o gauche - Jornal Rascunho
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147 • juLho_2012<br />
interCÂmbios fiCCionais : : Carola SaaVedra<br />
o artista enQuanto Künstler<br />
QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S<br />
O<br />
que faz de um escritor<br />
um artista?, ou nesse<br />
mesmo âmbito, o que<br />
tira um texto de sua função<br />
mais básica (comunicar alguma<br />
coisa) e o transforma em literatura?<br />
Trata-se de um conhecimento<br />
transmissível? Ou seja, é possível<br />
ensinar alguém a ser um artista?<br />
Comecemos com o significado da<br />
palavra. Segundo o dicionário, o<br />
vocábulo “artista” tem uma longa<br />
série de significados, entre eles: 1)<br />
aquele que estuda ou se dedica às<br />
belas artes, 2) aquele que é dotado<br />
de habilidades ou particularidades<br />
físicas especiais e as exibe em circos,<br />
feiras, etc., 3) aquele que interpreta<br />
papéis em teatro, cinema, televisão<br />
ou rádio, 4) operário ou artesão que<br />
trabalha em determinados ofícios.<br />
Em outras palavras, artista é um<br />
termo genérico que inclui as mais<br />
diversas atividades e profissões, o<br />
que não deixa de estar correto. Porém,<br />
na realidade, não é essa a concepção<br />
de artista que faz de alguém<br />
um escritor. Em alemão, que é um<br />
idioma sempre exato e minucioso,<br />
utiliza-se a palavra Künstler. Mas<br />
o que é um Künstler? O dicionário<br />
alemão é excepcionalmente pouco<br />
claro ao dar o significado, Künstler<br />
é alguém que produz/cria obras de<br />
arte. Claro, poderíamos nos perguntar,<br />
afinal, o que é uma obra de<br />
arte, o dicionário alemão continua<br />
saindo pela tangente: obra de arte é<br />
o produto de um fazer artístico. Ou<br />
seja, Künslter seria mais ou menos<br />
o que nosso dicionário (em português)<br />
define como aquele que é<br />
“exímio no desempenho de seu ofício”,<br />
o que não resolve muita coisa,<br />
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SESC_06_12_290x260mm.pdf 1 19/06/12 17:41<br />
já que ser exímio não significa criar<br />
uma obra de arte.<br />
Enfim, todas essas definições<br />
de dicionário (que pouco definem)<br />
servem apenas para demonstrar<br />
justamente isso, que quando se<br />
trata de arte, todo julgamento é<br />
subjetivo, varia de acordo com<br />
a pessoa, a cultura, a época, etc.<br />
Sendo assim, poderíamos pensar,<br />
ótimo, então arte é tudo aquilo que<br />
eu disser que é arte (o que fizeram<br />
de certa forma artistas como Marcel<br />
Duchamp e Joseph Beuys). Em<br />
termos mais radicais, talvez sim, o<br />
que não significa que o assunto esteja<br />
esgotado, pois mesmo sem solução,<br />
os séculos passam e continuamos<br />
investigando a mesma coisa,<br />
esse algo enigmático que faz com<br />
que um livro ou uma obra qualquer<br />
se abra em efeitos e discursos e significados<br />
que escapam ao próprio<br />
texto, à própria obra, e, por conseguinte,<br />
ao próprio autor.<br />
Mas voltando à palavra Künstler,<br />
que pouco teria a ver com<br />
nossa definição de artista, já que<br />
não bastaria com ser ator para ser<br />
um Künstler, mas sim um ator que<br />
transforma a sua interpretação em<br />
arte. Não bastaria apenas desenhar,<br />
pintar, criar instalações. O mesmo<br />
valendo para qualquer outra profissão.<br />
Ou seja, voltando para a literatura,<br />
o Künstler transforma um livro,<br />
que poderia ser sobre qualquer<br />
assunto, em literatura. Um texto<br />
que não se esgota em sua primeira<br />
(nem terceira, nem quarta) interpretação.<br />
E que processo seria esse,<br />
poderíamos nos perguntar, que<br />
mistério seria esse que ultrapassando<br />
o domínio da técnica, trans-<br />
formaria um texto em outra coisa?<br />
Tentar compreender esse mistério<br />
seria voltar à velha questão do que<br />
é arte, questão insolúvel, claro, mas<br />
talvez seja possível fazer algumas<br />
aproximações. Talvez o mistério<br />
não esteja no saber, no domínio da<br />
técnica (certamente não está), mas<br />
numa espécie de “olhar do escritor”<br />
para o mundo e para si mesmo. O<br />
artista é de certa forma alguém que<br />
dá um passo para o lado, e vê alguma<br />
coisa, ou vê as mesmas coisas<br />
de uma forma inesperada, é alguém<br />
que diante dessa experiência de alteridade,<br />
aponta e diz, olhe, e compartilha<br />
com os outros a surpresa.<br />
E não se trata apenas do escritorfilósofo<br />
em sua torre de marfim, ou<br />
de uma espécie de sábio, iluminado<br />
por musas ou criaturas do gênero.<br />
Pensemos em escritores que viveram<br />
bem próximos do “mundo exterior”,<br />
ou talvez até arrebatados<br />
por ele, como é o caso de Cervantes,<br />
por exemplo, que viveu uma vida<br />
digna de um filme de Hollywood.<br />
Entre as mais diversas aventuras<br />
estão a batalha de Lepanto, na qual<br />
lutou e, ao ser atingido, perdeu os<br />
movimentos da mão esquerda (o<br />
que lhe deu o apelido de “el manco<br />
de Lepanto”), e a captura por corsários<br />
em Argel, onde permaneceu<br />
prisioneiro durante cinco anos, período<br />
no qual planejou e executou<br />
quatro tentativas de fuga, todas<br />
frustradas. Cervantes, como tantos<br />
outros aventureiros, poderia ter<br />
voltado para seu país de origem e<br />
escrito sobre o que viu sem que o<br />
texto adquirisse por isso um valor<br />
literário, ou o que é mais comum,<br />
simplesmente não ter escrito nada.<br />
O que faz com que o Quixote seja<br />
o Quixote é a forma como Cervantes<br />
aborda a experiência de vida,<br />
ou seja, é o seu olhar para o mundo<br />
(um olhar muitas vezes irônico,<br />
e inesperado e pessimista). É esse<br />
olhar do escritor que, aliado claro<br />
ao domínio da técnica, faz com que<br />
séculos mais tarde continuemos<br />
lendo e comentando o Quixote.<br />
Podemos então retomar uma<br />
das perguntas do início, é possível<br />
ensinar alguém a escrever literatura?<br />
Uma questão muito em<br />
voga, já que cada vez mais proliferam<br />
oficinas e cursos de formação<br />
de escritores. No fundo seria<br />
como se nos perguntássemos, é<br />
possível ensinar alguém a olhar<br />
para o mundo, para o outro, para<br />
si mesmo?, e mais especificamente,<br />
é possível ensinar alguém a<br />
deslocar esse olhar, a trazer para<br />
o texto algo que nos surpreenda, e<br />
principalmente, que não se esgote<br />
na própria leitura? É possível ensinar<br />
alguém a ler? Certamente não,<br />
não há fórmulas. O que não significa<br />
que não seja possível apontar<br />
caminhos. Porque, se por um<br />
lado, o artista (Künstler) não surge<br />
através da técnica apenas, por<br />
outro, sem ela, o olhar perde-se no<br />
mundo isolado de cada indivíduo.<br />
É essa junção técnica/arte que, ao<br />
nos depararmos hoje com as páginas<br />
do Quixote, nos permite ter<br />
acesso a algo que, mais do que a<br />
história de alguém que enlouquece<br />
e se imagina cavalheiro andante, é<br />
o olhar do autor para um mundo<br />
que se extinguia, e continua se extinguindo<br />
(outros mundos, outros<br />
homens) a cada leitura.