Casas da memória - Légua & meia
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manias do menino “era querer ver o sono, o exato milésimo de segundo em que adormecia,<br />
o traspasso <strong>da</strong> vigília ao sono” (IS, p. 925), pois trata-se de encontrar a raiz dos<br />
sonhos que são a própria infância, de surpreender na noite dos tempos a semente <strong>da</strong><br />
árvore do destino. O sonhador acresce à polissemia do étimo grego oikos (“casa, habitação,<br />
quarto, sala, templo, bens, família”) não apenas metrópolis (“habitação-útero,<br />
ci<strong>da</strong>de-matriz”), mas também métron e echo.<br />
Por um lado, o menino encontra no quarto – antes materno que paterno – a<br />
medi<strong>da</strong> que o resguar<strong>da</strong> dos ecos <strong>da</strong> guerra, dos fusos <strong>da</strong>s Parcas, <strong>da</strong> desmesura e dos<br />
desmandos do mundo; por outro, é ali que a criança pode medir-se conforme a estatura<br />
do cosmos, é ali que o infans percute os ecos <strong>da</strong> fala familiar para aprender a palavra,<br />
é ali a encruzilha<strong>da</strong> onde eclode o real, é ali que se realiza a travessia (em Homero,<br />
o verbo metreo significa “atravessar, cruzar”) do visível ao invisível, do ruído à música,<br />
<strong>da</strong> mãe (méter) desmedi<strong>da</strong> às medi<strong>da</strong>s (métron) do mundo, do município ao universo,<br />
<strong>da</strong> gênese ao apocalipse. O quarto é sótão e porão, dia e noite, dinâmica e repouso,<br />
paraíso e prisão – o mundo em miniatura, um território entre o aposento sagrado de<br />
Sebastiana e o profano banheiro, a própria ambivalência de Utopia (ou-topos) em sua<br />
fatura por Thomas Morus (“o bom lugar”) e em sua rubrica etimológica (“nenhum<br />
lugar”). Mas, antes de tudo, o espaço onde a <strong>memória</strong> ritualiza o mito do eterno retorno.<br />
A operação <strong>da</strong> escrita que demu<strong>da</strong> o quarto em texto equivale ao rito que invoca,<br />
senão a abolição, ao menos a convergência dos tempos, senão a experiência do<br />
habitar, ao menos a visão fugidia <strong>da</strong>s imagens dos espaços amados. Como em qualquer<br />
lugar sagrado, no quarto <strong>da</strong> casa onírica realiza-se “rotação e contaminação, colóquio<br />
com os tempos. Subversão do espaço” (Pol, p. 1043). Pela via <strong>da</strong> lembrança, do<br />
sonho e <strong>da</strong> imaginação, o “quarto escrito” dá a existir a casa, a ci<strong>da</strong>de, o cosmos. Qual<br />
uma imagem que surgisse de uma caixa de brinquedos, o quarto faz desaparecer a<br />
casa, a ci<strong>da</strong>de e o mundo; apenas para de novo apresentá-los com a beleza <strong>da</strong>s primeiras<br />
contemplações. Assim, resumindo as dores e as alegrias do mundo, o quarto contamina<br />
to<strong>da</strong> a casa até desdobrá-la em outras – parentes, vizinhas ou quase.<br />
Do elenco <strong>da</strong>s mora<strong>da</strong>s consangüíneas participam as casas de Prima Julieta, de<br />
Titiá e de Sinhá Leonor. Quanto à primeira delas, embora não participe <strong>da</strong>s visitações<br />
de Murilo Mendes e, portanto, não faça jus a uma linha descritiva sequer, a casa de<br />
Prima Julieta desvela como, na reconstituição <strong>da</strong> <strong>memória</strong> <strong>da</strong> terra-infância, os espaços<br />
de habitação se contaminam, se comunicam, de modo que to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de se constitui<br />
como “‘um espaço-rede’ que liga os objetos mais distantes, sendo tal ligação<br />
L ÉGUA ÉGUA & & M EIA EIA: EIA : R EVISTA EVISTA DE DE L LLITERATURA<br />
L ITERATURA E D DDIVERSIDADE<br />
D IVERSIDADE C CCULTURAL<br />
C ULTURAL ULTURAL,<br />
ULTURAL , V. . 4, 4, N O ° 3 , 20 2005 20 05 —<br />
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