o gauche - Jornal Rascunho
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147 • juLho_2012<br />
28<br />
A ficcionista<br />
godofredo de oliveira neto<br />
gravaÇÃo 6<br />
Anteontem você falou um<br />
pouco da família, dos<br />
teus pais, da mudança de<br />
Joinville, do gosto paterno<br />
pela marcenaria, pode falar mais<br />
sobre essa época?<br />
Não tenho muita coisa a dizer.<br />
Família super normal, um irmão<br />
enfermeiro que vive nos Estados<br />
Unidos desde adolescente, fez lá<br />
inclusive o Ensino Médio, trabalhando<br />
como cozinheiro para pagar<br />
os estudos. Pai torneiro-mecânico,<br />
mas marceneiro de paixão, como já<br />
disse outro dia, mãe motorista de<br />
táxi em São Paulo. Ela compunha o<br />
contingente de 180 mulheres exercendo<br />
essa profissão em Sampa.<br />
Doença dos dois. A dele bem grave,<br />
a dela foi primeiro nas pernas,<br />
reumatismo logo transformado em<br />
osteoporose, aposentadoria pequeninha,<br />
a dele menor ainda, câncer<br />
de intestino, pensão do INSS uma<br />
coisiquinha, os dois em casa impotentes,<br />
só eu, ainda estudante do<br />
Ensino Médio, para segurar a barra,<br />
vestibular para o CEFET, aprovada.<br />
E um segredinho: aprovada em primeiro<br />
lugar, mas não bota isso no livro,<br />
hoje não tem sentido para mim<br />
qualquer tipo de vaidade. E mais<br />
um: eleita pelos calouros a mais bonita<br />
do CEFET (mas também não<br />
bota não... rsrsrsrsrsrs).<br />
Algum problema de ordem familiar<br />
que te levou para caminhos<br />
assim diferentes da média e para o<br />
messianismo?<br />
Messianismo voltado para o<br />
social?<br />
O messianismo não é sempre<br />
assim, Nikki? E por que você volta<br />
sempre ao mesmo social, como se<br />
estivesse se defendendo de alguma<br />
coisa?<br />
Você é que está vidrado nesse<br />
tema. Os fiéis podem até imaginar<br />
leite nos rios e as montanhas virando<br />
chocolate! No fundo nem eu<br />
mesma acredito.<br />
Está bem, Nikki, falávamos dos<br />
eventuais problemas familiares.<br />
Nada que me lembre. Meu pai<br />
morreu quando eu cursava o primeiro<br />
ano do CEFET, minha mãe<br />
também se foi logo depois. Estava<br />
dormindo na cama com ela, uma<br />
noite chuvosa, com trovões. De manhã<br />
a mãe não acordou. Ficou ali estirada,<br />
ainda chovia e trovoava, tal<br />
fogos de artifício engasgados e roucos,<br />
trombetas de cemitério. Essa<br />
cena me marcou muito. Não que<br />
isso possa ter influenciado a minha<br />
vida recente. É bem verdade que a<br />
mãe tinha aspirações como qualquer<br />
um, gostava de dividir comigo<br />
esses sonhos. Coisas triviais. Morar<br />
numa casa grande com jardim, outras<br />
mais bizarras, como ser motorista<br />
de táxi em Nova York e por aí<br />
afora. Morreu frustrada.<br />
Vocês viviam em condições<br />
precárias?<br />
O nosso apartamento de Moema,<br />
em São Paulo, era minúsculo e<br />
escuro, não batia sol nunca, a gente<br />
deixava a luz acesa em permanência.<br />
Minha mãe andou flertando<br />
com algumas religiões, se interessou<br />
pelo culto de Isis, do Egito, falava<br />
de um mundo de deusas. Mas<br />
sempre afirmou que o humanismo<br />
transmitido pelo cristianismo e pelo<br />
islamismo devia ser mostrado pelas<br />
esquinas da cidade.<br />
Você saía com ela pregando<br />
pelas ruas de São Paulo?<br />
Às vezes aos domingos ia com<br />
ela ao Parque da Consolação pregar,<br />
sim. Mamãe levava a Bíblia e o Alcorão.<br />
Lia fragmentos dos dois textos<br />
em voz alta, aquilo me constrangia<br />
um pouco. As pessoas riam, só uns<br />
perdidões ouviam as frases rebuscadas,<br />
os excertos me pareciam difíceis<br />
de entender. Mamãe insistia em<br />
ilustração: bruno Schier<br />
dizer minha filha, parágrafos atrasados<br />
dos dois livros foram acrescentados<br />
artificialmente por loucos<br />
através dos séculos e acabaram por<br />
fazer um estrago danado na história<br />
da humanidade! Ela só recitava os<br />
trechos com evidente mensagem<br />
humanista e apagava com pilot preto<br />
as passagens consideradas eticamente<br />
abomináveis.<br />
Mas não pode significar que<br />
ela preferia as partes fundamentais<br />
do texto?<br />
Minha mãe fundamentalista!<br />
Rsrsrsrsrsrs... nem pensar! Ao contrário,<br />
tirava as partes bobas da narrativa<br />
e deixava as que difundiam<br />
maior fraternidade e maior humanismo<br />
entre homens e mulheres.<br />
E o teu pai?<br />
Meu pai trabalhava das cinco<br />
da manhã às dez da noite, inclusive<br />
sábados e domingos. Esculpia<br />
santos e figuras do folclore gaúcho.<br />
Era de Alegrete, no Rio Grande do<br />
Sul. Tinha muitos fregueses. Uma<br />
vez esculpiu um São Jorge matando<br />
o dragão num pedaço enorme de<br />
madeira trazido por nós três de uma<br />
praça de São Paulo. A estátua ficou<br />
exposta na entrada do pequeno<br />
apartamento, sobre a cômoda onde<br />
também reinava a televisão. Quando<br />
a gente via o noticiário ou filmes de<br />
madrugada, o São Jorge nos acompanhava.<br />
Mamãe sempre reclamava<br />
por papai não haver esculpido personagens<br />
negros. Um dia ele trouxe<br />
um Preto Veio com um enorme<br />
cachimbo na boca. Essa peça esteve<br />
dois anos com uma parenta da mamãe<br />
em Bertioga, mamãe vinha de<br />
uma família daquela região. Consegui<br />
reaver e hoje os dois estão aqui<br />
comigo, ali em cima da pedra, como<br />
você já viu no primeiro dia.<br />
Como você sabe que eu vi?<br />
Você nem se deu conta que<br />
permaneceu quase uma hora hipnotizado<br />
pelos olhos do São Jorge e<br />
do Preto Veio?<br />
É, se você viu deve ser... rsrsrs.<br />
Essa foi a minha vida em casa,<br />
nada de particularmente marcante.<br />
Um dia-a-dia medíocre. O CEFET<br />
me retirou do apartamento feio e<br />
escuro e me jogou no mundo. Ali<br />
também descobri pela primeira vez<br />
a paixão. Tive um caso com um rapaz<br />
polaco de Curitiba, desses caras<br />
desejados por todas as mulheres.<br />
Levei a sério, fiz planos de casar, ter<br />
filhos, morar numa casa com jardim<br />
como sonhava minha mãe. Saíamos<br />
juntos da Faculdade, freqüentávamos<br />
cinema e teatro, ele era fã de<br />
música clássica, íamos a concertos.<br />
Foi com ele que aprendi a gostar de<br />
ópera e música clássica. A cada saco<br />
de pipoca dividido correspondia um<br />
longo beijo salgado e molhado, podia<br />
ser em qualquer lugar, a gente<br />
pouco se importava com as pessoas.<br />
Paixão pra valer dos dois lados. Mas<br />
o André, fui saber depois, era bipolar.<br />
Acabei por descobrir que batia<br />
nas namoradas, às vezes era possuído<br />
por um ódio inexplicável.<br />
Você chegou a testemunhar<br />
cenas de violência da parte dele?<br />
Eu tinha presenciado realmente<br />
uma cena estranha que me<br />
encucou. Foi a partir dela que tentei<br />
descobrir alguma coisa sobre o meu<br />
rapaz loiro de rosto angelical. Aquela<br />
cena foi dantesca, mas nunca podia<br />
imaginar que a personalidade<br />
dele contivesse tal agressividade.<br />
Foi em lugar público?<br />
Foi num encontro no Ibirapuera,<br />
em São Paulo. Um menino de<br />
uns quinze anos ou dezesseis ficou<br />
olhando insistentemente para mim,<br />
uma insistência fora do normal.<br />
Notei mas não disse nada. O André<br />
numa hora pulou no cara, agarrou<br />
o seu pescoço e enfiou a porrada<br />
na cara do pobre guri. Bateu ainda<br />
com força no estômago, na cabeça,<br />
nas costas, não parava mais, parecia<br />
outra pessoa, como possuído pelo<br />
demônio. Umas dez pessoas vieram<br />
tentar apartar a briga. Nem briga<br />
era, o menino não reagiu uma vez<br />
sequer. Foi horrível, o rapaz ficou<br />
caído, todo ensangüentado.<br />
Deu polícia?<br />
Deu. Os guardas levaram o<br />
André para a delegacia, uma ambulância<br />
veio logo e acudiu o menino.<br />
Fui atrás do carro da polícia de táxi.<br />
Na delegacia André continuava um<br />
desconhecido para mim, vinha de<br />
outro mundo, respondia as perguntas<br />
sem olhar para ninguém, as respostas<br />
não tinham nexo. Acho que<br />
o delegado pensou esse cara não<br />
bate bem, é pirado. Ali não era o<br />
lugar para ele. Não havia nada a fazer.<br />
Além do mais o rádio da polícia<br />
alertava com insistência sobre um<br />
tumulto de grandes proporções na<br />
Avenida Paulista. Acabaram mandando<br />
o André embora com empurrões<br />
nas costas. O caso ficou por<br />
isso mesmo. O menino, soubemos<br />
depois, era um conhecido batedor<br />
de carteiras da região dos Jardins e