18.04.2013 Views

O Rio de Gallé (Revista Wish Report) - Instituto Art Deco Brasil

O Rio de Gallé (Revista Wish Report) - Instituto Art Deco Brasil

O Rio de Gallé (Revista Wish Report) - Instituto Art Deco Brasil

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

FOTOS ARQUIVO PESSOAL<br />

Cobiçada por colecionadores internacionais, a série <strong>de</strong><br />

vasos <strong>de</strong> vidro com gravação a ácido – assinada pelo<br />

mestre vidreiro francês Émile <strong>Gallé</strong>, maior nome do<br />

estilo art nouveau –, que retrata o <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro do início<br />

<strong>de</strong> 1900, é exemplo <strong>de</strong> rara beleza e proeza técnica<br />

Nesta página, Émile <strong>Gallé</strong>, vaso <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, com vista do Corcovado, série <strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong>, c. 1904,<br />

vidro soprado e moldado, gravado a ácido fluorídrico, encamisado por betume da Judéia, 46cm<br />

<strong>de</strong> altura, coleção particular, Verona, Itália. Na página anterior, <strong>de</strong>talhes da mesma peça<br />

141<br />

coleção émile <strong>Gallé</strong><br />

O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Gallé</strong><br />

Por Márcio Alves Roiter


coleção émile <strong>Gallé</strong><br />

Émile <strong>Gallé</strong>, vaso <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro,<br />

formato col barque (colarinho canoa), com<br />

a Pedra da Gávea e o Pão <strong>de</strong> Açucar, série<br />

<strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong>, c. 1910, vidro soprado e moldado,<br />

gravado a ácido fluorídrico, encamisado por<br />

betume da Judéia, 33cm <strong>de</strong> altura, coleção<br />

particular, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro<br />

Principal figura da École <strong>de</strong> Nancy (grupo <strong>de</strong> arquitetos, artistas e artesãos<br />

que, ao redor <strong>de</strong> 1890, na capital da Lorena francesa, organizou-se e criou<br />

obras art nouveau <strong>de</strong> excepcional qualida<strong>de</strong>), Émile <strong>Gallé</strong> (1848-1904, Nancy,<br />

França) po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o principal mestre <strong>de</strong>sse estilo do final do<br />

século 19. Homem <strong>de</strong> múltiplos interesses, em sua curta vida (uma<br />

leucemia, causada pela manipulação <strong>de</strong> produtos perigosos, vitimou-o aos<br />

56 anos) <strong>Gallé</strong> produziu uma obra <strong>de</strong> fôlego. No início, foi ceramista, <strong>de</strong>pois<br />

marceneiro, mas, ao se tornar vidreiro, foi aclamado como um mestre, na<br />

Exposição <strong>de</strong> Paris 1900. Homem <strong>de</strong> excepcional talento, <strong>Gallé</strong> <strong>de</strong>senvolveu<br />

pesquisa aprofundada em Botânica, publicando diversos tratados, auxiliado<br />

pela estufa, com centenas <strong>de</strong> exemplares vegetais do mundo inteiro, que<br />

mantinha ao lado do ateliê, e on<strong>de</strong> se inspirava para a criação <strong>de</strong> louças,<br />

móveis e vidros que o consagraram (<strong>Gallé</strong> <strong>de</strong>corou vasos até com a cannabis<br />

sativa, vulgarmente <strong>de</strong>nominada maconha).<br />

Entre seus admiradores e clientes estavam Robert <strong>de</strong> Montesquiou, Marcel<br />

Proust, con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Greffuhle, Victor Hugo, os irmãos Goncourt, entre outros<br />

do tout Paris culto e chique. Até nossa princesa Isabel se correspon<strong>de</strong>u com<br />

ele! O mestre francês, humanitário e humanista <strong>de</strong> visão, foi um aliado na<br />

luta contra a escravidão, criando um vaso batizado Africana, com legendas<br />

antiescravatura. Teria começado aí o interesse pelo <strong>Rio</strong>?<br />

No entanto, uma coisa é certa: os maiores especialistas na obra <strong>de</strong> Émile<br />

<strong>Gallé</strong> ainda se surpreen<strong>de</strong>m com a existência da Coleção <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro,<br />

batizada <strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong>. Entre eles, o diretor do Museu do Petit Palais, Gilles<br />

Chazal, cuja coleção <strong>de</strong> art nouveau está entre as melhores do mundo, e que<br />

entrevistei em 2002, na inauguração da exposição Paris 1900, no Centro<br />

Cultural Banco do <strong>Brasil</strong> (CCBB), no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro.<br />

A fundadora e, por décadas, diretora do Museu da École <strong>de</strong> Nancy, Marie-<br />

Thérèse Charpentier, quando consultada, não soube precisar a data da produção<br />

dos vasos. Assim como o maior expert em <strong>Gallé</strong> na atualida<strong>de</strong>, François<br />

Le Tacon, também <strong>de</strong> Nancy, que a princípio julgava serem da segunda década<br />

do século 20. Depois <strong>de</strong> algumas cartas que trocamos, Le Tacon reviu sua<br />

posição e concordou comigo: os vasos são dos primeiros anos do século 20.<br />

Uma explicação para o <strong>de</strong>sconhecimento que cerca a série <strong>de</strong>dicada ao <strong>Rio</strong><br />

resi<strong>de</strong> na pequena quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> peças que saíram dos fornos da manufatura<br />

que <strong>Gallé</strong> mantinha em Nancy. Calculo que, no mundo inteiro, hoje,<br />

<strong>de</strong>vam existir cerca <strong>de</strong> 200 vasos, se tanto. Objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> franceses e<br />

estrangeiros que visitavam o <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro no início <strong>de</strong> 1900, eram vendidos<br />

nas principais joalherias da cida<strong>de</strong>, acondicionados em estojos <strong>de</strong> veludo<br />

e seda, sobretudo aqueles <strong>de</strong> pequenas dimensões – até mais caros do<br />

que os gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>vido à proeza técnica <strong>de</strong> gravação (a ácido fluorídrico,<br />

com encamisamento <strong>de</strong> betume da Judéia) <strong>de</strong> paisagens cariocas totalmente<br />

verossímeis, em pequena escala. Essa técnica ficou conhecida como<br />

“cameo” (<strong>de</strong> camafeu). Os vasos podiam variar entre 6cm e 60cm, com três,<br />

quatro, seis tons e semitons!<br />

Em mais <strong>de</strong> trinta anos <strong>de</strong> pesquisa, posso afirmar que a quase totalida<strong>de</strong> dos<br />

vasos encontrados proce<strong>de</strong> da França. Mesmo que o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> um dos<br />

maiores colecionadores dos <strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong>, Baby Monteiro <strong>de</strong> Carvalho, indique<br />

que a série <strong>de</strong> vasos esteve à venda no Pavilhão da França da Exposição do<br />

142


Centenário da In<strong>de</strong>pendência, em 1922, no <strong>Rio</strong> (hoje a Aca<strong>de</strong>mia <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong><br />

Letras), construído pela firma Monteiro Aranha (dos sócios Alberto Monteiro <strong>de</strong><br />

Carvalho, seu pai, e Olavo Egydio <strong>de</strong> Souza Aranha), e que são poucos os exemplares<br />

existentes na cida<strong>de</strong>. Entre as exceções, o presente <strong>de</strong> um padrinho <strong>de</strong><br />

casamento do médico Adayr Eiras <strong>de</strong> Araújo, em fins <strong>de</strong> 1920: um precioso<br />

vaso, <strong>de</strong> 10cm, em cinco cores, Pão <strong>de</strong> Açúcar <strong>de</strong> um lado, Corcovado <strong>de</strong><br />

outro, uma jóia <strong>de</strong> técnica e beleza, ainda conservado no estojo original!<br />

É importante frisar que, na obra em vidro <strong>de</strong> Émile <strong>Gallé</strong> encontramos diversas<br />

paisagens. Ora são vistas bem européias, das regiões <strong>de</strong> Lorena e Alsácia (as<br />

mais comuns), com lagos, pinheiros, olmos e plátanos, ora um tanto mais<br />

exóticas, como a vista do Lago <strong>de</strong> Como, on<strong>de</strong> se vê um pavão circulando<br />

numa balaustrada sobre o lago. Também a Catedral <strong>de</strong> Saint Nicolas-<strong>de</strong>-Port,<br />

a vinte minutos <strong>de</strong> Nancy, aparece ao longe em alguns vasos. A Catedral <strong>de</strong><br />

Notre-Dame, em vaso datado <strong>de</strong> 1914, é outra paisagem <strong>de</strong>scritiva da<br />

manufatura <strong>Gallé</strong>.<br />

Porém, nenhum <strong>de</strong>sses panoramas mereceu, ao lado da assinatura <strong>Gallé</strong>,<br />

sempre gravada em relevo, a inscrição do local, no caso a do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro,<br />

também gravada, como aparece na maioria dos vasos da série carioca. O <strong>Rio</strong><br />

<strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> Émile <strong>Gallé</strong> foi estudado em profundida<strong>de</strong> e minúcia. Três das<br />

mais conhecidas montanhas do <strong>Rio</strong> estão presentes, muitas vezes emolduradas<br />

pelas espécies mais comuns <strong>de</strong> plantas tropicais: agáveas, palmeiras,<br />

fícus. Em alguns vasos, a bruma revela o amanhecer, o sol a pino indica o<br />

meio-dia e uma rica gama <strong>de</strong> cor acentua o entar<strong>de</strong>cer em <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong><br />

semitons e técnica primorosos. O Corcovado, na forma original, pré-Cristo<br />

Re<strong>de</strong>ntor, a Enseada <strong>de</strong> Botafogo e a <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong>scrição do casario da<br />

recém-inaugurada urbanização da orla carioca, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca a torre<br />

gótica da Igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora da Imaculada Conceição, são temas da<br />

série. O Pão <strong>de</strong> Açúcar, talvez o mais conhecido cartão-postal da cida<strong>de</strong>, não<br />

exibe o teleférico (construído entre 1910 e 1912), é tão presente como o<br />

Corcovado, em geral envolvido pelo vôo <strong>de</strong> gaivotas (são famosos os pratos<br />

e vasos que <strong>Gallé</strong> <strong>de</strong>dicou a essas aves amantes <strong>de</strong> mar).<br />

Intrigante é o fato <strong>de</strong> uma das três montanhas-rochedos retratadas na<br />

coleção <strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong> ser a imponente Pedra da Gávea. É bom lembrar que em<br />

1900 não havia acesso fácil a essa região, se levarmos em conta o ponto <strong>de</strong><br />

vista do <strong>Gallé</strong> observador <strong>de</strong>sse grandioso elemento geográfico da paisagem<br />

carioca. Ela ora aparece como motivo principal, com a Praia <strong>de</strong> São Conrado<br />

sob os pés do rochedo, ora fazendo fundo para as vistas do Corcovado. Em<br />

alguns vasos notamos a indicação <strong>de</strong> pequenas construções, supostamente<br />

a pequena Igreja <strong>de</strong> São Conrado e a fazenda do século 19, hoje Villa Riso.<br />

Em outros temos a presença, em primeiro plano, do caminho roubado das<br />

pedras entre palmeiras, que viria a ser a Avenida Niemeyer.<br />

Mistério e beleza são fatores indispensáveis para atiçar a paixão <strong>de</strong> colecionadores<br />

e estudiosos. Não seria diferente com essa magnífica série do<br />

mestre vidreiro Émile <strong>Gallé</strong> sobre a Cida<strong>de</strong> Maravilhosa.<br />

Márcio Alves Roiter, carioca, é presi<strong>de</strong>nte do <strong>Instituto</strong> <strong>Art</strong> Déco <strong>Brasil</strong>, filiado ao ICADS (International Coalition of <strong>Art</strong><br />

Déco Societies). art<strong>de</strong>cobrasil.com<br />

145<br />

coleção émile <strong>Gallé</strong><br />

Émile <strong>Gallé</strong>, vaso <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro,<br />

formato balaústre, vista do Pão <strong>de</strong> Açucar,<br />

série <strong>Gallé</strong>-<strong>Rio</strong>, c. 1904, vidro soprado<br />

e moldado, gravado a ácido fluorídrico,<br />

encamisado por betume da Judéia, 36cm<br />

<strong>de</strong> altura, Coleção Márcio Alves Roiter,<br />

<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!