter<br />
uma certa autonomia na hora de decidirmos<br />
o que prescrever? Essas questões estarão<br />
aí para serem trabalha<strong>da</strong>s.<br />
Por fim, como iremos integrar os nossos<br />
conhecimentos respeitando as tendências<br />
de nossos colegas mais por um ou por<br />
outro aspecto do nosso trabalho clínico.<br />
Por exemplo, como iremos conviver com<br />
colegas que não pensam como nós em<br />
termos <strong>da</strong> etiologia e do tratamento <strong>da</strong>s<br />
doenças mentais? Aqui vai ser preciso uma<br />
certa humil<strong>da</strong>de para aceitar que no nosso<br />
campo tão vasto e complexo ninguém<br />
pode se arvorar em ser dono <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
Devemos ser capazes de escutarmos uns<br />
aos outros na medi<strong>da</strong> que estu<strong>da</strong>mos como<br />
melhor servir aos nossos pacientes. Nossa<br />
profissão deve abrigar a todos, desde os<br />
psiquiatras mais biológicos aos mais psicanalistas,<br />
numa colaboração que só pode nos<br />
tornar mais eficientes no nosso trabalho.<br />
No ano que vem em Belo Horizonte teremos<br />
a oportuni<strong>da</strong>de de receber colegas de<br />
todo o Brasil, para trocarmos idéias sobre<br />
essas questões e certamente muitas outras<br />
que irão surgir dentro dos temas propostos.<br />
Vamos trabalhar para que esse evento seja<br />
um grande sucesso!<br />
Psiquiatra e Psicanalista
A partir <strong>da</strong> crise <strong>da</strong> cosmologia<br />
medieval destroem-se os<br />
substratos pagãos que persistem<br />
por trás do novo ideário cristão<br />
e deses-truturam-se as formas<br />
antigas de expressão <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de<br />
imaginária. Acentua-se na<br />
cena religiosa a distância entre o<br />
bem e o mal e rejeitam-se agora<br />
os dois mecanismos simbólicos<br />
centrais na experiência antiga<br />
do homem com o imaginário: o<br />
sacrifício e o êxtase. As emoções<br />
desviantes do homem não podem<br />
mais encontrar, no abrigo religioso,<br />
a legitimi<strong>da</strong>de necessária para<br />
serem nomea<strong>da</strong>s.<br />
A questão <strong>da</strong> saúde mental<br />
é maior que os interesses de<br />
qualquer campo especializado do<br />
conhecimento ou mesmo campo<br />
profissional.<br />
A loucura diz respeito à própria<br />
cultura humana. É dela constitutiva<br />
e dela cui<strong>da</strong>r é a grande<br />
loucura <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de moderna.<br />
Nós psiquiatras amamos muito<br />
nossos pacientes, pois amar é prometer<br />
o que nunca será cumprido.<br />
Todos nós, profissionais <strong>da</strong> saúde<br />
mental, cui<strong>da</strong>dores, familiares e<br />
os próprios pacientes, amamos<br />
além do nosso bom senso.<br />
Ao fazermos o texto <strong>da</strong> Lei <strong>da</strong><br />
Saúde Mental (Paulo Delgado),<br />
no Brasil, tínhamos certeza que<br />
estávamos legislando em causa<br />
própria. Afinal, um louco (doente<br />
mental), de certa forma, é algo de<br />
nós pego em flagrante.<br />
Se pegarmos um giz e fizermos<br />
um círculo nele poderíamos<br />
ficar presos. E se o acariciarmos<br />
poderíamos torná-lo vicioso. Dessa<br />
forma, algo que construímos<br />
nos aprisiona e nos afeiçoa. Para<br />
O Semblante <strong>da</strong> Loucura<br />
sair do círculo de giz e do círculo<br />
vicioso é necessário romper o<br />
círculo de crenças e valores que<br />
tanto desenhamos e afagamos.<br />
Fazer uma descolonização de nós<br />
mesmos. Compreender a loucura<br />
como produtora de valores, tanto<br />
de serviços, como de bens materiais<br />
e simbólicos.<br />
Do que nos envergonhamos;<br />
muito de nossas loucuras, vem<br />
de sermos brasileiros. As nossas<br />
máscaras constituem-se na insistência<br />
de nossa incompetência coletiva,<br />
nas oportuni<strong>da</strong>des perdi<strong>da</strong>s<br />
que remontam às nossas origens<br />
históricas, de povo mestiço e de<br />
legitimi<strong>da</strong>de duvidosa.<br />
A identi<strong>da</strong>de brasileira é configura<strong>da</strong><br />
pela adoção <strong>da</strong> imagem de<br />
Macunaíma, de Mário de Andrade,<br />
como legítimo representante do<br />
modo de ser brasileiro, o herói sem<br />
nenhum caráter, no qual a tipici<strong>da</strong>de<br />
é a ausência de tipi-ci<strong>da</strong>de.<br />
As marchas e contra-marchas <strong>da</strong>s<br />
personali<strong>da</strong>des públicas justificam<br />
essa imagem.<br />
Para entender o Brasil, é preciso<br />
colocá-lo em seu contexto, a<br />
América Latina, com a qual não<br />
se identifica integralmente, mas<br />
participa <strong>da</strong>quela mesma comuni<strong>da</strong>de<br />
de origem ibérica, com<br />
traços religiosos comuns, além de<br />
estilos políticos e de insucessos<br />
equivalentes no árduo caminho<br />
<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de política, ética e<br />
econômica.<br />
Assumir a condição mestiça é<br />
nosso imperativo de autentici<strong>da</strong>de<br />
e a condição para a discussão de<br />
nossos problemas coletivos.<br />
Em tempos passados, viajantes<br />
aportavam ao Brasil e, passado<br />
um tempo, escreviam relatos<br />
João Ferreira <strong>da</strong> Silva Filho<br />
que muito alimentaram o imaginário<br />
dos europeus com o nosso<br />
exotismo. Muitas mentiras, com<br />
sabor de aventuras, tornaramse<br />
ver<strong>da</strong>deiras, como autênticas<br />
premonições sobre a reali<strong>da</strong>de<br />
futura (agora presente).<br />
O conhecido Hans Staden,<br />
que não se passava por doutor, e<br />
assim era apenas um aventureiro<br />
sem saber a demonstrar, foi feito<br />
prisioneiro pelos tupinambás, o<br />
que lhe rendeu um livro chamado<br />
de História Verídica. Foi um<br />
best-seller de seu tempo e até<br />
inspirou muitos dos autores do<br />
movimento <strong>da</strong> antropofagia. O<br />
tuxaua Cunhambebe o atiçava e<br />
os bugres diziam: aí vai nossa<br />
comi<strong>da</strong> pulando!<br />
Já o doutor Blumenau, ao começar<br />
sua colonização no sul do país,<br />
ficou surpreso com a “honesti<strong>da</strong>de”<br />
peculiar <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des. Ohne<br />
Geld zu spenden, hier is garnichts<br />
zu erlangen, und man muss die<br />
Leute von oben bis unten kaufen.<br />
Como não me agra<strong>da</strong> a bajulação<br />
pelos que falam javanês, aí vai uma<br />
possível tradução: sem dinheiro<br />
para <strong>da</strong>r, na<strong>da</strong> se consegue aqui,<br />
e a gente é obriga<strong>da</strong> a comprar<br />
todo mundo, de cima abaixo. Uma<br />
corrupção ativa, inclusive do austero<br />
doutor.<br />
Esse fenômeno, no campo <strong>da</strong><br />
saúde mental brasileiro, faz com<br />
que muitas vezes percamos o<br />
senso crítico e nos esqueçamos<br />
de rir de nós mesmos, como se a<br />
própria psiquiatria não nos tivesse<br />
ensinado a rir de muitas ver<strong>da</strong>des,<br />
ou já não tivesse produzido muitas<br />
ridículas ver<strong>da</strong>des.<br />
Há, nos dias que passam, uma<br />
rebiologização de temas e discus-<br />
sões anteriormente ligados à luta<br />
política. Talvez tenha se esgotado<br />
a concepção do humano anuncia<strong>da</strong><br />
no século XVI: Comigo me desavim,/<br />
No estremo som do perigo;/<br />
Não posso aturar comigo/ Nem<br />
posso fugir de mim. (Francisco<br />
de Sá de Miran<strong>da</strong>. Cantiga VII).<br />
É como o amarelo do Brasil:<br />
brasileiro tem vergonha <strong>da</strong> glória.<br />
Chora pelo dever cumprido,<br />
nosso bronze “vale ouro”; prata”<br />
vale ouro”; chegar lá “vale ouro”.<br />
Só briga com quem não conhece,<br />
porque se conhecer, vira amigo.<br />
Ganhar, para brasileiro, é difícil,<br />
porque os outros, muitas vezes,<br />
são mesmo melhores, mas, também,<br />
porque os outros, muitas<br />
vezes, são o que queremos ser.<br />
Assim, derrotá-los é derrotar o<br />
nosso desejo, é derrotar aquilo<br />
que nos permite nos diferenciar,<br />
na fala, do nosso outro, o povo<br />
comum e nos coloca, desse modo,<br />
no poder. Afinal uma terra tão lin<strong>da</strong>,<br />
só teria a estragá-la aqueles<br />
que a habitam. Vencer, muitas<br />
vezes, os europeus, ou seus replicantes<br />
australianos, canadenses,<br />
americanos é colocar no podium<br />
o Brasil dos brasileiros. Por isso<br />
os nossos iatistas vencem pelos<br />
seus sobrenomes (Scheidt, Grael<br />
etc). Os outros amarelam, pelos<br />
seus nomes. Têm o ouro como<br />
objeto deslocado de desejo e não<br />
como meio de afirmação de uma<br />
pretensa superiori<strong>da</strong>de nacional.<br />
Nós, brasileiros, envergonha<strong>da</strong>mente,<br />
já somos internacionais<br />
e até parecemos loucos.<br />
Decano do Centro de Ciências <strong>da</strong> Saúde – CCS/<br />
UFRJ<br />
PÁGINA 21
Como de hábito, leio o jornal de cabo a<br />
rabo. Na primeira quinzena de fevereiro,<br />
deparei-me com um necrológio peculiar:<br />
noticiava-se a morte de um ci<strong>da</strong>dão falecido<br />
devido a cinco causa mortis. O latim não<br />
estava no plural, mas o despautério era<br />
evidente; se um ci<strong>da</strong>dão deve sua morte a<br />
cinco causas, pode se concluir que morreu<br />
cinco vezes e não apenas uma ou, pensarse<br />
nos gatos que têm sete ou nove vi<strong>da</strong>s,<br />
dependendo <strong>da</strong> cultura.<br />
A morte é uma só, pode ser devi<strong>da</strong> a<br />
causas naturais ou pode ser provoca<strong>da</strong>.<br />
Neste segundo tópico inserir-se-iam as<br />
acidentais (ou ocasiona<strong>da</strong>s por acidentes<br />
involuntários, como a que<strong>da</strong> de um aeroplano...),<br />
as causa<strong>da</strong>s por autoaniquilação<br />
(ou suicídio), a outros agentes nãonaturais<br />
ou nãoacidentais (assassinatos, balas<br />
perdi<strong>da</strong>s e quejandos...) e, finalmente, por<br />
razões indetermina<strong>da</strong>s ou indetermináveis.<br />
Aparentemente, numa primeira leitura, o<br />
penitente mencionado no necrológio somou<br />
to<strong>da</strong>s estas causas para se chegar às cinco<br />
que eram menciona<strong>da</strong>s.<br />
Parênteses devido: balas perdi<strong>da</strong>s não<br />
são acidentes; são situações previsíveis e<br />
paradigmáticas <strong>da</strong> omissão do estado em<br />
proteger devi<strong>da</strong>mente os ci<strong>da</strong>dãos, quer<br />
paguem ou não impostos.<br />
É evidente que o autor do anúncio<br />
necrológico estava reproduzindo, quiçá<br />
espantado, o que constava no atestado<br />
de óbito, oriundo de uma classificação <strong>da</strong><br />
Organização Mundial <strong>da</strong> Saúde – OMS que<br />
lista, de forma internacional, as doenças<br />
e as causas de morte. Se a morte pode<br />
ser responsabili<strong>da</strong>de de cinco causas e é<br />
tão definitiva, como se classificariam as<br />
doenças que a ela conduzem? Existiria uma<br />
só doença, caracteriza<strong>da</strong> pela ausência de<br />
saúde ou seriam inumeráveis as causas que<br />
dela nos priva? Afinal, por quê se afirmar<br />
de quantas causas se parte desta para o<br />
desconhecido? A quem pode isto interessar?<br />
Ao partinte ou aos insignes ficantes?<br />
PÁGINA 22<br />
Das necessi<strong>da</strong>des desnecessárias<br />
J. Romildo Bueno<br />
A necessi<strong>da</strong>de de classificar, de tentar<br />
<strong>da</strong>r nomes aos bois que parecem, mas<br />
não são iguais é mais antiga que a Sé de<br />
Braga, A classificação mais perfeita talvez<br />
seja a de Orwell, em Animal Farm, quando<br />
deduz que todos os porcos são iguais, só<br />
que alguns são mais iguais que outros...<br />
Quando Linnaeus, ou Lineu (para os<br />
íntimos...) inaugurou sua taxonomia do<br />
reino vegetal, criou a necessi<strong>da</strong>de de se<br />
estendê-la ao reino animal, copiando as<br />
taboas classificatórias dos minerais e dos<br />
elementos naturais. Até aí, tudo bem. Este<br />
esforço nos conduziu ao homo quasisapiens<br />
e ajudou a entender a teoria <strong>da</strong> evolução.<br />
De repente, além <strong>da</strong>s doenças que nos<br />
afligem criamos a necessi<strong>da</strong>de de nomeálas,<br />
de saber suas origens, sua evolução<br />
para se determinar como e onde atuar<br />
para impedir seu objetivo final. Deu-se<br />
origem ao diag nóstico que traz em seu<br />
bojo o prognóstico que irá determinar a<br />
forma <strong>da</strong> intervenção terapêutica. A importância<br />
deste fato, a definição deste olhar<br />
especializado, a criação <strong>da</strong> clínica é uma<br />
destas necessi<strong>da</strong>des que nunca se tornam<br />
desnecessárias: uns ci<strong>da</strong>dãos, através de<br />
estudo e dedicação, se tornam mais iguais<br />
que outros e a eles se delega um poder: o<br />
de diagnosticar e de tratar condições que<br />
interferem com a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> de<br />
outrem. Esta outorga, esta renuncia social<br />
pode ser questiona<strong>da</strong>, cassa<strong>da</strong> ou extinta.<br />
Quando, durante a revolução cultural<br />
maoísta, extinguiu-se esta delegação de<br />
poder o resultado foi bem conhecido: sem<br />
o conhecimento é impossível que todos os<br />
ci<strong>da</strong>dãos possam olhar clinicamente, ouvir<br />
pacientemente e interpretar corretamente,<br />
isto é alguns podem diagnosticar, classificar,<br />
tratar, outros não.<br />
Entretanto, os que podem, além de rabiscarem<br />
mal e porcamente suas observações<br />
e prescrições, escondem-se em um jargão<br />
hermético, impenetrável, por vezes injustificável,<br />
e que tem sua origem em corpo-<br />
rativismo pseudocientífico, semelhante a<br />
sectarismos medievais de conseqüências<br />
<strong>da</strong>nosas, como a Idéia que a terra era o<br />
centro do mundo e todo o universo, tal<br />
qual ala de baianas de escola de samba,<br />
evolvia ao seu redor.<br />
A grafia dos médicos que têm a obrigação<br />
de informar corretamente os padecentes<br />
que buscam seus conselhos e serviços, de<br />
orientá-los sobre todos os passos e conseqüências<br />
de sua ação, deveria ser uma<br />
caligrafia e não uma cacografia insondável<br />
até mesmo para ausentes farmacêuticos<br />
ou despachados balconistas especializados<br />
em “empurroterapia”.<br />
As causas acima menciona<strong>da</strong>s contribuem<br />
para que os códigos classificatórios se tornem<br />
necessários para possibilitar o correto<br />
trabalho de amanuenses e estatísticos que<br />
trabalham para a saúde pública e precisam<br />
elaborar mapas, cartas, previsões et caterva.<br />
Suponhamos que eu entre em consultório<br />
psiquiátrico e seja atendido por especialista,<br />
titulado, professor universitário,<br />
funcionário público <strong>da</strong> secretaria municipal<br />
de saúde e ardoroso defensor dos atuais<br />
sistemas classificatórios que incluem uma<br />
doença principal e inúmeras “comorbi<strong>da</strong>des”.<br />
Com certeza mais certa que a morte,<br />
sairei <strong>da</strong> consulta com, PELO MENOS, uns<br />
três diagnósticos; entrei doente, saí moribundo,<br />
com três possíveis causae mortis!<br />
Posso até não ser corretamente tratado,<br />
mas morrerei tranqüilo com esta tríplice<br />
causali<strong>da</strong>de, meu atestado de óbito será<br />
uma perfeição!!!<br />
O atual sistema adotado, catalogado na<br />
CID –10, engloba transtornos mentais que<br />
se dividem em categorias e sub-categorias<br />
e que são numerados de F 00 a F – 99.<br />
Ca<strong>da</strong> “F” pode comportar de 1 até 10 subitens,<br />
totalizando cerca de 399 entra<strong>da</strong>s.<br />
Se combinarmos 399 elementos seja 2 a 2,<br />
3 a 3 ou 4 a 4, vai sobrar “comorbi<strong>da</strong>de”<br />
e faltar gente...
Existe uma pia<strong>da</strong> antiga, corrente nas déca<strong>da</strong>s<br />
de 60-70 e que se baseava no sucesso<br />
dos ansiolíticos entre todos os especialistas<br />
médicos, para-médicos, militares, boticários<br />
e papagaios-de-vizinhas: quando não<br />
se sabe o que ou que fazer, encaminha-se<br />
o queixoso para o psiquiatra. O psiquiatra<br />
sempre arranja um diagnóstico e estipula<br />
um tratamento, seja orgânico, medicamentoso<br />
ou ain<strong>da</strong> uma análise interminável que<br />
deixava pacientes, familiares, pe<strong>da</strong>gogos<br />
e profissionais felicíssimos. O importante<br />
não era deixar de fazer pipi na cama, mas<br />
sim se saber por quê o lençol amanhece<br />
molhado e, na falta do mordomo, a mãe<br />
é sempre culpa<strong>da</strong>... É a época de uma<br />
proliferação diagnóstica altamente criativa:<br />
pitís, distúrbios neuro-vegetativos,<br />
distonia vago-simpática, coração irritável e<br />
colón idem, agressivi<strong>da</strong>de infanto-juvenil,<br />
síndromes de desa<strong>da</strong>ptação, ansie<strong>da</strong>de<br />
diurna, ansie<strong>da</strong>de produtiva, ansie<strong>da</strong>de<br />
neurótica, atenção flutuante e tantas outras<br />
coisas como gastura, úlcera de estresse,<br />
espinhela caí<strong>da</strong>, encostos e possessões.<br />
Dizem as más línguas, destas que se<br />
o dono morder inadverti<strong>da</strong>mente morre<br />
envenenado, que no rastro de sucesso do<br />
meprobamato e dos benzodiazepínicos,<br />
diversos compostos foram sintetizados e<br />
outros de síntese anterior passaram a ser<br />
re-avaliados: causavam uma sensação vaga<br />
de bem-estar e na<strong>da</strong> mais. A indústria farmacêutica<br />
teria chegado à conclusão que<br />
se indicação não existisse, não fazia mal,<br />
A PSIQUIATRIA INVENTARIA UMA DOENÇA<br />
onde o novo milagre pudesse ser utilizado.<br />
A racional subjacente era que a psiquiatria<br />
de na<strong>da</strong> sabia, os pacientes eram todos<br />
sugestionáveis e um remédio, principalmente<br />
se é amargo, dá “dor no fígado”<br />
ou causa náusea é sempre eficaz e ain<strong>da</strong><br />
aju<strong>da</strong> a aumentar a ven<strong>da</strong> de “hépatoprotetores”.<br />
A situação era tão cômica que<br />
substâncias capazes de causar dependência<br />
eram vendi<strong>da</strong>s livremente sob o rótulo de<br />
antidistônicos: o Brasil inteiro sofria de<br />
“distonia vago-simpatica”, misturava-se<br />
ao ansiolítico ou ataráxico um bloqueador<br />
muscarínico, derivado de atropina e um<br />
estimulante alfa-adrenérgico e tudo estava<br />
resolvido. Houve mesmo um colunista<br />
social que chegou a propor se colocasse<br />
benzodiazepínico na água trata<strong>da</strong> que<br />
chegava às residências que recebiam o<br />
precioso líquido...<br />
Exageros perdoados, fica o fato: quanto<br />
maior a confusão diagnóstica, menor a<br />
quali<strong>da</strong>de do tratamento e as possibili<strong>da</strong>-<br />
des de recuperação: curar-se de uma só<br />
doença já é tão difícil, o que se dirá para<br />
se safar de três...<br />
Parece que estamos revivendo esta<br />
situação pirandelliana: para ca<strong>da</strong> novo<br />
medicamento, procura-se uma patologia<br />
estalando de nova; se o efeito antidepressor<br />
é fraco por quê não empregar a<br />
substância nas distonias, digo distimias...<br />
Se se emprega o recurso <strong>da</strong>s comorbi<strong>da</strong>des,<br />
coincidentemente multiplicam-se as<br />
possibili<strong>da</strong>des de indicações terapêuticas.<br />
Resta saber-se a quem serve esta pulverização<br />
diagnóstica. Ao especialista, com<br />
certeza não representa auxílio; antes o<br />
contrário; ao paciente também não – uma<br />
doença já é calvário suficiente, talvez sirva<br />
para contentar hipocondríacos de plantão.<br />
Ao lado disto, cria-se uma dificul<strong>da</strong>de<br />
de comunicação com outros especialistas,<br />
médicos ou não: hoje em dia o que mais<br />
se vê é a banalização dos diagnósticos<br />
de depressão, pânico ou fobias; todos os<br />
colunáveis, os pretendentes a um passeio<br />
na ilha de Caras ou de Coroas, têm uma<br />
ou mais destas condições.<br />
A “babelização” taxonômica prejudica<br />
o ensino <strong>da</strong> psiquiatria: ao invés de se<br />
estu<strong>da</strong>r psicopatologia, semiologia psiquiátrica<br />
ou combinações terapêuticas, o<br />
pobre residente se vê lendo as instruções<br />
de emprego, o modo de usar do DSM-IV-R<br />
ou <strong>da</strong> CID-10 e, a partir deste mergulho<br />
na sapiência, passa a juntar coincidências<br />
com mor bi<strong>da</strong>des, “psicopatologiza”<br />
o cotidiano e nos transforma a todos em<br />
transtornados.<br />
Resta a pergunta pertinente e que não<br />
quer se calar: a quem serve esta complicação?<br />
Aos psico-planejadores que nunca viram<br />
um paciente e vivem nos ditando regras<br />
sobre como diagnosticá-lo e a melhor maneira<br />
de tratá-lo?<br />
Aos senhores-professores-doutores que<br />
só assim conseguem fazer diagnósticos<br />
geniais?<br />
Aos especialistas de ponta, que estão<br />
na linha de frente e mal e porcamente têm<br />
tempo para colher <strong>da</strong>dos anamnésticos e<br />
se sentem seguros rabiscando uma sigla<br />
alfa-numérica?<br />
Aos sintetizadores de medicamentos<br />
que necessitam prová-los no uso diário?<br />
Aos fazedores de estatísticas oficiais<br />
que precisam mostrar serviço aos órgãos<br />
competentes?<br />
A este respeito e “a nível de” especulação<br />
só me sobra perplexa ignorância.<br />
Psiquiatra<br />
PÁGINA 23
No momento atual, no Brasil, novos referenciais<br />
para a Saúde Mental estão sendo<br />
propostos na rede pública de assistência,<br />
a alta prevalência de morbi<strong>da</strong>de psiquiátrica<br />
configuraa como um dos principais<br />
problemas de saúde <strong>da</strong> população, exigindo<br />
estratégias específicas nos Programas<br />
de Saúde <strong>da</strong> Família. Ao mesmo tempo,<br />
a grande disseminação que a questão <strong>da</strong><br />
atenção psiquiátrica alcançou na mídia produz<br />
desde o questionamento do modelo de<br />
assistência anteriormente vigente, centrado<br />
na internação psiquiátrica, até a inclusão<br />
dos transtornos mentais na cobertura dos<br />
planos e seguros privados de saúde.<br />
Paralelamente há uma propedêutica e<br />
uma terapêutica de ponta, que permitem<br />
o tratamento de casos severos antes assolados<br />
por efeitos colaterais muitas vezes<br />
incapacitantes, convive, paradoxalmente,<br />
em nosso meio, o modelo manicomial mais<br />
arcaico, sob a forma de convênios públicos<br />
e privados com hospitais psiquiátricos, cuja<br />
eficácia em termos <strong>da</strong> reabilitação psicossocial<br />
dos pacientes é nula. Por outro lado,<br />
esse mesmo avanço tecno ló gico produz,<br />
de forma inquietante, um certo deslumbramento<br />
generalizado com as promessas de<br />
a<strong>da</strong>ptação social embuti<strong>da</strong>s nos ideais contemporâneos<br />
de imagem, de desempenho e<br />
de juventude, que faz proliferar diagnósticos<br />
psiquiátricos - nem sempre fornecidos por<br />
psiquiatras, é bom lembrar - que recobrem<br />
dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> existência no que é próprio<br />
do nosso tempo massificante, consumista<br />
e pobre em rituais simbólicos.<br />
O saber psiquiátrico está em seu auge. A<br />
opção por esta especiali<strong>da</strong>de, antes mal vista<br />
pelos médicos, tem crescido e alcançado<br />
PÁGINA 24<br />
Um retrato <strong>da</strong> psiquiatria quando jovem<br />
Flashes em busca de diretrizes<br />
Musso Garcia Greco<br />
um novo status. O discurso científico abarca<br />
agora temas <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, antes relegados<br />
pela Medicina às chama<strong>da</strong>s Ciências<br />
Humanas, à Literatura e àquela que pode<br />
ser considera<strong>da</strong> a área “sem-teto”, entre<br />
as Ciências, a Psicanálise. As revistas de<br />
entretenimento, os jornais e os programas<br />
de TV dedicam espaço de honra a temas<br />
como depressão, transtornos alimentares,<br />
síndrome do pânico, ou distúrbios de<br />
atenção (a última “mo<strong>da</strong>” em diagnóstico,<br />
depois do boom do transtorno bipolar do<br />
humor, que quase todo mundo achava que<br />
tinha na vira<strong>da</strong> do século XX), criando uma<br />
nova cultura na população, independente<br />
<strong>da</strong> cama<strong>da</strong> social.<br />
A excitação que cerca o florescimento<br />
dessa nova fase <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Psiquiatria,<br />
entretanto, leva também a um incremento<br />
<strong>da</strong> arrogância nos meios profissionais, muito<br />
próxima <strong>da</strong> que observamos entre os adolescentes,<br />
ou entre os novos-ricos. Tanto para<br />
uns, quanto para outros, um narcisismo revigorado<br />
(pela energia do corpo, pelo poder<br />
<strong>da</strong> fortuna, ou pela aceitação social de um<br />
novo saber) pode obscurecer a sabedoria.<br />
No caso <strong>da</strong> Psiquiatria, a sabedoria de não<br />
tomar como explicação absoluta todo novo<br />
conhecimento do DSM, banalizando-o, e de<br />
não ceder ao apelo fácil de recobrir to<strong>da</strong> a<br />
complexi<strong>da</strong>de de um comportamento humano<br />
pela psicopatologia.<br />
Percebemos na prática cotidiana dos<br />
consultórios e ambulatórios que a própria<br />
consulta psiquiátrica corre o risco de<br />
perder seu caráter investigativo, para se<br />
tornar um “debate” sobre as vantagens<br />
de um psicofármaco sobre outro. Debate<br />
este promovido pelo próprio paciente, que<br />
muitas vezes já se apresenta ao médico<br />
com um diagnóstico (o “seu” diagnóstico)<br />
e uma proposta terapêutica (o “seu” remédio,<br />
geralmente o que foi divulgado num<br />
programa dominical de televisão, na capa<br />
de uma revista semanal de informação, ou<br />
em uma revista feminina), e não com uma<br />
pergunta sobre seu possível sofrimento. Ou<br />
tornar-se uma “aula” reducionista sobre<br />
uma possível causa neuroquímica/sindrômica<br />
de um mal de amor, de uma dor de<br />
existir, ou de um desconhecimento sobre<br />
o desejo. Ou ain<strong>da</strong> - o que talvez seja seu<br />
pior destino - tornar-se um simples e rápido<br />
procedimento de “encaixe” de qualquer<br />
queixa a uma prescrição no receituário.<br />
Não só essas facetas <strong>da</strong> descaracterização<br />
<strong>da</strong> clínica psiquiátrica merecem<br />
preocupação. A biologização <strong>da</strong> prática<br />
psiquiátrica caminha a passos largos para a<br />
tornar uma espécie de “sub-especiali<strong>da</strong>de”<br />
<strong>da</strong> Neurologia, ou uma mera Taxionomia,<br />
que descarta os avanços <strong>da</strong>s pesquisas<br />
acerca dos mecanismos inconscientes e<br />
sócio-psicológicos que sempre auxiliaram<br />
na expansão do conhecimento do universo<br />
mental humano. Afora a Genética, a Farmacologia,<br />
a Epidemiologia, a Sociobiologia, a<br />
Enfermagem e as especiali<strong>da</strong>des médicas<br />
(principalmente aquelas que cui<strong>da</strong>m dos<br />
diagnósticos por imagem e por dosagem,<br />
bem como <strong>da</strong>s pesquisas em eletrofisiologia<br />
e neuroanatomia), parecem ter sido<br />
reduzi<strong>da</strong>s as parcerias <strong>da</strong> Psiquiatria - por<br />
exemplo: com a Sociologia, a Antropologia,<br />
a Psicologia, a Psicanálise, a Pe<strong>da</strong>gogia, o<br />
Direito, a Filosofia, as Ciências Políticas, a<br />
Terapia Ocupacional, o Movimento <strong>da</strong> Luta<br />
Antimanicomial etc. -, que constituíam uma
forma de operar a partir <strong>da</strong> “douta ignorância”.<br />
Esta posição ética consiste em “saber<br />
não saber” no momento de uma avaliação,<br />
para que se construa, realmente, para<br />
ca<strong>da</strong> caso clínico, e para ca<strong>da</strong> fenômeno<br />
psicossocial, a interpretação mais próxima<br />
<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de subjetiva, e apenas a oferta<br />
terapêutica necessária.<br />
Portanto, no caminho para o amadurecimento<br />
dessa jovem especiali<strong>da</strong>de, aqui<br />
“fotografa<strong>da</strong>” muito brevemente, algumas<br />
linhas reguladoras precisam ser traça<strong>da</strong>s.<br />
As sete sugestões que se seguem pretendem<br />
agregar pontos para uma discussão<br />
maior que possa revelar com mais nitidez<br />
a direção que devemos tomar, não pretendendo,<br />
evidentemente, encampar todos os<br />
matizes <strong>da</strong> questão:<br />
1) na assistência aos portadores de<br />
transtornos mentais em momento emergencial<br />
ou de crise, as propostas de tratamento e<br />
acompanhamento devem evitar qualquer<br />
forma de anulação subjetiva, promovendo<br />
ou criando recursos que propiciem, tão<br />
logo seja possível, sua reinserção na esfera<br />
social, e assegurando a singularização dos<br />
projetos terapêuticos, e o protagonismo dos<br />
pacientes na rotina de qualquer instituição<br />
porventura necessária a esses projetos;<br />
2) o psiquiatra deve buscar a multidisciplinarie<strong>da</strong>de<br />
- ou mesmo a inter e a<br />
transdisciplinarie<strong>da</strong>de, quando necessárias<br />
- na montagem dos projetos terapêuticos de<br />
seus pacientes, articulando diversos saberes<br />
em torno de uma política democrática de<br />
tratamento;<br />
3) as famílias dos portadores de patologias<br />
mais severas devem estar no<br />
foco <strong>da</strong> atenção psiquiátrica, por meio<br />
de orientações acerca do cotidiano com o<br />
paciente, como: reconhecimento de sua<br />
estrutura psíquica peculiar, manejo <strong>da</strong> medicação,<br />
detecção dos sinais e aumento <strong>da</strong>s<br />
opções no enfrentamento <strong>da</strong>s crises, informação<br />
sobre avanços psicofarmacológicos e<br />
eventuais efeitos colaterais, monito ramento<br />
de programas de habilitação em tarefas<br />
domésticas, orientação quanto ao cui<strong>da</strong>do<br />
com a saúde como um todo (odontologia,<br />
clínica geral, especiali<strong>da</strong>des, exames laboratoriais,<br />
etc.), informação sobre os meios<br />
necessários para obtenção de benefícios<br />
assegurados por lei, convite à participação<br />
em ativi<strong>da</strong>des que favoreçam a inserção<br />
comunitária, informação sobre Associações<br />
de Usuários e Familiares, para a aumentar<br />
a capaci<strong>da</strong>de de fazer opções, conhecendo<br />
melhor os processos de adoe cimento<br />
psíquico e as formas de enfren tamento,<br />
além de aprender a discernir os meandros<br />
<strong>da</strong> Política Pública de Saúde Mental e os<br />
avanços científicos na área;<br />
4) no tratamento, deve-se lançar mão<br />
de todos os recursos terapêuticos disponíveis,<br />
sem desconsiderar a condição<br />
pessoal dos pacientes, no sentido de que<br />
têm uma história e devem encontrar saí<strong>da</strong>s<br />
individuais e sociais próprias, para além<br />
<strong>da</strong> mera supressão <strong>da</strong>s crises e do impedimento<br />
de comportamentos indesejáveis<br />
do ponto de vista <strong>da</strong> Ordem Pública, que<br />
sempre atribuiu à Psiquiatria as funções de<br />
controle social, coação e segregação;<br />
5) formalizar um modelo clínico que<br />
esteja inserido no contexto de uma construção<br />
teórico-prática despoja<strong>da</strong> de<br />
idealizações como: coerência e abolição<br />
de contradições no mundo; um conceito<br />
universal de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia que apagasse to<strong>da</strong>s<br />
as diferenças, inclusive aquelas decorrentes<br />
<strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des de uma estrutura clínica<br />
como a psicose; uma definição padroniza<strong>da</strong><br />
de estrutura familiar; regras de comportamento<br />
para equilibrar nossos neurotransmissores<br />
e nossa vi<strong>da</strong>, para acabar de vez<br />
com as indeseja<strong>da</strong>s (e tão humanas...)<br />
“paixões d´alma”; enfim, uma vi<strong>da</strong> “feliz,<br />
equilibra<strong>da</strong>, harmoniosa e proveitosa” a<br />
que todos devessem aceder, a qualquer<br />
preço, ain<strong>da</strong> que por meio do consumo de<br />
artifícios químicos, eletrônicos, cirúrgicos ou<br />
discursivos que atendessem ao imperativo<br />
impossível de uma “saúde” plena, própria<br />
do superego moderno, que intima ao gozo<br />
(“goze de to<strong>da</strong>s as maneiras!”), embora,<br />
paradoxalmente, ordene também seu regramento<br />
(gordura light, café sem cafeína,<br />
sexo seguro, mulher sem t.p.m., homem<br />
metrossexual etc.);<br />
6) evitar a banalização do saber<br />
psiquiátrico, resistindo aos apelos de<br />
simplificação formulados pelos meios de<br />
comunicação, com a conseqüente vulgarização<br />
de critérios diagnósticos e terapêuticos,<br />
que, mol<strong>da</strong>dos pelo resultado habitualmente<br />
cartesiano <strong>da</strong> tentativa jornalística de tornar<br />
um assunto compreensível para o grande<br />
público, perdem a dimensão dialética e<br />
complexa que está presente na entrevista<br />
psiquiátrica e na pesquisa acadêmica<br />
referente a temas psiquiátricos: tanto na<br />
consulta, quanto na investigação científica,<br />
é preciso não apenas levantar o sintoma,<br />
mas querer saber sobre o enigma do sintoma;<br />
7) por fim, em uma época de reprodutibili<strong>da</strong>de<br />
técnica, e que preconiza o “faça<br />
você mesmo”, em tudo favorável a procedimentos<br />
como a automedicação desenfrea<strong>da</strong>,<br />
cabe ao psiquiatra retomar a condução<br />
de uma clínica <strong>da</strong> escuta, em oposição<br />
a uma prática de uso fetichista do psicofármaco,<br />
servindo-se deste regulador<br />
de gozo no corpo para convocar o sujeito<br />
a um encontro com a palavra, em vez de<br />
sustentar a posição de sentir-se obrigado<br />
a prescrevê-lo, de acordo com a deman<strong>da</strong><br />
ca<strong>da</strong> dia mais especializa<strong>da</strong> de um paciente<br />
“que sabe o que quer”, ansioso que está por<br />
consumir todos os produtos que a Ciência<br />
moderna coloca à sua disposição, para se<br />
tornar, ele próprio, um objeto de consumo<br />
mais desejável.<br />
Psiquiatra, psicanalista membro-aderente <strong>da</strong> Escola Brasileira de<br />
Psicanálise, especialista em Saúde Mental pela ESMIG, mestre em<br />
Psicologia pela UFMG, diretor clínico <strong>da</strong> Casa Freud<br />
PÁGINA 25
Vivendo em um mundo<br />
confundido pelo fenômeno <strong>da</strong><br />
globalização, onde os ideais,<br />
os conceitos e os paradigmas<br />
foram quebrados, sem que se<br />
tenham ain<strong>da</strong> novas referências<br />
construí<strong>da</strong>s, a ca<strong>da</strong> dia<br />
nos defrontamos, no exercício<br />
<strong>da</strong> clínica, com estas mu<strong>da</strong>nças,<br />
que se refletem em novos<br />
sintomas, que nos in<strong>da</strong>gam<br />
sobre qual a melhor conduta,<br />
nos exigindo modificações em<br />
nossas táticas e estratégias.<br />
A proposta do XXIII Congresso<br />
Brasileiro de Psiquiatria,<br />
“Diretrizes em Psiquiatria”, a<br />
acontecer em Belo Horizonte,<br />
em 2005, não poderia ser mais<br />
oportuna: vai ao encontro <strong>da</strong><br />
proposta <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Mundial<br />
de Psiquiatria de introduzir<br />
“formulações ideográficas” na<br />
revisão dos sistemas de diagnósticos<br />
atuais, O próximo congresso<br />
anuncia, assim, já em<br />
seu tema uma missão fun<strong>da</strong>mental:<br />
trazer conseqüências.<br />
Nova clínica, novas instituições,<br />
novas intervenções são<br />
as coordena<strong>da</strong>s apresenta<strong>da</strong>s<br />
para trabalharmos estas diretrizes.<br />
Vejamos então.<br />
Qual o cenário atual <strong>da</strong> Psiquiatria?<br />
Existe efetivamente<br />
uma nova clínica? No momento<br />
em que preparo este material,<br />
realizamos em Belo Horizonte<br />
o Pré-congresso Brasileiro de<br />
Psiquiatria, promovido pela <strong>Associação</strong><br />
<strong>Mineira</strong> de psiquiatria<br />
PÁGINA 26<br />
Menos fascínio, mais responsabili<strong>da</strong>de<br />
e participo de uma mesa exatamente<br />
sobre novas formas<br />
de intervenção, abor<strong>da</strong>ndo os<br />
CAPS, as Residências Terapêuticas,<br />
os Acompanhantes<br />
Terapêuticos e as novas formas<br />
de internação.<br />
Os <strong>da</strong>dos absolutos são<br />
promissores. Tomando como<br />
exemplo Barbacena, ci<strong>da</strong>de<br />
mineira de 150 mil habitantes,<br />
ex-paradigma do modelo manicomial,<br />
metáfora <strong>da</strong> loucura,<br />
pode ser considera<strong>da</strong>, atualmente,<br />
paradigma do modelo<br />
substitutivo ao manicômio:<br />
com 4 mil leitos psiquiátricos<br />
em 1978, conta, atualmente,<br />
com 600 leitos, 20 Residências<br />
Terapêuticas, ocupa<strong>da</strong>s<br />
por 164 pacientes desospitalizados,<br />
1 CAPS, um hospitaldia<br />
para álcool e drogas, um<br />
ambulatório atendendo 1200<br />
pacientes-mês e centro de<br />
convivência, que atende 600<br />
pacientes-mês. Apresentava,<br />
até o ano 2000, 130 internações<br />
agu<strong>da</strong>s mensais e hoje,<br />
4 anos após a implantação<br />
dos serviços citados, interna<br />
mensalmente 13 pacientes.<br />
Estes <strong>da</strong>dos iniciais e atuais<br />
são comparados por escalas de<br />
avaliação <strong>da</strong> eficácia do novo<br />
modelo, seguindo diretrizes<br />
rigorosamente científicas.<br />
O trabalho de desospitalização<br />
e inclusão social está sendo<br />
feito de acordo com referências<br />
clínicas e sociais claras, con-<br />
Gil<strong>da</strong> Paoliello<br />
siderando as particulari<strong>da</strong>des<br />
e possibili<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um<br />
dos pacientes, dentro de diretrizes<br />
éticas que respeitam a<br />
subjetivi<strong>da</strong>de. A medicação é<br />
garanti<strong>da</strong> pelo SUS e a assistência<br />
psiquiátrica é feita por<br />
sistema de rede ambulatório-<br />
CAPS-centro de convivência.<br />
Uma marca interessante dessa<br />
abor<strong>da</strong>gem é a participação e<br />
responsabilização dos familiares<br />
e dos próprios pacientes<br />
no processo terapêutico. Se<br />
esta é uma clínica de exceção,<br />
dentro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira,<br />
ela delineia um modelo exeqüível<br />
e de bons resultados,<br />
podendo ser referência para a<br />
nova clínica.<br />
Outro recurso promissor<br />
é o farmacológico, principalmente<br />
os antipsicóticos, que,<br />
sem dúvi<strong>da</strong>, está sendo aliado<br />
importante <strong>da</strong> reforma psiquiátrica,<br />
permitindo uma desospitalização<br />
responsável, tanto<br />
pela maior eficácia como pela<br />
melhor adesão ao tratamento<br />
por parte dos pacientes, pela<br />
diminuição dos efeitos colaterais.<br />
Por outro lado, encontramos<br />
mundialmente um outro tipo<br />
de movimento na Psiquiatria:<br />
na última déca<strong>da</strong>, decidi<strong>da</strong>mente,<br />
esta deixou de ser uma<br />
margem na Medicina, tendo<br />
conquistado neste campo lugar<br />
definido e reconhecido.<br />
Entretanto, a teima obstina<strong>da</strong><br />
na busca de se nor matizar em<br />
um modelo médicocientífico<br />
acaba por limitá-la, provocando<br />
conseqüências desastrosas.<br />
Concor<strong>da</strong>mos que o<br />
modelo cien tifico seja uma <strong>da</strong>s<br />
diretrizes importantes para a<br />
Psiquiatria. Mas não a única.<br />
Este mo delo não tem métodos<br />
para decidir sobre questões<br />
éticas e, em sua objetivi<strong>da</strong>de,<br />
exclui o sujeito. Ciência, ética<br />
e subjetivi<strong>da</strong>de articula<strong>da</strong>s<br />
seriam boas diretrizes para a<br />
Psiquiatria.<br />
Há, efetivamente, uma crise<br />
conceitual <strong>da</strong> Psiquiatria. Já<br />
não temos grandes mestres<br />
que nos tragam garantias de<br />
conhecimento e uma linguagem<br />
psicopatológica comum<br />
que nos permita uma prática<br />
referen<strong>da</strong><strong>da</strong>. Muito pelo<br />
contrário. Como comenta o<br />
Professor João Romildo Bueno<br />
(Psiquiatria Hoje, ano XIII,<br />
no.1), “a epidemia nosográfica<br />
que impera atualmente e tem<br />
no DSM sua referência mais<br />
acaba<strong>da</strong>, impede quem dela<br />
é contagiado de construir um<br />
diagnóstico adequado, uma<br />
vez que este foi substituído<br />
por um conjunto de critérios<br />
de inclusão e exclusão sintomaticamente<br />
orientado”, que<br />
se apresenta como a-histórico,<br />
a-teórico e a-doutrinário. Além<br />
disso, o banimento de tudo que<br />
faz menção à origem psíquica e<br />
somática, como explicitado na
apresentação <strong>da</strong> última versão<br />
<strong>da</strong> Classificação de Transtornos<br />
Mentais e de Comportamento<br />
<strong>da</strong> CID-10, torna este conjunto<br />
classificatório também asexuado<br />
(lembrando que a pulsão<br />
sexual se situa como conceito<br />
exatamente entre o psíquico<br />
e o somático), sem qualquer<br />
relação com as diferenças ou<br />
com a linguagem, com to<strong>da</strong>s<br />
as conseqüências que isso<br />
acarreta na clínica.<br />
A teima em persistir neste<br />
objetivismo e “rigor científico”<br />
purista acaba provocando um<br />
rigor mortis, com a extinção <strong>da</strong><br />
clínica, do paciente enquanto<br />
sujeito e do psiquiatra enquanto<br />
clínico, desconhecendo que<br />
a queixa do paciente é feita de<br />
inibição, sintoma e angústia.<br />
Filha de Psique e do biológico,<br />
a Psiquiatria é mesmo mestiça,<br />
sonho e pó, multifaceta<strong>da</strong>,<br />
dividi<strong>da</strong>, tão demasia<strong>da</strong>mente<br />
humana quanto nós. Lembrando<br />
Charcot, “a teoria é boa,<br />
mas não impede que as coisas<br />
aconteçam”: a prática sempre<br />
deve anteceder às elaborações<br />
teóricas; se esta ordem se<br />
inverte, a clínica se transforma<br />
em um leito de Procusto,<br />
onde <strong>da</strong>dos sobre o paciente<br />
são selecionados para caberem<br />
dentro desta ou <strong>da</strong>quela<br />
concepção. A inversão destes<br />
valores deixa em seu rastro<br />
inúmeras mutilações. Também<br />
a consideração do sintoma<br />
deve ir além <strong>da</strong> objetivação <strong>da</strong><br />
ciência, considerando este fenômeno<br />
sempre presente, mas<br />
nem sempre bem conduzido,<br />
que é a transferência. Nunca<br />
é demais lembrar que a clínica,<br />
o psiquiatra, o paciente e<br />
seu sintoma caminham juntos,<br />
às vezes tropeçando em um<br />
impossível de suportar, que<br />
nem sempre a objetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
ciência pode apreender.<br />
Para a discussão e a resposta<br />
a estes impasses propomos<br />
estas questões: como fica a singulari<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> clínica do sujeito<br />
no trabalho coletivo dos novos<br />
dispositivos de assistência?<br />
Qual o papel do psiquiatra no<br />
novo modelo or ga nizacional de<br />
equipe multi disciplinar para a<br />
condução do processo clínico?<br />
A adesão ao tratamento<br />
é maior nesse modelo que no<br />
tradicional?<br />
Como traçar propostas claras<br />
para a avaliação sistemática<br />
de políticas e de programas de<br />
saúde mental? O novo modelo<br />
assistencial oferece respostas<br />
consistentes às deman<strong>da</strong>s, levando<br />
em conta os usuários, os<br />
seus familiares, as instituições<br />
e os trabalhadores de saúde<br />
mental?<br />
O que têm a nos dizer hoje<br />
as neurociências, a psicanálise<br />
e a psiquiatria social sobre as<br />
psicoses e nossas velhas neuroses?<br />
O cotidiano atual nos<br />
traz novas formas de adoecer.<br />
Como a psiquiatria responde a<br />
essas novas reali<strong>da</strong>des psíquicas<br />
desvela<strong>da</strong>s?<br />
Esperamos que o congresso<br />
nos possibilite uma discussão<br />
proveitosa dessas questões tão<br />
fun<strong>da</strong>mentais para nossa prática.<br />
Que possamos extrair <strong>da</strong><br />
nossa experiência e <strong>da</strong> teoria<br />
que nos norteia novas contribuições.<br />
A ciência, a ética e<br />
a subjetivi<strong>da</strong>de são diretrizes<br />
fun<strong>da</strong>mentais para o advir de<br />
uma boa clínica, com um bom<br />
uso dos recursos terapêuticos –<br />
os psicofármacos, a Psicanálise<br />
e os dispositivos organizacionais,<br />
desde a internação até as<br />
oficinas profissionalizantes, e<br />
um bom destino para os achados<br />
neurobiológicos, trazendo<br />
a possibili<strong>da</strong>de de fazer surgir<br />
no paciente o sujeito e o ci<strong>da</strong>dão<br />
responsável.<br />
Assim, nosso congresso<br />
terá conseqüências e estará<br />
justificado.<br />
Psiquiatra/Psicanalista<br />
Coordenadora <strong>da</strong> Comissão de Publicações <strong>da</strong> <strong>AMP</strong><br />
Membro <strong>da</strong> Comissão Organizadora do XXIIICBP<br />
PÁGINA 27
Identificação<br />
Nome: Edifício Niemeyer<br />
Data de nascimento: Projeto aprovado em 20 de Outubro de 1954<br />
I<strong>da</strong>de: 50 anos<br />
Endereço: Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de, Belo Horizonte.<br />
História Clínica<br />
Por desgaste de tempo e condições adversas atribuí<strong>da</strong>s ao uso, poluição e suji<strong>da</strong>des<br />
em geral sofreu reforma em to<strong>da</strong> a parte externa na déca<strong>da</strong> de 1990. Não apresenta<br />
queixas à não ser quanto às garagens abertas. Sistema circulatório de água renovado<br />
em algumas uni<strong>da</strong>des devido a entupimentos e desgaste natural.<br />
História Pessoal<br />
Foi projetado pelo arquiteto Oscar de Niemeyer Soares Filho e foi aprovado pela<br />
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 20 de Outubro de 1954.<br />
Seu terreno situa-se na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de, projeta<strong>da</strong>, já na planta original <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de, para abrigar o Palácio do Governo e as Secretarias de Estado em localização<br />
nobre.<br />
No referido terreno foi construí<strong>da</strong> uma residência, assemelha<strong>da</strong> a um castelinho,<br />
cujo projeto aprovado na Prefeitura Municipal em 10 de Agosto de 1906, foi de responsabili<strong>da</strong>de<br />
técnica foi do arquiteto João Morandi.<br />
A região apresentava outras construções pareci<strong>da</strong>s, mas de maior imponência (algumas<br />
ain<strong>da</strong> estão preserva<strong>da</strong>s).<br />
Demolido o “Castelinho”, manteve-se o uso residencial <strong>da</strong> área, mas desta feita<br />
com a inovação de um novo modelo de habitação: apartamentos.<br />
Tem irmãos espalhados por várias ci<strong>da</strong>des brasileiras como São Paulo, São José<br />
dos Campos, Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis, Mendes, Belo Horizonte, Ouro Preto,<br />
Diamantina, Recife, Brasília, Belém etc.<br />
Outros irmãos encontram-se construídos em paises como Argélia, Congo, Cuba, Emirados<br />
Árabes, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Israel, Itália, Líbia e Venezuela.<br />
Apesar de ser conhecido pelo nome do pai, sente-se renegado por ele, já que não<br />
consta <strong>da</strong> lista de seus projetos nas publicações que reúnem a história <strong>da</strong> família.<br />
Tem plena consciência de sua importância para o desenvolvimento <strong>da</strong> arquitetura<br />
brasileira por seu partido inovador para a época em que foi projetado.<br />
Tem plena consciência dos espaços generosos que oferece em seu interior.<br />
Sabe <strong>da</strong> importância do espaço que ocupa em meio a construções de uso público.<br />
Promoveu a democratização do “sucesso” de morar na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de. Foi fun<strong>da</strong>mental<br />
na restrição <strong>da</strong> altura máxima de construções na Praça <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de.<br />
IMPRESSO<br />
PÁGINA 28<br />
LAUDO ADMISSIONAL<br />
Motivo: Investigação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de para FAZER PARTE DA HISTÓRIA DE BELO<br />
HORIZONTE, e de inspirar a MARCA do XXIII Congresso Brasileiro <strong>da</strong> ABP<br />
Arquiteta perita: Abigail Pinto de Carvalho, CREA MG 15 620/D<br />
História Familiar<br />
Seu pai ain<strong>da</strong> é vivo, lúcido e com plena capaci<strong>da</strong>de de trabalho aos 97 anos de i<strong>da</strong>de.<br />
Sua semelhança com seus irmãos extrapola o físico, são todos importantes para a<br />
arquitetura brasileira. Tem a mesma i<strong>da</strong>de do Colégio Estadual Central e <strong>da</strong> Biblioteca<br />
Pública, sua vizinha de Praça.<br />
Ele, e alguns de seus irmãos são protegidos pelas leis de tombamento e proteção<br />
do Patrimônio Histórico e Artístico Municipal, Estadual e Federal.<br />
A<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de (às mu<strong>da</strong>nças e tarefas)<br />
Permanece com o mesmo uso para o qual foi projetado mantendo também o “status”<br />
de morar-bem. Sofreu um pouco com o excesso de trânsito a sua volta, com a poluição<br />
sonora e ambiental, mas se valorizou com o bom estado de conservação <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong><br />
Liber<strong>da</strong>de e do seu entorno. Ele se relaciona bem com os imóveis de outras déca<strong>da</strong>s<br />
situados na vizinhança. Expectativa de permanecer com caráter importante por to<strong>da</strong> a<br />
vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Belo Horizonte.<br />
Avaliação do estado mental<br />
Aparência cui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Higienizado. Pensamento claro, lógico e formal. Memória preserva<strong>da</strong><br />
e com boa compreensão de seu papel na ci<strong>da</strong>de.<br />
Diagnósticos<br />
Inovador edifício de apartamentos<br />
Personali<strong>da</strong>de<br />
Conclusão<br />
O edifício tem condições de:<br />
1 - representar Belo Horizonte, na sua capaci<strong>da</strong>de de receber confortavelmente<br />
seus convi<strong>da</strong>dos, de modo moderno e prático em espaços generosos e com intimi<strong>da</strong>de<br />
2 - representar os mineiros na sua vocação insurgente, estabelecendo seu estilo<br />
inovador, mas sempre com a capaci<strong>da</strong>de de conviver bem com seus visinhos<br />
3 - representar os interesses <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria e <strong>da</strong> <strong>Associação</strong><br />
<strong>Mineira</strong> de Psiquiatria de criar para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria uma marca<br />
forte que diga do tema do Congresso marcado pela palavra diretriz e pela repetição<br />
<strong>da</strong> palavra novo. Diretrizes em psiquiatria: nova clínica, novas instituições, novas<br />
intervenções. Apostar na idéia de que todo conhecimento de constrói laminarmente e<br />
freqüentado por amplos espaços vazios que apontam para a existência de interrupções<br />
que permitem a novi<strong>da</strong>de num edifício que permanece como história de um trabalho.<br />
<strong>Publicação</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> <strong>Mineira</strong> de Psiquiatria<br />
Filia<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Associação</strong> Brasileira de Psiquiatria<br />
Av. João Pinheiro 161 Centro 30130-180<br />
Belo Horizonte Minas Gerais Tel.: (31) 3213-7457