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Casas da memória - Légua & meia

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habitado por Hortênsia, a filha caçula de Antônio e Leonor Monteiro <strong>da</strong> Silva, o<br />

porão verticaliza o sobrado de dois an<strong>da</strong>res: “... ele [o porão] é em primeiro lugar o ser<br />

obscuro <strong>da</strong> casa, o ser que participa <strong>da</strong>s potências subterrâneas. Sonhando com ele,<br />

concor<strong>da</strong>mos com a irracionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s profundezas” (Bachelard, 1988, p. 121). Ao<br />

recinto secreto, os pais de Hortênsia acrescem um banheiro – “fato raro na época” (IS,<br />

p. 953), mas sintoma do seu regime noturno. Aqui a demência (?) evita voluntariamente<br />

qualquer contato ou manifestação, multiplicando-se em enigmas:<br />

98 98 —<br />

—<br />

Desde menina [Hortênsia] trancara-se num dos quartos do sobrado. [...]<br />

Que fazia a jovem, sozinha no seu estreito domínio o dia inteiro? Diziam que<br />

bor<strong>da</strong>va, costurava, lia romances. Segundo pude apurar, teria contato somente com a<br />

mãe e os irmãos; mesmo assim os contatos indispensáveis.<br />

Nunca consegui saber o motivo exato dessa atitude <strong>da</strong> moça voluntariamente<br />

aliena<strong>da</strong> do convívio humano. (IS, p. 953)<br />

A inexplicável clausura faz proliferar na ci<strong>da</strong>de um infinito de hipóteses: feiúra?<br />

timidez mórbi<strong>da</strong>? loucura mansa? uma beleza tanta que poderia provocar nova guerra<br />

de Tróia? Tratando de destruir to<strong>da</strong>s as teorias, a família acaba por transformar o<br />

assunto Hortênsia em tabu: “Todos começaram tacitamente a achar melhor a persistência<br />

do enigma do que a sua explicação” (IS, p. 953). Quanto ao jovem Murilo<br />

Mendes, a ânsia, a enorme curiosi<strong>da</strong>de de ver, conhecer, tocar a prima enclausura<strong>da</strong> o<br />

fizeram construir para si uma versão de Hortênsia, “belíssima, fascinante, sinuosa”,<br />

“parelela ao original” (IS, p. 953).<br />

Durante anos o adolescente desce ao porão na expectativa de vislumbrar a precursora<br />

<strong>da</strong>s figurações literárias <strong>da</strong> incomunicabili<strong>da</strong>de, mas encontra apenas os três<br />

manequins vermelhos que batizara de “‘santíssima trin<strong>da</strong>de terrestre’” (IS, p. 953).<br />

“Até que um dia a porta de Hortênsia entreabrindo-se pude entrever um raio oblíquo<br />

do seu rosto; a visão, intransmissível por meio de letras, durou um milésimo de segundo,<br />

permanecendo pela minha vi<strong>da</strong> afora até hoje. Segundo Leopardi ‘lingua mortal non<br />

dice...’” (IS, p. 953)<br />

As revelações fun<strong>da</strong>mentais são mesmo indizíveis, a visão do enigma eclipsa o<br />

olho, “o sonho do porão aumenta invencivelmente a reali<strong>da</strong>de” (Ibidem, p. 122). Enfim,<br />

a casa de Sinhá Leonor cresce até confundir-se com o “infinito íntimo”, colige em<br />

si to<strong>da</strong>s as mora<strong>da</strong>s, revela-se o lugar de cruzamento <strong>da</strong>s horizontais do destino exterior<br />

e <strong>da</strong>s verticais do mistério. No sobrado misturam-se o público e o privado, a<br />

natureza e o artifício, a sala e o porão, o trágico e o cômico, o banal e o feérico, o<br />

— L ÉGUA ÉGUA & & MEIA EIA EIA: EIA : R EVISTA EVISTA DE DE DE LLLITERATURA<br />

L ITERATURA E D DDIVERSIDADE<br />

D IVERSIDADE C C ULTURAL ULTURAL,<br />

ULTURAL , V. . 4, 4, N O ° 3 , 20 2005 20 05

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