Somos mestiços, e daí? - cchla - UFRN
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<strong>Somos</strong> <strong>mestiços</strong>, e <strong>daí</strong>?<br />
- para uma arqueologia de representações depreciativas do mestiço e das mestiçagens na<br />
interpretação da cultura brasileira *<br />
1. Introdução<br />
Alípio de Sousa Filho<br />
- professor do Departamento de Ciências Sociais da <strong>UFRN</strong>. Doutor em Sociologia pela<br />
Sorbonne (Paris, França).<br />
Ainda que na história humana a existência de mestiçagens seja bastante antiga, o termo<br />
mestiçagem é relativamente novo se comparado a essa mesma história e é também termo cercado<br />
de problemas. Enquanto o termo mestiço já existe desde o século XII (de mestiz, do latim<br />
mixticius, de mixtus, "misturado"), a palavra mestiçagem é tardia, data do século XIX. Existem<br />
duas maneiras de entender o que seja mestiçagem. No sentido empregado pelas ciências naturais,<br />
chama-se mestiçagem o cruzamento de raças, de variedades diferentes, no seio de uma mesma<br />
espécie, e mestiço o produto dessa mistura. Nessa acepção, é termo de sentido genérico, ainda<br />
que seja pouco comum biólogos e zoólogos utilizarem a palavra, dando-se preferência para<br />
termos como "cruzamento" ou "hibridismo". O híbrido (do latim ibrida, "de sangue misturado") é<br />
então o indivíduo (animal ou vegetal) nascido do cruzamento de raças ou de variedades na<br />
mesma espécie.<br />
*<br />
Em setembro de 2000, defendi na Universidade de Paris (Sorbonne - Paris V) tese de doutorado elaborada sob a<br />
orientação do sociólogo Michel Maffesoli e intitulada "Les métissages brésiliens – imaginaire, quotidien et pratiques<br />
de mélanges dans la société brésilienne". O presente texto é uma primeira versão (em resumo) dessa tese.<br />
1
No sentido com o qual as ciências humanas utilizam o termo, não é menos presente essa<br />
noção biológica de "cruzamento", "misturas de sangue", - no campo da mestiçagem entre<br />
humanos, falamos também de miscigenação -, mas, do ponto de vista antropológico, não seria a<br />
mestiçagem de seres humanos apenas um caso particular de cruzamento entre variedades de seres<br />
vivos. Compondo-se os seres humanos não de "raças" (como a crença racista pretende fazer a<br />
todos acreditar!) mas de grupos étnico-culturais – que não seriam mais que populações<br />
manifestando certos traços físicos devidos a uma hereditariedade comum ou conjunto de<br />
indivíduos saídos de ancestrais comuns e que se parecem com estes o tanto quanto se<br />
assemelham entre si -, a mestiçagem é sem dúvida um cruzamento biológico mas também um<br />
cruzamento de culturas, com efeitos sociais e históricos.<br />
Mas, mesmo nesse segundo sentido, uma concepção racista tem reduzido a aplicação dos<br />
termos mestiçagem e mestiço a apenas certos casos de "cruzamentos" humanos. Uma criança<br />
nascida de um italiano e de uma sueca não será considerada mestiça e esse caso não seria um<br />
exemplo de mestiçagem. São tidas especificamente por mestiçagens as uniões entre brancos e<br />
negros, entre brancos e amarelos e entre amarelos e negros, e considerados <strong>mestiços</strong> os nascidos<br />
dessas uniões. A mestiçagem seria uma mistura de "raças" no sentido em que, conforme a crença<br />
ideológica e racista, os "grupos de cor" seriam tidos por tais. Esse sentido para o termo<br />
mestiçagem tem origem com a era da dominação colonial (a partir do século XVI) com a Europa<br />
conquistando, explorando e dominando diferentes partes do planeta e suas populações, quando<br />
vão ocorrer "cruzamentos" em grande escala entre grupos étnicos diferentes, vistos como "raças":<br />
miscigenação entre europeus e ameríndios, europeus e africanos, europeus e asiáticos ou entre<br />
estes mesmos diferentes grupos.<br />
2
Não é senão com a era colonial que se fala de mestiçagem e que os <strong>mestiços</strong> são<br />
singularizados como tais nas colônias ou nas metrópoles colonizadoras. Ainda que a mestiçagem,<br />
como miscigenação de grupos étnicos, seja tão velha quanto a humanidade 1 , ao homem da era<br />
colonial, assim como ao homem de hoje, as mestiçagens de populações do passado aparecem<br />
como simples fatos históricos cujos traços geralmente desapareceram e que efetivamente não<br />
contariam mais do ponto de vista da caracterização dos grupos humanos nas suas configurações<br />
atuais. Pode-se até saber que um ou outro povo deve sua origem a cruzamentos entre grandes<br />
grupos étnicos – que, por exemplo, os franceses são a mistura de múltiplos cruzamentos: entre<br />
gauleses, romanos, francos, etc. - mas ou isso teria perdido toda sua significação cultural e social<br />
com o passar do tempo ou os ancestrais desses povos teriam sido inteiramente assimilados e,<br />
nesses casos, não se reconhece mais mestiçagens e <strong>mestiços</strong>. Diferentemente, a era colonial,<br />
"misturando a cor da pele" de grupos humanos diferentes, modificando-os e criando novos tipos<br />
humanos, mas também conservando as distinções que os separam, faz nascer as categorias de<br />
mestiçagem e de mestiço como verdadeiras identidades particulares de processos e pessoas. Não é<br />
1<br />
Pode-se dizer que ela é o fato mesmo que funda a humanidade e todos os povos, pois não há população humana que<br />
não tenha se fundado pela miscigenação étnica. O conceito de "raça" e, pior, de "raça pura" é não somente racista e<br />
reacionário, ele não faz nenhum sentido e não encontra nenhuma evidência histórica. Todos os povos, desdes os mais<br />
primitivos da humanidade, constituiram-se nos contatos entre uns e outros, não existindo nenhuma população<br />
humana que tenha se constituído e se conservado sem cruzamentos. O humano é um miscigenado, um mestiço. E<br />
mais: pesquisas recentes mostram que os 6 bilhões de terráqueos atuais que nós somos descendemos todos de um<br />
mesmo núcleo inicial de alguns milhares de homens. As últimas pesquisas da genética e da lingüística mostram que<br />
não somente nós somos todos primos, mas bem mais próximos que se pensava. Brancos, amarelos ou negros, nós<br />
temos os mesmos ancestrais. Nós descendemos todos de um mesmo pequeno grupo de algumas dezenas de milhares<br />
de sobreviventes do paleolítico que viveram entre 30 000 e 60 000 anos atrás. Do lado dos genes, não há nenhuma<br />
dúvida sobre a origem comum dos humanos atuais a partir de uma população "mãe" da pré-história. Ainda que<br />
diferentes, somos todos parentes: que se seja esquimó, chinês, australiano, africano, europeu, ameríndio, as pesquisas<br />
demonstram que se encontram, nesses diversos grupos, características genéticas comuns tais como os genes que<br />
determinam a cor da pele, em proporções diferentes mas sempre presentes em todos os grupos. Assim, em mongóis<br />
se encontra o gene determinante da cor da pele negra, do mesmo modo como se verifica também em brancos<br />
europeus. No africano negro se encontra o gene determinante da cor da pele branca, o mesmo se verificando em<br />
indígenas do continente americano. O que varia em cada grupo é o gene predominante na constituição da cor da pele<br />
de cada um.<br />
3
por outra razão que apenas na época moderna se desenvolveu uma consciência particular com<br />
relação às "misturas de raças" e que as sociedades passaram a ter em conta as "raças" para sua<br />
organização interna. E não é também por outra razão que, qualquer que seja o caso, o tratamento<br />
do fenômeno da mestiçagem nos obriga a tratar também do racismo que cerca o termo e o fato. A<br />
mestiçagem ou miscigenação, no caso humano, concerne não a raças, mas a grupos de população<br />
mais ou menos distintos por traços físicos e que se distribuem no planeta mais ou menos<br />
homogeneamente por regiões. Apenas o senso comum se ocupa de identificar os grupos humanos<br />
por recurso a um traço físico particular que ele privilegia. Sabe-se que a cor da pele, por exemplo,<br />
não é, do ponto de vista biológico, um traço mais revelador de um grupo étnico que qualquer<br />
outro, como a forma do esqueleto, a do crânio, o metabolismo, as propriedades sangüíneas. Os<br />
brancos, os negros, os amarelos não são então raças, no sentido biológico, mas grupos humanos,<br />
no sentido sociológico. A mestiçagem é, pois, um fenômeno social mais que um fenômeno físico.<br />
Convém agora explicar o que na nossa interpretação da cultura brasileira chamamos de<br />
mestiçagens. O emprego por nós da palavra mestiçagem – quase sempre utilizada no plural – é<br />
um deslizamento semântico do sentido original do termo na acepção de "cruzamento",<br />
"hibridismo", "mistura", seja da maneira como aparece nas ciências naturais, seja, como vimos,<br />
da maneira como é empregada pelas próprias ciências humanas. Ao falarmos das mestiçagens<br />
nacionais, inclui-se aí naturalmente o sentido primeiro do termo pela referência às misturas<br />
(biológicas) que nos fundaram como tipo humano e como povo, mas, principalmente, o termo<br />
mestiçagem é por nós re-significado para a referência às práticas de outras mestiçagens: misturas,<br />
fusões, sincretismos, hibridismos, associações, combinações, junções, etc. de valores, idéias,<br />
princípios, costumes, códigos, etc. tal como ocorrem na sociedade brasileira e que particularizam<br />
nossos hábitos culturais.<br />
É evidente que, para o caso brasileiro, o termo liga-se, de partida, aos frutos do<br />
entrelaçamento entre os três principais grupos étnicos – os indígenas, os europeus e os africanos –<br />
presentes no território brasileiro no curso da colonização entre os séculos XVI e XIX. Presença<br />
que varia conforme cada elemento: o indígena autóctone, o europeu invasor e o africano<br />
arrancado de seu continente como escravo. Nesse tema, estamos aplicando o sentido do termo<br />
4
mestiçagem que o torna sinônimo de miscigenação biológica de grupos étnicos. <strong>Somos</strong> uma<br />
sociedade nascida justamente dos feitos da era colonial e nos constituímos, em primeiro lugar,<br />
como uma população inteiramente mestiça no plano biológico. Mas – e, sem dúvida, em virtude<br />
desse elemento histórico de nossa fundação como sociedade – construímo-nos também e<br />
principalmente numa cultura de mestiçagens. É esse traço maior da cultura brasileira que é o<br />
objeto de nosso interesse.<br />
Assim, em meu trabalho de tese, o que chamo de mestiçagens diz respeito às diversas<br />
maneiras de pensar e fazer dos brasileiros – apontadas em diferentes estudos 2 - que implicam<br />
relacionar, fazer amálgamas, fazer junções de idéias, formas, regras, valores, princípios, espaços,<br />
etc., ainda quando considerados opostos, mas colocados lado a lado, fundidos, combinados,<br />
tornando-se fontes de amolecimentos de códigos, instituições, padrões, leis. Como se sabe, um<br />
modo de agir que tem no célebre "jeitinho brasileiro" uma de suas representações sínteses. Ainda<br />
que interpretado por muitos como uma anomalia cultural, causa do enfraquecimento das<br />
instituições políticas do país, querem alguns!, o "jeitinho brasileiro" – existindo para o melhor e<br />
para o pior -, caso se saiba interpretá-lo sem preconceitos teóricos e/ou políticos, pode, sem<br />
dúvida, ser tomado, em uma de suas dimensões, como uma das expressões fortes do modo de ser<br />
das nossas mestiçagens. Atitudes, hábitos, etc. que os próprios brasileiros consideram<br />
"tipicamente brasileiro" e que, segundo ainda os nacionais, seria a razão que faz do Brasil um<br />
país sui generis: para muitos, tornaria o país e sua gente plásticos, heteróclitos, versáteis,<br />
maleáveis. Uma idealização que os brasileiros fazem de si mesmos que faz crer que se trataria de<br />
um povo eternamente aberto, oposto a tudo que corresponderia ao "puro", ao "separado", aos<br />
"códigos rígidos".<br />
2 Aqui penso principalmente nas obras de Gilberto Freyre ("Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mocambos"),<br />
Roger Bastide ("Brasil: terra de contrastes"), Darcy Ribeiro ("O povo brasileiro"), Roberto DaMatta ("O que faz o<br />
Brasil, Brasil?", "Carnaval, malandros e heróis" e "Conta de mentiroso"), entre outros.<br />
5
Ora, mesmo que saibamos o quanto uma representação que um povo faz de si mesmo<br />
pode servir a estereótipos e a ocultar aspectos da cultura, não se pode deixar de aceitar que a<br />
prática de mestiçagens, como toda uma maneira de ser do brasileiro, é mais que uma simples<br />
imagem que os brasileiros fazem de si. Com efeito, diante das mestiçagens – tal como aqui<br />
emprego o termo -, estamos diante de um componente estruturante da cultura brasileira, diante de<br />
uma estrutura antropológica do pensar e do agir pessoal e coletivo na nossa sociedade. As<br />
imagens de plasticidade, flexibilidade, heteróclito, etc. aplicadas ao modo de ser do brasileiro<br />
não são, portanto, pura fantasia ou ideologia no sentido próprio do termo.<br />
Conviria igualmente esclarecer que, ao chamarmos uma parte de nossos hábitos de<br />
mestiçagens, não o fazemos no sentido com o qual se vem empregando o termo em outros casos,<br />
haja vista a tendência crescente, entre estudiosos de diversas línguas, de se chamar também de<br />
mestiçagem práticas nos campos da moda, da arquitetura, da literatura, do design, da publicidade,<br />
etc., compreendidas como efeitos das intensas trocas culturais que se realizam hoje. Fala-se de<br />
uma época de "globalização", "mundialização da cultura", "orientalização do Ocidente",<br />
"ocidentalização do Oriente", "culturas do mundo", "idioma planetário". Época apontada como de<br />
mistura de tradições, de quebra de paradigmas culturais, de mestiçagens. 3<br />
Ao pesquisador brasileiro ocorre de ser mais antigo e mais simples pensar as mestiçagens<br />
sem essa tintura do presente. Essas práticas apontadas como novas nesses diversos campos da<br />
atividade cultural, ainda que profundamente impregadas de traços que a justo título podem<br />
também ser chamadas de mestiçagens, diferem em natureza e significação do caso brasileiro.<br />
Nosso caso é mais antigo e não são práticas episódicas ou descontextualizadas, bricolagens com<br />
materiais transculturais, experimentações, inventos de linguagens na filosofia, na moda, na arte,<br />
na publicidade ou mesmo estratégias discursivas contra o racismo. Nossas mestiçagens estão no<br />
corpo e na alma muito antes de toda novidade criada com a chamada pós-modernidade,<br />
globalização, internet, etc. Nossas mestiçagens são a estrutura profunda de toda uma psique<br />
coletiva, definem nosso ser social e têm bases históricas no passado.<br />
3 Ver, por exemplo, os estudos de Serge Grunsiski (La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999), François Laplantine e<br />
Alexis Nouss (Le métissage, Paris, Flamariom, 1997), entre outros.<br />
6
Resta que a miscigenação que nos fundou como povo foi não apenas uma mistura de<br />
diferentes grupos étnicos, mas também de culturas, histórias, modos de ser, imaginários. Essas<br />
misturas do passado constituem a herança que dotou a sociedade brasileira de uma tendência –<br />
nós diremos, inconsciente – a realizar fusões, associações, aproximações, junções, sincretismos<br />
de seres, coisas, idéias, valores, fazendo-os conviver, co-habitar e mesmo fundirem-se, não raro<br />
ligando extremos, opostos, contrários - este último aspecto tendo já ocupado o antropólogo<br />
Roberto DaMatta nas inúmeras páginas que escreveu sobre a cultura brasileira.<br />
Entretanto, nossa discussão não se realizaria satisfatoriamente se não enfrentássemos, ao<br />
mesmo tempo, tema vital que se encontra na nossa discussão sobre as mestiçagens brasileiras: a<br />
existência de representações depreciativas das mestiçagens e do mestiço que se produziram ao<br />
longo de nossa história e que se conservam ainda.<br />
Em nosso trabalho de tese, ocupados com uma análise das nossas mestiçagens, nos<br />
deparamos, na leitura de fontes escritas, autores, etc., com um discurso que muito chamou nossa<br />
atenção: um discurso antimestiçagem e antimestiço, inicialmente engendrado fora do Brasil -<br />
desembarcando em nossas terras com o europeu colonizador - e, posteriormente, inteiramente<br />
assumido e elaborado por nossas elites intelectuais e políticas, desde os primeiros momentos de<br />
nossa fundação como sociedade e até hoje.<br />
Se linhas antes falávamos de uma tendência inconsciente coletiva a se praticar<br />
mestiçagens, diga-se já agora que se tratou sempre de uma tendência que provocou<br />
estranhamento em viajantes e cronistas estrangeiros do período colonial (quase sempre<br />
reprovando-a!, é a tônica dos escritos de administradores, missionários cristãos e viajantes<br />
europeus), e que, como traço profundo do modo de ser dos brasileiros, foi tendência condenada<br />
pelos nossos primeiros intérpretes, tendo sido também objeto da atenção (não menos<br />
reprovadora!) dos cientistas sociais em todo decorrer do século XX. Em geral, as interpretações<br />
destes últimos seguiram a tônica depreciativa e pessimista dos primeiros relatos e das primeiras<br />
7
interpretações que se fez da cultura brasileira - a exceção ficando por conta de intérpretes como<br />
Manoel Bomfim, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta, entre poucos exemplos.<br />
Nosso trabalho de leitura de fontes escritas como o texto do administrador colonial, dos<br />
missionários cristãos ou dos conhecidos diários de viagens dos viajantes estrangeiros que<br />
visitaram ou viveram no Brasil entre os séculos XVI e XIX, permitiu observar que, ao lado da<br />
descrição (quase sempre com espanto) dos traços culturais brasileiros calcados nas práticas de<br />
mestiçagens, desenvolve-se também, na pena desses diversos cronistas, um discurso de<br />
desconfiança e condenação dessas mesmas práticas. O mesmo tornou-se possível observar na<br />
pena do autor brasileiro interpretando o país e sua gente, dentre eles nomes célebres como<br />
Capistrano de Abreu, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, por citar<br />
apenas os principais. Autores que, sem que aqui se ignore a importância deles para compreender<br />
a formação da sociedade, deixaram-nos páginas lamentando nossas mestiçagens, nossos hábitos,<br />
nossas instituições: sorte de prolongamento intelectualizado do discurso do colonizador sobre a<br />
nova sociedade que surgia na América. Como veremos adiante, um prolongamento que dura até<br />
hoje nas análises da sociedade brasileira feitas por cientistas sociais universitários, com seus ecos<br />
no senso comum das boutades e piadas sobre o Brasil e os brasileiros, sempre dispostas a<br />
menosprezar nossas maneiras de ser e fazer.<br />
Assim, o tema de uma arqueologia de representações depreciativas das mestiçagens e do<br />
mestiço como aparecem no imaginário brasileiro nos leva ao problema do olhar que sempre se<br />
dirigiu à sociedade brasileira e também à questão teórica da reformulação desse olhar nas<br />
interpretações da nossa realidade pelas ciências sociais, notadamente aquelas praticadas pelos<br />
universitários.<br />
8
2. Mestiçagens: anomalia cultural ou estrutura antropológica fundante?<br />
É verdadeiro que não é de hoje que se reconhece a sociedade brasileira como uma<br />
sociedade que pratica "sincretismos", "hibridismos", "misturas". Nesse sentido, não haveria nada<br />
de novo em se dizer que somos uma cultura de mestiçagens. Entretanto, até aqui, muito variaram<br />
as maneiras como se interpretou e se aceitou esse fato. Em geral, predominou (e continua a fazer<br />
escola) o modelo de interpretação do Brasil que vê nossas mestiçagens com desconfiança,<br />
condenando-as como “anomalias”, “vícios”, “males de origem”. Ainda que, quase sempre, as<br />
referências às mestiçagens tenham sido feitas por evitação, mascaradas em termos depreciativos,<br />
o fato é que, com esses próprios termos, assinava-se a sua presença como parte da realidade<br />
nacional.<br />
Como se sabe, tratando da cultura brasileira – ou, como escreveram alguns de nossos<br />
autores, tratando do "caráter nacional" -, as idéias de "vícios", "males", "degenerescência",<br />
"atraso", etc. conduziram alguns intérpretes brasileiros a perseguir, de uma maneira quase<br />
obsessiva, o tema que se tornou um clássico: a causa dos males do Brasil. O que uma leitura<br />
atenta desses intérpretes permite extrair como conclusão é que, no tratamento do que se<br />
convencionou chamar "os males do Brasil", estão desaprovações às práticas que nos caracterizam<br />
como cultura, entre o que se destacam nossas mestiçagens. Ainda todo o eufemismo depreciativo<br />
de nossos autores para se referirem a elas, e ainda que estes autores tenham se abrigado numa<br />
crítica ao projeto de colonização português e ao escravismo como sistema social que serviu de<br />
base a fundação da sociedade brasileira. Em alguns, crítica que se fez mais pela recusa à<br />
miscigenação e às relações de classe que a escravidão proporcionou que pela recusa ao sistema<br />
como tal. E crítica ao colonizador português como "menos europeu" que todos os demais: povo já<br />
mestiço, misturado às tradições árabes e africanas.<br />
Com desconfiança em nossos costumes de mestiçagens, toda uma tradição teórica de<br />
interpretação da cultura brasileira passa a se perguntar de um suposto "atraso nacional": com<br />
freqüência, falou-se de "país sem ordem", "ignorante do progresso", "alheio à civilização" e à<br />
9
"modernidade"; falou-se de "origem do atraso do país", "origem da imoralidade nacional",<br />
"origem do caráter vicioso nacional", etc.. Interpretando a realidade brasileira com os conceitos e<br />
modelos europeus (incluindo-se aí o racismo destes últimos), nossas elites intelectuais difundem<br />
uma visão pessimista do país e de sua gente.<br />
Que se veja, numa rápida passada de olhos, algumas das coisas que o intérprete brasileiro<br />
disse a propósito dos traços de sua própria cultura. Na pena de Paulo Prado: "No contato da<br />
sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu, surgiram nossas<br />
primitivas populações mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes." 4 ; ou na pena de<br />
Sérgio B. Holanda que, descrevendo as "raízes" de nossos costumes, vê na cultura do colonizador<br />
português a fonte de todos os nossos males: "A falta de coesão em nossa vida social não<br />
representa, assim, um fenômeno moderno." 5 Ou como diz ainda: "No fundo, o próprio princípio<br />
de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós." 6 E por que tudo isso? Como o<br />
nosso autor explica o fenômeno brasileiro?: a resposta está no tipo de cultura do colonizador<br />
português ("sua incoercível tendência para o nivelamento das classes" 7 ). Colonizador maldito!,<br />
transmitiu-nos uma herança que nos distanciou das instituições dos povos do Norte: essa será a<br />
lamúria de todo um conjunto de intérpretes brasileiros, sorte de efeito perverso da própria<br />
colonização, que conduz o colonizado a pensar em qual teria sido o "melhor colonizador" para a<br />
nação. Exprimindo seu elitismo e seus preconceitos, escreve Sérgio B. Holanda:<br />
"Um dos pesquisadores mais notáveis da história antiga de Portugal<br />
salientou, com apoio em ampla documentação, que a nobreza, por maior que<br />
fosse a sua preponderância em certo tempo, jamais logrou constituir ali uma<br />
aristocracia fechada; a generalização dos mesmos nomes a pessoas das mais<br />
diversas condições – observa – não é um fato novo na sociedade portuguesa;<br />
(...) A comida do povo – declara ainda – não se distinguia muito da dos<br />
cavalheiros nobres, por isso que uns e outros estavam em contínuas relações<br />
4 Cf. Prado, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo, D.P.&C., 1928, p. 37<br />
5 Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1990, p. 5<br />
6 Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes...., op. cit., p. 6<br />
7 Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes...., op. cit., p. 8<br />
10
de intimidade; não só os nobres comiam com os populares, mais ainda lhes<br />
entregavam a criação dos filhos." 8<br />
Ou como mais adiante:<br />
"a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de<br />
qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de<br />
compromissos, que caracteriza os povos do Norte. Essa modalidade de<br />
caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe latina e, mais do que<br />
delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo fato de serem os<br />
portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de<br />
<strong>mestiços</strong>. (...) Neste caso o Brasil não foi teatro de nenhuma grande novidade.<br />
A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na própria<br />
metrópole." 9<br />
Mesmo autores marxistas não escaparam de dizer coisas não menos preconceituosas e<br />
reacionárias relativamente aos nossos costumes de mestiçagens. Note-se aqui o que escreveu<br />
Caio Prado Júnior: "Em uma população assim constituída originariamente (...), o primeiro traço<br />
que se espera, e que certamente não nos faltará, é esse da ausência de ordem moral." 10<br />
Associando-os sempre aos nossos costumes de misturas, junções, quebra de hierarquias,<br />
indistinções de raça e de classe, etc., os temas preferidos desses intérpretes são "a preguiça do<br />
brasileiro", "a falta de ordem em nossa vida social", "nossa incapacidade de organização sólida",<br />
"o gosto brasileiro pela improvisação", "nossa aptidão para a intimidade fácil". O homem<br />
brasileiro que vemos sair das páginas desses intérpretes é um homem débil, preguiçoso,<br />
8 Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes...., op. cit., pp. 7,8<br />
9 Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes..., op. cit., p. 22<br />
10 Cf. Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 341<br />
11
grosseiro, incapaz de urbanidade e civilidade, incapaz de separar a esfera pública da esfera<br />
privada - que se leia a obra já citada "Raízes do Brasil", de Sérgio B. de Holanda! Homem<br />
irracional, dado aos vícios das paixões, um degenerado moral – que se leia "Retrato do Brasil", de<br />
Paulo Prado 11 ! ou "Origem da imoralidade no Brasil", de Abelardo Romero 12 !<br />
Mais recentemente, herdeiros dessa tradição teórica de interpretação do Brasil, certos<br />
intérpretes completam o retrato do homem brasileiro descrevendo-o como um homem sem noção<br />
de limite, ignorante do sentido de toda lei: sua lei é gozar quanto possível – que se leia "Hello<br />
Brasil!, de Contardo Calligaris 13 ou o escrito de Jorge Forbes "O homem cordial e a<br />
psicanálise" 14 , posfácio à edição francesa de "Raízes do Brasil". Estes últimos, lamentando-se de<br />
não sermos como os europeus (ou de ignorarmos a "pedagogia européia"), atestam a ausência<br />
entre nós da "função paterna": além de todos os outros males já assinalados, sofreríamos também<br />
da patologia psíquica da não interdição do gozo ("uma função paterna normalmente se mede<br />
pelo gozo que interdita" 15 ). Em termos psicanalíticos, não teríamos instaurada entre nós a função<br />
simbólica do "nome do Pai". Não sabendo o que é a "interdição", a "castração", a "Lei", nesse<br />
divã internacional das nações, qual é o diagnóstico do brasileiro?: seu gozo é "sem<br />
impedimentos", o que "faz do cinismo o modo dominante da relação brasileira com toda<br />
instância simbólica." 16 Extensões dessa curiosa análise, atesta-se: "a vida política do país é uma<br />
mombaçada atrás da outra, por necessidade." 17 É ver para crer! (Nessa versão, a psicanálise<br />
mais serve aos interesses da ordem e da ideologia que a propósitos liberadores.)<br />
Certo é que o autor brasileiro – toda uma corrente – não fez outra coisa senão repetir<br />
aquilo que o colonizador disse do Brasil e do homem brasileiro. A esse respeito, é bastante<br />
esclarecedora a leitura dos textos dos conquistadores (portugueses, mas também holandeses e<br />
11<br />
Cf. Prado, Paulo. Retrato..., op. cit.<br />
12<br />
Cf. Romero, Abelardo. Origem da imoralidade no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1967<br />
13<br />
Cf. Calligaris, Contardo. Hello Brasil! – notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo, Escuta,<br />
1996<br />
14<br />
Cf. Forbes, Jorge. "L'homme cordial et la psychanalyse", in Holanda, Sérgio Buarque de. Racines du Brésil. Paris,<br />
Gallimard, 1998<br />
15<br />
Cf. Calligaris, Contardo. Hello..., op. cit., p. 61<br />
16<br />
Cf. Calligaris, Contardo. Hello..., op. cit., p. 61<br />
17<br />
Cf. Calligaris, Contardo. Hello..., op. cit., p. 62<br />
12
franceses), dos diários de viajantes e das obras e cartas dos missionários cristãos que viveram em<br />
nossas terras no período da colonização. Continuando a fazer escola na historiografia brasileira –<br />
que se veja trabalhos recentes como o do historiador Emanuel Araújo, "O teatro dos vícios" 18 -, o<br />
autor brasileiro sempre aceitou (e repetiu!) a descrição etnocêntrica e eurocêntrica dos<br />
estrangeiros que aqui estiveram como administrador colonial, como sacerdote, militar ou<br />
viajante. O texto preconceituoso, elitista e racista foi aceito como texto de verdade, testemunho<br />
da história, não tendo sido o autor brasileiro capaz de crítica das representações depreciativas<br />
contidas nesses conhecidos (e citados!) relatos.<br />
O problema que se põe a essa tradição é que, ainda que se apresente como projeto<br />
intelectual de crítica de nosso passado colonial e escravista, ela termina por se associar à<br />
mentalidade colonialista. Ao que parece, sem se colocar a questão do olhar pelo qual se observa a<br />
realidade, essa tradição teórica de interpretação da cultura brasileira transmitiu ao mundo das<br />
idéias sua parte de incredulidade e pessimismo vis-à-vis nossa cultura de mestiçagens. Com<br />
efeito, isso releva de uma impossibilidade histórica, uma vez que essa mesma tradição – que se<br />
trate de pontos de vistas conservadores ou outros, com ou sem a consciência de sê-los – sempre<br />
olhou a sociedade brasileira com os olhos europeus incapazes de compreender o mestiço e as<br />
mestiçagens.<br />
Diferentemente, estamos aqui propondo uma interpretação para o fenômeno das<br />
mestiçagens brasileiras numa perspectiva que procura compreender essas mestiçagens como<br />
tendência inconsciente e coletiva que regula e anima nossa socialidade de base, nossos modos de<br />
pensar e agir, sem as idéias de que sejam essas práticas a causa de nossos chamamos males – e<br />
devemos mesmo nos perguntar da existência destes como particularidades brasileiras. Um olhar<br />
mais atento para o mundo descobrirá que nada temos de "mais" que outras nações no tocante a<br />
aspectos sempre referidos como produtos de nossas "debilidades congênitas", "incapacidades<br />
históricas": desigualdades sociais, misérias, preconceitos, corrupção na política, entre outros<br />
18<br />
Cf. Araújo, Emanuel. Teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro,<br />
José Olympio, 1983<br />
13
exemplos de males sociais, não são fatos exclusivos de nenhuma sociedade, não podendo ser<br />
atribuídos à formação histórica específica de qualquer uma delas.<br />
Da ordem do estrutural, de natureza histórica e antropológica, confundindo-se com o<br />
conjunto social inteiro e atravesando a sociedade de uma ponta a outra, as mestiçagens brasileiras<br />
não podem ser tratadas como "anomalias", "excrescências", "vícios". Na sociedade brasileira, as<br />
mestiçagens são, como já assinalamos, um elemento estruturante da cultura, uma armadura<br />
antropológica das instituições e das relações sociais. São práticas que concernem a todos na<br />
sociedade, independente de regiões, classes sociais, níveis intelectuais, convicções políticas, etc.<br />
<strong>Somos</strong> todos praticantes de mestiçagens, seja de um modo ou de outro, e que se tenha maior ou<br />
menor consciência disso. <strong>Somos</strong> todos <strong>mestiços</strong>, que se queira ou não.<br />
As mestiçagens brasileiras não são uma mentira. Nem a idéia de uma cultura mestiça<br />
pode ser vista como funcionamento de uma ideologia do branqueamento da população negra ou<br />
indígena do país, ou ideologia conciliatória dos conflitos inter-étnicos ou de classe, como crêem<br />
alguns. 19 A denúncia do racismo e das desigualdades sociais existentes no Brasil não pode ser<br />
praticada ao preço de desmentir a verdade das mestiçagens na vida brasileira. A prática de<br />
mestiçagens entre nós, e por todos nós, não é uma realidade do passado, nem a admissão da<br />
existência destas, como estruturantes da vida social brasileira, pode ser entendida como uma<br />
19 Cf. Munanga, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1999 Para este autor, a idéia de<br />
mestiçagem é uma maneira que a sociedade brasileira encontraria de "mitigar o racismo" contra negros, seria uma<br />
idéia chave no projeto de branqueamento da população brasileira. Analisando a produção discursiva da elite<br />
intelectual brasileira e acreditando tratar-se de um projeto da elite nacional, afirma: "A mestiçagem era para ela uma<br />
ponte para o destino final: o branqueamento do povo brasileiro." (op. cit., p. 112) Ora, aqui, demonstramos tratar-se<br />
justamente do contrário. As elites brasileiras nunca aceitaram as mestiçagens que caracterizam a cultura brasileira e o<br />
povo brasileiro. A "ideologia do branqueamento" (conservando aqui uma expressão do próprio autor) é sem<br />
modalizações: somente o branco é aceito: indígenas, negros e <strong>mestiços</strong> – de todas as nuanças – são discriminados,<br />
assim como são discriminados nossos hábitos de mestiçagens. Nesse sentido, a luta de indígenas e negros contra o<br />
racismo encontra no espírito cultural das mestiçagens um aliado de mais forte fundo antroprológico e não um<br />
obstáculo ideológico.<br />
14
estratégia discursiva das classes dominantes com vistas a dissimular sua dominação (bem ao<br />
contrário!, nossas classes dominantes sempre condenaram às mestiçagens ao lugar do que é<br />
"popular", "grosseiro", "bárbaro", "primitivo", "perigoso", "amoral", etc.).<br />
Com efeito, as mestiçagens correspondem a procedimentos de identificação, ainda que<br />
compreendam modos de fazer que não têm nada de definitivo, absoluto, estável, fixo. O próprio<br />
das mestiçagens é serem práticas de alterações, mudanças, perturbações. Da ordem do incerto, do<br />
fugidio, do incontrolável, as mestiçagens compõem um mundo de movimentos de sombras e luz<br />
em que nada é firme, linha reta, pré-visível. O ser das mestiçagens não correspondendo a nada de<br />
único ou de separado, não se prestando, pois, a projetos políticos que visem o controle social ou a<br />
vitória de um segmento social sobre o outro. (Valeira a pena lembrar que "a estrutura semântica<br />
do termo mestiço é alternativa de ser: " ser" ou "não ser", o termo é neutro; "ser" e "não ser", o<br />
termo é misto" 20 )<br />
As mestiçagens correspondem a práticas que nunca mais deixaram a sociedade brasileira.<br />
Se são, sem dúvida, herança de nosso passado escravista, não são por isso menos permanentes e<br />
presentes como constituintes da maneira de ser do corpo social brasileiro todo inteiro. Se para<br />
alguns essa herança é motivo de vergonha e, para outros, uma razão de pessimismo, parece mais<br />
acertado hoje entender que se trata de uma estrutura antropológica de fundo, base de um<br />
verdadeiro estilo de sociabilidade e socialidade. Se não se torna possível teoricamente dizer que a<br />
vida brasileira seria impossível sem as mestiçagens que nos singularizam, ao menos podemos<br />
dizer que ela se torna incompreensível se não levamos nossas mestiçagens em conta.<br />
A sociedade brasileira, longe de ser animada por uma lógica da dissociação, da disjunção,<br />
constitue-se em um grande caldeirão de fusões, junções, misturas, pela predominância de uma<br />
lógica da junção, da associação, do encontro, numa palavra, pela predominância da tendência a<br />
mestiçagens no espírito pessoal e coletivo. Uma tendência que faz com que a cultura brasileira,<br />
20 Cf. Roger, Toumson. Mythologie du métissage. Paris, PUF, 1998, p. 13. Nesse livro, o autor desenvolve uma<br />
crítica ao que chama de "ideologia da mestiçagem". Sua crítica pode ser compreendida como exatamente o contrário<br />
da perspectiva por mim aqui desenvolvida. Entretanto, a passagem citada nos parece válida para uma terminologia<br />
das mestiçagens.<br />
15
sendo uma paleta de tons de pele – que vai do cobre ao branco rosado –, também ofereça aos<br />
olhos de quem a observe uma paleta de nuanças de comportamentos, atitudes, gestos nem sempre<br />
fáceis captar. Menos ainda controlar, se o que se visa é dominar, como na lógica dos poderes ou<br />
de todos esses com pretensões de dirigir e corrigir o social.<br />
As mestiçagens constituem a forma da circulação no corpo social brasileiro da<br />
diversidade, do heterogêneo, da ambigüidade e da mobilidade, aspectos que são vistos, por<br />
aqueles que estão encarregados do poder e pelas nossas elites sociais e intelectuais, como coisas<br />
que relevam do irracional, do não funcional, do popular, etc. É a essa relação com as mestiçagens<br />
que, em meu trabalho de tese, chamei de mal-estar identitário de nossas elites, uma vez que se<br />
trata de desconforto com a própria cultura a qual pertencem. Desconforto que estas mesmas elites<br />
tentam transmitir ao conjunto social inteiro e que deu origem, no Brasil, a representações<br />
depreciativas da mestiçagem e do mestiço; representações que aparecem sob diversas formas e<br />
cujo sentido final é a reprovação das nossas mestiçagens cotidianas.<br />
É o caráter de heterogeneidade, diversidade – a capacidade de criar múltiplas vias,<br />
soluções alternativas – que faz com que as mestiçagens sejam o fator que torna a cultura<br />
brasileira uma cultura de códigos e instituições flexíveis. Engendrando uma socialidade em que<br />
todos os códigos são submetidos a amolecimentos – aspecto das instituições brasileiras já<br />
assinalado por Gilberto Freyre -, as práticas de mestiçagens tornam nossas instituições e códigos<br />
realidades híbridas, maleáveis. O que rende a vida brasileira uma moleza e uma astúcia<br />
particulares que aparecem em diversas práticas e ritos cotidianos, alguns de seus melhores<br />
exemplos se situando na religião e na sexualidade praticadas no Brasil.<br />
Em tudo isso pode-se ver uma dimensão transgressiva que aproxima as mestiçagens<br />
daquilo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de "potência subterrânea" 21 da vida<br />
social. Aqui pensamos sobretudo em todas essas pequenas transgressões cotidianas que nascem<br />
21<br />
Cf. Maffesoli, Michel. L'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de l'orgie. Paris, Librairie des<br />
Méridiens, 1985<br />
16
das misturas, das substituições, das recriações que se pratica a todo instante na vida brasileira,<br />
animando o corpo social, estruturando-o e regenerando-o. Nesse sentido, as mestiçagens, para<br />
além das formas instituídas e legitimadas do social, asseguram a circulação dos sentimentos, das<br />
paixões, do sexo, asseguram diversas trocas anônimas, engendram diversos acordos secretos, sem<br />
que se possa classificá-los, prevê-los, controlá-los.<br />
É, sem dúvida, esse aspecto transgressivo e incontrolável das mestiçagens brasileiras que<br />
incomoda os diversos poderes sociais e as elites intelectuais e políticas. A pluralidade, a<br />
heterogeneidade, a duplicidade tornam-se incômodos que afetam todos aqueles que têm a sede do<br />
controle social. Finalmente, podemos dizer que a reprovação, os preconceitos, a desconfiança e o<br />
pessimismo das mestiçagens são o temor da diversidade, o temor do inesperado e do inédito. Da<br />
ordem do transitório, do imperfeito, do inacabado, do insatisfeito, do imprevisível, do risco, da<br />
aliança que vai fazer surgir o inesperado, as mestiçagens estão permanentemente na aventura da<br />
errância. Aqui também poderíamos fazer lembrar as reflexões de Michel Maffesoli a propósito<br />
dos nomadismos sociais. Contrariamente a quietude e a segurança do sedentarismo, as<br />
mestiçagens despertam o mesmo sentimento que o errante, o migrante, o estranho, o "bárbaro"<br />
provocam. Como observa o autor: "Encontra-se aí a fobia da mudança e daquilo que é móvel. O<br />
bárbaro vem perturbar a quietude do sedentário. (...) porque pode escapar, o bárbaro afirma sua<br />
soberania sobre a vida. É seu escapismo, essa capacidade de se evadir, que o predispõe, a todo<br />
momento, à mudança, à subversão da ordem estabelecida." 22<br />
No Brasil, as mestiçagens exprimem também um estilo de vida centrada no presente,<br />
como se toda uma coletividade vivesse a vida na plenitude do instante mágico passageiro e,<br />
assim, na confrontação com a ideologia produtivista de tipo burguesa. Esta baseada, entre outras<br />
coisas, no controle de todo gasto improdutivo de energia (dos corpos, do sexo, do tempo, etc.),<br />
em nome de uma economia que prepara o "progresso" e o "futuro". Modelo de uma verdadeira<br />
ideologia de espera do futuro, ideologia que se apresenta em diversas formas, religiosas ou<br />
22 Cf. Maffesoli, Michel. Du nomadisme. Paris, Le Livre de Poche, 1997, p. 41<br />
17
profanas. Como a observação demonstra, a experiência do cotidiano brasileiro revela que, a cada<br />
instante, os diversos poderes (políticos, militares, eclesiásticos, etc.) são confrontados com<br />
pequenas transgressões cujo princípio parece ser o carpe diem, seguindo uma tendência segundo<br />
a qual o válido é simplificar a vida, é fazer da vida um fluxo contínuo, sem as interrupções e os<br />
controles dos poderes, que fazem da vida um fardo. Ora, isso não significa um social sem poder,<br />
sem leis, mas uma socialidade, em suas expressões cotidianas, marcada pela diversidade, pela<br />
mudança, pela adaptação, pela improvisação criativa. Aspectos engendrados pelas práticas dos<br />
próprios indivíduos que, pelo uso das brechas, dos interstícios, das máscaras, etc., tentam atenuar<br />
a força da sujeição cotidiana aos diversos tribunais sufocantes.<br />
É nessa sociedade fortemente motivada a estabelecer relações entre opostos, pontes entre<br />
extremos, e em que os indivíduos buscam escapar aos controles sociais através da liberdade<br />
(ainda que precária) dos interstícios, que o "jeitinho" tem lugar como um modo de agir<br />
intimamente ligado ao estilo do corpo social brasileiro. Erradamente, um bom número de<br />
intérpretes nacionais fizeram do "jeitinho" algo unicamente da ordem da deformação moral e da<br />
corrupção política, sem nada acrescentar a isso. Essa interpretação teórica – ainda que difundida:<br />
o discurso intelectual não cansa de se referir ao "jeitinho brasileiro" com desprezo – afasta-se do<br />
que o próprio senso comum entende ser o "jeitinho": para este, muito mais um savoir-faire<br />
brasileiro aplicável a diversas situações sociais, nada tendo de intrínseco que o torne sinônimo de<br />
"desonestidade", "malandragem". É esse fato que tornou possível ao antropólogo Roberto<br />
DaMatta definir o "jeitinho" como "um modo, uma maneira, um estilo de navegação social". 23 O<br />
que os próprios brasileiros chamam de "jeitinho" não pode ser visto como unicamente a prática<br />
que instaura a corrupção política e que obstrue a via da lei, favorecendo privilégios a ricos e<br />
poderosos – sem dúvida nenhuma um dos efeitos perversos do "jeitinho", mas sem a marca da<br />
exclusividade brasileira, como querem alguns. O que os brasileiros entendem e praticam como<br />
"jeitinho" é toda uma maneira de ser, uma predisposição a fazer, um estado de espírito que se faz<br />
presente em todos os brasileiros, de todas as camadas sociais, fazendo parte da vida comum como<br />
atitudes, gestos, insights, etc. É verdadeiro que a mesma tradição teórica que condenou as<br />
23 Cf. DaMatta, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro, Rocco, 1989, pp. 94 – 105<br />
18
mestiçagens ao lugar de uma anomalia cultural condenou também o "jeitinho" ao estatuto de uma<br />
patologia social que infecta o sistema das instituições políticas brasileiras. Daí as tantas boutades<br />
no discurso dos intelectuais críticos universitários que definem o Brasil como "república de<br />
bananas" e que não cansam de repetir, com o charme de esquerda, "este não é um país sério".<br />
Modos de representar a sociedade brasileira que somente ajudam a perpetuar a baixa auto-estima<br />
que nos legou o colonizador europeu (nas suas diversas versões) com seu julgamento<br />
preconceituoso e racista do homem mestiço nacional e de nossas mestiçagens.<br />
O certo é que, se penetramos o sentido profundo de todas as representações depreciativas<br />
que cercam as mestiçagens, veremos que aquilo que é latente no discurso das nossas elites e dos<br />
diversos poderes sociais do país é o temor de uma socialidade apoiada em práticas que escapam a<br />
todo o controle – cuja manifestação encontra nisso que venho chamando de mestiçagens sua<br />
expressão maior. São estas a metáfora maior do campo social brasileiro. Enquanto dispositivo<br />
que alimenta a circulação de pessoas, de corpos, de imagens, de idéias, de valores, de práticas e<br />
de regras, as mestiçagens provocam suspeita, desconfiança, temor.<br />
Assim, mesmo se aqueles que pertecem às elites e aqueles que ocupam funções de poder<br />
tentam integrar o social brasileiro ao modelo da separação, do controle, da homogeneidade, as<br />
mestiçagens transformam a socialidade cotidiana em espaço de diversidade, de pluralidade, e em<br />
que se recusa toda dicotomia purista e moralista. Tudo funciona como se na cultura brasileira um<br />
dispositivo inconsciente trabalhasse contra toda separação, disjunção<br />
Se é verdadeiro que a sociedade brasileira conserva uma parte de suas características<br />
como cultura apoiando-se em ambigüidades que tentam conjugar desigualdades e violências, e<br />
mesmo estruturas autoritárias, não é menos certo, por isso, que ela não faça conhecer aos que<br />
nela vivem a experiência de códigos de flexibilização das normas, princípios, conceitos, etc.<br />
Assim, graças a esse seu traço, a sociedade brasileira tem sido descrita como tolerante, versátil,<br />
maleável, heteróclita – ainda os diversos sentidos que isso possa adquirir na vida cotidiana.<br />
19
Quando diferentes autores assinalaram esse traço da cultura brasileira, não o fizeram por<br />
capricho intelectual, eles tinham boas razões para o fazer. Nos termos de Gilberto Freyre,<br />
tratando das atitutes religiosas que aqui nasceram: sociedade em que se verificou "uma profunda<br />
confraternização de valores e de sentimentos" 24 ; tratando dos modos da língua: "a linguagem em<br />
geral, a fala séria, solene, da gente grande, toda ela sofreu no Brasil, ao contato do senhor com<br />
o escravo, um amolecimento de resultados às vezes deliciosos para o ouvido." 25 À língua "dura"<br />
do colonizador, opõe-se a língua que surgiu no Brasil: "um português gordo, descansado" 26 – no<br />
mesmo tema, outras metáforas do autor: às "sílabas ásperas" da língua do colonizador, "uma<br />
brandura oleosa". Ou como escreveu Jacques Lambert, uma sociedade em que "o tato é uma<br />
virtude" 27 , ou ainda, como a descreve Roger Bastide, uma sociedade com a "doçura da<br />
civilização do açucar (...), pois sua história, seu gênero de vida, sua cozinha, sua estrutura<br />
social, estão impregnados do odor das canas recém-cortadas, da doçura do açucar e do perfume<br />
da cachaça." 28 E, finalmente, como a define Roberto DaMatta:"a sociedade brasileira é<br />
relacional. Um sistema onde o básico, o valor fundamental, é relacionar, misturar, juntar,<br />
confundir, conciliar. Ficar no meio, descobrir a mediação e estabelecer a gradação, ... Digo<br />
mesmo que é seu traço distintivo em oposição a outros sistemas, sobretudo os que informam os<br />
valores das nações protestantes, como os Estados Unidos. Assim, nos Estados Unidos há<br />
exclusão e separação; no Brasil, há junção e hierarquização." 29 Talvez a hierarquização nas<br />
relaçõe sociais brasileiras confunda os intérpretes que a tomam por separação, segregação,<br />
quando se trata mais de, conservando as diferenças e hierarquizando-as, misturá-las. Ainda nos<br />
termos de R. DaMatta, "num caso o credo diz: iguais, mas separados; noutro ele decreta:<br />
diferentes, mas juntos."<br />
24 Cf. Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1990, p. 355<br />
25 Cf. Freyre, Gilberto. Casa-Grande...., op. cit., p. 332<br />
26 Cf. Freyre, Gilberto. Casa-Grande..., op. cit., p. 332<br />
27 Cf. Lambert, Jacques. Os dois Brasis. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976, p. 95 (Brasiliana)<br />
28 Cf. Bastide, Roger. Brasil: terra de contrastes. São Paulo, Difel, 1975, p. 52<br />
29 Cf. DaMatta, Roberto. A casa & a rua. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987, p. 117<br />
20
3. Para uma arqueologia de representações depreciativas das mestiçagens e do mestiço no<br />
Brasil, ou o mal-estar das elites brasileiras relativamente à sua própria cultura<br />
Temos mostrado aqui que as práticas de mestiçagens no Brasil, mesmo fazendo parte da<br />
alma de todo um povo – e isso se mantém por si, que se queira ou não -, sempre foram também<br />
objeto de diversas representações depreciativas e continuam a ser objeto de interpretações<br />
teóricas desconfiadas e pessimistas. Ainda que se trate de país inteiramente mestiço, reconhecer a<br />
cultura brasileira como uma cultura de mestiçagens, e não ter nisso nenhum motivo de vergonha<br />
ou de pessimismo, não se trata, de qualquer modo, de alguma coisa da ordem do consenso entre<br />
intérpretes brasileiros. Já assinalamos que toda uma tradição teórica de interpretação da cultura<br />
brasileira condenou as nossas mestiçagens ao lugar da anomalia pura e simples.<br />
Ao longo de toda a história do país, as mestiçagens sempre foram objeto de diversos<br />
estigmas. E mesmo que o tema da miscigenação étnica não concirna ao nosso assunto senão de<br />
maneira lateral, convém assinalar que os estigmas contra as práticas de mestiçagens na cultura<br />
brasileira sempre estiveram acompanhados da denegação do indivíduo mestiço e das misturas<br />
étnicas. Pode-se dizer que os preconceitos relativamente às mestiçagens têm um fundo de<br />
racismo e este nem sempre se expressa veladamente. E se ontem atribuía-se à miscigenação<br />
étnica a saúde instável do brasileiro, os atrasos no crescimento, a apatia, sem que se pensasse em<br />
outras causas (econômicas, sociais, etc.), hoje atribuí-se às práticas de mestiçagens a causa dos<br />
ditos "males históricos" que atingiriam a sociedade brasileira. O país onde "se mistura tudo" é<br />
também visto como "o país que vive na desordem, na instabilidade", na "falta de identidade<br />
política".<br />
O ponto de interesse aqui é utilizar consistentemente o recurso de uma re-significação do<br />
termo arqueologia (como o fez, por exemplo, Michel Foucautl) para demonstrar que as<br />
representações depreciativas das nossas mestiçagens são, no fundo, a longa memória do discurso<br />
colonizador no inconsciente coletivo brasileiro. Mesmo se em algumas de suas expressões fortes<br />
tenha sido refeito, o discurso colonizador – compondo-se do discurso do administrador colonial,<br />
21
do missionário cristão, do viajante – reaparece ainda e sempre na maneira como nossas elites e<br />
intelectuais encaram nossas mestiçagens.<br />
Não obstante a raiz histórica das nossas mestiçagens e não obstante as evidências de sua<br />
presença na vida cotidiana como um fator de estruturação da socialidade brasileira, no Brasil,<br />
desde o período colonial, produziu-se um discurso antimestiçagem em diferentes versões. Um<br />
discurso que deu origem a um desprezo e a um ódio elitistas e racistas anti-povo - fato que<br />
poderia ser ilustrado com o caso do homem mameluco, com efeito, o primeiro brasileiro. Um ser<br />
que, submetido ao desprezo pela sua condição mestiça (nem indígena nem europeu, desprezado<br />
pelos índios e pelos portugueses), antecipa com sua história aquela que seria a história daqueles a<br />
quem nossas elites distinguem como "povo".<br />
O que se disse sobre a sociedade brasileira e sobre o brasileiro nos momentos fundadores?<br />
Os exemplos poderiam se multiplicar mas, considerando a natureza deste escrito, que se tenha,<br />
por agora, uma pequena mostra do que chamei de discurso colonizador.<br />
O gosto de certos autores brasileiros pelo tema da incapacidade brasileira para a "ordem",<br />
para a "hierarquia", ao que parece, é eco do discurso do colonizador quando diz: "A língua que se<br />
fala ao longo de toda a costa é a mesma (...) Faltam três letras, a saber: o F, o L e o R, coisa<br />
estranha, eles não têm nem Fé, nem Lei, nem Rei, e vivem assim sem ordem, sem peso nem<br />
medida, e sem contar." 30 O jesuíta está falando de nossa cultura primitiva, nossos indígenas.<br />
Como se sabe, esse olhar depreciativo sobre os nossos indígenas foi a tônica do discurso dos<br />
missionários cristãos em terras brasileiras. Missionários, católicos e protestantes, sempre<br />
representaram a cultura do primitivo brasileiro como "bárbara", "grosseira", cultura a "civilizar" e<br />
a "evangelizar" – para os cristãos europeus, nossos indígenas não tinham "nem lei, nem culto",<br />
tornando-se "fácil adotar as nossas". 31<br />
30<br />
Cf. Gândavo, Pero de Magalhães de. Histoire de la province de Santa Cruz que nous nommons le Brésil, Nantes,<br />
Le Passeur, 1995, p. 90<br />
31<br />
Cf. Gândavo, Pero de Magalhães de. Histoire de...., op. cit., p. 111<br />
22
Passado algum tempo do choque do encontro com os indígenas, o europeu-colonizador<br />
demonstrava seu etnocentrismo julgando assim a sociedade brasileira nascente:<br />
Quando se trata da mesa e do comer: "A ceia constava na usual quantidade de pratos,<br />
colocados sem ordem na mesa." E algumas páginas adiante: "Foi oferecida uma profusão de<br />
iguarias. (...) Nenhuma espécie de ordem é observada." 32 Ou ainda, outro viajante: "Todos os<br />
pratos foram misturados e tocados por todas as mãos" 33 . Às vezes o viajante-colonizador é mais<br />
explícito em seus preconceitos: "tudo o que tem vida e substância é tomado e cozido no interior<br />
do Brasil , ou nas cidades, sem que se tenha a menor atenção às distinções levíticas entre o<br />
limpo e o sujo". 34<br />
Mais ainda: "A delicada dona de casa não tem vergonha de se acocorar no chão para<br />
atirar boas porções do seu alimento preferido, o feijão preto, e sua inocência primitiva chega ao<br />
ponto dela se servir de seus dedos delicados como se fossem faca e garfo e a mão como se fora<br />
colher. Na Bahia as senhoras (...) tem a particular delicadeza de servir o honrado hóspede<br />
diretamente na boca, como se elas quisessem engordar gansos..." 35<br />
O estar junto, nossas misturas!, foi assim representado pelos viajantes estrangeiros, que<br />
nos viram com desprezo: "as cenas, as mais ridículos, têm lugar nas fontes. Gente tagarela,<br />
empurrando roladeiras em direção as fontes, fazem pensar numa pocilga em que porcos<br />
grunhem e em que se comprimem mutuamente, na angústia de morder cada um sua ração." 36<br />
A amabilidade do hóspede brasileiro é assim representada: "A hospitalidade dos<br />
brasileiros salientava-se cada vez mais ao passo que penetrávamos no interior (...). Verifiquei<br />
32 Cf. Koster, Henry. Viagem ao Nordeste do Brasil. Recife, SEC, 1978, pp. 209, 211<br />
33 Cf. Seidler, Carl. Dez anos no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, p. 153<br />
34 Cf. Ewbank, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1976, p. 106<br />
35 Cf. Seidler, Carl. Dez anos..., op. cit., p. 73<br />
36 CF. Ewbank, Thomas. Vida..., op. cit., p. 156<br />
23
então a verdade da frase russa que 'os povos civilizados são menos hospitaleiros do que os povos<br />
atrasados' " 37<br />
O viajante-colonizador critica as mulheres brasileiras, estas não são, como as européias!,<br />
discretas, reservadas. As mulheres brasileiras que aparecem nos primeiros relatos do<br />
administrador colonial e nos diários de nossos viajantes são grosseiras, mal-educadas. "Certos<br />
assuntos de conversa não seriam tolerados em uma sociedade como a Inglaterra. A educação<br />
das mulheres é descuidada (...), as mulheres ..., em geral, não são reservadas." 38<br />
Ainda de nossas misturas, o comentário da inglesa Maria Graham, a preceptora da<br />
princesa Maria da Glória, soa metafórico: "A rua pela qual entramos através do portão do<br />
arsenal ocupa aqui a largura de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o<br />
lugar mais sujo em que eu tenha estado. (...) Nos espaços que deixam livre, ao longo da parede,<br />
estão vendedores de frutas, de salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e doces, negros<br />
trançando chapéus ou tapetes, cadeiras ..., cães, porcos e aves domésticas, sem separação nem<br />
distinção..." 39<br />
Nossos viajantes colonizadores têm no espírito uma idéia fixa: a elegância pertence ao<br />
mundo do colonizador. A única maneira de obter um certo ar refinado é adotar o estilo europeu –<br />
nossa viajante é etnocêntrico. Vejamos mais uma vez as palavras da inglesa Maria Graham: "O ar<br />
e as maneiras da família que visitamos, ainda que não fossem ingleses nem franceses, eram de<br />
perfeita educação, e os vestidos mais belos que da Europa civilizada, com a diferença que os<br />
homens usavam jaquetas de algodão em vez de casacos de casimira e estavam sem colarinho.<br />
Quando saem, porém, vestem-se como os ingleses." 40<br />
Mesmo o amor não existe em terras mestiças como nas terras do colonizador. Ainda um<br />
pouco das opiniões de nossa preceptora: "Na verdade, talvez não tenha havido até agora<br />
37 Cf. Freireyss, G.W., Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1982, p. 50<br />
38 Cf. Koster, Henry. Viagem..., op. cit., p. 191.<br />
39 Cf. Graham, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1990, p. 165<br />
40 Cf. Graham, Maria. Diário..., op. cit., p. 159<br />
24
efinamento bastante para florescer o delicado e metafísico amor da Europa, que, por ser mais<br />
racional e mais nobre que todos os outros, é menos facilmente desviado para outros canais.<br />
Grandison ou Clarissa não poderiam ser escritos aqui." 41<br />
Avaliações gerais como esta que se encontra no francês Saint-Hilaire revelam o sentido<br />
do projeto colonizador: "Um povo sem religião, que passa a maior parte da vida na ociosidade,<br />
poderá ter poucas necessidades, mas não será menos corrompido e sua simplicidade de costumes<br />
não será mais que ignorância e rudeza. Introduzir o luxo dentre um povo ingênuo é perdê-lo.<br />
Quando um povo se caracteriza pela brutalidade e corrupção de costumes, a ponto de ter<br />
perdido a tradição do bem e os elementos de uma regeneração moral, o luxo pode trazê-lo à<br />
civilização." 42<br />
O nosso hóspede-colonizador não esconde seu pensamento. No século XIX, o francês<br />
Louis Agassiz oferece sua ciência racista: "Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura<br />
de raças, e se inclina, por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as<br />
separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças,<br />
mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as<br />
melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido,<br />
deficiente em energia física e mental." 43 O viajante estrangeiro que visitou nossas terras<br />
condenou a escravidão não pelo uso de homens como escravos, mas porque a escravidão,<br />
misturando diversas "raças", favoreceu a miscigenação étnica e seus maus frutos: "Uma grande<br />
desvantagem resulta, pois, da escravidão e seria para desejar que nunca fosse introduzida no<br />
Brasil. Os mulatos aumentam cada dia e tomo a liberdade de exarar aqui algumas observações a<br />
respeito. Pessoas defeituosas e fracas são, as mais das vezes, falsas, desconfiadas e vingativas e<br />
mais propensas a vícios do que o homem bem conformado." 44<br />
41<br />
Cf. Graham, Maria. Diário..., op. cit., p. 365<br />
42<br />
Cf. Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1974,<br />
p.111<br />
43<br />
Cf. Agassiz, Louis. apud DaMatta, Roberto. O que faz..., op. cit., p. 40<br />
44<br />
Cf. Freireyss, G. W. Viagem ao..., op. cit., pp. 50,52<br />
25
Por sua vez, o intérprete brasileiro, acreditando nas "fontes históricas" do passado,<br />
assim escreveu. Abelardo Romero, em seu Origem da Imoralidade no Brasil: "O Brasil<br />
degradou-se com o negro". Os escravos negros "contribuíram ainda mais do que os índios para a<br />
mancebia e a prostituição". E: "... pior que os males físicos trazidos pelos negros, alguns deles<br />
letais, era a influência maléfica da escravidão, e mais ainda da promiscuidade com que se<br />
exercia, sobre o doce mas frágil caráter nacional." 45 Paulo Prado: "Na terra virgem tudo incitava<br />
ao culto do vício sexual. (...) Desses excessos de vida sensual ficaram traços indeléveis no<br />
caráter brasileiro. (...) Os fenômenos de esgotamento não se limitam às funções sensoriais e<br />
vegetativas; extendem-se até o domínio da inteligência e do sentimentos. Produzem no<br />
organismo perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga, que<br />
facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio. Do enfraquecimento da energia<br />
psíquica, da ausência ou diminuição da atividade mental um dos resultados característicos nos<br />
homens e nas coletividades é sem dúvida o desenvolvimento da propensão melancólica. (...) No<br />
Brasil, a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviada para as perversões eróticas,<br />
e de um fundo acentuadamente atávico." 46<br />
No que crê o intérprete brasileiro?: Ainda A. Romero: "Ao contrário dos Estados Unidos,<br />
colonizados por famílias que para a colônia inglesa da América já levava instrumentos de<br />
trabalho, cultura, civilidade, sólidos princípios morais, o Brasil foi colonizado, na expressão de<br />
Gonçalves Dias, pelo rebute de Portugal. Nossos colonos eram, na sua quase totalidade,<br />
solteiros, indolentes e devassos. (...) Além de não trabalhar, nosso colono amancebou-se, a<br />
princípio, com a índia e, mais tarde, com a negra, constituindo-se a família, entre nós, sem base<br />
moral." 47<br />
45 Cf. Romero, Abelardo. Origem..., op. cit., pp. 179, 160<br />
46 Cf. Prado, Paulo. Retrato..., op. cit., pp. 121, 122<br />
47 Cf. Romero, Abelardo. Origem..., op. cit., p. 173<br />
26
Os que lêem sobre história do Brasil sabem o quanto o fato se integra ao imaginário dos<br />
intelectuais do país como um mau augúrio coletivo. Conhecem o quanto funciona o mito<br />
preconceituoso segundo o qual fomos colonizados por degredados, delinqüentes, marginais, etc.<br />
Para quase todos os intérpretes do Brasil, de ontem e de hoje, uma população que nasce da<br />
mistura de delinqüentes deportados e selvagens que ignoram as instituições dos homens de"fé e<br />
razão" não poderia ser outra coisa senão uma massa que se compraz na vida desregrada. O mito<br />
fez estragos na cabeça de nossos historiadores e ele permanece lá como um fantasma de nossas<br />
elites a procura de "origens nobres", "ancestrais de estirpe elevada". Ora, poucos se perguntaram<br />
até aqui pelos "crimes" de personagens como aquele que aparece na carta de Caminha – "mandou<br />
o Capitão àquele degredado Afonso Ribeiro" 48 . O que é ser "culpado" numa sociedade autoritária<br />
que condenava facilmente todos aqueles que se "suspeitava" e "acusava" de "sodomia",<br />
"bigamia", "feitiçaria", "heresia"? Que se veja o texto de Pieroni Geraldo, Os excluídos do<br />
reino. 49 Sabe-se também que esses deportados "serão os mais ferrenhos opositores dos jesuítas e<br />
dos funcionários reais, rebeldes a todo retorno ao controle da metrópole. Suas atitutes políticas,<br />
psicológica ou religiosa serão sempre marcadas pela ambivalência. Não era raro constatar que<br />
um desses homens pudesse ir a igreja no domingo e, saindo, ir a uma festa chamânica sem que<br />
isso lhe causasse problema particular. Para cada um deles, os dois universos se completam e<br />
não se contradizem." 50<br />
Muito antes de todos, Capistrano de Abreu lançava o desânimo na interpretação da cultura<br />
brasileira. O colonizador português não pôde resistir ao meio e foi mais influenciado por este que<br />
exerceu influência. Tornou-se "moralmente um mestiço". Vejamos: "Para resumir tudo em uma<br />
palavra: dentro de poucos anos um homem nestas condições ficava moralmente um mestiço. É<br />
claro que nesta mestiçagem moral devia haver diferentes gradações." 51 Ou, como mais adiante,<br />
assim escreve: "A anarquia sobreveio naturalmente, pela volatilização dos instintos sociais dos<br />
48<br />
Cf. Carta de Pero Vaz de Caminha..., in Guedes, Max Justo. O Descobrimento do Brasil. Lisboa, Vega, 1989, p.<br />
133<br />
49<br />
Cf. Pieroni, Geraldo. Os excluídos do reino. Brasília: EdUNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000<br />
50<br />
Cf. Laborie, Jean-Claude. La mission jesuite du Brésil: lettres & documents. Paris, Éditions Chandeigne,<br />
1998, p. 33<br />
51<br />
Cf. Abreu, Capistrano de. O descobrimento do Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p.49<br />
27
imigrados, e pela atração da massa de selvajaria alastrando por todas as regiões acessíveis. As<br />
relações com as cunhãs, de que logo nasceram filhos chamados mamelucos; a presença e ajuda<br />
em guerras de umas tribos contra outras; a assistência aos festins antropófagos marcam o<br />
processo regressivo dos colonos." 52<br />
Em Sérgio Buarque de Holanda o tom é o mesmo. Linhas atrás já fornecemos ao leitor<br />
alguns exemplos. Apresentamos mais um. Conforme o autor, entre os exemplos que se pode dar<br />
da tendência às misturas na cultura brasileira, o da mistura de classes explicaria muitos de nossos<br />
hábitos propensos a criar intimidade entre estranhos. Como observa: "Compreende-se, assim, que<br />
já fosse exíguo o sentimento de distância entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora<br />
constituída de homens de cor. (...) Com freqüência as suas relações com os donos oscilavam da<br />
situação de dependentes para de protegido, e até de solidário a afim. Sua influência penetrava<br />
sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer idéia de separação de<br />
castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação." 53 Qual de nossos hábitos<br />
revela essa dissolução de toda distinção de classe (e de raça?, como quer nosso autor) no caráter<br />
nacional?: "Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da<br />
polidez. (...) A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra<br />
geral, no desejo de estabelecer intimidade. (...) A terminação 'inho', aposto às palavras, serve<br />
para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar<br />
relevo. (...) À mesma ordem de manifestações pertence certamente a tendência para a omissão do<br />
nome de família no tratamento social. Em regra é o nome individual, de batismo, que prevalece.<br />
Essa tendência, que entre os portugueses resulta de uma tradição com velhas raízes ... acentuouse<br />
estranhamente entre nós." 54<br />
Todos conhecemos o quanto essas teses fizeram escola no Brasil. Ainda hoje se repete<br />
todas essas coisas que se disse do país e sua gente. Inspiração de toda uma tradição teórica, como<br />
vimos, essas são visões da sociedade brasileira e do brasileiro que os intelectuais do país não<br />
52 Cf. Abreu, Capistrano de. O descobrimemnto..., op. cit., p. 198.<br />
53 Cf. Holanda, Sérgio B. de. Raízes..., op. cit., p. 24<br />
54 Cf. Holanda, Sérgio B. de. Raízes...; op. cit., pp. 107, 108, 109<br />
28
cessam de retomar. Nossas mestiçagens são, por bom número desses intelectuais, vistas como o<br />
fator que teria mergulhado a sociedade brasileira no dilema de construção de suas instituições,<br />
dividida que estaria entre o modelo de uma sociedade "racional", "moderna", "civilizada", "séria"<br />
– "a esfera pública bem separada da esfera privada" - e o modelo de nossas misturas "insensatas",<br />
"arcaicas", "grosseiras", "irracionais", "atrasadas", um dilema do qual a sociedade brasileira ainda<br />
não teria saído. Tanto o intérprete nacional como também o estrangeiro acreditam que esse<br />
dilema estaria bem representado no homem macunaímico de Mário de Andrade ("arquétipo do<br />
brasileiro e do latino-americano, dividido entre duas escolhas antagônicas – o Brasil ou bem a<br />
Europa" 55 ). Ora, o que se chama de "dilema brasileiro" não é senão a versão intelectual do<br />
mal-estar das elites brasileiras em sua relação com as mestiçagens. No espírito geral das<br />
mestiçagens, na identificação da maioria dos brasileiros com os hábitos de mestiçagens, não há<br />
divisão "entre duas escolhas antagônicas". Como vimos, nossa tendência cultural predominante é<br />
ligar, é fazer pontes, é juntar extremos, opostos. No ambiente brasileiro, como bem o demonstra<br />
R. DaMatta, predomina o "&" que tudo liga. A problemática do "entre dois", do "estar dividido"<br />
entre escolhas "inconciliáveis", do "não saber juntar", etc. encontra-se alhures, em outras<br />
paragens... Assim, poderíamos dizer, o homem de Mário de Andrade não é o arquétipo do<br />
brasileiro mas bem o drama das elites do país.<br />
Como assinalamos antes, nossas elites vivem o desconforto de pertencerem a uma cultura<br />
que não se ergueu à imagem e semelhança da cultura da metrópole colonizadora. Elas vivem o<br />
mal-estar de serem mestiças e de pertencerem a uma cultura de mestiçagens. Gostariam de ter no<br />
país "as instituições fortes dos povos do Norte" (era o lamento e a esperança de Sérgio B.<br />
Holanda) e se sabe do desconforto na alma das nossas elites de ter que se reconhecer na revelação<br />
de Gilberto Freyre: "todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na<br />
alma e no corpo - ... -, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro" 56<br />
As revistas atestam nossa tese: "Sabe-se hoje que mais de 60% dos que se jugam 'brancos'<br />
têm sangue índio ou negro correndo nas veias. O problema está no fato de que essa mestiçagem<br />
55 C. Gruzinski, Serge. La pensée..., op. cit., p. 20<br />
56 Cf. Freyre, Gilberto. Casa-Grande..., op. cit., p. 283<br />
29
influi na maneira como a população se enxerga. Pelo tipo de beleza loura exibida em novelas da<br />
televisão, anúncios publicitários e passarelas da moda, o Brasil, ou a elite brasileira, parece<br />
envergonhar-se de sua mestiçagem. Sem dizê-lo explicitamente, anuncia uma suspeita aspiração<br />
nórdica." (Veja, 20/12/00, 103)<br />
É que os mitos que nos fundaram são também espectros que nos perseguem. Pergunta-se<br />
ainda se o Brasil é viável e se o povo do país é capaz. Não é raro ouvir brasileiros de todas as<br />
camadas sociais e níveis intelectuais pronunciarem ditos sobre o país e o povo para acusar uma<br />
inferioridade ou uma incapacidade supostamente inatas. Não tivemos nós uma previsão como a<br />
que fez Gobineau, o consul da França no Brasil, no tempo do Imperador Pedro II (1831-1889)?:<br />
conforme decretou o consul, o Brasil não chegaria a duzentos anos, desapareceria como povo por<br />
causa da mistura insensata das raças. 57<br />
E é assim. A vergonha e a reprovação das mestiçagens fazem também nascer verdadeiras<br />
lendas. Ainda hoje, entre nós, uma idéia continua a eletrizar certos intelectuais e certos dirigentes<br />
políticos. Conta-se que o presidente francês Charles De Gaulle teria dito a propósito do Brasil:<br />
"este não é um país sério!". Uma anedota? Uma fábula? Não é novidade, o Brasil esteve sempre<br />
confrontado com esse tipo de questão. O imenso espaço da "América tropical" de outro tempo,<br />
através de vozes como a de autores tais que Buffon, De Paw, Agassiz, Gobineau e mesmo figuras<br />
como Kant e Hegel, entre outros 58 , esteve mil vezes submetido à questão de saber se a natureza<br />
aqui era apropriada à vida e se os seres da região, uma vez que <strong>mestiços</strong>, seres híbridos, eram<br />
criaturas viáveis, capazes. No século XVIII, o naturalista francês George Louis Leclerc, o conde<br />
de Buffon, escreveu: a natureza no Novo Mundo "produzirá unicamente seres húmidos, plantas,<br />
répteis, insetos, e não poderá nutrir senão homens frios e animais débeis". 59 E sobre o homem do<br />
continente que ele jamais pôs os pés, coisa comum nos pensadores da época!, o conde escreveu:<br />
"o selvagem é frio e tem o órgão sexual pequeno; ele não tem pêlo nem barba, nem ardor pela<br />
57<br />
Cf. DaMatta, Roberto. O que faz..., op. cit., p. 39<br />
58<br />
Cf. Gerbi, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica (1750 – 1900). São Paulo, Companhia das Letras,<br />
1996<br />
59<br />
Cf. Buffon, G. Œuvres philosophiques. Paris, PUF, 1954, p. 380<br />
30
fêmea; ainda que mais leve que o Europeu, porque ele tem mais hábito de correr, ele é,<br />
entretanto, menos forte de corpo; ele é também menos sensível, ..." 60<br />
Mesmo na segunda metade do século XX ainda se discutia, nos ensaios de interpretação<br />
da cultura brasileira, a inferioridade do brasileiro e a viabilidade do Brasil. Assim como o<br />
colonizador foi de um lado a outro das representações sobre a nova terra e seu povo – de paraíso<br />
a inferno ou de um povo inocente e bom à idéia de uma povo incapaz e incorrigível -, ainda hoje<br />
os poderes, as elites brasileiras e nossos intelectuais se dividem entre essas mesmas<br />
representações, e de uma maneira, nós diremos, trágica. A idéia de um país de uma bela natureza<br />
mas de um povo não viável permanece na memória coletiva brasileira, atualizada pelos discursos<br />
e pelas práticas dos diversos poderes sociais, das nossas elites e de bom número de intelectuais. A<br />
reprovação das mestiçagens cotidianas soa como metáfora de tudo isso.<br />
O mundo das idéias, no Brasil, parece jamais ter escutado a palavra de um autor como<br />
Manoel Bomfim que, em 1903, em Paris, escrevendo sua obra A América Latina: males de<br />
origem, observou: "esse juízo universal, condenatório, a nosso respeito se reflete de um modo<br />
perniciosíssimo sobre nós mesmos. <strong>Somos</strong> a criança a quem se repete continuamente: 'não<br />
prestas para nada; nunca serás nada...', e que acabará aceitando esta opinião, conformando-se<br />
com ela, desmoralizando-se, perdendo todos os estímulos". 61<br />
Os intelectuais do país parecem jamais ter entendido as palavras de Gilberto Freyre,<br />
quando diz: "os que lamentam não sermos puros de raça nem o Brasil região de clima temperado<br />
o que logo descobrem naquela miséria e naquela inércia é o resultado dos coitos para sempre<br />
danados, de brancos com pretas, de portugas com índias. É da raça a inércia ou a indolência.<br />
Ou então é do clima, que só serve para o negro. E sentencia-se de morte o brasileiro porque é<br />
mestiço e o Brasil porque está em grande parte em zona de clima quente." 62<br />
60 C. Buffon, G. Oeuvres..., op. cit., p. 381<br />
61 Cf. Bomfim, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro, TopBooks, 1993, p. 43<br />
62 Cf. Freyre, Gilberto. Casa-Grande..., op. cit., pp. 34,35<br />
31
Ou as palavras de Darcy Ribeiro: "Não somos e ninguém nos toma como extensões de<br />
branquitudes, dessas que se acham a forma mais normal de se ser humano. Nós não. Temos<br />
outras pautas e outros modos tomados de mais gentes. O que, é bom lembrar, não nos faz mais<br />
pobres, mas mais ricos de humanidades, quer dizer, mais humanos. Essa singularidade bizarra<br />
esteve mil vezes ameaçada, mas afortunadamente coseguiu consolidar-se." 63<br />
Para nós, tratar-se-ia de produzirmos um outro olhar sobre a sociedade brasileira. Daí<br />
nossa interesse numa socioantropologia que sabe compreender o país real ao invés de negá-lo.<br />
Com efeito, nós nos encontramos aqui numa metáfora: o país real é a sociedade brasileira tal qual<br />
ela é. O reencontro com esse país nos obriga a mudar de perspectiva, de conceitos, etc., a refazer<br />
certos percursos teóricos e a inverter a direção habitual de nosso pensamento: são os dados do<br />
vivido humano que devem interessar.<br />
É absolutamente necessário mudar a maneira de compreender a sociedade brasileira. Não<br />
podemos mais continuar praticando um tipo de análise que se poderia chamar de sociologia<br />
colonizada. Esta sempre plena de culpa por não ter como objeto uma sociedade como aquela do<br />
sonho intelectual: sociedade racional, sensata, lógica, homogênea, etc. – uma sociedade<br />
imaginária que, no Brasil, alguns crêem que nós seríamos hoje caso nosso colonizador tivesse<br />
sido um outro. Sobrevivência da própria mentalidade colonialista que colonizou o imaginário<br />
brasileiro, mas que alguns, sem se darem conta, continuam a fazer de seu próprio discurso, ainda<br />
quando se trata de intelectuais que quase sempre reivindicam o caráter crítico de suas posições.<br />
Os mitos fundadores de nossa cultura nos fizeram crer que éramos o Paraíso. No Brasil,<br />
encontrava-se o Jardim das Delícias. Isso foi antes da descoberta e bem no início da colonização.<br />
Passados os primeiros anos, outros mitos se encarregaram de contar que aqui era purgatório e<br />
inferno. Os homens existentes no território eram criaturas do Diabo, e mesmo o nome do país era<br />
uma obra do Diabo – "Porque o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o poder que ele tinha<br />
sobre os homens, e temendo perder também aquele que tinha sobre esses dessa terra, ele<br />
trabalhou para que se esqueça o primeiro nome e para que não fique senão este de Brasil, [nome<br />
63 Cf. Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 73<br />
32
dado] por causa de um pau chamado assim graças a sua cor de brasa e vermelha com a qual se<br />
pintava tecidos..." 64 Nossa gênese é centrada na divisão entre Deus e o Diabo e, assim, centrada<br />
na ligação entre dois termos opostos. Já nos mitos começaram nossas misturas. E continuamos<br />
assim. Ligar o que se encontra separado por alguma circunstância é talvez a sobredeterminação<br />
de todas as nossas mestiçagens.<br />
Finalmente, contra todos aqueles que crêem que, por causa das práticas de junções,<br />
sincretismos, hibridismos, amálgamas, etc., a sociedade brasileira sofre de uma anomalia<br />
hereditária, diremos que, no Brasil, as mestiçagens, em sua força, fundam uma socialidade<br />
vigorosa, ainda todos os elementos trágicos que se encontram na vida brasileira – isso que, como<br />
Michel Maffesoli insiste em demonstrar em sua obra, é um dado antropológico do fato humano e,<br />
desse modo, nada de particularmente brasileiro.<br />
64<br />
Cf. Salvador, Vicente do. História do Brasil – 1500 - 1627. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP,<br />
1982, p. 57<br />
33
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representações depreciativas do mestiço e das mestiçagens na interpretação da cultura brasileira.<br />
In: Oscar Federico Bauchwitz. (Org.). Café Filosofico. 1 ed. Natal: Argos, 2001, v. 1, p. 11-53.<br />
ISBN: 8588302063.)<br />
35