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1 A IDEIA DE JUSTIÇA - Livraria Almedina

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A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

1


2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong>


AMARTYA SEN<br />

A Ideia de Justiça<br />

A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

3


4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

AUTOR<br />

AMARTYA SEN<br />

TÍTULO ORIGINAL<br />

The Idea of Justice<br />

Copyright © 2009 by Amartya Sen<br />

First published by Penguin Press an imprint of Penguin Books Ltd, 2009<br />

TRADUÇÃO<br />

Nuno Castello-Branco Bastos<br />

REVISÃO<br />

Madalena Requixa<br />

EDITOR<br />

EDIÇÕES ALMEDINA. SA<br />

Av. Fernão Magalhães, n.º 584, 5.º Andar<br />

3000-174 Coimbra<br />

Tel.: 239 851 904<br />

Fax: 239 851 901<br />

www.almedina.net<br />

editora@almedina.net<br />

<strong>DE</strong>SIGN <strong>DE</strong> CAPA<br />

FBA.<br />

PRÉ-IMPRESSÃO | IMPRESSÃO | ACABAMENTO<br />

G.C. GRÁFICA <strong>DE</strong> COIMBRA, LDA.<br />

Palheira – Assafarge<br />

3001-453 Coimbra<br />

producao@graficadecoimbra.pt<br />

Outubro, 2010<br />

<strong>DE</strong>PÓSITO LEGAL<br />

317468/10<br />

Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação<br />

são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).<br />

Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer<br />

processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita<br />

e passível de procedimento judicial contra o infractor.<br />

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação<br />

SEN, Amartya, 1933-<br />

A ideia de justiça<br />

ISBN 978-972-40-4324-1<br />

CDU 330<br />

340<br />

304


A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Em memória de<br />

JOHN RAWLS<br />

5


6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong>


ÍNDICE<br />

A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Prefácio 9<br />

Agradecimentos 25<br />

Introdução – Uma Perspectiva da Justiça 35<br />

PARTE I<br />

As Exigências da Justiça<br />

1. Razão e Objectividade 71<br />

2. Rawls e para lá de Rawls 97<br />

3. Instituições e Pessoas 125<br />

4. Voz e Escolha Social 141<br />

5. Imparcialidade e Objectividade 173<br />

6. Imparcialidade Fechada e Aberta 185<br />

PARTE II<br />

Formas de Racionalidade<br />

7. Posição, Relevância e Ilusão 223<br />

8. A Racionalidade e os Outros 247<br />

9. A Pluralidade das Razões Imparciais 273<br />

10. Realizações, Consequências e Agência 291<br />

PARTE III<br />

Os Materiais da Justiça<br />

11. Vidas, Liberdades e Capacidades 311<br />

12. Capacidades e Recursos 345<br />

13. Felicidade, Bem-Estar e Capacidades 365<br />

14. Igualdade e Liberdade 391<br />

7


8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

PARTE IV<br />

Argumentação Pública e Democracia<br />

15. A Democracia como Racionalidade Pública 425<br />

16. A Prática da Democracia 447<br />

17. Direitos Humanos e Imperativos Globais 469<br />

18. A Justiça e o Mundo 509<br />

Notas 543<br />

Índice Onomástico 571<br />

Índice de Matérias 581


PREFÁCIO<br />

A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

«No pequeno mundo em que as crianças vivem a sua existência»,<br />

diz Pip no livro Grandes Esperanças, de Charles Dickens,<br />

“nada há que seja mais finamente percebido e sentido do que a<br />

injustiça» 1 . Quer-me realmente parecer que Pip tem toda a razão:<br />

depois do seu encontro humilhante com Estella, acorreu-lhe<br />

vivíssima a memória de como, enquanto criança, ele fora alvo de<br />

uma «coacção caprichosa e violenta» às mãos da sua própria irmã.<br />

Mas esta aguda percepção da injustiça evidente é algo que também<br />

acontece nos seres humanos adultos. O que nos toca, e é razoável que<br />

o faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um<br />

estado de completa justiça – coisa de que poucos têm esperança –,<br />

mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamente<br />

remediáveis e que temos vontade de eliminar.<br />

Na nossa vida do dia-a-dia, isto torna-se muito claro diante de<br />

iniquidades ou subjugações de que possamos ser alvo e das quais<br />

tenhamos boas razões para nos podermos ressentir; mas é algo que<br />

também verificamos quando procedemos a um mais amplo diagnóstico<br />

da injustiça que se pode encontrar nesse mundo mais vasto em<br />

que todos vivemos. Parece razoável admitir que nem os parisienses<br />

teriam invadido a Bastilha, nem Gandhi teria desafiado esse império<br />

em que o sol não se punha, nem Martin Luther King teria combatido<br />

a supremacia branca nessa land of the free and the home of the<br />

brave nt , se não fosse a sua percepção da existência de injustiças<br />

evidentes que podiam ser vencidas. Não se tratava para eles de tentar<br />

conseguir um mundo perfeitamente justo (ainda que, em qualquer<br />

dos casos, tenha chegado a haver um qualquer acordo sobre como<br />

nt Nota do tradutor. Extraído do hino dos Estados Unidos da América: «país dos<br />

homens livres e terra dos bravos».<br />

9


1 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

deveria ser um tal mundo), mas, o que, isso sim, já queriam era<br />

remover as injustiças evidentes na medida do que lhes fosse possível.<br />

A identificação da injustiça superável não é somente aquilo que<br />

nos leva a reflectir sobre a justiça e a injustiça, é, a mais disso, algo<br />

de central para a teoria da justiça, e é esse um ponto que pretendo<br />

demonstrar neste livro. Na investigação que aqui apresentamos, o<br />

diagnóstico da injustiça aparecerá amiúde como ponto de partida<br />

para discussões críticas 2 . Todavia – é o que logo nos podemos perguntar<br />

– se este é um ponto de partida razoável, porque não poderá<br />

ser também um bom ponto de chegada? Que necessidade há de ir<br />

para além do nosso sentido de justiça e injustiça? Porquê a necessidade<br />

de possuirmos uma teoria da justiça?<br />

Entender o mundo é sempre muito mais do que apenas registar<br />

as nossas percepções imediatas. Entender implica iniludivelmente<br />

uma acção discursiva, um raciocínio. Temos de “ler” o que sentimos<br />

e o que temos a impressão de ver, e, depois, perguntar o que é que<br />

indicam tais percepções e como haveremos de as ter na devida conta<br />

sem, ao mesmo tempo, sermos por elas sobrepujados ou arrebatados.<br />

Uma destas questões relaciona-se com a fiabilidade das nossas sensações<br />

ou impressões. Um sentimento ou sentido de justiça poderia<br />

funcionar como um sinal que nos move, mas um sinal exige sempre<br />

um exame crítico, e toda a conclusão que se baseie sobretudo em<br />

sinais há-de pedir um determinado grau de escrutínio relativamente à<br />

respectiva solidez. Adam Smith tinha a convicção da importância dos<br />

sentimentos morais, mas nem por isso se viu impedido de procurar<br />

uma “teoria dos sentimentos morais” nem de insistir em que o sentimento<br />

de uma conduta errónea devesse ser examinado criticamente<br />

por meio de um escrutínio discursivo, a fim de se descobrir se poderia<br />

vir a ser a base de uma condenação sustentável. E uma semelhante<br />

necessidade de escrutínio também se aplicará aos casos em que o<br />

que sintamos é uma inclinação que nos move a louvar uma pessoa<br />

ou uma coisa * .<br />

* O clássico de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, foi publicado há<br />

exactamente 250 anos, em 1759, e a sua última edição revista – a sexta – em 1790. Na<br />

introdução à edição comemorativa do aniversário de A Teoria dos Sentimentos Morais<br />

(Nova Iorque, Penguin Books, 2009), tive a oportunidade de discutir a natureza do comprometimento<br />

moral e político de Adam Smith e o modo como ele continua a ser relevante no<br />

mundo contemporâneo.


PREFÁCIO<br />

Temos também de nos perguntar que tipos de raciocínio deverão<br />

ser adoptados quando quisermos avaliar conceitos éticos e políticos<br />

como os de justiça e injustiça. De que maneira poderão ser<br />

objectivos um diagnóstico da injustiça ou a identificação de tudo<br />

aquilo que a possa reduzir ou eliminar? Será que isso exigirá um<br />

particular tipo de imparcialidade, como, por exemplo, o desapego<br />

dos próprios interesses já adquiridos? Será que isso exigirá também<br />

um reexame de certas atitudes, mesmo que estas não sejam relativas<br />

a interesses já adquiridos, reflectindo porém alguns pré-juízos ou<br />

preconceitos locais, sendo que estes poderão não conseguir sobreviver<br />

ao confronto argumentado com outras atitudes que já não se vejam<br />

restringidas pelo mesmo tipo de “paroquialismo” (parochialism nt )?<br />

Que papel hão-de desempenhar a racionalidade e a razoabilidade no<br />

processo que nos leva a entender as exigências da justiça?<br />

Estas preocupações e também algumas outras questões de carácter<br />

geral serão vistas nos primeiros dez capítulos, após o que tratarei<br />

de passar para temas de tipo aplicativo envolvendo uma avaliação<br />

crítica dos fundamentos que servem de base aos juízos sobre a justiça<br />

(sejam aqueles liberdades, capacidades, recursos, a felicidade, o<br />

bem-estar ou outros), a especial relevância de certos considerandos<br />

que figurarão sob o título geral de igualdade e liberdade, mas ainda a<br />

evidente conexão entre a prossecução da justiça e a busca da democracia,<br />

esta, enquanto é vista como um (regime e modo de) governo<br />

pela discussão, e ainda a natureza, viabilidade e alcance das reivindicações<br />

em prol dos direitos humanos.<br />

UMA TEORIA, MAS <strong>DE</strong> QUE TIPO?<br />

O que aqui se apresenta é uma teoria da justiça num sentido muito<br />

lato. O seu escopo é mais o de clarificar como havemos de tratar as<br />

questões da amplificação ou reforço da justiça e da eliminação da<br />

injustiça, e menos o de oferecer soluções para as questões que se<br />

nt Nota do tradutor. De paróquia, expressão geral aplicável a qualquer tipo de tendência<br />

acrítica para a protecção de interesses locais, nacionais ou regionais. Preferimos ficar<br />

mais próximos da letra, pois, embora pudesse corresponder à expressão “provincianismo”,<br />

o campo semântico de ambas não é propriamente coincidente.<br />

11


1 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

levantam acerca da natureza da justiça perfeita. Neste ponto, ela<br />

difere claramente das teorias da justiça que são mais preeminentes na<br />

filosofia moral e política contemporâneas. Como se dirá mais de<br />

espaço na Introdução que se segue, há sobretudo três diferenças que<br />

merecem uma atenção específica.<br />

Primeiro: uma teoria da justiça que possa servir de base para<br />

uma racionalidade prática terá de incluir meios para ajuizar de como<br />

reduzir a injustiça e incrementar a justiça, em vez de apenas procurar<br />

uma caracterização das sociedades perfeitamente justas – prática esta<br />

que é traço assaz dominante em muitas das teorias da justiça da<br />

hodierna filosofia política. Os dois procedimentos que servem, respectivamente,<br />

para identificar quais sejam os arranjos ou combinações<br />

de factores perfeitamente justos e para determinar se uma particular<br />

alteração social traria um incremento de justiça, se é certo que<br />

têm entre si ligações motivacionais, são porém analiticamente<br />

disjuntos. Esta última questão, sobre a qual se debruça este trabalho,<br />

é central para a tomada de decisões acerca das instituições, comportamentos<br />

e outros determinantes da justiça, sendo certo que o modo<br />

pelo qual se chega a tais decisões não pode deixar de ser crucial para<br />

uma teoria da justiça que pretenda ser um guia para a razão prática<br />

no momento em que a mesma discorre sobre o que se deve fazer.<br />

Quanto à convicção de que esta operação de comparação não se<br />

pode levar por diante sem primeiro proceder à identificação de quais<br />

sejam as exigências da justiça perfeita, pode-se demonstrar ser ela<br />

totalmente incorrecta (ponto que será tratado no capítulo quarto,<br />

“Voz e Escolha Social”).<br />

Segundo: conquanto possamos resolver com sucesso muitas das<br />

questões comparativas relativas à justiça – sobre as quais se pode<br />

chegar a acordo discorrendo a partir de um confronto de argumentos<br />

racionais –, pode bem acontecer que haja outras comparações em<br />

que pontos de vista conflituantes fiquem à míngua de uma completa<br />

resolução. Pretende-se aqui sustentar que é possível existirem diferentes<br />

razões de justiça, cada uma delas conseguindo sobreviver ao<br />

teste de um escrutínio crítico e cada uma delas conduzindo, ainda<br />

assim, a conclusões divergentes * . De pessoas com experiências e<br />

* A importância da pluralidade valorativa foi extensamente – e poderosamente –<br />

explorada por Isaiah Berlin e Bernard Williams. As pluralidades podem sobreviver dentro


PREFÁCIO<br />

tradições diferentes podem emanar argumentos dotados de razoabilidade<br />

que seguem em direcções conflituantes, mas podem provir<br />

outrossim do interior de uma determinada sociedade, e, aliás, nada<br />

impede que provenham de uma mesma pessoa * .<br />

Ao lidar com pretensões conflituantes, impõe-se a necessidade<br />

de uma discussão assente em argumentos de razoabilidade, seja consigo<br />

próprio seja com os demais, e não tanto aquilo que poderíamos<br />

chamar de “tolerância descomprometida” (“desengaged toleration”),<br />

com o conforto de uma solução preguiçosa do género: «o senhor tem<br />

razão para a sua comunidade e eu tenho razão para a minha».<br />

O raciocínio e o escrutínio imparcial são coisas essenciais. Contudo,<br />

até mesmo depois do mais vigoroso dos exames críticos, poderão<br />

sobrar ainda argumentos conflituantes e concorrentes que não foram<br />

eliminados pelo escrutínio imparcial. No texto que segue, terei algo<br />

mais a dizer sobre isto, mas quero aqui enfatizar que de modo algum<br />

ficam o raciocínio e o escrutínio prejudicados pela possibilidade de<br />

haver prioridades concorrentes que venham a sobreviver, não obstante<br />

o seu confronto com a razão: esta pluralidade com que, no<br />

final, nos veremos a braços há-de ser o resultado do exercício da<br />

razão e não de uma abstenção do mesmo.<br />

Terceiro: a presença de injustiças remediáveis pode muito bem<br />

estar relacionada com transgressões comportamentais, mais ainda do<br />

que com deficiências institucionais (a memória que, em Grandes<br />

Esperanças, Pip tinha daquela sua irmã coactiva era isso mesmo, e<br />

não uma dedução de acusação contra a família como instituição). Em<br />

última análise, a justiça está ligada à maneira como vai correndo a<br />

vida que as pessoas vivem e não apenas à natureza das instituições<br />

de uma mesma comunidade, ou até numa mesma pessoa, e nem por isso têm de ser<br />

necessariamente o reflexo de valores de “comunidades diferentes”. No entanto, as variações<br />

dos valores entre pessoas de diferentes comunidades também poderão ser significativas<br />

(ponto que foi debatido de vários modos nas importantes contribuições de Michael Walzer,<br />

Charles Taylor e Michael Sandel, entre outros).<br />

* Marx, por exemplo, invocava a possibilidade quer da eliminação da exploração do<br />

trabalho (relacionada com o facto de ser ajustado que se obtenha aquilo que pode ser visto<br />

como produto do próprio esforço) quer de uma afectação de recursos de acordo com as<br />

necessidades (relacionada com as exigências da justiça distributiva). Mais tarde, vê-lo-íamos<br />

a discutir o conflito inarredável que subsiste entre estas duas prioridades; seria no seu<br />

último trabalho substancial: A Crítica do Programa de Gotha (1875).<br />

13


1 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

que as rodeiam. Em contrapartida, e contrastando com isso, muitas<br />

das principais teorias da justiça concentram-se abundante e principalmente<br />

em como chegar a fundar “instituições justas”, deixando para<br />

um papel derivado e subsidiário os aspectos comportamentais. Seja<br />

um exemplo: a perspectiva de John Rawls que via a “justiça como<br />

fairness” nt e que é merecidamente aclamada, fornece-nos um conjunto<br />

único de “princípios de justiça” preocupados exclusivamente com a<br />

edificação de “instituições justas” (que viessem a constituir a estrutura<br />

básica da sociedade”), ao mesmo tempo que reclamava das pessoas<br />

um comportamento que se conformasse inteiramente com as exigências<br />

de funcionamento dessas mesmas instituições 3 . Na perspectiva<br />

da justiça que aqui se apresenta, defender-se-á a existência de algumas<br />

inadequações cruciais numa perspectiva que opte por dedicar<br />

uma atenção dominante às instituições (com o comportamento humano<br />

a ser tomado como necessariamente conforme), em detrimento de<br />

se concentrar nas vidas que as pessoas conseguem ir construindo.<br />

Ora, pôr o foco de atenção nas vidas reais, quando se trata de avaliar<br />

da existência da justiça, é algo que trará consigo muitas implicações<br />

de longo alcance no que toca à natureza e ao alcance da ideia de<br />

justiça * .<br />

A diferente perspectiva que, enquanto ponto de viragem na<br />

teoria da justiça, se pretende explorar neste trabalho, irá ter um<br />

impacto directo no campo da filosofia política e moral, como tentarei<br />

mostrar. Além disso, também tentarei pôr em confronto a relevância<br />

dos argumentos que aqui se apresentam com algumas das posições<br />

que hoje se vão tomando no campo do direito, da economia e da<br />

política; e, se estivéssemos dispostos a ser optimistas, eles até poderiam<br />

chegar a mostrar a sua pertinência no âmbito de debates e decisões<br />

nt Justice as Fairness, expressão que é também o título de uma obra deste autor e que<br />

poderíamos traduzir, como já fizemos acima, por justeza e/ou lisura (fairness), mas empregaremos<br />

a já costumada tradução de equidade.<br />

* A recente investigação em torno do que se veio a chamar de “capability perspective”<br />

(“perspectiva da capacidade ou das capacidades”) relaciona-se directamente com o entendimento<br />

que vê a justiça à luz das vidas humanas e das liberdades que as pessoas possam<br />

exercer por si mesmas. Vide Martha Nussbaum e Amartya Sen (coord.), The Quality of<br />

Life, Oxford, Clarendon Press, 1993. O alcance e as limitações de uma tal perspectiva serão<br />

analisados nos Capítulos 11-14.


PREFÁCIO<br />

sobre políticas a seguir em concreto e programas de actuação de tipo<br />

prático * .<br />

O recurso a uma abordagem comparativa, indo muito além da<br />

limitada – e limitante – moldura do contrato social, pode-nos trazer<br />

aqui um contributo valioso. Com efeito, ver-nos-emos ocupados a<br />

proceder a comparações que tenham em conta a progressão da justiça,<br />

seja pela luta contra a opressão (como no caso da escravatura ou<br />

da subjugação das mulheres), seja pelo protesto contra um sistemático<br />

abandono em termos de assistência médica (devido à ausência<br />

de instalações e recursos médicos em várias partes de África ou da<br />

Ásia, ou à inexistência de uma assistência médica universal na maioria<br />

dos países no mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos), seja<br />

ainda pelo repúdio da admissibilidade da tortura (que continua a ser<br />

empregue no mundo contemporâneo com uma notável frequência –<br />

e, por vezes, por pilares do cenário institucional mundial), ou pela<br />

rejeição da silenciosa tolerância das situações crónicas de fome (assim<br />

por exemplo, na Índia, apesar de se ter conseguido abolir as<br />

grandes carestias) † . Suceder-nos-á não poucas vezes darmos a nossa<br />

anuência ao facto de que algumas das mudanças previstas (tais como<br />

a abolição do apartheid, para nos valermos de um exemplo doutro<br />

tipo) irão diminuir a injustiça, mas ainda que todas essas mudanças<br />

previamente acordadas se venham a aplicar, o resultado que teremos<br />

nunca há-de ser algo a que possamos chamar justiça perfeita. Tanto<br />

quanto o discurso racional teorético, também as preocupações práticas<br />

* Seja, por exemplo, o caso do que chamarei de “imparcialidade aberta”, a qual, na<br />

interpretação da justiça das leis, admite a presença de vozes que venham de perto ou de<br />

longe (não apenas para fazer jus a um tratamento justo e equitativo dos demais, mas também<br />

para que assim melhor se possa evitar o fenómeno do “paroquialismo” (parochialism),<br />

ponto já tratado por Adam Smith na sua obra Teoria dos Sentimentos Morais e nas suas<br />

Lições de Jurisprudência); a defesa de uma tal “imparcialidade aberta” terá uma relevância<br />

directa no âmbito de alguns dos debates que têm hoje lugar no Supremo Tribunal dos<br />

Estados Unidos, como veremos no capítulo que encerra este livro (Capítulo 18).<br />

† A 11 de Agosto de 2008, por convite do seu presidente, Somath Chatterjee, tive a<br />

honra de me dirigir ao parlamento indiano a propósito do tema “As Exigências da Justiça”,<br />

tendo essa sido a primeira das “Lições em Memória de Hiren Mukerjee”, que se destinam a<br />

ser um acontecimento anual do parlamento. A versão integral do discurso encontra-se<br />

disponível numa brochura impressa pelo parlamento indiano, encontrando-se publicada uma<br />

versão abreviada in The Little Magazine, vol. 8, tomos 1 e 2 (2009), sob o título “What<br />

Should Keep Us Awake at Night”.<br />

15


1 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

parecem vir exigir uma ruptura radical no tipo de análise da justiça<br />

que se tem feito.<br />

ARGUMENTAÇÃO PÚBLICA nt , <strong>DE</strong>MOCRACIA<br />

E <strong>JUSTIÇA</strong> MUNDIAL<br />

É certo a perspectiva da justiça que aqui se apresentará não tratará de<br />

definir os princípios da justiça em termos de instituições, mas antes<br />

em ligação com as vidas e liberdades das pessoas envolvidas; todavia,<br />

as instituições não podem deixar de desempenhar um papel<br />

instrumental significativo na busca da justiça. A par dos determinantes<br />

de comportamento individual e social, uma escolha adequada das<br />

instituições também há-de ter um papel de importância crítica na<br />

empresa de ampliação e reforço da justiça. As instituições hão-de ser<br />

tidas em linha conta de várias maneiras. Elas podem contribuir directamente<br />

para as próprias vidas das pessoas, na medida em que elas<br />

tentam conduzi-las de acordo as coisas a que por algum motivo dão<br />

valor, mas também poderão ser importantes com vista a facilitar a<br />

nossa capacidade para submeter a escrutínio os valores e prioridades<br />

que haveremos de levar em conta, especialmente através das oportunidades<br />

de discussão pública que venham a ser proporcionadas (no<br />

que se incluirão considerações relativas à liberdade de expressão e<br />

ao direito à informação, para além de serem proporcionados espaços<br />

e meios para uma discussão informada).<br />

Nestas páginas, a democracia é vista em termos de argumentação<br />

pública (public reasoning, Capítulos 15-17), o que conduz a um<br />

entendimento da democracia como regime de “governo pela discussão”<br />

(uma ideia cuja expansão muito ficou a dever a John Stuart<br />

Mill). Todavia, impõe-se também que se veja a democracia de uma<br />

maneira mais geral, como capacidade para reforçar a participação ou<br />

nt “Public Reasoning”, que ao longo da obra traduziremos por expressões várias, tais<br />

como, ou na linha de raciocínio, racionalidade, argumentação, discurso, deliberação, reflexão<br />

argumentativa/argumentada, exercício retórico, exercício/actividade raciocinante, uso da<br />

razão, ou, simplesmente, razão, e, sendo o caso, (exercício de um/uma) raciocínio público,<br />

racionalidade pública, pública argumentação, senão mesmo pública discussão raciocinada/<br />

argumentada.


PREFÁCIO<br />

comprometimento discursivamente sustentados por meio de um alargamento<br />

das disponibilidades informacionais e da viabilidade de discussões<br />

interactivas. Há que julgar a democracia não só tendo em<br />

vista as instituições formalmente existentes, mas atendendo igualmente<br />

à medida em que se fazem efectivamente ouvir as vozes dos<br />

diferentes sectores da população.<br />

Mais ainda. Esta maneira de olhar para a democracia pode vir a<br />

ter impacto também na prossecução da mesma a nível global – e não<br />

apenas no seio de cada estado-nação. Se a democracia não for vista<br />

tão-somente em termos de constituição de específicas instituições (tal<br />

como um órgão de governo global ou eleições à escala mundial),<br />

mas também na perspectiva da possibilidade e do efectivo alcance de<br />

uma argumentação pública, então, fazer progredir – ao invés de<br />

meramente aperfeiçoar – tanto a democracia como a justiça mundiais<br />

já não nos parecerá uma ideia incompreensível, antes passando a ser<br />

uma ideia extraordinariamente compreensível, e é plausível que ela<br />

venha a inspirar e a influenciar acções práticas transfronteiriças.<br />

O ILUMINISMO EUROPEU E A NOSSA HERANÇA GLOBAL<br />

Que dizer sobre os antecedentes da perspectiva que aqui estou a<br />

tentar apresentar? Tratarei desta questão de modo mais exauriente na<br />

Introdução que se seguirá, mas, ainda assim, gostaria de salientar que<br />

a análise da justiça que apresentarei neste livro pretende traçar linhas<br />

de argumentação racional que foram alvo de uma particular exploração<br />

nesse período de descontentamento intelectual que ocorreu durante<br />

o Iluminismo Europeu. Todavia, e não obstante isto mesmo que<br />

acabámos de dizer, devo apressar-me a fazer de imediato duas clarificações<br />

para evitar possíveis mal-entendidos.<br />

Na primeira dessas clarificações, cumpre explicar que a sua ligação<br />

à tradição do Iluminismo Europeu não fará deste livro uma obra<br />

com uma bagagem intelectual particularmente “europeia”. Com efeito,<br />

um dos traços pouco habituais – alguns provavelmente dirão<br />

excêntricos – deste livro, quando comparado com outros escritos<br />

dedicados à justiça, é o amplo uso que fiz de ideias oriundas de<br />

sociedades não ocidentais, em especial da história intelectual indiana,<br />

mas também de outras. No passado intelectual da Índia, bem assim<br />

17


1 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

como no pensamento que foi florescendo em várias outras sociedades<br />

não ocidentais, podemos verificar que existem poderosas tradições<br />

de argumentação e reflexão racional, mais até do que tradições<br />

que repousem na fé e em convicções a-racionais. A confinarmos a<br />

nossa atenção quase inteiramente à literatura ocidental, teria de concordar<br />

que, na nossa era, as demandas da filosofia política, em geral,<br />

e a prossecução das exigências da justiça, em particular, têm sido em<br />

certa medida de tipo “paroquial” * .<br />

Todavia, não pretendo com isto afirmar que haja nestas matérias<br />

uma qualquer dissonância radical entre pensamento “ocidental” e<br />

“oriental” (ou, em geral, não ocidental). Há muitas diferenças no seio<br />

do pensamento discursivo do Ocidente como naquele do Oriente, e<br />

seria absolutamente fantasioso pensar em termos de um Ocidente<br />

unido que se viesse confrontar com prioridades “orientais na sua<br />

quinta-essência” † . Tais opiniões, que não são alheias às discussões<br />

contemporâneas, estão bem longe daquele que é o meu entendimento<br />

das coisas. O que pretendo afirmar, ao invés, é que em muitas e<br />

diferentes partes do mundo se tem procurado atingir ideias semelhantes<br />

– ou intimamente ligadas – de justiça, equidade, lisura, responsabilidade,<br />

dever, bondade e rectidão, e isso pode vir alargar o alcance<br />

de certos argumentos que se vêem reflectidos na literatura ocidental;<br />

* A moderna literatura, nos casos em que se deu conta da existência de Kautilya, um<br />

antigo escritor indiano em matérias de estratégia e economia políticas, chegou por vezes a<br />

descrevê-lo como o “Maquiavel indiano”. De certa maneira, não é de espantar que o tenha<br />

feito, uma vez que há, de facto, certas semelhanças entre as ideias de ambos no que toca a<br />

estratégias e tácticas (sem embargo de profundas diferenças em muitas outras áreas – áreas<br />

amiúde mais importantes), mas não deixa de ser divertido que um analista político indiano<br />

do século IV a.C. tenha de ser apresentado como uma versão local de um escritor europeu<br />

que haveria de nascer no século XV. Já se vê que isto não é o reflexo da crua asserção de<br />

uma ordem geográfica que se quisesse afirmar por pura implicância, mas tão-somente de<br />

uma falta de familiaridade com a literatura não ocidental por parte dos intelectuais ocidentais<br />

(e, aliás, por parte dos intelectuais de todo o mundo moderno, dado o domínio global que a<br />

educação de tipo ocidental exerce hoje em dia).<br />

† De facto, já noutro sítio tive a ocasião de defender que não existem prioridades<br />

orientais na sua quinta essência oriental, e nem mesmo prioridades de quinta essência tão-só<br />

indianas, porquanto, na história intelectual de tais países, sempre poderemos encontrar<br />

argumentos que vão em muitas e diferentes direcções (veja-se os meus The Argumentative<br />

Indian, Londres e Nova Déli, Penguin, e Nova Iorque, FSG, 2005, e Identity and Violence:<br />

The Illusion of Destiny, Nova Iorque, Norton, e Londres e Nova Déli, Penguin, 2006).


PREFÁCIO<br />

por outro lado, nas tradições dominantes do discurso ocidental contemporâneo,<br />

é frequente que se passe por alto ou se marginalize a<br />

presença a nível mundial daquele tipo de raciocínio.<br />

Assim, por exemplo, alguns dos raciocínios de Gautama Buddha<br />

(o paladino agnóstico do “caminho do conhecimento”) ou dos escritores<br />

da escola Lokayata da Índia do século VI a.C. (apostada num<br />

escrutínio incansável de todo o tipo de crença tradicional) poderão<br />

soar extremamente alinhados, muito mais do que em confronto, com<br />

muitos dos escritos críticos dos principais autores pertencentes ao<br />

Iluminismo Europeu. Porém, não há porque nos abespinharmos a<br />

tentar decidir se deveríamos ver em Gautama Buddha um membro<br />

percursor de uma qualquer liga do Iluminismo Europeu (afinal, o seu<br />

nome adoptado, em sânscrito, sempre quer dizer “iluminado”); e tão-<br />

-pouco somos forçados a seguir a rebuscada tese segundo a qual as<br />

origens do Iluminismo Europeu se hão-de encontrar na influência de<br />

um remoto pensamento asiático. Nada há de particularmente estranho<br />

em reconhecer que tais ligações ou perfilhações intelectuais<br />

sempre se deram em diferentes partes do globo e em distintas épocas<br />

da história. A levarmos em conta que frequentemente se foram tecendo<br />

diferentes teses a propósito de questões deste género, é bem<br />

possível que, como confinemos a nossa investigação a uma dada<br />

região, nos acabem por escapar algumas das pistas possíveis para a<br />

reflexão argumentativa sobre a justiça.<br />

Exemplo disso, com certo interesse e relevância, é a importante<br />

distinção entre dois diferentes conceitos de justiça que encontramos<br />

na primitiva jurisprudência indiana, isto é, a diferença entre niti e<br />

nyaya. O primeiro, niti, corresponde a uma nota de propriedade que,<br />

em geral, caracteriza o arranjo organizacional, associada à correcção<br />

dos comportamentos, ao passo que o segundo, nyaya, diz respeito às<br />

coisas que se passam, como realmente se passam, e, em particular, à<br />

vida que efectivamente as pessoas levam. Esta distinção, de cuja<br />

relevância se curará na Introdução, ajuda-nos a ver claramente que<br />

existem duas espécies de justeza bem diferentes, ainda que não desconexas,<br />

e a ideia de justiça deverá beber de ambas * .<br />

* A distinção entre nyaya e niti não é apenas significativa no seio de uma determinada<br />

comunidade política, mas também para lá das fronteiras dos estados, como tive ocasião de<br />

referir no meu ensaio “Global Justice”, apresentado no Fórum Mundial da Justiça de Viena,<br />

19


2 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

A minha segunda observação, e explicação, prende-se com o<br />

facto de os autores do Iluminismo não falarem em uníssono. Como<br />

mostrarei na Introdução, há uma dicotomia substancial entre duas<br />

diferentes linhas de raciocínio acerca da justiça, que podem ser observadas<br />

em dois grupos de filósofos de nomeada, associados, todos<br />

eles, ao pensamento mais radical do período iluminista. Uma das<br />

perspectivas concentrava-se na identificação do arranjo ou combinação<br />

de factores sociais que se apresentasse como perfeitamente justa<br />

e tomava por tarefa principal da teoria da justiça – e amiúde a única a<br />

ser especificada – a qualificação do que fossem “instituições justas”.<br />

Teceram importantes contributos nesta linha de pensamento e à volta<br />

da ideia de um hipotético “contrato social”, Thomas Hobbes, no<br />

século XVII, e, mais tarde, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e<br />

Immanuel Kant, entre outros. A perspectiva dita contratualista<br />

(“contractarian”) tem vindo a ser a influência dominante na filosofia<br />

política contemporânea, especialmente desde que, em 1958, vimos<br />

surgir um estudo pioneiro (Justice as Fairness, Justiça como Equidade)<br />

de John Rawls, que é o antecessor daquela que haveria de ser a<br />

sua última palavra relativamente a esta perspectiva, a sua obra clássica,<br />

Uma Teoria da Justiça 4 .<br />

Em contraste, outros filósofos iluministas (por exemplo, Adam<br />

Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, John Stuart Mill)<br />

seguiram perspectivas variadas que partilhavam entre si o interesse<br />

comum em proceder a comparações entre os diferentes tipos de vida<br />

que as pessoas podem levar, e nisso deixaram-se influenciar tanto<br />

pelas instituições como pelo real comportamento dessas mesmas pessoas,<br />

pelas interacções sociais e por outros determinantes dignos de<br />

significado. Em grande medida, este livro socorrer-se-á desta última<br />

tradição alternativa * . A esta segunda linha de investigação pertence a<br />

em Julho de 2003, patrocinado pela Associação Americana das Ordens dos Advogados, juntamente<br />

com a Associação Internacional das Ordens de Advogados, a Associação Interamericana<br />

das Ordens de Advogados, a Associação Interpacífica das Ordens de Advogados e a Union<br />

Internationale des Avocats. Integra o “Programa de Justiça Global” da Associação Americana<br />

das Ordens dos Advogados, e foi publicado in Global Perspectives on the Rule of Law, James<br />

Heckner, Robert Nelson e Lee Cabatingo (coord.), Nova Iorque, Rowtledges, 2009.<br />

* No entanto, isso não me impedirá de também me socorrer das considerações daquela<br />

primeira perspectiva, bem assim como das iluminações que podemos colher, por exemplo,<br />

nos escritos de Hobbes e Kant, ou, nos nossos tempos, naqueles de John Rawls.


PREFÁCIO<br />

disciplina analítica – e de feições bem matemáticas – da “teoria da<br />

escolha social”, que podemos fazer remontar às obras de Condorcet,<br />

no século XVIII, tendo assumindo a forma que hoje tem graças às<br />

contribuições pioneiras de Kenneth Arrow em meados do século XX.<br />

Como tentarei mostrar, uma abordagem deste tipo, desde que devidamente<br />

adaptada, pode trazer um contributo substancial para o tratamento<br />

das questões atinentes à ampliação e reforço da justiça e à<br />

eliminação da injustiça em todo o mundo.<br />

O LUGAR DA RAZÃO<br />

Apesar das diferenças entre estas duas tradições do Iluminismo –<br />

uma contratualista e a outra comparativa –, há também entre elas<br />

muitas semelhanças. Entre os traços comuns encontra-se a confiança<br />

na razão e uma invocação das exigências próprias da discussão pública.<br />

Não obstante este livro mostre afinidade sobretudo com a segunda<br />

perspectiva exposta, e não tanto com a argumentação<br />

contratualista desenvolvida por Immanuel Kant e outros, uma grande<br />

parte dele será motivada por uma concepção kantiana fundamental<br />

(nas palavras de Christine Korsgaard): «Trazer a razão para o mundo<br />

torna-se a principal empresa da moralidade, não tanto da metafísica,<br />

e também a obra e a esperança da humanidade» 5 .<br />

Claro está que saber até que ponto a racionalidade pode fornecer<br />

uma base fiável para uma teoria da justiça é algo já de si controverso.<br />

Ora, o primeiro capítulo do livro tratará precisamente do papel<br />

e do alcance da razão. Aí, contesto a plausibilidade de, sem uma<br />

certificação raciocinada, se vir encarar as emoções, a psicologia ou<br />

os instintos como se fossem fontes independentes de valoração. Sem<br />

embargo disso, os impulsos e as atitudes mentais não perderão a sua<br />

importância, pois temos boas razões para os levar em conta nas<br />

nossas avaliações sobre a justiça e a injustiça à face da terra. Nem se<br />

vê que haja aqui um conflito irredutível entre razão e emoção –<br />

como pretendo mostrar –, havendo muito boas razões para dar o<br />

devido espaço à importância das emoções.<br />

21


2 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Há, contudo, um outro tipo de crítica dirigida à confiança na<br />

razão, segundo a qual o que neste mundo prevalece é tudo aquilo<br />

que nos aparece como “não-razão”, pretendendo então mostrar como<br />

é irrealista partir do princípio de que o mundo seguirá na direcção<br />

ditada pela razão. Numa crítica gentil, mas firme, ao meu trabalho<br />

em áreas relacionadas com esta, Kwame Anthony Appiah veio defender<br />

que «por muito que alarguemos a nossa compreensão da<br />

razão, seguindo os tipos de caminhos que Sen nos quereria ver a<br />

trilhar – e, note-se, este é um projecto cujo interesse é por mim<br />

brindado –, nunca conseguiremos chegar ao fim» 6 . Enquanto esta for<br />

uma descrição do que se passa no mundo, claro está que Appiah tem<br />

razão, e a sua crítica, que não tem a intenção de elaborar uma teoria<br />

da justiça, apresenta sólidos fundamentos para um cepticismo acerca<br />

da eficácia prática de uma discussão raciocinada em torno de temas<br />

sociais confusos (tal o caso, por exemplo, das políticas a adoptar em<br />

matéria de identidade). A prevalência e a tenaz resistência de tudo o<br />

que é “não-razão” podem levar a uma muito menor eficácia das<br />

respostas dadas a questões difíceis e que se queiram basear na razão.<br />

Este tipo de cepticismo acerca do alcance da racionalidade não<br />

apresenta – nem é suposto que pretenda apresentar (como Appiah<br />

deixa claro) – qualquer fundamento para que as pessoas deixem de<br />

empregar a razão até ao limite do que lhes seja possível, quando<br />

decidam ir em busca da ideia de justiça ou de qualquer outro conceito<br />

com relevo social, como seria o caso da noção de identidade * . Por<br />

outro lado, ele também não prejudica que se argumente no sentido<br />

de nos tentarmos persuadir mutuamente a fazer um escrutínio que<br />

permita verificar a validade das nossas respectivas conclusões. Além<br />

disso, é importante fazer notar que aquilo que a alguns poderá parecer<br />

um exemplo claro do domínio da “não-razão”, pode, afinal, não o<br />

* De facto, há sobejas provas de que a promoção de discussões públicas interactivas<br />

pode ajudar a enfraquecer a rejeição de uma reflexão racional. Sobre este ponto, veja-se o<br />

material empírico apresentado in Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford,<br />

Clarendon Press, 1999, e Identity and Violence: The Illusion of Destiny, Nova Iorque,<br />

Norton, e Londres, Penguin, 2006.<br />

† Como faz notar James Thurber, se é verdade que os supersticiosos preferem evitar<br />

passar por debaixo de escadotes, bem pode acontecer que as mentes científicas que «se<br />

propõem desafiar a superstição» saiam «a procurar escadotes para se deliciarem a passar por<br />

debaixo deles» (James Thurber, Let Your Mind Alone!, New Yorker, 1 de Maio de 1937).


PREFÁCIO<br />

ser † . Uma discussão assente na razão pode levar ao acolhimento de<br />

posições conflituantes que, para os demais, poderiam parecer meros<br />

preconceitos “não-raciocinados” (isto é, não ponderados ou reflectidos<br />

racionalmente), quando, afinal, o caso não era bem esse. Diferentemente<br />

do que às vezes se presume, perante diferentes posições obtidas<br />

por meio de um processo argumentativo ou raciocinado, nada<br />

exige que se tenha por compulsiva e necessária a eliminação de<br />

todas as alternativas à excepção de uma.<br />

De qualquer modo, o que principalmente interessa a este propósito<br />

é que, normalmente, os preconceitos andam a cavalo de um<br />

certo tipo de racionalidade – por muito fraca e arbitrária que ela<br />

possa ser. Na verdade, até as pessoas mais dogmáticas costumam ter<br />

as suas razões, quaisquer que elas sejam (possivelmente muito toscas),<br />

que possam servir de fundamento para os seus dogmas (pertencem<br />

a este domínio os preconceitos racistas, sexistas, de classe ou de<br />

casta, entre outras espécies de intolerâncias que nos aparecem assentes<br />

em raciocínios grosseiros). O mais das vezes, a “não-razão” não é<br />

uma prática que consista em dispensar por completo o raciocínio,<br />

mas sim uma prática que se vê apoiada em raciocínios muito primitivos<br />

e deficientes. Ora, aqui ainda há lugar para esperança, pois a um mau<br />

raciocínio sempre se pode contrapor um raciocínio melhor. Assim<br />

sendo, mesmo neste caso, não se pode dizer que seja despropositado<br />

pensar-se num compromisso com a razão, ainda que, pelo menos a<br />

princípio, muitas pessoas se possam recusar a comprometer-se com<br />

ela, apesar de a isso serem desafiadas.<br />

Para os argumentos contidos neste livro não interessa de todo<br />

que, no presente momento, se possa afirmar uma omnipresença da<br />

racionalidade na maneira de pensar por todos seguida; uma tal presunção<br />

não é nem possível nem necessária. A concepção de que as<br />

pessoas haveriam de chegar a acordo acerca de uma determinada<br />

proposição, se tivessem a oportunidade de raciocinar sobre ela de um<br />

modo aberto e imparcial não implica afirmar que, de facto, as pessoas<br />

já se achem empenhadas em fazê-lo, nem que estejam ansiosas<br />

por assumir um tal compromisso. O que nos interessa sobretudo é<br />

examinar quais as exigências que a racionalidade faz quando se tenta<br />

alcançar justiça – aceitar a possibilidade de que possam existir diferentes<br />

posições, todas elas razoáveis. Ora, isso é perfeitamente compatível<br />

com a possibilidade, e até com a certeza, de que num dado<br />

23


2 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

momento histórico, nem toda a gente está disposta a levar a cabo um<br />

tal exame. A racionalidade é imprescindível para a compreensão da<br />

justiça, mesmo num mundo repleto de muita “não-razão”. Mais, é<br />

num mundo assim que ela se poderá revelar particularmente importante.


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

PREFÁCIO<br />

Ao agradecer a ajuda que recebi na realização do trabalho que<br />

aqui se apresenta, tenho de começar por deixar dito que a minha<br />

maior dívida é para com John Rawls, que me inspirou a trabalhar<br />

nesta área de estudo. Além do mais, ele foi também um magnífico<br />

professor por várias décadas e as suas ideias continuam a influenciar-<br />

-me, mesmo quando discordo de algumas das suas conclusões. Este<br />

livro é dedicado à sua memória, não só por causa da instrução e do<br />

afecto que dele recebi, mas também pelo encorajamento para que<br />

fosse no encalço das minhas dúvidas.<br />

O meu primeiro contacto mais demorado com Rawls aconteceu<br />

em 1968-1969, quando vim da Universidade de Nova Déli para<br />

Harvard como professor visitante, tendo aí ministrado um seminário<br />

conjunto ao curso de licenciatura com Kenneth Arrow. Arrow foi<br />

também outra influência poderosa para este livro, como sucedeu em<br />

muitos dos meus livros anteriores. A sua influência resulta não só das<br />

amplas discussões que tivemos ao longo de muitas décadas, mas<br />

também do facto de eu recorrer à moldura analítica da moderna<br />

teoria da escolha social, por ele iniciada.<br />

A obra que aqui se apresenta foi elaborada em Harvard, que<br />

desde 1987 tem sido a minha principal base, e no Trinity College, em<br />

Cambridge, especialmente durante os seis anos entre 1998 e 2004,<br />

altura em que regressei a Harvard como Professor daquela grande<br />

universidade, onde, cinquenta anos antes, iniciara a pensar sobre<br />

temas filosóficos. Fui influenciado, em particular, por Piero Sraffa e<br />

por C.D. Broad, e Maurice Dobb e Dennis Robertson encorajaram-<br />

-me a seguir as minhas inclinações.<br />

Este livro levou o seu tempo a fazer-se, porque as minhas dúvidas<br />

e as minhas reflexões construtivas também precisaram de um<br />

longo período para se desenvolverem. Ao longo destas décadas, tive<br />

25


2 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

o privilégio de receber comentários, sugestões, questões, discordâncias<br />

rotundas e encorajamentos de um grande número de pessoas, e<br />

tudo isso me foi de grande préstimo. Assim, a minha lista de agradecimentos<br />

não vai ser curta.<br />

Em primeiro lugar, tenho de salientar a ajuda e o conselho que<br />

pude receber da minha mulher, Emma Rothschild, cuja influência se<br />

reflecte ao longo de todo o livro. A influência de Bernard Williams<br />

no meu pensamento em matérias filosóficas também será evidente<br />

para quem esteja familiarizado com os seus escritos. Esta influência<br />

deriva de muitos anos de uma “amizade conversadeira” e ainda de<br />

um produtivo período de trabalho conjunto, em que planeámos, editámos<br />

e escrevemos a introdução de uma colectânea de artigos acerca<br />

da perspectiva utilitarista e das suas limitações (Utilitarianism and<br />

Beyond, 1982).<br />

Tive também a dita de ter colegas com quem pude travar diversas<br />

conversas instrutivas sobre filosofia política e moral. Além de<br />

Rawls, tenho aqui de reconhecer a minha enorme dívida para com<br />

Hilary Putnam e Thomas Scanlon, por tantas charlas iluminantes ao<br />

longo dos anos. Também aprendi muito à conversa com W.V.O.<br />

Quine e Robert Nozick, que, infelizmente, já nos deixaram. O facto<br />

de ter dado aulas em conjunto, em Harvard, também foi para mim<br />

uma constante fonte de instrução dialéctica, que recebi tanto dos<br />

alunos como dos professores que partilhavam comigo essas aulas.<br />

Robert Nosick e eu regemos todos os anos cursos conjuntos durante<br />

cerca de uma década; em algumas ocasiões, fizemo-lo também com<br />

Eric Maskin, e ambos foram uma influência que marcou os meus<br />

pensamentos. Em algumas alturas, também ministrei cursos com<br />

Joshua Cohen (do MIT – Massachusetts Institute of Technology, que<br />

não fica assim tão longe), Christine Jolls, Philippe Van Parijs, Michael<br />

Sandel, John Rawls, Thomas Scanlon e Richard Tuck, e ainda com<br />

Kaushik Basu e James Foster quando vinham visitar Harvard.<br />

À parte o absoluto prazer tirado destas aulas dadas em conjunto, a<br />

verdade é que elas também foram tremendamente úteis para que<br />

pudesse desenvolver as minhas ideias, frequentemente graças a troca<br />

de argumentos com os professores com quem fui partilhando a regência<br />

desses cursos.


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

Sempre beneficiei muitíssimo das críticas e observações dos<br />

meus alunos em todos os meus escritos, e este livro não é excepção.<br />

Ora, no que diz respeito a este livro em particular, gostaria de registar<br />

em particular as impressões que fui trocando com Prasanta Pattanaik,<br />

Kaushik Basu, Siddiqur Osmani, Rajat Deb, Ravi Kanbur, David<br />

Kelsey e Andreas Papandreou, ao longo de várias décadas, e, mais<br />

tarde, com Stephan Klasen, Anthony Laden, Sanjay Reddy, Jonathan<br />

Cohen, Felicia Knaul, Clemens Puppe, Bertil Tungodden, A.K. Shiva<br />

Kumar, Lawrence Hamilton, Douglas Hicks, Jennifer Prah Ruger,<br />

Sousan Abadian, entre outros. Também gostaria de lembrar as importantes<br />

discussões que fui tendo com outros alunos meus, sobre diferentes<br />

assuntos, mas sempre relacionados com os temas aqui tratados,<br />

nomeadamente com Sourin Bhattacharya, Luigi Sparento, D.P.<br />

Chauduri, Kanchan Chopra, John Wriglesqorth, Yasumi Matsumoto<br />

e John Riley.<br />

No que me diz respeito, as alegrias e as vantagens de um ensino<br />

interactivo remontam já aos anos 70 e 80, altura em que dei aulas – e<br />

segundo me dizia um estudante, mais pareciam um “motim” – em<br />

Oxford, regendo a disciplina em conjunto com Ronald Dworkin e<br />

Derek Parfit, agregando-se mais tarde G.A. Cohen. As minhas gratas<br />

memórias dessas discussões e trocas de argumentos foram recentemente<br />

reavivadas graças à gentileza de Cohen, que organizou um<br />

seminário extremamente cativante na Universidade de Londres, em<br />

Janeiro de 2009, dedicado à principal tese apresentada neste livro.<br />

A assembleia que aí se juntou estava agradavelmente repleta de opiniões<br />

discordantes, incluindo Cohen (claro está), mas também Jonathan<br />

Wolff, Laura Valentis, Riz Mokal, George Letsas e Stephan Guest; as<br />

diferentes críticas que todos eles fizeram foram-me de grande valia<br />

(Laura Valentis teve a bondade de enviar mais comentários, mesmo<br />

depois do seminário).<br />

Se bem que uma teoria da justiça seja algo que pertence primariamente<br />

ao domínio da filosofia, este livro expõe também certas ideias<br />

que são do âmbito de outras disciplinas. Um dos grandes campos de<br />

investigação de que este livro trata abundantemente é também o da<br />

teoria da escolha social. Apesar de os meus contactos com quem<br />

trabalha nesta vasta área serem demasiado numerosos para poderem<br />

caber nestas curta linhas, seja-me ainda assim permitido declarar o<br />

quanto beneficiei de ter trabalhado com Kenneth Arrow e Kotaro<br />

27


2 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Suzumura, com os quais tenho estado a editar o Handbook of Social<br />

Choice Theory (o primeiro volume já saiu, mas o segundo já vai<br />

atrasado), mas também celebrar o notável papel de liderança neste<br />

campo que tem cabido a Jerry Kelly, Wulf Gaertner, Prasanta<br />

Pattanaik e Maurice Salles, em especial devido ao seu trabalho incansável<br />

e visionário que levou ao aparecimento da revista Social<br />

Choice and Welfare e que, agora, a faz florescer.<br />

Gostaria ainda de poder confessar os préstimos que recebi do<br />

longo caminho percorrido em conjunto e das amplas discussões acerca<br />

de problemas relacionados de alguma maneira com o tema a escolha<br />

social que fui tendo com (a juntar aos nomes já mencionados) Patrick<br />

Suppes, John Harsanyi, James Mirrlees, Anthony Atkinson, Peter<br />

Hammond, Charles Blackorby, Sudhir Anand, Tapas Majumdar,<br />

Robert Pollak, Kevin Roberts, John Roemer, Anthony Shorrocks,<br />

Robert Sugden, John Weymark e James Foster.<br />

É ainda antiga e constante a influência sobre o meu estudo da<br />

justiça, em especial em matéria de liberdade e capacidade, vinda de<br />

Martha Nussbaum. O seu trabalho, combinado com o seu firme empenho<br />

em desenvolver a “perspectiva da capacidade”, influenciou<br />

profundamente muitos dos seus progressos recentes, incluindo a exploração<br />

das ligações com as ideias clássicas de Aristóteles sobre<br />

“capacidade” e “florescimento”, e ainda com estudos em matéria de<br />

desenvolvimento humano, diferença dos sexos e direitos humanos.<br />

A relevância e o recurso à perspectiva da capacidade foi explorada<br />

de modo poderoso nos últimos anos graças à investigação de<br />

um grupo de académicos notáveis. Muito embora seja certo que os<br />

seus escritos influenciaram grandemente o meu pensamento, um sua<br />

listagem seria demasiado extensa para que a pudesse incluir aqui.<br />

Ainda assim, sinto-me obrigado a mencionar a influência que recebi<br />

das obras de Sabina Alkire, Bina Agarwal, Tania Burchardt, Enrica<br />

Chiappero-Martinetti, Flavio Comim, David Crocker, Séverine<br />

Deneulin, Sakiko Fukuda-Parr, Reiko Gotoh, Mozaffar Qizilbash,<br />

Ingrid Robeyns e Polly Vizard. Há ainda uma estreita conexão entre<br />

a perspectiva da capacidade e o nova área relativa ao desenvolvimento<br />

humano, de que foi pioneiro o meu amigo já falecido, Mahbub<br />

ul Haq, e que exibe também a influência de Paul Streeten, Frances<br />

Stewart, Keith Griffin, Gustav Ranis, Richard Jolly, Meghnad Desai,<br />

Sudhir Anand, Sakiko Fukuda-Parr, Selim Jahan, entre outros. É certo


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

que o Journal of Human Development and Capabilities tem um forte<br />

envolvimento no trabalho relativo à perspectiva da capacidade, mas<br />

a revista Feminist Economics também tem vindo a mostrar um interesse<br />

especial nesta área, e as minhas conversas com a sua directora,<br />

Diana Strassman, têm sido sempre estimulantes, versando sobre a<br />

relação entre uma abordagem feminista e a perspectiva da capacidade.<br />

Já no Trinity College, pude desfrutar da excelente companhia de<br />

filósofos, pensadores jurídicos e outros mais que se interessavam<br />

pelos problemas da justiça, tendo tido a oportunidade de interagir<br />

com Garry Runciman, Nick Denyer, Gisela Striker, Simon Blackburn,<br />

Catharine Barnard, Joanna Miles, Ananya Kabir, Eric Nelson e, ocasionalmente,<br />

com Ian Hacking (que, de quando em vez, voltava à<br />

sua antiga faculdade, onde, ainda estudantes e colegas, nos encontrámos<br />

e falámos pela primeira vez nos anos 50). Tive, além disso, a<br />

fantástica oportunidade de travar conversas com matemáticos, cientistas<br />

da natureza, historiadores, cientistas das áreas sociais, teóricos<br />

do direito e académicos do ramo das humanidades, todos notáveis e<br />

fora de série.<br />

Beneficiei ainda substancialmente das minhas conversas com<br />

diversos outros filósofos, entre os quais (e juntando a quantos já<br />

mencionei) Elizabeth Anderson, Kwame Anthony Appiah, Christian<br />

Barry, Charles Beitz, o já falecido Isaiah Berlin, Akeel Bilgrami,<br />

Hilary Bok, Sissela Bok, Susan Brison, John Broome, Ian Carter,<br />

Nancy Cartwright, Deen Chatterjee, Drucilla Cornell, Norman<br />

Daniels, o falecido Donald Davidson, John Davis, Jon Elster,<br />

Barbara Fried, Allan Gibbard, Jonathan Glover, James Griffin, Amy<br />

Gutmann, Moshe Halbertal, o falecido Richard Hare, Daniel<br />

Hausman, Ted Honderich, Susan Hurley, também já falecida, Susan<br />

James, Frances Kamm, o falecido Stig Kanger, Erin Kelly, Isaac<br />

Levi, Christian List, Sebastiano Maffetone, Avishai Margalit, David<br />

Miller, Sidney Morgenbesser, também falecido, Thomas Nagel, Sari<br />

Nusseibeh, o falecido Susan Moller Okin, Charles Parsons, Herlinde<br />

Pauer-Struder, Fabienne Peter, Philip Pettit, Thomas Pogge, Henry<br />

Richardson, Alan Ryan, Carol Rovane, Debra Satz, John Searle,<br />

Judith Shklar, falecida, Quentin Skinner, Hillel Steiner, Dennis<br />

Thompson, Charles Taylor e Judith Thomson. No que tange ao pensamento<br />

jurídico, foram-me muitíssimo vantajosas as discussões com<br />

(para além de outros já citados) Bruce Ackerman, Justice Stephen<br />

29


3 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Breyer, Owen Fiss, o falecido Herbert Hart, Tony Honoré, Anthony<br />

Lewis, Frank Michelman, Martha Minow, Robert Nelson, Justice Kate<br />

O’Regan, Joseph Raz, Susan Rose-Ackerman, Stephen Sedley, Cass<br />

Sunstein e Jeremy Waldron; de todas estas discussões tirei grandes<br />

benefícios. Sendo verdade que, de facto, o meu trabalho para este<br />

livro começou com as minhas “Conferências John Dewey” (sobre<br />

“Well-being, Agency and Freedom”) no Departamento de Filosofia<br />

da Universidade de Columbia, em 1984, e que veria o seu termo com<br />

outro conjunto de lições de filosofia, na Universidade de Stanford<br />

(com o tema “Justice”), apesar disso, não deixei de ensaiar os meus<br />

argumentos em torno da teoria da justiça em diversas faculdades de<br />

direito. A juntar a várias conferências e seminários nas Faculdades de<br />

Direito das Universidades de Harvard, Yale e Washington, tive também<br />

ocasião de apresentar as “Conferências Storrs” (sob o tema<br />

“Objectivity”), na Faculdade de Direito de Yale, em Setembro de<br />

1990, as Conferências “Rosenthal” (sobre “The Domain of Justice”),<br />

na Faculdade de Direito da Northwestern University, em Setembro de<br />

1998, e uma aula especial (sobre o tema “Human Rights and the Limits<br />

of Law”) na Faculdade de Direito de Cardozo, em Setembro de 2005 * .<br />

No âmbito das economias, que foi a primeira área a que me<br />

dediquei, e que, aliás, tem uma considerável relevância para a ideia<br />

de justiça, recebi grandes contributos de regulares discussões que fui<br />

tendo ao longo de muitas décadas com (além dos nomes que já<br />

mencionei) George Akerlof, Paul Anand, Amiya Bagchi, o falecido<br />

Dipak Banerjee, Nirmala Banerjee, Pranab Bardhan, Alok Bhargava,<br />

Christopher Bliss, Samuel Bowles, Samuel Brittan, Robert Cassen,<br />

Sukhamoy Chakravarty, já falecido, Partha Dasgupta, Mrinal Datta-<br />

-Chaudhuri, Angus Deaton, Meghnad Desai, Jean Dre‘ze, Bhaskar<br />

Dutta, Jean-Paul Fitoussi, Nancy Folbre, Albert Hirschman, Devaki<br />

Jain, Tapas Majumdar, Mukul Majumdar, Stephen Marglin, Dipak<br />

Mazumdar, Luigi Pasinetti, o falecido I.G. Patel, Edmund Phelps,<br />

K.N. Raj, V. K. Ramachandran, Jeffrey Sachs, Arjun Sengupta,<br />

* As “Conferências Dewey” foram promovidas sobretudo por Isaac Levi, as “Conferências<br />

Storrs”, por Guido Calabresi, as Lições “Rosenthal”, por Ronald Allen, e aquela<br />

aula na Faculdade de Direito de Cardozo, por David Rudenstine. Muito me serviram também<br />

as discussões que pude manter com eles e com os seus colegas.


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

Rehman Sobhan, Barbara Solow, Robert Solow, Nicholas Stern,<br />

Joseph Stiglitz e Stefano Zamagni.<br />

Tive também conversas utilíssimas com Isher Ahluwalia, Montek<br />

Ahluwalia, o falecido Peter Bauer, Abhijit Banerjee, Lourdes Beneria,<br />

Timothy Besley, Ken Binmore, Nancy Birdsall, Walter Bossert,<br />

François Bourguignon, Satya Chakravarty, Kanchan Chopra, Vincent<br />

Crawford, Asim Dasgupta, Claude d’Aspremont, Peter Diamond,<br />

Avinash Dixit, David Donaldson, Esther Duflo, Franklin Fisher, Marc<br />

Fleurbaey, Robert Frank, Benjamin Friedman, Pierangelo Garegnani,<br />

os já falecidos Louis Gevers e W.M. Gorman, Jan Graaff, Jean-<br />

-Michel Grandmont, Jerry Green, Ted Groves, Frank Hahn, Wahidul<br />

Haque, Christopher Harris, Barbara Harris White, John Harsanyi, já<br />

falecido, James Heckman, Judith Heyer, o falecido John Hicks, Jane<br />

Humphries, Nurul Islam, Rizwanul Islam, Dale Jorgenson, Daniel<br />

Kahneman, Azizur Rahman Khan, Alan Kirman, Serge Kolm, Janos<br />

Kornai, Michael Kramer, Jean-Jacques Laffont, o falecido Richard<br />

Layard, Michel Le Breton, Ian Little, Anuradha Luther, James<br />

Meade, também falecido, John Muellbauer, Philippe Mongin, Dilip<br />

Mookerjee, Anjan Mukherji, Khaleq Naqvi, Deepak Nayyar, Rohini<br />

Nayyar, Thomas Piketty, Robert Pollak, Anisur Rahman, Debraj Ray,<br />

Martin Ravallion, Alvin Roth, Christian Seidl, Michael Spence, T.N.<br />

Srinivasan, David Starrett, S. Subramanian, Kotaro Suzumura,<br />

Madhura Swaminathan, Judith Tendler, Jean Tirole, Alain Trannoy,<br />

John Vickers, o falecido William Vickrey, Jorgen Weibull, Glen<br />

Weyl e Menahem Yaari.<br />

Lucrei também enormemente com conversas que fui tendo ao<br />

longo dos anos, e a propósito de temas variados relacionados com a<br />

justiça, com Jasodhara Bagchi, Alaka Basu, Dilip Basu, Seyla<br />

Benhabib, Sugata Bose, Myra Buvinic, Lincoln Chen, Martha Chen,<br />

David Crocker, Barun De, John Dunn, Julio Frenk, Sakiko Fukuda-<br />

-Parr, Ramachandra Guha, Geeta Rao Gupta, Geoffrey Hawthorn,<br />

Eric Hobsbawm, Jennifer Hochschild, Stanley Hoffmann, Alisha<br />

Holland, Richard Horton, Ayesha Jalal, Felicia Knaul, Melissa Lane,<br />

Mary Kaldor, Jane Mansbridge, Michael Marmot, Barry Mazur,<br />

Pratap Bhanu Mehta, Uday Mehta, o falecido Ralph Miliband,<br />

Christopher Murray, Elinor Ostrom, Carol Richards, David Richards,<br />

Jonathan Riley, Mary Robinson, Elaine Scarry, Gareth Stedman<br />

Jones, Irene Tinker, Megan Vaughan, Dorothy Wedderburn, Leon<br />

31


3 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Wieseltier e James Wolfensohn. A parte do livro que trata da democracia<br />

e da sua relação com a justiça (Capítulos 15-17) inspira-se nas<br />

minhas três conferências sobre “Democracy”, na School of Advanced<br />

Studies (SAIS) da Universidade John Hopkins, e que tiveram lugar<br />

no seu campus universitário de Washington DC, em 2005. Estas<br />

conferências foram o resultado de uma iniciativa de Sunil Khilnani,<br />

com o apoio de Francis Fukuyama, tendo recebido de ambos sugestões<br />

muito úteis. Depois, as conferências acabaram por gerar outras<br />

discussões ao longo destes encontros do SAIS, e também elas viriam<br />

a ser muito úteis.<br />

O novo “Programa de Justiça, Estado Social e Economia”<br />

(“Program on Justice, Welfare and Economics”) de Harvard, que<br />

dirigi durante cinco anos, entre Janeiro de 2004 e Dezembro de<br />

2008, também me deu uma excelente oportunidade para contactar<br />

com estudantes e colegas interessados em problemas semelhantes,<br />

ainda que no âmbito de ramos diferentes. O novo director, Walter<br />

Johnson, está a dar continuidade a todas estas oportunidades de interacção<br />

– e a ampliá-las – com grande liderança, tendo eu tomado a<br />

liberdade de apresentar o principal filão deste livro no meu discurso<br />

de despedida ao grupo, após o que recebi muitas questões e comentários<br />

excelentes.<br />

Erin Kelly e Thomas Scanlon foram de grande ajuda e imensamente<br />

prestáveis ao aceitarem ler uma parte considerável do manuscrito,<br />

tendo feito diversas sugestões de importância crítica. Estou-lhes,<br />

por isso, muitíssimo reconhecido.<br />

Tive também a grande ventura de poder dar a minha colaboração<br />

a Sudhir Anand ao longo de várias décadas e de ter podido<br />

travar debates regulares com ele sobre assuntos variados relacionados<br />

com o tema deste livro, os quais vieram engrandecer o meu<br />

entendimento acerca das exigências da justiça.<br />

As despesas da investigação e do trabalho de assistência à mesma<br />

foram cobertas parcialmente por um projecto de cinco anos sobre<br />

democracia, desenvolvido pelo Centro de História e Economia do<br />

King’s College da Universidade de Cambridge, custeado juntamente<br />

pelas Fundações Ford, Rockfeller e Mellon, entre 2003 e 2008; mas<br />

também, subsequentemente, por um novo projecto custeado pela<br />

Fundação Ford, dedicado ao tema “A Índia no Mundo Global”, com<br />

uma atenção especial dirigida à relevância da história intelectual da


AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

Índia para os problemas dos nossos tempos. Estou muito grato por<br />

este apoio e também quero mostrar o meu reconhecimento pelo notável<br />

trabalho de coordenação de ambos os projectos, levado a cabo<br />

por Inga Huld Markan. Tive ainda a felicidade de ter junto de mim<br />

assistentes de investigação extremamente capazes e imaginativos,<br />

que se empenharam profundamente no livro e fizeram comentários<br />

vários e muito produtivos que me ajudaram a melhorar o conteúdo e<br />

a apresentação dos meus argumentos. Por isso, sinto-me muito penhorado<br />

para com Pedro Ramos Pintos, que trabalhou comigo mais de<br />

um ano, deixando uma influência no livro que viria a ser duradoura,<br />

e, presentemente, para com Kirsty Walker e Afsan Bhadelia pela sua<br />

ajuda e contributo intelectual, ambos extraordinários.<br />

O livro é publicado pela editora Penguin e, nos Estados Unidos<br />

da América, pela Harvard University Press. O meu editor de Harvard,<br />

Michael Aronson, também fez várias sugestões gerais excelentes.<br />

Além disso, houve dois revisores anónimos do manuscrito que me<br />

proporcionaram comentários úteis. Visto que ao cabo de uma investigação<br />

de detective, revelou-se que eram eles Frank Lovett e Bill<br />

Talbott, agora, também lhes posso agradecer citando os seus nomes.<br />

A preparação e a montagem do livro, na Penguin Books, foram levadas<br />

a bom porto de modo excelente e sob grande pressão de prazos, tudo<br />

graças ao trabalho desembaraçado e incansável de Richard Duguid<br />

(o editor-chefe), Jane Robertson (editora de texto) e Philip Birch<br />

(editor-assistente). A todos eles, estou profundamente reconhecido.<br />

Não tenho palavras para expressar adequadamente a minha gratidão<br />

ao editor desta obra, Stuart Proftt, da Penguin Books, que contribuiu<br />

com sugestões e comentários inestimáveis a propósito de todos<br />

os capítulos (para dizer toda a verdade, a propósito de quase todas as<br />

páginas de cada capítulo) e me convenceu a reescrever muitas das<br />

partes do manuscrito, para o tornar mais claro e acessível. Além<br />

disso, os seus conselhos acerca da organização geral do livro também<br />

foram indispensáveis. É fácil imaginar qual não será o seu alívio,<br />

quando vir que, finalmente, já não tem este livro entre mãos.<br />

AMARTYA SEN<br />

33


3 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong>


INTRODUÇÃO<br />

UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

35


3 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong>


UMA PERSPECTIVA SOBRE A <strong>JUSTIÇA</strong><br />

AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOS<br />

Em Paris, cerca de dois meses e meio antes da invasão da Bastilha,<br />

ponto que foi, de facto, o início da Revolução Francesa, o filósofo<br />

político e orador Edmund Burke, declarava o seguinte no parlamento<br />

de Londres: «Deu-se um facto sobre o qual é difícil falar e impossível<br />

ficar calado.» Estávamos a 5 de Maio de 1789. O discurso de<br />

Burke não tinha nada que ver com a tempestade que ia crescendo em<br />

França. Nessa ocasião, tratava-se sobretudo da acusação formal de<br />

Warren Hastings, que então estava à frente da Companhia Britânica<br />

das Índias Orientais. A companhia tinha a função de estabelecer o<br />

domínio britânico na Índia, tarefa a que deu início com a vitória da<br />

Batalha de Plassey (a 23 de Junho de 1757).<br />

Ao fazer a acusação de Warren Hastings, Burke invocou as «leis<br />

eternas da justiça», que, assim o dizia Burke, Hastings teria «violado».<br />

A impossibilidade de permanecer calado sobre certo assunto é<br />

algo que pode ser declarado a propósito de muitos casos de injustiça<br />

manifesta, quando esta nos move até ao ponto de nos incitar a um<br />

tipo de raiva que a nossa linguagem tem dificuldade em retratar, pois<br />

é aquele tipo de raiva que não se deixa aprisionar em palavras. E no<br />

entanto, qualquer análise que se faça da injustiça (ou de uma injustiça)<br />

sempre reclamará uma sua clara articulação e um escrutínio que<br />

passe pela razão.<br />

Porém, Burke até nem deu mostras de que lhe faltassem as<br />

palavras: foi com eloquência que ele veio falar, não apenas sobre um<br />

erro de Hastings, mas sobre uma pilha deles, e, partindo daí, passou<br />

a apresentar em simultâneo várias razões separadas e perfeitamente<br />

distintas que justificavam a necessidade de proceder à acusação seja<br />

de Warren Hastings seja da natureza do emergente domínio britânico<br />

sobre a Índia:<br />

37


3 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

«Acuso Warren Hastings, Esquire, de gravíssimos crimes e contravenções.<br />

Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, reunidos em assembleia<br />

no Parlamento, cuja confiança parlamentar ele traiu.<br />

Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, cujo carácter nacional<br />

ele desonrou.<br />

Acuso-o em nome do povo da Índia, cujas leis, direitos e liberdades<br />

ele subverteu, cujas propriedades ele destruiu, em cujo país ele lançou a<br />

devastação e a desolação.<br />

Acuso-o em nome e pela virtude das leis eternas da justiça que ele<br />

violou.<br />

Acuso-o em nome da própria natureza humana, que ele cruelmente<br />

ultrajou, injuriou e oprimiu, em ambos os seus sexos, em todas as suas<br />

idades, posições, situações e condições de vida.» 1<br />

Nenhum destes argumentos é identificado à parte como sendo a<br />

razão da acusação de Warren Hastings – à maneira de soco que põe<br />

o adversário knock-out. Em vez disso, o que vemos é Burke que<br />

expõe uma colecção de razões distintas para que ele seja acusado * .<br />

Mais adiante, nesta obra, vou ter a oportunidade de examinar um<br />

procedimento que se pode apelidar de “fundamentação plural”, isto<br />

é, o uso de diferentes linhas de condenação, sem que se procure um<br />

acordo acerca dos méritos relativos de cada uma delas. A questão<br />

que está aqui subjacente é a de saber se devemos concordar com<br />

uma particular linha de censura para que se chegue a um consenso<br />

argumentado acerca do diagnóstico de uma injustiça que reclame<br />

uma urgente rectificação. O que aqui importa notar, enquanto aspecto<br />

1 Não tratarei aqui da veracidade das afirmações de Burke, mas apenas do modo<br />

como ele, por princípio, apresenta uma fundamentação plural para a acusação. Na verdade,<br />

esta tese de Burke acerca da perfídia pessoal de Hastings é bastante injusta. Por mais<br />

estranho que possa parecer, tempos antes, Burke chegara a defender o manhoso Robert<br />

Clive, que teve responsabilidades bem maiores na ilícita pilhagem da Índia, estando esta sob<br />

o controlo da Companhia – algo que Hastings tentou deter apelando fortemente para a<br />

necessidade de respeitar a ordem e a legalidade (mas também introduzindo uma dose de<br />

humanidade na administração exercida pela Companhia, coisa de que tinha sido muito falha<br />

até então). Tive ocasião de discutir estes factos históricos num discurso comemorativo<br />

proferido na Câmara Municipal de Londres, por altura do 250.º aniversário da Batalha de<br />

Plassey (“The Significance of Plassey”), em Junho de 2007. A conferência foi publicada,<br />

numa versão ampliada, sob o título Imperial Illusions: India, Britain and the Wrong<br />

Lessons, The New Republic, Dezembro, 2007.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

central da ideia de justiça, é que pode acontecer ficarmos com uma<br />

forte sensação de injustiça com base em fundamentos múltiplos e<br />

diferentes, e, apesar disso, poderemos não dar o nosso acordo à<br />

eleição de um particular fundamento como a razão dominante desse<br />

diagnóstico de injustiça.<br />

Considerando um acontecimento recente, talvez possamos oferecer<br />

uma ilustração mais imediata, e mais contemporânea, desta<br />

questão geral que trata da existência de implicações congruentes: os<br />

factos relativos à decisão do governo dos Estados Unidos que levou<br />

à invasão militar do Iraque em 2003. Há várias maneiras de julgar<br />

decisões deste tipo, mas o que aqui se deverá ter em conta é o facto<br />

de ser possível que argumentos distintos e divergentes poderem, ainda<br />

assim, conduzir à mesma conclusão – neste caso, a de que o curso de<br />

acção política escolhido pela coligação liderada pelos Estados Unidos,<br />

e que levou a iniciar uma guerra no Iraque em 2003, estava errado.<br />

Repare-se nos diferentes argumentos que foram sendo apresentados,<br />

todos bastante plausíveis, como críticas contra a decisão de<br />

entrar em guerra no Iraque * . Em primeiro lugar, a conclusão de que a<br />

invasão era um erro pode basear-se na necessidade de obter mais<br />

vozes concordantes a nível global, especialmente através da Nações<br />

Unidas, para que um país possa desembarcar as suas tropas noutro<br />

país. Um segundo argumento já se poderá centrar sobre a importância<br />

de se estar bem informado – por exemplo, quanto aos factos<br />

relativos à existência ou inexistência de armas de destruição maciça<br />

antes da invasão do Iraque –, antes de se tomar decisões militares<br />

deste tipo, decisões que inevitavelmente iriam pôr muitíssimas pessoas<br />

em risco de serem chacinadas, mutiladas ou desalojadas. Um terceiro<br />

argumento já seria atinente à noção de democracia como “governo<br />

pela discussão” (para usarmos uma antiga expressão associada frequentemente<br />

a John Stuart Mill, mas que já antes fora empregue por<br />

Walter Bagehot), e gira em torno do significado político que podemos<br />

atribuir à distorção informacional operada sobre aquilo que venha a<br />

* Claro está que também se apresentaram argumentos em favor da intervenção. Um<br />

consistia na crença de que Saddam Hussein era responsável pelo acto terrorista de 11 de<br />

Setembro; outro, que ele era unha com carne com a al-Qaeda. Provou-se que nenhuma<br />

destas acusações era exacta. É verdade que Hussein era um ditador brutal, mas, afinal,<br />

também havia – e há – muitos outros por todo o mundo a quem coubesse o mesmo epíteto.<br />

39


4 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

ser apresentado ao povo de um certo país, no que se inclui um certo<br />

tipo de ficção culta (tal o caso das ligações imaginárias de Saddam<br />

Hussein aos acontecimentos de 11 de Setembro ou à al-Qaeda); com<br />

tudo isso, dificulta-se aos cidadãos americanos o acesso à decisão<br />

executiva de abrir guerra. Um quarto argumento poderia achar que<br />

nenhuma das precedentes seria a questão principal, identificando-a<br />

antes nas consequências da intervenção militar: seria ela capaz de<br />

trazer a paz e a ordem ao país invadido, ao Médio Oriente ou ao<br />

mundo, e teria sido de esperar que ela viesse reduzir o perigo da<br />

violência e do terrorismo mundiais, ao invés de os vir intensificar?<br />

Todas elas são considerações sérias e envolvem implicações<br />

valorativas muito diferentes, nenhuma das quais poderia ser excluída<br />

à partida por ser irrelevante, ou sem importância, para uma avaliação<br />

de acções deste tipo. Mais: em geral, elas podem nem levar à mesma<br />

conclusão. Todavia, se se mostrar, como sucede neste exemplo específico,<br />

que todos os critérios sustentáveis conduzem a um mesmo<br />

diagnóstico, apontando para um erro crasso, então uma tal conclusão<br />

não precisará de esperar por uma determinação das prioridades relativas<br />

que se poderiam associar a cada uma desses critérios. Com efeito,<br />

a redução arbitrária de princípios múltiplos e potencialmente conflituantes<br />

a um único e solitário sobrevivente, com o guilhotinar de<br />

todos os demais critérios valorativos, não é um pré-requisito para que<br />

se obtenham conclusões úteis e robustas acerca do curso de acção a<br />

seguir. Isto tanto se aplica à teoria da justiça como a qualquer outra<br />

parte da disciplina que tem por objecto a razão prática.<br />

RACIONALIDA<strong>DE</strong> E <strong>JUSTIÇA</strong><br />

A necessidade de termos uma teoria da justiça surge quando nos<br />

detemos a elaborar uma disciplina para este particular exercício da<br />

razão que tem por objecto um tema sobre o qual, como bem dizia<br />

Burke, é muito difícil falar. Tem sido sustentado que a justiça não é<br />

de todo uma questão de raciocínio, mas simplesmente uma questão<br />

de se ser apropriadamente sensível e de se ter faro para a injustiça.<br />

É muito fácil deixarmo-nos tentar a pensar desta maneira. Por exemplo,<br />

quando deparamos com o grassar de uma carestia assoladora, o<br />

que nos parece natural é que protestemos, e não que nos ponhamos a


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

raciocinar elaboradamente acerca da justiça e da injustiça. E no entanto,<br />

uma calamidade só será um caso de injustiça se pudesse ter<br />

sido evitada, e, em especial, se quem pudesse ter adoptado acções<br />

preventivas tivesse deixado de tentar fazê-lo. Há sempre uma qualquer<br />

forma de exercício da razão quando partimos da observação de<br />

uma tragédia e passamos para um diagnóstico que identifica uma<br />

injustiça. A mais disso, os casos de injustiça podem ser bem mais<br />

complexos e subtis do que a mera verificação de uma calamidade<br />

observável. Pode acontecer que haja diferentes argumentos passíveis<br />

de sugerir conclusões díspares, e então, as valorações relativas à<br />

justiça serão tudo menos óbvias.<br />

Amiúde, a evitar oferecer uma justificação raciocinada não são<br />

tanto os manifestantes que protestam indignados, mas sim os plácidos<br />

guardiães da ordem e da justiça. Ao longo de toda a história,<br />

atraídos por uma tal reticência, foram aqueles que tinham funções de<br />

governo, os que estavam investidos em autoridade pública e que não<br />

estavam certos de quais fossem os fundamentos que pudessem justificar<br />

um certo curso de acção, ou que não estavam dispostos a fazer<br />

o exame dos motivos em que assentavam as suas políticas. Lord<br />

Mansfield, o poderoso juiz inglês do século XVIII, deu este famoso<br />

conselho a um recém-nomeado governador colonial: «Tome em consideração<br />

o que acha que a justiça pede e aja em conformidade. Mas<br />

nunca diga quais são as suas razões, pois o seu juízo provavelmente<br />

estará certo, mas as suas razões certamente estarão erradas 2 ». Este<br />

será, com certeza, um bom conselho para governar com tacto, mas<br />

de nenhuma maneira há-de ser um modo de garantir que as medidas<br />

certas sejam tomadas, como também não ajudará a ter a certeza de<br />

que as pessoas afectadas estarão a dar-se conta de que se estará a<br />

fazer justiça (aspecto que é, como veremos mais à frente, uma parte<br />

da disciplina que deve regular uma tomada de decisões sustentáveis<br />

em matéria de justiça).<br />

Os requisitos que uma teoria da justiça deve preencher incluem<br />

chamar à cena a razão para que desempenhe o seu papel no diagnóstico<br />

acerca da justiça e da injustiça. Ao longo de centenas de anos, os<br />

autores que, em diferentes partes do mundo, foram escrevendo sobre<br />

a justiça têm tentado providenciar a base intelectual que permita<br />

passar de um sentido geral de injustiça para um seu diagnóstico<br />

particular e raciocinado, e, a partir daí, para a análise dos meios para<br />

41


4 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

se fazer progredir a justiça. As tradições da argumentação acerca da<br />

justiça e da injustiça têm uma longa – e espantosa – história em todo<br />

o mundo, e dela podemos retirar sugestões iluminantes sobre as razões<br />

da justiça, a fim de sobre elas reflectirmos (o que passaremos a<br />

fazer já de seguida).<br />

O ILUMINISMO E UMA DIVERGÊNCIA <strong>DE</strong> BASE<br />

Sendo embora certo que o tema da justiça social tem sido discutido<br />

ao longo dos tempos, esta matéria recebeu um impulso particularmente<br />

forte durante o período do Iluminismo europeu, nos séculos<br />

XVIII e XIX, com o encorajamento que provinha de um clima político<br />

de mudança e com a transformação económica e social que então<br />

ocorria na Europa e na América. Entre os principais filósofos associados<br />

ao pensamento mais radical desse período, encontramos fundamentalmente<br />

duas linhas de pensamento acerca da justiça, que sobre<br />

ela discorrem de modo divergente. Segundo creio, a distinção entre<br />

estas duas perspectivas tem recebido muito menos atenção do que<br />

aquela que, sem dúvida, merece. Começarei por referir esta dicotomia,<br />

porque isso ajudará a localizar a concepção da teoria da justiça<br />

que tento apresentar ao longo deste livro.<br />

Uma das perspectivas, liderada por Thomas Hobbes no século<br />

XVII, e seguida de maneiras diferentes por pensadores tão notáveis<br />

como o era Jean-Jacques Rousseau, concentrava-se na identificação<br />

das combinações ou arranjos institucionais que mostrassem ser justos<br />

para uma sociedade. Esta perspectiva, que pode ser chamada de<br />

“institucionalismo transcendental”, apresenta dois traços distintos.<br />

Primeiro: ela concentra a sua atenção naquilo que pode caracterizar a<br />

justiça perfeita, mais do que em comparações relativas entre justiça e<br />

injustiça. Assim, ela tenta apenas identificar as características sociais<br />

que, em termos de justiça, não são passíveis de ser transcendidas;<br />

deste modo, o seu foco de atenção não consiste em comparar sociedades<br />

que existam na realidade, que sempre poderão ficar aquém dos<br />

ideais da perfeição. A sua investigação aponta para a identificação da<br />

natureza do que é “o justo”, ao invés de tentar encontrar critérios<br />

para uma alternativa que fosse “menos injusta” do que uma outra.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Segundo: ao tentar encontrar a perfeição, o institucionalismo<br />

transcendental aposta, a título primário, em tentar que as instituições<br />

sejam as certas, não se ocupando directamente das sociedades efectivas<br />

que, em última análise, possam acabar por emergir. É claro,<br />

todavia, que a natureza da sociedade que resultasse de um dado<br />

conjunto institucional dependerá outrossim de aspectos não institucionais,<br />

tais como os comportamentos efectivos adoptados pelas pessoas<br />

no curso das suas interacções sociais. Assim, ao discorrer sobre<br />

as consequências prováveis que adviriam das instituições – isto é,<br />

acaso um institucionalista transcendental opte por comentá-las ou<br />

quando o decida fazer –, abraçam-se certas suposições comportamentais<br />

que hão-de ser uma ajuda para o funcionamento das instituições<br />

que venham a ser escolhidas.<br />

Ambos os aspectos têm a ver com a maneira de pensar “contratualista”<br />

(“contractarian”) que Thomas Hobbes encetara e que viria<br />

a ser continuada por John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel<br />

Kant 3 . Muito claramente, um hipotético “contrato social”, que se<br />

presume ter sido objecto de escolha, terá que ver com uma certa<br />

alternativa ideal que se prefere a esse caos que, de outra maneira,<br />

haveria de caracterizar a sociedade; ora os contratos que, de modo<br />

proeminente, vemos serem configurados por estes autores tratam primariamente<br />

da questão relativa à escolha das instituições. E o resultado<br />

global haveria de ser a elaboração de teorias da justiça que se<br />

centravam numa identificação ou caracterização transcendental de<br />

instituições ideais * .<br />

Chegados aqui, é no entanto importante fazer notar que os<br />

institucionalistas transcendentais, esses mesmos que estavam em busca<br />

* Iniciada por Hobbes, é certo que esta perspectiva da justiça que parte do contrato<br />

social combina transcendentalismo e institucionalismo, contudo, vale a pena notar que estes<br />

dois traços não têm de andar juntos necessariamente. Podemos ter, por exemplo, uma teoria<br />

transcendental que esteja centrada não tanto sobre as instituições e mais sobre as realizações<br />

conseguidas no âmbito das actividades sociais (a busca do mundo perfeitamente utilitário<br />

povoado de pessoas radiantes e felizes, eis aí um exemplo de uma perspectiva que apenas<br />

persegue uma “transcendência assente na realização”). Ou então, podemos centrar-nos numa<br />

avaliação das instituições partindo de perspectivas comparativas, em vez de enveredarmos<br />

por uma mera investigação transcendental do pacote perfeito de instituições sociais (uma<br />

ilustração de um institucionalismo comparativo poderia ser a preferência dada a um maior –<br />

ou até mesmo um menor – papel do mercado).<br />

43


4 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

das instituições perfeitamente justas, por vezes, deixaram-nos também<br />

análises profundamente iluminadoras dos imperativos morais ou<br />

políticos que rodeiam os comportamentos tidos por socialmente<br />

apropriados. Isto é válido, em particular, no caso de Immanuel Kant<br />

e de John Rawls. Ambos participaram desta investigação transcendental<br />

das instituições, mas também nos deram análises de longo<br />

alcance sobre as características das normas de comportamento. Conquanto<br />

se tenham dedicado ao estudo das escolhas institucionais, as<br />

suas análises assumem o semblante mais amplo de perspectivas da<br />

justiça “centradas em combinações” de factores, onde a par das instituições<br />

acertadas se incluem também os comportamentos acertados * .<br />

Obviamente, há um contraste radical entre uma concepção da justiça<br />

“centrada em arranjos” nt (“arrangement-focused”) e uma perspectiva<br />

“centrada em realizações” (“realization-focused”): esta última deverá<br />

atender, por exemplo, ao efectivo comportamento que as pessoas<br />

adoptam, ao invés de partir do princípio de que todos seguirão o<br />

comportamento conforme o ideal.<br />

Contrastando com o institucionalismo transcendental, houve outros<br />

teóricos do Iluminismo que assumiram uma variedade de perspectivas<br />

comparativas preocupadas com as realizações sociais (aquelas<br />

que resultam de instituições reais, de comportamentos reais e de<br />

outras influências mais). Podemos encontrar diferentes versões deste<br />

tipo de pensamento comparativo, por exemplo, nas obras de Adam<br />

Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, de Mary<br />

Wollstonecraft e de John Stuart Mill, entre vários outros líderes de<br />

correntes de pensamento inovadoras, ao longo dos séculos XVIII e<br />

XIX. Se bem que estes autores, com as suas diferentes ideias acerca<br />

das exigências da justiça, tenham proposto maneiras também muito<br />

diferentes de proceder a comparações sociais, ainda assim e correndo<br />

o risco de exagerarmos, sim, mas apenas um pouco, podemos dizer<br />

* Eis a explicação de Rawls: «A outra limitação das nossas discussões é o facto de<br />

que, na sua maior parte, estou ocupado a examinar os princípios da justiça que regulariam<br />

uma sociedade bem ordenada. É suposto que todos ajam segundo a justiça e que façam a<br />

sua parte com vista à preservação das instituições justas» (A Theory of Justice, Cambridge,<br />

MA, Harvard University Press, 1971, pp. 7-8).<br />

nt Para esta expressão, poderíamos alternar entre “arranjo” (de elementos/factores) e “combinação”<br />

(de elementos/factores), mas optaremos pelo vocábulo português de idêntico étimo.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

que eles se envolvem em comparações de sociedades que já existiam<br />

ou, então, que tinham toda a viabilidade de virem a existir na realidade,<br />

não confinando por isso a sua análise a indagações transcendentais<br />

em busca da sociedade perfeitamente justa. O mais das vezes, aqueles<br />

que tinham por escopo comparações centradas em realizações<br />

sociais estariam primariamente interessados em remover as injustiças<br />

patentes do mundo que viam à sua frente.<br />

A distância que separa estas duas perspectivas, o institucionalismo<br />

transcendental e a comparação centrada em realizações, é<br />

digníssima de nota. Como podemos observar, é precisamente a primeira<br />

destas tradições de pensamento – a do institucionalismo transcendental<br />

– que, em grande medida, serve de inspiração para a corrente<br />

dominante da actual filosofia política, no que respeita à investigação<br />

da teoria da justiça. A exposição mais marcante e mais poderosa<br />

desta perspectiva, encontramo-la na obra do principal filósofo político<br />

do nosso tempo, John Rawls (cujas ideias e cujos contributos,<br />

com as suas implicações de longo alcance, serão estudados no Capítulo<br />

2, “Rawls e Para Lá de Rawls”) * . De facto, os “princípios da<br />

justiça” de Rawls, como aparecem na sua Teoria da Justiça, são<br />

inteiramente definidos a partir da sua relação com instituições perfeitamente<br />

justas, embora ele também trate de investigar – e com particular<br />

luminosidade – as normas que hão-de reger os comportamentos<br />

acertados em contextos políticos e morais † .<br />

Nos dias de hoje, há ainda vários outros proeminentes estudiosos<br />

da teoria da justiça que, pelo menos em traços largos, optaram<br />

por enveredar pela rota do institucionalismo transcendental – estou a<br />

* Veja-se a explicação que dava em A Theory of Justice (1971): «O meu escopo é<br />

apresentar uma concepção da justiça que generalize e leve para um plano superior de<br />

abstracção a já familiar teoria dos contratos sociais, tal como se pode encontrar, por exemplo,<br />

em Locke, Rousseau ou Kant» (p.10). Vide também o seu Political Liberalism, Nova<br />

Iorque, Columbia University Press, 1993. As rotas “contratualistas” (“contractarian”)<br />

trilhadas pela teoria da justiça de Rawls já tinham sido por ele enfatizadas num ensaio<br />

anterior – e pioneiro –, “Justice as Fairness”, Philosophical Review, 67 (1958).<br />

† Ao sugerir a necessidade daquilo a que chama “equilíbrio reflexivo” (“reflective<br />

equilibrium”), Rawls enxerta na sua análise social a necessidade de que cada um submeta os<br />

seus valores e prioridades a um escrutínio crítico. Além disso, como já se mencionou antes,<br />

na análise rawlsiana, as “instituições justas” aparecem identificadas com a presunção de uma<br />

efectiva conformidade da conduta com as regras de comportamento mais apropriadas.<br />

45


4 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

pensar em Ronald Dworkin, David Gauthier e Robert Nozick, além<br />

de outros. As suas teorias, tendo-nos fornecido diferentes – mas, em<br />

todos os casos, importantes – reflexões que perscrutam as exigências<br />

apresentadas pela “sociedade justa”, têm em comum o objectivo de<br />

identificar as regras e instituições justas, ainda que a caracterização<br />

destes arranjos apareça com feitios muitos diferentes. Pode, pois,<br />

dizer-se que a caracterização das instituições perfeitamente justas se<br />

tornou a tarefa central das modernas teorias da justiça.<br />

O PONTO <strong>DE</strong> PARTIDA<br />

Contrastando com a maioria das modernas teorias da justiça, que<br />

giram em torno da “sociedade justa”, este livro tentará levar a cabo<br />

uma investigação de comparações que partirão das realizações sociais<br />

e que se manterão centradas na observação dos avanços e recuos da<br />

justiça. Deste ponto de vista, este livro não se mostra alinhado com<br />

essa tradição mais forte e filosoficamente mais aclamada que é a do<br />

institucionalismo transcendental, a mesma que vimos emergir durante<br />

o Iluminismo e que, sendo chefiada por Hobbes, foi desenvolvida<br />

por Locke, Rousseau e Kant, entre outros; antes alinhará ao lado da<br />

“outra” tradição, que ganhou forma pela mesma altura ou um pouco<br />

mais tarde (e que, embora de maneiras de diferentes, foi seguida por<br />

Adam Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, Mill e outros).<br />

Como é bom de ver, o facto de partilhar o mesmo ponto de<br />

partida com estes diferentes pensadores não quer dizer que dê o meu<br />

acordo às suas teorias substantivas (coisa que, aliás, deveria ser<br />

óbvia, ou não se desse o caso de eles próprios diferirem tanto entre<br />

si); mas, uma vez que passemos além desse ponto de partida partilhado,<br />

será mister dar também atenção a alguns pontos de chegada<br />

eventuais * . O resto do livro tratará precisamente de explorar essa<br />

viagem.<br />

* Para além disso, estes autores empregam a palavra “justiça” de muitas maneiras<br />

diferentes. Como fazia notar Adam Smith, o termo “justiça” tem vários significados diferentes<br />

(The Theory of Moral Sentiments, 6.ª ed., Londres, T. Cadell, 1790, VII. ii. 1. 10, na<br />

edição da Clarendon Press, 1976, p. 269). Iremos examinar as ideias de Smith sobre a<br />

justiça no seu sentido mais amplo.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

A importância do ponto de partida não pode ser negada, em<br />

especial, no que toca à selecção de certas questões que devem ser<br />

respondidas (por exemplo: “Como se pode obter o progresso da<br />

justiça?”) em detrimento de outras (por exemplo: “O que seriam<br />

instituições perfeitamente justas?”). Este ponto de partida provoca<br />

um duplo efeito: primeiro, o de se enveredar por uma rota comparativa<br />

e não por uma de tipo transcendental; segundo, o de ter por foco<br />

central de atenção as realizações efectivas das sociedades implicadas<br />

e não meramente regras e instituições. Considerado o actual equilíbrio<br />

de ênfases na filosofia política contemporânea, tudo isso exigirá<br />

uma mudança radical no modo de formular da teoria da justiça.<br />

Mas para esta viagem, por que motivo precisamos nós de uma<br />

tal partida dupla? Começo pelo transcendentalismo. Logo aqui, vejo<br />

já dois problemas. Primeiro: mesmo sob condições estritas de imparcialidade<br />

e de um escrutínio feito com abertura de espírito (por<br />

exemplo, tal este aparece caracterizado por Rawls na sua “posição<br />

original”), pode não chegar a haver um acordo argumentado acerca<br />

da natureza da “sociedade justa”, e eis-nos assim diante da questão<br />

da viabilidade de se conseguir uma solução transcendental com a<br />

qual todos estejam de acordo. Segundo: um exercício da razão prática<br />

que implique uma escolha efectiva exigirá uma moldura para essas<br />

comparações relativas à situação da justiça, a fim de que se possa<br />

escolher entre as alternativas viáveis, não bastando a identificação e<br />

a caracterização de uma situação perfeita que não pudesse ser transcendida,<br />

mas possivelmente inacessível, e, desta feita, temos a questão<br />

da redundância de uma busca da solução transcendental. Passarei de<br />

imediato a discutir estes problemas levantados pelo ponto de vista<br />

transcendental (tanto a sua viabilidade como a sua redundância),<br />

mas, antes disso, seja-me permitido comentar brevemente o acento<br />

posto no aspecto institucional que vai implicado na perspectiva do<br />

institucionalismo transcendental.<br />

Esta segunda vertente do ponto de partida trata da necessidade<br />

de pôr o foco de atenção sobre realizações e resultados efectivos, em<br />

vez de tão-só o apontar para o estabelecimento das instituições e das<br />

regras que venham a ser identificadas como apropriadas. Como já<br />

antes se mencionou, aqui, o contraste prende-se com uma dicotomia<br />

geral – e muito mais ampla – entre uma visão da justiça “centrada em<br />

arranjos” e um seu entendimento “centrado em realizações”. A primeira<br />

47


4 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

linha de pensamento vem propor que se construa uma concepção da<br />

justiça em termos de arranjos ou combinações organizacionais – certas<br />

instituições com certas regulamentações e certas regras de comportamento<br />

–, pelo que uma presença activa das mesmas seria o<br />

indicador de que se estaria a cumprir a justiça. Neste contexto, impõe-se<br />

uma pergunta, a de saber se a análise da justiça deverá ficar<br />

limitada ao esforço de se conseguir acertar ao indicar as instituições<br />

fundamentais e as regras gerais mais apropriadas. Não deveríamos<br />

também examinar o que se passa na sociedade, incluindo aí os diferentes<br />

tipos de vida que, na realidade, as pessoas conseguem levar<br />

perante determinadas regras e instituições, mas ainda outras influências<br />

que inelutavelmente acabariam por afectar as vidas humanas,<br />

entre as quais os efectivos comportamentos que se possam observar?<br />

Irei, pois, considerar à vez os argumentos a favor de cada um<br />

dos pontos de partida. Começarei pelos problemas levantados pela<br />

caracterização de tipo transcendental, tratando à cabeça da questão<br />

da viabilidade, para lidar depois com o problema da redundância.<br />

VIABILIDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> UM ACORDO TRANSCEN<strong>DE</strong>NTAL ÚNICO<br />

Pode acontecer que haja sérias divergências entre princípios de justiça<br />

concorrentes que acabem por resistir a um escrutínio crítico, sem<br />

que isso afecte as pretensões de imparcialidade. Isto causa um problema<br />

de não pouca monta, desde logo em relação à tese de John<br />

Rawls, segundo a qual deveria ocorrer uma escolha unânime de um<br />

único conjunto de «dois princípios de justiça» numa hipotética situação<br />

de igualdade primordial (que ele apelida de «a posição original»)<br />

em que os interesses próprios ou de parte não seriam conhecidos<br />

pelos próprios interessados. Isto leva a presumir que, basicamente,<br />

há apenas uma espécie de argumento imparcial livre de interesses de<br />

parte e capaz de satisfazer as exigências da equidade ou da justeza.<br />

Quer me parecer, contudo, que isto é um erro, e é isso que me<br />

proponho mostrar.<br />

Por exemplo, de uma banda, pode haver diferenças de posição<br />

quanto aos exactos pesos a dar comparativamente em matéria de<br />

igualdade distributiva, e, ao mesmo tempo, pode aquiescer-se num<br />

acréscimo global ou por agregação. Na sua caracterização transcen-


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

dental, John Rawls individualiza uma fórmula deste tipo (a regra<br />

lexicográfica maximin, de que se tratará no Capítulo 2), por entre<br />

várias que estão à nossa disposição; aí, não existem argumentos<br />

convincentes que pudessem eliminar todas as demais alternativas que<br />

se mostrassem capazes de competir com a fórmula especialíssima de<br />

Rawls para a garantia de uma atenção ou consideração imparciais * .<br />

Pode ainda haver muitas outras divergências argumentadas relativamente<br />

a fórmulas particulares sobre as quais Rawls se debruça ao<br />

tratar dos seus dois princípios de justiça, sem que isso nos explique<br />

por que motivo não seria possível que outras alternativas pudessem<br />

continuar a captar a nossa atenção na atmosfera imparcial da sua<br />

posição original.<br />

Se um diagnóstico sobre arranjos sociais perfeitamente justos se<br />

mostrar irremediavelmente problemático, então toda a estratégia do<br />

institucionalismo transcendental ficará seriamente comprometida,<br />

ainda que todas as alternativas possíveis e imaginárias estejam à<br />

nossa disposição e fossem acessíveis. Assim, por exemplo, os dois<br />

princípios da justiça presentes no estudo clássico de John Rawls<br />

dedicado à “justiça como equidade” (e que merecerá uma discussão<br />

mais exaustiva no Capítulo 2) versam precisamente sobre instituições<br />

perfeitamente justas num mundo em que todas as alternativas estão à<br />

nossa disposição. No entanto, o que nos falta saber é se a pluralidade<br />

de razões que podem fundar a justiça iria permitir que, na posição<br />

original, emergisse um único conjunto de princípios de justiça. Por<br />

isso, esta elaborada investigação da justiça social de Rawls, que vai<br />

progredindo de degrau em degrau a partir da caracterização e da<br />

constituição de instituições justas, ver-se-ia encravada logo na sua base.<br />

Nos seus escritos posteriores, Rawls faz algumas concessões<br />

no sentido de reconhecer que «é claro que os cidadãos irão divergir<br />

acerca de quais as concepções de justiça política que têm por mais<br />

razoáveis». Aliás, no The Law of Peoples (1999) chega mesmo a<br />

dizer:<br />

* Diferentes tipos de regras imparciais de distribuição são discutidas no meu On<br />

Economic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, e a edição ampliada com um novo<br />

Apêndice, elaborado em parceria com James Foster, 1997. Vide também Alan Ryan<br />

(coord.), Justice, Oxford, Clarendon Press, 1993, e David Miller, Principles of Social<br />

Justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999.<br />

49


5 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

«O conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepções<br />

políticas sobre a justiça, não apenas por uma. Há muitos liberalismos e<br />

visões correlatas, e, por isso, haverá muitas formas de razão pública, a<br />

serem especificadas por uma família de concepções políticas razoáveis. De<br />

entre estas, a justiça como equidade, quaisquer que sejam os seus méritos,<br />

não é mais do que uma delas.» 4<br />

No entanto, não fica ainda claro como é que Rawls iria lidar<br />

com as amplas implicações de uma tal concessão. As instituições<br />

específica e firmemente escolhidas para integrarem a estrutura básica<br />

da sociedade iriam exigir uma resolução também específica quanto<br />

aos princípios da justiça, tal como foi delineado pelo próprio Rawls<br />

nas suas obras anteriores, e, entre elas, em Uma Teoria da Justiça<br />

(1971) * . Uma vez que se deixasse cair a pretensão de unicidade<br />

reclamada pelos princípios de justiça rawlsianos (e os argumentos<br />

nesse sentido aparecem delineados nas obras mais tardias de Rawls),<br />

então, o programa institucional passaria a sofrer de uma séria<br />

indeterminação; e Rawls não nos adianta muito sobre como um particular<br />

conjunto de instituições poderia vir a ser escolhido com base<br />

num conjunto de princípios de justiça concorrentes que viriam exigir<br />

diferentes combinações institucionais para tecer a estrutura básica de<br />

uma sociedade. Claro está que Rawls sempre poderia resolver este<br />

problema abandonando simplesmente o institucionalismo transcendental<br />

das suas primeiras obras (em particular, Uma Teoria da Justiça);<br />

ora, uma tal opção teria sido a que mais teria agradado a quem<br />

vos escreve † . Temo, no entanto, não poder asseverar que fosse essa a<br />

* As dificuldades encontradas ao se tentar chegar a um conjunto único de princípios<br />

que sejam capazes de guiarem a escolha institucional no âmbito da posição original são<br />

discutidas no seu livro posterior, Justice as Fairness: A Restatement, a cargo de Erin Kelly,<br />

Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001, pp. 132-134. Estou muito reconhecido a<br />

Erin Kelly por ter aceite discutir comigo as relações entre os primeiros escritos de Rawls e<br />

as suas formulações mais tardias acerca da teoria da justiça como equidade.<br />

† O cepticismo de John Garay acerca da teoria rawlsiana da justiça é muito mais<br />

radical do que o meu, mas ambos concordamos em rejeitar a crença de que as questões<br />

valorativas só admitem uma única resposta correcta. Concordo também que «a diversidade<br />

dos estilos de vida e de regimes é uma marca característica da liberdade humana, e não de<br />

um erro» (Two Faces of Liberalism, Cambridge, Polity Press, 2000, p. 139. A minha<br />

investigação prende-se com acordos argumentados que se possam no entanto alcançar sobre<br />

como reduzir a injustiça, não obstante as nossas diferentes visões acerca do regime “ideal”.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

direcção que, em última análise, Rawls estava a seguir, muito embora<br />

os seus trabalhos posteriores nos levem necessariamente a levantar<br />

essa questão.<br />

TRÊS CRIANÇAS E UMA FLAUTA: UMA ILUSTRAÇÃO<br />

No âmago do particular problema relativo à hipótese de uma solução<br />

imparcial única que nos indique a sociedade perfeitamente justa,<br />

encontramos a possível sustentabilidade de razões de justiça plurais e<br />

concorrentes, tendo todas elas bons títulos de imparcialidade, sem<br />

embargo de divergirem entre elas – e de entre si rivalizarem. Permitam-me<br />

ilustrar este problema com um exemplo. Nele, o leitor terá de<br />

decidir qual de entre três crianças – Ana, Bernardo e Carla – deverá<br />

ficar com essa flauta sobre a qual os vemos a discutir. Ana reivindica<br />

a flauta com fundamento no facto de ser ela a única dos três que a<br />

sabe tocar (os outros não o negam), e de que seria muito injusto que<br />

se negasse a flauta à única pessoa que, de facto, consegue tocar<br />

flauta. Se tudo o que o leitor sabe se resumisse a isto, então a tese<br />

favorável a que se desse a flauta à primeira criança seria muito forte.<br />

Num cenário alternativo, já seria Bernardo a não se deixar ficar.<br />

Agora é a sua vez de falar, e para fazer valer a sua pretensão sobre a<br />

flauta, lembra que, dos três, ele é único a ser tão pobre que não tem<br />

quaisquer brinquedos. A flauta seria, pois, algo com que pudesse<br />

brincar (os outros dois concedem que são mais ricos e mais bem<br />

fornecidos no que toca a amenas diversões). Acaso o leitor se limitasse<br />

a ouvir o Bernardo e não tivesse ouvido nenhum dos outros, a<br />

tese favorável a que se lhe desse a flauta seria realmente forte.<br />

Seja ainda outro cenário alternativo. Desta feita, é a vez de falar<br />

da Carla, e ela lembra-nos que esteve a trabalhar com grande afinco<br />

durante vários meses para conseguir construir a flauta com o trabalho<br />

das suas próprias mãos (coisa que é confirmada pelos outros); e no<br />

preciso momento em que ela tinha conseguido acabar o seu trabalho,<br />

«nesse preciso instante», queixa-se ela, «vêm estes expropriadores e<br />

tentam arrancar-me a flauta das mãos». Como a declaração de Carla<br />

fosse a única que o leitor tivesse tido a ocasião de ouvir, então bem<br />

poderia estar inclinado a dar-lhe a flauta, assentindo na sua pretensão<br />

muito compreensível de vir reivindicar algo que ela própria fez.<br />

51


5 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Depois de ter ouvido os três e os seus diferentes raciocínios, o<br />

leitor tem agora entre mãos uma difícil decisão. Teóricos de correntes<br />

várias, tais como os utilitaristas ou os igualitaristas económicos, ou<br />

ainda os libertários puros e duros, cada um deles poderá seguir a<br />

perspectiva de que há uma solução justa que, de tão óbvia, salta aos<br />

olhos, pelo que encontrá-la não levantará qualquer dificuldade. Porém,<br />

é quase certo que todos eles, cada um por seu turno, haveriam<br />

de chegar a uma solução diferente, e em todos os casos, a título de<br />

solução obviamente correcta.<br />

Bernardo, o mais pobre dos três, conseguiria facilmente o apoio<br />

declarado do igualitarista económico, estando este apostado em reduzir<br />

o fosso entre os recursos económicos das pessoas. Já por outro<br />

lado, Carla, a que fabricou a flauta, receberia imediatamente a simpatia<br />

do libertário. O utilitarista hedonista poderia ver-se confrontado<br />

com o desafio mais espinhoso, mas decerto que se inclinaria, mais do<br />

que o libertário ou o igualitarista económico, a dar peso ao facto de<br />

que, provavelmente, o prazer de Ana seria o mais forte, visto ser ela<br />

a única que sabe tocar flauta (e há ainda a máxima geral “quem<br />

guarda tem”). Todavia, o utilitarista também deveria reconhecer que<br />

a relativa privação de Bernardo poderia tornar muito maior o seu<br />

ganho acrescido de felicidade ao conseguir a flauta. O “direito” de<br />

Carla a obter o que ela própria construiu pode não comover imediatamente<br />

o utilitarista, mas, ainda assim, uma mais aturada reflexão<br />

utilitarista acabaria por aconselhar a dar alguma atenção às exigências<br />

dos incentivos laborais para a construção de uma sociedade,<br />

pelo menos, se se quiser que, nela, a criação de utilidade venha a ser<br />

sustentada e encorajada pelo facto de se permitir que as pessoas<br />

conservem aquilo que produzem com o seu próprio esforço * .<br />

No entanto, o apoio do libertário a que se dê a flauta à Carla não<br />

será condicionado como acontece necessariamente no caso do<br />

utilitarista, que o faz depender dos efeitos gerados pelo funcionamento<br />

dos incentivos, pois que para um libertário, o direito de cada<br />

* Naturalmente, aqui, apenas estamos a observar um mero caso em que se pode<br />

identificar de imediato quem produziu o quê. Uma tal tarefa pode até ser bastante fácil num<br />

caso como este, de uma flauta que a Carla construiu sozinha. Contudo, esse tipo de diagnóstico<br />

pode levantar problemas sérios quando estão envolvidos vários factores de produção,<br />

incluindo recursos não laborais.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

um a obter tudo aquilo que produzir por si próprio seria tomado em<br />

consideração a título imediato. A noção de direito aos frutos do<br />

próprio trabalho é sempre capaz de unir libertários de direita e marxistas<br />

de esquerda (por muito grande que seja o desconforto que<br />

possam sentir ao se verem assim na companhia uns dos outros) * .<br />

O ponto central em tudo isto consiste em ver que não é fácil<br />

atirar para um canto, por desprovidas de fundamento, qualquer uma<br />

destas pretensões, assentes respectivamente na busca da realização<br />

pessoal, na eliminação da pobreza ou na faculdade de fruir do produto<br />

do próprio trabalho. As diferentes soluções têm todas elas argumentos<br />

sérios a seu favor, tanto assim que poderemos não ser capazes de<br />

escolher sem arbitrariedade um dos argumentos alternativos, dizendo<br />

ser esse aquele que há de prevalecer necessariamente em todos os<br />

casos † .<br />

Quero ainda chamar a atenção para um facto algo óbvio, o de<br />

que as diferenças entre os argumentos que as crianças apresentam a<br />

título de justificação não representam divergências sobre o que gera<br />

uma vantagem individual (conseguir a flauta é tido por vantajoso por<br />

todos eles e é secundado por cada um dos respectivos argumentos),<br />

mas antes acerca dos princípios que, em geral, devem disciplinar a<br />

afectação dos recursos. São eles princípios que indicam como se<br />

deverão organizar as combinações sociais, que instituições escolher e<br />

que realizações sociais acabarão por se conseguir graças a umas e a<br />

outras. Não se trata apenas de ver que os interesses próprios das<br />

crianças diferem entre si (embora isto também aconteça), mas também<br />

* Dá-se o caso, aliás, de o próprio Karl Marx se ter tornado bastante céptico em<br />

relação ao “direito sobre o trabalho próprio”, que ele acabaria por ver como um “direito<br />

burguês” a ser rejeitado, em última análise, em favor de uma “distribuição segundo as<br />

necessidades”, ponto de vista que ele desenvolveu com alguma ênfase na sua última obra de<br />

fôlego, A Crítica do Programa de Gotha (1875). A importância desta dicotomia é discutida<br />

no meu livro On Economic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, Capítulo 4. Vide<br />

também G. A. Cohen, History, Labour and Freedom: Themes from Marx, Oxford,<br />

Clarendon Press, 1988.<br />

† Como aventava Bernard Williams: «Nem sempre é necessário ultrapassar o desacordo».<br />

De facto, ele «pode ser um traço importante e constitutivo das nossas relações com os<br />

outros, e pode também ser visto meramente como algo com que se há-de contar, atendendo<br />

às melhores explicações de que dispomos acerca do modo em que surge um tal desacordo»<br />

(Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, p.133).<br />

53


5 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

que cada um dos três argumentos aponta para um diferente tipo de<br />

razão imparcial e não arbitrária.<br />

Ora, isto não se aplica apenas à disciplina da equidade na posição<br />

original rawlsiana, mas também a outras exigências de imparcialidade,<br />

como será o caso do requisito de Thomas Scanlon segundo o<br />

qual os nossos princípios deverão satisfazer «aquilo que os demais<br />

não poderiam razoavelmente rejeitar» 5 . Como já foi referido, pode<br />

muito bem acontecer que pensadores de diferentes filiações, sejam<br />

eles utilitaristas, igualitaristas económicos, teóricos dos direitos dos<br />

trabalhadores ou libertários puros e duros, venham defender, cada<br />

um por si, que há uma só solução justa óbvia e que a mesma é<br />

facilmente detectável, no entanto cada um deles iria argumentar em<br />

favor de uma solução diferente como sendo obviamente correcta. De<br />

facto, poderá não existir um qualquer arranjo social perfeitamente<br />

justo e identificável, em torno do qual pudesse emergir um acordo<br />

imparcialmente obtido.<br />

UMA MOLDURA COMPARATIVA OU TRANSCEN<strong>DE</strong>NTAL?<br />

O problema da perspectiva transcendental não deriva apenas da possível<br />

existência de uma pluralidade de factores concorrentes que pretendem<br />

afirmar a respectiva relevância para a avaliação da justiça.<br />

É verdade que a inexistência de uma combinação de factores perfeitamente<br />

justa que seja identificável é um problema importante, ainda<br />

assim, importa reconhecer que a inviabilidade da teoria transcendental<br />

não é o único argumento com importância crítica que depõe a<br />

favor de uma abordagem comparativa da razão prática da justiça, é-o<br />

também a sua redundância. Se é suposto que uma teoria da justiça<br />

deve guiar a escolha raciocinada das instituições, estratégias e políticas<br />

a seguir, então a individualização de combinações sociais inteiramente<br />

justas não será necessária nem suficiente.<br />

Exemplifiquemos: se estivermos a tentar escolher entre um<br />

Picasso e um Dalí, não nos serve de ajuda invocar um diagnóstico<br />

(admitindo que um tal diagnóstico transcendental fosse possível) segundo<br />

o qual, de entre todos, no mundo inteiro, o quadro ideal é a<br />

Mona Lisa. Pode ser um discurso interessante, mas não aquece nem<br />

arrefece no que toca à escolha entre um Dalí e um Picasso 6 . Com


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

efeito, não é de todo necessário desatar a falar sobre qual possa ser o<br />

maior e o mais perfeito dos quadros em todo o mundo, se o que<br />

queremos é escolher entre as duas alternativas com que estamos<br />

confrontados. Mas também não é suficiente, nem sequer tem especial<br />

serventia, virmos a saber que a Mona Lisa é a pintura mais perfeita<br />

do mundo, se, na realidade, a escolha é entre um Dalí e um Picasso.<br />

Este ponto pode até parecer enganadoramente simples. Uma<br />

teoria que caracterize uma alternativa transcendental, por esse mesmo<br />

processo, não nos dirá também o que queiramos saber acerca da<br />

justiça comparativa? E a resposta é não, não diz. É claro que podemos<br />

ser tentados pela ideia de graduar as alternativas de acordo com<br />

a respectiva proximidade em relação à escolha perfeita, de modo que<br />

uma tal caracterização transcendental também acabaria por gerar indirectamente<br />

uma graduação (ranking) de alternativas. Mas uma tal<br />

abordagem não nos levará muito longe, em parte, porque os objectos<br />

podem diferir entre si em dimensões de apreciação diferentes (pelo<br />

que surge o problema acrescido de avaliar a importância relativa da<br />

distância em distintas dimensões), mas também porque a proximidade<br />

descritiva não é necessariamente um guia da proximidade valorativa<br />

(uma pessoa que prefere o vinho tinto ao branco pode também preferir<br />

qualquer dos dois a uma mistura de ambos, apesar de, num sentido<br />

descritivo óbvio, a mistura ser mais próxima do vinho tinto, o<br />

preferido, do que o seria um vinho branco puro).<br />

Claro está que é possível termos uma teoria que faz ambas as<br />

coisas: uma avaliação entre pares de alternativas e uma identificação<br />

ou caracterização transcendental (sempre que isso não se torne impossível<br />

pela sobrevivência de uma pluralidade de razões imparciais<br />

que tenham um título para reivindicar a nossa atenção). Tal seria o<br />

caso de uma teoria “conglomerada”, mas os dois tipos de juízo não<br />

decorrem um do outro. Mais imediatamente, as teorias da justiça que<br />

normalmente andam associadas a uma identificação transcendental<br />

(por exemplo, as de Hobbes, Rousseau e Kant, ou, no nosso tempo,<br />

Rawls e Nozick) não são, de facto, teorias conglomeradas. É verdade,<br />

todavia, que no processo de desenvolvimento das respectivas teorias<br />

transcendentais, alguns destes autores chegaram a propor certos argumentos<br />

que se bandeiam para o lado de uma operação de tipo comparativo.<br />

Contudo, em geral, a individualização de uma alternativa<br />

55


5 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

transcendental não oferece uma solução para o problema relativo a<br />

comparações entre duas alternativas não transcendentais.<br />

A teoria transcendental limita-se, pura e simplesmente, a tratar<br />

de uma questão que, em si, é diferente da avaliação comparativa –<br />

questão aquela que poderá ser de grande interesse intelectual, mas<br />

que não tem relevância directa para o problema da escolha com que<br />

nos venhamos a confrontar. Em vez disso, precisaremos, isso sim, de<br />

um acordo que, baseando-se numa argumentação pública, cure da<br />

graduação das alternativas realizáveis. A distância que separa o que é<br />

transcendental do que é comparativo é ampla e pluricompreensiva,<br />

como se mostrará com mais pormenor no Capítulo 4 (“Voz e Escolha<br />

Social”). Aliás, a perspectiva comparativa é um elemento central na<br />

disciplina analítica da “teoria da escolha social”, que foi iniciada pelo<br />

Marquês de Condorcet e por outros matemáticos franceses do século<br />

XVIII, a maior parte dos quais trabalhava em Paris 7 . Por longo tempo,<br />

a escolha social, enquanto disciplina formal, não foi muito usada,<br />

não obstante se continuasse a trabalhar na subárea da teoria do voto.<br />

Aquela disciplina viria a ser reanimada e organizada na sua forma<br />

actual por Kenneth Arrow, em meados do século XX 8 . Nas últimas<br />

décadas, esta abordagem tornou-se uma área muito activa da investigação<br />

analítica, dedicando-se a explorar os meios e as modalidades<br />

que permitam basear as avaliações de alternativas sociais nos valores<br />

e prioridades das pessoas nelas envolvidas * . Ainda assim, a abordagem<br />

central proposta pela teoria da escolha social tem vindo a colher<br />

uma atenção relativamente diminuta, especialmente da parte dos filósofos,<br />

o que se deve ao facto de as sua obras terem geralmente um<br />

teor bastante técnico e, em grande medida, matemático; aliás, e é este<br />

um motivo acrescido, muitos dos resultados a que se chegou neste<br />

campo, de facto, não podem ser confirmados a não ser por meio de<br />

extensos raciocínios matemáticos † . E no entanto, esta perspectiva e o<br />

* Acerca das características gerais desta perspectiva da escolha social, que permite<br />

fundar e motivar os resultados analíticos, veja-se a minha Conferência “Alfred Nobel”, em<br />

Estocolmo, em Dezembro de 1998, que mais tarde viria a ser publicada com o título “The<br />

Possibility of Social Choice”, American Economic Review, vol. 89 (1999), e in Les Prix<br />

Nobel 1998, Estocolmo, The Nobel Foundation, 1999.<br />

† No entanto, as formulações matemáticas revestem-se de alguma importância no que<br />

toca ao conteúdo dos argumentos apresentados por meio de teoremas e axiomas. Para a


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

raciocínio que lhe subjaz são até muito próximos do entendimento de<br />

senso comum sobre o que sejam decisões sociais apropriadas. Certo<br />

é que, na perspectiva construtiva que tento apresentar nesta obra, as<br />

conclusões a que chegou a teoria da escolha social vão ter um importante<br />

papel * .<br />

REALIZAÇÕES, VIDAS E CAPACIDA<strong>DE</strong>S<br />

Agora, é chegada a altura de me voltar para a segunda parte da dupla<br />

partida a que aludi, para poder, então, excogitar a necessidade de<br />

uma teoria que não esteja confinada a uma escolha das instituições,<br />

nem à mera identificação e caracterização de arranjos sociais ideais.<br />

A necessidade de um entendimento da justiça assente nas realizações<br />

conseguidas liga-se ao argumento de que a justiça não pode ser<br />

indiferente às vidas que as pessoas podem efectivamente viver.<br />

A importância das vidas dos homens, das experiências e realizações<br />

não podem ser suplantadas pela informação que nos chega sobre<br />

instituições existentes e regras que funcionam. As instituições e as<br />

regras, são, com certeza, de grande importância pela influência que<br />

exercem sobre tudo o que acontece, e também elas são parte inseparável<br />

do mundo real, todavia essa que é a realidade vigente e realizada<br />

vai muito além do quadro puramente organizacional, e inclui em si<br />

as próprias vidas que as pessoas conseguem – ou não conseguem –<br />

viver.<br />

Ao observarmos a natureza e o teor das vidas humanas, temos<br />

boas razões para nos interessarmos, não apenas pelas variadas coisas<br />

que conseguimos fazer com sucesso, mas também pelas liberdades<br />

que efectivamente temos quando se trata de escolher entre tipos de<br />

discussão de algumas das conexões entre argumentos formais e informais, veja-se o meu<br />

Collective Choice and Social Welfare, São Francisco, CA, Holden-Day, e reedição, Amesterdão,<br />

North-Holland, 1979, onde os capítulos matemáticos e informais se vão alternando.<br />

Veja-se ainda a minha pesquisa crítica à literatura da área, “Social Choice Theory”, in<br />

Kenneth Arrow e Michael Intriligator (coord.), Handbook of Mathematical Economics,<br />

Amesterdão, North-Holland, 1986.<br />

* As interconexões entre a teoria da escolha social e a teoria da justiça serão exploradas<br />

de modo particular no Capítulo 4, “Voz e Escolha Social”.<br />

57


5 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

vidas diferentes. A liberdade de escolher a vida que queremos pode<br />

ser algo que contribui significativamente para o nosso bem-estar;<br />

mais do que isso, e indo para além da perspectiva do bem-estar, a<br />

própria liberdade, considerada em si mesma, também pode ser vista<br />

como algo já de si importante. Ser capaz de raciocinar e escolher é<br />

uma faceta significativa da vida humana. De facto, não acontece que<br />

estejamos sujeitos à obrigação de apenas procurarmos o nosso bem-<br />

-estar: cabe-nos a nós decidir quais são as coisas em relação às quais<br />

achamos ter boas razões para tentar alcançar (esta questão será alvo<br />

de maior discussão nos Capítulos 8 e 9). Não é preciso ser Gandhi,<br />

Martin Luther King Jr., Nelson Mandela ou Desmond Tutu, para<br />

reconhecer que temos objectivos e prioridades para além da mera<br />

busca individualista do nosso bem-estar próprio * . As liberdades e<br />

capacidades de que dispomos, em si mesmas, também podem ser<br />

algo que nos é valioso, e, em última análise, é a nós que cabe decidir<br />

que uso a dar a essa liberdade que é nossa.<br />

Mesmo nesta breve resenha (uma mais aturada investigação será<br />

desenvolvida mais adiante, particularmente nos Capítulos 11-13), é<br />

importante sublinhar que as realizações sociais, a serem avaliadas<br />

tendo em conta as capacidades efectivas das pessoas e já não segundo<br />

a sua felicidade ou as utilidades obtidas (como Jeremy Bentham e<br />

outros utilitaristas nos recomendam), darão lugar a que se abram<br />

dissídios de grande monta. Primeiro, e estando assim as coisas, as<br />

vidas humanas passam a ser vistas de modo inclusivo, isto é, tomando<br />

devida nota das liberdades substantivas de que as pessoas gozam,<br />

ao invés de se ignorar tudo aquilo que não sejam prazeres ou utilidades<br />

que possamos acabar por conseguir. E depois, há ainda um<br />

segundo aspecto da liberdade que é significativo: ela torna-nos responsáveis<br />

por aquilo que fazemos.<br />

A liberdade de escolha dá-nos a oportunidade de decidirmos o<br />

que havemos de fazer, mas com essa oportunidade vem também a<br />

responsabilidade por tudo o que façamos – isto, na medida em que<br />

* Adam Smith defendia que até no caso de um egoísta «há evidentemente alguns<br />

princípios presentes na sua natureza que o levam a interessar-se pelo destino dos outros»; e<br />

aventava o seguinte: «O maior dos rufiões, o mais empedernido dos infractores das leis da<br />

sociedade, não estará inteiramente desprovido disso» (The Theory of Moral Sentiments,<br />

1.i.1.1., segundo a edição de 1976, p. 9).


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

as nossas acções forem, de facto, acções escolhidas. Considerando<br />

que uma capacidade é o poder de fazer algo, a responsabilização que<br />

emana dessa aptidão – desse poder – também passa a fazer parte da<br />

perspectiva das capacidades, e isto pode dar lugar a que se fale de<br />

um dever – aquilo que, em termos amplos, podemos apelidar<br />

de exigências deontológicas. Deparamos aqui com uma sobreposição<br />

de preocupações centradas na agência e de implicações resultantes<br />

da abordagem baseada nas capacidades; já na perspectiva utilitarista<br />

nada há que seja imediatamente comparável a isto (perspectiva<br />

utilitarista que, no fundo, consiste em vir atar a responsabilidade de<br />

cada um à felicidade de cada qual) * . A perspectiva das realizações<br />

sociais, onde se incluem as efectivas capacidades de que as pessoas<br />

estão dotadas, conduz-nos inelutavelmente a uma ampla variedade<br />

de questões ulteriores que acabam por se revelar centrais na análise<br />

da justiça sobre a terra, e são estas as questões que teremos de<br />

examinar e escrutinar.<br />

UMA DISTINÇÃO CLÁSSICA DA JURISPRUDÊNCIA<br />

INDIANA<br />

Ao tentarmos aperceber-nos do contraste entre a visão da justiça que<br />

se centra nos arranjos sociais e aquela que se centra nas realizações,<br />

será útil invocar uma antiga distinção, vinda da literatura sânscrita,<br />

sobre ética e jurisprudência. Tomemos dois vocábulos, niti e nyaya,<br />

ambos significando justiça no sânscrito clássico. Entre os principais<br />

casos em que se emprega o termo niti, contamos a propriedade<br />

enquanto característica organizacional e a correcção dos comportamentos.<br />

Contrastando com niti, o termo nyaya corresponde a<br />

um conceito compreensivo que aponta para a justiça realizada. Na<br />

sua linha, se bem que instituições, regras e organização sejam importantes,<br />

o seu papel há-de ser avaliado segundo a perspectiva mais<br />

abrangente que é a própria do nyaya, estando este inevitavelmente<br />

ligado ao mundo que realmente emerge e se produz perante nós, e,<br />

* Esta questão será mais amplamente tratada nos Capítulos 9, “A Pluralidade das<br />

Razões Imparciais”, e 13, “Felicidade, Bem-Estar e Capacidades”.<br />

59


6 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

portanto, não apenas às instituições ou às regras que acaso existam<br />

entrem nós * .<br />

Seja agora uma aplicação particular disto que acabou de se dizer:<br />

os antigos pensadores jurídicos da Índia tinham o hábito de falar<br />

do que, de modo pouco abonador, designavam de matsyanyaya,<br />

“justiça no mundo dos peixes”, onde o peixe maior pode livremente<br />

devorar o mais pequeno. E avisam-nos de que evitar a matsyanyaya<br />

há-de ser uma parte essencial da justiça, pelo que é crucial que nos<br />

asseguremos de que à “justiça dos peixes” não se permita que invada<br />

o mundo dos seres humanos. A conclusão central que vemos decorrer<br />

daqui é a de que a realização da justiça, no seu sentido de nyaya, não<br />

é apenas uma questão de emitir um juízo sobre instituições e regras,<br />

mas antes um juízo sobre as sociedades como elas são em si mesmas.<br />

De nada adiantará que as organizações estabelecidas sejam as mais<br />

próprias, se, mesmo assim, um peixe grande puder devorar o mais<br />

pequeno a seu talante, pois isto, a acontecer, sempre haverá de ser<br />

uma patente violação da justiça humana entendida como nyaya.<br />

Permitam-me tomar um exemplo para ilustrar melhor a distinção<br />

entre niti e nyaya. Ficou famosa esta afirmação, no século XVI, de<br />

Ferdinando I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico:<br />

«Fiat justitia, et pereat mundus» – que poderá ser traduzida por<br />

«Que se faça a justiça, ainda que o mundo deva perecer». Esta dura<br />

máxima poderia corresponder ao niti – um niti bem austero – que é<br />

advogado por alguns (e que era, aliás, o caso do Imperador Ferdinando),<br />

mas o facto é que será bem difícil imaginar que uma catás-<br />

* O mais famoso dos antigos pensadores jurídicos indianos, Manu, nutria, de facto,<br />

um grande interesse pelo nitis, e, aliás, na mais severa das suas modalidades (nas discussões<br />

indianas contemporâneas, tenho ouvido descrever Manu como um “legislador fascista”, o<br />

que tem o seu quê de verdadeiro). Mas até mesmo Manu não conseguiria resistir a ser<br />

confrontado com as realizações próprias do nyaya, sempre que quisesse justificar a correcção<br />

de um tipo particular de nitis. Assim por exemplo, é-nos dado conta do seguinte: mais vale<br />

ser desdenhado do que desdenhar, «pois aquele que é desdenhado dorme tranquilo, acorda<br />

tranquilo e anda tranquilo pelo mundo; já o homem que desdenha perece» (Capítulo 2,<br />

instrução 163). E na mesma linha: «onde as mulheres não são reverenciadas, todos os<br />

rituais são infrutíferos», pois «onde as mulheres de família andam infelizes, não tardará<br />

muito para que a família seja destruída, mas já é sempre pujante onde as mulheres não<br />

andam infelizes» (Capítulo 3, instruções 56 e 57). As traduções são tiradas da excelente<br />

tradução de Wendy Doniger, The Laws of Manu, Londres, Penguin, 1991.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

trofe geral possa passar por um exemplo de um mundo justo, se<br />

entendermos a justiça de acordo com a categoria mais ampla do<br />

nyaya. Se o mundo realmente viesse a perecer, não haveria muito<br />

para celebrar nesse feito, ainda que se pudesse conceber os mais<br />

sofisticados e variados argumentos para sair em defesa desse áspero<br />

e severo niti que conduzira a tão extremado resultado.<br />

Uma perspectiva centrada nas realizações também permite compreender<br />

mais facilmente a importância de, neste mundo, nos aplicarmos<br />

a tentar impedir os casos de injustiça manifesta, ao invés de<br />

sairmos em busca do que é perfeitamente justo. Como fica claro no<br />

exemplo do matsyanyaya, o objecto da justiça não consiste apenas<br />

em tentar conseguir – ou em sonhar com isso – uma qualquer sociedade<br />

perfeitamente justa ou arranjos sociais também perfeitamente<br />

justas, mas consistirá outrossim em afastar a severidade das injustiças<br />

manifestas (tal seria o caso de se tentar evitar esse lastimável estado<br />

de coisas que é próprio do matsyanyaya). Por exemplo, quando, nos<br />

século XVIII e XIX, vieram as agitações que pretendiam a abolição<br />

da escravatura, as pessoas que delas participavam não o faziam por<br />

terem a ilusão de que a abolição da escravatura iria transformar o<br />

mundo dando lugar a um mundo perfeitamente justo; o que sim<br />

pretendiam defender era que uma sociedade com escravos era uma<br />

sociedade totalmente injusta (por entre os autores já mencionados,<br />

Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft estavam muito apostados<br />

em mostrar o bem fundado desta perspectiva).<br />

Na escravatura, foi o diagnóstico de uma intolerável injustiça a<br />

fazer com que a abolição se tornasse numa prioridade avassaladora,<br />

e para isso não foi preciso que se tentasse obter um consenso acerca<br />

de qual deveria ser o semblante da sociedade perfeitamente justa.<br />

Aqueles que pensam – e com boas razões – que a Guerra Civil<br />

americana, que acabou por conduzir à abolição da escravatura, foi uma<br />

grande conquista para a justiça na América, teriam de conceder que,<br />

a seguirmos a perspectiva do institucionalismo transcendental (para a<br />

qual o único contraste é o que existe entre aquilo que é perfeitamente<br />

justo e o resto), não haveria muito para dizer acerca de uma possível<br />

vantagem da abolição da escravatura para o reforço da justiça * .<br />

* É interessante notar que o diagnóstico feito por Karl Marx sobre «o único grande<br />

acontecimento da história contemporânea» levou-o a atribuir esta distinção à Guerra Civil<br />

61


6 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

A IMPORTÂNCIA DOS PROCESSOS<br />

E AS RESPONSABILIDA<strong>DE</strong>S<br />

Os que se inclinam para ver a justiça em termos de niti e não em<br />

termos de nyaya – independentemente do nome que dêem a tal<br />

dicotomia – poderão ser influenciados pelo medo de que uma atenção<br />

centrada sobre as realizações efectivas possa levar a ignorar o<br />

significado dos processos sociais, nos quais teremos de incluir o<br />

exercício dos deveres e das responsabilidades individuais. Podemos<br />

fazer o que é certo e ainda assim podemos não ser bem sucedidos;<br />

ou então, pode acontecer que se obtenha um bom resultado, não<br />

porque o tivéssemos em vista, mas por qualquer outra razão, talvez<br />

até acidental, e, ainda assim, poderemos iludir-nos continuando a<br />

pensar que foi feita justiça. Todavia, seria possível argumentar de<br />

outra maneira, lembrando que não seria de todo conveniente que nos<br />

concentrássemos tão-só naquilo que realmente acontece, ignorando<br />

por completo tudo o que tenha a ver com processos, esforços ou<br />

condutas. Quanto aos filósofos que acentuam o papel do dever e de<br />

outros aspectos daquilo que dá pelo nome de abordagem deontológica,<br />

esses serão assaltados pela especial suspeita de que a distinção<br />

entre arranjos e realizações faz lembrar muito vivamente o antigo<br />

contraste entre outras duas perspectivas da justiça, a deontológica e a<br />

consequencial.<br />

Sendo embora importante não desconsiderar esta particular inquietação,<br />

sempre poderíamos contrapor que ela parece estar aqui<br />

deslocada. Uma caracterização das realizações que se queira exaustiva<br />

deverá incluir sempre o exacto processo pelo qual um eventual estado<br />

de coisas acaba por emergir. Num artigo dedicado a econometria<br />

(Econometrica), umas décadas atrás, chamei a isto o “resultado com-<br />

americana, que haveria de conduzir à abolição da escravatura (Capital, vol. I, Londres,<br />

Sonnenschein, 1887, Capítulo X, Secção 3, p. 240). Se bem que Marx sustentasse que os<br />

arranjos capitalistas do trabalho eram exploradores, nem por isso deixava de insistir em<br />

como era um melhoramento enorme passar de um sistema de trabalho escravo para um de<br />

trabalho assalariado – sobre este tema, veja-se também a obra de Marx, Grundrisse,<br />

Harmondsworth, Penguin Books, 1973. A análise que Marx fez da justiça foi muito além<br />

dessa sua fascinação, que os críticos tanto discutem, em torno do «último estádio do comunismo».


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

preensivo” (“comprehensive outcome”); nele vão incluídos todos os<br />

processos que ocorram e devemos distingui-lo do “resultado de<br />

culminação” (“culmination outcome”) 9 ; por exemplo: uma detenção<br />

arbitrária é mais do que a mera captura e detenção de alguém, é<br />

precisamente o que a expressão nos diz, uma detenção arbitrária. De<br />

maneira semelhante, também o papel da agência humana não poderá<br />

ser obliterado só porque se decide centrar a atenção exclusivamente<br />

sobre o que vem a suceder no ponto de culminação; por exemplo:<br />

existe uma diferença real entre o facto de algumas pessoas morrerem<br />

à fome devido a circunstâncias que estão para lá do controlo de<br />

quem quer que seja e o facto de as mesmas pessoas serem mortas à<br />

fome devido a um projecto desenhado por alguém que quisesse provocar<br />

esse resultado (é claro que estamos diante de uma tragédia em<br />

ambos os casos, mas o tipo de conexão que cada uma dessas duas<br />

tragédias apresenta com a justiça não poderá ser o mesmo). Ou, para<br />

vermos outro tipo de casos, se um candidato às eleições presidenciais<br />

vier afirmar que, para si, o que é realmente importante não é apenas<br />

vencer as eleições que se avizinham, mas «vencer com lisura e equidade»,<br />

teremos nesse caso que o resultado procurado vai ser algo<br />

que certamente andará na linha de um resultado compreensivo.<br />

Seja ainda um exemplo de outra espécie. No épico indiano,<br />

Mahabharata, mais especificamente, naquela sua parte que se intitula<br />

Bhagavadgita (ou, abrevidamente, Gita), na véspera da batalha, que<br />

é o episódio central deste épico, o guerreiro invencível, Arjuna, manifesta<br />

as suas profundas dúvidas acerca da oportunidade de chefiar<br />

um combate que, por certo, irá redundar numa enorme mortandade.<br />

Diz-lhe o seu conselheiro, Krishna, que ele, Arjuna, deve dar a prioridade<br />

ao seu dever, que é o de combater, sejam quais forem as<br />

consequências. Essa famosa conversa costuma ser interpretada como<br />

um debate que contrapõe deontologia a consequencialismo, e no<br />

qual Krishna, o deontologista, urge Arjuna a cumprir o seu dever, ao<br />

passo que Arjuna, o suposto consequencialista, se preocupa com as<br />

terríveis consequências da guerra.<br />

Neste debate, conta-se que a levar a melhor seja a canonização<br />

das exigências proclamadas por Krishna, pelo menos do ponto de<br />

vista religioso. Na verdade, o Bhagavadgita tornou-se um tratado de<br />

grande importância teológica para a filosofia hindu, centrando-se ele<br />

especialmente na “remoção” das dúvidas de Arjuna. A posição moral<br />

63


6 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

de Krishna também foi perfilhada eloquentemente por muitos comentadores<br />

filosóficos e literários em todo o mundo. Nos Quatro<br />

Quartetos, T. S. Eliot resume o ponto de vista de Krishna sob a<br />

forma de advertência: «E não penseis no fruto da acção. / Segui<br />

avante.» E Eliot passa a explicar, não se desse o caso de não percebermos<br />

a questão: «Não: segui bem; / Mas: segui avante, viajantes» 10 .<br />

Já disse noutro sítio (em O Indiano Argumentativo ) que como passemos<br />

além dos estreitos confins do final do debate que aparece neste<br />

particular ponto do Mahabharata e que se intitula Bhagavadgita,<br />

reparando no modo como Arjuna apresenta o seu argumento nas<br />

primeiras secções da Gita, ou como olhemos para o Mahabharata<br />

como um todo, logo veremos também como se tornam evidentes as<br />

limitações da perspectiva de Krishna 11 . De facto, após a completa<br />

devastação do país que se seguiu ao epílogo bem sucedido daquela<br />

“guerra justa”, já perto do final do Mahabharata, enquanto as piras<br />

funerárias ardiam em uníssono e as mulheres carpiam as mortes dos<br />

seus familiares, seria difícil convencermo-nos de que a perspectiva<br />

mais ampla de Arjuna tivesse saído derrotada por Krishna de uma<br />

vez por todas. Mais parece, aliás, que ainda poderão restar poderosos<br />

argumentos a favor de “seguir bem” e não só “avante”.<br />

Muito embora aquele contraste possa ser retratado adequadamente<br />

pela diferenciação entre as perspectivas consequencialista e<br />

deontológica, o que aqui se afigura particularmente relevante é que<br />

possamos ir além do simples contraste, para passarmos então a analisar<br />

quais eram, na sua globalidade, as preocupações de Arjuna acerca do<br />

seu “não seguir bem”. Arjuna não se preocupa apenas com o facto<br />

de que, a haver guerra, com ele a chefiar a carga ao lado da justiça e<br />

da propriedade de uma certa situação, muitas pessoas encontrarão a<br />

sua morte. É certo que também isso o preocupa, mas, no início da<br />

Gita, Arjuna manifesta, além disso, a preocupação de que seria ele<br />

próprio a executar uma grande parte dessas mortes, e, em muitos<br />

casos, de pessoas por quem tinha estima e com as quais mantinha<br />

relações pessoais, pois a batalha era entre dois ramos da mesma<br />

família, aos quais se tinham vindo juntar outras pessoas que eram<br />

bem conhecidas dos dois lados. Assim sendo, o facto que preocupa<br />

Arjuna, nos seus contornos exactos, vai muito para além de uma<br />

perspectiva independente do processo que só mira às consequências.


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Um entendimento adequado do que seja uma realização social – e<br />

que é central para a justiça como nyaya – requer aquele tipo de<br />

consideração compreensiva que é capaz de incluir o processo 12 . Não<br />

seria pois curial que se quisesse desqualificar a perspectiva das realizações<br />

sociais só com o fundamento de que ela se mostra estreitamente<br />

consequencialista ignorando as preocupações deontológicas<br />

subjacentes.<br />

INSTITUCIONALISMO TRANSCEN<strong>DE</strong>NTAL<br />

E FALTA <strong>DE</strong> CUIDADOS À ESCALA GLOBAL<br />

Este arrazoado introdutório terminará com uma observação final relativa<br />

a um particular aspecto restritivo que detectamos nas actuais<br />

correntes dominantes da filosofia política, isto é, a sua excessiva<br />

concentração em redor do institucionalismo transcendental. Pensemos<br />

ao acaso numa das inúmeras mudanças que se podem propor<br />

com vista a reformar a estrutura institucional do mundo actual, para<br />

assim o tornar menos injusto e iníquo (de acordo com os critérios<br />

geralmente aceites). Atente-se, por exemplo, no caso da reforma da<br />

legislação das patentes com o fito de tornar os remédios de grande<br />

circulação e de produção barata mais acessíveis a doentes deles necessitados,<br />

mas pobres (como será o caso dos doentes de SIDA) – e<br />

não pode haver dúvida de que este é um tema com alguma importância<br />

para a justiça mundial. Eis então a pergunta que temos de nos<br />

fazer: quais as reformas internacionais de que necessitamos para tornar<br />

o mundo um pouco menos injusto?<br />

Contudo, este tipo de discussão acerca do reforço da justiça em<br />

geral, e sobre a extensão da justiça mundial em particular, poderá<br />

parecer mera “conversa fiada” aos que tenham ficado convencidos<br />

pela pretensão de Hobbes – e de Rawls – de que precisamos de um<br />

estado soberano que trate de aplicar os princípios da justiça através<br />

da escolha de um conjunto perfeito de instituições: esta mais não é<br />

do que uma directa implicação de se enquadrar as questões da justiça<br />

na moldura do institucionalismo transcendental. Uma justiça a nível<br />

global, conseguida por meio de um conjunto de instituições impecavelmente<br />

justo – mesmo admitindo que se poderia chegar a definir<br />

uma tal coisa –, certamente iria requerer a existência de um estado<br />

65


6 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

soberano global; ora, não existindo um tal estado, aos olhos dos<br />

transcendentalistas, as questões de justiça global parecerão impossíveis<br />

de dirimir ou sequer de discutir.<br />

Considere-se a firme rejeição de uma qualquer relevância da<br />

«ideia de justiça global» por parte de um dos filósofos contemporâneos<br />

mais originais, poderosos e humanos, o meu amigo Thomas<br />

Nagel, graças a cujo trabalho tanto tenho aprendido. Num interessantíssimo<br />

artigo publicado na Philosophy and Public Affairs de 2005,<br />

vemo-lo a inspirar-se precisamente na concepção transcendental de<br />

justiça, a fim de concluir que a justiça global não é tema passível de<br />

ser discutido, pois que, no momento presente, os elaborados requisitos<br />

institucionais que cabe cumprir para obter um mundo justo são<br />

impossíveis de satisfazer a nível mundial. Nas palavras dele: «Parece-me<br />

muito difícil resistir ao argumento de Hobbes acerca da relação<br />

entre justiça e soberania», e «se Hobbes estiver certo, a ideia de<br />

uma justiça global sem um governo mundial é uma quimera» 13 .<br />

Por conseguinte, diante de um contexto mundial, Nagel concentra<br />

os seus esforços na clarificação de outro tipo de requisitos, diferentes<br />

das exigências que seriam próprias da justiça – tais como uma<br />

«moralidade humanitária mínima» (a qual «governa a nossa relação<br />

com todas as outras pessoas») –, dedicando-se também ao estudo de<br />

estratégias a longo prazo com vista a uma alteração radical das combinações<br />

institucionais («creio que o caminho mais viável para alcançar<br />

uma certa versão da justiça global passa pela criação de estruturas<br />

de poder global manifestamente injustas e ilegítimas que sejam<br />

toleráveis à luz dos interesses dos estados-nações actualmente mais<br />

poderosos») 14 . O contraste com que podemos deparar neste caso será<br />

entre uma visão das reformas institucionais que atende ao papel destas<br />

para nos conduzirem à justiça transcendental (tal como ela é<br />

delineada por Nagel) e uma avaliação que atenda ao melhoramento<br />

que as ditas reformas realmente trarão, especialmente através da eliminação<br />

de todas as situações que sejam vistas como casos de injustiça<br />

manifesta (o que é parte integrante da perspectiva que se apresenta<br />

neste livro).<br />

Também na abordagem rawlsiana se pode dizer que a aplicação<br />

de uma teoria da justiça requer uma extensa panóplia de instituições,<br />

sendo ela a determinar a estrutura básica de uma sociedade completamente<br />

justa. Não espanta, pois, que Rawls chegue mesmo a aban-


UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

donar os seus próprios princípios de justiça, quando se trata de proceder<br />

à avaliação da maneira de pensar a justiça a nível mundial, e,<br />

por isso, que não enverede pela opção fantasiosa de vir reclamar um<br />

estado global. Num trabalho posterior, A Lei dos Povos, Rawls vem<br />

invocar uma sorte de “suplemento” a acrescer à prossecução nacional<br />

(ou interna a um país) das exigências da “justiça como equidade”.<br />

No entanto, este suplemento aparece sob uma forma muito suavizada,<br />

isto é, como uma espécie de negociação entre representantes de<br />

diferentes países sobre questões muito elementares de civilidade e<br />

humanidade – coisas que, afinal, poderão ser vistas como aspectos<br />

muito limitados da justiça e nada mais. De facto, Rawls não tenta<br />

fazer derivar “princípios de justiça” que pudessem vir a emanar destas<br />

negociações (mais: daí não derivaria coisa alguma a que se pudesse<br />

dar esse nome), concentrando-se, em vez disso, sobre alguns<br />

princípios gerais de comportamento humanitário 15 .<br />

Na verdade, a teoria da justiça, tal como nos aparece formulada<br />

pelo institucionalismo transcendental presentemente dominante, reduz<br />

muitas das questões mais relevantes da justiça a uma retórica<br />

vazia – ainda que reconhecidamente “bem intencionada”. Quando,<br />

por todo o mundo, vemos que as pessoas se mobilizam para conseguir<br />

mais justiça mundial – e quero aqui enfatizar a palavra comparativa<br />

“mais” –, não pensemos que elas estão a bradar por uma qualquer<br />

espécie de “humanitarismo mínimo”. Mas também não se estão a<br />

mobilizar para obter uma sociedade mundial “perfeitamente justa”.<br />

Mobilizam-se tão-somente para que se chegue à eliminação de algumas<br />

combinações injustas e ultrajantes, e para que se venha a reforçar<br />

a justiça mundial, precisamente da mesma maneira que, a seu<br />

tempo, o fizeram Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft – e<br />

sobre isto há acordos que podem ser gerados por meio da discussão<br />

pública, mesmo persistindo a divergência de pontos de vista acerca<br />

de outras questões.<br />

A não ser assim, as pessoas que hoje se sentem vilipendiadas<br />

sempre poderão encontrar uma boa expressão da sua voz neste enérgico<br />

poema de Seamus Heaney:<br />

67


6 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

«Diz a história: Não tenhais esperança<br />

Do lado de cá da campa,<br />

Mas eis que na vida uma vez verão,<br />

A ansiada onda gigante da justiça,<br />

Que enfim poderá erguer-se imensa,<br />

E aí esperança e história rimarão.» 16<br />

Por mais apelativo que possa ser este fundo desejo de que, um<br />

dia, história e esperança possam vir a rimar, a verdade é que a justiça<br />

do institucionalismo transcendental mostra grande relutância em acolher<br />

tal apelo. Uma tal limitação é apenas uma ilustração de como as<br />

teorias da justiça hoje dominantes estão precisadas de uma grande<br />

viragem substancial. E é esse, precisamente, o objecto deste livro.


PARTE I<br />

UMA PERSPECTIVA DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

69


7 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong>


1. RAZÃO E OBJECTIVIDA<strong>DE</strong><br />

AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do nosso tempo, escreveu<br />

o seguinte no Prefácio à sua primeira grande obra filosófica, o<br />

Tractatus Logico-Philosophicus, publicado em 1921: «O que, de alguma<br />

maneira, pode ser dito, pode ser dito claramente; e sobre o que<br />

não se pode falar, deve-se calar» * . Wittgenstein viria a reexaminar as<br />

suas posições sobre o discurso e sobre a clareza do mesmo, na sua<br />

investigação posterior, mas é um alívio verificar que, mesmo enquanto<br />

escrevia o seu Tractatus, este grande filósofo nem sempre<br />

seguiu aquele seu peremptório mandamento. Numa carta dirigida a<br />

Paul Engelmann, escrita em 1917, Wittgenstein faria esta admirável e<br />

enigmática observação: «Estou a trabalhar com grande afinco e só<br />

queria ser melhor e mais inteligente. E estas duas são uma e a mesma<br />

coisa» 1 . A sério? São uma e a mesma coisa, ser-se um ser humano<br />

mais inteligente e ser-se uma pessoa melhor?<br />

Naturalmente, estou bem ciente de que o moderno uso transatlântico<br />

da língua veio afogar a distinção entre “ser-se bom” (“being<br />

good”), enquanto qualidade moral, e “estar bem” (“being well”),<br />

enquanto comentário acerca do estado geral de saúde (nada de dores<br />

ou maleitas, boa pressão arterial e por aí fora), e já há muito que<br />

deixei de me preocupar com a manifesta imodéstia de alguns dos<br />

meus amigos que, quando se lhes pergunta como estão, respondem<br />

em tom de aparente auto-elogio: «Eu sou muito bom» («I am very<br />

* É interessante notar que também Edmund Burke aludia à dificuldade de se falar em<br />

certas circunstâncias (veja-se a Introdução, onde citei Burke a este propósito), todavia, e<br />

ainda assim, Burke continuou a falar sobre o tema, pois que era, obtemperava ele, «impossível<br />

ficar calado» sobre um assunto de tal gravidade como aquele de que estava a tratar (a<br />

causa de acusação de Warren Hastings). Por muitos motivos, a posição de Wittgentein, que<br />

nos aconselha a calar quando não podemos falar com suficiente clareza, poderá parecer o<br />

oposto da perspectiva de Burke.<br />

71


7 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

good») nt . Sucede, porém, que Wittgenstein não era americano e, em<br />

1917, estávamos ainda muito longe da conquista do mundo pelos<br />

fogosos usos linguísticos americanos. Quando Wittgenstein disse que<br />

ser-se “melhor” (being “better”) e ser-se mais inteligente (being<br />

“smarter”) eram “uma e a mesma coisa”, decerto que estava a enunciar<br />

uma asserção de tipo substancial.<br />

Subjacente a isto, poderemos encontrar uma certa forma de reconhecimento<br />

de que muitos actos de malvadez são cometidos por<br />

pessoas que, de alguma maneira, estão iludidas acerca do objecto.<br />

A falta de inteligência pode certamente constituir uma fonte de falhas<br />

morais que hão-de afectar um bom comportamento. Por vezes, reflectir<br />

detidamente sobre qual seria o passo inteligente a dar poderá<br />

ajudar-nos a agir melhor em relação aos outros. Que tal pode ser o<br />

caso em muitas circunstâncias foi mostrado muito claramente pela<br />

moderna teoria dos jogos 2 . Entre as razões prudenciais que levam ao<br />

bom comportamento poderá, com certeza, contar-se o ganho que,<br />

para si próprio, se retirará de um tal comportamento. De facto, poderá<br />

gerar-se um grande ganho para todos os membros de um grupo,<br />

quando se opta por seguir as regras daquele bom comportamento<br />

que poderá trazer ajuda para todos. Nem seria especialmente inteligente<br />

que um grupo de pessoas agisse de uma maneira que causasse<br />

a ruína de todas elas 3 .<br />

Mas quem sabe se não era outra coisa o que Wittgenstein queria<br />

dizer. Ser mais inteligente pode também dar-nos a aptidão para pensar<br />

com mais clareza acerca dos nossos objectivos, finalidades e<br />

valores. Se o interesse próprio é, em última análise, um pensamento<br />

primitivo (sem embargo de todas as complexidades acabadas de<br />

mencionar), já a clareza acerca de prioridades e obrigações mais<br />

sofisticadas que queiramos acarinhar e cumprir haverá de depender<br />

do nosso poder de raciocínio. Uma pessoa pode ter razões para agir<br />

de maneira socialmente decente que foram alvo de aturada reflexão e<br />

que não consistem na mera promoção de ganhos pessoais.<br />

nt Como é bom de ver, esta comparação é eficaz em inglês, pois nessa língua o mesmo<br />

verbo, to be, pode ter o significado de “ser” ou “estar”, pelo que a mesma expressão inglesa<br />

valeria para traduzir a correspondente portuguesa “eu estou muito bom”, expressão esta, no<br />

entanto, que não ressaltaria a chicana linguística que o Autor pretende sublinhar.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Ser-se mais inteligente é algo que pode ajudar a perceber não<br />

apenas os próprios interesses, mas igualmente o facto de que as vidas<br />

das outras pessoas podem ser fortemente afectadas pelas nossas<br />

acções. Os corifeus da designada “Teoria da Escolha Racional” (que<br />

foi proposta pela primeira vez no campo económico, vindo então a<br />

ser entusiasticamente perfilhada por vários pensadores políticos e<br />

jurídicos) esforçaram-se com denodo para nos fazer aceitar a peculiar<br />

concepção de que a escolha racional consiste tão-só numa hábil e<br />

inteligente promoção do interesse próprio (e, por mais estranho que<br />

pareça, é isto que corresponde à definição proposta para “escolha<br />

racional” pelos defensores desta corrente que tem como nome de<br />

marca “teoria da escolha racional”). Contudo, deve dizer-se que nem<br />

todas as cabeças se deixaram colonizar por esta crença tão profundamente<br />

alienante; ainda se vai notando uma considerável resistência à<br />

ideia de que não pode deixar de ser manifestamente irracional – e<br />

estúpido – que se tente fazer alguma coisa pelos demais, excepto na<br />

medida em que fazer o bem aos outros possa vir aumentar o nosso<br />

próprio bem-estar 4 .<br />

“Aquilo que devemos uns aos outros” é um importante tema<br />

para uma reflexão inteligente 5 . Uma tal reflexão pode levar-nos para<br />

além da prossecução de uma visão do interesse próprio demasiado<br />

estreita, e até poderemos acabar por descobrir que esses nossos<br />

objectivos, que tão bem ponderámos exigem que atravessemos por<br />

completo as estreitas fronteiras da busca exclusiva do interesse individual.<br />

Pode ainda haver casos em que teremos razões para refrear a<br />

exclusiva prossecução dos nossos objectivos (sejam eles ou não, em<br />

si mesmos, exclusivamente votados à busca do próprio interesse),<br />

para podermos seguir regras de comportamento decente que permitam<br />

contemporaneamente a prossecução de objectivos (ligados ou<br />

não ao interesse próprio) por parte de outras pessoas que compartilham<br />

o mundo connosco * .<br />

* A alguns comentadores causa perplexidade que se entenda ser razoável admitirmos<br />

uma cedência na busca individualista e exclusiva dos objectivos próprios, para deixar espaço<br />

aos outros, a fim de que possam também prosseguir os seus objectivos (alguns chegam a<br />

ver nisto uma espécie de “prova” de que aquilo que achávamos serem os nossos objectivos<br />

não eram, afinal, os nossos objectivos reais), mas já não haverá nisto qualquer perplexidade,<br />

sempre que façamos uma correcta apreciação do alcance da razão prática. Estes temas serão<br />

tratados nos Capítulo 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, “Pluralidade e Razões Imparciais”.<br />

73


7 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Considerando que, mesmo ao tempo de Wittgenstein, já havia<br />

precursores da “teoria da escolha racional”, talvez ele quisesse dizer,<br />

afinal, que ser mais inteligente nos ajuda a pensar mais claramente<br />

acerca dos nossos empenhos e responsabilidades sociais. Tem sido<br />

sugerido que certas crianças cometem actos de brutalidade sobre<br />

outras crianças ou sobre animais, precisamente por causa da sua<br />

inaptidão para perceberem de modo adequado a natureza e a intensidade<br />

da dor sofrida pelos outros, e que, geralmente, esta percepção<br />

acompanha o desenvolvimento intelectual que leva à maturidade.<br />

Como é óbvio não podemos ter a certeza sobre qual o sentido<br />

das palavras de Wittgenstein * . Ainda assim, temos sobejas provas de<br />

que dedicava uma considerável parte do seu tempo e do seu intelecto<br />

a pensar sobre as suas próprias responsabilidades e compromissos.<br />

E contudo, nem sempre o resultado foi muito inteligente ou sensato.<br />

É assim que vemos Wittgenstein firmemente decidido a ir para Viena<br />

em 1938, no preciso momento em que Hitler fazia um cortejo triunfante<br />

através da cidade, apesar da sua linhagem judia e da sua incapacidade<br />

para ser diplomático e ficar em silêncio; tiveram de ser os<br />

colegas de universidade, em Cambridge, a segurá-lo e a impedi-lo de<br />

ir † . Nas conversas mantidas por Wittgenstein temos, contudo, bastantes<br />

indicações de que ele pensava que, decididamente, a sua capacidade<br />

intelectual deveria ser usada para se conseguir um mundo melhor ‡ .<br />

* Esta questão interpretativa é tratada de maneira iluminante por Tibor Machan em<br />

A Better and Smarter Person: A Wittgenstein Idea of Human Excellence”, apresentado no<br />

5.º Simpósio Internacional sobre Wittgenstein, 1980.<br />

† Piero Sraffa – o economista que teve uma grande influência sobre Ludwig<br />

Wittgenstein, contribuindo para que este revisse a posição filosófica que defendera anteriormente<br />

no Tratactus Logico-Philosophicus (ajudando assim a preparar o terreno para as obras<br />

posteriores de Wittgenstein, entre as quais se incluem as Philosohical Investigations, Oxford,<br />

Blackwell, 1953) – desempenhou um papel preponderante em dissuadir Wittgenstein de ir a<br />

Viena para apresentar um severo discurso diante de um Hitler triunfante. A sua relação<br />

intelectual e pessoal é revisitada no meu ensaio “Sraffa, Wittgenstein e Gramsci”, Journal of<br />

Economic Literature, 41 (Dezembro, 2003). Sraffa e Wittgenstein foram amigos muito próximos<br />

e chegaram ainda a ser colegas como professores no Trinity College, em Cambridge.<br />

Veja-se o Capítulo 5, “Imparcialidade e Objectividade”, para uma discussão da ligação intelectual<br />

de Sraffa, primeiro com Antonio Gramsci, e depois com Wittgenstein, e da relevância dos<br />

conteúdos deste intercâmbio tripartido para alguns dos temas deste livro.<br />

‡ Este seu empenho está em correlação com aquilo que o seu biógrafo, Ray Monk, chama<br />

de “dever do génio” (Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, Londres, Vintage, 1991).


CRÍTICA DA TRADIÇÃO ILUMINISTA<br />

AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Se era isso realmente que Wittgenstein queria dizer, então, ele estava<br />

fortemente alinhado com a poderosa tradição do Iluminismo europeu,<br />

que via no raciocínio límpido um grande aliado do desejo de<br />

melhorar as sociedades humanas. O melhoramento social por meio<br />

de um raciocínio sistemático era um filão proeminente dos argumentos<br />

correntes durante a animação intelectual que se associou ao<br />

Iluminismo europeu, especialmente no século XVIII.<br />

No entanto, é difícil fazer generalizações acerca de um qualquer<br />

avassalador predomínio da razão no pensamento prevalente do período<br />

dito do Iluminismo. Como demonstrou Isaiah Berlin, durante a<br />

“Era do Iluminismo” houve também uma gama de diferentes espécies<br />

de correntes que eram contra-racionais 6 . Mas decerto que foi a<br />

profunda – e algo deliberada – confiança na razão um dos principais<br />

pontos de viragem que distanciou o pensamento iluminista das tradições<br />

que haviam prevalecido até então. Aliás, nas discussões políticas<br />

contemporâneas tornou-se bastante comum vir defender que o<br />

Iluminismo encareceu demasiado o alcance da razão. De facto, também<br />

já se aventou que a excessiva confiança na razão, que a tradição<br />

iluminista ajudou a instilar no pensamento moderno, influiu na propensão<br />

para cometer atrocidades que vimos acontecer no mundo<br />

saído do Iluminismo. Juntando a sua voz a este remoque que se lhe<br />

faz e engrossando esta particular linha de pensamento crítico, temos<br />

também o conhecido filósofo Jonathan Glover, o qual, na vibrante<br />

arguição que nos oferece em The Moral History of the Twentieth<br />

Century nt , nos vem afirmar que «a visão iluminista da psicologia<br />

humana» se foi tornando cada vez mais «estreita e mecânica», e<br />

ainda que «as esperanças iluministas de progresso social pela expansão<br />

do humanitarismo e da atitude científica» parecem-nos agora<br />

bastante «ingénuas» 7 ; e de seguida, vemo-lo a ligar as modernas<br />

tiranias a essa mesma visão (como o fizeram outros críticos do<br />

Iluminismo), sustentando que não só «Estaline e os seus herdeiros»<br />

estavam em completa «servidão diante do Iluminismo», mas também<br />

Pol Pot «foi indirectamente influenciado por ele» 8 . Porém, dado que<br />

nt “A História Moral do Século XX”.<br />

75


7 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Glover não pretende encontrar uma solução através da autoridade da<br />

religião ou da tradição (a este respeito, ele faz notar que «não podemos<br />

escapar ao Iluminismo»), o que ele faz é dirigir a sua chama<br />

contra convicções veementes que nos vejamos compelidos a aceitar,<br />

para as quais também contribui substancialmente o uso excessivamente<br />

confiante da razão. «A crueza do estalinismo», afirma ele,<br />

«teve a sua origem nas convicções» 9 .<br />

Seria difícil disputar a apreciação de Glover relativamente ao<br />

poder exercido por crenças fortes e por persuasões terríveis, como o<br />

seria desafiar a sua tese acerca do «papel da ideologia no estalinismo».<br />

A questão que aqui temos de colocar não tem tanto a ver com o<br />

temível poder das más ideias como com o diagnóstico de que esta é,<br />

de alguma maneira, uma crítica acerca do alcance e das potencialidades<br />

da razão em geral, e da perspectiva iluminista em particular 10 .<br />

Será realmente ajustado que se atire para cima da tradição iluminista<br />

a culpa pela propensão para ter certezas prematuras e pelas crenças<br />

acríticas e irreflectidas de sombrios líderes políticos, especialmente se<br />

se considerar a importância preeminente que tantos autores iluministas<br />

assacaram ao papel do uso da razão sempre que se tratasse de<br />

fazer escolhas, em particular para obstar a uma mera confiança em<br />

crenças cegas? E seguramente, «a crueza do estalinismo» podia ser<br />

contrastada, como de facto o foi por dissidentes que se serviram de<br />

uma demonstração argumentada do enorme fosso existente entre<br />

promessa e prática, e que, além disso, vieram expor como um facto a<br />

brutalidade desse regime, mau grado as pretensões por ele próprio<br />

assumidas – uma brutalidade que as autoridades tiveram de esconder<br />

através da censura e da expurgação, subtraindo-a assim a qualquer<br />

escrutínio.<br />

Decerto que um dos principais pontos a favor da razão é o facto<br />

de ela nos ajudar a submeter a escrutínio a ideologia e a crença<br />

cega * . E de facto, por certo que não foi a razão a principal aliada de<br />

6 É com certeza verdade que há muitas crenças cruas e rudes que têm a sua origem<br />

nalguma espécie de razão – possivelmente espécies de razão de tipo bem primitivo (por<br />

exemplo, muitas vezes, os preconceitos racistas e sexistas conseguem sobreviver assentes<br />

no facto de se conceber uma “razão” segundo a qual os que não são brancos e as mulheres<br />

são biológica ou intelectualmente inferiores). Advogar a tese da confiança na razão não<br />

implica uma negação desse facto facilmente verificável de que as pessoas, de facto, oferecem


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Pol Pot. Esse papel coube a uma convicção frenética e não argumentada,<br />

sem qualquer espaço para um escrutínio racional. É inegável o<br />

interesse e a importância destes pontos da muito persuasiva Na apreciação<br />

crítica que Glover faz da tradição iluminista, estes pontos,<br />

cujo interesse e importância são inegáveis, são-nos apresentados de<br />

modo particularmente persuasivo e contêm em si a seguinte questão:<br />

onde se há-de encontrar o remédio para um mau uso da razão? Há<br />

também esta outra questão que se relaciona com a anterior: qual é a<br />

relação entre a razão e as emoções, nomeadamente com a compaixão<br />

e a simpatia? E, para além disso, deve-se também perguntar o seguinte:<br />

qual a justificação última para que se confie na razão? Será<br />

que a razão é acarinhada por ser um bom instrumento, e se assim for,<br />

um instrumento para conseguir o quê? Ou será que a razão se justifica<br />

por si mesma, e se assim for, em que é que difere de uma crença<br />

cega e irreflectida? Estes pontos têm sido matéria de discussão ao<br />

longo de todas as eras, mas aqui temos uma necessidade especial de<br />

nos defrontarmos com eles, tendo conta que este livro se centra sobre<br />

o papel da razão na investigação da ideia de justiça.<br />

AKBAR E A NECESSIDA<strong>DE</strong> DA RAZÃO<br />

Na margem da sua cópia de A Genealogia da Moral, de Nietzsche,<br />

W.B. Yeats escreveu o seguinte: «Mas porque pensa Nietzsche que a<br />

noite não tem estrelas e que nada mais há que não sejam morcegos,<br />

corujas e uma lua demente?» 11 O cepticismo de Nietzsche acerca da<br />

humanidade, a sua arrepiante visão do futuro faziam a sua entrada<br />

em cena quando estava para começar o século XX (ele morre em<br />

1900). Os acontecimentos do século que se lhe seguiu, incluindo as<br />

guerras mundiais, dão-nos razões suficientes para nos inquietarmos e<br />

para nos interrogarmos sobre se este cepticismo de Nietzsche em<br />

razões de alguma espécie para defender as suas crenças (por mais cruas ou rudes que estas<br />

sejam). O objectivo de fazer do uso da razão uma disciplina é o de submeter as crenças ou<br />

convicções dominantes e as suas alegadas razões a um exame crítico. Estas questões serão<br />

tratadas mais de espaço nos Capítulos 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, Pluralidade e<br />

Razões Imparciais”.<br />

77


7 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

relação à humanidade não estaria, afinal, absolutamente certo * . De<br />

facto, quando, no fim do século XX, Jonahthan Glover se dedicou a<br />

estudar as preocupações de Nietzsche, concluiu que «temos de olhar<br />

muito atentamente e com clareza para os monstros que habitam dentro<br />

de nós», e pensar em maneiras de os «enjaular e domar» 12 .<br />

O fim de um século é uma dessas ocasiões que muitos acham<br />

serem momentos oportunos para proceder a um exame crítico sobre<br />

as coisas que estão a acontecer e sobre o que se deve fazer no futuro.<br />

É certo que nem sempre tais reflexões atingem o grau de pessimismo<br />

e cepticismo de Nietzsche (ou Glover) acerca da natureza humana e<br />

da possibilidade de mudar as coisas com o uso da razão. Em tempos<br />

bem mais remotos, na Índia, pode-se encontrar um interessante contraste<br />

nas deliberações do imperador mogol, Akbar, e também aí<br />

estávamos diante de um ponto de viragem, mas desta feita milenar, e<br />

não apenas secular. Como se aproximasse o fim do primeiro milénio<br />

do calendário muçulmano hijri, em 1591-1592 (tinham passado mil<br />

anos lunares desde a épica viagem de Maomé, de Meca para Medina,<br />

em 622) † , Akbar entregou-se a um aturado escrutínio dos valores<br />

sociais e políticos, da prática legal e da vida cultural. Em especial,<br />

dedicou atenção aos desafios postos pelas relações entre comunidades<br />

diferentes e à perene necessidade de uma paz comum e de uma<br />

colaboração frutuosa nessa Índia do século XVI, já então<br />

multicultural. Não podemos deixar de reconhecer como as políticas<br />

de Akbar eram fora do comum para a época. A Inquisição estava em<br />

grande actividade e Giordano Bruno era queimado por heresia em<br />

1600, em Roma, ao mesmo tempo que Akbar proferia palavras de<br />

tolerância religiosa na Índia. Akbar não se limitou a insistir que era<br />

dever do Estado assegurar-se de que «nenhum homem devia ser<br />

incomodado por causa da sua religião, e a todos se deve permitir que<br />

sigam a religião que lhes aprouver» 13 ; além disso, também promoveu<br />

na capital, Agra, diálogos regulares entre hindus, muçulmanos,<br />

* Para usar as palavras em ghazal do poeta urdu Javed Akhtar: «Religião e guerra,<br />

castas e raças, destas coisas nada sabe/ Diante da nossa selvajaria como podemos julgar a<br />

besta selvagem» (Javed Akhtar, Quiver: Poems and Ghazals, trad. David Matthews, Nova<br />

Déli, Harper Collins, 2001, p. 47.<br />

† Um ano lunar tem a duração média de 354 dias, 8 horas e 48 minutos, pelo que<br />

corre bem mais depressa do que o ano solar.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

cristãos, jainas, persas, judeus e outros, chegando a incluir neles<br />

agnósticos e ateus.<br />

Tomando em boa conta a diversidade religiosa do seu povo,<br />

Akbar estabeleceu por diversos meios os fundamentos do secularismo<br />

e da neutralidade religiosa do estado; a constituição secular que a<br />

Índia adoptou em 1949, depois de obter a independência do domínio<br />

britânico, apresenta muitos traços que já eram propugnados por<br />

Akbar nos anos 90 do século XVI. Os elementos comuns incluem a<br />

interpretação do secularismo como requisito para que o estado mantenha<br />

a equidistância em relação às diferentes religiões e para que<br />

não venha a dar um tratamento de favor a nenhuma delas.<br />

Subjacente à perspectiva geral de Akbar quanto à avaliação dos<br />

usos e das políticas seguidas, estava a sua tese – e chave de volta do<br />

seu pensamento – de que «a demanda em busca da razão» (em vez<br />

daquilo a que ele chamava «a terra pantanosa da tradição») é o meio<br />

apropriado para tratar dos problemas difíceis do bom comportamento<br />

e dos desafios postos pela construção de uma sociedade justa 14 .<br />

A questão do secularismo é apenas um dos muitos casos em que<br />

vemos Akbar a insistir que deveríamos ser livres para examinar se<br />

um uso tem ou não o suporte da razão, ou se ela nos fornece justificação<br />

para uma política já em curso; por exemplo: ele decidiu abolir<br />

todos os impostos especiais sobre os não muçulmanos com o fundamento<br />

de que eram discriminatórios, pois não tratavam todos os<br />

cidadãos como iguais, e, em 1582, resolveu libertar «todos os escravos<br />

imperiais», pois «é alheio ao reino da justiça e da conduta boa»<br />

tirar dividendos do uso da «força» 15 .<br />

É fácil encontrarmos ilustrações das críticas de Akbar às práticas<br />

sociais dominantes nos argumentos que ele próprio apresentou. Por<br />

exemplo: ele opunha-se ao casamento de crianças, que ao tempo era<br />

prática comum (e que infelizmente ainda não está completamente<br />

erradicado deste subcontinente), uma vez que, argumentava ele, «o<br />

objecto pretendido» no casamento «está ainda longínquo e há uma<br />

possibilidade imediata de dano». Além disso, também criticava a<br />

prática hindu de não permitir às viúvas que se casassem em segundas<br />

núpcias (uso que só iria ser reformado vários séculos mais tarde), e<br />

juntava que «numa religião que proíbe o novo casamento à viúva»,<br />

«é muito maior» a provação que advém de permitir o casamento de<br />

crianças. No que toca à sucessão hereditária, Akbar atalhava que «na<br />

79


8 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

religião muçulmana, confere-se à filha uma parte menor da herança,<br />

ainda que, devido à sua debilidade, ela merecesse receber uma parte<br />

maior». E um tipo de raciocínio bem diferente é o que podemos<br />

detectar na sua decisão de permitir os rituais religiosos, ainda que<br />

sobre eles nutrisse uma visão muito céptica. Quando o seu segundo<br />

filho, Murad, tomou conhecimento de que Akbar se opunha a todos<br />

os rituais religiosos, foi perguntar-lhe se tais rituais deveriam ser<br />

banidos, ao que Akbar imediatamente obtemperou que «impedi-lo a<br />

um homem simples e sem sensibilidade que considera que o exercício<br />

físico é culto divino equivaleria a impedi-lo [por completo] de se<br />

lembrar de Deus».<br />

Apesar de se ter mantido um muçulmano praticante, Akbar<br />

propugnava a necessidade de que todos submetessem as crenças e<br />

prioridades que houvessem herdado a um escrutínio crítico. Aliás, o<br />

mais importante argumento que usou a favor da sua defesa de uma<br />

sociedade multicultural secular e tolerante talvez tivesse a ver com o<br />

papel que, no meio de tudo isto, conferia ao uso da razão. Para<br />

Akbar, a razão era suprema, pois, mesmo quando a quiséssemos pôr<br />

em questão, sempre teríamos de dar razões para a questionar. Quando,<br />

no seio da sua própria religião, se viu atacado por férreos tradicionalistas<br />

que defendiam uma fé inquestionável e instintiva na tradição<br />

islâmica, Akbar disse ao seu amigo e fiel lugar-tenente, Abul Fazl<br />

(um notabilíssimo académico estudioso de sânscrito, árabe e persa):<br />

«A demanda em busca da razão e a rejeição do tradicionalismo são<br />

tão brilhantemente manifestos que estão acima da necessidade de<br />

argumentos» 16 . E concluía dizendo que o «caminho da razão» ou o<br />

«império do intelecto» (rahi aql) têm de ser o determinante fundamental<br />

do comportamento bom e justo, sendo também uma moldura<br />

aceitável para os deveres e títulos legais * .<br />

* Akbar teria alinhado ao lado do diagnóstico de Thomas Scanlon (no seu esclarecedor<br />

estudo acerca do papel da razão quando se trata de determinar «o que devemos uns aos<br />

outros»), segundo o qual não deveríamos «considerar a ideia da razão como algo de misterioso,<br />

ou como ideia que carece de, ou à qual se pode fornecer, uma explicação filosófica<br />

que assente numa qualquer outra noção mais básica» (What We Owe Each Other,<br />

Cambridge, MA, Harvard University Press, 1998, p. 3).


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

OBJECTIVIDA<strong>DE</strong> ÉTICA E ESCRUTÍNIO ARGUMENTADO<br />

Akbar tinha razão quando salientava que a razão é indispensável.<br />

Como passaremos agora a mostrar, até mesmo a importância das<br />

emoções é passível de ser apreciada no âmbito da operação da razão.<br />

Na realidade, o lugar significativo que as emoções ocupam nas nossas<br />

deliberações pode ser explicado através das várias razões que nos<br />

fazem levá-las a sério (ainda que não de modo acrítico). Se somos<br />

movidos por uma emoção particularmente forte, temos toda a razão<br />

em perguntar que conclusão podemos tirar daí. Razão e emoção<br />

desempenham papéis complementares na reflexão humana, e mais<br />

adiante, neste capítulo, iremos analisar mais demoradamente a complexa<br />

relação que se estabelece entre elas.<br />

Não é difícil observar que os juízos éticos requerem sempre o<br />

rahi aql – o uso da razão. Porém, fica ainda uma questão por responder:<br />

porque é que temos de aceitar que a razão deve ser a última<br />

instância a funcionar como árbitro das convicções éticas? Haverá<br />

algum especial papel que o uso da razão deva desempenhar – talvez<br />

uma racionalidade de tipo particular – e que deva ser visto como<br />

crucial para os juízos éticos, como se fora a chave de volta dos<br />

mesmos? Pois que a simples existência de um fundamento dado pela<br />

argumentação, em si mesma, não há-de ser necessariamente uma<br />

qualidade atributiva de valor, teremos então de nos perguntar o<br />

seguinte: porque será tão crítico que exista um fundamento argumentado?<br />

Poder-se-á propugnar que o escrutínio racional é capaz de<br />

fornecer uma qualquer espécie de garantia quanto à possibilidade de<br />

alcançar a verdade? Uma tal tese seria difícil de manter, não só<br />

porque a natureza da verdade em matéria de convicções morais e<br />

políticas é um objecto cheio de dificuldades, mas sobretudo porque,<br />

em ética como em qualquer outra disciplina, no fim mesmo as mais<br />

rigorosas investigações podem falhar.<br />

Mais, pode acontecer às vezes que um procedimento mais dúbio,<br />

acidentalmente, acabe por produzir uma resposta mais acertada<br />

do que uma argumentação extremamente rigorosa. Em epistemologia,<br />

isto é até bem óbvio: muito embora um procedimento científico<br />

tenha uma maior probabilidade de sucesso, quando comparado com<br />

procedimentos alternativos, pode sempre acontecer que um procedimento<br />

aloucado venha fornecer a resposta certa para um caso parti-<br />

81


8 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

cular (neste caso, uma que fosse mais acertada do que a obtida por<br />

meio de procedimentos mais profusamente argumentativos). Seja um<br />

exemplo: uma pessoa que depõe a sua confiança num relógio parado<br />

para saber as horas, terá sempre a hora certa duas vezes ao dia, e se<br />

se desse o caso de querer saber as horas num desses momentos, este<br />

seu relógio, conquanto imobilizado, bem poderia levar a melhor sobre<br />

todos os relógios mobilizados a que pudesse deitar a mão. Contudo,<br />

quando toca a escolher um procedimento, preferir confiar num relógio<br />

inerte e não num relógio com movimento e que anda próximo da<br />

hora certa não é coisa digna de particular louvor, pese embora o<br />

facto de que o relógio mobilizado sempre seria vencido duas vezes<br />

por dia pelo relógio estacionário * .<br />

Faz sentido pensar que existe um argumento semelhante quando<br />

toca a escolher o melhor de entre os procedimentos de argumentação,<br />

conquanto continue a não haver garantia de que ele venha a<br />

estar invariavelmente certo, como não haverá garantias de que ele<br />

venha a estar mais certo do que um outro que seja menos argumentativo<br />

(e isto ainda que fôssemos capazes de ajuizar com segurança da<br />

correcção dos próprios juízos). A defesa do recurso a um escrutínio<br />

argumentado assenta, não numa noção de que disporemos de um<br />

meio à prova de fogo que nos permita obter conclusões absolutamente<br />

certas (pois isso é coisa que não poderá nem existir), mas na<br />

possibilidade de se ser tão objectivo quanto se possa razoavelmente<br />

ser † . Diria, pois, que o que subjaz a esta defesa do uso da razão na<br />

altura de proceder a juízos éticos são também as exigências da objectividade,<br />

as quais nos pedem uma particular disciplina do (e no) uso<br />

da razão. O importante papel que neste livro se atribui ao uso da<br />

* Numa história para crianças, Leela Majumdar, a escritora bengali (e tia do grande<br />

realizador de cinema Satyajit Ray), recorda que, nos tempos em era uma estudante universitária<br />

rebelde em Calcutá, certo dia parara na rua para perguntar o seguinte a um desconhecido<br />

que passava – apenas para o amofinar ou confundir: «Ó, olá, quando é que voltou de<br />

Chittagong?» E o homem, sem perceber, respondeu espantado: «Ontem, como é que sabia?»<br />

† Veja-se a poderosa análise de Bernard Williams acerca da possibilidade de encarar<br />

uma convicção argumentada como «tendo em mira» a verdade (“Deciding to Believe”, in<br />

Problems of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1973). Vide também Peter<br />

Railton, Facts, Values and Norms: Essays towards a Morality of Consequence,<br />

Cambridge, Cambridge University Press, 2003.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

razão relaciona-se com a necessidade de uma argumentação objectiva<br />

quando se trata de reflectir sobre questões de justiça e injustiça.<br />

Tendo em conta que a objectividade é já em si mesma uma<br />

questão de grande dificuldade para a filosofia moral e política, este<br />

tema vai exigir-nos uma discussão mais demorada. Será que a busca<br />

da objectividade se faz sob a forma de uma busca de objectos éticos?<br />

Sendo embora certo que uma boa parte da discussão acerca da objectividade<br />

da ética se inclinou para um tratamento da questão em termos<br />

ontológicos (em especial, a questão metafísica acerca de “quais os<br />

objectos éticos existentes”), é-nos difícil perceber qual poderia ser o<br />

aspecto destes objectos éticos. Em vez disso, inclinar-me-ia para seguir<br />

o argumento de Hilary Putnam, segundo o qual esta linha de<br />

investigação é por de mais inútil e, em larga medida, mostra-se mal<br />

orientada * . Quando nos pomos a debater as exigências da objectividade,<br />

não se trata de nos pormos a desembainhar a espada por causa<br />

da natureza e do conteúdo de tais ou tais alegados “objectos” éticos.<br />

Há, com certeza, algumas declarações éticas que pressupõem a<br />

existência de certos objectos identificáveis e que podem ser observados<br />

(tal aconteceria, por exemplo, no caso de um exercício em se<br />

tentasse encontrar provas observáveis para decidir se uma pessoa é<br />

corajosa ou compassiva), mas a matéria sobre que incidem outras<br />

declarações éticas já poderá não permitir este tipo de associação (por<br />

exemplo, um juízo pelo qual se diga que uma pessoa é totalmente<br />

imoral ou injusta). Contudo, apesar de uma certa sobreposição entre<br />

descrição e valoração, a ética não poderá ser meramente uma questão<br />

de descrição verdadeira de objectos específicos. Em vez disso,<br />

como defende Putnam, «as autênticas questões éticas são uma espécie<br />

das questões práticas, e as questões práticas não envolvem apenas<br />

* Hilary Putnam, Ethics without Ontology, Cambridge, MA, Harvard University<br />

Press, 2004. Putnam não trata apenas da inutilidade da perspectiva ontológica para a objectividade<br />

em ética, mas também do erro que tal perspectiva comete ao tentar fixar o olhar em<br />

algo que está muito distanciado da natureza da matéria em questão. «Na tentativa de fornecer<br />

uma explicação ontológica da objectividade da matemática, vejo, na realidade, uma tentativa<br />

de fornecer razões que não são parte da matemática a respeito da verdade de declarações<br />

matemáticas, e, na tentativa de fornecer uma explicação ontológica da objectividade da ética,<br />

vejo uma tentativa similar de fornecer razões que não são parte da ética a respeito da<br />

verdade de declarações éticas; ambas as tentativas estão profundamente enganadas.»<br />

83


8 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

valoração, envolvem também uma mistura complexa de convicções,<br />

juntamente, filosóficas, religiosas e factuais» 17 . Os processos que são<br />

efectivamente empregues para procurar a objectividade podem não<br />

ser sempre claros, nem inteiramente explicitados nos seus vários passos,<br />

mas, como propõe Putnam, tudo isto pode ser feito com clareza se as<br />

questões subjacentes forem adequadamente escrutinadas * .<br />

O raciocínio que se deseja para a análise dos requisitos da justiça<br />

deverá incorporar algumas exigências básicas de imparcialidade, que<br />

são partes integrantes da ideia de justiça e injustiça. Chegados a este<br />

ponto, ser-nos-á de valia convocar agora as ideias de John Rawls e a<br />

sua análise da objectividade moral e política, a mesma que ele expôs<br />

ao apresentar a sua defesa da objectividade enquanto traço da «justiça<br />

como equidade» (tema a que se dedicará o próximo capítulo) † .<br />

Eis o que afirma Rawls: «O primeiro requisito essencial é o de que<br />

uma concepção de objectividade tem de estabelecer uma moldura<br />

pública de pensamento que se mostre suficiente para que se lhe<br />

aplique o conceito de juízo e para que, depois de uma discussão e da<br />

devida reflexão, se chegue a conclusões com base em razões e provas.»<br />

E continua: «Dizer que uma convicção política é objectiva é<br />

dizer que há razões suficientes, especificadas por uma concepção<br />

* No meu livro Development as Freedom (Nova Iorque, Knopf, 1999), abstive-me de<br />

encetar uma discussão séria sobre metodologia ética, limitando-me a basear a pretensão de<br />

aceitabilidade de algumas prioridades de desenvolvimento em fundamentos que tinham<br />

muito de senso comum. Hilary Putnam analisou de modo límpido e definitivo a aplicação da<br />

metodologia subjacente àquele livro à área da economia de desenvolvimento, mostrando<br />

como essa particular metodologia se ajusta (em boa hora, para mim) à sua perspectiva geral<br />

em matéria de objectividade – veja-se o seu The Collapse of the Fact/Value Dicotomy and<br />

Other Essays, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002. Veja-se também Vivian<br />

Walsh, “Sen after Putnam”, Review of Political Economy, 15 (2003).<br />

† Neste ponto, cumpre sublinhar que existem diferenças substanciais entre, por um<br />

lado, a maneira em que Putnam olha para o problema da objectividade, deixando espaço<br />

para o seu cepticismo quanto a «princípios universais» (Ethics without Ontology: «poucos<br />

problemas reais podem ser resolvidos tratando-os como meras instâncias de uma generalização<br />

universal», p. 4), e, por outro lado, a maneira em que Rawls encara o problema, com o<br />

seu recurso a princípios universais ao mesmo tempo que procede à investigação das<br />

especificidades dos problemas éticos particulares (Political Liberalism, p. 110-118). No<br />

entanto, nenhum dos dois se mostra tentado a ver a objectividade da ética em termos de<br />

ontologia, ou em termos de uma busca de objectos reais. Nesta obra, inspiro-me tanto na<br />

análise de Putnam como naquela de Rawls, mas não progredirei na exploração dos pontos<br />

específicos em que assentam as suas diferenças.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

política razoável e mutuamente reconhecível (que preencha aqueles<br />

requisitos essenciais), para que se convença todas as pessoas razoáveis<br />

de que ela é razoável» 18 .<br />

Poder-se-ia gerar uma interessante discussão para saber se este<br />

critério de objectividade – que contém alguns elementos claramente<br />

normativos (especialmente no que tange à caracterização e identificação<br />

de «pessoas razoáveis») – tenderia ou não a coincidir com o<br />

critério que exige a circunstância de que algo tenha boas probabilidades<br />

para resistir a uma discussão pública e informada. Assim, em<br />

contraste com Rawls, Jürgen Habermas veio centrar-se nesta última<br />

rota de índole fortemente procedimental, ao invés de se fundar numa<br />

caracterização independente do procedimento com vista à identificação<br />

daquilo que estivesse em condições de convencer todas as pessoas<br />

que são «razoáveis» e que, por isso, haveriam de tomar por igualmente<br />

«razoável» uma certa convicção política 19 . Não me é difícil<br />

ver a força do argumento de Habermas e a correcção da distinção<br />

categorial a que ele procede, sem embargo de não estar completamente<br />

persuadido de que as perspectivas de Rawls e Habermas sejam,<br />

de facto, radicalmente diferentes do ponto de vista das respectivas<br />

estratégias de raciocínio.<br />

A fim de conseguir aquele tipo de sociedade política que usualmente<br />

é o foco da sua atenção, Habermas vem também ditar um<br />

número considerável de exigências estritas para a deliberação pública.<br />

Se as pessoas são capazes de ser razoáveis ao tomar nota dos<br />

pontos de vista dos demais e ao agradecer toda essa informação,<br />

coisa que se deve contar entre as requisitos essenciais de um diálogo<br />

público e de espírito aberto, então o hiato entre as duas perspectivas<br />

tenderá a não ser necessariamente abissal * .<br />

* Habermas defende também que o tipo de acordo que acabaria por emergir no<br />

sistema por ele proposto seria substancialmente diferente do conjunto de regras e prioridades<br />

mais “liberais” propostas por Rawls (“Reconciliation through the Public Use of Reason:<br />

Remarks on John Rawls’s Polital Liberalism”, The Journal of Philosophy, 1995). O que<br />

cabe determinar é se tais diferenças entre as conclusões de Habermas e as de Rawls quanto<br />

aos resultados substantivos serão realmente o resultado de dois diferentes procedimentos,<br />

usados respectivamente pelos dois autores, e que não resultam, em vez disso, das suas<br />

respectivas convicções acerca de quão abertas e interactivas poderão ser as deliberações por<br />

que se pode esperar no âmbito de intercâmbios livres e democráticos. Vide também Jürgen<br />

Habermas, Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics, trad. Ciaran<br />

Cronin, Cambridge, MA, MIT Press, 1993.<br />

85


8 6 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Não me deterei a fazer uma grande distinção entre aqueles que<br />

Rawls subsume à categoria de «pessoas razoáveis» e todos os outros<br />

seres humanos, mau grado as frequentes alusões que ele faz à – e a<br />

sua evidente mobilização da – categoria de «pessoas razoáveis». Já<br />

noutro sítio tentei demonstrar que, grosso modo, todos nós somos<br />

capazes de razoabilidade, bastando para isso que mantenhamos uma<br />

mente aberta, estando por isso dispostos a receber informação de<br />

bom grado e a reflectir sobre os argumentos que nos chegam de<br />

diferentes direcções, e, a par disso, que aceitemos proceder a deliberações<br />

e debates interactivos acerca de como encarar as questões subjacentes<br />

20 . Não vejo em que é que esta presunção difere da ideia do<br />

próprio Rawls sobre «pessoas livres e iguais», todas com «poderes<br />

morais» * . De facto, a análise de Rawls parece concentrar-se mais na<br />

caracterização dos seres humanos deliberantes do que na categorização<br />

de algumas «pessoas razoáveis» com a consequente exclusão<br />

de outras † . Vemos, pois, que o papel do uso público e irrestrito da<br />

razão é um ponto verdadeiramente central para a vida política democrática,<br />

em geral, e para a demanda de justiça social, em particular ‡ .<br />

ADAM SMITH E O ESPECTADOR IMPARCIAL<br />

O uso público da razão é claramente um traço essencial da objectividade<br />

em matéria de convicções políticas e éticas, e se Rawls propõe<br />

uma certa maneira de pensar sobre a objectividade quando se trata de<br />

avaliar a justiça, logo aparece Adam Smith invocando o espectador<br />

imparcial para nos fornecer outra. Esta “antiga” abordagem (no mo-<br />

* Rawls refere-se em particular a «dois poderes morais», a saber, «a capacidade para<br />

um sentido de justiça» e «a capacidade para uma concepção do bem» (Justice as Fairness:<br />

A Restatement, coord. por Erin Kelly, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001,<br />

pp. 18-19.<br />

† De facto, da boca de Rawls não ouvimos dizer muito sobre a maneira em que<br />

aqueles que poderiam ser vistos como “pessoas irrazoáveis” conseguiriam, por fim, formar<br />

uma ideia acerca da justiça, nem sobre como viriam a ser integradas na ordem social.<br />

‡ Vide Joshua Cohen, “Deliberation and Democratic Legitimacy”, in Alan Hamlin e<br />

Philip Pettit (coord.), The Good Polity: Normative Analysis of the State, Oxford, Blackwell,<br />

1989, e Politics, Power and Public Relations, Tanner Lectures at the University of California,<br />

Berkeley, 2007. Vide também Seyla Benhabib (coord.), Democracy and Difference:<br />

Contesting the Boundaries of the Political, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1996.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

mento em que escrevo estas linhas, passaram-se quase 250 anos<br />

desde a primeira edição da obra de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos<br />

Morais, em 1759) tem um larguíssimo alcance; mas não só,<br />

ela também se mostra particularmente dotada de conteúdos procedimentais<br />

e substantivos. Quando se tenta uma resolução por meio de<br />

uma argumentação pública, há fortes motivos para não deixar de fora<br />

quaisquer perspectivas ou raciocínios que sejam apresentados por<br />

alguém cujas avaliações se mostrem relevantes, seja porque os seus<br />

interesses estão envolvidos no caso, seja porque a sua maneira de<br />

pensar sobre os temas em causa pode trazer alguma luz para os<br />

particulares juízos que devam ser formulados – luz que poderia escapar<br />

à nossa atenção caso não se desse a essas perspectivas uma<br />

oportunidade para serem ventiladas.<br />

Enquanto que Rawls parece dirigir a sua atenção para as variações<br />

dos interesses e das prioridades pessoais, já Adam Smith vai<br />

além disso, preocupando-se com a necessidade de alargar a discussão<br />

a fim de evitar o apego acrítico a valores de tipo local (“paroquialismo<br />

local” dos valores, local parochialism), pois este poderia levar a<br />

ignorar certos argumentos pertinentes que fossem pouco familiares<br />

no âmbito de uma cultura particular. Dado que a discussão pública<br />

pode assumir uma forma contrafactual (“o que diria sobre isso um<br />

espectador imparcial que olhasse para as coisas com uma certa distância?”),<br />

uma das principais preocupações metodológicas de Adam<br />

Smith consiste na necessidade de convocar uma ampla variedade de<br />

pontos de vista e modos de ver, baseados em experiências diferentes,<br />

próximas ou longínquas que sejam, em vez de nos contentarmos em<br />

ter confrontos – actuais ou contrafactuais – apenas com aqueles outros<br />

que vivem no mesmo meio sociocultural e que têm o mesmo tipo de<br />

experiências, preconceitos e convicções acerca do que é razoável e<br />

irrazoável, ou com o mesmo tipo de convencimentos sobre o que é<br />

viável e inviável. A insistência de Adam Smith em que, entre outras<br />

coisas, olhemos para os nossos sentimentos “a uma certa distância<br />

(de nós próprios)” encontra o seu motivo na necessidade de submeter<br />

a escrutínio não só os interesses próprios, mas também o impacto<br />

exercido por usos e tradições já estavelmente entrincheiradas * .<br />

* Vide também a análise de Simon Blackburn acerca do papel desempenhado pelo<br />

«ponto de vista comum» e, em particular, as contribuições de Adam Smith e David Hume<br />

87


8 8 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Sem menoscabo das diferenças entre os diferentes tipos de argumentos<br />

apresentados por Adam Smith, Habermas e Rawls, encontramos<br />

porém uma semelhança essencial nas suas perspectivas sobre a<br />

objectividade, na medida em que, em todos eles, a objectividade<br />

aparece ligada, directa ou indirectamente, à aptidão para resistir e<br />

sobreviver aos desafios que sejam postos por escrutínios informados<br />

provindos de áreas diversas ou de diferentes direcções. E também<br />

nesta obra, irei tomar o escrutínio racional, operado a partir de diferentes<br />

pontos de vista, como uma das exigências essenciais da objectividade<br />

em matéria de convicções éticas e políticas.<br />

No entanto, chegado a este ponto, devo juntar – trata-se, aliás,<br />

de uma verdadeira asserção – que os princípios que sobrevivam a<br />

um tal escrutínio não têm de fazer parte de um conjunto único (pelas<br />

razões já apresentadas na Introdução). Na verdade, isto representa<br />

um maior distanciamento em relação a Rawls do que em relação a<br />

Putnam * . De facto, qualquer perspectiva da justiça, como a de Rawls,<br />

que proponha dever seguir-se uma escolha dos princípios da justiça<br />

assente na rigidez de uma estrutura institucional global única (o que<br />

é parte do institucionalismo transcendental de que se tratou na Introdução)<br />

e que se entregue a contar-nos, passo por passo, a história do<br />

emergir da justiça em chave de “como se”, não poderá condescender<br />

facilmente em aceitar a co-sobrevivência de princípios concorrentes<br />

que não falem a sua língua. Como já se disse na Introdução, o que<br />

pretendo é defender a possibilidade de que haja posições que são<br />

contrárias e que, ao mesmo tempo, conseguem sobreviver; posições<br />

que não podem ser submetidas a uma cirurgia radical que as reduza a<br />

todas até que formem uma caixa bem arrumada de exigências entre si<br />

perfeitamente articuladas – é para satisfazer este requisito que, na teoria<br />

de Rawls, somos levados a ter de enveredar por uma particular rota<br />

institucional única (que deverá ser cumprida por um estado soberano).<br />

Conquanto se notem diferenças entre as distintas perspectivas<br />

sobre a objectividade que aqui considerámos, há entre elas um ponto<br />

para o desenvolvimento dessa perspectiva, Ruling Passions: A Theory of Practical<br />

Reasoning, Oxford, Clarendon Press, 1998, maxime, Capítulo 7.<br />

* E decerto não se trata de qualquer distanciamento em relação a Bernard Williams;<br />

vide Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, Capítulo 8, e também<br />

John Gray, Two Faces of Liberalism, Londres, Polity Press, 2000.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

semelhante sobrepujante que em todas é fundamental e que assenta<br />

no comum reconhecimento da necessidade de um confronto argumentado<br />

que parta de uma base imparcial (estas perspectivas diferem<br />

sobretudo na definição da imparcialidade requerida, como se verá<br />

com mais pormenor no Capítulo 6). Claro está que a razão pode<br />

assumir formas distintas com usos muito variados * , todavia, na medida<br />

em que estejamos à procura de uma objectividade ética, a racionalidade<br />

que nos é necessária terá de satisfazer aqueles que são vistos<br />

como os requisitos de imparcialidade. As razões da justiça podem<br />

diferir das razões do «amor próprio» – para usar uma expressão de<br />

Adam Smith – e também das razões da prudência, mas continuarão,<br />

ainda assim, a ocupar um vasto domínio. Muito do que a seguir se<br />

dirá terá a finalidade de explorar esse imenso território.<br />

O ALCANCE DA RAZÃO<br />

O uso da razão é uma fonte robusta de esperança e de confiança num<br />

mundo ensombrado por feitos lúgubres – passados e presentes.<br />

E nem é difícil que se perceba porquê? Mesmo quando achamos de<br />

imediato que uma coisa é preocupante, sempre podemos pôr isto em<br />

questão perguntando se é essa a reacção apropriada e se nos deveremos<br />

deixar guiar por ela. O uso da razão pode servir para reflectirmos<br />

sobre a maneira certa de ver e tratar as outras pessoas, as outras<br />

culturas e as pretensões alheias, mas também sobre os diferentes<br />

fundamentos que levam ao respeito e à tolerância. Podemos ainda<br />

discorrer racionalmente sobre os nossos próprios erros e tentar aprender<br />

para que não os repitamos, da mesma maneira que Kenzaburo<br />

Oe, o grande escritor japonês, espera que a nação japonesa possa<br />

continuar empenhada «na ideia de democracia e na sua determinação<br />

de não mais entrar em guerra», sendo nisso ajudada pelo conhecimento<br />

da sua própria «história de invasão territorial» † .<br />

* Algumas destas diferenças serão apreciadas nos Capítulos 8, “A Racionalidade e os<br />

Outros”, e 9, “A Pluralidade das Razões Imparciais”.<br />

† Kenzaburo Oe, Japan, the Ambiguous, and Myself, Tóquio e Nova Iorque,<br />

Kodansha International, 1995, pp. 118-119. Vide também Onuma Yasuaki, “Japanese War<br />

Guilt and Postwar Responsabilities of Japan”, Berkeley Journal of International Law, 20 (2002).<br />

89


9 0 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Não menos importante é a necessidade de uma perscrutação<br />

intelectual que nos identifique as acções que não tiveram intenção<br />

danosa, ainda que tenham tido esse efeito; por exemplo: horrores<br />

como as terríveis carestias podem ficar por verificar, por causa da<br />

falsa presunção de que não podem ser evitadas senão aumentando a<br />

disponibilidade total de alimentos, coisa que é difícil de organizar<br />

com celeridade. Centenas de milhares, e até de milhões, de pessoas<br />

podem morrer mercê da calamitosa inacção derivada de um fatalismo<br />

não raciocinado que vai mascarado sob um disfarce de compostura<br />

plena de realismo e senso comum * . Acontece, porém, que as grandes<br />

carestias até são fáceis de prevenir; em parte, porque só afectam uma<br />

proporção pequena da população (raramente ultrapassará os 5% e<br />

quase nunca mais de 10%), e pode-se então providenciar a redistribuição<br />

dos alimentos existentes usando instrumentos imediatos,<br />

como será o caso da criação de empregos de emergência, para que se<br />

possa dar aos indigentes um rendimento imediato que lhes permita<br />

comprar o que comer. Como é óbvio, em geral, dispor de mais<br />

alimentos é algo que sempre viria facilitar as coisas (por um lado,<br />

poderá agilizar a distribuição pública de alimentos, e, por outro, mais<br />

alimentos disponíveis no mercado pode também significar uma ajuda<br />

para que os preços se mantenham mais baixos); contudo, ter mais<br />

alimentos à disposição não é uma absoluta necessidade para acorrer<br />

com sucesso a uma situação de fome (como frequentemente se dá<br />

por adquirido, vendo nisso uma justificação para a inacção, isto é,<br />

para a omissão das medidas necessárias para um socorro imediato).<br />

A redistribuição do fornecimento de alimentos, necessária para evitar<br />

Algo de semelhante é o que se tem passado na Alemanha do pós-guerra, onde aprender com<br />

os erros passados, particularmente os do período nazi, também tem sido um tema importante.<br />

* Tive a ocasião de tratar das causas das situações de fome e dos requisitos para uma<br />

política de prevenção das mesmas em Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and<br />

Deprivation, Oxford, Claredon Press, 1981, e também, em parceria com Jean Drèze, em<br />

Hunger and Public Action, Oxford, Clarendon Press, 1989. É esta uma ilustração do<br />

problema mais geral de como uma teoria errada pode ter consequências fatais. Sobre este<br />

ponto, veja-se o meu Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford, Clarendon<br />

Press, 1999; e Sabina Alkire, “Development: A Misconceived Theory Can Kill”, in<br />

Christopher W. Morris (coord.), Amartya Sen, Cambridge, Cambridge University Press,<br />

2010. Veja-se também Cormac Ó Gráda, Famine: A Short History, Princeton, NJ,<br />

Princeton University Press, 2009.


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

que as pessoas morram à fome é uma operação relativamente pequena,<br />

e mais, pode ser conseguida criando o poder de compra daqueles<br />

que estão privados de qualquer tipo de rendimento por causa de um<br />

qualquer infortúnio, situação esta que é geralmente a causa primária<br />

da fome * .<br />

Considere-se agora um outro tema que, finalmente, começa agora<br />

a receber a atenção que merece, a saber: o desprezo e a deterioração<br />

da natureza. Como se vai percebendo cada vez mais, trata-se de um<br />

problema enorme, que, além disso, anda ligado aos efeitos negativos<br />

do comportamento humano; contudo, o problema não surge de um<br />

qualquer desejo da presente geração de lesar os que estão para nascer,<br />

ou sequer do desejo de ser deliberadamente insensível a respeito<br />

dos interesses das futuras gerações. E no entanto, devido à falta de<br />

um empenho e de uma acção racionalmente escorados, continuamos<br />

a não cuidar adequadamente do meio ambiente e das condições de<br />

sustentabilidade que poderiam garantir uma vida com qualidade.<br />

Para prevenir as catástrofes causadas pela negligência dos homens<br />

ou pela sua insensível obstinação, temos necessidade de proceder a<br />

um escrutínio crítico, isto é, não nos basta a boa-vontade de uns para<br />

com os outros 21 .<br />

Nisso, a razão é nossa aliada, não uma ameaça que nos venha<br />

pôr em risco. Ora, se assim é, porque será que ela é vista de maneira<br />

tão diferente por todos aqueles que acham ser profundamente problemática<br />

esta confiança que assim se deposita no uso da razão? Um<br />

* Mais ainda, uma vez que a maioria das vítimas de fome sofre de doenças conhecidas,<br />

das quais frequentemente acabam por morrer (com a agravante da debilitação e do<br />

alastramento de infecções que sobrevêm por estarem à míngua), muito há que pode ser feito<br />

usando de cuidados médicos vários e recorrendo a centros médicos. Mais de quatro quintos<br />

do número de mortes na Grande Carestia de Bengala de 1943 estiveram directamente<br />

relacionados com doenças que eram comuns naquela região, e as mortes devidas apenas à<br />

fome não ultrapassaram um quinto do total. (vide Apêndice D do meu Poverty and<br />

Famines, Oxford, Clarendon Press, 1981). Um quadro semelhante pode-se também encontrar<br />

em muitos outros casos de fomes generalizadas. Vide, em particular, Alex de Waal,<br />

Famine that Kills: Darfur, Sudan, 1984-1985, Oxford, Clarendon Press, 1989; e ainda o<br />

seu Famine Crimes: Politics and the Disaster Relief Industry in Africa, Londres, African<br />

Rights and the International African Institute, 1997. Este problema é também examinado na<br />

entrada “Human Disasters”, in The Oxford Textbook of Medicine, Oxford, Oxford<br />

University Press, 2008.<br />

91


9 2 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

dos aspectos a ter em consideração é a possibilidade de que os<br />

críticos da confiança na razão sejam influenciados pelo facto de que<br />

algumas pessoas se deixem sobre convencer com facilidade pelo seu<br />

próprio raciocínio, passando a ignorar quaisquer contra-argumentos<br />

ou quaisquer outros fundamentos que possam gerar conclusões<br />

opostas. Talvez seja isto mesmo aquilo que preocupa Glover, e diga-<br />

-se que pode ser realmente uma preocupação legítima. Porém, é bom<br />

de ver que a dificuldade que aqui se apresenta deriva de uma certeza<br />

precipitada, que, por sua vez, é fruto de um mau raciocínio, e não do<br />

facto, em si mesmo, de se fazer uso da razão. Ora, o remédio para<br />

um mau raciocínio é um bom raciocínio, e passar de um para o outro<br />

é precisamente a tarefa que cabe a um escrutínio argumentado. Pode<br />

também acontecer que em alguns passos de “autores iluministas” não<br />

se dê o devido relevo à necessidade de se usar de cautelas e de se<br />

proceder a reavaliações, mas não seria curial fazer derivar daí uma<br />

qualquer acusação generalizada da atitude iluminista no seu todo, ou,<br />

mais do que isso, pôr no banco dos réus o papel global que a razão<br />

desempenha na determinação dos comportamentos justos e das boas<br />

políticas sociais.<br />

RAZÃO, SENTIMENTOS E O ILUMINISMO<br />

Há ainda a considerar, no entanto, um outro tema, o da importância<br />

relativa dos sentimentos instintivos, por um lado, e do frio cálculo,<br />

por outro – e sobre isso muito foi dito por vários autores iluministas.<br />

Os argumentos de John Glover em prol da necessidade de uma<br />

«nova psicologia humana» tiram a sua inspiração do facto de se<br />

reconhecer que política e psicologia estão entrelaçadas, e é difícil<br />

imaginar que se nos deixarmos conduzir pela razão, baseados nas<br />

provas de que dispomos acerca do comportamento humano, não<br />

seremos levados a aceitar esta interconexão. Quando se trata de evitar<br />

atrocidades, sem dúvida que um importante papel preventivo caberá<br />

à instintiva repugnância causada pela crueldade e por todos os tipos<br />

de comportamentos insensíveis; e Glover tem razão quando sublinha<br />

a relevância, entre outras coisas, da «tendência para se relacionar<br />

com as pessoas usando de respeito (de vários tipos)» e «simpatia:<br />

preocupando-nos com as misérias e com a felicidade dos demais».


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Todavia, não é forçoso que aqui deva surgir um qualquer conflito<br />

com a razão, que, aliás, também poderá vir endossar essas mesmas<br />

prioridades. E foi este, sem dúvida, o papel que desempenhou o bom<br />

uso da razão na investigação de Glover acerca dos perigos das convicções<br />

unilaterais e excessivamente confiantes (em relação a isso, é<br />

com certeza relevante a observação de Akbar de que até mesmo para<br />

contestar a razão, será necessário oferecer razões que fundem uma<br />

tal contestação). Por outro lado, também não se terá de partir do<br />

princípio de que o uso da razão implica suster a concepção – admitindo<br />

que a mesma se justifica – de que uma confiança plena e<br />

exclusiva no frio cálculo pode não ser uma boa maneira – ou uma<br />

maneira razoável – de garantir a segurança humana.<br />

De facto, ainda que prestemos homenagem à razão, não temos<br />

qualquer fundamento para negar o papel amplo e de longo alcance<br />

que é desempenhado pela psicologia instintiva e pelas reacções espontâneas<br />

22 . Tudo isto pode ser um suplemento para a razão e vice-<br />

-versa, e, em muitos casos, compreender o papel amplificador e<br />

libertador dos nossos sentimentos pode constituir em si mesmo um<br />

bom objecto de estudo para a própria razão. Adam Smith, figura<br />

axial do Iluminismo escocês (mas também muito influente no<br />

Iluminismo francês) discutiu abundantemente o papel central das<br />

emoções e das reacções psicológicas na sua Teoria dos Sentimentos<br />

Morais * . Pode ser que Adam Smith não tenha ido tão longe quanto<br />

David Hume e que não tenha chegado a afirmar que «razão e sentimento<br />

concorrem em quase todas as determinações e conclusões<br />

morais» 23 , mas ambos viam o raciocinar e o sentir como actividades<br />

profundamente inter-relacionadas. Tanto Hume como Smith eram<br />

claramente “autores iluministas” na sua quinta essência, e, enquanto<br />

tal, em nada ficaram atrás de Diderot ou de Kant.<br />

Contudo, a necessidade de um escrutínio raciocinado das atitudes<br />

psicológicas não desaparece só porque se dê de barato o poder<br />

das emoções e se aclame o real papel que cabe a muitas reacções<br />

instintivas (como é o caso do sentimento de repulsa diante da crueldade).<br />

Coube em especial a Adam Smith – quiçá até mais do que a<br />

* Ver também Martha Nussbaum, Upheavels of Thought: The Intelligence of<br />

Emotions, Cambridge, Cambridge University Press, 2001.<br />

93


9 4 A <strong>I<strong>DE</strong>IA</strong> <strong>DE</strong> <strong>JUSTIÇA</strong><br />

Hume – dar à razão um importantíssimo papel na avaliação dos<br />

nossos sentimentos e das nossas deambulações psicológicas. De facto,<br />

para Hume, muitas vezes, a paixão parece ser mais poderosa do que<br />

a razão. Sobre isto, eis o que diz Thomas Nagel nessa sua vigorosa<br />

defesa da razão que nos aparece no seu livro A Última Palavra:<br />

«É notório que Hume acreditava que uma “paixão” imune à avaliação<br />

racional deve supeditar todo o motivo, e, por isso, nada poderá<br />

haver que se possa chamar especificamente de razão prática, ou tão-<br />

-pouco especificamente razão moral» * . Adam Smith não seguiu esta<br />

posição, muito embora, à semelhança de Hume, considerasse as<br />

emoções importantes e influentes, e sustentasse que as nossas «primeiras<br />

percepções» de certo e errado «não podem ser objecto da<br />

razão, mas sim do sentimento e do sentir imediatos». Todavia, Adam<br />

Smith sustentava ainda que mesmo estas reacções instintivas às condutas<br />

particulares não podem deixar de repousar – ainda que tão-só<br />

implicitamente – na nossa compreensão racional das conexões causais<br />

que subsistem entre conduta e consequências, e isto seria assim<br />

numa «vasta variedade de instâncias». Mais ainda, as primeiras percepções<br />

também podem modificar-se como reacção a um exame<br />

crítico; por exemplo, um que assente numa investigação causal empírica<br />

que venha a revelar, como assinala Adam Smith, que um certo<br />

«objecto é o meio para obter um outro» 24 .<br />

O argumento que levou Adam Smith a reconhecer a extrema<br />

necessidade de proceder a um escrutínio racional aparece bem ilustrado<br />

no passo em que ele trata da maneira de avaliar as nossas<br />

atitudes em face de práticas comummente seguidas. Este ponto é<br />

claramente importante no âmbito da sua apologia das reformas,<br />

como é o caso, por exemplo, da abolição da escravatura, da diminuição<br />

do fardo provocado pelas restrições burocráticas arbitrárias sobre<br />

* Thomas Nagel, The Last Word, Nova Iorque, Oxford University Press, 1997,<br />

p. 102. No entanto, Hume parece tergiversar no que toca à questão da prioridade a dar. Não<br />

obstante dê à paixão uma posição de alta estatura que parece ser mais dominante do que o<br />

papel concedido à razão, Hume não deixa todavia de afirmar que: «No momento em que nos<br />

apercebemos da falsidade de qualquer concepção assumida, ou da insuficiência de quaisquer<br />

meios, as nossas paixões rendem-se à nossa razão sem oferecer resistência» (David Hume,<br />

A Treatise of Human Nature, coord. L. A. Selby-Bigge, Oxford, Clarendon Press, 1988,<br />

2.ª ed., 1978, p. 416).


AS EXIGÊNCIAS DA <strong>JUSTIÇA</strong><br />

a actividade comercial entre países diferentes, ou ainda do abrandamento<br />

das restrições punitivas impostas aos indigentes como condição<br />

para que pudessem beneficiar do apoio económico providenciado<br />

pelas Poor Laws (Leis sobre a Pobreza) * .<br />

Sendo embora certo que as ideologias e as convicções dogmáticas<br />

podem derivar de fontes que não sejam nem a religião nem o<br />

costume – como, de resto, aconteceu frequentemente –, isso não vem<br />

contradizer o papel da razão no momento de discernir o elemento de<br />

racionalidade que se esconde por detrás das atitudes instintivas, papel<br />

esse que não é menor do que o que lhe cabe na apreciação dos<br />

argumentos que venham a ser expendidos a fim de se justificar políticas<br />

deliberadas. O que Akbar chamava de «caminho da razão» não<br />

exclui que se tome em consideração o valor das reacções instintivas,<br />

nem implica que se ignore o papel informativo que as nossas reacções<br />

mentais desempenham frequentemente. E tudo isto é ainda assaz<br />

compatível com o facto de não permitirmos que instintos por escrutinar<br />

possam ter uma última palavra incondicional.<br />

* No seu ensaio finamente argumentado, “Why Economics Need Ethical Theory”,<br />

John Broome afirma o seguinte: «Os economistas não gostam de impor às pessoas a sua<br />

opinião ética, mas não é disso que se trata. Muito poucos economistas estão em posição de<br />

impor a sua opinião a quem quer que seja... A solução é que eles consigam arranjar bons<br />

argumentos, para poderem então construir uma teoria, e não esconderem-se por trás das<br />

preferências de outros, quando essas preferências poderão não estar bem fundadas ou<br />

quando esses outros até podem estar à espera de uma ajuda por parte dos economistas, para<br />

assim chegarem a formar preferências melhores» (Arguments for a Better World: Essays in<br />

Honor of Amartya Sen, coord. Kaushik Basu e Ravi Kandur, vol. I, Oxford, Oxford<br />

University Press, 2009, p. 14). E fica claro que foi precisamente isto o que Adam Smith<br />

tentou fazer.<br />

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