As tábuas votivas: imagem e texto no mesmo endereço - UFF
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Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 43<br />
AS TÁBUAS VOTIVAS:<br />
IMAGEM E TEXTO NO MESMO ENDEREÇO 1<br />
Introdução<br />
RESUMO<br />
Klebson Oliveira (PROHPOR)<br />
Para Luiz Mott<br />
Os pagamentos de milagres aos santos, derivados de<br />
uma situação aflitiva, são de<strong>no</strong>minados ex-votos. Porém<br />
os que interessam ao presente artigo são chamados<br />
de <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> e, tratando-se de uma manifestação<br />
tipicamente popular, o estudo dessas fontes<br />
pode render proveitosas contribuições para a história<br />
do português popular brasileiro. Desse modo, além<br />
de descrever a linguagem das <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>,<br />
PALAVRAS-CHAVE: Português popular brasileiro;<br />
ex-votos; <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>.<br />
Que “a filologia deve ampliar as formas de investigação através<br />
das teorias recentes, visando a atualizar as leituras realizadas dos<br />
<strong>texto</strong>s literários e não literários e objetivando descobrir <strong>no</strong>vos<br />
significados que não foram detectados pelas teorias anteriores”, a favor<br />
disso advoga Santana Neto 2 ; que a filologia deve apropriar-se de <strong>no</strong>vos<br />
objetos em seu escopo de trabalho, a favor disso propalamos nós. Porém,<br />
1 Nossos agradecimentos à Prof a . Tânia Lobo e à colega Laurete Guimarães pelas sugestões,<br />
acréscimos, decréscimos e críticas a este <strong>texto</strong>. No mais, o óbvio: os demais desvios<br />
são de <strong>no</strong>ssa inteira responsabilidade.<br />
2 SANTANA NETO, João Antônio de. Novos rumos da Filologia <strong>no</strong> Brasil. A cor das<br />
Letras, n. 3, p.139-140, Feira de Santana, 1999. p. 144.
44 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
antes de qualquer coisa, convocamos a proposta de Mattos e Silva 3 para<br />
um possível percurso histórico do português popular brasileiro:<br />
Tendo sido formado na oralidade o português geral<br />
brasileiro, antecedente histórico do português popular<br />
brasileiro, a busca do seu percurso histórico tem de ser feita<br />
não fundada em corpora escritos, organizáveis ad hoc, como<br />
para o português culto brasileiro, como é óbvio, mas num<br />
processo de reconstrução - que designarei metaforicamente<br />
- arqueológico, em que, de evidências dispersas, calçadas pelas<br />
teorias sobre o contato lingüístico e pela história social do<br />
Brasil, se possa chegar a formulações convincentes. Percurso<br />
análogo, mutatis mutandis e modus in rebus, ao da reconstrução<br />
do chamado ‘latim vulgar’, cuja principal fonte de estudo é<br />
o seu resultado, as línguas românicas. 4<br />
É óbvio que essa escolha por trazer para cá o que diz a autora acima<br />
citada não é opção cândida nem ingênua; ela tem segundas intenções, que,<br />
em verdade, são o simples fato de se tentar buscar fontes que possam <strong>no</strong>s<br />
dizer alguma coisa sobre o passado do <strong>no</strong>sso “latim vulgar”. Nesse sentido,<br />
o trabalho de Oliveira 5 , que explorou um acervo preservado em uma irmandade<br />
negra, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada em 1832<br />
pelo africa<strong>no</strong> Manuel Vítor Serra, mostrou que é possível, para o estudo<br />
em perspectiva histórica do português popular brasileiro, a construção de<br />
corpora, que, <strong>no</strong> dizer de Mattos e Silva 6 , sejam organizáveis ad hoc.<br />
“A quais outras fontes podemos recorrer para uma história do <strong>no</strong>sso<br />
português popular?” Foi essa a pergunta feita pelo Prof. Ataliba de<br />
Castilho, da Universidade de São Paulo, durante a sessão de defesa da<br />
<strong>no</strong>ssa tese de doutorado. Imerso como estávamos, há 7 a<strong>no</strong>s, <strong>no</strong>s documentos<br />
escritos por africa<strong>no</strong>s e afro-descendentes da referida irmandade,<br />
não veio de pronto uma resposta e, naquela ocasião, só fizemos reiterar a<br />
3 MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Para a história do português culto e popular brasileiro:<br />
sugestões para uma pauta de pesquisa. In: ALKMIN, Tânia Maria (Org.). Para a<br />
história do português brasileiro. Volume III: <strong>no</strong>vos estudos. São Paulo: Humanitas, 2002.<br />
4 Idem., ibid., p. 457.<br />
5 OLIVEIRA, Klebson. Negros e escrita <strong>no</strong> Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica<br />
de documentos e estudo lingüístico. 2006. Tese (Doutorado)_.Programa de Pós-graduação<br />
em Letras e Lingüística, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006. 3v.<br />
6 MATTOS E SILVA, op. cit., p. 457.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 45<br />
idéia de que a exploração de <strong>texto</strong>s redigidos em irmandades negras seria,<br />
se bem preparado o filólogo na edição de documentos e na história particular<br />
que cada irmandade carrega, um bom bebedouro para <strong>no</strong>s aproximarmos<br />
do que teria sido a face popular do português <strong>no</strong> Brasil. Respondida,<br />
da forma exposta acima, a questão feita pelo professor Ataliba de<br />
Castilho, ela não saiu mais dos <strong>no</strong>ssos pensamentos: “a quais outras fontes<br />
podemos recorrer para uma história do <strong>no</strong>sso português popular? A<br />
quais outras fontes podemos recorrer para uma história do <strong>no</strong>sso português<br />
popular? A quais outras fontes podemos recorrer para uma história<br />
do <strong>no</strong>sso português popular?” Talvez sem querer, ou não, o referido professor<br />
<strong>no</strong>s trouxe à mente o <strong>no</strong>sso lugar neste mundo, <strong>no</strong> mundo acadêmico,<br />
é claro: ir à busca de <strong>no</strong>vos objetos, principalmente de sincronias<br />
passadas, reveladores, em qualquer instância, de um português me<strong>no</strong>s<br />
<strong>no</strong>rmativo, mais quotidia<strong>no</strong>, mais livre da pressão <strong>no</strong>rmativo-gramatical<br />
e que, portanto, pudesse espelhar alguns reflexos da linguagem oral.<br />
<strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>: uma possível fonte para a história do <strong>no</strong>sso<br />
“latim vulgar”<br />
Vamos subir a colina sagrada<br />
e chegar à Igreja de Nosso Senhor<br />
do Bomfim, na cidade de<br />
Salvador/BA. Num dos compartimentos<br />
de um dos templos católicos<br />
mais famosos do Brasil,<br />
há estampados, numa placa de<br />
metal, os seguintes dizeres: “devoto,<br />
aquele que crê, que se dedica;<br />
voto, promessa solene, juramento;<br />
ex-voto, oferta de quem<br />
cumpre uma promessa, entrega<br />
de algo (ato ou objeto) por alguma<br />
graça recebida”. Estamos na<br />
Sala dos Milagres e, de todos os lados,<br />
inclusive do teto, abundam<br />
fotografias, velas dos mais variados<br />
tamanhos e cores, bilhetes,<br />
cartas, peças de gesso represen-<br />
Figura 01 - Sala dos Milagres Igreja do<br />
Sr. do Bomfim, Salvador/BA.
46 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
tando as várias partes do corpo, diplomas etc. É tudo muito demais, pelo<br />
que podemos afirmar que o Senhor do Bomfim foi bastante dadivoso ao<br />
miracular indivíduos em inúmeras esferas de suas vidas.<br />
O pagamento de promessa através de ex-votos a divindades remonta<br />
à Antigüidade e perpassa a Idade Média. De larga difusão em toda a Europa,<br />
entra <strong>no</strong> Brasil pelas mãos dos portugueses e, aqui, vai conhecer o seu<br />
apogeu, quanto à divulgação e à popularidade, ao longo dos séculos XVIII<br />
e XIX 7 ; inclusive muitas igrejas e santuários espalhados pelo território brasileiro<br />
são fruto de dívida dos huma<strong>no</strong>s aos oragos que os salvaram de<br />
situações as mais variadas, em que o homem mais os recursos a seu redor<br />
não foram suficientes para a resolução do momento de perigo, de morte e<br />
que só o apelo ao sobrenatural poderia fazê-lo 8 . Scara<strong>no</strong> 9 lembra-<strong>no</strong>s que,<br />
sobretudo <strong>no</strong> meio rural e em comunidades pequenas, poucos eram os<br />
recursos e as organizações aptas a atenderem pessoas que passavam por<br />
situações difíceis, principalmente <strong>no</strong> que diz respeito à miséria e a doenças,<br />
o que proporcio<strong>no</strong>u a difusão de muitas crenças.<br />
Já <strong>no</strong>s referimos a alguns tipos de ex-votos que podemos encontrar<br />
em agradecimento ao santo pela graça recebida, pelo milagre obtido. Porém<br />
não mencionamos ainda uma outra categoria: as <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> 10 . Elas se<br />
caracterizam e, conseqüentemente, se afastam de outros tipos por apresentarem<br />
<strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> espaço, <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong>, <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong>. Frota 11<br />
oferece, para os ex-votos mineiros dos séculos XVIII e XIX, uma descrição<br />
de como se situam os elementos constitutivos dessa prática votiva.<br />
7 SCARANO, Julita. Fé e milagre: ex-votos pintados em madeira, séculos XVIII e XIX. São<br />
Paulo: EDUSP, 2003. p. 15.<br />
8 VALLADARES, Clarival do Prado. Riscadores de milagres: um estudo sobre a arte genuína.<br />
Rio de Janeiro: Superintendência de Difusão Cultural da Secretaria de Educação e<br />
Cultura do Estado da Bahia, 1965. p. 95-101.<br />
9 SCARANO, loc.cit.<br />
10 Tábuas <strong>votivas</strong>, <strong>tábuas</strong>, tabuinhas, quadros, quadros pintados, quadrinhos, quadrinhos pintados são<br />
tomados como sinônimos neste trabalho, porque, dessa maneira, procede a bibliografia<br />
sobre o tema.<br />
11 FROTA, Lélia Coelho. Promessa e milagre nas representações coletivas de ritual católico,<br />
com ênfase sobre as <strong>tábuas</strong> pintadas de Congonhas do Campo, Minas Gerais. In:<br />
PROMESSA E MILAGRE NO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DE MATOSINHOS,<br />
CONGONHAS DO CAMPO, MINAS GERAIS. Brasília: Fundação Nacional Promemória,<br />
1981. p. 43.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 47<br />
Segundo ela, as <strong>tábuas</strong> dividem-se em três pla<strong>no</strong>s: <strong>no</strong> terço inferior, a<br />
legenda com o <strong>no</strong>me do miraculado e as circunstâncias e data em que<br />
ocorreu o milagre; <strong>no</strong> terço médio, a figura do milagrado, em seu quarto,<br />
geralmente deitado em posição pré-mortuária; <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> superior, habitualmente<br />
à esquerda, representa-se a divindade, geralmente envolta em raios<br />
ou nuvens, que propiciou a graça. Quanto ao tema, expõe Frota uma<br />
tábua votiva referente à doença, mas é bom que se antecipe a afirmação de<br />
que as tabuinhas acolhem temas bastante variados e que ultrapassam inúmeras<br />
instâncias da vida humana. Pessôa 12 , por sua vez, vê nesses quadros<br />
pintados uma fonte de apreciação por seu caráter informativo da vida,<br />
dos costumes, dos vestuários de épocas passadas e, ainda, pelas suas qualidades<br />
expressivas pictóricas e artísticas.<br />
Mas o que <strong>no</strong>s induz a pensar sobre as <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> como uma<br />
possível fonte para a história do português popular brasileiro? Aqui é<br />
imprescindível trazer à luz o que diz a literatura sobre o assunto e focar o<br />
ângulo nesse aspecto, que é central neste <strong>texto</strong>.<br />
Valladares 13 vai definir o conceito de arte primitiva, que difere da<br />
primitivista. O primitivo envolve o artista genuí<strong>no</strong> e desprovido da<br />
habilitação e do discernimento, convocados pela civilização, <strong>no</strong> preparo<br />
dos objetos destinados ao consumo e ao deleite dos estratos sociais<br />
elevados; de sua parte, a arte primitivista assimila as características<br />
estilísticas do primeiro e as exerce numa execução de objetos apropriados<br />
e destinados ao consumo – investimento e prazer – de uma classe<br />
social mais elevada. <strong>As</strong> tabuinhas, portanto, inserem-se na modalidade<br />
de arte primitiva. Como acréscimo à definição de que as <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong><br />
são produtos da cultura popular, Valladares 14 utiliza os critérios do desconhecimento<br />
da representação em perspectiva do corpo huma<strong>no</strong> e dos<br />
seres vivos e da deficiência artesanal <strong>no</strong> preparo dos quadros como elementos<br />
que as impedem de serem consideradas arte sob o critério tradicional.<br />
12 PESSOA, José. Milagres: os ex-votos de Angra dos Reis. In: PESSOA, José (Org.).<br />
Milagres: os ex-votos de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. p. 17.<br />
13 VALLADARES, op. cit., p. 18.<br />
14 Id., ibid., p. 96-97.
48 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
Mas as condições de produção das <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> também podem<br />
emoldurá-las <strong>no</strong> âmbito de uma religiosidade e cultura populares. Segundo<br />
Scara<strong>no</strong> 15 , os pintores profissionais mais conhecidos e procurados raramente<br />
dedicavam-se à confecção de ex-votos e, desse modo, acalenta a autora a<br />
hipótese de que, <strong>no</strong>s estados de Minas Gerais e São Paulo, as tabuinhas<br />
podem ter sido pintadas por profissionais que decoravam as igrejas da região<br />
ou suas capelas, mas, em muitos casos, essa peça votiva foi confeccionada<br />
por amadores, chamados, conforme designação de Valladares 16 , de<br />
“riscadores de milagres”.<br />
Tudo <strong>no</strong>s leva a crer que não<br />
existiram, por assim dizer, indivíduos<br />
especializados apenas em riscar<br />
milagres, mas, sim, que alternavam<br />
essa tarefa com outras. Em<br />
Minas Gerais, por exemplo, Frota<br />
17 assinala que a maior parte dos<br />
artífices coloniais a serviço das irmandades<br />
era composta por negros<br />
e mestiços, que viam <strong>no</strong>s ofícios<br />
mecânicos, repelidos pela elite,<br />
uma oportunidade de ascensão<br />
social. Dessa maneira, não é de se<br />
estranhar, ainda consoante a autora, que muitos dos ex-votos pintados fossem<br />
recomendados a artífices mais modestos das corporações ou, ainda, a<br />
populares curiosos, aprendizes informais das técnicas artísticas através do<br />
acompanhamento dos trabalhos de ornamentação correntes nas várias igrejas<br />
erguidas nas Minas Gerais durante o ciclo aurífero.<br />
Mesmo sendo uma arte anônima em que raramente há a assinatura<br />
do executor, Valladares 18 consegue recuperar, na Bahia, a biografia de três<br />
riscadores de milagres e, feito isso, parece endossar o que diz Frota 19 <strong>no</strong><br />
15 SCARANO, op. cit., p. 73-74.<br />
16 VALLADARES, op. cit., p. 21.<br />
17 FROTA, op. cit., p. 45.<br />
18 VALLADARES, op. cit., p. 86.<br />
19 FROTA, op. cit., p. 45.<br />
Figura 02 - Tábua votiva<br />
Coleção Luiz Mott
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 49<br />
sentido de não haver, de fato, especialistas dedicados apenas à atividade da<br />
confecção das <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>. Joaquim Gomes Tourinho da Silva, pintor<br />
baia<strong>no</strong> do século XIX, fez, além dos quadros pintados, o retrato do Conde<br />
da Ponte, tela em que se representam D. Pedro e D. Tereza recebendo<br />
as chaves de Salvador em 1859, e o retrato de José dos Santos Barreto,<br />
autor do Hi<strong>no</strong> da Independência. Agripi<strong>no</strong> Barros, pernambuca<strong>no</strong>, exerceu<br />
a profissão de desenhista, músico, arquiteto e professor, tendo lecionado<br />
as disciplinas Desenho Linear, Geometria Descritivista, Desenho<br />
Figurado e Elementos de Música na Escola de Belas-Artes da Bahia. Nem<br />
<strong>mesmo</strong> o mais famoso pintor de <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> em Salvador, João Duarte<br />
da Silva, que utilizava o pseudônimo Toilette de Flora, em fins do século<br />
XIX e inícios do XX, se dedicou exclusivamente a essa atividade. Atuou,<br />
também, nas armações de presepes, na feitura de outras modalidades de<br />
quadros religiosos e na confecção de figuras obscenas para a sua “marmota”,<br />
uma espécie de cinema, além de ter pintado cruzes de madeira para a<br />
sepultura dos pobres 20 .<br />
Ainda procurando uma vertente para situar as <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>no</strong><br />
âmbito de uma cultura popular, cotidiana, teremos de recorrer aos seus<br />
elementos constitutivos. Na descrição efetuada por Valladares 21 , sobre as<br />
<strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> remanescentes e pertencentes à Igreja do Senhor do Bomfim,<br />
desfilam dizeres como: “quadro de pintura a óleo sobre papel de desenho,<br />
grotesco e de colorido muito arbitrário”, “desenho colorido muito grotesco”,<br />
“a legenda foi feita a pincel, em escrita rude e numa redação que<br />
não informa o fato”, “quadro grotescamente desenhado”, “conhecimento<br />
rudimentar de pintura”, mas, vez por outra, aparece uma “qualidade de<br />
desenhista habilitado” e “a legenda destaca-se por sua qualidade redacional”.<br />
Já Scara<strong>no</strong> 22 se manifestou <strong>no</strong> sentido de tornar evidente que, nesses<br />
quadros desenhados, a escrita é preterida em relação à pintura, ou seja, o executor<br />
deixava um espaço para que se fizesse a legenda, porém era, geralmente,<br />
de topografia diminuta, insuficiente para escrever o que se desejava narrar.<br />
Como conseqüência desse proceder, assistimos ao acúmulo de palavras<br />
e letras e numerosas simplificação de vocábulos, o que <strong>no</strong>s faz supor<br />
20 VALLADARES, op. cit., p. 87-94.<br />
21 Id., ibid., p. 45-85.<br />
22 SCARANO, op. cit., p. 112.
50 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
que as tabuinhas eram confeccionadas<br />
de modo a ter, prioritariamente,<br />
uma orientação visual,<br />
porque, <strong>no</strong> mais das vezes, eram<br />
dirigidas, além do orago, a uma<br />
população predominantemente<br />
analfabeta. É tamanha a clareza<br />
do vocabulário visual desse tipo<br />
de ex-votos, que poderiam ser, em<br />
alguns casos, anepígrafos, ou seja,<br />
desprovidos de legendas ou qualquer<br />
outra inscrição 23 . Isso explica,<br />
de certa maneira, a existência<br />
Figura 03 - Tábua votiva / Igreja do<br />
Sr. do Bomfim / Salvador / BA<br />
de <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> com desenhos solitários ou com legendas que pouco<br />
informam sobre o milagre acontecido. Cabe aqui um exemplo retirado de<br />
Valladares 24 : trata-se de uma tabuinha, já desaparecida, em cuja legenda se<br />
pode ler: “Milagre feito por Senhor do a uma senhora <strong>no</strong> mez de Março<br />
de 1930”. Será a descrição dada pelo autor, referido acima, que <strong>no</strong>s porá<br />
de frente com o acontecido:<br />
Vê-se, <strong>no</strong> quadro grotescamente desenhado a lápis de cor,<br />
um quadro muito simples. Doente deitado em decúbito<br />
lateral. De pé, aos pés da cama, um senhor em atitude<br />
desolada; <strong>no</strong> centro do quarto, uma senhora encaminhandose,<br />
chorosa, para o médico que, vestido de avental e gorro,<br />
tem a atitude de quem nada mais pode fazer. Ao lado, uma<br />
mesinha com frascos, copo e colher. Salienta-se neste quadro<br />
uma cruz, da qual se desprendem raios.<br />
Uma boa legenda informativa, a princípio, deveria falar daquele que<br />
suplica, do miraculado, da situação aflitiva, do orago a que se recorreu,<br />
do local e data dos acontecimentos e, ainda, ofertar um peque<strong>no</strong> resumo<br />
dos fatos. Sendo assim, está toda a razão do lado de Scara<strong>no</strong> 25 quando diz<br />
que a legenda pode ser vista como “uma reiteração da parte ico<strong>no</strong>gráfica,<br />
uma repetição, uma reafirmação, ‘em outras palavras’ ou em ‘um diferente<br />
dizer’”.<br />
23 FROTA, op. cit., p. 45.<br />
24 VALLADARES, op. cit., p. 63.<br />
25 SCARANO, op. cit., p. 101.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 51<br />
Mesmo que a literatura sobre o tema só ligeiramente toque <strong>no</strong><br />
aspecto, será ele o <strong>no</strong>sso principal ‘trunfo’ a depor sobre a possibilidade<br />
de mais uma fonte de estudo para o português popular brasileiro em<br />
perspectiva histórica: referimo-<strong>no</strong>s à linguagem estampada nas <strong>tábuas</strong><br />
<strong>votivas</strong>. Giffoni 26 , meio que deslumbrada, anuncia ser a legenda crivada<br />
de erros, embora acolha o encanto do inédito, da simplicidade, da i<strong>no</strong>cência.<br />
Refere-se, ainda, ao emprego inadequado das letras maiúsculas,<br />
aos tempos verbais mal colocados, às palavras que são escritas como se<br />
ouvem e que não atendem, dessa maneira, a grafia exata. É ainda Giffoni 27<br />
que, a partir das suas observações sobre a linguagem inscrita nas<br />
tabuinhas, propõe um estudo mais verticalizado sobre o tema. Será na<br />
ortografia e na perspectiva, “quase sempre erradas”, em que se pautará<br />
Castro 28 para mostrar que a autoria dos quadrinhos é de um ‘curioso’,<br />
pintor, segundo as suas palavras, de ocasião que permanece sempre anônimo.<br />
Scara<strong>no</strong> 29 se detém um pouco mais sobre o tema e são suas as<br />
palavras seguintes:<br />
Na região em estudo [Minas Gerais e São Paulo], a legenda<br />
é bastante comum e <strong>mesmo</strong> <strong>no</strong> Brasil em geral, apesar da<br />
dificuldade de execução por pessoas de poucas letras. Os<br />
erros de ortografia, os problemas de ocupação do espaço, a<br />
grafia, as letras desenhadas, enfim, tudo contribui para<br />
chamar a atenção do leitor para as dificuldades contidas na<br />
sua execução. Nota-se a pouca familiaridade do executante<br />
com a escrita<br />
A autora continua, quanto à linguagem contida nas <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>,<br />
tecendo comentários sobre as abreviaturas como elemento constitutivo<br />
dessa linguagem, contudo, sob uma perspectiva lingüística, não soube<br />
“dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, como se observa<br />
abaixo:<br />
26 GIFFONI, Maria Amélia Corrêa. Ex-votos, promessas ou milagres. Revista do Arquivo<br />
Municipal de São Paulo, São Paulo, s/n, p. 27-53, 1980. p. 51.<br />
27 Id., ibid., p. 52.<br />
28 CASTRO, Márcia de Moura. O ex-voto em Minas Gerais e suas origens. Cultura, n. 3, p.<br />
100-112, Brasília, 1979. p. 112.<br />
29 SCARANO, op. cit., p. 103-104.
52 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
Muito numerosos são os erros de grafia, o que mostra a<br />
pouca familiaridade com a linguagem culta. Temos, por<br />
exemplo, ‘hungido’ em lugar de ‘ungido’; ‘preceguida’ por<br />
‘perseguida’; ‘milhoras’ por ‘melhoras’; ‘gange<strong>no</strong>u’ por<br />
‘gangre<strong>no</strong>u’, além de ‘apegandoce’ ou ‘apegou-ce’ e<br />
inúmeros outros casos. 30<br />
Alude ainda Scara<strong>no</strong> 31 a inúmeras palavras que foram unidas, ou<br />
por falta de conhecimento, ou por problema de espaço, e cita como exemplos<br />
‘pormorto’, ‘porintercessão’, ‘dehum’ e, ainda, ‘Domatosinho’.<br />
Depois veremos que a justificativa da autora é uma possibilidade, entre<br />
outras que podem ser aventadas. A seguir, a caracterização do corpus.<br />
Caracterização do corpus<br />
Este trabalho acolhe 163 <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>. Esse número poderia ser<br />
bem mais elevado se não fossem dois eventos: o primeiro diz respeito a<br />
um momento histórico em que a Igreja Católica associou os quadrinhos<br />
pintados a práticas de superstição, pelo que muitas tabuinhas arderam,<br />
literalmente, em fogueiras; já o segundo tem a ver com o advento da<br />
fotografia e da industrialização de peças em gesso, o que colocou para<br />
escanteio a confecção desse tipo de ex-voto. Como conseqüência desse<br />
segundo acontecimento, as <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> foram rareando e, conseqüentemente,<br />
adquiriram valor comercial, daí terem sido muitas delas desviadas<br />
dos seus lugares de origem. Caso típico do que se relata aconteceu na<br />
coleção pertencente à Igreja de Nosso Senhor do Bomfim, em Salvador.<br />
Na década de 30 do século XX, Valladares 32 contou para mais de sessenta<br />
o número dos quadros <strong>no</strong> local. Retornando ali para fotografá-los e editálos,<br />
só restavam dezessete. Como a leitura efetuada por nós, em confronto<br />
com a de Valladares, mencionado acima, não se desencontraram, ou<br />
seja, não houve nenhuma discrepância, resolvemos aditar as sobrantes, já<br />
desaparecidas, ao <strong>no</strong>sso corpus.<br />
A parte mais dificultosa do trabalho, desse modo, refere-se ao ajuntamento<br />
de material para o <strong>no</strong>sso estudo. De qualquer sorte, como já dissemos<br />
acima, o corpus se constitui de 163 tabuinhas provenientes dos seguin-<br />
30 Id., ibid., p. 114.<br />
31 Id., ibid.<br />
32 VALLADARES, op. cit., p. 45-86.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 53<br />
tes acervos: Coleção da Igreja do Senhor do Bonfim / BA, 54 (33.1%) 33 ;<br />
Coleção do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos / MG, 68 (41.7%) 34 ;<br />
Coleção particular do Professor Luiz Mott, 07 (4.3%) e Museu de Arte<br />
Sacra de Angra dos Reis / MG, 34 (20.9%) 35 . Quanto à distribuição das<br />
<strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> por séculos, temos os seguintes resultados: século XVIII, 25<br />
(15.3%); século XIX, 55 (33.7%); século XX, 41 (25.2%) e sem data, 42<br />
(25.8%). No que respeita ao conteúdo, os temas são bem abrangentes e<br />
acolhem as situações aflitivas do ser huma<strong>no</strong> em vários aspectos da sua<br />
existência. É bem verdade que aqueles referentes a doenças saem à frente –<br />
96 (58.9%), seguidos por outros que, genericamente, podemos incluir na<br />
categoria de acidentes – 60 (36.8%). Os acidentes relatados nas <strong>tábuas</strong> comportam:<br />
traição com tiro, descarrilhamento de trem, ataque de animais,<br />
assaltos, tempestades <strong>no</strong> mar, naufrágios, encalhamento de navios, quedas<br />
de lugares altos, atropelamentos, envenenamentos, queimaduras e outros.<br />
4 (2.5%) desses quadrinhos são atinentes a dificuldades na hora do parto, 1<br />
(0.6%), à aquisição de casa própria; mais 1 (0.6%) referente à reforma também<br />
de casa própria e, por fim, 1 (0.6%) que alude às tentações do demônio<br />
nas ações de um indivíduo.<br />
A observação dessas <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> faz com que apreciemos os oragos<br />
mais conclamados para o milagre. Dessa maneira, temos: Senhor do Bomfim<br />
(~ Senhor Bom Jesus do Bomfim) – 51 (31.3%), Senhor Jesus de Matosinhos<br />
(~ Nosso Senhor de Matosinhos / Senhor do Matosinhos) – 32 (19.6%);<br />
Santa Luzia – 18 (11.0%), Virgem de Nazaré (~ Nossa Senhora de Nazaré) –<br />
13 (8.0%); Bom Jesus (~Senhor Bom Jesus) – 12 (7.4%); São Benedito – 10<br />
(6.1%); Senhor Bom Jesus de Congonhas – 5 (3.2%); Nossa Senhora Conceição<br />
da Ribeira – 4 (2.5%); Nossa Senhora do Monte do Carmo (~ Nossa<br />
Senhora do Carmo) – 3 (1.8%); Nossa Senhora de Lourdes – 2 (1.2%);<br />
Nossa Senhora dos Remédios – 1 (0.6%); Santo Antônio – 1 (0.6%); Nossa<br />
Senhora do Bom Despacho – 1 (0.6%); Nossa Senhora do Livramento<br />
– 1 (0.6%); Nossa Senhora do Alívio – 1 (0.6%); Santa Quitéria – 1 (0.6%);<br />
Nossa Senhora da Saúde – 1 (0.6%) e sem indicação do santo – 3 (1.8%).<br />
33 Já desaparecidas, muitas das tabuinhas serão aqui analisadas, baseando-se nas fotos e<br />
descrições feitas por VALLADARES, loc. Cit.<br />
34 PROMESSA E MILAGRE NO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DE MATOSINHOS,<br />
CONGONHAS DO CAMPO, MINAS GERAIS. Brasília: Fundação Nacional Prómemória,<br />
1981. p. 56-149.<br />
35 PESSÔA, op. cit., p. 39-145.
54 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
Importa relevar uma curiosidade encontrada nas <strong>tábuas</strong>: dois indivíduos<br />
não se contentaram com apenas um orago; o primeiro recorreu, simultaneamente,<br />
ao Divi<strong>no</strong> Espírito Santo, à Senhora das Mercês e a Santo<br />
Brás; já o segundo, a São José e ao Senhor Bom Jesus de Congonhas.<br />
Quanto aos riscadores de milagres, guardemos as palavras de Castro36 :<br />
Na maioria os ex-votos são anônimos. O milagreiro não<br />
tem a preocupação de assiná-los ou colocar qualquer sinal<br />
que os identifique, razão pela qual o fazedor de ex-votos<br />
dificilmente é reconhecido por meio do seu trabalho.<br />
Essa <strong>imagem</strong>, de fato, vai ser refletida <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso corpus, porque, entre<br />
os 163 quadros pintados, apenas 21 (12.9%) ganharam assinatura, ao passo<br />
que 142 (87.1%) ficaram dela incarecentes. Conforme já anunciamos acima,<br />
alguns, na Bahia, foram identificados por Valladares 37 : José Gomes<br />
Tourinho da Silva, Agripi<strong>no</strong> Barros e João Duarte da Silva, <strong>no</strong> entanto<br />
O. Lessa, Lauro, C. Dantas, Passu, J. Nogueira e outros ainda dormem<br />
profundamente.<br />
A linguagem das <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong><br />
Vejamos, agora, os aspectos mais relevantes da linguagem nas legendas<br />
das <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>. Inquestionavelmente, as abreviaturas estão <strong>no</strong> “topo<br />
do pódio” e são, sem dúvida, a característica mais marcante desses <strong>texto</strong>s,<br />
fato que se deve, seguramente, ao pouco espaço destinado à escrita <strong>no</strong>s<br />
quadros pintados. Colhemos 517 casos do aspecto em questão, porém não<br />
devemos tirar da mente que alguns vocábulos são mais recorrentemente<br />
abreviados do que outros. Nesse sentido, ganham destaque q) para que, com<br />
44 casos; m to . para muito, com 23; N. para Nossa, com 23; Sr. para Senhor, com<br />
23; D., para Dona, com 14; p a . para para, com 13; D or . para Doutor, com 12. A<br />
observação dessas abreviaturas parece revelar, de modo geral, uma regularidade,<br />
embora possamos encontrar para o <strong>mesmo</strong> vocábulo modos de<br />
abreviar diferentes, como em Antônio: Ant o ., An to ., Atn. e gravemente: Grave m te .,<br />
gravem e ., Gravemte., Gr e m e . Ainda na esfera do que se está tratando, merecem<br />
algum relevo certas formas que parecem indicar um deslumbramento das<br />
mãos de quem as estampou – a Companha do , Francis co , Mer ce –, na medida em<br />
que só na aparência é que essas formas estão abreviadas.<br />
36 CASTRO, op. cit., p. 32.<br />
37 VALLADARES, op. cit., p. 86.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 55<br />
Já fizemos uma alusão ligeira ao fato de Scara<strong>no</strong> 38 atribuir as inúmeras<br />
palavras que foram grafadas com contigüidade, ou seja, sem um marcador<br />
formal, que é o espaço em branco, à falta de conhecimento e à topografia<br />
mínima reservada à escrita. Esse tópico pode também abarcar uma outra<br />
justificativa, isto é, trechos como ensima (em cima), eLogo (e logo), dosprofeçores<br />
(dos professores), debixigas (de bexigas), eoSeu (e o seu), dehumas (de umas),<br />
co<strong>no</strong>dito (com o dito), aoSenhor (ao Senhor), pordetras (por detrás), <strong>no</strong>arayal (<strong>no</strong><br />
arraial), comrisco (com risco), eporSever (e por se ver), arespiração (a respiração),<br />
como<strong>mesmo</strong> (com o <strong>mesmo</strong>), comelle (com ele), comdores (com dores), elhepassou (e<br />
lhe passou), epormemoria (e por memória), entre outros, podem estar revelando,<br />
da parte do milagreiro, a percepção da fala como um contínuo fônico<br />
que se refletiu na escrita. Tem esse fenôme<strong>no</strong> um <strong>no</strong>me específico na literatura<br />
especializada: hipo-segmentação. Do lado oposto, ou seja, colocar um<br />
espaço em branco <strong>no</strong> meio de vocábulos – as hipersegmentações – é raro,<br />
mas ocorre: a Chou (achou), em fermo (enfermo), mato Zinho (Matosinhos),<br />
Mattoz Zinho (Matosinhos), a os (aos), a manham (amanhã), a Companha do (acompanhado),<br />
grave mente (gravemente) e a pegando (apegando). A explicação para<br />
dar conta do aspecto deve conjugar o indivíduo que escreve, mas que, também,<br />
é leitor. Observe-se a semelhança entre partes do vocábulo e palavras<br />
autô<strong>no</strong>mas na escrita – a, em, grave, mato, os; é na interação com o objeto<br />
escrito e, conseqüentemente, na representação de palavra que se constroem<br />
a partir dele que parecem estar alicerçadas essas grafias. O branco, então,<br />
quer cumprir a função de dar a uma das porções isoladas aquilo que lhe<br />
é de direito em outros con<strong>texto</strong>s, ‘vida própria’.<br />
Uma outra característica bastante afeta à linguagem das tabuinhas é<br />
o acúmulo de grafias etimologizantes. Não é esse, contudo, um assunto<br />
que se aborde com ligeireza.<br />
Consoante Barbosa 39 , até as bases da ortografia de 1885, de Gonçalves<br />
Viana e Vasconcellos Abreu, as grafias etimológicas e pseudoetimológicas<br />
dominaram o cenário da escrita em língua portuguesa; <strong>no</strong><br />
que tem toda razão o autor, bastam algumas páginas de jornais, cartas ou<br />
38 SCARANO, op. cit., p. 114.<br />
39 BARBOSA, Afrânio Gonçalves. Tratamento dos corpora de sincronias passadas da língua<br />
portuguesa <strong>no</strong> Brasil: recortes grafológicos e lingüísticos. In: LOBO, Tânia et alli (Org.).<br />
Para a história do português brasileiro. Volume VI: <strong>no</strong>vos dados, <strong>no</strong>vas análises, t. II, 2006. p.<br />
761-780.
56 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
quaisquer outras tradições discursivas para vê-las “gargalhando às<br />
escâncaras”. Era um tal de para assinalar hiatos ou para iniciar<br />
algumas formas conjugadas do verbo ser e da conjunção e, consoantes<br />
geminadas a não mais poder e coisas que tais. Ainda segundo o autor, o<br />
século XIX, considerado como o período pseudo-etimológico, é marcado<br />
pela relatinização, às vezes de maneira errada, de vários vocábulos portugueses,<br />
pois estamos numa época em que prestígio e erudição significavam,<br />
<strong>no</strong> âmbito da cultura escrita, grafar os itens lexicais sem as oscilações<br />
fonéticas, ainda caracterizadoras do século XVIII; mais que isso, de<br />
acordo com Barbosa 40 , “seria um valor geral de prestígio imbuir a grafia<br />
dos <strong>texto</strong>s das grafações latinizadas”.<br />
A presença de grafias etimologizantes <strong>no</strong> material em análise é bastante<br />
volumosa, pois se exibe em 311 ocorrências, para as quais elaboramos<br />
uma pequena antologia: abysmo, acommetido, affirmar, alliviado, aquelles, Archanjo,<br />
Athaides, Bartholomeu, Cavallo, commemorando, elle, exhalando, hia, Ignes, In<strong>no</strong>cencio,<br />
janella, May, Omnipotencia, Salles, victima. É necessário, porém, a lembrança<br />
de que “nem tudo o que reluz é ouro”, ou seja, podemos, ainda, <strong>no</strong>s valer<br />
de um <strong>no</strong>vo critério para julgar a imersão dos riscadores de milagres na<br />
cultura escrita, verificando se as grafias etimologizantes encontram fundamento<br />
histórico, o que quer dizer, em outras palavras, que vamos separar<br />
as etimologizações verdadeiras das falsas; alguns dicionários etimológicos<br />
da língua portuguesa é que <strong>no</strong>s guiarão 41 e o método consiste <strong>no</strong> seguinte<br />
proceder: o vocábulo abysmo, com o , está corretamente etimologizado,<br />
pois provém do latim médio abymus 42 ; já o <strong>mesmo</strong> não se pode dizer em<br />
relação à palavra falla, em que a geminação do não encontra fundamento<br />
histórico, porque o verbo deriva do latim fabu*la@re 43 . Poder-se-ia<br />
argumentar, por exemplo, que os jornais, vistos como possíveis divulgadores<br />
de uma suposta <strong>no</strong>rma culta sobretudo <strong>no</strong> século XIX, estampavam o verbo<br />
referido com a geminação do grafema . Isso em nada desfaz o que<br />
foi dito: a etimologização do vocábulo continua incarecente de justificativa<br />
que a abalize.<br />
40 Id., ibid., p. 767.<br />
41 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed.<br />
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.<br />
42 CUNHA, op. cit., p. 3.<br />
43 Id., ibid., p. 347.
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 57<br />
Os resultados demonstram que houve uma vitória do sim contra o<br />
não: é que as grafias latinizadas ou helenizadas verdadeiramente – 182<br />
casos – se sobrepõem àquelas que não o são – 111; para 18 ocorrências,<br />
não encontramos, <strong>no</strong>s dicionários consultados, a sua origem:<br />
Diante desse pa<strong>no</strong>rama, há para observar que os índices referentes às<br />
grafias vestidas com etimologizações falsas não são desprezíveis, como<br />
revela o gráfico a seguir<br />
Partindo para o âmbito da possibilidade de que as tabuinhas <strong>votivas</strong><br />
reflitam marcas da oralidade, as <strong>no</strong>ssas expectativas se concretizaram, sobretudo<br />
<strong>no</strong> nível da fonética/fo<strong>no</strong>logia. Desse modo, apresentamos os<br />
dados encontrados distribuídos por séculos, para que possamos, quem<br />
sabe, contribuir com a datação de determinados traços <strong>no</strong> português popular<br />
brasileiro:<br />
Século XVIII:<br />
Gráfico 01 – Etimologização gráfica<br />
aférese: fermidade (enfermidade, 1) 44 ; prótese: asuçedida (sucedida, 1);<br />
síncope: Serugões (cirurgiões, 1), propia mente (propriamente, 1), surgiõens<br />
(cirurgiões, 1); apócope: Matozinho (Matosinhos, 2), Matozinhô<br />
(Matosinhos, 1); metátese: permetendo (prometendo, 1); anteriorização<br />
de vogais: permetemdo (prometendo, 1); centralização de vogais:<br />
44 A apresentação dos dados referentes a marcas da oralidade assim foi feita: colocamos em<br />
evidência o vocábulo atingido pelo fenôme<strong>no</strong> em questão e, dentro dos parênteses, a<br />
forma canônica e o número de ocorrências <strong>no</strong> corpus.
58 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
parentersesão (por interseção, 1), elevação de vogais médias pretônicas:<br />
milhora (melhora, 1), bixigas (bexigas, 1), inferma (enferma, 1), milhoras<br />
(melhoras, 1), disgracia (desgraça, 1), Matuzinhos (Matosinhos, 2); abaixamento<br />
de vogais altas pretônicas: Serugões (cirurgiões, 1), devi<strong>no</strong><br />
(divi<strong>no</strong>, 1), desparou (disparou, 1), parentersessão (por interseção, 1),<br />
sofocação (sufocação, 1), molher (mulher, 1); elevação de vogais médias<br />
em mo<strong>no</strong>ssílabos: mai (mãe, 2); mo<strong>no</strong>tongação: axose (achou-se, 1),<br />
diareas (diaréias, 1); ditongação: deyn bro . (dezembro, 1), enfreyado<br />
(enfreado, 1), disgracia (desgraça, 1), Sylvia (Silva, 1); desnasalização:<br />
hua (uma, 4), mai (mãe, 2).<br />
Século XIX:<br />
aférese: pifa<strong>no</strong> (Epifânio, 1), Parecida (Aparecida, 1), tê (até, 1); apócope:<br />
Mathosinho (Matosinhos, 1), Matuzinho (Matosinhos, 1), Mato Zinho<br />
(Matosinhos, 1), Matto Zinho (Matosinhos, 1), Matozinho (Matosinhos,<br />
4); síncope: pa (para, 2); anteriorização de vogais: secorrendo (socorrendo,<br />
1); elevação de vogais médias pretônicas: Infermo (enfermo,<br />
1), desenteria (desinteria, 1), milhoras (melhoras, 4), milhor (melhor, 1),<br />
Milhor (melhor, 1), mimoria (memória, 2), procidido (procedido, 1),<br />
incaio (encalho, 2), isquerdo (esquerdo, 1), enfirmidade (enfermidade,<br />
1), carriando (carreando, 1), dizinga<strong>no</strong>u (desenga<strong>no</strong>u, 1), Injenho (engenho,<br />
1), Durotheia (Dorotéia, 1), Matuzinho (Matosinhos, 1), pustema<br />
(postema, 1), duente (doente, 1); elevação de vogal postônica final:<br />
quazi (quase, 1); abaixamento de vogais altas pretônicas: tomores (tumores,<br />
1), Molher (mulher, 1); elevação de vogais médias em<br />
mo<strong>no</strong>ssílabos: mi (me, 1), di (de, 1), nu (<strong>no</strong>, 1), mãi (mãe, 1), au (ao,<br />
1); mo<strong>no</strong>tongação: baxo (baixo, 1), abaxo (abaixo, 2), debaxo (debaixo,<br />
1), rematismo (reumatismo, 1), saverista (saveirista, 1), pifa<strong>no</strong><br />
(Epifânio, 1), Ozébia (Eusébia, 1), tor<strong>no</strong>-lhe (tor<strong>no</strong>u-lhe, 1), typhode<br />
(tifóide, 1), andame (andaime, 1); ditongação: pescouço (pescoço, 1);<br />
iotização: incaio (encalho, 2), Vaia (valha, 1); desnasalização: hua (uma,<br />
4), nao (não, 1), co (com, 1).<br />
Século XX:<br />
síncope: prostada (prostrada, 1); paragoge: amiudas (amiúde, 1); centralização<br />
de vogais: amiudas (amiúde, 1); elevação de vogais médias<br />
pretônicas: juelho (joelho, 1); abaixamento de vogais altas pretônicas:<br />
sofrementos (sofrimentos, 1); mo<strong>no</strong>tongação: nafrago (naufrágio, 1);<br />
ditongação: poude (pode, 1), ourina (urina, 1), mais (mas, 1), feis (fez,<br />
1), Olavio (Olavo, 1); desnasalização: mae (mãe, 1).
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 59<br />
Sem datação:<br />
síncope: inperimentado (experimentado, 1); apócope: Ei (eis, 1), Alcanca<br />
(alcançar, 1); elevação de vogais médias pretônicas: milhora (melhora,<br />
1), milhor (melhor, 1), infermidade (enfermidade, 1), Explusão (explosão,<br />
1); elevação de vogais médias em mo<strong>no</strong>ssílabos: au (ao, 1); alteamento<br />
de vogal postônica final: quasi (quase, 1), sarassi (sarasse, 1); abaixamento<br />
de vogais altas pretônicas: comprir (cumprir, 1), enflamada (inflamada,<br />
1), encomo-do (incômodo, 1), emcomo-do (incômodo, 1);<br />
mo<strong>no</strong>tongação: pegoce (pegou-se, 1), perfeta (perfeita, 1), Aura (Áurea,<br />
1), lembros-se (lembrou-se, 1); ditongação: feiz (fez, 2), meis (mês, 1);<br />
rotacismo: Grorioso (glorioso, 1); lambdacismo: milaglozo (milagroso, 1);<br />
nasalização: inperimentado (experimentado, 1); palatalização: agunhado<br />
(agoniado, 1).<br />
Removendo os índices referentes aos fenôme<strong>no</strong>s fônicos para um quadro,<br />
temos a seguinte <strong>imagem</strong>:<br />
Cabem ainda, quanto aos traços emoldurados como fenôme<strong>no</strong>s que, da<br />
fala, se transpuseram para a escrita, duas observações:<br />
<strong>As</strong> primeiras indicações sobre a emergência do apagamento de /R/ em<br />
coda silábica interna datam da década de 20 do século XX. Oliveira 45 recuou o<br />
traço, com base em <strong>texto</strong>s escritos por africa<strong>no</strong>s e afro-descendentes, para o<br />
século XIX. Será que o vocábulo serugões está querendo <strong>no</strong>s dizer que o apagamento<br />
do /R/ em coda de sílaba interna pode ser recuado para o século XVIII?<br />
No que se refere ao segundo aviso, guardemos as seguintes palavras de<br />
Simões 46 sobre a representação gráfica da nasalidade entre os alfabetizandos:<br />
Considerando que a nasalidade é uma situação de maior<br />
complexidade, concluímos que, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> fônico, ela não atordoa<br />
o alfabetizando, pois, captando-a ou não, a criança resolve<br />
sua grafia de forma sistêmica e estruturada: ou ig<strong>no</strong>ra e,<br />
45 OLIVEIRA, Klebson. Aquisição da escrita em <strong>texto</strong>s de africa<strong>no</strong>s e afro-descendentes<br />
<strong>no</strong> Brasil do século XIX: grafias para sílabas complexas, por exemplo. In: LOBO,<br />
Tânia et alli (Org.). Para a história do português brasileiro. Volume VI: Novos dados, <strong>no</strong>vas<br />
análises. t. I, 2006. p. 469-494.<br />
46 SIMÕES, Darcília. Fo<strong>no</strong>logia em <strong>no</strong>va chave: considerações sobre a fala e a escrita. Rio de<br />
janeiro: HP Comunicações, 2003. p. 64.
60 Oliveira, Klebson. <strong>As</strong> <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> <strong>imagem</strong> e <strong>texto</strong> <strong>no</strong> <strong>mesmo</strong> <strong>endereço</strong><br />
portanto, não usa marcas, ou a percebe e elege uma marcação<br />
uniforme: põe travador (consoante nasal após a vogal<br />
fechando sílaba) ou til em todas as sílabas que apresentem<br />
qualquer vestígio de som nasal (nasaladas e nasalizadas).<br />
Tabela 01 – Ocorrências de fenôme<strong>no</strong>s fônicos por séculos<br />
É por isso que certos vocábulos acima oferecidos – hua, nao, co –<br />
devem ser vistos com cautela, porque, talvez, não estejam encenando<br />
desnasalizações.<br />
Considerações finais<br />
A análise de ex-votos do tipo <strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong> revelou, primeiramente,<br />
que a linguagem ali expressa tem características que lhes são constitutivas
Cader<strong>no</strong>s de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 43-61, 2008 61<br />
e, conseqüentemente, as individualizam perante outras modalidades de<br />
agradecer a um orago pelo milagre obtido. Essas características se traduzem<br />
<strong>no</strong> excesso de abreviaturas, <strong>no</strong> acúmulo de grafias hipo- e<br />
hipersegmentadas, na sobrecarga de vocábulos etimologizados, verdadeiramente<br />
ou não. Contudo, operando-se <strong>no</strong> campo das legendas que<br />
descrevem os milagres feitos em situações aflitivas, o ganho mais importante<br />
diz respeito ao fato de que, pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> nível da fonética/<br />
fo<strong>no</strong>logia, as tabuinhas se constituem, de fato, em mais uma fonte para<br />
a escrita do percurso histórico do <strong>no</strong>sso “latim vulgar”.<br />
ABSTRACT<br />
An offering made to a saint in fulfilment of a vow,<br />
due to an afflictive circumstance, is said to be an exvoto.<br />
Some of the most popular formats of ex-votos<br />
– wherein written language and image share the same<br />
picture – are k<strong>no</strong>wn in Portuguese as “<strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>”.<br />
The present work deals with the description of the<br />
language represented in those pictures, whose analysis<br />
aims at observing which phonic features may be<br />
apprehended from written data.<br />
KEY-WORDS: Popular Brazilian Portuguese; ex<br />
votos;”<strong>tábuas</strong> <strong>votivas</strong>”.